DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.469
Douglas Rafael Dias Martins
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Os Manuscritos de 1844 de Karl Marx e a retomada da economia
política no pensamento pós-hegeliano
Douglas Rafael Dias Martins
1
Resumo:
O presente artigo visa à análise e caracterização das rupturas e continuidades
presentes nos manuscritos produzidos em Paris por Karl Marx no ano de 1844
a partir das relações com a economia política, com o pensamento pós-
hegeliano e Hegel. Nesse sentido, os cadernos intitulados Manuscritos
econômico-filosóficos foram produzidos a partir das preocupações filosóficas
da tradição dos novos hegelianos que se formou após a morte de Hegel e se
estendeu até meados da metade do século XIX –, e ocupam uma posição
privilegiada no desenvolvimento do pensamento de Marx pois permitem
apreender o movimento dos diálogos e práticas que o autor estabelecia. Ainda,
ao retomar os estudos da economia política junto a uma interpretação da
dialética hegeliana, Marx realiza um movimento de, ao mesmo tempo,
aproximar-se e afastar-se de Hegel, bem como aproximar-se e afastar-se dos
jovens hegelianos. A partir de uma análise crítica e da reconstituição do
cenário de produção dos manuscritos, buscamos deixar apontada a
importância da reaproximação crítica da economia política com a dialética
hegeliana para a importância do destaque e prevalência do pensamento de
Marx em meio a estes pós-hegelianos.
Palavras-chave: Karl Marx; economia política; pós-hegelianos; dialética
Karl Marx’s 1844 Manuscripts and the return of the political
economy in post-Hegelian thought
Abstract:
This article aims to analyze and characterize the ruptures and continuities
present in the manuscripts produced in Paris by Karl Marx in the year 1844
from the relations with political economy, with post-Hegelian and Hegel
thought. In this sense, the notebooks entitled Economic-philosophical
manuscripts were produced from the philosophical concerns of the tradition
of new Hegelians that was formed after Hegel's death – and extended until the
middle of the 19th century –, and occupy a privileged position in the
development of Marx's thought because they allow to apprehend the
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista
(Unesp). E-mail: douglas__martins@hotmail.com.
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movement of dialogues and practices that the author established. Still, after he
resumes the studies of political economy with an interpretation of the Hegelian
dialectic, Marx makes a movement, at the same time, to approach and distance
himself from Hegel, as well as to approach and distance himself from the young
Hegelians. Based on a critical analysis and the reconstitution of the manuscript
production scenario, we seek to point out the importance of the critical
rapprochement between political economy and Hegelian dialectic for the
importance of the prominence and prevalence of Marx's thought among these
post-Hegelians.
Keywords: Karl Marx; political economy; post-Hegelians; dialectic.
Introdução
Buscaremos analisar a evolução do pensamento de Karl Marx a partir
das rupturas e continuidades que este sofreu e promoveu a partir das relações
e debates com os intelectuais alemães pós-hegelianos, os socialistas franceses,
a economia política e o próprio Hegel. Para tanto, consideramos que alguns
textos ganham evidência por sua posição histórica, política e epistemológica
privilegiada, de modo que os intitulados Manuscritos econômico-filosóficos é
um conjunto desses escritos e apresenta os primeiros traços que prepararão a
ruptura dialética de Marx com os pós-hegelianos dos anos seguintes. Também
buscaremos apontar, além da importância para o pensamento de Karl Marx,
os manuscritos produzidos no ano de 1844 em Paris como uma tentativa – não
levada à cabo por não terem sido publicados – de retomada e consolidação da
economia política junto ao pensamento pós-hegeliano (que havia sido
esquecida pelos herdeiros diretos, os chamados velhos hegelianos) antes da
dissolução de seu domínio intelectual na Alemanha na metade do século XIX.
Nesses marcos, destaca-se que a virada dos anos de 1843 e 1844 em Karl
Marx deve ser analisada com cuidado. Após a metade do ano de 1843 o jovem
passa por mudanças bastante amplas: desde o casamento com a noiva Jenny,
a fundação de uma revista – os Anais Franco-Alemães [Deutsch-französische
Jarhbücher] –, até a mudança com a família para Paris e os primeiros contatos
com organizações proletárias. Nesse período, ao todo, surgem pelo menos seis
escritos
2
do autor, ao passo que nem todos foram publicados e acabaram
servindo como material de estudos e pesquisa. O cuidado, então, se deve à
caracterização dos distintos momentos da vida e do pensamento de Marx, de
2
São eles: Crítica da filosofia do direito de Hegel; Sobre A questão judaica; Crítica da filosofia
do direito de Hegel Introdução; os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844; Glosas
críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”. De um prussiano; e por
fim, A sagrada família.
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modo que, ainda que a produção desses escritos se deu em um período
bastante curto, também serviu para que ele percorresse um longo caminho
filosófico e político. Assim, entre junho de 1843 e novembro de 1844, as
concepções e posicionamentos do autor mudam e se aprofundam,
principalmente, na direção do comunismo e dos estudos sociais.
Ainda nas primeiras décadas do século XIX a Alemanha era uma região
atrasada do ponto de vista socioeconômico, guardando muitos resquícios da
produção social fundamentada em guildas e no trabalho artesanal, assim como
nas relações de servidão. Da mesma maneira, ainda não havia se constituído
como nação, mantendo-se como uma série de pequenos reinos que se
relacionavam e uniam através de interesses em comum com outros reinos
maiores, que por sua vez, visavam a satisfazer principalmente as classes da
nobreza, do clero e dos proprietários fundiários. Apesar desse atraso
socioeconômico, que contrastava com seu desenvolvimento filosófico-
científico, algumas grandes cidades alemãs continham elementos
razoavelmente avançados, como grandes manufaturas e fábricas isoladas, de
modo que o processo de proletarização dos servos, artesãos e camponeses
(principalmente) havia apenas começado. Contudo, ainda que esses elementos
servissem para iniciar a introdução da consciência proletária nas massas
trabalhadoras e nos intelectuais da Alemanha, as condições sociais
conservadoras ainda não permitiam que estes grupos estivessem na vanguarda
de suas áreas de atuação política. Assim, a recém-nascida e ainda pouco
numerosa classe trabalhadora alemã, bem como os pensadores e intelectuais
que refletiam sobre as condições das camadas populares, não foram capazes
de produzir mudanças radicais nas relações econômicas e políticas daquela
região na virada e nas primeiras décadas do século XIX.
Assim, os intelectuais pós-hegelianos de maneira geral buscaram
refletir por uma via filosófica sobre as condições da cultura alemã, mas,
especialmente seus herdeiros diretos os chamados velhos hegelianos não
deram a mesma atenção que o próprio Hegel dedicara ao tema da economia
política em seu tempo
3
. Será, no entanto, pelas mãos e atuação dos jovens
hegelianos que o tema da economia política será gradualmente retomado como
uma questão de interesse do pensamento hegeliano ainda que se ressalte a
existência de uma anotação do “velho” Gans
4
sobre o tema. Somente a partir
da década de 1840 que algumas questões da economia política passarão a
3
Como esclarece Norbert Waszek, em O estatuto da economia política na filosofia prática de
Hegel.
4
Waszek aponta que na segunda edição da Filosofia do direito publicada em 1833, Eduard
Gans, discípulo direto de Hegel, “velho hegeliano” e professor de Marx, escreveu: Neste livro,
nada que poderia se reportar ao estado é, portanto, deixado de lado. As questões políticas são
tratadas de modo detalhado e, mesmo a ciência da economia política encontrou o lugar e o
tratamento que lhe convém, na sociedade civil.” (WASZEK, 2011, p. 56)
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exercer alguma influência sobre os intelectuais neo-hegelianos como por
exemplo Moses Hess, Friedrich Engels e Karl Marx. Partindo da compreensão
de que a economia política começava a ser consolidada no pensamento
filosófico alemão a partir da introdução tardia das relações de produção
capitalistas, e considerando que o próprio Hegel havia se detido mais do que
seus herdeiros para o mesmo tema, buscaremos ter como objeto e fio condutor
a compreensão do pensamento de Marx a partir das aproximações e
distanciamentos com Hegel, os pós-hegelianos, os socialistas “utópicos” e os
economistas políticos no referido texto.
Sobre os cadernos de estudos e os Manuscritos de Paris
Os manuscritos escritos em Paris por Karl Marx foram publicados,
parcialmente, em 1927, e apenas cinco anos depois foram publicados
integralmente sob o tulo de Manuscritos econômico-filosóficos. A descoberta
dos cadernos que serviram de estudos e os manuscritos que Marx escreveu
5
,
com a pretensão de publicar, foram extremamente importantes não somente
do ponto de vista do fornecimento de novos materiais para a compreensão da
evolução do pensamento marxiano, como também aconteceu em um período
chave do desenvolvimento da história do proletariado e das lutas de classes no
século XX. O ano de 1927
6
, inclusive, com a publicação desses primeiros
fragmentos dos manuscritos, influenciou, junto às obras de Karl Korsch,
György Lukács, Isaak Ilitch Rubin e Evgeni Pachukanis
7
, a ascensão de outras
tendências filosóficas no interior do pensamento marxista e que terão em
comum a busca por revalorizar as relações do pensamento tardio de Marx e
Engels com as novas descobertas de obras de juventude não publicadas
assim como suas ligações com os jovens hegelianos, Ludwig Feuerbach e o
5
Cabe fazer uma pequena distinção: os cadernos de anotações, publicados no Brasil como
Cadernos de Paris (MARX, 2015, pp. 179-233), se tratam das notas de estudos que visavam
fundamentar os manuscritos que seriam publicados, e não o foram, mas que seriam
encontrados e publicados no século XX como Manuscritos econômico-filosóficos (MARX,
2010a).
6
A partir de 1924 marcaria, ainda, um giro fundamental nas políticas programáticas da
Internacional Comunista que tinha força de direção significativa sobre as massas de
trabalhadores de diversos países do mundo –, culminando nas décadas seguintes, em última
instância, com a identificação das interpretações teóricas com a concepção do “terceiro
período” e do “socialismo em um só país”. Assim, principalmente após a supressão dos
conselhos de trabalhadores, a perseguição e morte de uma série de dirigentes, militantes e
intelectuais revolucionários bolcheviques (ou que aderiram ao processo revolucionário), surge
a noção de um “marxismo ocidental” que o possui uma unidade teórica ou prática, mas
que foi usada inicialmente por Korsch e posteriormente reproduzida por Merleau-Ponty
como oposição a um “marxismo vulgar” defendido como “doutrina oficial” no interior da
Internacional Comunista.
7
Respectivamente Marxismo e filosofia, História e consciência de classe, A teoria marxista
do valor e Teoria geral do direito e marxismo.
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pensamento de G. W. F. Hegel e as questões colocadas por aquele período
histórico.
Nos Manuscritos econômico-filosóficos, o grau de importância da
retomada do tema e das questões da economia política
8
, para além do que foi
brevemente dito, também vão marcar segundo Mandel o início da evolução
de um “comunismo filosófico” para um “comunismo sociológico, isto é,
fundado na análise da evolução das sociedades e de sua lógica” (MANDEL,
1968, p. 32). Um dos pontos principais dessa influência, sem dúvida, foram as
experiências que o próprio Marx reivindicou para seus estudos como
“resultados (...) de uma análise inteiramente empírica, baseada em cuidadoso
estudo crítico da economia política”, que embora muito menos profundas e
críticas do que o jovem autor gostaria, já eram bastante importantes do ponto
de vista da constatação do nível de organização política que o proletariado
francês e imigrante estava adquirindo. Nos Manuscritos, vemos o jovem autor
se fundamentar, do ponto de vista da economia política, principalmente em
Adam Smith, mas também em fragmentos e questões pontuais de David
Ricardo, Jean-Baptiste Say, James Mill, Thomas Malthus, Sismonde de
Sismondi, Pierre-Joseph Proudhon, entre outros (MARX, 2010a, p. 20).
Serão baseados ainda nesses manuscritos, como nos informa Jones na
biografia do autor, que nos últimos meses de 1844 Marx teve um papel ativo
na revista Vorwärts! experiência esta que o permitiu conhecer e se
aproximar da Liga dos Justos (o germe da futura Liga dos Comunistas) –, e
chegou inclusive a ministrar palestras sobre economia política para os
trabalhadores
9
. Este fato possui importância pois ajuda a esclarecer e refletir
sobre a importância que o jovem autor considerava na exposição e apreensão
8
Em que Marx anuncia conscientemente sua intenção de aproximar a questão da dialética
com uma noção crítica da economia política: “Farei, por conseguinte e sucessivamente, em
diversas brochuras independentes, a crítica do direito, da moral, da política etc., e por último,
num trabalho específico, a conexão do todo, a relação entre as distintas partes, demarcando a
crítica da elaboração especulativa deste mesmo material. Assim, será encontrado o
fundamento, no presente escrito, da conexão entre a economia nacional e o estado, o direito,
a moral, a vida civil etc., na medida em que a economia nacional mesma, ex professo, trata
destes objetos. (...) Considerei o capítulo final do presente texto, a exposição da dialética e da
filosofia hegelianas em geral, extremamente necessário, posto que semelhante trabalho jamais
foi realizado, e nem sequer chegou a ter sua necessidade reconhecida pelos teólogos críticos
do nosso tempo.” (MARX, 2010a, pp. 19-20)
9
Onde é interessante notar que, como ainda apresentaremos, essas palestras sobre economia
política promovidas para os trabalhadores representam bem as influências filosóficas e
políticas das posições de Marx nesse momento de 1844: “De agosto até o final de 1844, Karl
teve papel ativo na Vorwärts!, fazendo palestras para artesãos e definindo a linha editorial da
Liga. Ele escreveu para Feuerbach dizendo que ‘os artesãos alemães em Paris, isto é, aqueles
que são comunistas, algumas centenas’, têm assistido a palestras, duas vezes por semana,
sobre A essência do cristianismo, ‘durante todo este verão’. Karl e outros do periódico,
especialmente Georg Weber, davam palestras sobre economia política, tendo como base o
ensaio crítico de Engels sobre o assunto, o texto de Hess sobre dinheiro e os manuscritos do
próprio Karl.” (JONES, 2017, p. 187)
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de sua filosofia e análises políticas e socioeconômicas para os indivíduos que
consideravam essenciais na constituição como sujeito ou classe social, bem
como a importância que seu pensamento posterior irá adquirir para
compreender a totalidade da sociedade capitalista. Essa consideração,
inclusive, é de grande importância para o próprio Karl, que como
analisaremos, busca partir dos elementos mais sensíveis e imediatos aos
trabalhadores em suas análises e críticas da economia política perceptível
não apenas nos Manuscritos econômico-filosóficos como também em sua obra
de maior fôlego e maturidade, O capital (JONES, 2017, p. 187).
Para além do Prefácio dos Manuscritos parisienses situado no terceiro
caderno, Marx reforça sua influência filosófica junto às críticas neo-hegelianas
de Feuerbach e sua posição “humanista e naturalista” (MARX, 2010a, p. 20),
que parte da sensibilidade como início do processo de apreensão racional da
realidade e um novo sentido para o conceito de alienação: Hegel, segundo a
crítica feuerbachiana, teria cometido um erro ao iniciar sua lógica com o ser e
o nada, bem como, teria considerado o processo de exteriorização da essência
do ser, a alienação e o mundo natural e sensível, como mero momento de
mediação da reconciliação com o espírito absoluto. Mergulhado na crítica de
Feuerbach, Marx, então, repreende Hegel por seu aspecto “místico” que,
segundo ele, não teria dado suficiente atenção para o caráter negativo da vida
sensível como finito, alertando para a possibilidade de a filosofia especulativa
hegeliana ser apropriada como o último refúgio das ideias conservadoras
daquele tempo.
Refletindo sobre a questão dos salários, Marx avança em seus escritos,
em relação à literatura anterior, ao concebê-los a partir de um processo de
disputa, um “confronto hostil entre capitalista e trabalhador” (MARX, 2010a,
p. 23). Apesar de seus equívocos – que serão tratados logo à frente –, trata-se
de um passo importante a noção mais geral de que os salários não representam
o produto justo da atividade de trabalho do indivíduo trabalhador, mas sim
que eles pressupõem relações de produção entre indivíduos e grupos sociais
com interesses opostos e contraditórios. O salário, assim, passará a
caracterizar a manifestação, a mediação universal, da essência alienada da
atividade de trabalho na sociedade moderna. Contudo, como se nota através
das notas de leitura que foram produzidas para a elaboração dos Manuscritos
econômicos e filosóficos, e partindo de Adam Smith, a “taxa natural do salário”
para Marx assim como a renda e o lucro –, será determinada de um modo
bastante eclético, através “do costume e do monopólio e, em última instância,
da concorrência; não derivam da natureza da terra, do capital e do trabalho”
Por fim, ainda reafirma: “Os custos de produção são eles mesmos
determinados pela concorrência e não pela produção.” (MARX, 2015, p. 191)
Essa concepção equivocada de Marx, que levava em consideração
principalmente as noções ainda rudimentares sobre Ricardo e Malthus e três
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momentos do desenvolvimento do ciclo econômico, somente mudaria cerca de
10 anos depois segundo Mandel. Apesar de nunca ter aderido explícita e
completamente às mesmas, a teoria ricardiana e malthusiana dos salários
ajudou Marx e Engels a formular sua própria noção, que nos escritos
marxianos já tem suas primeiras evidências nos Manuscritos econômico-
filosóficos através da concepção de que existia uma “tendência dos salários
de cair para um mínimo vital fisiológico e se manter” (MANDEL, 1968, p.
145). Para o jovem Marx, ainda, uma vez constatado esse fenômeno, que era
inclusive defendido pelos teóricos da economia política, se tornava explícito
que os trabalhadores eram tomados apenas como simples fatores de produção,
ou melhor, seres brutalizados e portadores apenas de carências fisiológicas
voltadas para a mera existência e reprodução biofísicas.
Nesses marcos, e com todos seus limites, essa primeira teoria dos
salários do jovem Marx compreenderá que os “aumentos de salários não
podem intervir senão provisoriamente e estão condenados a ser
impiedosamente apagados pela lógica do sistema” (MANDEL, 1968, p. 34).
Sua teoria, então, se caracterizapela “pauperização relativa” dos salários, em
que o aumento da produtividade frente a qualquer situação de rápida baixa de
valor de uma mercadoria, será compensada em uma fração cada vez menor da
jornada de trabalho – o colocando em uma posição oposta à de Smith, que por
sua vez defende que a classe trabalhadora deterá uma massa cada vez maior da
riqueza social. É aqui que, para o autor, a economia política reforçava seu
caráter de uma ciência positiva, que se assumindo como “ciência da riqueza”
omitia que somente a produzia baseada na concentração da mesma e, por isso,
em uma distribuição da pobreza. Desse modo, a massa de trabalhadores que
participava diretamente da produção dessa riqueza, na visão de Marx, o
estava apenas alheia e marginalizada dos produtos e excedentes dessa mesma
riqueza social, como também a objetivação de sua atividade genérica se torna
um meio apenas para garantir sua sobrevivência individual. Ainda irá escrever
nos seus cadernos de estudos que se a produção de riqueza “é o objetivo da
vida, a economia política atende-o muito mal, porque, para ela, consumir e
produzir não são o destino do operário” (MARX, 2015, p. 196).
Notamos aqui que, diferentemente de Hegel que via na possibilidade de
recuperação de um certo caráter formador do trabalho, o período histórico e
os primeiros estudos da economia política já permitiram que Marx percebesse
as condições brutalizadas que os trabalhadores modernos eram constituídos.
Assim, o jovem denunciava os teóricos da economia política, para quem os
indivíduos que deveriam ser considerados e tomados como efetivos eram os
sujeitos econômicos racionais o bourgeois e não o citoyen, como escreveu
em Sobre a questão judaica (MARX, 2010b, p. 41). Apesar dessa compreensão,
a crítica marxiana não tinha as questões econômicas hegelianas como alvo,
mas sim a defesa do sistema de crédito levado à cabo pelos socialistas
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utópicos
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e, em especial, Proudhon: desde esse período Marx era capaz de
perceber que as contradições da economia política pressupunham a base e o
desenvolvimento do sistema bancário como um de seus meios de reprodução,
e por isso, o próprio sistema de créditos e a generalização do dinheiro se
manifestavam como soluções aparentes e ilusórias (MARX, 2015, p. 205).
Também será através da questão dos salários que se conectará outro
tema em um dos últimos capítulos do terceiro manuscrito: a questão do
dinheiro. Em relação a este, em seus cadernos de leitura de 1844 Marx faz
alguns comentários sobre James Mill e concorda com um aspecto da
concepção do mesmo: o que caracteriza o dinheiro não é sua alienação da
propriedade, mas sim da atividade humana do trabalho –, ou seja, uma vez
que a riqueza é produzida a partir do trabalho social ela necessita de uma forma
específica de representação da mesma e que seja externa ao mesmo trabalho.
O dinheiro, então, originalmente, seria uma exteriorização da atividade de
trabalho que mediava a quantidade de riqueza contida em cada produto da
mesma; contudo, com a alienação do trabalho, essa determinação se inverte, e
é a quantidade de trabalho que passa a mediar a exteriorização do dinheiro no
processo de produção de riqueza. Escreverá em seus cadernos preparatórios:
Não é o dinheiro que se suprime no homem no interior do sistema
creditício; é o próprio homem que se converte em dinheiro ou,
noutra expressão, é o dinheiro que se encarna no homem. A
individualidade humana, a moral humana, transformam-se,
simultaneamente, em artigo de comércio e na existência material do
dinheiro. Em lugar do dinheiro, do papel, é a minha existência
pessoal, a minha carne e o meu sangue, a minha virtude social e a
minha reputação social que se tornam a matéria e o corpo do espírito
do dinheiro. O crédito calcula o valor monetário não em dinheiro,
mas em carne e coração humanos. (MARX, 2015, p. 206)
Segundo o jovem nos Manuscritos econômico-filosóficos, todavia, as
relações dos indivíduos com o dinheiro não se manifestavam como um
fenômeno de alienação como os demais como o da religião retratado por
Feuerbach, por exemplo. Agora, como dirá Bensaïd, o dinheiro aparece
“principalmente como um culto arcaico”, como “fetichismo”, em que este
“mexe as cordas do mundo”, assim como “domina e tiraniza a humanidade (...)
10
Marx de exemplo em seus cadernos de estudos os herdeiros de Saint-Simon, que
consideravam o desenvolvimento do dinheiro, das letras de câmbio, a substituição do dinheiro
por papeis, o sistema de crédito e bancário, como o início da abolição da separação entre
sujeito e objeto, capital e trabalho, propriedade privada e dinheiro, dinheiro e o ser humano,
como a abolição da separação entre o ser humano e ele mesmo. Dessa forma, irá concluir o
autor: “Eles têm, por isto, como um ideal um sistema bancário organizado, mas esta supressão
da alienação, este retorno do homem a si mesmo e aos outros homens, não passa de ilusão.
Trata-se de uma autoalienação, uma desumanização tanto mais infame e tanto mais extrema
na medida em que seu elemento não é mais a mercadoria, o metal, o papel, mas a existência
moral, a existência social, o íntimo do coração humano sob a aparência da confiança do
homem no homem, é a suprema desconfiança e a alienação total.” (MARX, 2015, p. 204)
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enquanto forma abstrata da riqueza” (2013, pp. 52-4). Desse modo, o dinheiro
reduz todo o movimento do ser à sua abstração e a um ser quantitativo,
reduzindo as carências do ser humano apenas àquelas fisiológicas agora
medidas quantitativamente e realizadas apenas pela posse do dinheiro. Ainda
segundo Daniel Bensaïd, posteriormente Marx e Freud serão responsáveis por
transformar o sentido do conceito de “fetichismo”, deixando de ser um
conceito etnológico (e racista
11
) e passando a assumir um conteúdo social e
psicologicamente críticos, respectivamente.
No segundo capítulo do primeiro manuscrito, denominado “Lucro do
capital” (Profit des Kapitals), Karl Marx confronta o conceito de capital de
Adam Smith enquanto “trabalho armazenado”. Em Smith esta ideia de
trabalho acumulado e capital estava relacionada diretamente à noção de
geração de riqueza de uma nação à generalização das relações de produção
capitalistas e do trabalho assalariado como produtor de riqueza. Para Marx,
por sua vez, os teóricos da economia política escondiam que, de fato, o capital
se tratava da “propriedade privada dos produtos do trabalho alheio” (MARX,
2010a, p. 39). Ainda diferente daquele conceito de capital como valor que se
valoriza de seu pensamento posterior, é importante destacar que para Marx já
irá aparecer um processo de abstração que domina a atividade de trabalho e de
produção da sociedade. Nessa perspectiva, a economia política enquanto
ciência, vai aparecer como uma “guerra de conquista” (MARX, 2010a, p. 37)
dos interesses econômicos na sociedade burguesa, sendo ela mesma voltada
para a posse e concentração da riqueza em uma classe social particular e não
para a distribuição e produção da felicidade dos seres humanos.
Mesmo com essas questões, definitivamente um dos pontos que tornam
as concepções econômicas do jovem Marx bastante frágeis é a sua falta de
noção sobre os fenômenos do valor e do mais-valor que ele até admite logo
no início de seus cadernos de estudos
12
. Esta debilidade levará o autor a tratar
11
Sobre a origem do termo “fetichismo”, explica Daniel Bensaïd: “Inspirado no português
(feitiço fabricado, artificial), a introdução do termo ‘fetichismo’ no vocabulário do
conhecimento social é geralmente atribuído a Balthazar Bekker, autor, em 1691, do Mundo
encantado, no qual desenvolve uma análise comparada das velhas religiões pagãs e das
religiões dos ‘selvagens’; e também, sobretudo, ao livro de Charles de Brosses, Do culto dos
deuses fetiches, aparecido em 1760. O termo evoca, neste caso, uma religião simbolicamente
pobre. Para de Brosses, presidente da Assembleia de Dijon, todos os povos podem progredir
da mesma maneira, mas encontramos nos negros africanos o culto de certos objetos materiais,
chamados fetiches que ‘eu chamaria de fetichismo’. Este fetichismo é, na sua opinião, o sinal
de um arcaísmo em relação a uma linha de progresso que consiste em passar dos objetos
sensíveis aos conhecimentos abstratos’. Com Marx (que leu de Brosses em 1842) e com Freud,
o fetichismo não designa mais um culto primitivo, mas fenômenos sociais ou psíquicos
contemporâneos, quer se trate da submissão ao fetichismo da mercadoria, que se trate da
perversão sexual que consiste em tomar uma parte pelo todo. Ele deixa de ser um conceito
etnológico para se tornar um conceito crítico.” (BENSAÏD, 2013, p. 52)
12
Escreve: “Riqueza. Aqui se supõe o conceito de valor, conceito que, entretanto, não está
ainda analisado.” (MARX, 2015, p. 186)
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de maneira análoga – como os economistas vulgares – o “valorcomo “preço”,
assim como confundir a própria relação de “valor” com “excedente de valor” e
perder a perspectiva da relação entre o conceito e a produção e acumulação de
riqueza. Em parte, a explicação para esse fato pode ser dada: a) pelo fato do
jovem ter escolhido ir para a França, onde o desenvolvimento da economia
levou à produção de mercadorias de luxo e as relações de produção típicas do
período manufatureiro, sem a constituição de fábricas e com relativo alto grau
de especialização dos artesãos (o que também pode ajudar a compreender a
preferência teórica por Smith e não Ricardo
13
); b) bem como a de resquícios
idealistas em sua concepção filosófica, na qual a sociedade é tomada como
produto da relação sujeito-objeto, mas, ainda, a superação da essência social
contraditória, depende da realização do sujeito.
Apesar de avançar consideravelmente em relação aos pensadores pós-
hegelianos, essa falta de noção sobre o valor também comprometia uma
análise crítica da economia política, porque nesse, e em outros sentidos, a
compreensão marxiana ainda nem mesmo ultrapassava as teorias dos
economistas clássicos, vulgares ou mesmo dos socialistas utópicos – deixando
evidente que ainda não havia distinguido e apreendido o que havia de racional
entre as diferentes tendências da economia política, especialmente o
pensamento de Ricardo. Dessa maneira, como iremos novamente constatar
através de suas anotações de leitura, ao invés do autor expressar a concepção
de que o excedente produzido era fundamentado na contradição entre a
produção e a troca, ele irá acompanhar a concepção de Proudhon, para quem
existe um “tributo” pago ao proprietário privado, ao mesmo tempo que
também afirmará que “os salários constituem um desconto que a terra e o
capital permitem ao trabalhador, uma concessão feita pelo produto do
trabalho ao trabalhador” (MARX, 2015, p. 189).
A questão da alienação e sua relação com a economia política
A partir do último capítulo do primeiro manuscrito é que o jovem Karl
Marx vai revelar o núcleo na sua análise da economia política, permitindo que
se perceba qual noção ocupa o lugar dos conceitos de valor e do excedente de
valor: a divisão do trabalho, que leva ao trabalho assalariado, e por sua vez,
consolida historicamente o fenômeno da alienação [Entfremdung]. O
fenômeno da alienação, de interpretação hegeliana, no geral, é tomado no
interior do processo de experimentação da consciência de si mesma, que se
percebe a partir de um outro, colocando-o como objeto e estabelecendo uma
13
O que também deve ser levado em consideração em relação aos estudos de Marx sobre
Ricardo no ano de 1844 é, que além de ter aparentemente abordado as questões econômicas
colocadas pelo mesmo de maneira fragmentária, ele também utilizou uma edição da obra
ricardiana comentada por Say.
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relação sujeito-objeto. Pela necessidade da identidade entre essência do sujeito
e do objeto para o processo cognoscente, o trabalho será a atividade
propriamente humana que será capaz de mediar o reconhecimento entre a
objetivação do sujeito e a subjetividade do objeto. Hegel postulará a
necessidade desses momentos, de uma primeira negação e de uma negação
desta, enquanto a experimentação racional da consciência de si mesma,
visando o percurso da constituição da consciência do senso-comum enquanto
consciência-de-si, ou seja, sujeito do processo de conhecimento científico.
O conceito de alienação, assim, não era uma elaboração do próprio
Marx, mas sim havia sido desenvolvido em diferentes sentidos por Hegel,
Schelling
14
e Feuerbach, de modo que este último o havia influenciado mais
diretamente nos últimos meses através de A essência do cristianismo – sendo
também importante lembrar que além do acesso às obras de Hegel, o velho
Schelling foi professor do jovem autor em Berlim e por isso é provável que
tenha tido contato com suas ideias filosóficas. Contudo, com os manuscritos
econômico-filosóficos marxianos, pela primeira vez a alienação adquire um
conteúdo socioeconômico aprofundado(MANDEL, 1968, pp. 30-1), estando
enraizada em sua concepção feuerbachiana que privilegiava e partia da
sensibilidade, mas, ao mesmo tempo, adquirindo um conteúdo inédito.
É importante notar que, para Marx, o conceito de alienação vai estar
ligado à externalização da essência do ser, que por sua vez, na sociedade
capitalista, estará diretamente relacionado à atividade de trabalho dos
14
Em relação a Schelling e sua função no contexto histórico, esclarece Benedicto Sampaio e
Celso Frederico: “Pelo mesmo motivo a insegurança dialética desse núcleo conceitual da
realidade –, a monarquia prussiana acabou por retirar o seu apoio semioficial ao pensamento
de Hegel. Em 1841 o rei convidou Schelling para preencher a cátedra de Hegel em Berlim, vaga
desde a sua morte, Schelling, nesse período, entendia a história como epifania, como
manifestação relevadora de Deus, e este como o fundamento da realidade. Desse modo, o
estado racional passou a ser substituído, no plano teórico, pelo estado teológico de investidura
divina. Com sua autoridade e prestígio, o velho Schelling deveria opor-se à influência crescente
dos jovens hegelianos. Significativamente, ele defendia vários anos um conceito de
realidade que denominava ‘empírico-superior’, que consistia na recusa de toda e qualquer
fundamentação racional que escapasse à experiência religiosa da revelação: ‘fica sempre, no
fundo, o irregular, o não sujeito a normas (...) (que é) nas coisas, a base inapreensível da
realidade (...) algo que não é possível reduzir ao entendimento’. Para o velho Schelling, o real
não podia ser reduzido ao desenvolvimento racional, e isso, com certeza, reassegurava a
confiança da monarquia conservadora na fidelidade permanente dos súditos. Os cursos de
Schelling foram frequentados por Engels e Kierkegaard, como a representarem as duas
vertentes dissidentes do pensamento de Hegel: a da crítica ateia à teologização da razão e da
realidade, e a da crítica religiosa contra a sujeição de Deus à razão e, por conseguinte, contra a
racionalização da chamada realidade primeira. O pensamento filosófico da época iria,
portanto, cindir-se em torno da questão da natureza, do substrato autopropulsor, da realidade
na filosofia de Hegel. As divergências se centralizariam nas teorias a respeito de Deus e do
estado. Foi justamente nos termos dessa discussão que Marx se baseou, na busca da autonomia
doutrinária, sua proposta de um desdobramento racional ativo do futuro, contraditoriamente,
por meio de uma filosofia crítica, a de Feuerbach, que se dispunha antes à contemplação
passiva do mundo do que à sua modificação ativa. (SAMPAIO; FREDERICO, 2009, pp. 22-3)
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trabalhadores modernos. Nesse sentido, a essência desses indivíduos se
objetiva nos produtos e mercadorias através da atividade de trabalho que a
concepção marxiana avança sobre a de Feuerbach e a entende como a atividade
genérica do ser humano, se aproximando de Hegel –, fazendo do próprio
objeto uma parte da essência humana e, portanto, algo no qual o conjunto dos
trabalhadores deveriam se reconhecer. Contudo, não é o que o jovem Karl
Marx está presenciando ao analisar as relações sociais capitalistas, pelo
contrário: com a alienação na relação sujeito-objeto da produção industrial
capitalista, a sociedade passa a ser enriquecida ao ser povoada e mediada com
produtos da atividade de trabalho alienado, mas, contraditoriamente, os
trabalhadores se tornam cada vez mais espiritualmente embrutecidos e
miseráveis ao serem dominados pelo sistema de assalariamento. Eis que a
alienação de influência feuerbachiana, então, vai se tratar de uma separação,
cisão, entre a essência e o sujeito, entre o trabalho como autoprodução humana
e o trabalho como meio de manutenção da existência física dos indivíduos.
No capítulo “Trabalho alienado” [Die entfremdete Arbeit] Marx começa
afirmando que até ali havia admitido os pressupostos da economia política,
reivindicando agora o fato de que seus teóricos simplesmente partem da
propriedade privada, mas não explicam seu processo de surgimento
15
,
desenvolvimento e consolidação, ou melhor, não explicam o porquê suas
concepções econômicas são expressões de um desenvolvimento histórico
necessário. Será a partir dessa reivindicação, então, que será possível
apreender o estatuto da economia política nos manuscritos produzidos em
Paris em paralelo com a separação entre a essência e o sujeito: a economia
política apenas toma [fassen] o processo social baseado na propriedade
privada mas não o compreende [begreifen], e portanto, a economia política é
tomada como uma ciência positiva e descritiva que carece do momento
dialético
16
, não compreendendo que quanto mais a sociedade capitalista
enriquece, na mesma proporção, mais o trabalhador se torna deformado e
brutalizado.
A partir da crítica de que a economia política apenas concebeu os
aspectos acidentais e não o movimento real e necessário das formas de
propriedade, o jovem Marx vai ampliar essa noção ao se contrapor à noção de
15
Questão que já apareceu no artigo de Friedrich Engels publicado nos Anais Franco-Alemães
e intitulado Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie (Esboço para uma crítica da
economia política).
16
No sentido que concebe Hegel no §81 da Enciclopédia das ciências filosóficas: “A dialética,
ao contrário [da reflexão], é esse ultrapassar imanente, em que a unilateralidade, a limitação
das determinações do entendimento é exposta como ela é, isto é, como sua negação. Todo o
finito é isto; suprassumir-se a si mesmo. O dialético constitui pois a alma motriz do progredir
científico; e é o único princípio pelo qual entram no conteúdo da ciência a conexão e a
necessidade imanentes, assim como, no dialético em geral, reside a verdadeira elevação – o
exterior – sobre o finito.” (HEGEL, 2012, p. 163, acréscimo nosso)
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generalização de “um estado primitivo imaginário” tendo em mente
diretamente Adam Smith e parte significativa da tradição filosófica
iluminista
17
. Nesses marcos, o autor vai chegar a tangenciar sua própria
concepção materialista posterior e o conceito de “relações de produção”, ao
afirmar que “a economia política oculta o estranhamento na essência do
trabalho porque não considera a relação imediata entre o trabalhador e a
produção” (MARX, 2010a, p. 80) (grifo nosso), até concluir que “se portanto
perguntamos: qual a relação essencial do trabalho, então perguntamos pela
relação do trabalhador com a produção” (MARX, 2010a, p. 82). Sobre o avanço
até esse limite, o jovem também chega a tentar explicar as relações de produção
entre o proletariado e os capitalistas, escreve:
Através do trabalho alienado o homem engendra, portanto, não
apenas sua relação com o objeto e o ato de produção enquanto
homem que lhe são estranhos e inimigos; ele engendra também a
relação na qual outros homens estão para a sua produção e o seu
produto, e relação na qual ele está para com estes outros homens.
Assim como ele [engendra] a sua própria produção para a sua
desefetivação, para o seu castigo, assim como [engendra] o seu
próprio produto para a perda, um produto não pertencente a ele, ele
engendra também o domínio de quem não produz sobre a produção
e sobre o produto. Tal como estranha de si a sua própria atividade,
ele apropria para o alheio [Fremde] a atividade o própria deste.
Consideramos até agora a relação apenas sob o aspecto do
trabalhador. Considerá-la-emos, mais tarde, também sob o aspecto
do não trabalhador. Através do trabalho alienado, exteriorizado, o
trabalhador engendra, portanto, a relação de alguém alheio ao
trabalho – do homem situado fora dele – com este trabalho. A
relação do trabalhador com o trabalho engendra a relação do
capitalista (ou como se queira nomear o senhor do trabalho) com o
trabalho. (MARX, 2010a, p. 87)
17
Como boa parte das concepções do direito natural, que entendem o surgimento da
propriedade de maneira “imaginária”. Como por exemplo, vemos a concepção romântica de
Rousseau: “Da cultura de terras resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade,
uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois, para dar a cada um o que é seu, é
preciso que cada um possua alguma coisa; além disso, começando os homens a alongar suas
vistas até o futuro e tendo todos a noção de possuírem algum bem passível de perda, nenhum
deixou de temer a represália dos danos que poderia causar a outrem. Essa origem mostra-se
ainda mais natural, por ser impossível conceber a ideia da propriedade nascendo de algo que
não a mão-de-obra, pois não se compreende como, para apropriar-se de coisas que não
produziu, o homem nisso conseguiu pôr mais do que seu trabalho.” (ROUSSEAU, 1983, p. 266)
Ainda, também poderia destacar parte dos liberais contratualistas, como John Locke, para
quem a propriedade privada é um produto do trabalho: “De tudo isso, é evidente que, embora
a natureza tudo nos ofereça em comum, o homem, sendo o senhor de si próprio e proprietário
de sua pessoa e das ações ou do trabalho que executa, teria ainda em si mesmo a base da
propriedade (...). Assim o trabalho, no começo, proporcionou o direito à propriedade sempre
que qualquer pessoa achou conveniente empregá-lo sobre o que era comum, que constituiu
durante muito tempo a maior parte e ainda é hoje mais do que os homens podem utilizar.”
(LOCKE, 1978, pp. 51-2)
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em relação ao conceito de alienação, este é central para compreender
a noção de sujeito sensível humanista de Karl Marx e sua relação com a
produção social, que nesse momento ainda estava ligado à concepção
feuerbachiana. Feuerbach, por sua vez, também era tributário dos princípios
filosóficos da antropologia hegeliana
18
, onde o ser humano forma a si mesmo
percepção esta que havia sido relacionada e analisada segundo as questões
da economia política e do trabalho por Hegel, mas não por Feuerbach. Assim,
como ressaltamos, nesse momento a noção de trabalho marxiana não
passará pelas relações com o valor como serão apresentadas em O capital, mas
sim será fundamentada na noção de divisão social do trabalho de influência
smithiana, que o leva a confundir e entender essa divisão como essencialmente
pejorativa e deletéria à atividade de trabalho e ao trabalhador.
Desse modo, apesar de suas debilidades, a retomada e o desdobramento
do conceito feuerbachiano de alienação pelo jovem Marx foi importante: a)
porque “a crítica da alienação religiosa se aprofunda tornando-se crítica da
alienação social” (BENSAÏD, 2013, p. 50), ou seja, a crítica social passa a
entender a autoprodução da consciência do sujeito como uma produção
conjunta à própria sociedade; b) assim como, e buscamos deixar isso bem
claro, a retomada e reaproximação das questões da economia política com a
dialética hegeliana, que inaugura a abertura para a análise das questões sobre
em que medida é possível analisar o modo de produzir de uma sociedade e
encontrar as causas de seu desenvolvimento lógico e histórico, bem como suas
formas de manifestação de consciência de si, jurídica, política, estética e
artística etc.
O fenômeno da alienação para Marx em 1844, dessa maneira, implica
em um movimento duplo para o sujeito: por um lado ele é um “estranhamento”
[Entäusserung], e por isso implica em uma exteriorização, uma despossessão,
que produz riqueza; por outro ele também é uma “alienação” [Entfremdung] e
portanto um alhear-se, onde ao invés de efetivar através de se realizar pelo
reconhecimento e negação do outro, ele se desefetiva na medida em que o
18
Essa antropologia hegeliana, nos Manuscritos econômico-filosóficos, aparece
principalmente como autoatividade, que ao se tornar abstrata, perde seu caráter formador
[Bildung] e reconciliador do ser humano consigo mesmo: “A grandeza da Fenomenologia
hegeliana e de seu resultado final a dialética, a negatividade enquanto princípio motor e
gerador é que Hegel toma, por um lado, a autoprodução do homem como um processo, a
objetivação como desobjetivação, como exteriorização [despossessão] [Entäusserung] e
suprassunção dessa exteriorização; é que compreende a essência do trabalho e concebe o
homem objetivo, verdadeiro, porque homem efetivo, como o resultado de seu próprio
trabalho. O comportamento efetivo, ativo do homem para consigo mesmo na condição de ser
genérico, ou o acionamento de seu [ser genérico] enquanto um ser genérico efetivo, isto é, na
condição ser humano, somente é possível porque ele efetivamente expõe todas as suas forças
genéricas – o que é possível apenas mediante a ação conjunta dos homens, somente enquanto
resultado da história –, comportando-se diante delas como frente a objetos, o que, por sua vez,
só em princípio é possível na forma da alienação.” (MARX, 2010a, p. 123, acréscimo nosso)
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outro não é apreendido como um produto de sua vontade. Nessa concepção, o
mérito se encontra na distinção e relação da unidade do fenômeno, o sujeito,
com as determinações materiais das relações sociais do trabalho enquanto
atividade efetiva de produção de riqueza e atividade abstrata do ser humano.
Com a exteriorização e a objetivação através da atividade de trabalho abstrato,
assalariado, típica das relações capitalistas, o mundo exterior se torna cada vez
mais povoado de objetos autônomos e independentes (mercadorias e riqueza)
da vontade e das carências humanas. Nessa linha, o ser humano se desumaniza
à medida em que se efetiva no mundo. Diz o autor:
Nós partimos de um fato nacional-econômico, presente. O
trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,
quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O
trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais
mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta
em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O
trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e
ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que
produz, de fato, mercadorias em geral. Este fato nada mais exprime,
senão: o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta
como um ser estranho, como um poder independente do produtor.
O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se
coisa, é a objetivação do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua
objetivação. Esta efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-
econômico como desefetivação do trabalhador, a objetivação como
perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como alienação,
como estranhamento. (...) A objetivação tanto aparece como perda
do objeto que o trabalhador é despojado dos objetos mais
necessários não somente à vida, mas também dos objetos do
trabalho. Sim, o trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o
trabalhador pode se apossar com os maiores esforços e com as
mais extraordinárias interrupções. A apropriação do objeto tanto
aparece como alienação que, quanto mais objetos o trabalhador
produz, tanto menos pode possuir tanto mais fica sob o domínio do
seu produto, do capital. (...) A despossessão [Entäusserung] do
trabalhador em seu produto tem o significado não somente de que
seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa, mas, bem
além disso, [que se torna uma existência] que existe fora dele,
independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência
autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe
defronta hostil e estranha. (MARX, 2010a, pp. 80-1)
A partir dessa exposição, Karl Marx chega a um dos pontos altos dos
Manuscritos, apresentando (e retomando) uma série de questões que
buscavam servir de instrumento e armas contra as tendências filosóficas e
políticas que atuavam no período desde os jovens hegelianos (Max Stirner
principalmente), os economistas políticos vulgares, passando pelos herdeiros
dos socialistas utópicos e, em menor peso, por Proudhon. Se entre os debates
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com os jovens hegelianos a crítica aos “socialistas altruístas” dos “Livres de
Berlim” havia sido significativamente bem-sucedida, com a produção dos
Manuscritos econômico-filosóficos, ainda que não publicados, Marx passa a
conseguir fundamentar de maneira incipiente, mas assentada as
questões da economia política em relação à vida produtiva, como aquela que é
capaz de representar a estrutura da vida genérica, da essência humana. Ou em
outros termos, ainda não utilizados nos manuscritos, para o autor em 1844 as
relações de produção sociais guardam as formas e os padrões de reprodução
social, escreve:
Pois primeiramente o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva
mesma aparece ao homem apenas como um meio para a satisfação
de uma carência, a necessidade de manutenção da existência física.
A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora
de vida. No modo da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de
uma species, seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o
caráter genérico do homem. A vida mesma aparece como meio de
vida. (...) O trabalho alienado inverte a relação a tal ponto que o
homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua
atividade vital, da sua essência, apenas um meio para sua existência.
(MARX, 2010a, pp. 84-5)
Na concepção de Marx influenciado pela dialética da dominação e
servidão da Fenomenologia do Espírito de Hegel, mas ressaltando e
delimitando, ao mesmo tempo, a generalidade, as particularidades e
singularidades das modernas lutas de reconhecimento das sociedades
europeias ocidentais como historicamente específicas e relativas à ascensão e
consolidação do conjunto da sociedade capitalista, será com o fenômeno da
alienação que se produzirá o processo de abstração da atividade do trabalho
humano, onde o ser humano não mais realiza a negação ao se colocar como
objeto de si mesmo, pois agora este é despossuído através da apropriação dos
meios de trabalho e do produto de sua atividade de trabalho que se tornam
riqueza privada acumulada. A realização do conjunto social da atividade de
trabalho alienado e da autonomia econômica da sociedade burguesa, desse
modo, para Marx, estaria em contradição com a realização de uma
sociabilidade fundamentada e que visa a liberdade e a justiça.
Mesmo tendo muitos pontos e concepções econômicas atrasadas em
relação à escola clássica, os economistas vulgares e os socialistas utópicos,
portanto, o jovem autor consegue, por outro lado, produzir um importante
salto qualitativo ao concluir que a classe trabalhadora moderna, o
proletariado, não tem meios para se defrontar consigo mesmo ao encarar o
mundo moderno povoado de produtos do trabalho humano. A questão central
para Marx, então, era a de humanizar o proletariado, o tornar sujeito, através
de uma abolição da atividade de trabalho alienado e da propriedade privada.
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Para o jovem em 1844, a elaboração filosófica tomada desde Feuerbach
e dirigida politicamente por Hess, representava uma denúncia radical não
somente do sistema filosófico de G. W. F. Hegel, como também da essência da
sociedade capitalista e seus teóricos da economia política, uma vez que esta
possuía sua sociabilidade alienada por também ser produzida a partir de uma
atividade alienada. Mesmo com limites e sem apreender alguns elementos
econômicos fundamentais, o jovem Marx, baseado em uma interpretação da
figura de dominação e servidão hegeliana, foi capaz de perceber algumas
determinações das relações de produção capitalistas e defender uma via
emancipatória baseada em uma revolução da classe trabalhadora moderna e
na superação do trabalho alienado. Diferenciando-se de Hegel ainda que a
aproximação da economia política e a busca por superar uma “concepção
dicotômica do ser” (NOVELLI, 1998, p. 297) o tivesse o aproximado do mesmo
–, Marx pensava do interior da figura da servidão e dominação e denunciava a
impossibilidade do reconhecimento recíproco
19
da consciência servil enquanto
verdade da consciência senhorial como solução específica para a sociedade
capitalista.
Para a interpretação marxiana, Hegel havia apreendido a lógica das
lutas de reconhecimento das sociedades ocidentais desde a polis grega até as
constituições das nações modernas, mas não conheceu profundamente a
particularidade histórica da essência contraditória da sociedade civil burguesa
e se equivocou em seu diagnóstico. Marx interpretará, então, a filosofia
hegeliana como uma mera expressão abstrata e lógica do movimento da
história, reforçando a posição da superação da dicotomia entre ser e pensar,
entre prática do pensamento e pensamento da prática, como fundamento para
19
Segundo a interpretação de Henrique C. Lima Vaz da dialética da dominação e servidão de
Hegel: “A articulação dos silogismos ou da dialética do Senhorio e da Servidão do ponto de
vista do Escravo irá reabrir o caminho para o reconhecimento efetivo e recíproco que se mostra
inviável a partir da consciência ociosa do Senhor. Hegel às formas de mediação que unem
dialeticamente a consciência servil ao Senhor e ao mundo a denominação geral de ‘ação de
formar-se’ [das Formieren] ou cultura. O mundo trabalhado é, com efeito, mediador para o
Escravo na sua relação com o Senhor mas aqui o trabalho, sob a forma social do serviço, i
formar a consciência servil, pela retenção do desejo, para uma relação verdadeiramente
humana com o mundo. Irá, pois fazê-la retornar a si mesma como consciência-de-si. Tendo
experimentado o temor e o tremor diante do Senhor absoluto – a Morte e conservado, assim,
o seu ser, a consciência servil entra agora para a escola da sabedoria. (...) O temor diante da
morte, a disciplina do serviço em face do Senhor e a atividade laboriosa exercida sobre o
mundo são, assim, para a consciência servil o caminho da negação seja do ser-reconhecido
unilateral do Senhor que tem agora o seu efetivo ser-para-si num outro, seja do seu próprio
não-reconhecimento que é suprimido pela cultura. Esta faz passar o simples ser do Escravo
(conservado no temor da morte e no serviço do Senhor) para o ser-para-si independente que
se constitui pelo agir transformador do mundo. A dialética do Senhorio e da Servidão faz, desta
sorte, surgir a figura da liberdade da consciência-de-si como verdade da certeza que ela tem
de si mesma: uma verdade que passa do sujeito ao mundo pela atividade da cultura. (...) Esse
saber deve apresentar-se como fundamento para a exigência histórica de uma sociedade do
reconhecimento universal.” (VAZ, 1981, pp. 22-3)
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a ação política desalienada e humanizadora. Nesses marcos, o jovem autor
buscará, então, distinguir quatro aspectos do fenômeno de alienação da
atividade de trabalho que desumanizam e deformam o ser humano, em
particular o proletariado.
1) o primeiro é na “exteriorização” da essência do trabalhador e sua
relação com os produtos de sua atividade de trabalho, que faz de sua existência
mero predicado da produção de mercadorias:
A exteriorização [Entäusserung] do trabalhador em seu produto
tem o significado o somente de que seu trabalho se torna um
objeto, uma existência externa, mas, bem além disso, [que se torna
uma existência] que existe fora dele, independente dele e estranha a
ele, tornando-se uma potência autônoma diante dele, que a vida que
ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha. (...) Quanto
mais, portanto, o trabalhador se apropria do mundo externo, da
natureza sensível, por meio de seu trabalho, tanto mais ele se priva
dos meios de vida segundo um duplo sentido: primeiro, que sempre
mais o mundo exterior sensível deixa de ser um objeto pertencente
ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho; segundo, que [o
mundo exterior sensível] cessa, cada vez mais, de ser meio de vida
no sentido imediato, meio para a subsistência física do trabalhador.
Segundo este duplo sentido, o trabalhador se torna, portanto, um
servo do seu objeto. (MARX, 2010a, p. 81)
2) o segundo momento, manifesta-se “dentro da própria atividade
produtiva”, no próprio ato da produção, como “trabalho obrigatório”, forçado
e de autossacrifício:
Mas a alienação não se mostra somente no resultado, mas também,
e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade
produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio ao
produto da sua atividade se no ato mesmo da produção ele não se
alienasse a si mesmo? Na alienação do objeto do trabalho resume-se
somente a alienação, a exteriorização [despossessão] na atividade do
trabalho mesmo. Em que consiste, então, a exteriorização do
trabalho? Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é,
não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu
trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que
não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas
mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador se
sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora
do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando
não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O se trabalho não
é, portanto, voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O
trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente
um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza
[Fremdheit] evidencia-se aqui [de forma] tão pura que, tão logo
inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como
de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se
exterioriza, é um trabalho de autossacrifício, de mortificação.
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Finalmente, a externalidade do trabalho aparece para o trabalhador
como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como
se [o trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não
pertencesse a si mesmo, mas a um outro. (MARX, 2010a, pp. 82-3,
acréscimo nosso)
3) O terceiro momento da alienação do trabalho, segundo o jovem Marx,
vai aparecer na alienação-de-si, de seu ser genérico, de sua essência, e
consequentemente, da própria natureza:
A energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida
pessoal pois o que é vida senão atividade como uma atividade
voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertence a ele. A
alienação-de-si, tal qual acima a alienação da coisa. Temos agora
ainda uma terceira determinação do trabalho alienado a extrair das
duas vistas até aqui. O homem é um ser genérico, não somente
quando prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio
quanto do restante das coisas, o seu objeto, mas também e isto é
somente uma outra expressão da mesma coisa quando se relaciona
consigo mesmo como [com] o gênero vivo, presente, quando se
relaciona consigo mesmo como [com] um ser universal, [e] por isso
livre. A vida genérica, tanto no homem quanto no animal, consiste
fisicamente, em primeiro lugar, nisto: que o homem (tal qual o
animal) vive da natureza inorgânica, e quanto mais universal o
homem [é] do que o animal, tanto mais universal é o domínio da
natureza inorgânica da qual ele vive. Assim como plantas, animais,
pedras, ar, luz etc., formam teoricamente uma parte da consciência
humana, em parte como objetos da ciência natural, em parte como
objetos da arte – sua natureza inorgânica, meios de vida espirituais,
que ele tem de preparar prioritariamente para a fruição e para a
digestão –, formam também praticamente uma parte da vida
humana e da atividade humana. (MARX, 2010a, pp. 83-4)
4) Por fim, o último momento é a alienação do ser humano pelo próprio
ser humano, ou seja, o próprio gênero e essência humana tornam apenas um
meio para garantir a existência dos indivíduos:
O engendramento prático de um mundo objetivo, a elaboração da
natureza inorgânica é a prova do homem enquanto um ser genérico
consciente, isto é, um ser que se relaciona com o gênero enquanto
sua própria essência ou [se relaciona] consigo enquanto ser
genérico. (...) O animal forma apenas segundo a medida e a carência
da species à qual pertence, enquanto o homem sabe produzir
segundo a medida de qualquer species, e sabe considerar, por toda a
parte, a medida inerente ao objeto; o homem também forma, por
isso, segundo as leis da beleza. Precisamente por isso, na elaboração
do mundo objetivo que] o homem se confirma, primeiro lugar e
efetivamente, como ser genérico. Esta produção é a sua vida
genérica operativa. Através dela a natureza aparece como a sua obra
e a sua efetividade. O objeto do trabalho é portanto a objetivação da
vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas
na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente],
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contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele.
Consequentemente, quando arranca do homem o objeto de sua
produção, o trabalho alienado arranca-lhe sua vida genérica, sua
efetiva objetividade genérica e transforma a sua vantagem com
relação ao animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu corpo
inorgânico, a natureza. Igualmente, quando o trabalho alienado
reduz a autoatividade, a atividade livre, a um meio, ele faz da vida
genérica do homem um meio de sua existência física. A consciência
que o homem tem do seu gênero se transforma, portanto, mediante
a alienação, de forma que a vida genérica se torna para ele um meio.
(...) uma consequência imediata disto, de o homem estar estranhado
do produto do seu trabalho, de sua atividade vital e de seu ser
genérico é a alienação do homem pelo [próprio] homem. Quando o
homem está frente a si mesmo, defronta-se com ele o outro homem.
O que é produto da relação do homem com seu trabalho, produto de
seu trabalho e consigo mesmo, vale como relação do homem com
outro homem, como o trabalho e o objeto do trabalho de outro
homem. Em geral, a questão de que o homem está alienado do seu
ser genérico quer dizer que um homem está alienado do outro, assim
como cada um deles [está alienado] da essência humana. O
estranhamento do homem, em geral toda a relação na qual o homem
está diante de si mesmo, é primeiramente efetivado, se expressa, na
relação em que o homem está para com o outro homem. Na relação
do trabalho alienado cada homem considera, portanto, o outro
segundo o critério e a relação na qual ele mesmo se encontra como
trabalhador. (MARX, 2010a, pp. 85-6)
Dessa maneira, no mesmo capítulo, o jovem Marx ainda vai concluir que
o trabalho alienado e a propriedade privada, com força de necessidade lógica,
se engendrarão historicamente de forma tua. Eis aqui, então, uma noção
ainda germinal do autor, mas que apreende o núcleo do surgimento e
consolidação histórica da propriedade privada: será através da apropriação e
acumulação privada dos meios de produção, produtos e do excedente
produtivo, bem como da própria atividade de trabalho alienado, que a
propriedade privada será consolidada. Desse modo, a atividade de trabalho
alienado avança ao ponto de ser compreendida como um processo histórico
de expropriação dos instrumentos da atividade de trabalho e que adquire uma
forma social permanente, ou melhor, adquire a particularidade das relações de
produção entre sujeitos sociais específicos, ao mesmo tempo que põe uma
forma de riqueza e a sociabilidade abstrata efetivas (MARX, 2010a, p. 87).
A crítica da dialética hegeliana de Karl Marx em 1844
O capítulo em que Marx trata diretamente da dialética hegeliana,
denominado “Crítica da dialética e da filosofia hegelianas em geral”, do ponto
de vista filosófico, é central para a análise e conhecimento dos debates
presentes nos Manuscritos econômico-filosóficos produzidos em 1844. Nele,
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ficam evidentes as primeiras críticas e os primeiros nuances da tentativa do
autor de romper com os princípios assumidos e nos quais também estavam
limitados o movimento jovem hegeliano. Contudo, apesar das críticas
acertadas, o próprio Karl permanecia fundamentado e dependente da filosofia
de Hegel, estabelecendo uma relação contraditória em relação ao mestre e aos
herdeiros jovem hegelianos em que, ainda que não superasse completamente
o mestre, ao retomar o tema da economia política pôde se tornar aquele que
estava mais próximo de uma “filosofia do trabalho” no sentido desenvolvido
por Hegel. Nesse ponto, inclusive, é preciso destacar que embora relação entre
Hegel e Marx seja complexa, ela também se caracteriza por uma
complementariedade, de modo que entre eles “não continuísmo, sim
continuidade” que “não se reduzem numa identidade ou diferença absolutas”
(NOVELLI, 1998, p. 315).
Desse modo, o próprio jovem autor considera um balanço filosófico e
político como fundamental para os jovens hegelianos: afinal, qual a posição
ontológica que assumiam, ou melhor, “o que fazer diante da dialética
hegeliana?” (MARX, 2010a, p. 115). Essa pergunta não era meramente
retórica, ainda que sua crítica à mera reprodução dos princípios e da
linguagem de Hegel respingasse nas suas próprias concepções filosóficas de
1844. Nesse momento, o jovem ainda assumia uma linguagem neo-hegeliana
tomada principalmente de Ludwig Feuerbach, e entendia a crítica deste
elaborada desde as Teses provisórias para a reforma da filosofia de 1842, bem
como em Princípios da filosofia do futuro de 1843, como a fundamentação
filosófica do ateísmo, que era, por sua vez, o primeiro passo do caminho para
aquilo que Marx entendia por comunismo concepção que mudaria
definitivamente a partir de A ideologia alemã.
Após 1845, não apenas a realização do proletariado enquanto sujeito
será modificada, como a totalidade da relação sujeito-objeto e que Marx
começará a apresentar o germe desse rompimento nos Manuscritos
econômico-filosóficos quando critica a posição dos jovens hegelianos como um
todo por suas relações apáticas com a dialética de Hegel. Apesar disso, o
próprio jovem Karl Marx também possuía uma relação ambígua com a
dialética hegeliana, que, contraditoriamente, o levou a desenvolver uma
concepção cada vez mais negativa sobre os fundamentos filosóficos da crítica
da economia política à medida que buscava se afastar da própria herança de
Hegel. Contudo, nos manuscritos filosóficos e econômicos de 1844 a
característica do sujeito marxiano é a de reconciliação do “ser genérico” com
sua essência da crítica ontológica de Feuerbach, uma concepção que se
distanciava daquela que será responsável por uma nova teoria crítica e
revolucionária da sociedade capitalista posterior (MARX, 2010a, p. 117).
Essa posição de Marx em relação a Hegel, então, pode ser demonstrada
não apenas nos apontamentos que o jovem autor faz nesse capítulo a respeito
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do mestre, como também pelo desenvolvimento de um pensamento próprio “a
partir das categorias hegelianas e [que] permanece no interior delas”
(NOVELLI, 1998, p. 315, acréscimo nosso), onde ficam marcadas a
aproximação do jovem autor da economia política de Adam Smith e a
retomada da concepção hegeliana de trabalho como atividade de autoprodução
do ser humano. Nesses marcos, apesar da compreensão do núcleo do sistema
filosófico de Hegel em que se destaca a compreensão da dialética, da
“negatividade enquanto princípio motor e gerador” –, a interpretação
marxiana de Hegel apontava que existia uma unilateralidade por considerar
criticamente apenas o “lado positivo do trabalho, não seu [lado] negativo”
(MARX, 2010a, pp. 123; 124).
Com essa crítica de que Hegel havia conhecido apenas o lado positivo
do trabalho, Marx a dirigia para a própria metafísica do espírito do mestre, que
ao conceber os sujeitos imediatos apenas como mediações do espírito, fazia do
sujeito real do trabalho esse espírito e não o ser sensível e concreto. Ao
considerar apenas esse lado positivo do trabalho e desconsiderar seu lado
negativo, a concepção marxiana interpretava que Hegel havia chegado às
portas do materialismo, mas, ao fim e a cabo, cedido aos encantos do
idealismo: a solução encontrada para resolver a essência contraditória da
sociedade burguesa viria a partir de uma esfera ideal, superior, da astúcia da
razão, do trabalho do espírito e do estado. De maneira original, Marx será o
primeiro a colocar a pedra de toque de uma crítica da “metafísicada sociedade
civil burguesa e rejeitar a solução da luta pelo reconhecimento através de um
estado ideal como produto da produção social alienada.
Desse modo, em 1844, a partir das diferentes concepções de alienação,
Marx não via a possibilidade de superação da alienação do ser para-si através
do reconhecimento do trabalhador com as mediações produzidas pela
sociedade capitalista, senão apenas pela organização revolucionária do
proletariado que confrontaria seu outro, a burguesia como sujeito social;
enquanto Hegel, ao contrário, não via na organização e atividade
revolucionária as condições para estabelecer o ethos social, mas sim na
possibilidade do reconhecimento mútuo entre a consciência servil e senhoril
através de uma “pedagogia do trabalho” que produziria conscientemente o
estado como uma esfera superior e universal que, por sua vez, se reconheceria
como produto do trabalho social e garantiria o interesse comum da
comunidade ética. Na mesma medida, a sociedade constituída pelo trabalho
social humanizado também se reconheceria como produtora do conjunto de
leis e da ordem vigente.
Ao interpretar que a conceão de trabalho de Hegel somente era viável
na forma de alienação, ou seja, que relegava a realização da essência das
relações sociais para uma esfera externa, Marx buscará aprofundar e
radicalizar tais questões agora com a vantagem histórica de ter acesso às
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críticas dos socialistas utópicos para a escola clássica de economia política e
em oposição aos seus pensadores vulgares estes últimos, apologistas do
capitalismo e que buscavam criminalizar e desmoralizar as nascentes
organizações e reivindicações dos trabalhadores. Ainda que o tivesse
completa clareza das distintas tendências da economia política e suas relações
com as classes sociais, o comunismo de Karl Marx em 1844 poderia ser
considerado como uma espécie de “socialismo utópico alemão” que adotava
um ponto de vista e soluções que variavam entre os posicionamentos da
pequena-burguesia arruinada, dos intelectuais socialistas e do nascente
proletariado anterior às revoluções de 1848. Para o jovem, estas frações de
classes sociais deveriam se aliar politicamente ao perceber que o capitalismo
jogava um contingente cada vez maior de trabalhadores na miséria do
assalariamento, e assim buscarem se reconciliar com seu “ser genérico”, o
sujeito humanista, como forma de superação não apenas da atividade de
trabalho alienado, mas também da propriedade privada dos meios de
produção.
Este comunismo de 1844, de princípio filosófico e de início da crítica à
economia política como uma ciência de enriquecimento e pauperização da
sociedade civil burguesa, se trata de um “momento revolucionário” (LÖWY,
2002, p. 145) em que as forças humanas se reconciliariam consigo mesmas
através de processos históricos de socialização dos produtos e do excedente da
produção social. Para tanto, o fenômeno da despossessão [Entäusserung], que
na concepção marxiana Hegel havia tomado como uma mera mediação do
trabalho do espírito, se tratava na verdade de uma apropriação material
privada dos meios de produção, produtos e excedente, que poderia ser
superada pela “negação da negação”; ou seja, pela negação desse estado de
despossessão privada que era tomado como uma primeira negação, do
trabalho alienado, efetivando agora a “realização do ser humano” enquanto
“sujeito real”. Nos artigos de agosto de 1844, publicados na Vorwärts!, no
entanto, é notório que a concepção de comunismo de Marx agora pressupõe,
além do proletariado como elemento ativo e capaz de se organizar como classe
social, um processo revolucionário de caráter político e social que transforme
todo o modo de se produzir a vida.
A posição marxiana de 1844 também é evidenciada, por exemplo, pela
sua visão ainda romântica sobre as associações de trabalhadores, que ainda
não ganhou a conotação revolucionária e o germe do desenvolvimento
histórico de novas relações de produção fundamentadas nos princípios e ideais
socialistas. Nos Manuscritos econômico-filosóficos, a noção de associação
para Marx vai aparecer, assim, de maneira programática, mas apenas aplicável
à forma de propriedade fundiária e às atividades de trabalho na terra, que
reconciliariam a relação desalienada e racional entre o ser humano e a
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natureza
20
. Aqui, novamente a escolha de mudança para a França, e suas
condições socioeconômicas, eram decisivas para as elaborações do jovem
autor, de maneira que as manufaturas e as corporações de ofícios que
organizavam os trabalhadores e artesãos franceses eram referenciais
avançados em relação a Alemanha, mas atrasados em relação a Inglaterra.
Em relação à dialética no pensamento do jovem Karl Marx, a crítica
negativa, sua importância se mostra, além do combate e ruptura em relação ao
movimento jovem hegeliano, também para o combate e superação das
tendências econômicas que se consolidavam após a década de 1830
notadamente os economistas clássicos, vulgares e os socialistas utópicos.
Nesse sentido, a análise dialética permitia apreensão das mediações dos
processos econômicos em meio aos fenômenos sociais, apreendendo suas
particularidades ao mesmo tempo em que evidencia seus aspectos
universalizantes – permitindo apreender a essência dos mesmos, e não serem
tomados como entes metafísicos, unilaterais e que se fundam fechados em si
mesmos. Ao contrário, será o aprimoramento da análise negativa da realidade
socioeconômica surgida a partir de 1844 que permitirá a Marx elaborar e
correlacionar os conceitos de “forças produtivas”, “relações de produção”,
“ideologia”, “modo de produção” e “modo de reprodução” entre 1845-7, e por
sua vez, consolidar a ruptura em relação aos jovens hegelianos, Feuerbach e às
análises e saídas propostas desde Hegel (RUBIN, 2014, pp. 457-8).
Ainda nesses marcos, será a dialética que fornecerá as bases para a
posterior constituição da teoria crítica da sociedade capitalista marxiana como
uma superação da economia clássica, da economia vulgar e do socialismo
utópico. A partir da consolidação de sua nova filosofia materialista, Marx e
Engels começarão a desenvolver os instrumentos teóricos que permitem
conhecer o núcleo racional da estrutura de produção e reprodução da
sociedade capitalista, desde seus aspectos socioeconômicos quanto das
estruturas sociais – jurídicas, políticas, econômicas, estéticas, epistemológicas
etc. como da manifestação das relações abstratas de exploração e dominação
entre as classes sociais dominantes e dominadas. Paralelamente, os jovens
autores não elaboraram apenas mais uma concepção filosófica e científica para
analisar a realidade, mas também passaram a fundamentar teoricamente e
ajudar a transformar as próprias relações entre as organizações de
20
Escreve Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos: “A associação, aplicada à terra e ao
solo, partilha a vantagem da grande posse fundiária do ponto de vista político-econômico, e
realiza primeiramente a tendência originária da divisão, a saber, a igualdade, assim como ela
também coloca a ligação afetiva do homem como a terra de um modo racional e não mais
[mediado] pela servidão, pela dominação e por uma tola mística da propriedade, quando a
terra deixa de ser um objeto de regateio e se torna novamente, mediante o trabalho livre e a
livre fruição, uma propriedade verdadeira e pessoal do homem. Uma grande vantagem da
divisão é que a sua massa se arruína na propriedade de um outro modo que na indústria, uma
massa que não pode mais decidir-se pela servidão.” (MARX, 2010a, p. 76)
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trabalhadores e consequentemente a própria relação dos trabalhadores entre
si –, fazendo com que o conceito de comunismo desde os manuscritos
começasse a ser forjado pela práxis desse proletariado moderno.
Em relação a Hegel, nos manuscritos de 1844 Marx adota uma linha
expositiva que apresenta sua leitura sobre a filosofia hegeliana – em particular
seu princípio antropológico de autoprodução do ser humano, que, para a
interpretação marxiana, possuía como mérito a apreensão da atividade de
trabalho como objetivação da essência do “ser genérico” e que fundamentava
as relações sociais capitalistas. Será, então, no capítulo sobre a dialética
hegeliana que o jovem autor explicitará sua discordância em relação ao aspecto
idealista do conceito de trabalho formador de Hegel, utilizando-se da crítica
dos primeiros socialistas ao processo revolucionário francês ao postular que,
no momento da negação em relação ao produto da atividade de trabalho, o
trabalhador não possui os meios para superar sua condição dependente e
apreender a objetividade das relações sociais, e por isso sua atividade de
trabalho é alienada pois serve para produzir riqueza, mas não para a sanar suas
próprias carências.
Em 1844 a interpretação feuerbachiana sobre a filosofia de Hegel
influenciava Marx, de modo que, para essa interpretação, o ser humano apenas
efetivava e confirmava sua essência em sua forma alienada que o jovem
caracterizava e apontava como “a raiz do falso positivismo de Hegel” (MARX,
2010a, p. 130) –, e portanto, não se tratava da confirmação da verdadeira
essência”, do verdadeiro ser humano, mas sim daquele alienado pela atividade
de trabalho capitalista. A solução apresentada por Marx para a realização do
verdadeiro sujeito, ou melhor, da humanização do ser humano em sua forma
alienada pelo trabalho alienado, poderia vir através de um outro momento
que recuperasse e reestruturasse “a universalidade da realidade concreta como
conceito” (NOVELLI, 1998, p. 301), ou seja, a negação da negação, que por sua
vez realizaria o sujeito real e colocaria as condições da sociedade comunista.
Como ressaltado, o conceito de comunismo marxiano em 1844 passou por
uma série de mudanças, contudo mostrava, por um lado, a força da ascensão
das organizações e métodos de luta dos trabalhadores modernos, bem como
por outro, o avanço teórico que os primeiros contatos com a economia política
permitiram ao jovem no interior do pensamento pós-hegeliano.
Uma vez que existia a compreensão de que para Hegel deveria ser
considerada apenas a existência efetiva de uma coisa ou fenômeno enquanto
objeto de um saber, mas ao mesmo tempo ele tomava o abstrato como efetivo,
o jovem autor também via nesse aspecto da filosofia hegeliana o último
subterfúgio da velha metafísica e do “homem religioso” (MARX, 2010a, p. 132)
– e portanto, o próprio conteúdo que poderia justificar o aspecto conservador
da filosofia hegeliana. Ademais, a crítica do jovem Marx acerca da abstração
do “ser” apenas como objeto do pensamento e não como existência sensível
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seguia a trilha da crítica feuerbachiana, debruçando-se sobre os momentos
positivos da dialética hegeliana no interior da alienação e apontando como o
mestre não havia compreendido a especificidade do trabalho alienado,
negativo, na sociedade capitalista. Na dialética especulativa, para Marx, assim,
a verdadeira vida é tomada como a abstração, alienação, de modo que o sujeito
se manifesta como um resultado meramente metafísico ou místico como
tomava emprestado de Feuerbach.
A consequência dessa concepção por parte de Hegel, segundo Marx, era
de que a natureza, o ser humano e a sociedade civil burguesa aparecem como
meros predicados de um Deus, um Espírito Absoluto e um estado de forma
que estes sim podem ser considerados como o ser real. Dessa concepção formal
e abstrata da atividade de autoprodução do ser humano, o ser real seria
considerado apenas como a consciência, a negação, sem conteúdo e como uma
expressão meramente abstrata – ou seja, a atividade de autoprodução se
tornaria uma simples abstração, negatividade absoluta, que se cristalizaria e se
conceberia como autônoma, fundamentadora e formadora de si mesma
enquanto atividade. Apesar de chegar aos limites da dialética sujeito-objeto e
da antropologia filosófica hegelianas pela sua crítica de viés feuerbachiano,
bem como perceber que o núcleo racional da dialética especulativa
possibilitava apreender como os conceitos determinados se constituem
enquanto formas do pensamento fixas universais e portanto como
consequência lógica e necessária da alienação geral humana –, Marx ainda não
ultrapassa tais limites nos Manuscritos econômico-filosóficos. Escreve:
O positivo, que Hegel aqui conseguiu – na sua lógica especulativa
, é que os conceitos determinados, as formas de pensamento
universais fixas, em sua autonomia diante da natureza e do espírito,
são um resultado necessário da alienação universal da essência
humana, portanto também do pensar humano, e que Hegel os
apresentou e reuniu, por isso, como momentos do processo de
abstração. Por exemplo, o ser suprassumido é essência, a essência
suprassumida, conceito, o conceito suprassumido... ideia absoluta.
Mas o que é então a ideia absoluta? Ela se suprassume novamente a
si mesma, se não quer voltar a passar de novo por todo o ato de
abstração e contentar-se, assim, em ser uma totalidade de
abstrações ou a abstração que a si se apreende. Mas a abstração que
se apreende como abstração sabe-se como nada; ela tem de
renunciar à abstração, e chega assim junto a um ser que é
precisamente o seu contrário, junto à natureza. Toda a lógica é,
portanto, a prova de que o pensar abstrato por si nada é, de que a
ideia absoluta por si nada é, de que somente a natureza é algo.
(MARX, 2010a, p. 134)
Ao retomar a crítica de Feuerbach iniciada em 1839 à dialética de Hegel,
Marx reafirmava a revalorização e o reestabelecimento da tentativa de
elaboração de uma visão orgânica e onde a esfera da natureza se fundamentava
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sobre si mesma – também típica de uma época em que a filosofia e as ciências
da natureza eram impulsionadas pelas consequências das revoluções
industriais. Agora, ao aproximar tal noção de inspiração feuerbachiana das
questões da economia política, o autor pôde começar a assentar as bases de
uma compreensão racional entre o “metabolismo” do trabalho humano e a
natureza, onde o início do desenvolvimento de sua crítica do “duplo caráter do
trabalho” na sociedade capitalista atingirá seu auge em O capital, quando
escreve que “todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do
homem no sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual ou
trabalho humano abstrato gera o valor da mercadoria”. Nesse sentido,
acrescentará Marx, “todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de
trabalho do homem sob forma especificamente adequada a um fim, e nessa
qualidade de trabalho concreto útil produz valores de uso” (MARX, 1983, p.
53).
Considerações finais
Como se nota, encontra-se nos Manuscritos econômico-filosóficos de
Karl Marx – e nas posições de 1844 como um todo – um importante momento
no desenvolvimento do pensamento filosófico e científico do autor, uma vez
que, ainda que não apresente sua noção posterior acabada, já evidencia alguns
elementos que fundamentarão sua nova concepção materialista junto a
Friedrich Engels. Além disso, a importância desses manuscritos também se
mostra em relação aos debates e ruptura com os jovens hegelianos, a posição
a Feuerbach e Hegel, bem como ao papel e função do encontro com as questões
da economia política nesse processo. No mais, também se destacam as noções
e interpretações que serão abandonadas, bem como outras que serão
aprimoradas, durante o início do caminho que será percorrido na elaboração
da crítica da economia política que se consolidada mais de duas décadas
depois em O capital.
Vemos, então, o quão importante foi a concepção e crítica do trabalho
pelo jovem Marx, apesar destas estarem baseadas na divisão social do trabalho
de Adam Smith e na dialética da dominação e servidão de Hegel. A partir de A
ideologia alemã, em meados de 1845-6, no entanto, ele anuncia seu abandono
dessa relação sujeito-objeto e reelaborará o conceito de alienação, aderindo a
uma nova filosofia materialista junto a Engels e fundando a análise filosófica-
científica da sociedade a partir das relações entre as “forças produtivas” e as
“relações de produção”. Isso não significaria, porém, o abandono completo da
crítica ao conceito de trabalho, pelo contrário, pois com o encontro das
questões do valor, Marx poderá amadurecer e fundamentar sobre as mesmas
o fenômeno do “fetichismo da mercadoria” apresentando-o filosoficamente
como característico das relações de produção capitalistas.
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O ano de 1844 marcará, por tudo isso, na trajetória filosófica, política e
pessoal de Karl Marx, o começo de um ponto de virada essencial para a
constituição, junto a Friedrich Engels, de sua filosofia materialista e
revolucionária. Como também buscamos indicar, a ascensão de um
pensamento próprio e sua importância pode ser demonstrada a partir da
superação teórica e prática em relação aos jovens hegelianos desde Bruno
Bauer, Max Stirner, e com mais ênfase o próprio Ludwig Feuerbach e Moses
Hess (que agora passariam a “seguir” Marx) –, bem como de seu contraste com
a posterior dissolução histórica do s-hegelianismo pela falta de
compreensão do núcleo racional da sociedade capitalista por seus intelectuais,
permitindo que se tenham também uma melhor compreensão da importância
e posição ocupadas na produção dos manuscritos de 1844 para o pensamento
de Marx e no desenvolvimento da tradição pós-hegeliana.
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Como citar:
MARTINS, Douglas Rafael Dias. Os Manuscritos de 1844 de Karl Marx e a
retomada da economia política no pensamento pós-hegeliano. Verinotio
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1,
pp. 301-29, jan./jun. 2020.
Data do envio: 15 maio 2020
Data do aceite: 8 jun. 2020