DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.518
Thais Hoshika
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Crítica marxista do estado e do direito:
Nicos Poulantzas em debate
Thais Hoshika
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Resumo: O presente artigo propõe-se a analisar criticamente os pressupostos
teóricos da teoria política desenvolvida por Nicos Poulantzas na fase
intermediária de sua trajetória intelectual. Partindo da problemática da
autonomia relativa do político, procura-se evidenciar as potencialidades e
limites da exposição de Poulantzas e os contrapor aos resultados obtidos com
a derivação sistemática da especificidade do direito e do estado das categorias
econômicas estruturantes da sociabilidade capitalista.
Palavras-chave: autonomia relativa; superestrutura jurídico-política;
estado-sociedade civil; normatividade; derivação.
Marxist critique of the state and law: beyond Nicos Poulantzas
Abstract: This article aims to critically analyze the theoretical assumptions
of the political theory developed by Nicos Poulantzas in the middle phase of
his intellectual trajectory. Starting from the problem of the relative autonomy
of the political, we seek to highlight the potentialities and limits of Poulantzas'
exposure and oppose them to the results obtained with the systematic
derivation of the specificity of the law and the state from the structuring
economic categories of capitalist sociability.
Keywords: relative autonomy; juridical-political superstructure; State-
civil society; normativity; derivation.
Introdução
Poulantzas representa, ainda hoje, uma das principais correntes do
marxismo responsáveis por apresentar um estudo sistemático da problemática
concernente ao estado capitalista, dedicando-se na construção de uma teoria
política capaz não apenas de identificar a especificidade do político no
capitalismo, mas, sobretudo, de passar para as etapas seguintes do processo de
abstração com a construção de categorias específicas à região do político, na
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Mestranda pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: thaishoshika@gmail.com.
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medida em que a análise do modo de produção capitalista em geralpassa
para investigações mais concretas de formações sociais determinadas.
Considerando as diferentes fases do pensamento de Poulantzas,
marcados, respectivamente, pela aproximação do existencialismo de Sartre, o
marxismo estruturalista e a teoria do poder de Foucault (MOTTA, 2010, p.
368); o debate a que se propõe a presente investigação tem como objeto o
ponto mais alto de sua trajetória intelectual, qual seja, aquelas obras nas quais
a influência do pensamento de Althusser está mais presente, momento em que
desenvolve sua principal obra: poder político e classes sociais.
Pretende-se, com isto, analisar criticamente as implicações da teoria
política desenvolvida por Poulantzas, sobretudo no que se refere a suas
proposições basilares, sobre as quais construiaquilo que ficou denominado
de teoria regional do político, colocando em questão a problemática da
autonomia relativa do estado e da economia enquanto separação real e
exigência de ordem epistemológica como ponto nodal a partir do qual
Poulantzas desenvolve suas considerações sobre o estado e,
consequentemente, sobre o direito; e a partir do qual proceder-seà ruptura
com o pensamento de Poulantzas na tentativa de contribuir com a construção
de uma teoria materialista do estado e do direito que supere algumas das
limitações de sua teoria.
Para tanto, a exposição divide-se em três momentos. Em primeiro lugar,
busca-se apresentar o pensamento de Poulantzas partindo de sua proposta de
análise científica do estado capitalista, com a exposição da base a partir da qual
constrói a teoria regional do político e, consequentemente, seus traços gerais,
caracterizado a partir do lugar que ocupa na totalidade que determina a
extensão e os limites dessa região e a função que exerce de ser seu princípio
organizador. O direito, nesse processo, ocupa importante papel para
Poulantzas como uma região do político, como ideologia e como norma
jurídica, na medida em que permite a produção dos indivíduos-sujeitos
abstraídos de suas classes através daquilo que denominará de efeito de
isolamento, base da própria separação real existente entre estado e sociedade
civil, entre público e privado.
Com isso, busca-se em um segundo momento apresentar os limites de
sua teoria regional, tecendo críticas estruturais com base nos apontamentos de
Holloway e Picciotto, quanto as limitações de Poulantzas em decorrência da
falta de precisão ao estabelecer uma relação entre o econômico e o político, que
revela-se impossibilitado de explicar (por conta do estabelecimento inicial do
problema) os limites impostos à ação estatal bem como a reorganização
periódica de suas instituições pelo processo de acumulação de capital (cujas
contradições produzem transformações nas condições de produção), com a
apresentação da corrente marxista que tem o mérito de se voltar para esses
problemas como determinantes para a análise do estado: o debate da
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derivação, cujo método consiste em derivar sistematicamente, das categorias
econômicas estruturantes da sociabilidade capitalista, a especificidade
histórica da forma política.
Por fim, analisa-se o direito a partir desse mesmo método, com base nas
contribuições de Evguiéni Pachukanis, para além da identificação do direito
em Poulantzas a uma região do político, tanto em seu caráter normativo
superestrutural como em seu caráter ideológico, apontando para a
construção de uma teoria materialista do fenômeno jurídico com a
identificação da relação social específica que a expressa em sua forma mais
simples, porém suficientemente determinada, permitindo que o direito
assim como o estado seja analisado a partir de uma especificidade que lhe é
própria.
1. A autonomia relativa do político em Poulantzas e a separação
entre estado e sociedade civil
Poder político e classes sociais, publicado por Poulantzas em 1968,
corresponde a uma das maiores obras de teoria política marxista escritas,
responsável por apresentar como o ponto mais alto da segunda fase de sua
trajetória intelectual, sob influência do pensamento de Louis Althusser uma
teoria regional do político capaz de oferecer não apenas uma teorização das
estruturas políticas de um modo de produção e de uma formação social
específicos, ou seja, do político; como também da relação entre este e as classes
sociais no processo de sua transformação e manutenção, da prática política
(POULANTZAS, 1977, pp. 40-1).
Para tanto, Poulantzas sustenta que uma análise científica do estado
capitalista deve ter como ponto de partida a inter-relação específica que se
estabelece entre as diferentes estruturas regionais de um determinado modo
de produção, compreendido não como o conjunto das relações de produção,
mas sim como a combinação específica de diversas estruturas e práticas que
/.../ aparecem como outras tantas instâncias ou níveis” (POULANTZAS, 1977,
p. 13) o econômico, o político, o ideológico etc. que ocupam lugares nessa
totalidade.
A definição de modo de produção, como primeiro ponto de investigação
adotado por Poulantzas tem, acima de tudo, uma importante implicação de
ordem epistemológica na medida em que possibilita a análise dos modos de
produção em geral inclusive o capitalista a partir da combinação específica
que se estabelece entre suas regiões.
O fato de a instância econômica e política estarem presentes em modos
de produção pré-capitalistas como o escravista antigo e o feudal não
significa, entretanto, que tais estruturas regionais apresentem essências
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imutáveis a todos os modos de produção. Muito pelo contrário, é a combinação
específica desses níveis, diferentes a cada modo, que dará a eles suas
especificidades (POULANTZAS, 1980, p. 21).
As regiões de cada modo de produção “têm suas próprias estruturas e
efeitos e, nesse sentido, são autônomas na medida em que é possível fixá-las
como objetos separados de estudo, “mas são organizadas em uma hierarquia
específica” (JESSOP, 1985, p. 131), formando uma estruturação com
dominante de uma totalidade complexa, na qual uma das regiões ocupa a
posição de determinação em última instância, um invariante estrutural
(ALTHUSSER, 2015, p. 171), sobre a qual as demais regiões sobredeterminam
reflexivamente, de forma que a relação estabelecida entre as regiões é de
autonomia relativa. Trata-se, portanto,
de um tipo de relação, no interior do qual a estrutura com
determinação do todo comanda a própria constituição - a natureza -
das estruturas regionais, atribuindo-lhes o lugar respectivo e
distribuindo-lhes funções: por conseguinte, as relações que
constituem cada nível nunca são simples, mas antes
sobredeterminadas pelas relações dos outros níveis (POULANTZAS,
1977, p. 14).
O desenvolvimento da teoria geral de uma investigação materialista
histórica dos diferentes modos de produção permite que Poulantzas
desenvolva uma “teoria particular do modo de produção capitalista”
enquanto objeto abstrato formal , a segunda etapa em direção à construção
teórica do estado capitalista, “que determina o lugar e a função do estado e da
política na matriz estrutural geral do capitalismo” (JESSOP, 1985, p. 60) para,
então, proceder à análise de conjuntura, “o ponto estratégico onde se fundem
as diversas contradições enquanto reflexos da articulação que especifica uma
estrutura com valor dominante” (POULANTZAS, 1977, p. 39) em uma
determinada formação social objeto real concreto.
De modo que o desenvolvimento das categorias políticas próprias da
instância econômica e o nível de complexidade delas vai depender do nível de
particularidade dado. É apenas caminhando em direção a análises mais
concretas que os conceitos adquirem maior riqueza de determinações teóricas.
Poulantzas afirma, portanto, que uma teorização adequada do estado
capitalista apenas é científica “se conseguir explicar a reprodução e as
transformações históricas de seu objeto nos lugares em que essas
transformações estão ocorrendo, nas diversas formações sociais”
(POULANTZAS, 1980, pp. 29-30).
Por formação social entende-se uma realidade particular
historicamente determinada, com a combinação de diversos modos de
produção na qual um deles ocupa a posição dominante (POULANTZAS, 1973,
p. 145). Sendo essa estrutura particular com dominante que permite explicar o
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desenvolvimento desigual, “a complexidade contraditória dos fatos empíricos
observáveis em toda a formação social concreta e também as tendências
contraditórias que se enfrentam nela, e se traduzem através de sua história”
(ALTHUSSER, 1999, pp. 42-3).
Assim, em se tratando da caracterização da teoria particular do modo
de produção capitalista, Poulantzas parte da intepretação do capital de Marx
como um estudo da região econômica, compreendida como as relações de
produção em sentido estrito em seu papel de determinação e dominante do
todo complexo estruturado (POULANTZAS, 1977, p. 28) , com as demais
regiões.
Para Poulantzas são as relações de produção compreendidas em sentido
estrito isto é, as relações de exploração (ALTHUSSER, 1999, p. 52)
estabelecidas na esfera da produção entre proprietários e não proprietários dos
meios produtivos na geração de mais valor que compõem a invariante
estrutural da unidade complexa do modo de produção capitalista, a região do
econômico, sobre a qual as demais instâncias não penetram, mas cuja posição
de determinação em última instância deve-se justamente a sua relação com a
função desempenhada pelas demais instâncias ou níveis. Sendo essa inter-
relação que determinará a extensão e os limites de cada região. Portanto,
dizer que em uma certa estrutura o econômico é predominante em
última instância, é indicar que ocupa tal lugar somente em função
da especificidade e da eficácia própria dos outros níveis que
constituem a estrutura social como unidade complexa /.../. Esta
unidade consiste em uma descentralização dos diversos níveis, em
um deslocamento originário das instâncias em um todo complexo
no interior do qual o econômico detém o predomínio em última
instância (POULANTZAS, 1973, p. 143).
Desse modo, nesse todo complexo estruturado, o político ocupa o lugar
especial, na sua materialização em poder institucionalizado, de coesão dos
diversos níveis ou instâncias do modo de produção capitalista nas diversas
formações sociais (POULANTZAS, 1977, p. 42), na medida em que se trata do
ponto de condensação da prática política, da luta política de classes,
responsável por gerir as contradições da sociedade dividida em classes sociais,
assegurando a sua reprodução. E, nesse sentido, corresponde aos interesses da
classe dominante não como uma ferramenta de dominação direta e consciente,
mas devido a sua função de promover a manutenção da unidade de uma
formação social na qual o modo de produção capitalista é dominante.
Justamente por cumprir essa função de coesão e ser a região, em
decorrência dessa função, que concentra o maior número de contradições, é
que o estado se torna o objeto da prática política, concentrando nele o local da
disputa e das transformações da formação social, uma vez que a luta política
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de classe constitui o verdadeiro “motor da história” (POULANTZAS, 1977, p.
43).
Disso decorre que o político, em sua caracterização como o princípio
organizador da totalidade, exerce papel indispensável na reprodução das
relações de produção, sobredeterminando o econômico e o ideológico as
duas regiões, além do político, que, de acordo com Poulantzas, são centrais no
modo de produção capitalista e compreendendo, como parte da estrutura
política, todas as funções que não estão diretamente ligadas ao conflito de
classes imediato, mas que são políticas na medida em que cumprem o papel de
promover a unidade da formação social. Ou seja:
Este conceito de sobredeterminação, aplicado aqui às funções do
estado indica portanto duas coisas: que as diversas funções do
estado constituem funções políticas pelo papel global do estado
como fator de coesão de uma formação dividida em classes; e que
estas funções correspondem assim aos interesses políticos da classe
dominante. (POULANTZAS, 1977, p. 52)
Na definição das características centrais do estado capitalista, além do
papel de promover a unidade da estrutura de uma formação, Poulantzas
aponta para outras duas dimensões igualmente importantes do estado
pertencentes a momentos distintos de abstração que forma o quadro
completo de sua teorização, arcabouço teórico necessário a partir do qual
permite que proceda à análise de conjuntura o objetivo final do
desenvolvimento de sua teoria regional do político.
A primeira delas está relacionada ao fato de que a possibilidade do
político atuar como fator de coesão das diversas regiões deve-se ao seu
aparecimento como um estado democrático popular nacional, isto é, como o
representante da junção dos interesses de um corpo político atomizado em
indivíduos-cidadãos (JESSOP, 1985, p. 119). Portanto, do interesse público-
geral, como será visto a seguir com a apresentação do processo de
individualização dos sujeitos e autonomia relativa real do político e do
econômico.
Isso permite que a segunda dimensão do estado seja analisada por
Poulantzas que, contudo, não será objeto de tratamento da presente
investigação. Dimensão na qual a autonomia relativa entre as instâncias, que
foi tratada até o momento como uma separação entre as regiões do modo de
produção econômica, política e ideológica , desdobra-se como uma
autonomia relativa no seio do desenvolvimento interno do estado, referindo-
se àquela existente a nível político-institucional com relação às classes e
frações da classe dominante na manutenção da hegemonia do bloco no poder.
Procedendo a um exame mais aprofundado das implicações teóricas da
autonomia relativa entre o político e o econômico, Poulantzas sustenta um
detalhe fundamental: a separação entre as regiões de um modo de produção
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não se trata apenas de um pressuposto de ordem epistemológica, de modo a
permitir um tratamento teórico do político como objeto autônomo de estudo,
mas representa “de um modo adequado a autonomia real das instâncias na
prática social total” (SAES, 1998, p. 55).
O que significa que, se em modos de produção pré-capitalistas as regiões
que compõem a totalidade estruturam-se de forma imbricada, aparecendo
como “mistas”, no modo de produção capitalista uma separação radical e
específica entre a instância política e a econômica (POULANTZAS, 1977, p. 28)
em razão da estrutura do econômico, que não engloba em sua organização
nas relações de produção em sentido estrito o exercício da coerção
extraeconômica.
Apesar de Poulantzas reconhecer que um dos traços distintivos do
estado capitalista é o fato dele aparecer como a encarnação do interesse geral
do corpo político, isso não pode ser tomado como o ponto de partida e nem a
centralidade da compreensão do político, e sim uma produção ideológica
proveniente do processo de individualização dos agentes da produção,
tratando-se do substrato real por trás de todas as construções na teoria política
marxista e mesmo não marxistas que tomam como base a separação entre
estado e sociedade civil; dado que isso mascara o problema central do estudo
do estado, inviabilizando a análise de sua estreita relação com o processo
político da luta de classes na medida em que produz, através dessa separação,
indivíduos-sujeitos-políticos indiferenciados, e não agentes da produção
pertencentes a uma determinada classe (POULANTZAS, 1977, pp. 120-1),
sendo este o aspecto determinante da formação da superestrutura política.
Mas no que consiste o processo real, econômico, de individualização dos
agentes da produção? Poulantzas parte da colocação de Marx nos Grundrisse
sobre o pressuposto do trabalho livre assalariado e condição histórica do modo
de produção capitalista, que, antes da transformação do dinheiro em capital,
pressupõe “a separação do trabalho livre das condições objetivas de sua
realização do meio de trabalho e do material do trabalho” (MARX, 2011, p.
388), produzindo, desse modo, o “trabalhador nu” enquanto produto histórico.
O trabalhador em sua nudez, com a separação dos produtores diretos
de seus meios de produção, constitui o substrato histórico real da aparente
individualização dos sujeitos na medida em que o dissocia de seus laços
“naturais” de produção social, de modo que esta passa a ser executada a partir
da organização de uma série de trabalhos individuais-privados. Nesse sentido:
O termo "indivíduo nu" como condição histórica não indica, pois, de
forma alguma, que certos agentes, anteriormente integrados
"organicamente" em unidades, apareçam na realidade como
indivíduos atomizados os quais, em seguida, se teriam inseridos
nas combinações das relações de produção capitalistas, ou que
teriam, em seguida e progressivamente constituído classes sociais: o
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que esse termo indica é que certas relações se desintegram sich
aufloesen , o que, nos seus efeitos, aparece como uma "nudez" e
uma "libertação", e mesmo uma "individualização" Vereinzelung
dos agentes. (POULANTZAS, 1977, p. 122)
A compreensão do processo de libertação e aparente individualização
dos agentes da produção permite não apenas concebê-los a partir do lugar de
classe aos quais eles pertencem, enquanto “suportes de uma estrutura do
processo de trabalho” (POULANTZAS, 1977, p. 125) e, consequentemente, a
relação entre a luta de classes e o desenvolvimento do estado como também
permite compreender a formação da ideologia jurídico-política dominante e
sua materialização naquilo que Poulantzas passará a denominar de
superestrutura jurídico-política, o estado de direito, formando uma
caracterização da autonomia relativa do político mais rico em determinações.
O direito cumpre, assim, papel indispensável para Poulantzas na
medida em que sua caracterização está diretamente relacionada as regiões
política e ideológica, não sendo tratado como uma região autônoma de estudo
com o desenvolvimento de categorias jurídicas próprias, mas produto direto
da ideologia dominante que opera através do processo de ocultação-inversão
na qual os agentes da produção agem como “sujeitos jurídicos, isto é,
indivíduos-pessoas políticos” (POULANTZAS, 1977, p. 124), materializado na
superestrutura jurídico-política e legitimado através das normas jurídicas
estatais que instituem a propriedade jurídica formal, o contrato da compra e
venda da força de trabalho, a manutenção das relações de troca etc.
A ideologia, portanto, cumpre no modo de produção capitalista o papel
particular de coesão e, nesse sentido, é político de uma formação social,
tratando-se de um conjunto relativamente coerente de representações a partir
das quais os homens vivem suas condições materiais de existência, o apenas
relações imaginárias, mas relações reais que se reproduzem através desse
conjunto de representações. Assim sendo, sua “função social não é de oferecer
aos agentes um verdadeiro conhecimento da estrutura social, mas
simplesmente inseri-los de algum modo nas suas atividades práticas que
suportam esta estrutura” (POULANTZAS, 1977, p. 201).
A principal função da ideologia jurídico-política é aquela exercida sobre
a luta econômica de classes, contribuindo de forma definitiva para uma
separação real específica entre o econômico e o político na qual se a luta
política de classes , com o efeito de isolamento produzido na esfera
comumente designada por sociedade civil, privada, responsável por isolar os
agentes da produção em suas relações de classe, ocultando o conteúdo de
classes das relações sociais e a dominância real do econômico sob a máscara
do indivíduo-sujeito jurídico, desmobilizando a luta econômica de classes e
concentrando através do efeito unificador essa luta na esfera política. Ou
seja,
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as estruturas jurídicas e ideológicas, as quais, determinadas em
última instância pela estrutura do processo de trabalho, instauram,
ao nível os agentes de produção distribuídos em classes sociais, na
qualidade de "sujeitos" jurídicos e ideológicos, têm como efeito,
sobre a luta econômica de classe, a ocultação, de forma particular,
aos agentes, das suas relações enquanto relões de classe
(POULANTZAS, 1977, p. 126).
A superestrutura jurídico-política, por sua vez, materializa a ideologia
dominante através do sistema jurídico normativo, elevando o estado à posição
de único horizonte possível de realização do interesse público, supraindividual.
Do mesmo modo que o efeito de isolamento faz com que os agentes da
produção vivenciem as relações econômicas de exploração como relações de
competitividade entre indivíduos-sujeitos isolados, o “mesmo efeito ocorre no
campo da luta de classes política. Pois o direito e a ideologia jurídico-política
duplicam o ‘fraturamento’ da esfera ‘privada’ ao constituir o público como
‘cidadãos’ individuais” (JESSOP, 1985, p. 63, tradução minha).
Assim, Poulantzas sustenta que a superestrutura jurídico-política
exerce uma dupla função, responsável pela instituição da diferenciação entre
estado e sociedade civil, público e privado: em primeiro lugar, a produção do
efeito de isolamento através do sistema de normas jurídicas na região do
econômico e; em segundo lugar, em razão desse efeito que ela mesma institui
com a instauração em indivíduos-sujeitos abstratos os agentes da produção -,
autorreferenciar-se como a unidade desses indivíduos isolados. “O que, por
outras palavras, quer dizer que o estado representa a unidade de um
isolamento o qual, em grande parte dado o papel ideológico que
desempenha é o seu próprio efeito.” (POULANTZAS, 1977, pp. 129-30)
Apesar de reconhecer o processo real na esfera da produção de
atomização dos sujeitos em decorrência da separação dos produtores diretos
dos meios de produção, atribuindo a esse pressuposto do modo de produção
capitalista a base real do desenvolvimento da ideologia jurídico-política,
Poulantzas afirma que mesmo essa dimensão do econômico, na qual a
divisão social do trabalho enquanto trabalhos individuais, não se trata de uma
esfera privada na medida em que os trabalhos são sociais, apenas organizados
a partir de trabalhos individuais. De modo que a separação entre estado e
sociedade civil que, no campo da superestrutura jurídico-política traduz-se
como uma relação entre público e privado, é produzido pela própria região
jurídico-política. Ou seja, Poulantzas
abandona a distinção entre sociedade civil e estado e não mais o
antagonismo entre os interesses privados como fundamentado no
egoísmo do i. Mas ele transpõe a distinção anterior para a distinção
jurídico-política entre "privado" e "público" e interpreta o
individualismo como um "efeito de isolamento", igualmente
produzido pela região jurídico-política (JESSOP, 1985, p. 64).
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É o estado que produz o individual-privado e se autorrepresenta como
seu oposto, o espaço público, tratando-se de uma separação segundo
Poulantzas que revela a manifestação do estado nas relações econômicas
(POULANTZAS, 1980. p. 80). Sendo essa relação de réplica entre público-
privado e, portanto, da possibilidade do exercício do poder do estado em todas
as esferas da vida social, que em O estado, o poder e o socialismo Poulantzas
atribuirá as raízes do totalitarismo (POULANTZAS, 1980, p. 83). É no seu
“caráter unificador que a tida liberdade do indivíduo privado dissipa-se,
perante a autoridade do estado que encarna a vontade geral”, não havendo,
para a ideologia jurídico-política, “nenhum limite de direito e de princípio à
atividade e às invasões do estado na chamada esfera do individual-privado”
(MOTTA, 2010, p. 383).
Uma vez estabelecidos os pressupostos teóricos a partir dos quais
Poulantzas constrói sua teoria política, com a apresentação do tratamento
temático dado à problemática concernente à autonomia relativa do político e
seus desdobramentos na inter-relação estabelecida entre o estado e as regiões
do econômico e do ideológico, com a caracterização de sua forma a partir da
função que exerce de coesão e conformação dos interesses das classes e
frações dominantes sobre a unidade de uma formação social; bem como a
relação estabelecida entre o político e o jurídico, nas duas dimensões
ideológica e superestrutural a partir das quais influi na luta econômica de
classes e, em decorrência disso, a atribuição da separação entre estado e
sociedade civil, público e privado, como produto do jurídico-político; é possível
passar para a apuração das possíveis limitações encontradas em sua
compreensão do fenômeno político e jurídico no capitalismo, sobretudo na
investigação de sua especificidade histórica em direção à construção de uma
teoria materialista do direito e do estado em sua relação sistemática com as
categorias determinantes do modo de produção capitalista a mercadoria, o
valor etc. , questionando a possibilidade de proceder à uma teorização
completa dessas duas esferas apenas com o desenvolvimento de seus próprios
termos.
2, O abstracionismo-estruturalista de Poulantzas e o
derivacionismo
A primeira tarefa na investigação dos limites da teoria política
desenvolvida por Poulantzas ainda que inegável seu mérito no oferecimento
de termos médios para análise de conjuntura consiste em questionar a
potencialidade de expansão de suas análises ao partir, na definição do estado
capitalista, da divisão da totalidade em regiões relativamente autônomas, de
modo que o político enquanto uma dessas regiões passa a constituir objeto
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autônomo de estudo; considerando que “uma coisa é sugerir que existe uma
relativa separação institucional real de diferentes regiões no modo de
produção capitalista” e, neste ponto, trata-se de uma questão incontroversa, e
outra coisa diferente é afirmar que cada região pode ser analisada
inteiramente em seus próprios termos” (JESSOP, 1985, p. 72).
Não dúvidas de que Poulantzas não se enquadra neste último caso,
dado que ele parte do estabelecimento de uma relação intrínseca entre a região
econômica e a região política, compartilhando da tese marxiana de que as
relações que engendram “as formas do estado não podem ser explicadas por si
mesmas”, e apenas podem ser analisadas com a investigação da “anatomia da
sociedade burguesa (MARX, 2008, p. 49), na totalidade das condições
materiais de existência do modo de produção capitalista. De sorte que a inter-
relação estabelecida entre o político e o econômico defendida por Poulantzas
está fundamentada na famosa passagem dO capital [Livro III], de Marx, na
qual:
A forma econômica específica em que o mais-trabalho não pago é
extraído dos produtores diretos determina a relação de dominação e
servidão, tal como esta advém diretamente da própria produção e,
por sua vez, retroage sobre ela de modo determinante. Nisso se
funda, porém, toda a estrutura da entidade comunitária econômica,
nascida das próprias relações de produção; simultaneamente com
isso, sua estrutura política peculiar (2017b, p. 852).
Ao tomar como ponto de partida as relações de produção em sentido
estrito, “a base oculta de todo o arcabouço social e, consequentemente,
também da forma política das relações de soberania e de dependência, isto é,
da forma específica do estado(MARX, 2017b, p. 852), Poulantzas é capaz de
identificar o político como força coercitiva extraeconômica, em sua função de
ser fator de coesão da unidade da estrutura com dominante (da totalidade),
uma vez que a específica forma de apropriação do mais-trabalho produz
“formas sociais determinadas de consciência” (MARX, 2008, p. 49), o que
significa dizer o efeito de isolamento produzido pela ideologia jurídico-política
na luta econômica de classes, ou seja, na região econômica.
Essa inter-relação estabelecida entre o político e econômico por
Poulantzas leva, portanto, à conclusão de que “tal relação é de
intervencionismo (recíproco); jamais, de não-intervencionismo” (SAES, 1998,
p. 57). Inclusive, em O estado, o poder e o socialismo, obra pertencente à
última fase do pensamento do autor, observa-se um abandono da teoria
regional do político e do esquema estrutura com dominante, e a região do
econômico, político e ideológico deixam de ser tratados como regiões distintas
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do modo de produção capitalista
2
e passam a ser investigadas como momentos
das relações de produção (JESSOP, 1985, p. 108).
A crítica, no entanto, que se estabelece à teoria política marxista de
Poulantzas, reside no fato de que não obstante a pressuposição em suas teses
das relações e estruturas objetivas do processo de trabalho (POULANTZAS,
1977, p. 125) nas quais se encerram as leis de movimento econômico; não
uma formulação precisa sobre qual, exatamente, é a relação objetiva entre as
categorias desenvolvidas por Marx no capital (mercadoria, valor, mais-valor,
acumulação etc.), que compõem o quadro teórico necessário para que se
proceda a uma compreensão da “anatomia da sociedade burguesa” e a forma
política correspondente a esse modo de produção (CALDAS, 2015, p. 60).
De fato, verifica-se em Poulantzas uma rica caracterização da origem
histórica do estado, “a natureza de suas partes constitutivas, as funções a que
presumivelmente serve, e as consequências (programas de governo, políticas
diversas) às quais pode dar origem” (EASTON, 1982, p. 133), mas a relação
estrutural entre o político e o econômico que é estabelecida em termos gerais,
ainda que se tratando de pressupostos fundamentais faz com que Poulantzas
apenas consiga analisar o estado no nível da prática política e da materialização
do político nas instituições, de sorte que uma tendência observável em suas
obras é um direcionamento cada vez maior de suas análises à caracterização
do estado com base nas funções que este assume em decorrência das
contradições entre as classes e suas frações, deslocando a definição do estado
para suas estruturas observáveis (EASTON, 1982, p. 141).
Ao empurrar o econômico para segundo plano na crítica ao
economicismo, Poulantzas acaba “proporcionando bastante espaço para o
‘voluntarismo’ e o oportunismo político que sua teoria supostamente havia
afastado” (CLARKE, 1991, p. 19). Ou, dito de outro modo, acaba fazendo com
que o político seja analisado com base na reconstrução descritiva, a nível das
instituições, da prática política.
Ainda que reconheça e pressuponha em suas obras a existência das leis
de movimento econômico e as contradições que elas implicam no curso do
desenvolvimento do capitalismo, Poulantzas restringe-se em analisar como
essas contradições vão influenciar e determinar o próprio desenvolvimento do
estado.
De um lado, tem-se a forte reação crítica ao determinismo econômico e
o reducionismo que a todo momento reiterava. De outro lado, a
desconsideração de Poulantzas das categorias econômicas na construção da
2
/.../ um modo de produção não é o produto de uma combinação entre diversas instâncias
em que cada uma possuiria previamente, ao se relacionar, uma estrutura intangível. É o modo
de produção, unidade de conjunto de determinações econômicas, políticas e ideológicas, que
delimita as fronteiras desses espaços, delineia seus campos, define seus respectivos elementos
(POULANTZAS, 1980, p. 21).
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teoria regional do político deve-se à interpretação atribuída à extensa
investigação de Marx sobre a sociabilidade capitalista. Interpretação que trata
sobretudo a sua crítica à economia política, O capital como um estudo
específico da região econômica, cujas implicações, pelo esquema das
estruturas regionais, o seriam diretamente aplicáveis para a construção de
uma teoria particular do estado capitalista mas que, contudo, forneceria o
quadro geral da estrutura com dominância da região econômica.
Isso acaba levando-o a uma investigação do estado estritamente com
base em seus próprios termos, ou seja, com base em categorias próprias da
região do político, desembocando no seguinte efeito imunizador fatal”: o de
tomar como certas as leis de movimento do capital, mas atribuí-las à esfera
econômica, e “a análise do político procede com independência em relação às
necessidades e limitações impostas a ele precisamente por essas leis de
movimento” (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 6). Como consequência,
os problemas centrais da teoria marxista do estado, os problemas do
desenvolvimento da forma estatal, dos limites estruturais e as
possibilidades de ação estatal, que podem ser abordados através
de uma análise da relação entre o estado e as contradições da
acumulação capitalista, são omitidos no trabalho de Poulantzas,
aparentemente em virtude de um maior rigor científico
(HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 6).
Isso fica claro na obra seguinte a Poder político e classes sociais, na
qual Poulantzas procura investigar a etapa
3
do fascismo em duas formações
sociais específicas, a saber, a alemã e a italiana. Assim, em Fascismo e
ditadura, Poulantzas procura investigar, na dinâmica das classes sociais, o tipo
de crise da qual emerge o fascismo analisado nos termos de uma crise de
hegemonia e a forma específica de estado de exceção (o estado fascista) que
se desenvolve como resposta a essa crise (LACLAU, 1986, p. 102).
Parte-se, portanto, da identificação da Alemanha e da Itália como países
que ocupam posições de elos mais fracos da cadeia imperialista, ou seja, países
que devido as condições históricas específicas de desenvolvimento desigual
das formações sociais concentram profundas contradições internas, que
irrompem em crises de hegemonia
4
na transição para o capitalismo
monopolista.
3
Por etapa ou período em Poulantzas, entende-se: “periodização concreta de uma formação
social, recobrindo mais particularmente o campo da luta de classes” (POULANTZAS, 1972a, p.
19, nota de rodapé 5).
4
O conceito de hegemonia /.../ existe justamente para designar a classe ou fração de classe
que tem, dentro do bloco no poder, a capacidade de representar, necessariamente, duas
características possíveis da dominação política de classes dentro das formações sociais
capitalistas: a) capacidade de representar o interesse do povo/nação e; b) a competência de
garantir a sua dominância específica, dentre as próprias classes e frações de classe dominantes,
na sua relação com o estado capitalista(DEL PASSO, 2019, p. 95; cf. POULANTZAS, 1977,
pp. 136-7).
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Assim, o processo de fascistização e a consolidação do fascismo no
poder é teorizado de modo extenso e detalhado, como um processo de
reorganização do bloco no poder (POULANTZAS, 1972a, p. 79), em uma “série
de discussões sobre a relação entre fascismo e classes sociais /.../ a força
dirigente, a base social, as determinações sociais que tornam certas classes
mais vulneráveis à interpelação da política e da ideologia fascistas”
(MARTUSCELLI; BRAGA; GUILMO, 2019, p. 11) etc.
De fato, não se trata de negar a riqueza de determinações teóricas
apresentadas ao analisar concretamente a dinâmica de classes, sem as quais as
especificidades do estado fascista não podem ser compreendidas. No entanto,
o que as proposições de Poulantzas não revelam é até que ponto as
contradições da acumulação de capital impõem uma reorganização necessária
das instituições políticas.
Decerto, afirma-se que os “dados ‘econômicos’ determinam,
rigorosamente, uma nova articulação do conjunto do sistema capitalista”
(POULANTZAS, 1972a, p. 16), mas essas “contradições econômicas
subjacentes ao fascismo” são discutidas “no contexto das classes dominantes
contradições entre grande e médio capital, entre capitalistas e proprietários
fundiários etc. /.../ toda a questão é discutida em termos de uma crise ‘político-
ideológica’” (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 8).
Observa-se, portanto, a colocação de Poulantzas “à margem da
principal fonte de transformação da sociedade capitalista (HOLLOWAY;
PICCIOTTO, 1978, p. 6), isto é, a contradição crescente entre capital-trabalho
(MARX, 2017a, p. 720), imanente ao processo de valorização do valor
5
. Diante
disso, Poulantzas revela-se limitado em analisar sistematicamente o
desenvolvimento da forma política e as funções que o estado vai assumindo
historicamente nas diversas fases de acumulação de capital.
Em certa medida, cabe neste ponto a crítica à Poulantzas elaborada
primeiramente por Miliband (2008) em Poulantzas e o estado capitalista, mas
desenvolvido de modo mais completo por Laclau (1986), de que a teoria
política de Poulantzas é caracterizada por um abstracionismo estruturalista.
Tal abstracionismo, diferentemente do que Poulantzas entende em resposta
apresentada no artigo O estado capitalista: uma resposta a Miliband e Laclau
6
,
refere-se a específica forma com que são estabelecidas as conexões lógicas
entre os elementos iniciais de seu processo de análise, sobre os quais erige todo
o processo de abstração na apreensão do real como concreto pensado, que
5
“O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo
de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado põe o tempo de trabalho como
única medida e fonte de riqueza” (POSTONE, 2014, p. 51)
6
Poulantzas compreende a crítica do abstracionismo à suposta “ausência /.../ de análises
concretas ou referência a fatos empíricos e históricos (2008, p. 107) em seus escritos. No
presente artigo, nega-se crítica nesse sentido.
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Laclau apontará como sendo “um tipo de abstração que conduz a um crescente
formalismo” (LACLAU, 1986, p. 75). Assim,
a origem dessa tendência formalista no processo de abstração reside
no fato de que o contato mútuo entre os elementos iniciais no
processo de análise foi estabelecido de maneira puramente
descritiva; o resultado é que, nas etapas ulteriores do processo de
abstração, é impossível estabelecer vínculos lógicos entre eles. A
saída desse dilema é, para Poulantzas, a postulação de relações
puramente formais entre os objetos de análise e um crescente uso de
metáforas (LACLAU, 1986, p. 77).
Para Laclau, Poulantzas parte de uma definição imprecisa do que
significa a determinação em última instância do econômico, e a ausência de
critério no estabelecimento da região econômica, política e ideológica como as
únicas regiões articuladas na compreensão do modo de produção capitalista
(LACLAU, 1986, p. 79). Uma vez que se estabelece que as regiões não são
vinculadas logicamente entre si, essa relação passa a ser caracterizada com
base em conceitos descritivos ou de proximidade (LACLAU, 1986, p. 76).
Certamente, não se trata de defender integralmente a crítica de Laclau,
mas ela caracteriza bem uma insuficiência e lança luz sobre um outro método
de superá-la. A insuficiência está tanto na negligência em identificar como as
leis do movimento do capital afetam a prática política e impõem limites à ação
estatal e a necessidade da reorganização das instituições políticas, como no
fato de que justamente devido a isso, a diferença entre estrutura como
princípio organizador das instituições é dissolvida nas próprias instituições,
fazendo com que “sua análise do estado burguês não ultrapasse o nível da
descrição perceptiva” (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 7), ou seja, no nível
da dinâmica imediata da prática política.
Diante desses limites, apresenta-se outra corrente teórica de
pensamento marxista que se incumbe da tarefa de analisar o estado em sua
materialidade histórica, a qual será a seguir apresentada na tentativa de
fornecer uma via de teorização do político que supere as deficiências apontadas
no pensamento de Poulantzas, cujo método contrapõem aquele definido por
Laclau como formalista
7
e consiste no estabelecimento de uma relação lógica
sistemática entre as categorias determinantes do modo de produção capitalista
para, então, desenvolver as categorias políticas dessas derivadas.
Por relação lógica sistemática entende-se organizar a totalidade do
modo de produção capitalista como um sistema de categorias em uma
sequência definida, derivando logicamente uma da outra” (ARTHUR, 2016, p.
7
Para Laclau, a relação entre os conceitos que caracterizam o modo de produção capitalista
não são formalistas quando “uma relação que vincula logicamente os conceitos entre si e
tende a enfatizar sua natureza teórica: teremos então um processo de retorno por meio do qual
a função teórica dos conceitos tende a ser acentuada em razão do caráter lógico das relações
que os ligam” (1986, p. 76).
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81). Assim, a problemática da derivação da forma do estado em detrimento
de sua função e da luta de classes é colocada como centro e ponto de partida
de sua teorização. Sendo possível apresentar, desse modo, os limites
estruturais da forma política, sua intrínseca relação com o processo de
acumulação do capital, e como este impõem processos de transformação das
instituições.
Ainda que não se trate de uma corrente de pensamento unificada, o
debate alemão da derivação do estado nome pelo qual ficou conhecida essa
corrente teórica
8
diferencia-se de modo determinante do tratamento de
Poulantzas sobre o problema do político pelo fato de que os teóricos da
derivação “não enxergam na grande obra de Marx” – O capital “uma análise
do ‘nível econômico’, mas uma crítica materialista da economia política, isto é,
uma crítica materialista das tentativas burguesas de analisar a ‘economia’ de
maneira isolada das relações de produção” (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978,
p. 4). Disso decorre que as categorias econômicas apresentadas por Marx a
mercadoria, o valor, o dinheiro, o capital etc. não são específicas à região do
econômico, mas sim categorias que operam na totalidade das relações sociais
e perpassam pelo político dando a ele determinação. O conceito forma social:
expressa tanto o problema básico como a característica essencial do
método materialista histórico: a investigação da conexão entre o
processo material de produção e reprodução da vida de pessoas
socializadas e as relações entre essas pessoas que se constituem
nesse processo material de reprodução /.../. O método materialista
consiste em examinar as formas nas quais as relações particulares
entre os homens são expressas (BLANKE; JÜRGENS;
KASTENDIEK, 1978, p. 118).
O político, em vista disso, passa a ser teorizado a partir da mesma
totalidade de relações sociais que produzem as formas sociais econômicas que,
por se tratarem das relações objetivas que inauguram um modo específico de
interdependência social, produzirão, por sua vez, a especificidade da forma
política. Sendo esta composta por um conjunto de relações sociais específicas
que se reproduzem independentemente da vontade dos sujeitos dessas
relações (HIRSCH, 2007, p. 14), de modo que as instituições políticas que
compõem o estado e as respectivas funções que assumem campo em que
Poulantzas centraliza sua investigação do estado capitalista não são o ponto
de partida e, sim, as categorias econômicas que estão na base da determinação
histórica do estado.
8
Composto pelo debate iniciado entre o final da década de 1960 e início da década de 70 com
as sucessivas crises que irromperam nos países de capitalismo central, que revelaram uma
inadequação das correntes políticas marxistas até então predominantes, em explicar os limites
estruturais do estado no gerenciamento das crises do capitalismo, os limites de suas ações no
processo de transformação da sociedade etc.
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Desse modo, a tarefa colocada é desvendar o que, na totalidade das
relações sociais, constitui o político como uma forma social essencial para a
reprodução dessas relações. A resposta para essa pergunta, segundo Hirsch,
encontra-se na específica forma de apropriação do sobreproduto no
capitalismo (2015, p. 28), isto é, na específica forma de constituição das
relações de dominação capitalistas que, no processo histórico de separação dos
agentes diretos da produção de seus meios produtivos engendra o trabalhador
livre, despossuído de suas condições materiais de existência e obrigado a
livremente dispor da única mercadoria da qual é proprietário, sua força de
trabalho.
Diferentemente dos modos de produção que precederam, o capitalismo
constitui-se historicamente como uma dominação abstrata e impessoal, uma
dominação mediada pela qualidade abstrata do valor e, portanto, uma forma
de dominação indireta na qual o poder econômico separa-se do poder político
uma vez que as relações sociais que regulam a vida social no processo de
reprodução do capital não estão fundadas na violência direta de classe, mas
num processo em que a exploração é mediada pela troca de mercadorias
(HIRSCH, 1978, p. 59) entre sujeitos que se apresentam como seus
proprietários seus reflexos subjetivados.
Desse modo, o processo de constituição e generalização de um circuito
de relações mercantis suficientemente abrangentes engendra, juntamente com
o desenvolvimento do mercado, uma separação realmente existente entre “o
individual e o social, entre o privado e o público”, contradição que “constitui o
fundamento vital da própria sociedade burguesa como uma sociedade
produtora de mercadorias” (PACHUKANIS, 2017, p. 164). Uma vez que o
caráter social da mercadoria apenas se realiza por intermédio da troca entre
valores a “coerção como prescrição de uma pessoa sobre outra, sustentada pela
força, contradiz a premissa fundamental da relação entre os possuidores de
mercadorias” (PACHUKANIS, 2017, p. 146)
9
.
A separação entre a esfera blica e privada da vida social, portanto,
não deve ser pensada partindo-se do efeito produzido pela superestrutura
política com a finalidade de desmobilizar a luta econômica de classe, garantir
a coesão da unidade da formação social e legitimar-se como o representante da
vontade geral isto é, uma separação produzida pela finalidade de
desempenhar determinadas funções , como faz Poulantzas, mas, antes,
9
Note-se que, com isso, não se exclui a necessidade de compreender historicamente a
formação do estado capitalista, cuja estruturação nas diversas formações sociais contou com
“desencadeadores múltiplos, não se restringindo apenas às formas capitalistas de exploração
e de luta contra os privilégios feudais”. Além disso, “não apenas o surgimento do capitalismo
e do estado moderno não é consequência de uma lógica estrutural, como o seu
desenvolvimento e o seu futuro ficam condicionados, nesse sentido, à ação, através de lutas e
estratégias políticas, e por isso permanecem, em princípio, abertos” (HIRSCH, 2010, pp. 67;
69).
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pensar essa separação como aquilo que especificidade ao político, resultado
de um processo objetivo de relações sociais e práticas que se autonomizam no
seio da sociedade.
Estabelecer esse vínculo inicial permite compreender como “a crescente
acumulação do capital” e a contradição inerente as modificações na
composição orgânica do mesmo, “desenvolve-se de maneira cada vez mais
gritante e implica a /.../ transformação das condições de produção em gerais,
coletivas, sociais” (MARX, 2017b, p. 303) e, com isso, a necessidade de
reorganização, em vista do “choque com o sistema de regulação existente”, das
“formas institucionalizadas de relações de classe e forças sociais” (HIRSCH,
2010, p. 131) vigentes em determinada formação social.
Isso, no entanto, não significa uma transposição automática da lei geral
do valor e a queda tendencial da taxa de lucro como um resultado sempre
necessário à dinâmica da luta de classes. Muito pelo contrário, é preciso
considerar que a própria lógica do capital é a expressão dessa luta, e como a
tendência definida pelo processo de valorização do valor é um processo
contraditório que deve reproduzir constantemente as relações de produção.
Nesse sentido:
A particularização do estado deve se restabelecer continuamente e
se manter nesse processo de conflito e colisão de interesses. Não
menos importante das consequências disso é a imperfeição,
incompletude e inconsistência da atividade do estado, mas também
ao mesmo tempo a contingência relativa do processo político, uma
contingência que não pode ser derivada das determinações gerais da
relação de capital. (HIRSCH, 1978, pp. 65-6)
Com isso, esboça-se uma teoria materialista do estado cujo mérito
consiste em dar centralidade para o problema da forma política na dinâmica
de acumulação que está na base de sua transformação. Considerando que as
“condições sociais gerais de produção não se adaptam automaticamente à
acumulação de capital, a crise se manifesta quando o processo de acumulação
atinge seus limites” (HIRSCH, 1978, p. 74). Essas condições gerais, por sua vez,
incluem um contexto de regulação composta por instituições políticas que
garantem a estabilidade da acumulação (HIRSCH, 2010, p. 108), daí que a
crise não é apenas econômica, mas também política.
Apesar de apontar para o derivacionismo como o caminho para a
superação de limitações determinantes da teoria política de Poulantzas
sustenta-se na presente investigação não apenas a possibilidade, mas uma
articulação real por parte de alguns teóricos do debate da derivação (como
Joachim Hirsch
10
e Bob Jessop) de algumas categorias políticas (como
10
A proximidade entre Hirsch e Poulantzas é reconhecida pelo próprio Poulantzas, sobretudo
a respeito do tratamento das contradições internas de classe que perpassam e são inerentes à
estrutura do estado (cf. POULANTZAS, 2008, p. 119).
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‘hegemonia’ e ‘bloco no poder’) desenvolvidas por Poulantzas, dado que elas
possibilitam como categorias intermediárias explicar nas diversas
formações sociais os atores sociais envolvidos na dinâmica das crises, e em que
lugar do tecido social elas irrompem.
3. A superestrutura jurídico-política de Poulantzas e a forma
jurídica
A tarefa de fornecer elementos para a construção de uma teoria
materialista do estado que supere os limites da teoria política desenvolvida por
Nicos Poulantzas não se dá, no entanto, por encerrada. É preciso também
chamar atenção para outro problema: o da teoria do direito, cuja dimensão e
implicações uma vez reduzida à esfera política merecem igualmente um
tratamento teórico específico ao lado do estado e, neste sentido, passível de ser
configurada como um objeto próprio de estudo, que possui especificidade e
categorias próprias (como o sujeito de direito e a norma jurídica).
Ressalta-se, nesse sentido, que o filósofo responsável por apresentar
uma investigação marxista do fenômeno jurídico no capitalismo, cujo mérito
até hoje insuperado foi o de identificar a relação social objetiva específica que
determina a forma jurídica a partir do qual proceder-seao apontamento
de uma teoria jurídica para além da abordagem de Poulantzas trata-se de
Evguiéni Pachukanis que, apesar de não pertencer à corrente do
derivacionismo, é utilizado por alguns de seus autores como o filósofo que
colocou pela primeira vez o problema da forma jurídica e da forma política
11
,
incumbindo-se de “derivar a forma do direito e a forma estreitamente
relacionada do estado da natureza da produção capitalista de mercadorias”
(HOLLOWAY; PICCIOTO, 1978, p. 18).
No pensamento de Poulantzas, o fenômeno jurídico não é
compreendido a partir de uma especificidade que lhe é própria, mas como uma
instância pertencente tanto a região econômica como a região ideológica
diretamente associada à estrutura jurídico-política, como sua materialização.
Além disso, identifica-se inclusive uma certa indistinção entre o estado e a
ordem jurídica (JESSOP, 1985, p. 74) que coincide com a normatividade
estatal que, na medida do desenvolvimento de sua teoria política, passam a
serem tratados como instância ou superestrutura jurídico-política.
Em parte, a identificação imediata do direito com a norma deve-se ao
fato de que Poulantzas, ao se concentrar na região do político, analisa o direito
11
Fato reconhecido por Holloway e Picciotto (1978, p. 18), que inauguraram o debate da
derivação na Inglaterra, e utilizado como um filósofo chave para a colocação do problema da
forma política (cf. PACHUKANIS, 2017, p. 143; HIRSCH, 1978, p. 58; BLANKE; JÜRGENS;
KASTENDIEK, 1978, p. 121).
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da forma como ele aparece: como a própria norma jurídica produzida pelo
estado
12
, de sorte que suas análises sobre o direito após colocada a nível da
estrutura em Poder político em classes sociais passam a se concentrar
somente no momento normativo do fenômeno jurídico, evidenciando seu
conteúdo de classe. Dessa maneira, constrói-se uma teoria do direito que,
apesar de incorporar os interesses “das diversas classes sociais, não conta
de explicar a própria regulamentação jurídica como tal, ou seja, não é capaz de
explicar por que determinado interesse de classe é tutelado precisamente sob
a forma do direito” (NAVES, 2008, pp. 45-6).
A compreensão do direito em Poulantzas, no entanto, não se revela
imutável ao longo de suas obras. Nas obras iniciais de sua trajetória intelectual
é demonstrada uma aproximação da compreensão estrutural do fenômeno
jurídico, com o apontamento do núcleo de determinação central da forma
jurídica, qual seja, as relações de troca que produzem os sujeitos de direito,
ainda que sob a égide da normatividade estatal, conforme a passagem a seguir
apontada:
Os homens concretos, determinados pelo universo jurídico (estado
e sociedade civil) em sua reificação social, são considerados
entidades numéricas abstratas /.../. A liberdade e a igualdade desses
homens, ambas entidades fantasmas, são abstratas e formais, pois
constituem valores simplesmente postulados como necessários para
a estruturação de normas que regulam a propriedade privada
moderna (absoluta, isto é, liberdade e igualdade), o valor de troca de
um trabalho totalmente quantificado (igualdade), circulação
universalizada e reprodução ampliada de bens (liberdade e
igualdade). (POULANTZAS, 1973, p. 23)
Na última fase de seu pensamento, contudo, essa aproximação é
gradativamente abandonada assumindo um caráter cada vez mais normativo,
alegando que “o direito capitalista é específico no que forma um sistema
axiomatizado, composto de conjunto de normas abstratas, gerais, formais e
estritamente regulamentadas” (POULANTZAS, 1980, p. 97) a ponto de não
fazer distinção entre lei e direito voltando-se proeminentemente a atenção
em o estado, o poder, o socialismo para a função exercida pela norma na
organização pública da violência e dominação de classe, não obstante ter
anteriormente criticado a abordagem juspositivista do direito, afirmando que
12
Engels e Kautsky denunciavam que as bases reais do fenômeno jurídico deveriam ser
encontradas nas próprias relações econômicas, e não nos comandos normativos estatais.
“Visto que o desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social isto é,
por meio da concessão de incentivos e créditos engendra complicadas relações contratuais
recíprocas e exige regras universalmente válidas, que só poderiam ser estabelecidas pela
comunidade normas jurídicas estabelecidas pelo estado , imaginou-se que tais normas não
proviessem dos fatos econômicos, mas dos decretos formais do estado” (ENGELS; KAUTSKY,
2012, pp. 18-9).
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o mesmo deve ser analisado a partir de “esquemas reais ao invés de modelos
normativos” (POULANTZAS, 1973, p. 30).
Mas, apesar dos diversos contornos que assumem as proposições de
Poulantzas sobre o direito, pretende-se aqui refutar criticamente as
considerações elaboradas pelo pensador naquilo que de comum, qual seja,
o fato do direito ser caracterizado como parte da região política tanto em seu
caráter normativo como em seu caráter ideológico devido a função de classe
que exerce ao promover a coesão da unidade de uma formação social cujo
modo de produção dominante é o capitalista.
Assim, conforme apresentado, a dimensão jurídica do político é
analisada por Poulantzas em duas esferas que se fundamentam
reciprocamente com base na função de classe que as caracterizam, ou seja, a
função de servirem como fator de coesão ao desmobilizar a luta econômica de
classes e refletir no estado a unidade da atomização dos sujeitos da produção,
transformando a luta de classes em luta necessariamente política, garantindo
a reprodução das relações de exploração capitalistas com a regulamentação
tanto das relações de troca como do exercício e organização do poder do
estado. Nesse sentido, afirma Poulantzas:
Por um lado, o sistema jurídico consagra as relações de propriedade
e de troca e assegura a reprodução das condições de produção,
segundo modalidades que lhe o próprias. Por outro lado, assume
um papel diretamente político: desempenha um papel direto na luta
política de classes. (1972b, pp. 110-1)
A primeira delas, portanto, é a análise do direito como a própria
ideologia jurídico-política dominante do modo de produção capitalista, cuja
característica central é produzir a separação do estado e da sociedade civil com
a transformação dos agentes da produção em sujeitos econômicos livres e
iguais, produzindo um efeito de isolamento no seio da sociedade civil com a
função de garantir a coesão da unidade complexa do todo social ao
desmobilizar a luta econômica de classes (POULANTZAS, 1977, p. 126), na
medida em que esta passa a aparecer como o terreno da concorrência entre
sujeitos representando seus interesses particulares, e não como a própria
exploração de uma classe sobre a outra.
A segunda dimensão do direito, por sua vez, está relacionada à base
material dessa ideologia, do efeito de isolamento na superestrutura jurídico-
política que produz formalmente, através das normas jurídicas, não apenas os
indivíduos-sujeitos econômicos garantindo, desse modo, “o contrato de
trabalho /.../ a propriedade privada capitalista /.../ a generalização das trocas,
a concorrências etc.” (POULANTZAS, 1977, p. 208); como também sua
representação na esfera política, com a produção dos cidadãos livres e iguais,
autorreferenciando-se como a unidade dessa fragmentação (POULANTZAS,
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1977, pp. 129-30) enquanto único horizonte possível de realização do interesse
supraindividual.
O estado, para Poulantzas, através do papel exercido pelo direito na luta
econômica de classes e, ao mesmo tempo, na luta política de classes, produz
seu próprio fundamento ao garantir, através desse processo, sua própria
autonomia relativa real e sua realização como poder de classe.
O resultado disso é que o jurídico se torna tanto o traço distintivo do
estado capitalista, como também a função que o caracteriza; de modo que
Poulantzas não consegue oferecer nem uma teoria do político com uma
determinação central, como também não apresenta uma teoria jurídica capaz
de explicar o motivo pelo qual: a) a ideologia jurídica corresponde à
transformação dos agentes da produção em sujeitos abstratos de direitos e; b)
tanto o conteúdo básico das normas jurídicas que assume a forma da norma
abstrata e geral quanto a organização das instituições estatais são aquelas
presididas pela liberdade e igualdade dos sujeitos.
De modo geral, verifica-se em Poulantzas uma falta de clareza quanto a
definição atribuída ao direito, que ora é tratado como uma característica da
região do nível ideológico (MOTTA, 2010, p. 383), ora é abordado como uma
região do político em termos de aparelho institucional sem, no entanto,
explicar por que o jurídico manifesta-se apenas nessas duas “regiões”; bem
como o que, exatamente, existe nas relações de produção em, segundo
Poulantzas, sua determinação em última instância que faz com que os
indivíduos no capitalismo sejam constituídos em suas relações sociais como
sujeitos de direito livres e iguais.
Embora sustente que é no processo de separação dos agentes diretos da
produção de seus meios produtivos a base real da aparente individualização
dos sujeitos na medida em que são abstraídos de seus “laços naturais” de
produção (POULANTZAS, 1977, p. 122), isso ainda não explica como o
sujeito econômico livre e igual e seu desdobramento em sujeito-cidadão
político é engendrado, dado que na esfera da produção a qual Poulantzas se
refere, não há algo como a autonomia da vontade e a equalização dos sujeitos
que apenas pode ser estabelecida de forma relacional, ou seja, em uma relação
social entre sujeitos. Isso o leva a afirmar que:
de fato, os agentes de produção não aparecem como indivíduos a
não ser nessas relações superestruturais que são as relações
jurídicas. É destas relações jurídicas, e não das relações da produção
em sentido estrito, que decorrem o contrato de trabalho e a
propriedade formal dos meios de produção (POULANTZAS, 1977, p.
124).
Além disso, a própria identificação imediata entre direito e a norma
jurídica padece de um detalhe fundamental: é certo que Poulantzas identifica
ser na atribuição aos agentes da produção “independentemente do lugar /.../
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que ocupam no processo de produção, a condição de sujeitos individuais de
direitos, fixando-os todos como indivíduos ‘livres’ e ‘iguais’” (SAES, 1998, p.
49) a qual denominará de efeito de isolamento uma caracterização central
ao fenômeno jurídico; entretanto, isso não o impede de inverter a ordem das
relações e afirmar que a relação jurídica é engendrada pela norma.
Mas se o traço fundamental do direito, mesmo para Poulantzas
13
, é a
manutenção desse sujeito-indivíduo tanto nas relações econômicas entre
proprietários como nas relações políticas entre cidadãos e o estado então
não estaria nesse sujeito, e não nas normas jurídicas, a chave para a
compreensão da especificidade do fenômeno jurídico?
É esta a tarefa a que se propõe Pachukanis em sua obra teoria geral do
direito e marxismo. Ao proceder a uma análise da forma jurídica partindo da
identificação da relação social específica que é sua expressão na forma mais
simples, derivando-a das categorias econômicas que determinam o modo de
produção capitalista, é possível compreender o fenômeno jurídico a partir de
uma especificidade que lhe é própria em sua articulação com todas as esferas
da vida social não condicionada à sua existência normativa, como parte do
político. Pelo contrário, é partindo da categoria elementar da forma jurídica
que é possível compreender a norma jurídica como um de seus momentos
14
,
na relação intrínseca que se estabelece a posteriori com a própria forma
política.
O sujeito de direito, portanto, “é o átomo da teoria jurídica, o elemento
mais simples e indivisível, que não pode mais ser decomposto”
(PACHUKANIS, p. 2017, p. 117) que, ao contrário do indivíduo produzido na
esfera da produção que Poulantzas apresenta, não se refere a um sujeito
considerado isoladamente, mas uma categoria que corresponde a uma
relação social qual seja, a relação jurídica que se estabelece no momento da
troca mercantil; na medida em que é na relação social que o sujeito adquire
13
Armando Boito Jr. sustenta uma influência de Pachukanis no pensamento de Poulantzas a
respeito do tratamento do direito em Poder político e classes sociais: “Na década de 1960,
Nicos Poulantzas /.../ retomou a análise de Pashukanis e chegou a uma caracterização
inovadora da estrutura do estado capitalista /.../. Foi esse tipo de análise que Poulantzas
explorou, destacando que o direito formalmente igualitário e as instituições de estado
aparentemente universalistas produzem efeitos ideológicos muito importantes. A igualdade
formal produz um efeito de isolamento, que oculta dos agentes sociais o seu pertencimento de
classe e os induz a se pensarem como indivíduos atomizados e singulares. (BOITO Jr., 2007,
pp. 26-7)
14
A abordagem que se faz aqui ao tratar da norma jurídica como momento da forma jurídica é
diferente da análise de Pazello sobre a questão que trabalha a categoria do sujeito de direito
e da norma jurídica em termos de momento essencial/aparente (PAZELLO, 2015, pp. 137-8).
Aqui, a conexão entre relação jurídica e norma jurídica é analisada do ponto de vista da
dialética sistemática (cf. ARTHUR, 2016, pp. 80-1), de sorte que a categoria da norma jurídica
inclui em si a realização dos momentos fundamentais da forma jurídica (PACHUKANIS,
2017, p. 64).
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suas determinações centrais da igualdade e da liberdade e que, portanto,
independe da chancela formal do estado.
Mas, afinal, por que é no momento da troca mercantil, e não na esfera
em que se a exploração direta do trabalhador no processo produtivo, a
origem da forma jurídica? Ou, ainda, por que o direito assume a forma do
sujeito livre e igual? A resposta encontra-se na derivação da forma jurídica da
forma elementar da sociabilidade capitalista: a mercadoria (PACHUKANIS,
2017, p. 119), que institui uma forma completamente nova de dominação
social, um processo objetivo de dominação não direta com a exploração da
força de trabalho livre, assalariada.
Marx, nO capital, ao apresentar a mercadoria como a forma elementar
da sociabilidade capitalista, afirma que a sua dimensão social isto é, sua
constituição enquanto uma forma de relação social é justamente aquela que
permite um processo no qual a universalidade concreta das mercadorias
diferentes qualitativamente umas das outras seja abstraída, dando lugar a
uma universalidade abstrata, de modo que a sua qualidade passa a ser sua
própria quantidade, caracterizada a partir de uma substância social que lhes é
comum, a de serem produtos do trabalho humano indiferenciado a de serem,
portanto, valores (MARX, 2017, p 117).
Enquanto forma de relação social, a mercadoria apenas adquire suas
determinações quando contraposta a outra mercadoria, isto é, no processo da
troca. Entretanto, não são as mercadorias que agem, mas os sujeitos, seus
proprietários, que passam a atuar como as próprias mercadorias e
relacionarem-se uns com os outros como seus reflexos subjetivados. Portanto:
Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias,
seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como
pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de modo tal que um
pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria
mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por
meio de um ato de vontade comum a ambos. Têm, portanto, de se
reconhecer mutuamente como proprietários privados. (MARX,
2017, p. 159)
É nesse mesmo ato de constituição da mercadoria em sua dimensão
social que dá origem, portanto, à própria forma do sujeito de direito com suas
determinações centrais: da igualdade, “pois eles se relacionam um com o outro
apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por
equivalente” (MARX, 2017, p. 251), da liberdade, “pois os compradores e
vendedores de uma mercadoria, por exemplo, são movidos apenas por seu
livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos
direitos” (MARX, 2017, p, 250).
Do mesmo modo que um produto, em sua particularidade concreta, na
forma da mercadoria transforma-se em mero suporte material do valor,
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também o sujeito concreto pertencente a uma classe, uma raça, uma cultura
etc. na complexidade de suas relações sociais, é abstraído de suas qualidades
específicas e transforma-se em mero suporte do homem abstrato, livre e igual
o sujeito de direito. Nesse sentido,
um produto apenas aparece na forma de mercadoria apenas como
um simples invólucro do valor, e os aspectos concretos do trabalho
humano diluem-se no trabalho humano abstrato como criador de
valor do mesmo modo que a diversidade concreta de relações do
homem com as coisas surge como uma vontade abstrata do
proprietário e todas as particularidades concretas que diferenciam
um representante da espécie de homo sapiens de outra diluem-se na
abstração do homem em geral como sujeito de direito
(PACHUKANIS, 2017, p. 121).
O processo de generalização das trocas mercantis com a passagem da
etapa de manufatura para a da maquinaria e grande indústria consolida
definitivamente as relações capitalistas. Assim, altera-se substancialmente o
processo de trabalho, de modo que não apenas os agentes da produção são
expropriados de suas condições objetivas de trabalho, mas também das
condições subjetivas (NAVES, 2014, p. 85).
A consequência disso é que esse processo de subsunção real do trabalho
ao capital (MARX, 2017, p. 578) não apenas consolida a forma mercadoria
como abstração tornando-a um processo objetivo que passa a se reproduzir
independentemente da vontade consciente dos sujeitos como também a
“capacidade de ser um sujeito de direito finalmente se destaca da
personalidade concreta viva, deixa de ser uma função de sua vontade
consciente ativa e se torna pura propriedade social” (PACHUKANIS, 2017, p.
122).
O direito, assim, adquire um caráter indispensável na medida em que
“todo homem torna-se um homem em geral /.../ todo indivíduo torna-se um
sujeito de direito abstrato” (PACHUKANIS, 2017, p. 127) que, apesar de em
sua forma mais simples corresponder à própria relação jurídica da troca
mercantil, não se esgota nessas relações, mas, assim como as demais categorias
como a forma mercadoria e a forma política , perpassa pela totalidade das
relações sociais.
Desse modo, explica-se o substrato histórico real a partir do qual é
possível compreender a própria formação da ideologia dominante do modo de
produção capitalista a que Poulantzas se refere. Ainda que o “efeito de
isolamento” produzido seja proveniente de um processo real de abstração dos
sujeitos e que não foi produzida pelo estado com o intuito de isolar os agentes
da produção de suas relações reais de classe, e sim trata-se de um processo
objetivo de constituição dos sujeitos em decorrência da própria dinâmica das
relações capitalistas no processo de valorização do capital.
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Além disso, é possível identificar a relação existente entre o sujeito de
direito e a forma dele derivada do sujeito político; dado que o estado assume a
forma de um poder público, abstrato e impessoal, de modo que a extensão da
subjetividade jurídica no político produz o cidadão livre e igual (MASCARO,
2013, p. 85), capaz de exercer os atos da vida política.
Do mesmo modo em resposta ao segundo questionamento cuja
resposta Poulantzas não foi capaz de oferecer é possível compreender o
motivo pelo qual a norma jurídica assume a forma da lei abstrata e impessoal,
uma vez que decorre da própria forma do sujeito de direito e que não pode, por
ter mais determinações, ser analisada tão somente como um
desmembramento do jurídico. Trata-se, na verdade, de um processo de
“conformação ou, do mesmo modo, uma consubstanciação ou uma derivação
secundária recíproca –” (MASCARO, 2013, p. 34) entre forma jurídica e forma
política.
Justamente devido a especificidade da forma política, que se materializa
mais expressamente no aparelho de estado situado fora das leis do mercado,
deve como mediação necessária de sua atuação aparecer não como uma
coerção direta de classe, mas como coerção de uma pessoa abstrata e
impessoal, como um sujeito representando a vontade geral impessoal. Deve
aparecer, portanto, “como o poder do próprio direito, ou seja, como o poder de
uma norma objetiva e imparcial” (PACHUKANIS, 2017, p. 146).
Partindo das contribuições de Pachukanis, oferece-se elementos que
tornam possível a análise do direito a partir de categorias jurídicas próprias,
apontando-se para uma compreensão do direito mais rico em determinações
do que a fornecida por Poulantzas, a despeito de suas críticas endereçadas a
Pachukanis
15
, e cujas implicações em última análise são indispensáveis
para se pensar a superação da forma jurídica. “Ora, do mesmo modo que a
extinção, na fase de transição, das categorias econômicas /.../ não implica a
constituição de novas categorias ‘proletáriasdo valor, do capital etc.”, não
o que se falar em “novas categorias jurídicas ‘proletárias’ ou ‘socialistas’”
(NAVES, 2008, p. 89).
Além disso, colocar em evidência a determinação burguesa do direito
não significa anular as conquistas da classe trabalhadora, uma vez que apesar
15
Em Hegemonia y dominación en el estado moderno, Poulantzas classifica o pensamento de
Pachukanis como economicista, criticando-o por reduzir o nível jurídico a instância econômica
(POULANTZAS, 1973, p. 136). Pontua-se, no entanto, que embora Pachukanis “seja acusado
de economicista por derivar o direito das relações de produção /.../. Não vê, Poulantzas, que
embora o conteúdo da legislação e das instituições estatais possam variar conforme a dinâmica
das classes, não escapam, todavia, aos limites estruturais do nível político do modo de
produção capitalista, limites que ele próprio identifica quando analisa o estado a estrutura
de igualdade que nivela, individualiza e isola os agentes e que corresponde ao despojamento
dos produtores diretos face aos meios de produção e às relações de dependência pessoal”
(BARISON, 2014, p. 427).
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de ser possível derivar logicamente a forma jurídica da lógica do capital, o
resultado da luta de classes não é. Trata-se, portanto, não de sustentar um
fatalismo ou reformismo para a conquista de direitos, mas de colocar em
evidência que, não obstante o cumprimento das tarefas e necessidades
imediatas, o horizonte da luta deve ser além dos estritos horizontes do direito
burguês. Nesse sentido, Pachukanis deixa claro o ponto de partida da análise
do direito, e os limites intrínsecos impostos pelo direito a luta de classes:
Não posso concordar que meu trabalho contenha qualquer falta de
entendimento no sentido de concessão ao economicismo ou
distorção fatalista do ensino marxista sobre o desenvolvimento
social. Eu estava levantando dois pontos. Em primeiro lugar, eu
alertei contra confundir as possibilidades reais de poder do estado e
os resultados realmente alcançados por ele, com o que está contido
nas leis emitidas pelo estado /.../. Além disso, afirmei que a divisão
social do trabalho e, consequentemente, a aparência de sujeitos
econômicos como participantes dessa troca, são fatos que não estão
ligados em sua origem aos imperativos do estado /.../. No entanto,
esses fatos contêm os pré-requisitos básicos e principais da relação
jurídica. (PASHUKANIS, 1980, p. 198)
Conclusão
Com isso, delineia-se um quadro geral de compreensão das
proposições centrais do pensamento de Poulantzas sobre o estado e o direito
naquilo que corresponde a suas caracterizações mais gerais, deixando de fora,
contudo, uma análise detalhada de suas contribuições ímpares para análise
dos contornos que o estado capitalista assume nas diversas formações sociais
como fração de classe, bloco no poder, hegemonia etc. Além disso, o fato de
se propor, na presente investigação, a questionar as bases teóricas a partir das
quais Poulantzas desenvolve sua teoria regional de modo algum significa o
abandono das categorias políticas desenvolvidas para a análise de conjuntura.
Estas correspondem a instrumentos teóricos fundamentais, enquanto
termos médios conectando a teoria particular do estado no modo de
produção capitalista à dinâmica concreta de uma formação social específica
que permitem pensar a dinâmica da luta política de classes no seio dos
aparelhos institucionais do estado, enquanto ponto de condensação imediata
das contradições proveniente do choque dos interesses imediatos das classes e
suas frações.
Buscou-se, portanto, no presente artigo, através da crítica à teoria
jurídico-política de Poulantzas, apontar para horizontes teóricos do estado e
do direito que a nosso ver superam as limitações decorrentes do não
estabelecimento de uma relação precisa entre o político e o econômico , cujo
potencial se revela pela capacidade de compreender os limites da ação estatal
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(sobretudo no gerenciamento das crises estruturais do capitalismo), até que
ponto o processo de acumulação do capital engendra transformações nas
condições de produção e as estruturas políticas correspondentes; bem como os
limites impostos pela forma jurídica às conquistas da classe trabalhadora e o
caminho para se pensar a superação da forma jurídica.
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Como citar:
HOSHIKA, Thais. Crítica marxista do estado e do direito: Nicos Poulantzas em
debate. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das
Ostras, v. 26, n. 2, pp. 403-31, jul./dez. 2020.
Data do envio: 2 jul. 2020
Data do aceite: 8 set. 2020