DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.542
Ana Laura dos Reis Corrêa
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Sátira e alienação na construção do narrador não confiável
em Goethe e Machado de Assis
Ana Laura dos Reis Corrêa
1
Resumo:
A partir da leitura de Os sofrimentos do jovem Werther, com base nos artigos
de György Lukács e Miguel Vedda sobre esse romance de Goethe, e
considerando o conjunto da obra de maturidade de Machado de Assis, quando
o narrador assume a condução da narrativa guiando-a no ritmo frívolo e
volúvel do capricho de classe, pretende-se investigar, neste texto, de que
maneira a composição satírica de um narrador não confiável estabelece
conexões entre esses dois escritores que deram forma sensível à alienação de
uma “consciência infeliz”.
Palavras-chave: sátira; alienação; narrador não confiável; Goethe; Machado
de Assis.
Satire and alienation in the construction of the unreliable
narrator in Goethe and Machado de Assis
Abstract:
From the reading of The sufferings of young Werther, and based on the
articles by Gyorgy Lukacs and Miguel Vedda about this novel by Goethe, as
well as considering the whole of Machado de Assis' maturity work, when the
narrator takes over the narrative and guides it in the frivolous and voluble
rhythm of his class interests, this study seeks to investigate how the satirical
composition of an unreliable narrator establishes connections between these
two writers who have given an aesthetic form to the alienation of an "unhappy
conscience".
Keywords: satire; alienation; unreliable narrator; Goethe; Machado de Assis.
No texto crítico Os sofrimentos do jovem Werther, escrito em 1936
sobre o romance de Goethe, György Lukács (2013), contrariando a recepção
dominante desta obra pela historiografia burguesa, associa o sucesso
internacional de Werther, em 1774, à momentânea hegemonia do Iluminismo
1
Doutora em Literatura e professora do Programa de Pós-graduação em Literatura Brasileira
da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: analauradosreiscorrea@gmail.com.
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alemão em relação à persistente liderança de França e Inglaterra nesse terreno
da arte e da filosofia. Lukács afirma que o provável espanto do leitor frente à
associação entre Werther e o Iluminismo deriva de uma “lenda literária” que
interpôs uma espécie de “muralha da China entre o Iluminismo e o classicismo
alemão” (2013, p. 1).
Miguel Vedda (2015), em O jovem Goethe e a literatura sentimental: Os
sofrimentos do jovem Werther como anatomia da consciência infeliz, também
inicia sua análise desse romance do jovem Goethe sublinhando a atmosfera
lendária que envolveu esta obra, que, ao “alcançar uma popularidade quase
mítica” (2015, p. 61), foi sendo “saqueada” de sua complexidade para ser lida
de forma cada vez mais simplificada e estereotipada. A dimensão lendária se
condensou ainda mais pelas crescentes sugestões de aproximação entre ficção
e realidade, entre a vida do personagem-narrador e a biografia do autor.
Dos pressupostos iniciais das duas análises de Werther, expostos
sumariamente, pode-se inferir que o ambiente lendário em que a obra foi
inserida cristalizou (VEDDA, 2015) o efeito crítico em uma espécie de defeito
crítico, que ocultou dimensões essenciais do romance e o afastou de seu núcleo
central e mais potente: a verdadeira tragédia não se restringe ao suicídio por
amor ou por idealismo do espírito livre de artista em confronto com a
sociedade mesquinha e pragmática, mas diz respeito, antes, à condição
alienada do intelectual na modernidade. Tal alienação, expressa especialmente
por um ressentimento intelectual, por uma “consciência infeliz”, por uma
nostalgia (lendária?) pela vida simples e natural, é descristalizada por Goethe,
em Werther, por meio de alguns elementos formais, entre eles a composição
satírica de um narrador não confiável.
No Brasil do século XIX, em condições diferentes das que circundam o
cenário da literatura alemã do século XVIII, Machado de Assis (1839-1908),
um escritor da periferia capitalista, em um momento de viravolta que
produzirá um salto significativo em sua produção literária em direção a uma
maturidade estética ainda inédita na literatura brasileira, também recorrerá à
formulação satírica de um narrador nada confiável para a composição de
romances e contos que alcançaram a complexidade da vida social brasileira em
seu andamento frente ao contexto global do desenvolvimento capitalista.
Sobre a obra madura de Machado de Assis, após a publicação de
Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1881, também se formou uma nuvem
de lendas literárias, cuja densidade não está ligada à aura mítica da
popularidade de Werther, uma vez que a obra machadiana, evidentemente,
jamais alcançou a universalidade do fenômeno goethiano. A realidade
brasileira compartilhava, como a Alemanha, das dores do desenvolvimento das
nações modernas, “sem compartilhar de seus prazeres, de suas satisfações
parciais” (MARX, 2010, p. 153); mais ainda, na escala periférica e perversa da
escravidão, o presente da vida social no Brasil se constituía como o passado
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mais remoto das nações modernas, e as possibilidades de haver no país alguma
liderança no campo do pensamento abstrato era algo obviamente impossível.
Nossa Alfklärung esteve ligada ao processo de independência, apoiado no
discurso ilustrado, porém, o pensamento esclarecido esteve imensamente
distante das lutas políticas reais pelo desenvolvimento e, restrito às apertadas
fronteiras da incipiente elite local, transformou-se em “Perversão da
Alfklärung”, como sintetiza Antonio Candido (2002): a fórmula ilustrada,
reduzida a rótulo de prestígio de classe, não inviabilizava qualquer
possibilidade de horizonte de emancipação popular, quanto reafirmava, pelas
mãos da classe dominante local, a permanência do estatuto colonial e
escravocrata, em meio à importação de formulações ilustradas, e a
dependência, em meio à jovem independência.
Em sua obra de maturidade, Machado dá forma artística a essa matéria
social intensamente contraditória, mas o teor corrosivo de seus romances foi
envolto por uma série de interpretações críticas que, em grande medida,
atuaram no sentido de amenizar as contradições e brechas das estruturas
sociais cristalizadas que seus romances puseram a mostra. Transformado em
um escritor metafisico e diletante, interessado em filosofia, arte e religiões, ou
em um cético e irônico comentador dos costumes urbanos, de costas para
problemas sociais concretos, como a escravidão, Machado foi também muitas
vezes confundido com seus mais importantes narradores em primeira pessoa.
Brás Cubas, Bento Santiago, Conselheiro Aires, personagens que encarnavam
precisamente, como nenhum outro até então, o modo de ser da débil burguesia
local, foram encarados como portadores da visão de mundo de Machado; nada
mais lendário, do ponto de vista literário e histórico, e nada mais difundido
entre o senso comum. Tais desvios críticos do ponto fulcral da obra
machadiana evitaram de todas as formas a exposição do caráter lendário da
própria superfície da vida da classe dominante local, que, no dizer de Oswald
de Andrade, tinha uma vida excelente, mas corrida em pista inexistente.
A obra de Machado começa a ser percebida em sua dinâmica efetiva,
somente em 1960, quando a crítica feminista estadunidense Helen Caldwell
(2002) faz ecoar em seu livro O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um
estudo de Dom Casmurro algumas poucas vozes que, na crítica
contemporânea à Machado, já haviam manifestado alguma desconfiança
quanto ao narrador Casmurro. A partir da relação com Shakespeare, que figura
em D. Casmurro (1899) de maneira ostensiva na cena em que o narrador vai
ao teatro assistir Otelo, Caldwell chama a atenção do leitor para o caráter
parcial e suspeito de Bento Santiago, que imputa à sua esposa Capitu a culpa
por seu destino infeliz, determinado pela simples desconfiança do narrador de
que tivesse sido traído por ela e seu melhor amigo, Escobar. A culpa de Capitu
é definida sem vacilação alguma por Bento, com base em apenas um olhar da
mulher no momento do enterro de Escobar. A partir daí, o narrador passa a
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reconhecer imensa semelhança entre seu filho Ezequiel e o amigo morto, e,
sem enfrentar a sua própria dúvida, decide sentenciar esposa e filho ao exílio
na Europa, como forma de manter a violência de sua atitude peremptória sob
os mantos das convenções sociais do sagrado matrimônio.
A razão do livro escrito por D. Casmurro é, segundo o narrador, “unir as
duas pontas da vida”, justificar sua melancolia, seu ensimesmamento em uma
casa que é a réplica de sua casa da infância, o que acaba por demonstrar a sua
incapacidade de agir, já anunciada pela inércia na infância e na juventude de
Bentinho, sempre à sombra do caráter ativo da menina Capitu. Preso na cópia
do passado suas memórias –, como na cópia da casa materna, Bento Santiago
narra sua transformação em Casmurro, escritor diletante, rico e solitário. A
compaixão que reclama, apoiado nas convenções mais ocas e rígidas, o que lhe
angariou retorno de muitos leitores adestrados nessas mesmas convenções
cristalizadas, é o reflexo de seu mundo vazio e alienado. Como representante
da classe dominante brasileira, Bento Santiago, que sempre viveu de renda,
busca, pela escrita do livro, alcançar o seu verdadeiro objetivo: retorcer e
violentar a realidade segundo a sua vontade minúscula e servil, porém
impositiva e despótica: ser a cópia, sem contradição, de um projeto de vida,
que, embora perdurante, não tem futuro vivo, uma condenação a ser casmurro
que arrasta consigo, e violenta, tudo o que um dia poderia ter sido relação
social viva e humana com Capitu, Escobar, Ezequiel. Essa dimensão local está
articulada a uma causa mais profunda reproduzida pela primeira, como a
réplica da casa original: a condição alienante da vida pequeno-burguesa, que
se impõe como a única vida possível, ainda que seja uma vida casmurra. Bento
Santiago é um personagem escritor, ele narra suas próprias memórias, mas é
incapaz de reconstituí-las como representação viva das forças humanas; assim,
a narrativa das memórias assume a aparência da natureza morta do fetiche:
reprodução unilateral, estática e determinista de um quadro social sem vida,
que esconde, por trás das categorias reificadas (mercadoria, dinheiro, preço
etc.) que determinam a vida cotidiana dos homens, a sua verdadeira essência,
isto é, a de relações sociais entre os homens” (LUKÁCS, 2010, p. 19). Se for
possível essa articulação entre a situação ficcional específica de D. Casmurro,
em sua dimensão local, e o processo histórico mais geral e concreto de
alienação, perceberemos que Bento Santiago é um narrador não confiável não
apenas porque deforma de maneira interessada os fatos narrados, mas porque
sua narrativa de memórias não pode efetivamente recordar o vivido, pois faz
dele algo ainda mais perdido.
O leitor atento de Memórias stumas de Brás Cubas, escrito quase
duas cadas antes, contando com a evolução da crítica machadiana que foi
pontuando o caráter não confiável do narrador, não pode deixar de reconhecer
em D. Casmurro, por um lado, essa feição de cópia, uma visão de mundo que
se impõe mesmo em desacordo com a realidade, com os acontecimentos e com
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a variedade que eles trazem consigo, mas, por outro lado, percebe que essa vida
fantasmática reflete uma condição social e histórica concreta: a da alienação.
Memórias póstumas de Brás Cubas marca uma viravolta na obra de
Machado, concentrada sobretudo na composição do narrador – cujo ponto de
vista paternalista para com os de baixo, nos primeiros romances, passar a ser
o de cima. Schwarz demonstrou que essa mudança do ponto de vista de classe
não se resume “na troca da crítica (moderada) pela apologética, ou do ângulo
dos oprimidos pelo dos opressores”, mas é parte “do novo dispositivo formal”,
no qual
o narrador plantado no alto do sistema local de desigualdades (...) é
uma consciência abrangente, que incita à leitura a contrapelo e à
formação de uma superconsciência contrária do narrador]
(SCHWARZ, 2004, p. 25).
Se considerarmos o caráter satírico que organiza essa estrutura, haveria
alguma conexão possível entre o narrador não confiável de Memórias
póstumas e o de Os sofrimentos do jovem Werther?
Não se trata de pensar essa conexão no sentido de uma influência
imediata. Sabe-se que Machado conhecia a obra de Goethe. Não apenas Os
sofrimentos do jovem Werther, mas também o Fausto e Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister faziam parte da biblioteca de Machado, que,
segundo Pimentel (1974), começou a estudar a língua alemã em 1883, aos 44
anos. As referências a Goethe, no entanto, estão presentes em poemas, contos
e romances, anteriores e posteriores a 1883. São muitos os trabalhos de
pesquisa em torno da influência fáustica na obra machadiana, especialmente
quanto à dimensão luciferina do riso em Machado. A presença do diabo
aparece em 1863 no poema O casamento do diabo, cujo subtítulo sugestivo é
Imitação do Alemão. O diabo também frequenta os contos machadianos, como
o seu A igreja do diabo, de 1883, cujo segundo capítulo remete à cena “Prólogo
no céu” da obra de Goethe. No romance Quincas Borba (1891), o capitalista
Rubião tem em casa um par de estatuetas: Fausto e Mefistófeles. No conto O
espelho, de 1882, o narrador apresenta a teoria das duas almas, uma interior e
outra exterior, mas em Esaú e Jacó, de 1904, uma referência direta a Goethe
no capítulo “Duas almas”, em que o narrador cita Goethe diretamente: “Ai,
duas almas no meu seio moram!”.
Quanto ao Werther, o romance A mão e a luva (1874) e o conto A
mulher pálida (1881) apresentam protagonistas que correspondem ao
estereótipo do jovem apaixonado, exagerado e depressivo. No romance,
Estevão ama Guiomar, mas não é correspondido e acaba sendo rejeitado pela
amada que se casa com o pragmático Luís Alves. Estevão, entretanto, apesar
de pensar em morrer ou em fugir da cidade, acaba brasileiramente por evitar
uma e outra saída, pois, diz o narrador, a “frouxidão do ânimo negou-lhe essa
última ambição”. No conto, o personagem Máximo é uma espécie satírica de
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Werther brasileiro, que, rejeitado por sua amada, uma linda morena, que
lhe dará atenção quando Máximo ganha uma herança de um padrinho, nega o
amor interessado da morena e o de qualquer outra mulher de carne osso, para
sair à procura da mulher mais pálida do mundo, que, desafortunada e
satiricamente, virá a seu encontro na figura da própria morte.
Sem desconsiderar essas e outras relações entre a obra de Machado e a
de Goethe, nos interessa aqui pensar especialmente, embora brevemente, na
conexão mais estrutural da forma de composição do narrador não confiável em
Memórias stumas e D. Casmurro e em Os sofrimentos do jovem Werther.
Antes de chegar às conexões, é preciso considerar uma diferença importante
entre os dois narradores. Werther é jovem, e, de acordo com Lukács (2013),
exerce uma rebeldia que expressa “a insolúvel contradição entre o
desenvolvimento da personalidade e a sociedade burguesa” (2013, p. 11). Bento
Santiago é um homem melancólico e solitário, que rememora, cômoda e
interessadamente, sua história, ao final da vida. Brás Cubas, por sua vez, não
é apenas um narrador velho, é bem mais que isso, é um defunto autor, tão à
vontade e acomodado em sua vida pós-túmulo, quanto o foi na infância,
juventude e velhice, jamais teve paixões extremas que ameaçassem sua paixão
inabalável por si mesmo.
Apesar dessa diferença importante, que se relaciona a muitas outras que
não poderemos abordar agora (pequena burguesia alemã e Brasil escravocrata,
por exemplo), esses narradores velhos são volúveis e o confiáveis como o
jovem Werther. Segundo Vedda (2015), o que caracteriza Werther como um
narrador não confiável é, entre outras coisas, sua incapacidade de expressar
artisticamente os fortes sentimentos e devaneios que lhe povoam o peito.
Bento Santiago demonstra semelhante impossibilidade ao tentar compor um
poema no capítulo “Um Soneto”, em que ele escreve dois versos, mas não
consegue de maneira alguma seguir adiante e conclui melancolicamente:
“nada me consola daquele soneto que não fiz” (MACHADO DE ASSIS, 2015, p.
95). De acordo com Vedda (2015), a incapacidade de Werther está ligada a sua
obsessão por cristalizar esteticamente a vida, promovendo uma relação tão
imediata entre arte e vida que impedia o distanciamento necessário para a
criação artística, assim, diz Vedda: “a contrapelo dos propósitos do autor, o
público leu o Werther nos mesmos termos em que o protagonista do romance
lia Homero ou Ossian: com aquela identificação desprovida de distância crítica
que caracteriza o diletante” (VEDDA, 2015, p. 66, tradução minha).
As declarações de Werther a respeito da vida no campo, acomodada e
simples, também não são dignas de confiança, uma vez que, salienta Vedda,
“nada está mais distante dessa existência familiar singela e sedentária que o
regime de vida de Werther, marcado sempre pela solidão e fuga” (VEDDA,
2015, p. 68). Os narradores machadianos em primeira pessoa dos romances da
maturidade também são expressões de uma extrema incoerência entre o
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declarado e o feito: Brás Cubas “exibe o figurino de gentleman moderno, para
desmerecê-lo em seguida, e voltar a adotá-lo, configurando uma
inconsequência que o curso do romance vai normalizar” (SCHWARZ, 2000, p.
15).
Werther, conforme afirma Vedda, faz um uso totalmente pessoal das
palavras de Cristo, mudando-lhes o sentido original em favor de sua percepção
de mundo isolada, que, idealista, o faz caso das bases concretas sobre as
quais se fundam os fatos. Werther consegue ver aproximação entre sua vida
diletante e a de personagens simples, um criado, uma moça suicida e um
escrevente louco, mas, em realidade, ao contrário de Werther, trata-se de
“seres ingênuos, que, por causa de sua condição social ou mental, estão
incapacitados de refletir sobre si mesmos” (cf. VEDDA, 2015, p. 79).
Em Machado, um dos momentos em que fica mais evidente o caráter
volúvel do narrador é o conhecido episódio do Almocreve, em Memórias
póstumas. Nesse capítulo, um simples almocreve, um condutor de bestas de
carga, livra Brás Cubas de ser arrastado por um jumento no qual acabara de
montar. Sabendo que o almocreve havia salvado sua vida ou evitado um
desastre iminente, Brás Cubas pensa em recompensá-lo:
E era verdade; se o jumento corre por ali fora, contundia-me
deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça
partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, lá se me ia a
ciência em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo;
eu sentia-o no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve!
enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de
consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-
lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal
fosse o preço da minha vida, — essa era inestimável; mas porque era
uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. Está
dito, dou-lhe as três moedas. (MACHADO DE ASSIS, 1955, p. 103)
Ao retornar do susto imediato, porém, Brás Cubas volta a raciocinar a
partir de seu lugar de classe o de proprietário e rentista, alguém que, como
ele mesmo afirma, nunca comprou o pão com o suor do seu próprio rosto”. Ao
perceber a felicidade ingênua do almocreve ante a possibilidade da
recompensa e ao examinar lhe a roupa e classificar o homem que salvou sua
vida como “um pobre-diabo, que jamais vira uma moeda de ouro”, o narrador
muda totalmente de ideia e de atitude, baixa progressivamente o valor da
recompensa – de três moedas de ouro para duas, depois uma, até chegar a um
cruzado de prata. Recompensa que, segundo Brás Cubas, excedeu em muito o
que o almocreve na verdade merecia uns vinténs de cobre esquecidos no
bolso de seu colete -, pois, afinal, reflete o narrador, o trabalhador não agiu
pela recompensa ou pela virtude, mas apenas “cedeu a um impulso natural [de
servir], cedeu aos hábitos do ofício”; ou foi um simples instrumento da
Providência Divina, que também parece estar a serviço de Brás Cubas. O ato
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do almocreve é rapidamente aprisionado na moldura econômica caprichosa de
Brás Cubas. A crescente desvalorização do ato do almocreve na cotação da
consciência de classe do narrador – moeda de ouro, cruzado de prata e vintém
de cobre – deseja anular o próprio almocreve, cujo mérito, como conclui
Cubas, “era positivamente nenhum”. No entanto, para o leitor capaz de tomar
a distância crítica necessária do narrador, a composição da estrutura narrativa
engendrada pelo autor deixa visível o avesso da situação narrada pelo próprio
Brás Cubas: o decréscimo da estatura do narrador, que diminui na mesma
proporção da oferta destinada ao almocreve, até chegar ao núcleo de sua
perspectiva mesquinha e avarenta: “chamei-me pródigo, lancei o cruzado à
conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?) tive
remorsos” (MACHADO DE ASSIS, 1955, p. 104). O valor das palavras
“pródigo” e “remorsos” oscila entre generoso e gastador, entre arrependimento
pelo mal feito ao outro ou em causa própria, reforçando o quanto esse narrador
pouco confiável distorce os fatos segundo seus preconceitos de classe.
Diante desses elementos, a conexão entre esses narradores de Goethe e
Machado, que aparece na estrutura dos textos, é, antes de tudo, a
impossibilidade deles de perceber e interpretar os fatos para além de seus
próprios limites. É sintomático que Werther encarnasse “o modo de sentir e
pensar da juventude burguesa e pequeno-burguesa do período” (VEDDA,
2015, p. 61) e que Brás Cubas e Bento Santiago configurassem a posição de
classe alienada da elite culta local.
A composição desses narradores como não confiáveis se conecta pelo
fato de que seus criadores, Goethe e Machado, foram capazes de dar forma
estética a essa consciência infeliz, seja pela sátira sutil da sensibilidade alemã
(VEDDA, 2015, p. 62) que se refugia da alienação reinante numa nostalgia
falaz; seja pela sátira aberta à desfaçatez da elite culta brasileira, cuja vida
cristalizada busca de todas as formas violentar a realidade em nome de seus
caprichos, mesmo que o saldo do seu inventário final seja o de uma infelicidade
acomodada, como a de Bento Santiago que acaba seus dias como Casmurro,
solitário, escrevendo memórias para atar duas pontas da vida que não se
encontram, ou como a do defunto autor, Brás Cubas, que encerra sua narrativa
vendo, como superávit, as negativas a que sua existência se resume – “Não tive
filhos, o transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”
(MACHADO DE ASSIS, 1955, p. 158).
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Como citar:
CORRÊA, Ana Laura dos Reis. Sátira e alienação na construção do narrador
não confiável em Goethe e Machado de Assis. Verinotio Revista on-line de
Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 194-202,
jan./jun. 2020.
Data do envio: 15 mar. 2020
Data do aceite: 6 maio 2020