DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.575
Gustavo Henrique Lopes Machado
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Teoria da história ou gênese do capital? As diferentes recepções
aos estudos etnológicos de Marx: de Engels à atualidade
Gustavo Henrique Lopes Machado
1
Resumo: No presente artigo, procuramos mostrar, em primeiro lugar, que
Marx estudou, ao menos desde o início dos anos de 1850, continuamente as
comunidades humanas primordiais. Nossa tese é que o cerne de tão vastos e
persistentes estudos não é outro senão a busca das dissoluções históricas que
conduziram a gênese do modo de produção capitalista. Em sentido diverso,
indicamos como Engels interpretou a última etapa desses estudos de Marx,
ilegitimamente, como a fundação de uma teoria geral da história, produzindo
uma série de falsas polêmicas que se estendem até os nossos dias, sobretudo,
no que diz respeito ao estatuto dos extratos que Marx compilou nos anos
finais de sua vida, inapropriadamente denominados Cadernos etnológicos.
Palavras-chave: Marx; comunidades originárias; história.
Theory of history or genesis of capital? The different receptions to
the ethnological studies of Marx: from Engels to the present
Abstract: In this paper, we seek to show, first of all, that Marx has studied,
at least since the early 1850s, continuously the most remote human
communities. Our thesis is that the central objective of such vast and
persistent studies is nothing more than the search for the historical
dissolutions that led to the genesis of the capitalist mode of production. In a
different sense, we indicate how Engels interpreted the last stage of these
studies of Marx, illegitimately, as the foundation of a general theory of
history, producing a series of false polemics that extend to the present day,
above all, with regard to the status of the extracts that Marx compiled in the
final years of his life, inappropriately denominated Ethnological notebooks.
Keywords: Marx; original communities; history.
1
Doutorando pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador do Instituto
Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos (Ilaese). Autor de Marx e a história: das
particularidades nacionais à universalidade da revolução socialista (Sundermann, 2018). E-
mail: gustavohlm@yahoo.com.br.
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“Que diria o velho Hegel se soubesse na outra vida que o universal
[Allgemeine] em alemão e nórdico nada mais significa do que a terra comum
[gemeindland] e que o particular [das Sundre, Besonde] nada mais do que a
propriedade privada separada da terra comum? Eis aí categorias lógicas surgindo
lindamente, afinal, do nosso ‘trato social’.”
Carta de Marx a Engels, 25/3/1868
Se Marx é considerado por muitos o filósofo da história, aquele que
desvelou suas leis gerais e sua estrutura universal, seu início e seu fim,
poucos se atentaram ao fato de ele gastou pouca tinta, e cérebro, no exame de
outras formas de organização social senão a capitalista. Não existe, por
exemplo, uma só obra de sua autoria, nem mesmo artigos ou anotações
pessoais, cuja finalidade proposta fosse desvelar a estrutura e articulação
geral dos modos de produção antigo ou medieval; escravocrata ou feudal.
Quando tratou de tais formas sociais pretéritas foi, sempre, da perspectiva da
forma social presente. Mas há algo aqui pouco notado e que deve, portanto,
ser ressaltado tendo em vista nosso propósito.
De toda a plêiade de formas sociais passadas foram aquelas mais
primordiais, originárias, que despertaram em Marx maior atenção. Se
colocarmos um parêntese em sua formação clássica, típica do ensino europeu
daquela época, povoado de todo o arsenal de textos gregos e romanos, foram
as comunidades humanas mais remotas o alvo central de seus estudos e
investigações. Basta rememorar que nas Formas que precedem a produção
capitalista, extrato dos Grundrisse em que Marx se detêm mais longamente
no exame das formas sociais do passado, a forma social feudal está
praticamente ausente; as formas antigas, greco-romanas, ocupam algumas
poucas páginas e as formas germânicas não chegam a duas páginas contínuas
de exposição. Por outro lado, as comunidades primitivas ou, em uma
tradução mais adequada, originárias quer seja em suas variantes nômades,
sedentárias ou asiáticas estão quase onipresentes em todo esse extrato e,
mesmo, em outros tantos momentos esparsos no curso de todos os
Grundrisse. Qual seria o motivo de tão amplo interesse de Marx por tal tema?
A questão ganhou nova luz quando, no início dos anos de 1970,
Lawrence Krader (1988) compilou e publicou uma série de estudos que Marx
realizou nos últimos anos de sua vida. Trata-se de extratos de obras de
etnólogos cujos trabalhos começavam a despontar. Entre os textos estudados,
destaca-se a Sociedade antiga de Lewis Henry Morgan.
Tais estudos se revestiam, então, de particular interesse, que
estavam na base da constituição do primeiro esboço na tradição marxista de
uma teoria histórico universal. É assim que foi interpretado pelo principal
colaborador de Marx: Friedrich Engels. Ele tomou essas anotações de Marx
sobre a obra de Morgan como se tratasse da posição do próprio Marx e
publicou o livro: A origem da família, da propriedade privada e do estado.
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Mais ainda, apresentou sua própria obra como sendo “a execução do
testamento” de Marx (ENGELS, 2019, p. 19).
Krader e outros autores recentes, ao contrário da interpretação de
Engels, tratam esses últimos estudos realizados por Marx como marcando
uma inflexão em seu pensamento, uma ruptura com o etnocentrismo, com o
eurocentrismo. Em suma, como marcando uma ruptura justamente com uma
teoria linear e universal da história. Nesse trilho, Néstor Kohan (KOHAN,
1998, p. 237) diz que, em particular nesse período, “se produz uma forte
descontinuidade na trajetória teórica e científica de Marx no que diz respeito
aos problemas específicos originados da relação entre capital europeu
ocidental com os povos e países da periferia colonial dependente”. Na mesma
direção, Michael Löwy sustenta que os últimos escritos marcam uma
“ruptura profunda com qualquer interpretação unilinear, evolucionista,
‘etapista’ e eurocêntrica do materialismo histórico” (LÖWY in MARX;
ENGELS, 2013, p. 9).
Um mesmo conjunto de textos e anotações de estudos, como se vê,
deram margem a interpretações opostas. Quando isso ocorre, comumente, é
porque a questão de fundo está mal colocada. Pensamos que esse é
precisamente o caso. Regra geral, o debate a respeito de tais estudos que
Marx realizou gira em torno de se ele teria construído uma teoria unilinear ou
multilinear da história, ainda que tal tema jamais tenha sido posto pelo
próprio autor em seus escritos
2
. Em sentido distinto, a tese que iremos
sustentar no presente artigo é que o centro das investigações de Marx a
respeito das primeiras comunidades humanas está relacionado à busca dos
pressupostos históricos que possibilitaram a emergência da forma social
capitalista.
Para além das falsas questões, associadas a uma suposta teoria da
história, outro problema metodológico pode ser verificado no tratamento dos
materiais produzidos por Marx nos últimos anos de sua vida. Todo um amplo
conjunto de estudos, anotações e escritos por ele produzidos foram tratados
em bloco sob o crivo de temas e rótulos externamente introjetados pelos
intérpretes posteriores: colonialismo, questão nacional, países periféricos,
sociedades não ocidentais, teoria da história e outros análogos. É assim que o
exame de Marx das comunidades humanas mais remotas como nos textos
etnológicos compilados por Krader foram colocados lado a lado com cartas
e rascunhos trocados com jornalistas e ativistas russos a respeito do destino
da propriedade comum da terra ainda existente no país; bem como de
estudos das diversas formas de propriedade fundiária russas tendo em vista
2
Em nosso livro (MACHADO, 2018) demonstramos não existir nenhuma teoria universal da
história no pensamento de Marx, quer seja considerada linear ou multilinear, aberta ou
fechada.
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reelaborar a seção relacionada a renda da terra no Livro III de O capital.
É sob essa chave interpretativa externa e não imanente que a crítica
mais recente identifica os materiais que Marx produziu nos últimos anos de
sua vida os chamados cadernos de 1879-82 como atestando uma inflexão
dita não eurocêntrica em seu pensamento, com maior atenção e interesse em
relação ao mundo colonizado e periférico
3
.
Um caso ilustrativo, nessa direção, é a obra recente de Kevin
Anderson: Marx nas margens: nacionalismo, etnias e sociedades não
ocidentais. Apesar de se tratar de um trabalho interessante em diversos
sentidos, padece do mesmo defeito ao considerar essa ampla gama de
materiais descolados das questões especificamente abordadas por Marx em
seus textos e efetivamente investigadas em seus estudos. É assim que,
tomados em bloco, segundo Anderson “os cadernos de 1879-1882 mostram
uma nova direção no pensamento do filósofo alemão, com uma ênfase maior
nas sociedades não ocidentais” (ANDERSON, 2019, p. 35).
Em verdade, como examinaremos logo adiante, Marx estudou
continuamente as comunidades humanas originárias desde ao menos 1851.
Os chamados cadernos de 1879-82 não constituem, quanto a esse tema,
inflexão alguma. Tal impressão é, muito mais, produto do fato de que tais
textos foram pioneiramente publicados por Krader em princípios dos anos de
1970, enquanto boa parte dos demais materiais apenas foram
disponibilizados recentemente, com alguns poucos volumes publicados.
Além disso, cabe perguntar: qual relação um estudo das formas
primordiais da organização dos homens teria com fenômenos como
colonização, mundo periférico, nacionalidades? Fenômenos típicos da
sociedade capitalista? Poderia ser, talvez, por resquícios de tais relações
sociais diretas e comunitárias ainda se fazerem presentes no século XIX,
sendo abruptamente dissolvidas pela dominação ocidental. Ainda que tal
relação exista, tal tese não explica o fato de Marx não se deter tanto no exame
de tais comunidades em pleno século XIX, focando suas investigações nas
formas mais remotas e originárias de organização social.
3
No livro já citado (MACHADO, 2018, pp. 317-413) e também em artigo recentemente
publicado (MACHADO, 2020), mostramos que existem sim inflexões muito significativas de
Marx a respeito do papel da colonização britânica na Ásia em meados dos anos de 1850. No
entanto, tais mudanças relação alguma possuem com uma suposta teoria unilinear e
eurocêntrica da história. Antes, estão associados ao exame particular dos respectivos
processos em curso e, por meio desses, a descoberta do fundamento oculto do modo de
produção capitalista: a acumulação originária. Isto é, o capitalismo não se funda, como
pensava Marx até então, no desenvolvimento positivo do comercio e da divisão social do
trabalho, mas na violência, na expropriação dos produtores diretos. Existem ainda outras
inflexões importantes de Marx quanto a questão nacional irlandesa na década seguinte. No
entanto, como procuraremos mostrar no curso deste artigo, as investigações dos textos
etnológicos e afins tem em mira objetivos radicalmente distintos do que poderíamos chamar
questão colonial ou nacional.
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Para atestar o que acima indicamos, pensamos que é crucial fazer uma
espécie de catálogo dos estudos que Marx direcionou as comunidades
humanas mais remotas, quando se tornará evidente que não se tratou, de
modo algum, de uma tendência de estudos que caracterizou unicamente os
últimos anos de vida. Mas não somente isso. Para além da enumeração dos
estudos realizados por Marx no período, iremos assinalar brevemente
aspectos contidos na literatura em questão, bem como no contexto em que
ela foi produzida, que colocam em xeque a visão unilateral de que os autores
do século XIX sempre trataram o tema das sociedades não ocidentais de
forma preconceituosa e parcial. Tal visão parcial sobre o mundo não
ocidental era, certamente, dominante, mas não hegemônica. E foi justamente
a essa literatura recente que desconstruía o modo caricatural como era
analisada a oposição do ocidente ante o oriente que, desde muito cedo, Marx
se debruçou.
Somente após realizarmos esse percurso, poderemos indicar, ao final
do artigo, em contraposição as teses de Engels e a de Krader, uma hipótese
alternativa a respeito da motivação principal de tais estudos de Marx e suas
consequências.
Marx e as comunidades originárias
Uma consulta a primeira edição finalizada das Obras completas de
Marx, a primeira MEGA (MARX; ENGELS, 19752001)
4
, a atual edição em
curso da MEGA2, bem como o índice completo dos manuscritos, rascunhos e
cartas de Marx disponibilizados pelo Instituto Internacional de História
Social em Amsterdã
5
nos fornecem uma amostragem significativa da
amplitude de seus estudos sobre as formas de sociedade mais remotas.
À primeira vista, todavia, pode parecer que, no século XIX, quando a
etnografia e a antropologia apenas balbuciavam suas primeiras formulações,
não existia ainda uma base material e histórica ampla o suficiente para que
fosse possível a Marx, e qualquer outro, estabelecer reflexões minimamente
consistentes sobre o tema. Basta mencionar que Marx não conheceu a
enorme gama de textos sumérios, acádios, egípcios que vieram à tona nos
últimos 150 anos, além das inúmeras fontes arqueológicas que, desde fins do
4
Daqui em diante citado como MECW, seguido pelo volume citado.
5
O índice completo dos cadernos de Marx e Engels, que estão no Instituto Internacional de
História Social-IISG/IISH (Amsterdã), está disponível em: <https://search.iisg.
amsterdam/Record/ARCH00860/ArchiveContentList>. Daqui em diante aparecem citados
com a letras A: Manuscritos de Marx, B: Cadernos de excertos de Marx seguido pela
numeração do caderno e S: indicando a paginação dos extratos de Marx, tal como
estruturados no site do IISG/IISH.
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século XIX, foram desenterradas e, somente então, retiradas de seu
esquecimento milenar. No máximo, Marx teve notícias quando em 1872 o
assiriólogo George Smith apresentou, no Museu Britânico, a primeira
tradução da narrativa acádia do dilúvio que integra o que hoje conhecemos
como a Epopeia de Gilgámesh.
Tais ponderações são, certamente, justas. No entanto, são relativizadas
quando nos damos conta de que Marx jamais pretendeu escrever a história
dessas civilizações e, muito menos, apresentar uma filosofia da história que,
como em Hegel, procurasse racionalizar o processo histórico em seu
conjunto. São relativizadas, também, quando nos inteiramos de que o
conhecimento de Marx sobre as primeiras formas de organização humana era
muito superior ao que se poderia julgar à primeira vista. Como esse é um
aspecto pouco refletido entre os inúmeros intérpretes de Marx, mas de
grande relevância para nossos propósitos como ficará nítido mais adiante,
cabe, aqui, uma breve retrospectiva sobre esse itinerário.
Ainda em 1842, Marx estuda a História crítica geral das religiões de
Christoph Meiners (B 12, S. 2-8; B 61, S. 31-43), trabalho repleto de relatórios
de viajantes à distintas comunidades da Sibéria, da América, da África e do
Oriente. Estuda, ainda, Do culto dos deuses fetiches de Charles de Brosses (B
11, S. 2-16; KRADER, 1974, p. 89), publicado em 1760. De Brosses,
colaborador da Enciclopédia de Diderot e D’Alambert, ao comparar as
manifestações religiosas do Egito e da região do Níger, formula uma teoria
materialista sobre as origens da religião. É ele quem associa, pela primeira
vez, o termo fetiche ao fenômeno religioso, designando, por esse termo, as
forças naturais divinizadas. Marx extratou ainda o livro Ideias sobre a arte-
mitológica de Karl August Böttiger (B 12, S. 17-25).
Até esse momento, tais estudos de Marx estão de todo alinhados ao
contexto intelectual alemão da época. Nesse período, consagrou-se, por meio
da chamada Escola Histórica Alemã, uma metodologia histórica que
sistematizou a crítica das fontes de modo a fornecer, segundo a intenção dos
autores, uma via de acesso objetiva ao passado. Daí foi um passo a aplicação
desse método ao texto bíblico, o que fez surgir uma verdadeira saga pela
busca e tradução de textos antigos que servissem de referência para tal
exame. Com maior repercussão encontra-se, sem dúvida, a Vida de Jesus de
David Friedrich Strauss que utilizou o mito como chave interpretativa do
Novo Testamento. Mas Strauss é apenas o mais proeminente de uma plêiade
de outros autores que se aventuraram pelo tema. Dentre eles encontra-se, por
exemplo, o orientador juvenil de Marx: Bruno Bauer. Some-se a isso outro
viés imposto aos debates sobre as mitologias e demais formas antigas de
expressão religiosa pelas elaborações do último Schelling. Friedrich Wilhelm
Joseph von Schelling direcionou todas as suas setas contra as interpretações
dos mitos como um mero produto da imaginação de homens primitivos,
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ingênuos e ignorantes. Nesse cenário, as temáticas do Jesus histórico, das
mitologias antigas e do oriente foram as de maior repercussão na Alemanha
em meados do século XIX e teve como subproduto a descoberta de uma série
de documentos e informações inéditas sobre as civilizações mais antigas.
Distante de todas essas querelas de fundo teológico, parece ser exatamente
todo esse repositório de novas informações o centro do interesse de Marx,
como ficará claro adiante.
Até o início de 1850, Marx tem contato com o estudo das sociedades
primitivas por terceira mão. Sobretudo nas referências constantes as formas
de organização social orientais em textos de economistas políticos como
Adam Smith, John Stuart Mill e Richard Jones. Mas ao fim desse período a
situação se altera por completo. Têm início os escritos que ficaram
conhecidos como Cadernos de Londres: extratos e anotações de leituras que
abarcam mais de uma centena de autores no curso de 26 cadernos. Ali,
revela-se uma peculiaridade das mais inusitadas, raramente notada.
Justamente esses escritos em que aprofunda, pela primeira vez, seus estudos
de economia política, o exame das sociedades originárias ganha espaço
considerável, em abrangência que chega a concorrer com os temas mais
diretamente ligados à economia política. Façamos, aqui, uma breve súmula.
Ainda em 1851, estuda A história natural da sociedade no estado
bárbaro e civilizado de B. W. Cooke Taylor (B 55, S. 83-88; MARX, 1986, pp.
460-70). Esta obra consolida a divisão da humanidade em barbarismo e
civilização, além de dividir as comunidades bárbaras em caçadores, pastores
e agricultores. Cabe notar, de passagem, que tal divisão foi retomada por
diversos autores que Marx estudara nas décadas seguintes, como Phear, Tylor
e Morgan, e adotada pelo próprio Engels em sua A origem da família, da
propriedade privada e do estado. Apesar disso tais categorias e a
periodização proposta jamais foram utilizadas pelo próprio Marx.
No mesmo ano Marx leu e anotou a obra de Arnold Heeren:
Investigações sobre as fontes dos mais proeminentes historiadores e
geógrafos antigos (B 50, S. 76-81; MARX, 1991, pp. 365-71; 464-70).
Tratava-se de uma obra padrão de histórica universal da época e continha um
esquema histórico-evolutivo de causas e consequências então bastante usual:
comunidades baseadas na família e tribos produzem relações internas
despóticas; a emergência da agricultura ocasionam a vida sedentária; a
formação das cidades e do comércio fomentam a divisão do trabalho; a
descoberta da América produz o mercado mundial. Temos, ainda, a
tradicional oposição entre Ocidente e Oriente, este último marcado pelo
poder absoluto do soberano em contraposição ao primeiro marcado pela
separação entre religião e política. Interessante notar que, com exceção da
relação entre agricultura e vida sedentária, todos pares do esquema causal
evolutivo de Heeren serão, em distintos momentos, alvos da crítica de Marx.
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O material mais importante que Marx leu e anotou no ano de 1851 foi,
provavelmente, a seminal História da conquista do México (B 50, S. 35-40;
MARX, 1991, pp. 403-15) e a História da conquista do Peru (B 50, S. 40-48;
MARX, 1991, pp. 416-34) ambas de William Hickling Prescott. É evidente,
nas anotações pessoais de Marx, sua principal preocupação no estudo dessas
obras: as formas de organização social dos incas e astecas, amplamente
analisadas por Prescott e, não tanto, as guerras espanholas de conquista,
tema central de ambos os livros. Ou seja, o interesse primeiro de Marx nesse
estudo em particular, e suas anotações não deixam dúvidas quanto a isso, não
é tanto a questão colonial, mas a organização social de incas e astecas.
A obra de Prescott vem a calhar tendo em vista esses propósitos.
Aborda a geografia, produção, política, cultura e religião dessas civilizações e
procura, ainda, identificar os fatores sociais internos que tornaram a
conquista possível. Apesar de manter a oposição entre povos “civilizados” e
“primitivos” e comparar as sociedades mexicanas e andinas com as asiáticas;
o trabalho de Prescott se distingue de outras obras do período por enfocar as
diferenças sociais entre esses povos. E são justamente essas diferenças que
Marx destaca nos extratos transcritos de ambos os livros. Por exemplo,
Prescott aborda casos em que o despotismo do soberano seria mitigado pela
ausência de castas e pela existência de um corpo judicial popular, nuançando
a visão estabelecida do caráter necessariamente despótico das civilizações
não ocidentais. Adentra em inúmeros detalhes a respeito das formas culturais
de expressão, dos conhecimentos técnicos, dos usos e costumes, das
atividades públicas e privadas, das relações de troca e de trabalho. Sempre
colocando em relevo as diferenças entre Incas e Astecas com relação a cada
tópico examinado.
Cabe menção, nessa mesma direção, os estudos de Marx sobre a
posição social da mulher nas comunidades primitivas e modernas. Em
particular, o trabalho Origem das distinções entre as classes sociais de John
Millar (B 61, S. 6-16; PRADELLA, 2015, pp. 113-5), um discípulo de Adam
Smith. Ainda que seguindo o modelo histórico evolutivo de seu mestre, Millar
contrapôs a concepção generalizada a respeito da natureza inerentemente
patriarcal da família. Segundo ele, na fase primitiva da humanidade, existiria
uma relação livre entre os sexos. O casal surgiria na fase selvagem e a
instituição jurídica do casamento aparecera e se universalizara a partir dos
romanos. Millar faz uma análise inovadora do casamento em grupo,
matrilinearidade e matriarcado em sociedades primitivas baseado em fontes
que vão desde os índios americanos até os lídios e babilônios; dos gregos e
romanos aos povos do Sião, Cochinchina e Camboja. Sustenta a tese de que a
opressão da mulher está relacionada com a emergência das classes sociais,
mas, também, que a relação livre entre os sexos poderia ser restaurada com o
desenvolvimento da manufatura e da sociedade capitalista. Na sequência,
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Marx analisa todo um conjunto de autores do século XVIII que contrapõem a
suposta liberdade da mulher no mundo moderno ocidental a sua suposta
escravidão no mundo oriental e primitivo, tais como A história da mulher de
William Alexander (B 61, S. 50-51), a História do sexo feminino de
Christophn Meiners (B 61, S. 31-43), os Ensaio sobre o caráter, maneiras e
espírito das mulheres de Antoine Leonard Thomas (B 61, S. 49-50) e, por
fim, a História das mulheres de Georg Jung (B 61, S. 16).
Marx retoma, ainda, o estudo das manifestações culturais mais
remotas anotando, em 1852, a História geral da cultura de Wilhelm
Wachsmuth (B 61, S. 18-30; 43-48; 54-56; B 62, S. 3-40, 47-51). Wachsmuth
foi um dos primeiros a entrelaçar a noção de civilização à raça e, sob essa
ótica, apesar do caráter claramente apologético da cultura ocidental e
germânica, descreve muitas particularidades de outras culturas. Por exemplo,
ao apresentar os limites da cultura chinesa e tibetana diz: “sem deuses de
aparência sensível”, “sem mitologia”, “isolados e sem analogia com o resto do
Oriente” (apud PRADELLA, 2015, pp. 114-5). O estudo de Marx englobou
exatamente os dois primeiros volumes da obra de Wachsmuth,
subintitulados: Oriente pagão, Antiguidade clássica, cristianismo, Império
Romano cristão, islamismo e A Idade Média. Assim, apenas o último volume
dedicado ao “período mais recente” ficara de fora das anotações de Marx. Os
estudos das manifestações culturais antigas prosseguiram no primeiro
semestre de 1853 com a História cultural geral da humanidade de Gustav
Klemm, em particular os volumes 6 e 7 dedicados à China, ao Japão e aos
povos do Oriente (B 63, S. 45-46; HARSTICK, 1999, p. 374), além dos Esboço
da história cultural de Wilhelm Drumann (B 61, S. 52-54) e a História geral
da cultura e literatura de Johann Gottfried Eichhorn (B 61, S. 3-5).
Nesse mesmo período tem contato, por meio de Engels, com Uma
geografia histórica da Arábia do reverendo Charles Forster (MECW, 39, pp.
325-8
6
), texto que investiga a origem de vários povos do Oriente Antigo e,
também, com uma compilação de poesias e textos em prosa persas antigos
contidos na Gramática da língua persa de William Jones (MECW, 39, pp.
335-42
7
).
O grande pulo do gato, todavia, se daria no ano de 1853. Marx inicia
uma série de artigos sobre a Índia e China para o jornal New York Daily
Tribune. Para tal, coloca em marcha uma série de investigações que não mais
se interromperiam. Destacam-se, aí, as Viagens de François Bernier (B 63, S.
62-65; MECW, 39, pp.330-5
8
), médico francês que vivera por mais de uma
década na Índia no início do século VII, relatando detalhes do modo de vida,
6
Carta de Engels a Marx, 28 maio 1853.
7
Carta de Engels a Marx, 6 jun. 1853.
8
Carta de Marx a Engels, 2 jun. 1853.
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hábitos e estrutura social das várias comunidades que visitou. Mas, também,
A história de Java de Thomas Stamford Raffles (B 65, S. 3-7; MECW, 39, pp.
344-8
9
); Índia moderna: um esboço do sistema de governo civil e Um
esquema para o governo da Índia de George Campbell (B 65, S. 12-22, 24-
32); Os princípios das monarquias asiáticas de Robert Patton (B 65, S. 37-
39); Esboços históricos do Sul da Índia de Mark Wilks (B 65, S. 7-9; MARX,
2013, p. 432); O algodão e o comércio da Índia de John Chapman (B 65, S.
23-24)
10
, Relato histórico e descritivo da Índia britânica de Hugh Murray (B
65, S. 9-12; MARX, 2013, p. 415) e as Cartas orientais de Jakob Philipp
Fallmerayer (B 65, S. 41-42).
Tais obras estão distantes de descreverem um cenário dualista com
que, normalmente, o Oriente era concebido naqueles tempos, como
despotismo versus democracia. Thomas Raffles, como indica o próprio Marx:
“argumentou persuasivamente que o soberano não era um proprietário
universal de terras: o solo, pelo contrário, era quase invariavelmente uma
propriedade inalienável de seus súditos’’. Fundamentando sua tese, continua
a explicar Marx a partir de Raffles que “terra era minuciosamente dividida
entre as famílias individuais, que não trabalhavam em comum, como em
aldeias semelhantes na Índia, mas cultivavam-na separadamente'' (MECW,
39, p. 348
11
). George Campbell, por sua vez, indica uma coexistência entre
propriedade coletiva e individual com diferentes tipos de organização
comunal: comunidades simples sob a orientação de um único líder;
comunidades democráticas com propriedade comum e redistribuição
periódica de terras; aldeias sujeitas a líderes tributários. Mina, portanto, a
representação dualista de um “Oriente despótico” em contraposição a um
“Ocidente democrático”. Robert Patton estabelece a diferença entre direito de
posse e direito de propriedade, considerando o primeiro um direito
hereditário à posse da terra em troca da obrigação de seu cultivo, segundo
ele, a forma dominante na Índia. Wilks descreve minunciosamente a
divisão do trabalho no interior de muitas comunidades indianas. É ele quem
cunha a ideia de numerosas pequenas repúblicas indiferentes as mudanças
dinásticas no céu político. Dentre outras abordagens.
As principais fontes a respeito das comunidades indianas, contudo,
foram primárias: documentos parlamentares sobre a Índia, documentos
diplomáticos e os famosos livro azuis em que os burocratas ingleses, em
função dos obstáculos para a expansão comercial então almejada na Índia e
China, relatam toda sorte de detalhes dos hábitos, conformação social e
9
Carta de Marx a Engels, 14 jun. 1853. Um longo trecho de Rafles é citado também em O
capital (MARX, 2013, p. 432).
10
Em O capital, Marx escreve: “Uma boa descrição das diversas formas da comunidade
indiana pode ser encontrada em George Campbell, Modern India” (MARX, 2013, p. 432).
11
Carta de Marx a Engels, 14 jun. 1853.
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características específicas de povoações indianas e chinesas, tanto no
ambiente rural como urbano. Citações desses documentos irão povoar os
escritos de Marx para o New York Daily Tribune até o início dos anos de
1860.
Se é verdade que a motivação imediata dos artigos para o Tribune
foram os acontecimentos mais recentes que envolviam a dominação inglesa
nesses territórios: revolta Taping na China, revolta dos cipaios na Índia,
guerra do ópio e assim por diante; o interesse primeiro de Marx, como
atestam suas cartas e anotações pessoais, sempre foram as formas de
organização social mais antigas cujos vestígios ainda era possível entrever.
Por exemplo, em 14 de junho de 1853, Marx escreve a Engels que em “Bali,
uma ilha da costa Oriental de Java, esta organização hindu ainda se mantém
intacta, podendo, além disso, encontrar-se os seus traços no território de
Java”. Ciente das polêmicas sobre o tema complementa: “tal como a questão
da propriedade, esta é uma questão muito controversa entre os ingleses que
escrevem sobre a Índia. Na região montanhosa a sul de Krishna, a
propriedade da terra parece não ter existido” (MECW, 39, p. 348).
Quando, portanto, em fins de 1857, Marx se pôs a escrever, nos
Grundrisse, sobre alguns traços específicos das comunidades humanas
originárias ante o capitalismo, não o fez de forma leviana e apressada. Tanto
é assim que as hipóteses mais gerais dessas análises irão permanecer até os
últimos escritos sobre o tema, as vésperas de sua morte. Mas todo este
processo de investigação sobre tais comunidades estava apenas começando.
Continuemos, portanto, nossa apresentação sumária desses esforços
continuados de Marx.
Em 1860 lê os três volumes recém publicados do etnógrafo alemão
Adolph Bastian: O ser humano na história (MECW, 41, pp. 231-3; pp. 245-
7
12
). O juízo de Marx com relação a esta obra é severo: ele dirá a Engels que
“sua tentativa de apresentar a psicologia em termos de ciência natural’ e a
história em termos de psicologia, é ruim, confusa e amorfa. A única coisa útil
nessa obra são algumas excentricidades etnográficas de vez em quando. E, o
que é pior, muito pretensioso e atrozmente escrito” (MECW, 41, pp. 232-3).
Logo após a publicação do primeiro livro de O capital, Marx se dedica ao
estudo das várias obras do historiador alemão George Ludwig von Maurer (B
111, S. 116-140, 144-162; B 112, S. 5-21; B 133, S. 4-45; B 134, S. 3-95; B 135, S.
3-15; MECW, 42, pp. 547-9
13
; MARX, 2013, p. 147) que, dentre outras coisas,
demonstra a existência da propriedade comunal nas origens da história dos
diversos povos germânicos. Recebe com grande entusiasmo tais trabalhos,
chegando a afirmar em carta a Engels datada de 14 de março de 1868: “O
12
Respectivamente: cartas de Marx a Engels, 19 dez. 1860; e a Lassale, 18 jan. 1861.
13
Carta de Marx a Engels, 14 mar. 1868.
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ponto de vista que apresentei de que as formas de propriedade asiáticas ou
indianas em toda parte marcam o começo na Europa, recebe aqui uma nova
prova (embora Maurer não saiba nada disso)” (MECW, 42, p. 547).
Em 1870, estuda as obras do etnógrafo polaco-francês Franciszek
Duchinski (MECW, 42, pp. 161-4; MECW, 43, pp. 433-6)
14
defensor da tese,
contestada por Marx, das origens mongóis e não eslava dos russos. No ano
seguinte estuda os escritos do oficial prussiano August Franz von Haxthausen
(B 138, S. 16-41)
15
sobre o sistema agrário e a comuna camponesa na ssia.
Segundo Haxthausen, os camponeses russos não conheciam a propriedade
privada dos campos, prados e florestas: toda aldeia era considerada
proprietária. As famílias camponesas apenas recebiam parcelas de campos
para utilização temporária e que, tal como os antigos germânicos estudados
por Maurer, a distribuição se fazia por sorteio. Nos anos seguintes, Marx
estuda ainda As raças nativas dos estados do Pacífico do etnógrafo Hubert
Howe Bancroft (MECW, 46, pp. 394-6)
16
; Anahuac: ou México e os
mexicanos, antigos e modernos de Edward Burnett Tylor (MARX, 2014, p.
543); além dos escritos sobre a história das relações agrárias da Alemanha de
August Meitzen.
Interessante notar que o estudo de todo esse vasto material, sobretudo
após os anos de 1860, é realizado, quase sempre, no momento imediatamente
posterior as respectivas publicações; dando conta de que Marx acompanhava,
na ordem do dia, a evolução de todo tipo de pesquisas sobre o tema. Cabe
menção, ainda, as obras do historiador, etnógrafo e advogado russo Maxim.
M. Kovalevskí (B 156, S. 26-47, 66-90), autor de ensaios sobre a história do
sistema comunal primitivo na Rússia. Marx o conheceu pessoalmente em
1877 e, desde então, estabeleceu com Kovalevskí relações de estreitas por
meio de uma vasta correspondência e mesmo algumas vistas deste último a
Marx em Londres.
Marx retoma em 1879 seus estudos sobre a Índia. Compilou, ano após
ano, os principais acontecimentos políticos, sociais e econômicos do país
entre os anos 664 e 1858 (MARX, 1960). Faz largo uso do livro História da
Índia de Mountstuart Elphinstone (MARX, 1960, pp. 12; 24; 109; 114; 118;
121; 138; 141), mas também A cronologia da Índia moderna de James
Burgess (MARX, 1960, pp. 34; 39; 40; 47; 48; 52; 61; 63; 109; 115; 131; 148),
A história da Índia Britânica de James Mill (MARX, 1960, p. 47), Estudos da
história da renda fundiária em Bengala de Richard Ramsbotham (MARX,
14
Cartas de Marx a Engels, 24 jul. 1865; e a Kugelmann, 17 fev. 1870.
15
Em 4 de fevereiro 1971, Marx solicita a Kulgemann o livro de Haxthausen (MECW, 44, p.
111).
16
Em 1982 Engels extrata a obra de Bancroft por sugestão de Marx. Nos extratos de
Kovalevskí, fica claro que Marx havia entrado em contato com sua obra (B 140, S. 19, 20,
22).
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1960, p. 49) e A história analítica da Índia de Robert Sewell (MARX, 1960,
pp. 26-9; 59; HARSTICK, 1999, p. 600). Um dos temas tratados nessas notas
é justamente as formas de posse da terra na Índia. Se seguiu a esta cronologia
um resumo dos livros de Kovalevskí em que um dos tópicos é intitulado por
Marx: Dominação britânica e seu efeito na propriedade comunitária
indiana (MARX, 1960, pp. 55-6).
Ainda nesse período, Marx diversas obras recém-publicadas sobre a
sociedade indiana, dentre elas A história da Índia, desde o período remoto
até o fim do século XVIII de John Clark Marshman (B 140, S. 28), Índia: ou
fatos apresentados para ilustrar o caráter e condição dos habitantes nativos
de Robert Rickards (B 162, apresentado conjuntamente com os extratos de
Henry Sumner Maine indicados abaixo), A história de Bengala, desde a
primeira invasão maometana até a conquista virtual daquele país pelos
ingleses em 1757 d.C. de Ch, Stewart (B 156, S. 40), A história da Índia,
contada por seus próprios historiadores de Henry Miers Elliot (B 156, S.
40); além de outras tantas mais relacionadas com a dominação e
administração inglesa em terras indianas.
Por fim, nos dois últimos anos de vida Marx se põe a fichar e glosar
uma série de etnólogos cujos trabalhos começavam a despontar na Europa e
nos Estados Unidos. Entre os principais se encontram A aldeia ariana na
Índia e no Ceilão de John BuddPhear (B 162, S. 131-157; KRADER, 1988, pp.
211-48); As instituições primitivas de Henry Sumner Maine (B 162, S. 162-
199; KRADER, 1988, pp. 249-96); A origem da civilização de John Lubbock
(B 168, S. 3-10; KRADER, 1988, pp. 297-309) e, principalmente, Sociedade
antiga de Lewis Henry Morgan (B 162, S. 4-101; KRADER, 1988, pp. 71-209).
Além desses materiais, Marx toma notas também sobre a história, evolução e
situação real dos povos coloniais de James William Bayley Money (B 162, S.
102-30) e os estudos das leis antigas e medievais de Rudolph Sohn (B 162, S.
157-61).
Fica evidente, então, que qualquer que tenha sido a motivação
principal de Marx por tão longos e permanentes estudos a respeito das
comunidades humanas mais remotas, não se trata, de modo algum, de um
interesse circunscrito aos seus últimos anos de vida. Suas pesquisas sobre o
tema foram concomitantes as investigações diretamente ligadas a O Capital.
Não há dúvidas de que o processo de dominação ou colonização levado a cabo
pelos países capitalistas dominantes esteve entre as preocupações de Marx e
com relação a esse tema dedicará não poucos artigos. No entanto, não vemos
uma correlação direta entre esse tema e sua obsessão em compreender as
formas primeiras de organização social entre os homens. Mesmo quando
examina exemplos contemporâneos de sociedades não ocidentais, o material
disponível não deixa dúvidas, na maior parte dos casos, que a preocupação
primeira de Marx são suas formas originárias de organização social e não
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tanto a sua conformação atual. Ao fim desse artigo, apresentaremos uma
hipótese provável a respeito desse tema. Antes, contudo, pretendemos
reexaminar brevemente as hipóteses de Engels e Krader anteriormente
aludidas. Como veremos, elas caem diante do apanhado bibliográfico acima
realizado.
Engels e as comunidades originárias: a tese da teoria da história
É justamente a partir do último compilado de extratos realizado por
Marx que, longe de esclarecer os motivos de tão amplo interesse de nosso
autor pelas primeiras formas humanas de organização social, a maior parte
dos intérpretes posteriores acabaram por turvá-lo de forma quase definitiva,
senão trágica. A começar pelo principal colaborador de Marx, Friedrich
Engels. Este último tomou as anotações de Marx sobre seminal obra de
Morgan, Sociedade antiga, anotações essas que não passavam de meros
fichamentos com raríssimos comentários, como se tratasse da posição do
próprio Marx e publicou o aludido livro: A origem da família, da
propriedade privada e do estado
17
.
Em sua obra, Engels retoma de Morgan a divisão das comunidades
originárias em selvageria, barbárie e civilização sendo as duas primeiras
subdivididas em épocas inferior, média e superior. Em diversos momentos, a
universalização de Engels da análise realizada por Morgan das comunidades
iroquesas nos Estados Unidos é patente. Se não constrói uma periodização de
toda a história humana, o faz com relação aos atos primeiros dessa trama.
Por exemplo, após apresentar as dez determinações fundamentais da
confederação” iroquesa, como configurando a “organização social mais
progressista da qual os índios foram capazes, na medida que não chegaram
além do estágio inferior da barbárie” (ENGELS, 2019, p. 89), dirá ele, que
“onde encontramos a gens como unidade social de um povo, também
podemos procurar uma organização da tribo similar à descrita aqui”
(ENGELS, 2019, p. 92).
Como vimos, desde pelo menos 1851, Marx se deparara, em Cooke
Taylor, com uma proposta análoga de periodização e em momento algum a
adotou. Tanto é assim que, em 1882, após, portanto, os estudos sobre
Morgan, escreve Marx em carta a revolucionária russa Vera Zasulitch que a
“história da decadência das comunidades primitivas ainda está por ser
escrita, e seria um erro colocar todas elas no mesmo patamar” (MARX,
2013b, p. 101, grifo nosso).
17
Uma análise do livro de Engels e sua relação com a Sociedade antiga de Morgan pode ser
encontrada no primeiro capítulo do importante estudo de Jair Antunes (2003, pp. 18-44). A
esse respeito, consultar também o trabalho mais recente de Lucas Parreira Álvares (2019).
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Some-se a isso que a contraposição barbárie e civilização é quase
onipresente em grande parte da bibliografia estudada por Marx que
anteriormente elencamos. Em suas anotações e extratos desses historiadores,
etnólogos e afins, por exemplo naquelas já citadas de Prescott sobre a história
da conquista dos povos Incas e Astecas, vimos que Marx privilegia
nitidamente as diferenças, sobretudo sociais, que o historiador estadunidense
identifica entre ambos os povos. Da mesma forma, a ênfase que Marx confere
nos estudos sobre a Índia de meados dos anos de 1850 por meio de
historiadores como Raffles, Campbell, Patton, Wilks, Chapman, Murray
tende a acentuar os aspectos que colocam em xeque as caricaturas então
consolidadas como a contraposição entre ocidente democrático e oriente
despótico. Tanto é assim que, mais de 20 anos depois, fazendo uso de novos
autores e novos estudos, compilou uma cronologia da história do país em um
período superior a mil anos.
Agregamos aqui outro importante elemento que desautoriza
considerar A origem da família, da propriedade privada e do estado como a
execução do testamento de Marx. Seguindo Morgan, Engels utiliza-se de
aspectos técnicos materiais e não sociais como demarcação entre uma e outra
forma de sociedade. Se nos Grundrisse, apesar de não propor nenhum
ordenamento geral entre as formas sociais, Marx as identifica e as diferencia
pela forma por meio da qual as comunidades humanas se apropriam da
natureza; o critério de demarcação entre uma fase e outra na obra de Engels é
sempre técnico material e jamais social. É assim que Engels distingue as fases
inferior, média e superior da selvageria, da barbárie até a civilização pelos
seguintes elementos técnicos materiais: coleta; uso do fogo; descoberta do
arco e flecha; descoberta da cerâmica; domesticação de plantas e animais;
criação de instrumentos de ferro e a escrita fonética.
Se Marx examinou as comunidades originárias sempre na perspectiva
de sua diferença com o modo de produção capitalista, Engels, partindo de
Morgan, procura, em seu livro, construir uma teoria histórica universal
positiva, encontrando, assim, o encadeamento necessário e universal entre as
múltiplas formas de organização social. Não é nosso interesse aqui
reexaminar toda esta questão. Gostaríamos apenas chamar atenção para o
fato de que esta ênfase obscureceu o real significado dos estudos de Marx
sobre essas comunidades. E Engels é, nesse caso, apenas o primeiro capítulo
da tragédia.
Krader e as comunidades originárias: a tese do Marx etnólogo
Após a publicação desses cadernos de estudos de Marx, utilizados por
Engels, antes de receber nova luz, a questão tornou-se ainda mais obscura.
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100
Como exemplo mencionamos a primeira e razoavelmente difundida edição
desses escritos realizada por Lawrence Krader: The Ethnological notebooks of
Karl Marx (Os Cadernos etnológicos de Karl Marx) ou segundo a edição
alemã: Karl Marx, die ethnologischen Exzerpthefte (Karl Marx, os excertos
etnológicos). Nesse trabalho, tais escritos são tratados, como os títulos
indicam, como sendo de etnologia ou ao menos notas introdutórias de um
trabalho etnológico que, somente então, Marx traria à luz. Mais ainda,
tendem apresentar o tipo de investigação ali presente como sendo uma
particularidade dos últimos anos de vida de Marx. Descobriu-se, assim, um
Marx etnólogo.
Ora, cabe perguntar: com que direito? Não estudara Marx esse tema no
curso de toda sua vida? Caso descobríssemos uma série de anotações e
comentários de Marx sobre obras historiográficas diversas, isto faria de Marx
um historiador? Evidentemente não. E, de fato, não uma única menção de
Marx sobre a intenção em escrever uma obra de etnologia. O Marx etnólogo é
tal como aquele economista, cientista social ou historiador uma ficção.
A asserção que fazemos não é de interesse menor nem um detalhe
pouco significativo. A lenda do Marx etnólogo tem o inconveniente de sugerir
que suas reflexões sobre o tema estão de todo separadas de suas demais
elaborações. Trata-se de um trabalho paralelo, no máximo, tenuemente e
externamente conectado com sua crítica da economia política. O mais curioso
de tudo é que mesmo um antropólogo como Lawrence Krader, sedento por
encontrar o Marx etnólogo, é obrigado, aqui e ali, a admitir o contrário. Diz
ele que tanto nos Grundrisse como em O capital a “comunidade primitiva
aparece como uma categoria e suas relações espontâneas servem, em sua
abstração, para representar a concretização da economia capitalista, em
contraposição a elas”. Em seguida ele afirma de modo categórico que os
“povos primitivos não são tomados cada um por si” (KRADER, 1988, p. 10,
grifo nosso). Como se vê, Krader está ciente de que na crítica da economia
política de Marx as comunidades originárias foram sempre utilizadas para
explicitar as diferenças específicas e, assim, concretizar, no curso da
exposição, o modo de produção capitalista. Apesar disso, acredita ele que,
somente agora, nessas últimas notas de Marx, veríamos surgir o Marx
etnólogo: “A concretização ocorre mais tarde, nos extratos etnológicos dos
anos 1879-1882” (KRADER, 1988, p. 10). Cabe perguntar a Krader: com que
direito pode-se fazer tal afirmação? Qual o motivo desse mero compilado de
extratos de outros autores, realizados nos últimos anos da vida de Marx,
representarem um estágio mais concreto que outros tantos realizados desde
1850?
É inútil discutirmos até que ponto Marx almejou, ou não, escrever um
livro sobre etnologia. Fato é que ele jamais foi escrito. O ximo que
podemos afirmar é que, nesses últimos anos de vida, Marx prometera
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escrever uma brochura sobre as possibilidades futuras no desenvolvimento
da comuna rural russa. Mesmo nesse caso, tratava-se em responder a
questões concretas que envolviam o movimento revolucionário russo de
então. Seja como for, a hipótese de Krader, como aquela concretizada por
Engels, não explicam o fato desses últimos estudos de Marx sobre etnologia
não passarem de uma mera continuidade de outros tantos realizados desde
ao menos 1851, sem que as respectivas teses e periodizações presentes em
todos os autores estudados no curso de mais de 30 anos tenham sido jamais
subscritas.
A real tese de Marx: a acumulação ou expropriação originária
Por outro lado, podemos encontrar dois motivos fartamente
documentados que dão conta do interesse de Marx por essas sociedades
originárias. Eles não remetem, de modo algum, a intenção de escrever uma
história empírica das comunidades primitivas e sua decadência, mas de
determinar a especificidade de nosso presente capitalista à luz das formas de
organização social precedentes.
O primeiro desses motivos fora enunciado por Krader nas linhas
acima e tem sua razão de ser. Marx não parte, em sua exposição do modo de
produção capitalista, de nenhum princípio tomado dogmaticamente como
universal e primeiro, de nenhum axioma, de nenhum fundamento geral das
sociedades humanas. Ele pode determinar as formas específicas que
caracterizam esse modo de produção comparando-o a outras formas sociais
de produção. As comunidades originárias, nesse contexto, emergem com
interesse maior entre todas as demais formas de sociedade que se seguiram.
Afinal, são elas que assinalam a máxima diferença em relação ao capital e o
capitalismo e, por isso mesmo, mostram-se as mais adequadas para revelar
muitas das especificidades da forma social regida pela relação capital.
Nessa direção as comunidades originárias e outras a elas correlatas
emergem em inúmeras passagens de O capital. Por exemplo, ao tratar da
forma mercadoria diz Marx que na “antiga comunidade indiana, o trabalho é
socialmente dividido sem que os produtos se tornem mercadorias” (MARX,
2013, p. 120). Quando aborda a necessidade de desenvolvimento da
propriedade privada como pré-condição da generalização das trocas diz: “tal
relação de alheamento mútuo não existe para os membros de uma
comunidade natural-espontânea”. Em seguida indica que essa comunidade
natural não se reduz, de modo algum, a uma única forma e complementa:
“tenha ela a forma de uma família patriarcal, uma comunidade indiana
antiga, um estado inca etc. (MARX, 2013, p. 162). Aqui, é possível notar,
como em outras passagens que trataremos mais adiante, que, sob nenhum
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102
aspecto, Marx reduz as comunidades primitivas a uma única forma, mas as
considera, nos dizeres de Krader, em sua abstração, isto é, em relação ao
modo de produção capitalista. No mesmo sentido, quando analisa a
especificidade da forma de cooperação do trabalho no capitalismo, assinala
que as comunidades originárias baseiam-se, por um lado, na apropriação
“comum das condições de produção e, por outro, no fato de que o indivíduo
isolado desvencilhou-se tão pouco do cordão umbilical da tribo ou da
comunidade quanto uma abelha da colmeia” (MARX, 2013, p. 397).
Inúmeros outros exemplos poderiam ser mencionados e detalhados.
Mas não se trata unicamente desse aspecto. Além de se referir as
formas históricas pretéritas no intuito de determinar a forma social presente,
Marx busca, ainda, os pressupostos históricos dessa última. O capital não
emergiu do nada, seus pressupostos históricos nos remetem,
retrospectivamente, para a dissolução das comunidades originárias, para o
longo processo histórico no curso do qual os produtores diretos foram
expropriados e objetivamente separados de todas as condições objetivas de
existência. Nas últimas linhas do Grundrisse esse processo é anunciado de
forma mais nítida:
A propriedade comum foi redescoberta recentemente como uma
curiosidade própria dos eslavos. Na realidade, entretanto, a Índia
oferece-nos um mostruário das mais variadas formas de tal
comunidade econômica, mais ou menos em dissolução, mas ainda
inteiramente reconhecíveis; e uma investigação histórica mais
profunda reencontra tal comunidade como ponto de partida de
todos os povos civilizados. O sistema da produção fundado na
troca privada é, em primeiro lugar, a dissolução histórica desse
comunismo desenvolvido natural e espontaneamente. Contudo,
toda uma série de sistemas econômicos entre o mundo moderno,
em que o valor de troca domina a produção em toda a sua
profundidade e extensão, e as formações sociais cujo fundamento é
constituído pela propriedade comunal dissolvida (MARX, 2011,
p. 757, grifo nosso).
A referência a esse longo processo histórico, iniciado com a dissolução
das comunidades originárias, cujo aprofundamento culmina no modo de
produção capitalista, é anunciado, também, em O capital. Marx diz que o
capital “só surge quando o possuidor de meios de produção e de subsistência
encontra no mercado o trabalhador livre como vendedor de sua força de
trabalho”. Na sequência, indica que a emergência do trabalhador livre
contraposto ao possuidor dos meios de produção remete para muito além dos
umbrais do capitalismo: “essa condição histórica compreende toda uma
história mundial” (MARX, 2013, p. 245)
18
. No Livro II, por sua vez, podemos
18
É evidente que no desenvolvimento interno de toda essa histórica mundial indicada por
Marx, que culminou no modo de produção capitalista, o mundo ocidental passou por
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ler que a venda generalizada da força de trabalho “pressupõe processos
históricos que decomponham a conexão originária entre os meios de
produção e a força de trabalho” (MARX, 2014, p. 114). O processo de
dissolução das comunidades originárias coincide, portanto, com o processo
de gênese do modo de produção capitalista. A análise desse processo está
explicitamente presente no capítulo 24 de O capital. Mas justamente aí, nesse
célebre capítulo, em que se examina o pressuposto histórico do capital, temos
uma questão das mais intrigantes.
Foi pouco notado que o logo trecho dos Grundrisse conhecido como:
Formen corresponde exatamente ao capítulo 24 do Livro I de O capital: A
acumulação originária
19
. Como demonstrou Roman Rosdolsky, Marx
procurava, nos Grundrisse, a forma mais adequada de exposição de sua
obra. Apesar de muitas alterações relevantes nas constantes montagens e
remontagens de sua crítica à economia política nos anos que se seguiram,
podemos encontrar, nos Grundrisse, uma clara tentativa de ordenar
adequadamente todo material analítico até então produzido. Não sem razão,
em não poucos aspectos, a exposição dos Grundrisse coincide com aquela de
O capital. Vejamos!
Após um longo capítulo do dinheiro que corresponde, em linhas
gerais, a primeira seção de O capital, temos, na sequência, o que os editores
do manuscrito denominam Capítulo do Capital que compreende
respectivamente a análise da transformação do dinheiro em capital, o
processo de trabalho e valorização, bem como a análise da mais valia absoluta
e relativa, temas tratados respectivamente nas seções II a V da obra máxima
de Marx. Na sequência do manuscrito, na seção [Reprodução e acumulação
do capital], ainda segundo os títulos dos editores, Marx aborda exatamente os
temas correspondentes aos primeiros capítulos da seção VII do Livro I.
Somente então temos duas seções encadeadas: Acumulação originária de
capital e as [Formas que precederam a produção capitalista], que
correspondem exatamente ao Capítulo 24 de O capital.
Tanto é assim que, na sequência das Formen, será abordado os temas
do circuito do capital, capital fixo e circulante, tratados precisamente nas
diversos modos de produção. No entanto, nunca esteve entre suas preocupações examinar a
lógica interna desses modos de produção pretéritos, menos ainda uma ordem necessária
entre eles. Quando os examinou, ou se tratou da busca das especificidades das categorias do
modo de produção capitalista em contraste com seu outro ou se tratou da busca de seus
pressupostos históricos. Examinamos exaustivamente a questão em nosso livro (2018)
citado.
19
Uma exceção notável é o trabalho recente já citado de Lucia Pradella (2015): Globalisation
and the critique of political economy. Ali, a autora nota que as relações de propriedade nas
primeiras comunidades humanas “variavam muito na forma, mas todas as formas sociais
(oriental, eslava, antiga e germânica), para Marx, pressupunham a propriedade da
comunidade. Isso explica por que, nos Grundrisse, ele procura traçar o processo de
dissolução de tal unidade original” (PRADELLA, 2015, p. 137).
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104
duas primeiras seções do Livro Segundo. No entanto, apesar dessas
coincidências nada arbitrarias, emerge daí uma diferença significativa que
queremos chamar a atenção. Se, nos Grundrisse, Marx trata do tema da
expropriação dos produtores diretos desde a dissolução das comunidades
originárias; em O capital, a análise principia pela dissolução dos laços de
dominação feudais na Europa que fizeram culminar, na Inglaterra, no modo
de produção capitalista. Do exame de toda uma história mundial que
expropriou os produtores diretos de suas condições objetivas de existência, o
que vemos em O capital é uma análise restrita aos últimos capítulos dessa
odisseia. Quais seriam os motivos dessa mudança de abordagem?
Ora, em todo material então disponível não existe uma resposta
definitiva a presente questão. Como indicamos, Marx manteve, até o final
de sua vida, as mesmas hipóteses esboçadas nas Formen no que diz respeito à
gênese do capital como fundada na dissolução daquelas comunidades
originárias. O mais provável, portanto, é que a abordagem restrita na versão
final de O capital se deu em função de considerar insuficiente o material
empírico e histórico então disponível sob o presente tema. Por esse motivo,
sua generalização da propriedade coletiva a todos os povos em sua origem,
bem como a dissolução dessa apropriação comum como pressuposto
histórico mais geral que culminou na sociedade capitalista, permanece, para
Marx, como uma tese, ainda não suficientemente atestada pelas evidências
empíricas então disponíveis.
É, de fato, nesses termos que ele se refere a questão em diversos
momentos. Quando estuda Maurer, em passagem citada, diz que as
análises desse último confirmam, quanto a universalidade originária da
propriedade coletiva, o "seu ponto de vista". Em outro trecho do Livro III de
O capital, ao discutir a relação entre preço de produção e valor, Marx alude a
sua opinião /.../ de que a transformação dos produtos em mercadorias
resulta do intercâmbio entre diversas coletividades, e não entre membros de
uma e mesma comunidade” (MARX, 2017, p. 211, grifo nosso)
20
. Como se vê,
as várias asserções que Marx realiza sobre as comunidades originárias e sua
decomposição são, sempre, anunciadas como seu “ponto de vista”, “sua
opinião”, em suma, sua tese.
Nossa hipótese, portanto, é que tais investigações de Marx sobre as
comunidades originárias tem por objetivo verificar e fundamentar a tese por
ele mesmo anunciada justamente nas linhas finais dos Grundrisse quando o
manuscrito fora interrompido: “O sistema da produção fundado na troca
20
Em nota, Engels comenta este trecho dizendo que “Em 1865, isso era ainda uma simples
opinião de Marx. Hoje, a partir da ampla investigação das comunidades primitivas, de
Maurer até Morgan, é um fato que quase não se questiona em parte nenhuma”. Temos um
claro indício da tendência apressada de generalização de Engels, como comentamos no
caso de A origem da família...
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privada é, em primeiro lugar, a dissolução histórica desse comunismo
desenvolvido natural e espontaneamente”. No entanto, na altura da redação
de O capital, e mesmo depois, jamais considerou as evidências disponíveis
amplas o suficiente para referendá-la.
A presente hipótese explica o motivo de Marx ter continuado a
estudar, durante toda sua vida, e com maior intensidade em seus últimos
anos, os textos etnológicos e afins. Explica, ainda, o motivo de ter restringido,
temporal e espacialmente, a exposição dos pressupostos históricos do modo
de produção capitalista no célebre capítulo A acumulação originária.
Expropriação originária como gênese da civilização ocidental
Por fim, chamamos a atenção que a tese por nós assinalada abre
perspectivas inéditas de investigação que extrapolam largamente a mera
exegese dos textos de Marx. Para além de todos esses aspectos internos a sua
obra, acreditamos que a forma e o modo como se deu a decomposição das
comunidades originárias, particularmente em sua forma mais desenvolvida
no mundo greco-romano, fornecem-nos, particularmente, os “ingredientes”
sociais que nos permite compreender a base social que possibilitou o
desenvolvimento filosofia e sua subsequente cristalização metafísica. Não
apenas como um fenômeno autônomo do pensamento ou, ainda, associado a
características de todo específicas do mundo grego, mas como um fenômeno
brota de características sociais que, uma vez originadas, continuaram a se
desenvolver até atingir sua plenitude sob a forma capital. Isto faz da crítica à
economia política de Marx uma crítica as bases sociais que nos remetem não
apenas a sua atualidade, mas se volta, de forma demolidora, igualmente
sobre sua gênese e desenvolvimento.
Insistimos sobre esse último aspecto. Os elementos que caracterizam a
dissolução das comunidades originárias no mundo greco-romano
caracterizam-se, sem dúvida, por transformações que se originaram de
acontecimentos históricos particulares e, em alguma medida, acidentais, mas
que fizeram emergir uma situação socialmente distinta e com traços
estruturais que permaneceram. Novos contornos que passam a caracterizar
aquilo que a tradição consumou sobre o nome de história ocidental.
Até os dias de hoje, contudo, tais especificidades que conformam o
mundo ocidental veem sendo acentuadas apenas no que diz respeito aos seus
traços culturais e políticos. Como demonstra as querelas da passagem do
mŷthos ao logos e o debate historiográfico do milagre grego. Some-se a isso
a imagem do mundo ocidental como a conjunção entre filosofia grega, direito
romano e cristianismo.
Nas Formen, Marx denomina a sociedade greco-romana como a
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“segunda forma de propriedade” uma vez que produziu alterações
fundamentais, alterações locais, mas históricas” (MARX, 2011, p. 390). Que
alterações históricas seriam essas? Em que sentido seriam históricas?
Segundo Marx, para os indivíduos imersos naquelas comunidades
originárias, as condições objetivas de existência emergem como “o corpo de
sua subjetividade preexistente como natureza inorgânica, ou seja, o corpo
objetivo de sua subjetividade, uma extensão de sua subjetividade” (MARX,
2011, p. 389). Nesse contexto originário, os nexos diretos que unem os
indivíduos enquanto membro imediato do todo comunitário faz com que os
elementos objetivos sob nossa perspectiva exteriores aos indivíduos se
afigurem como corpo objetivo de sua subjetividade. A subjetividade dos
membros do corpo comunitário não está dissociada dos elementos que lhe
são exteriores. Ela está associada diretamente o emaranhado de eventos e
fenômenos com os quais se defrontam. A natureza inorgânica serve
diretamente de material de expressão de sua subjetividade.
Quando Marx examina a dissolução mais profunda dessas
comunidades originárias naquela segunda forma de propriedade, a greco-
romana, vemos que, pela primeira vez, os discursos humanos se separam
conscientemente de seu, até então, firme chão. A subjetividade dos homens
se descola de seu corpo objetivo. A respeito dessa forma de sociedade explica
Marx: “tem como pressuposto a entidade comunitária, todavia, não mais
como substância, na qual os indivíduos são meros acidentes, ou, ainda,
componentes puramente naturais” (MARX, 2011, p. 390). Os indivíduos, em
sua variabilidade imanentes, deixaram de ser mero acidente de uma entidade
comunitária substancial. Isto ocorre porque “a propriedade do indivíduo não
é imediatamente, diretamente e por si propriedade comunitária”. Por um
lado, sua propriedade se desgarra do vínculo umbilical com a comunidade e,
por outro, seu acesso a esta ocorre de forma mediada. Emerge um organismo
de todo estranho: a comunidade política, a ação mútua dos indivíduos
proprietários. “A comunidade– agora considerada estado mostra-se como
dupla faceta: Por um lado, a relação recíproca entre estes proprietários
privados livres. [Por outro lado,] seu vínculo com o exterior, isto é, sua
garantia” (MARX, 2011, p. 391).
Se seu ser como proprietário privado revela-se diretamente na posse e
uso contínuo de sua propriedade, seu ser como membro do estado não possui
qualquer vínculo imediatamente reconhecível. A comunidade não é mais
reconhecida tão somente na relação direta entre seus membros. Ela aparece,
agora, também, como unidade geral, como um ente autônomo: um espaço
público, formal, a priori. Não como um mero ente externo e sobreposto a
cada indivíduo, família como um outro. Antes, como algo universal que o
constitui objetivamente.
Vemos surgir, no interior mesmo do corpo social, o universal, o
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conceito que, de um modo místico e obscuro, confere ao interesse particular o
estatuto de geral. Tal processo irá se desenvolver no curso dos séculos, não
sem idas e vidas, não sem obstáculos e contingências de todos os tipos,
culminando no modo de produção capitalista.
Transparece, pois que em todos os estudos que Marx realizou sobre
aquelas comunidades humanas mais remotas, não estava a fazer uma história
das comunidades primitivas. Ele busca determinar, esclarecer, desvendar o
modo de produção capitalista, produto de um longo processo histórico de
dissolução daquelas comunidades. Mas se tal busca se faz necessária é porque
em nossa sociedade atual as coisas não se apresentam da forma direta, clara e
transparente como outrora. Entre os indivíduos e as coisas se elevou uma
dimensão intermediária: dimensão das mediações sociais. Daí a necessidade
de expressá-las, subjetivamente, em representações simbólicas universais,
conceituais. Representações quase sempre enigmáticas e obscuras, ao não
traduzirem, imediatamente, a abrangência de suas relações e significados.
Todo esse processo tem no capital o seu ponto culminante. Sua gênese,
contudo, data da dissolução dessas comunidades naturais e infinitamente
diferenciadas. Como dirá Marx em passagem citada: as condições
históricas de existência do capital surgem “quando o possuidor de meios
de produção e de subsistência encontra no mercado o trabalhador livre como
vendedor de sua força de trabalho”. A investigação desse pressuposto, por sua
vez, “compreende toda uma história mundial” (MARX, 2013, p. 245).
Pensamos que nessas linhas estão dados os elementos fundamentais
para que possamos estender a gênese do capital para a dissolução das
comunidades originárias, o que o próprio Marx evitou de fazer em O capital,
segundo supomos, pelas limitações das fontes históricas e etnológicas então
disponíveis. Assim compreendido, a crítica dessa forma histórica particular
nos fornece uma chave para a crítica das expressões subjetivas autônomas,
conceituais, miméticas, alegóricas, em uma palavra, metafísicas. O oceano de
palavras e discursos no interior do qual a consciência teórica ocidental
encontra-se imersa. Assim compreendida, a crítica a sociedade burguesa
mostra-se, ao mesmo tempo e inseparavelmente, como crítica à metafísica.
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Como citar:
MACHADO, Gustavo Henrique Lopes. Teoria da história ou gênese do
capital? As diferentes recepções aos estudos etnológicos de Marx: de Engels à
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Gustavo Henrique Lopes Machado
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atualidade. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio
das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 85-109, jul./dez. 2020.
Data do envio: 31 ago. 2020
Data do aceite: 2 nov. 2020