Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Gustavo Henrique Lopes Machado
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século XIX, foram desenterradas e, somente então, retiradas de seu
esquecimento milenar. No máximo, Marx teve notícias quando em 1872 o
assiriólogo George Smith apresentou, no Museu Britânico, a primeira
tradução da narrativa acádia do dilúvio que integra o que hoje conhecemos
como a Epopeia de Gilgámesh.
Tais ponderações são, certamente, justas. No entanto, são relativizadas
quando nos damos conta de que Marx jamais pretendeu escrever a história
dessas civilizações e, muito menos, apresentar uma filosofia da história que,
como em Hegel, procurasse racionalizar o processo histórico em seu
conjunto. São relativizadas, também, quando nos inteiramos de que o
conhecimento de Marx sobre as primeiras formas de organização humana era
muito superior ao que se poderia julgar à primeira vista. Como esse é um
aspecto pouco refletido entre os inúmeros intérpretes de Marx, mas de
grande relevância para nossos propósitos como ficará nítido mais adiante,
cabe, aqui, uma breve retrospectiva sobre esse itinerário.
Ainda em 1842, Marx estuda a História crítica geral das religiões de
Christoph Meiners (B 12, S. 2-8; B 61, S. 31-43), trabalho repleto de relatórios
de viajantes à distintas comunidades da Sibéria, da América, da África e do
Oriente. Estuda, ainda, Do culto dos deuses fetiches de Charles de Brosses (B
11, S. 2-16; KRADER, 1974, p. 89), publicado em 1760. De Brosses,
colaborador da Enciclopédia de Diderot e D’Alambert, ao comparar as
manifestações religiosas do Egito e da região do Níger, formula aí uma teoria
materialista sobre as origens da religião. É ele quem associa, pela primeira
vez, o termo fetiche ao fenômeno religioso, designando, por esse termo, as
forças naturais divinizadas. Marx extratou ainda o livro Ideias sobre a arte-
mitológica de Karl August Böttiger (B 12, S. 17-25).
Até esse momento, tais estudos de Marx estão de todo alinhados ao
contexto intelectual alemão da época. Nesse período, consagrou-se, por meio
da chamada Escola Histórica Alemã, uma metodologia histórica que
sistematizou a crítica das fontes de modo a fornecer, segundo a intenção dos
autores, uma via de acesso objetiva ao passado. Daí foi um passo a aplicação
desse método ao texto bíblico, o que fez surgir uma verdadeira saga pela
busca e tradução de textos antigos que servissem de referência para tal
exame. Com maior repercussão encontra-se, sem dúvida, a Vida de Jesus de
David Friedrich Strauss que utilizou o mito como chave interpretativa do
Novo Testamento. Mas Strauss é apenas o mais proeminente de uma plêiade
de outros autores que se aventuraram pelo tema. Dentre eles encontra-se, por
exemplo, o orientador juvenil de Marx: Bruno Bauer. Some-se a isso outro
viés imposto aos debates sobre as mitologias e demais formas antigas de
expressão religiosa pelas elaborações do último Schelling. Friedrich Wilhelm
Joseph von Schelling direcionou todas as suas setas contra as interpretações
dos mitos como um mero produto da imaginação de homens primitivos,