Vitor Bartoletti Sartori
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Apresentação das traduções
Vitor Sartori
1
O presente dossiê conta com três traduções de textos de Engels, bastante
representativas de sua obra. Podemos dizê-lo tanto ao analisar a dimensão formal
da apresentação de nosso autor quanto ao olhar para os conteúdos tratados.
Esboço para uma crítica da economia política (1844), O declínio do
feudalismo e a ascensão da burguesia (1884) e O Livro de apocalipse (1883)
expressam tanto temáticas típicas de Engels quanto trazem à tona peculiaridades
de seu modo de exposição. Sobre este último assunto, inclusive, é possível
analisar a evolução da questão no principal interlocutor de Marx: enquanto, no
texto de 1844, traz diversas temáticas em sua relação imanente, isto não se
plenamente nos textos da década de 1880.
Em sua análise da economia política, seu texto “de juventude” correlaciona
teologia, religião, filosofia, economia e o desenvolvimento do capitalismo, de
modo a tentar explicitar o movimento histórico do presente, ao mesmo tempo em
que procura realizar uma crítica imanente de autores como Smith, Day, Malthus
e Ricardo. O seja, o autor, imbuído de uma linguagem bastante próxima da
terminologia hegeliana (a noção de eticidade, por exemplo, é central no texto),
traz uma crítica ao comércio, à legitimidade da propriedade privada, ao
liberalismo e à divisão do trabalho. Ao mesmo tempo, já se nota uma importante
referência a Feuerbach, referência esta que ocorre de modo bastante sui generis:
ao abordar as categorias de valor e de preço, por exemplo, Engels procura
demonstrar como a questão aparece de cabeça para baixo na economia. E
acrescenta que, sobre o assunto, pode-se consultar o autor dA essência do
cristianismo. A referência é peculiar pois, embora em Feuerbach esteja presente
a crítica à inversão hegeliana entre sujeito e predicado a que Engels parece estar
fazendo referência, o no mencionado autor um tratamento da economia
política, ou mesmo da atividade humana sensível em seu desenvolvimento
essencialmente histórico. Ou seja, tem-se categorias típicas do pensamento
hegeliano com bastante destaque (eticidade, reconciliação, oposição,
contradição, por exemplo), categorias utilizadas por Feuerbach aparecem
também (a noção de gênero, bem como sua correlação com a natureza), mas o
modo pelo qual elas se correlacionam não torna Engels simplesmente hegeliano,
feuerbachiano
2
ou qualquer outra coisa. No mencionado texto, o pensamento
1
Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Autor de Ontologia nos extremos: o
embate Heidegger e Lukács, uma introdução (Intermeios, 2019). Coeditor da Verinotio. E-mail:
vitorbsartori@gmail.com. Revisão ortográfico-gramatical de Vânia Noeli Ferreira de Assunção e
Ester Vaisman.
2
Não obstante nosso autor dizer, em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, que,
por determinado período, teria sido, juntamente com seus companheiros de debate,
feuerbachiano.
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engelsiano, não obstante com referências a outros pensadores em momentos
centrais, coloca-se sobre os próprios pés. E, assim, o resultado é algo que não
pode ser rotulado apressadamente.
Em verdade, -se o oposto: a necessidade da compreensão das
determinações do próprio pensamento de Friedrich Engels. Sobre este ponto,
deve-se destacar que a importância do questionamento substancial da
propriedade privada, esta última vista a partir de uma crítica a categorias como
renda, juro, lucro categorias típicas da economia política , explicita-se neste
texto. E nele de se perceber como a lida com os interesses materiais
antagônicos, bem como com as contradições da moderna sociedade civil-
burguesa, leva nosso autor à crítica à economia política e à sua base. Ou seja,
Engels traz uma temática nova, e que será desenvolvida com todo o cuidado por
Marx posteriormente; por mais que empregue categorias que aparecem em
outros autores de sua época, a conformação de seu pensamento depende da
posição crítica quanto à economia política e à sociedade capitalista, sendo
necessário compreender como isto se dá efetivamente.
Sua exposição, dessa maneira, expressa uma linguagem tipicamente
“filosófica” em categorias como eticidade e oposição; porém, isto ocorre ao trazer
à tona categorias “econômicas” e “políticas”, que usualmente não estariam
correlacionadas. O pensamento engelsiano, então, não pode aceitar um
tratamento simplesmente temático de algo tão importante como a realidade
efetiva de sua época. E, com isto, ele traz uma exposição imanente da realidade,
em que a tônica é o questionamento teórico e prático das oposições aceitas pela
economia política. Na base das coisas está aquela oposição entre o natural e o
humano, mas, em um nível mais imediato, a oposição entre o interesse geral e o
individual é central ao autor. Tendo tais oposições como um pressuposto, a
economia política naturaliza o momento presente e vem a tomar como ponto de
partida teórico oposições que estão reconciliadas na própria realidade, como
aquela entre a concorrência e o monopólio (Engels tenta mostrar que a primeira,
em verdade, é efetiva na segunda); oferta e demanda também figuram como
oposições que se resolvem não na harmonia social, mas nas crises e naquilo que
nosso autor chama de antieticidade, ou seja, a dissolução e desagregação das
relações sociais que vigem na sociedade moderna, em meio ao comércio, à
concorrência e à crise tendencialmente universal.
A antieticidade, dessa maneira, explicita-se em certa desumanidade, em
que os homens são atomizados e destituídos de consciência genérica
3
. As
contraposições entre os indivíduos, assim, teriam uma forma essencialmente
social na moderna sociedade civil-burguesa. E a exposição de nosso autor traz
essa temática à tona em seu “genial esboço”, que, tendo criticado a naturalização
de tal condição, foi mencionado de modo elogioso por Marx em diversas ocasiões,
até o final da vida do autor de O capital.
3
Aqui não podemos tratar do tema, mas de se perceber que ele, bem como muitos outros do
Esboço de Engels, serão retomados nos Manuscritos econômico-filosóficos escritos por Marx em
1844.
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Sobre este tema as oposições que marcam a sociedade civil-burguesa ,
ainda de se dizer que Engels faz referências à resolução da questão por Fourier.
E, deste modo, notamos que um forte embate do autor com a economia
política, com o pensamento francês e com a filosofia clássica alemã. Mas, de modo
algum como traçar uma espécie de “amálgama originário” (Chasin) que daria
origem a seu pensamento.
Como procuramos destacar, as determinações do texto do autor do Esboço
são sui generis e precisam ser vistas com o devido cuidado e, inclusive,
considerando-se a diferença específica do pensamento de Engels e de Marx.
Acreditamos que a tradução que o leitor tem a seu dispor aqui pode propiciar uma
análise comparativa entre o colocado pelos dois autores na mesma época.
Comparar os Manuscritos de 1844 com o Esboço para uma crítica da economia
política é uma tarefa relevante para aqueles que pretendem uma apreensão
cuidadosa das obras destes dois importantes autores.
Se, como tarefa prévia ao renascimento do marxismo (Lukács), é
necessária a compreensão dos textos do próprio Marx, de se perceber que a
diferença específica entre ele e Engels ainda precisa ser vista com cuidado. A
presente tradução é um elemento importante da análise da especificidade do
pensamento engelsiana, a qual ainda está em curso.
A crítica engelsiana à economia política, deste modo, coloca-se tanto
diante de figuras do pensamento marcadas por oposições irreconciliáveis (que
estão presentes na economia política) quanto frente ao fundamento último destas
oposições, a premente necessidade da reconciliação categoria esta também
central à filosofia clássica alemã da humanidade consigo mesma e com a
natureza. E, assim, trata-se de um texto curto, mas muito denso e que precisa ser
estudado com cuidado. Nele, as diversas temáticas que marcam a correlação entre
família, sociedade civil-burguesa e estado esferas estas que compõem a
eticidade aparecem correlacionadas à crítica da economia política. O efeito da
prática e da teoria dos economistas, assim, seria dúplice: ocasionaria a dissolução
das relações presentes e a atomização dos indivíduos, de um lado, ao mesmo
tempo em que traria consigo o processo que poderia levar à superação do estado
presente. A reconciliação das oposições basilares à antieticidade do presente
estaria na supressão da sociedade atual. Tal dialética é de grande relevo ao
pensamento do autor do Esboço.
A centralidade da noção de oposição é patente no texto de Engels, autor
que anseia pela reconciliação das categorias contrapostas na realidade efetiva;
isto, porém, somente seria possível com a superação da própria sociedade
capitalista.
Deve-se apontar, porém, que, por vezes, a ânsia por superar as oposições
que são reconhecidas pela economia política como fundamento da sociabilidade
leva Engels a buscar um ponto de vista que se eleve acima das oposições desta
sociedade, o que, é claro, somente poderia ser conseguido por meio da atividade
prática. No texto, porém, não obstante remeta à necessidade de um
posicionamento correto, não pode nosso autor tratar do tema com os devidos
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cuidado e aprofundamento. Isto é compreensível quando se tem em conta que o
pensamento do nosso autor está em formação embora já esteja sobre os
próprios pés. Ou seja, o ponto de vista de Engels, bem como seu posicionamento,
ainda teria muito a se desenvolver. Tal qual ocorre com os textos de Marx de
1843-44, um posicionamento teórico que será mantido durante toda a obra,
porém, nunca se pode reduzir a opus dos autores àquilo que aparece de modo
primevo e inicial.
No presente texto se apresenta o início de uma crítica aos socialistas que,
posteriormente, no Anti-hring e no Do socialismo utópico ao socialismo
científico, seriam chamados de utópicos. Não obstante nosso autor elogiar os
socialistas ingleses e franceses em alguns momentos, utilizando-se de suas
análises e mesmo tendo Fourier por referência, ao dizer que a concorrência
pode ser suprimida, mas o a rivalidade baseada na natureza humana , há de
se perceber que, tal como no caso das categorias da filosofia clássica alemã,
um uso sui generis destes autores. A noção de natureza humana de Fourier,
correlacionada à de gênero humano de Feuerbach, começa a adquirir um
tratamento essencialmente histórico em Engels, diferenciando-se dos autores aos
quais tais categorias fazem referência. Ao mesmo tempo em que os usos de tais
categorias apontam para a degradação moral causada pela concorrência, bem
como à antieticidade, as correlações colocadas na família, na sociedade civil-
burguesa e no estado é que deveriam ser enfocadas. Engels, assim, critica a
economia política não tanto do ponto de vista dos socialistas ingleses e franceses,
mas a partir de uma posição e de um posicionamento que ainda desenvolveria
com mais cuidado no futuro e que conforma a tomada de partido típica do
comunista. Vemos, assim, um texto extremamente complexo, em que a
imanência da própria realidade aparece entrelaçada na exposição.
, assim, um aspecto dúplice e que diz respeito à correlação entre
pesquisa e exposição: no “genial esboço”, ao mesmo tempo em que a
indissociabilidade das diversas dimensões da realidade efetiva não é perdida, o
conjunto de temas e de autores tratados nem sempre deixa fácil e plenamente
explícitas as bases da posição do próprio Engels. Daí diversos intérpretes
buscarem aproximar Engels e Marx de outros autores nos textos de 1843-44.
Porém, ao se analisar o pensamento nascente de importantes autores, isto
somente pode levar a aproximações equívocas e apressadas.
Deste modo, a gênese, a estrutura e a função social das obras engelsianas
da época ainda precisam ser analisadas com mais cuidado. Assim como é
importante estudar os textos de Marx de 1843, bem como os manuscritos
marxianos de 1844, deve-se buscar apreender as determinações do Esboço para
uma crítica da economia política. Sem isso, a própria gênese do pensamento de
um importante autor é reduzida a um etiquetamento estéril, em que ele aparece
como hegeliano, feuerbachiano, humanista etc., mas nunca com suas próprias
características constitutivas. As dificuldades da exposição engelsiana são
perceptíveis e, de certo modo e até certo ponto, explicam tal fenômeno. Mas não
justificam a ausência de cuidado na busca do ser-propriamente-assim do texto do
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próprio Engels. Por mais que seja interessante traçar aproximações entre
diferentes autores, não compreensão das formações ideais e de suas
determinações sem que se perceba a diferença específica entre eles e o que faz
com que cada autor seja, em certa medida, único.
Já nos textos posteriores a exposição engelsiana é muito mais sistemática
que imanente. Isto significa que, mesmo sabendo que relações importantes
entre os objetos de que trata, o autor deliberadamente explicita as determinações
daquilo que aborda quase de modo temático e em função da ocasião do texto: se
antes Engels polemizava com uma vertente do pensamento burguês que
pretendia uma apreensão mais completa da realidade, no final de sua vida, suas
polêmicas na imprensa periódica se dão com autores marcados pelo
parcelamento abstrato da atividade humana e do pensamento.
Engels se coloca diante desses autores a partir da separação e da oposição
entre as esferas do conhecimento e do ser social. Ele destaca as suas diferenças
com aqueles que, sob certos aspectos, podem até mesmo ser úteis e que se
colocam como influências no movimento socialista. Deste modo, não pode ser
compreendido de maneira equivocada por aproximar certas posições de autores
que combate. Porém, a unidade desse pensamento, e da própria realidade, talvez
apareça de forma muito mais parcelada. Se no Esboço é muito difícil saber onde
começam e terminam problematizações sobre teologia, direito, política e
economia política, o mesmo não se com as suas obras do final de sua vida,
expressas nos dois outros textos aqui traduzidos.
Isto tem também um sentido dúplice: as intervenções do principal
interlocutor de Marx passam a se popularizar em meio ao movimento socialista
crescente. Porém, ao mesmo tempo, isto faz que as categorias utilizadas para
tratar da realidade efetiva de uma época, por vezes, pareçam colocar-se como
símiles àquelas da teoria burguesa. Pela leitura conjunta dos textos que aqui
disponibilizamos, a percepção clara de que ligação íntima na obra
engelsiana e na própria realidade entre a ascensão da burguesia, a religião e
a teologia cristãs modernas e consolidação do estado e do direito da sociedade
capitalista. Porém, caso leiamos O Livro de apocalipse separadamente, isto
nem sempre fica claro, assim como não se explicita como é essencial ao
cristianismo moderno a renegação do conceito de igualdade que era trazido no
cristianismo primitivo. Ou seja, ao polemizar com teóricos que aceitam certa
parcialização do conhecimento, Engels parece flertar com esta última, mesmo
não o fazendo real e efetivamente.
Olhando sua produção da época, isto é claro. É possível trazer a correlação
entre os diversos temas de que o autor trata; porém, ao se olhar cada texto
separadamente, corre-se o risco de se apegar a certo parcelamento do
conhecimento. Se Engels trata da especificidade de cada campo, ele não os
autonomiza; mas sua exposição, mais didática e sistemática, parece dar esta
impressão. Se o seu “genial esboço”, como Marx chamou o texto em O capital,
relaciona a teologia com a economia política e com a dimensão estatal e
ideológica, temas teológicos aparecem separados na exposição destas esferas em
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O Livro de apocalipse; o desenvolvimento do comércio, por sua vez, é analisado
em O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia”, ao se considerar as
relações imediatas entre as classes sociais diante da determinação econômica,
sem que todos os temas do Esboço para uma crítica da economia política
apareçam correlacionados explicitamente na exposição. Ao contrário de seu texto
“de juventude” o posicionamento do autor e sua tomada de partido são muito
claras. Mas a ligação orgânica dos temas tratados precisa ser vista com mais
cuidado na análise imanente da objetividade do texto. E, assim, é preciso que se
olhem os textos engelsianos da década de 1880 em conjunto.
O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia e O Livro de
apocalipse (1883) trazem dimensões essenciais da moderna sociedade civil-
burguesa: passam pela correlação entre a emergência do comércio, o papel da
religião cristã na realidade efetiva e o modo pelo qual as formações ideais
possuem uma função ativa nas relações materiais de produção. Ou seja, temas
presentes no Esboço reaparecem. Porém, com uma exposição bastante diferente,
e com uma tentativa de embate com áreas cujo conhecimento se torna cada vez
mais autônomo, como a leitura bíblica ou a análise propriamente histórica.
De um lado, em O Livro de apocalipse, Engels coloca-se a realizar uma
crítica histórica da Bíblia, mostrando que, em seu tempo, o cristianismo
apoderou-se das massas, tal qual o socialismo moderno em sua época. E, assim,
deixa claro que o cristianismo primitivo com seu universalismo e com sua
concepção universal de pessoa trazia certa oposição aos poderes então
existentes. Ou seja, a análise engelsiana da religião, também presente em sua
discussão das lutas camponesas da Alemanha, não se atém a mostrar como a
religião e a visão de mundo religiosa são incapazes de apreender as
determinações da própria realidade. Ele demonstra que, mesmo assim, a
máscara, a persona religiosa foi essencial para levar até o fim conflitos de classe
de diversas épocas. O modo pelo qual isto se com a religião expressa de
maneira inconsciente a apreensão das determinações da própria realidade; no
socialismo moderno, porém, tal apreensão seria consciente. Daí ser preciso
enfatizar a necessidade da crítica à religião; ela se apodera das massas, mas gera
seitas, ao passo que a organização política do moderno proletariado se opõe
fortemente a isto, como demonstra nosso autor em suas diversas críticas aos
socialistas utópicos e à filantropia burguesa. Ou seja, o tema, aparentemente
livresco, da análise da Bíblia, remete a uma questão essencial à época: a da
necessária crítica à religião e das formas de organização espontâneas do
proletariado. Se Engels não trata disso explicitamente neste texto, o faz, com
referência à questão, no Anti-hring, por exemplo.
Ou seja, um texto aparentemente muito mais fácil de se ler que o Esboço
para a crítica da economia política acaba por remeter a um universo categorial
tão vasto quanto. Na exposição engelsiana, porém, os temas aparecem com certa
separação, buscando tanto um posicionamento certeiro no debate ideológico
quanto uma apresentação mais popular. Em relação a isso, vale voltarmos para
os aspectos mais ligados ao conteúdo do texto.
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As formas ideológicas, tal qual Marx havia colocado no famoso “Prefácio
de 1859, o também aquelas por meio das quais os homens tomam consciência
das contradições sociais e as levam até suas consequências últimas. No caso de
O Livro de apocalipse, Engels trata da Roma antiga e do papel de Nero; porém
não obstante talvez seja possível questionar a leitura de nosso autor sobre este
aspecto específico (não entraremos aqui na questão) , o importante a se
perceber é que ele não deixa de criticar a religião em nenhum momento. Mostra
como ela pode ser uma potência ativa, com todas as suas limitações, limitações
estas que não seriam compartilhadas pelo socialismo moderno, que, em sua
apreensão científica da realidade, tomaria as forças imanentes da sociedade como
originadas dela própria e como passíveis de resolução efetiva com a superação da
moderna sociedade capitalista. O cristianismo, por meio das seitas, teria sido um
movimento revolucionário, feito pelas massas. Mas isto seria muito distinto do
que ocorre com o moderno socialismo; e, para o tratamento desta questão, é
preciso remeter a outros textos. Ou seja, a exposição engelsiana facilita a
apreensão do que ele traz, mas dificulta a compreensão da totalidade das relações
sociais envolvidas na própria exposição.
Ao tratar desta visão religiosa, ao contrário do que se daria em parte
substancial da doutrina da Igreja, Engels diz que a ênfase no pecado original e na
queda seriam estranhas ao cristianismo primitivo. Dotado de um tom igualitário
e de uma valorização dos homens (os profetas, no caso) que realizariam as tarefas
divinas, este estaria muito mais ligado a uma seita que à organização
burocratizada da Igreja. Ou seja, na visão engelsiana, a potência social desta
forma ideológica está em ela ter se apoderado das massas com uma visão
contraditoriamente religiosa e imanente do mundo.
O cristianismo, assim, apareceria como uma seita do judaísmo e como uma
visão de mundo centrada no Livro de apocalipse, justamente o livro no qual
haveria certa oposição ao próprio império romano, escravocrata e governado por
Nero. A análise engelsiana é, assim, bastante rica e traz questões muito
importantes; porém, há de se notar que o tratamento das relações econômicas é,
ao menos, secundário no texto. Sabemos que elas não podem ser
desconsideradas; mas a relação imanente entre elas e o tema tratado, por vezes,
é eclipsada; a busca pela especificidade de certo objeto não pode nunca
obscurecer a sua correlação com o desenvolvimento geral da sociedade e de
outros campos e esferas; e Engels sabe disso. Porém, em sua exposição, as coisas
são dúbias neste sentido.
Em O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia também
questões prementes, e que são tratadas no “genial esboço”. O comércio, por
exemplo, bem como sua relação com a burguesia, é analisado com afinco. A
correlação entre a acumulação de capital e a emergência das cidades modernas,
assim como a emergência da subordinação do campo à cidade, são essenciais à
argumentação engelsiana, que traz à tona, de modo mais detido, temas que
aparecem já em A ideologia alemã, no Manifesto e que são retomados por Marx
em O capital. Segundo o autor, parcela dos habitantes da cidade começa a formar
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uma classe contraposta à nobreza, ligada à renda da terra e à propriedade rural.
A indústria e os homens de negócio tinham um incremento substancial, ao passo
que a nobreza estancava. O caráter burguês da cidadania urbana, assim, ficava
claro, destacando-se a correlação entre a emergência da burguesia e a dominação
da cidade sobre o campo.
Em meio a isto, Engels destaca também o papel da mediação monetária; o
dinheiro, que Marx aponta como um grande Leveller em O capital, aparece
dissolvendo relações feudais. E, assim, percebe-se que um tema muito
importante às obras econômicas de Marx também está presente em Engels: a
correlação entre a mediação das formas econômicas e a luta de classes; o solo
desta última não é, na sociedade capitalista, o da sociedade civil-burguesa, mas
o desta sociedade analisada e compreendida em sua anatomia, que deveria ser
encontrada, diz Marx, na crítica da economia política.
Aqui, porém, tem-se algo análogo ao que se deu anteriormente: se no
Esboço havia, por vezes de modo complexo e de difícil apreensão, a unidade na
exposição da crítica da economia política, da religião, da política e do direito, aqui
a coisa se doutro modo. Engels remete a um tema central, mas, para que a
exposição seja facilitada, apenas menciona aspectos essenciais, que vem a
desenvolver noutros lugares. Em O declínio do feudalismo e a ascensão da
burguesia a análise engelsiana, para que se use uma dicção do próprio autor, é
muito mais histórica” que “lógica”. O movimento da burguesia emergente é visto
sem que se adentre nos meandros da lógica da anatomia da sociedade civil-
burguesa, que nosso autor, como organizador dos livros II e III de O capital,
conhece consideravelmente. O dinheiro, assim, é visto como um dos fatores que
enfraquecem a lógica feudal, bem como os privilégios feudais; mas a ligação
orgânica desse tema com a acumulação de capital, com a forma mercantil
universalizada, bem como com a consequente consolidação do direito burguês
não está em foco no texto citado, mas em outros, como no polêmico O socialismo
jurídico.
-se, assim, novamente, a necessidade de um tratamento conjunto dos
textos engelsianos. O desenvolvimento das nacionalidades em nações e no estado
moderno também aparece no texto, em que a aliança do rei com o cidadão
burguês é vista como algo a ser mediado por um estrato particular da sociedade,
aquele dos juristas. E, com isto, um dos temas essenciais da obra de nosso autor
aparece aqui; os juristas, e o direito, teriam um papel ativo, fundamental na
consolidação da sociedade capitalista, bem como da burguesia. Como não poderia
deixar de ser, o tema é mais complexo do que parece: se nosso autor menciona a
correlação existente entre os sacerdotes, os jurisconsultos romanos e os juristas
modernos em O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia, há de se ter
em conta aquilo que ele traz tanto no texto sobre o cristianismo primitivo quanto
em O Livro de apocalipse, em que a religião se apodera das massas com uma
concepção universalista e amparada em certa forma de igualdade.
O mesmo se daria com o direito, que traz uma visão universal da noção de
pessoa e coloca na igualdade jurídica a igualdade da própria burguesia; daí, em O
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socialismo jurídico, o autor dizer que na sociedade capitalista a visão teológica de
mundo é substituída por aquela visão de mundo a se tornar a burguesa clássica,
a jurídica. Nota-se, assim, que uma ligação entre a religião e o direito, os
sacerdotes e os juristas, a teologia e a teoria do direito; ao olhar o conjunto dos
textos de Engels, isto fica bastante claro. Mesmo que ainda precise ser
desenvolvido com mais cuidado tanto em seus textos quanto por seus intérpretes,
a unidade na diversidade entre tais aspectos é trazida de modo riquíssimo no
autor. Sua exposição, por vezes, não facilita esta conclusão; porém, e talvez por
isto, tornam mais acessíveis ao homem comum aspectos essenciais do socialismo
moderno. Tal tensão entre a pesquisa e a exposição passa a ser uma constante no
pensamento do autor. As traduções que aqui apresentamos são um bom exemplo
disto.
Aqui não podemos, nem pretendemos, trazer todos os importantes
aspectos que são levantados pelo próprio Engels. Porém, acreditamos ter
ressaltado dificuldades conexas, e contrapostas, que aparecem na leitura da obra
“juvenil” e “tardia” de nosso autor. Sem que se possa estabelecer qualquer corte
epistemológico ou qualquer classificação final na obra engelsiana, é possível ver
que a unidade e a imanência na exposição do Esboço ajudam na compreensão da
ligação entre diferentes aspectos da realidade efetiva, mas nem sempre deixam
clara a diferença específica da posição engelsiana; nos textos da década de 1880
-se o oposto: na medida em que Engels demarca com clareza a sua posição, seu
tom polêmico faz que questões essenciais à análise das determinações da
moderna sociedade capitalista sejam somente mencionadas, que teriam sido
substancialmente desenvolvidas noutro lugar. A consciência acerca desta tensão
entre exposição e pesquisa na obra engelsiana leva à necessidade do estudo de tal
autor que, ao mesmo tempo, não pode ser separado de Marx, mas, para o bem e,
diriam alguns, para o mal, tem uma estatura e um estatuto próprios.
Como citar:
SARTORI, Vitor B. Apresentação das traduções. Verinotio Revista on-line de
Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 254-62, jul./dez.
2020.