Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - jan./jun. 2021
Apresentação: da teoria das abstrações à crítica
chasiniana de Lukács
Vânia Noeli Ferreira de Assunção
*
O excerto que se oferece para o deleite do leitor é parte de um texto com história
curiosa. Em 1995, tendo decidido pela publicação do livro
Pensando com Marx
, de
Francisco J. S. Teixeira, J. Chasin, então editor da Editora Ensaio, começou a escrever
um posfácio cujo objetivo era salientar as principais qualidades do texto de Teixeira,
destacadamente, o fato de fazer uma leitura imanente do texto marxiano. Nesse mister,
Chasin contrapôs o acertado procedimento de Teixeira à atitude prevalente de ler Marx
por lentes que o distorcem, atribuindo-lhe elementos que lhe são exteriores. Chasin
quis exemplificar algumas dessas interpretações deturpadas e lhes fazer a devida
crítica, o que, por outro lado, demandou dar a conhecer em detalhes o procedimento
marxiano que havia décadas buscava redescobrir pela análise acurada e sem
imputações dos seus próprios textos, estudados detalhadamente em monografias que
avaliavam o conteúdo e as transformações pelas quais passou o ideário marxiano em
seu período formativo. E assim, ao fim e ao cabo, o tal posfácio acabou ganhando um
corpo não planejado no início, tornando-se um calhamaço de mais de 200 páginas de
um debate tão denso que se descolou do livro original com o qual veio a lume.
Dividido em cinco tópicos, além de uma breve introdução, o texto de Chasin
intitulado
Marx
: estatuto ontológico e resolução metodológica
1
toma como mote o
longevo debate epistêmico em torno do “método marxiano” para ensejar uma
profunda reflexão filosófica sobre o pensamento do teórico alemão e as querelas
gnosiológicas em que foi envolvido. Numa breve introdução, ele apresenta o tema,
salientando como fundamental a necessidade de “reproduzir pelo interior mesmo da
reflexão marxiana o trançado determinativo de seus escritos”, frisando que antes de
*
Professora da Universidade Federal Fluminense Rio das Ostras. Coeditora da
Verinotio
.
E-mail
:
vanianoeli@uol.com.br.
1
CHASIN, J.
Marx
: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.
Originalmente publicado como “Posfácio” a: TEIXEIRA, F. J. S.
Pensando com Marx
. São Paulo: Ensaio,
1995.
DOI 10.36638/1981-061X.2021.v27.608
Apresentação: da teoria das abstrações à crítica chasiniana de Lukács
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interpretar ou criticar é incontornavelmente necessário compreender e fazer prova de
haver compreendido”. Expõe, em outros termos, os elementos mais gerais de uma
análise imanente assentada no reconhecimento do objeto em exame a formação ideal
em sua objetividade e autonomia em relação ao sujeito que investiga; e mostra como
tal postura está na contracorrente do monopólio interpretativo gnosioepistêmico do
pensamento de Marx.
No item Crítica do amálgama originário, Chasin situa o debate em torno da
originalidade do ideário marxiano, cujas origens são comumente remetidas à
apropriação seletiva e mesclada de três partes do que de melhor haveria no
pensamento europeu de então a teoria política (ou o socialismo, em outras versões)
francesa, a filosofia alemã e a economia política inglesa , mistura à qual teria agregado
finalmente o seu método específico. Segundo tal interpretação, portanto, no processo
de constituição de seu pensamento próprio, Marx teria forjado uma “aglutinação
eclética de conteúdos dos corpos teóricos então existentes e lhes aditado uma
resolução epistêmica peculiar: o uso da dialética enquanto uma sorte de
método
universal de investigação
. A transformação da dialética em método e a redução da
contribuição marxiana à capacidade de agregar partes de teorias e procedimentos
existentes são, segundo Chasin, equívocos que levam à perda dos nódulos centrais e
da inédita novidade do pensamento marxiano.
O terceiro item do texto, bem mais encorpado, chama-se Gênese e crítica
ontológica. Ali, Chasin critica a noção vulgarmente disseminada sobre a origem e as
“fontes” do pensamento marxiano, sustentando a impossibilidade da operação
necessariamente eclética de repicar, peneirar e embaralhar componentes de três
campos filosóficos bastante distintos entre si num novo discurso minimamente
rigoroso e articulado. Seguindo caminho oposto ao da imputação, realiza um rigoroso
estudo, mantendo uma “submissão ativa aos escritos investigados”, dos textos de Marx
do período 1841-43 ao cabo do qual não encontra vestígios do pretendido
amálgama originário. Guiando-nos pelo percurso formativo do jovem Marx, o teórico
paulistano chega a uma conclusão radicalmente diferente: à luz de problemas materiais
específicos para os quais neles não encontrou respostas adequadas e sob forte
influência feuerbachiana no tocante à crítica a Hegel , Marx confrontou os três pontos
altos do pensamento europeu de sua época tendo sempre em mente a presença das
realidades específicas às quais estavam ligados por liames complexos e incontornáveis,
submetendo-os a uma
crítica radical
. Criticando o que havia de melhor na produção
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do período em termos de prática política, filosofia e ciência, o teórico alemão concluiu
pela sua falibilidade imanente para apropriar-se idealmente do mundo atual, inaptidão
que não era, portanto, metodológica, mas
ontológica
: trata-se do esgotamento de todo
o patamar anterior de racionalidade e atividade que estava dado, extenuação que tem
raízes nos próprios complexos reais em transformação, os quais eram sempre
perspectivados na efetivação daquela crítica. Daí que, a partir de 1844, quando
paulatinamente constituiu seu pensamento próprio, de forma simultânea à crítica
demolidora das teorias de sua época, este representasse uma visão global de mundo
totalmente nova, inédita, uma viragem radical em relação a toda prática e à teoria
anterior (a sua, pessoal, e a da tradição), situando-se muito além delas.
O terceiro item do texto de Chasin, do qual falaremos com um pouco mais vagar,
chama-se A resolução metodológica e se inicia com uma saudável provocação: se
entendido nos moldes tradicionais, não um método em Marx. Mais ainda: tal
ausência não se deve a negligência ou lapso, mas deriva de uma afirmação de ordem
teórico-estrutural não convencional, assentada sobre duas estacas: a fundamentação
ontoprática do conhecimento, de um lado, e a determinação social do pensamento e
presença histórica do objeto, doutro, intimamente relacionadas à teoria das abstrações
que Chasin descobre em Marx e à lógica da concreção, que é propriamente o
procedimento de pesquisa marxiano. Sempre acompanhando minudentemente os
escritos do Mouro, Chasin demonstra que os pressupostos ontológicos do pensamento
daquele o impediram de tomar o problema do conhecimento como exercício de uma
subjetividade autônoma, de maneira que o alemão acabou reconfigurando a questão
de forma completa e radical, finalmente situando-a em seu lugar e termos próprios,
isto é, no âmbito global do complexo humano-societário.
Como lembra Chasin, a especificidade da objetividade social, objeto de estudo
de Marx, é ser um complexo categorial que reúne sujeito e objeto sob o eixo da
atividade sensível, é
objetividade subjetivada
ou
subjetividade objetivada
. Dito de
outra maneira, a objetividade e a subjetividade humanas são autopostas, num processo
infinito e contraditório que tem na atividade sensível a própria produção da vida o
seu momento determinante. Na realização do trabalho, particularmente, o
conhecimento é indecomponível da atividade; a teleologia o pôr, consciente, de
objetivos é justamente o momento ideal que antecede e guia a efetivação da ação.
Como salienta Chasin, a prática pressupõe ao menos dois momentos fundamentais: a
subjetividade proponente (a teleologia) e a subjetividade receptora (a capacidade
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cognitiva que possibilita a inteligibilidade da malha causal efetiva, que deve ser
respeitada como condição de sucesso da empreitada). Esta conjunção cognitiva entre
sujeito e objeto se espraia do trabalho para todas as outras formas de práxis social,
com os pertinentes distintivos entre elas. Dessa maneira, em vez de erigir-se sobre as
movediças bases de um debate acerca da possibilidade do conhecimento,
necessariamente subjetivas, Marx firmou-se em pressupostos reais, repondo a questão
da possibilidade do saber na esfera ontoprática da sociabilidade, enquanto resultado
da atuação prática e teórica do homem, ser social, quer dizer, do caráter produzido do
mundo sensível e da certeza sensível.
Na descoberta desse enlace ou melhor, dessa
transitividade
contínua entre
sujeito (ativo) e objeto (mutável) está o segredo do procedimento marxiano, de talhe
ontológico, que nunca separa as dimensões inseparáveis do ser social, e, portanto,
não opõe ser e pensar, intrinsecamente cosidos no âmbito da sociabilidade (mas nunca
confundidos, como na especulação). Chasin sintetiza tal debate sob o qualificativo
fundamentação ontoprática do conhecimento
, isto é, o reconhecimento de que este é
determinado pela gênese e necessidade social que o engendram: todo saber supõe
um ser que pensa, este ser é social e, portanto, seu pensamento também o é. Dessa
forma, não faz sentido um debate escolástico, meramente epistemológico, sobre o
conhecimento como uma suposta atividade autônoma de uma razão sem corpo.
O tema está também correlacionado a outro, da
determinação social do
pensamento e presença histórica do objeto
, como Chasin o sintetiza, frisando outra
vez o nexo fundamental entre consciência (formação ideal) e sociabilidade. Sem jamais
reduzi-las a mero epifenômeno ou reflexo mecânico da sociabilidade, Marx mostrou
que as formas de pensamento estão enraizadas na realidade histórica de que advêm
e são suas expressões conscientes, sejam reais ou ilusórias: atividade ideal é atividade
social. Tendo nascido de uma determinada necessidade e para atender a dados
objetivos, todo conhecimento é, desde logo,
interessado
. O filósofo paulistano mostra
aqui como a abordagem gnosioepistêmica sobre o pensamento em particular, no
debate sobre a ideologia passa ao largo da descoberta de Marx. Não há contradição
entre interesse e conhecimento, nem associação direta entre conhecimento com
funções sociais e falsificação, de vez que o saber é sempre intencionado, tanto o
verdadeiro quanto o falso, sendo necessário perscrutá-lo para averiguar sua gênese,
sua função social e sua (in)coerência e (in)coesão.
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Chasin realça ainda outra conquista teórica marxiana: a da percepção da
sociabilidade como fonte primária, ou melhor, como
condição de possibilidade
do
pensamento, tanto no sentido de fornecer-lhe as condições mais adequadas quanto
no de obstar seu desenvolvimento. Condições sociais específicas podem favorecer ou
embaraçar o exercício apropriado da cientificidade ou da reflexão em duas direções:
pelo grau de desenvolvimento do objeto ou pela posição do sujeito que busca o
conhecimento. O processo de conhecimento é relacional, multilateral, não se situando
apenas no sujeito (pois todo saber versa sobre algo) ou no objeto (cuja existência por
si é apreensível por um sujeito ativo). Assim, de um lado, a plena estruturação
categorial de um objeto exerce papel impulsionador na relação cognitiva, enquanto
um caráter germinal ou um desenvolvimento incompleto a empata ou dificulta: a
compreensão do objeto já posto em sua complexidade propicia chaves para a
compreensão (sempre com base no destaque da diferença específica) do objeto menos
desenvolvido. De outro lado, a posição objetiva do pesquisador em dado tempo e
lugar históricos o
lócus
social em que está situado pode predispor ou obstar a
cognição da realidade material ou espiritual. Em poucas palavras, a objetividade
científica decorre de uma confluência entre um sujeito ativo situado em posição
adequada à cientificidade e um objeto amadurecido suficientemente para possibilitar
sua apreensão.
Explicitados os seus pressupostos fundamentais, resta pormenorizar o
procedimento de Marx. Este detalhamento está dado na
teoria da abstração
, outra
importante descoberta que Chasin realiza no exame minucioso da produção marxiana,
teoria consistente e de grande importância, inobstante seu caráter fragmentário. O
pensador alemão havia enfatizado que nos estudos sobre a sociabilidade não são
empregáveis instrumentos e métodos experimentais semelhantes aos das ciências da
natureza, dado que se trata de objetos totalmente distintos. Em substituição a estes,
o principal instrumento para a reprodução intelectual de entidades reais na esfera
social é a
força de abstração
, a competência intelectiva de esquadrinhar as coisas de
uma forma adequada tanto à natureza dos objetos quanto à do próprio sujeito
envolvidos na relação cognitiva. Partindo da destilação de abstrações razoáveis,
segundo Chasin, o método marxiano nada mais é do que o modo de produção
(processo em que o objeto tem a prioridade e exerce a regência) de concretos
pensados, para o qual é fundamental o enfrentamento do objeto sensível em sua
integralidade e sem nenhuma mediação metodológica previamente estabelecida.
Apresentação: da teoria das abstrações à crítica chasiniana de Lukács
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As abstrações, categorias simples que estão dadas tanto na realidade efetiva
quanto no pensamento, têm razoabilidade quando correspondentes aos objetos que
representam. Elas fixam e salientam aspectos reais, frequentemente isolados, comuns
a diferentes épocas, dos complexos fenomênicos em análise e, embora não
determinem nenhum objeto real donde, serem abstrações , são indispensáveis, já
que sem elas não seria possível conceber nenhuma formação real. Contudo, estas
abstrações ainda não são o conhecimento real, mas “uma representação caótica do
todo”, uma vez que estão vazias e desordenadas: segundo Marx, são apenas o ponto
de partida do método cientificamente exato, a partir do qual se faz a viagem de volta
ao concreto. Em tal rota, é preciso um
trabalho das abstrações
, um processo de síntese
que proceda à
intensificação ontológica
daquelas abstrações isoladoras, aproximando-
as e comparando-as aos traços efetivos dos objetos estudados pelos quais a
compreensão será parametrada. Com outro passo, a
delimitação
, as leis gerais vão
perdendo força em prol da particularização e da singularização da fisionomia das
abstrações, que se tornam mais bem delimitadas, determinadas histórica e
socialmente. Outro momento do trabalho das abstrações descoberto por Chasin em
Marx é a
articulação
, a remissão à multilateralidade ou complexidade em que se situa
toda conformação fenomênica, pela qual se explicita a conexão íntima das categorias
em pauta, abordando suas determinações reflexivas recíprocas, ou seja, os pares ou
conjuntos de categorias que têm íntima (e contraditória) conexão entre si. Para o
incorrer em homogeneização irreal, é necessário explicitar as proporções e as
qualidades com que interagem e neste mister destacar o
momento preponderante
,
aquela categoria que, pelo seu peso específico, é estruturante da relação.
Pela descrição dos atos operativos fica evidenciado que a ordem e a sequência
em que aparecem os elementos e os lugares por eles ocupados estão subordinadas
ao composto ontológico do objeto estudado, não a uma legalidade autônoma,
reproduzindo no concreto pensado o ordenamento intrínseco ao objeto em pauta.
Com este procedimento o da retilínea constatação de efetividades , Marx revelava,
conforme Chasin, a própria lógica das coisas, seus elementos constituintes e sua teia
de determinações e relações multiformes, sua dialeticidade imanente. É por isso que a
operacionalidade acima arrolada reveladoramente enuncia a universalidade dos
processos, mas sem detalhar nenhum ato em particular, pois estes poderão ser
efetivados na analítica específica dos objetos, para a qual não há mapas nem roteiros
prévios.
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A parte do texto que ora se está publicando, Da teoria das abstrações à crítica
de Lukács, é ainda mais densa. Não nos deteremos nela a não ser o estritamente
necessário para situar o leitor sobre o material que poderá avaliar por si mesmo. Nesse
item, Chasin faz a reconstrução detalhada e analítica de grandes trechos de
Introdução
a uma estética marxista
(1956) e da
Estética
(1962) de Lukács, objetivando trazer à
tona alguns elementos de seu pensamento que considera problemáticos. De acordo
com o filósofo brasileiro, num percurso que acompanha cuidadosamente, Lukács,
intentando, num primeiro momento, discutir a questão da particularidade no campo
da estética, acabou tomando um caminho que o levou à constituição de uma lei
histórica universal, encarnada na dialética do trânsito entre universal, particular e
singular. Ademais, acabou vendo Hegel de forma muito positiva os formalismos ou
logicismos teriam permanecido nele apenas como parte das formulações débeis ou
errôneas, não nos acertos e, aproximando-o por demais de Marx, viu seu logicismo
como a base para o próprio método marxiano.
Tendo em vista o teor dos comentários críticos desenvolvidos nessa parte do
escrito, é imperioso enfatizar que estes estão voltados exclusivamente a um problema
específico, que diz respeito às relações entre Marx e Hegel. É deveras conhecido o
aspecto crucial desta questão, que ainda hoje assedia os intérpretes do legado
marxiano e que não escapa ao olhar atento de Chasin, preocupado com as tendências
que aproximam demasiadamente um autor de outro, sobretudo no que diz respeito às
questões de ordem metodológica. Nesse sentido, ainda que nas páginas de
Para
uma
ontologia do ser social
e de seus
Prolegômenos
seja possível constatar um esforço
importante de Lukács para se desvencilhar da presença da “lógica dialética”, tal
problema continuou a assombrar o seu legado filosófico e merece tratamento
cuidadoso. Chasin, sem dúvida, oferece contribuição fundamental também nesse
campo, sobretudo porque
Introdução a uma estética marxista
, publicado no Brasil
em 1978, pela Civilização Brasileira, rapidamente ganhou adeptos convictos de que
ali se tratava de fato de uma introdução ao pensamento estético do autor e, ademais,
de uma configuração acertada do procedimento metodológico de Marx e do próprio
Lukács, percepção que, infelizmente, prossegue até hoje em bolsões de não
especialistas.
2
2
O próprio Chasin, em certo momento de seu processo de aproximação à obra de Lukács, escreveu um
artigo intitulado Lukács: vivência e reflexão da particularidade (
Nova Escrita Ensaio
, n. 9, São Paulo,
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Em sua investigação, Chasin reconstitui a análise lukácsiana da questão da
universalidade e da particularidade. Lukács expôs a forma como a história da filosofia
tratou a questão (em geral, enfatizando uma das categorias e negando a outra),
detendo-se na abordagem hegeliana, por ele elogiada: ao pôr a dialética
universal/particular/singular no centro da lógica, Hegel teria conseguido, a despeito
do seu idealismo, reproduzir filosoficamente a realidade histórico-social. Tal dialética
histórica, apesar de seu tratamento abstrato em Hegel, seria uma lógica de novo tipo,
tendencialmente correspondente à realidade viva. Aqui, segundo Chasin, a crítica de
Marx ao logicismo e à especulação hegelianos é secundarizada e, portanto, o salto
do pensamento marxiano é minimizado. O teórico paulistano, por meio da
reconstituição do texto de Lukács, principalmente daquele publicado originalmente em
1956, mostra como, na abordagem da particularidade, o discurso vai ganhando foro
de problema universal (não mais afeito à estética, como inicialmente pensado). De
acordo com Chasin, o filósofo húngaro não encontrou amparo, senão de modo esparso
e mal alinhavado, nos escritos marxianos, de forma que as remissões ao filósofo alemão
foram rareando conforme o tratamento do tema ia sendo logicizado. O que torna a
questão ainda mais problemática é o fato de o húngaro ter afirmado se especar em
Marx, quando se tratava de uma reflexão dele próprio.
Tencionando estabelecer um vínculo lógico entre Marx e Hegel, Lukács afirmava
que no capítulo I de
O capital
haveria uma construção lógica, uma apropriação
particular do método hegeliano que marcaria a cientificidade marxiana e não só não
encontrou arrimo nos textos de Marx para assegurar sua asserção como ignorou
diversas manifestações do teórico alemão acerca da diferença e inclusive da oposição
entre o seu método e o de Hegel. O filósofo húngaro, conforme Chasin, não atentou
para a diferença entre o método de pesquisa que tem a prioridade no procedimento
marxiano e que este reputou como o exato oposto do método de Hegel e as “formas
de tratamento”, ou seja, o método de exposição, momento em que “coqueteou” com
aquele. Lukács equiparou as três formas do valor analisadas por Marx a momentos
históricos que encarnariam alternadamente singularidade, particularidade e
universalidade, equiparando método histórico a método
lógico
, ou seja, a indistinção
entre análise e exposição o levou a correlacionar a realidade econômica global a uma
Escrita, 1982) no qual ressaltava a importância da categoria na vida e na obra do autor. Nesse sentido,
o “Posfácio” ganha ares de acerto de contas também com a própria trajetória.
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silogística. Dessa maneira, no entender de Chasin, Lukács retomou os problemas
analisados por Marx sob uma ótica que este havia criticado e superado, quer dizer, fez
retroagir a questão do plano ontológico em que o alemão a situou para o da teoria do
conhecimento. Ademais, não percebeu que, se vínculos com Hegel pensador de
alta estatura, não poderia ser meramente ignorado , as contribuições deste para o
pensamento marxiano são secundárias e foram assimiladas a partir de uma ruptura
abissal: afinal, a crítica radical à especulação havia sido feita por Marx ainda nos
primeiros anos da década de 1840. O autor de
O capital
reconheceu o pioneirismo de
Hegel na exposição das formas gerais do movimento, em que era possível encontrar
um núcleo racional, mas denunciando, ao mesmo tempo, seu caráter abstrato, o qual,
eliminando os aspectos distintivos dos diversos movimentos, chegava ao movimento
em estado abstrato, ao movimento puramente formal. Por sua vez, a dialeticidade
exposta no pensamento marxiano é o movimento histórico das próprias categorias
enquanto formas de ser reproduzidas pelo concreto pensado, e dessa maneira dialética
se
descobre
, mas nunca se
aplica
.
Mesmo na
Estética
, obra que, conforme Chasin, não repete as débeis construções
teóricas da
Introdução a uma estética marxista
quando retoma a questão da
particularidade, Lukács acabou incorrendo em erro semelhante ao debater o em-si
hegeliano. Marx teria, para Lukács, apropriado o método de Hegel, que valoriza a
abstratividade, que tem uma noção vazia como alicerce. Chasin mostra como, por
muitos meandros que o leitor terá condição de verificar, Lukács chegou a uma noção
de em-si como uma figura epistemológica, na qual a abstratividade a pobreza do
concreto epistemológico é o garante do acesso à realidade e da distinção entre
objetividade e subjetividade. Bem assim, Chasin avalia que a categoria da totalidade é
entendida por Lukács, em boa parte de sua tematização, como um postulado da teoria
do conhecimento (como ponto de vista, ou seja, uma configuração da subjetividade,
enquanto em Marx se trata da formação real e concreta, complexa e contraditória, que,
reproduzida pelo pensamento, torna-se concreto pensado). E, por fim, aprisionado nas
malhas da lógica universal/particular/singular, Lukács acercou-se da problemática da
particularidade sem atinar para o caráter primordial do processo de particularização
(determinação ou concreção, conforme exposto na teoria das abstrações) no
procedimento marxiano do caminho de volta das abstrações razoáveis ao concreto em
sua complexidade e articulação.
Por fim, no item final do livro cujo excerto ora se apresenta A analítica das
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coisas , Chasin reconstitui diversos momentos do pensamento marxiano, desde os
Manuscritos de 1844
até as
Glosas a Wagner
(1880), para demonstrar a constituição
da teoria das abstrações na sua origem e mostrar como os delineamentos desta estão
presentes durante toda a sua produção intelectual adulta. A teoria das abstrações,
frise-se, está centrada na prioridade e regência do objeto. Nessa subsunção aos
objetos, os procedimentos analíticos marxianos não assumem o feito formal e prévio
de roteiro metodológico, mas a configuração abstrata dos passos necessários à
apropriação ideal das coisas quer dizer, a
irresolução analítica
das figuras da teoria
das abstrações é a outra face da
analítica das coisas
, ou seja, a pesquisa é a busca
pela lógica específica do objeto específico, está radicada e subordinada à
“terrenalidade das coisas e dos homens concretos”.
Para finalizar esta Apresentação, façamos uma breve síntese da crítica chasiniana.
Por desconhecer a teoria das abstrações e o detalhamento do procedimento marxiano
de pesquisa, Lukács não pôde falar deste senão no plano mais geral (dos princípios e
grandes condicionamentos históricos), sem referência a seus procedimentos analíticos;
ignorou, nesse imbróglio, a forma específica de a “cabeça pensante” se apropriar do
mundo (e, assim, pôde tratar dos limites sócio-históricos à apreensão de certas
categorias, olvidando a posição do sujeito cognoscente), tornou a dialética
universalidade/particularidade/singularidade uma sorte de método universal,
aproximou em demasia Marx de Hegel, logicizou o procedimento marxiano e
desconsiderou em vários momentos o ineditismo da posição marxiana, que é de porte
ontológico, como ele próprio veio a revelar em textos fundamentais como
Para uma
ontologia do ser social
, influenciadora inclusive do próprio texto de Chasin.
Conforme conclui o teórico paulistano, o filósofo húngaro na sua longa e
tortuosa jornada intelectual rumo à apreensão correta do pensamento marxiano, que
teve diversas fases, nunca se completou e conheceu problemas até o fim (Lukács não
atinou com a teoria das abstrações nem na
Ontologia
) construiu um edifício
conceitual em que diferentes critérios se esbatiam. Chasin frisa, contudo, que essas
debilidades não representam todo o pensamento de Lukács e que a própria crítica a
que os submete é ela mesma inspirada por ele cujo mérito de ter assinalado (ainda
que tardiamente) o caráter ontológico e advertido para outras contribuições de Marx,
além da própria inclinação para a ontologia, singularizam-no no panteão dos
pensadores marxistas. Inobstante tais conquistas, Lukács não chegou a compreender
na sua integralidade a teoria das abstrações nem atentou para sua cosedura, muito
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embora tenha percebido seus elementos conceituais mais relevantes, que, contudo,
foram por ele engastados em uma estrutura estranha ao próprio corpo teórico
marxiano. Em síntese, dada a estatura do pensamento lukácsiano, Chasin considera
fundamental submetê-lo a análise e, sob os parâmetros da produção marxiana, apartar
as imensas contribuições dos desacertos e imprecisões. E, lembra ainda o filósofo
paulistano, os embaraços de Lukács são aparentados aos que perpassaram toda a
história da ontologia, atravessada sempre por questões gnosioepistêmicas: é a
paradoxal dificuldade de se apropriar idealmente do mundo em que se vive.
Como citar:
ASSUNÇÃO, Vânia Noeli Ferreira de. Apresentação: da teoria das abstrações à crítica
chasiniana de Lukács.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 1, pp. 146-156, jan./jun
2021.