Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - jan./jun. 2021
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
*
J. Chasin
Ao definir e fixar conceitualmente o eixo estrutural do processo do conhecimento,
a teoria das abstrações, reiterando nesse campo a resolução ontológica do discurso
marxiano, pode exercer salutar efeito norteador como âncora analítica a serviço do
descortino da obra de Marx. Detectada, ajuda a evitar, ou torna muito difícil, pela
positividade de suas determinações, que a reflexão marxiana seja passível de inserção
ou acoplamento a malhas teóricas estranhas ou contrárias à sua natureza, ou mesmo
visualizada enquanto tributária de virtudes intelectuais alheias, e assim levada a perder
identidade e consistência em associações indevidas ou, pelo menos, demasiado
acentuadas, seja com a arquitetônica traçada por outros autores, seja por subsunção
a divisões e ordenamentos tradicionais das disciplinas científicas, que ela em verdade
deixa para trás em seu próprio momento constitutivo. Para valorizar a ilustração desse
complexo problemático, e com ela prosseguir a discussão do mesmo, nada melhor do
que lançar mão, criticamente, de um importante esforço lukácsiano a propósito da
metodologia marxiana, para a qual ofereceu a propositura da
dialética entre universal
,
particular
e
singular
.
Não há, nos estudos lukácsianos a respeito de Marx, qualquer alusão à
teoria das
abstrações
. Nisto, o pensador húngaro, à semelhança do que já foi assinalado para o
quadro geral dos autores, não se distingue de quantos se impuseram a interpretação
daquele. Indistinção tanto mais significativa quando se destaca seu grande mérito na
identificação do caráter ontológico da obra marxiana, e por ter dedicado à explicitação
e ao desenvolvimento dessa ontologia praticamente a íntegra de sua última cada de
vida intelectual. Se aos intérpretes em geral o viés gnosiológico pode servir de álibi
para essa imperceptibilidade, no caso de Lukács a explicação é bastante mais
complexa, envolvendo mesmo toda história da decifração da obra marxiana e,
a fortiori
,
*
O texto aqui reproduzido, com algumas modificações, é o quarto capítulo de
Marx
.
Estatuto Ontológico
e Resolução Metodológica
. São Paulo: Boitempo, 2009, que recentemente ganhou sua terceira
reimpressão.
DOI 10.36638/1981-061X.2021.v27.609
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as vicissitudes que pautaram o desenvolvimento de sua própria elaboração pessoal.
Aqui, é óbvio, não é pretendido aflorar, nem de longe, a intrincada dimensão
enciclopédica da história intelectual do marxismo, mas ficar inteiramente adstrito aos
limites mais gerais da questão em delineamento, e esta tanto mais evidencia sua
importância quando se antecipa que a inobservância da
teoria das abstrações
, na
interpretação lukácsiana, não implica a desconsideração de seus elementos conceituais
mais importantes. Estes não são ignorados, mas desinseridos da malha textual das
significações marxianas e transferidos para um contexto semântico diverso, para o
qual, paradoxalmente, Lukács não encontra arrimos textuais em Marx. Assim, por
dissolução dos nexos de suas partes constitutivas, a teoria das abstrações não pode
emergir, enquanto todos seus elementos fundamentais são rearrumados e
reabsorvidos por uma
lógica
de inspiração extrínseca à obra marxiana, tanto em
prejuízo da teoria das abstrações, é claro, como também da própria propositura de
uma dialética entre universal, particular e singular a serviço daquele pensamento.
O tratamento lukácsiano da questão decorre, fundamentalmente, de seus
trabalhos voltados à estética. Não tem por objetivo um estudo específico e autônomo,
monograficamente centrado em Marx, mas a busca de arrimo e legitimidade teóricos,
inclusive pela incursão na obra marxiana, para o tipo de resolução que confere ao tema
pedra angular do equacionamento categorial de sua
Estética
. Ele próprio explica, no
prefácio aos
Prolegômenos para uma Estética Marxista
, que "o estudo publicado neste
livro foi planejado e escrito originalmente como um capítulo da parte dialético-
materialista da minha estética”,
1
posteriormente destacado desta, por ajustes
estruturais do plano originário, e publicado em separado porque "o problema da
particularidade é um dos mais negligenciados, tanto do ponto de vista lógico como
do ponto de vista estético”.
2
O escrito é confirmado no Capítulo 12 da
Estética
, único
no qual a questão volta a ser tratada, resumidamente, do ponto de vista lógico.
É relevante datar essas obras: a primeira, que veio a público na forma de livro
em [19]56, foi gestada e elaborada no período estalinista, paga ainda o ônus daquelas
desagradáveis citações inócuas e protocolares a Stalin com que Lukács armava, à
época, seu costumeiro e conhecido subterfúgio; a segunda, prefaciada em fins de
1
LUKÁCS, G.
Introdução a uma estética marxista
. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 1.
2
Idem
, p. 3.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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[19]62 e editada em meados do ano seguinte, foi pensada e escrita desde princípios
dos anos [19]50 e por cerca de uma década. De sorte que os textos relativos à dialética
entre universal, particular e singular, a parcela dos materiais que aqui importa,
pertencem à fase mais recuada dos esforços lukácsianos por "uma obra estética
essencialmente sistemática". Em verdade, foi a única vez em que tratou da questão, já
que, mais de uma cada e meia depois, no capítulo sobre Marx, integrante da parte
histórica da
Ontologia
, sintomaticamente, não reservou tratamento específico ao tema,
e no capítulo dedicado a Hegel a questão é resumida às
determinações reflexivas
.
O grande painel da questão, portanto, o os
Prolegômenos
, em especial seus
três primeiros capítulos, que encerram a abordagem lógica, centrados na questão do
particular
, nos quais Lukács procura pespontar uma larga visualização da história do
pensamento relativo ao assunto. Principia por aludir à antiguidade do problema e ao
"perigo da autonomização do universal, percebido por Aristóteles, e que, antes dele,
assumira forma clara na filosofia de Platão", para acentuar logo depois que esse defeito
"se aprofunda na filosofia medieval com o realismo conceitual".
3
Perigo ou defeito do
qual destaca o aspecto da "não apreensão da singularidade, da particularidade e da
universalidade como determinações da realidade, mesmo nas relações dialéticas
recíprocas de umas com as outras", detalhando que, "ao contrário, uma dessas
categorias passa a ser considerada como mais real em confronto com as outras, e até
como a única real, a única objetiva, ao passo que às outras é reconhecida apenas uma
importância subjetiva”,
4
ilustrando tais observações com os traços característicos ao
realismo e ao nominalismo: "No realismo conceitual, é a universalidade que recebe
semelhante acentuação gnosiológica. A oposição nominalista inverte as designações e
faz da universalidade uma determinação puramente subjetiva, fictícia".
5
Passo
subsequente, menciona de passagem alguns nomes da filosofia moderna que teriam
contribuído, especialmente Espinosa, para a compreensão da lógica da particularidade,
para grifar, todavia, que essa questão "só começou a se colocar no centro do interesse
filosófico quando o interesse científico não mais se limitou à física (concebida
substancialmente como mecânica) e se estendeu à química e, sobretudo, à biologia.
Quando, na biologia, começaram a aparecer os problemas da evolução, quando a
Revolução Francesa colocou em primeiro plano a luta pela ideia da evolução nas
3
Idem
, p. 6.
4
Idem
,
ibidem
.
5
Idem
, pp. 6-7.
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próprias ciências sociais, então, sim, a nossa questão começou a se colocar no centro
do interesse filosófico".
6
Isso o leva a ponderar que "não por que se surpreender
que tal fato tenha ocorrido na filosofia clássica alemã", pois foi ela que, "nessa grande
crise de crescimento do pensamento, principiou a colocar o problema da dialética e a
buscar sua solução".
7
Daí para frente, o estudo de Lukács se ocupa de Kant, Schelling
e Hegel, sendo arrematado, sintomaticamente, pela exposição de O Particular à Luz
do Materialismo Dialético, e não, a rigor, por um capítulo voltado a Marx.
A
Crítica da Faculdade de Julgar
é considerada por Lukács como "a primeira obra
na qual o problema da particularidade, tipicamente moderno na sua formulação
consciente, porém antiquíssimo em si mesmo, ocupa um lugar central".
8
Todavia, a
admissão desse papel precursor não implica o reconhecimento do pensamento
kantiano nos termos privilegiados com os quais, em geral, isso é levado a efeito na
atualidade: "A nosso ver, a filosofia de Kant inclusive a
Crítica da Faculdade de Julgar
o representa nem uma síntese grandiosa e fundamental, sobre a qual o
pensamento posterior deva ser construído, nem a descoberta de um novo continente,
'uma revolução copernicana' na história da filosofia. Ela é e isto, naturalmente, não é
pouco um momento importante na crise filosófica agudizada no curso do século
XVIII".
9
Sob essa avaliação de conjunto, a obra kantiana aparece "oscilando entre o
materialismo e o idealismo e entre o pensamento metafísico e o dialético". Assim, por
exemplo, é aflorado o mérito de que "a dialética transcendental na
Crítica da Razão
Pura
coloca a contradição como problema central da filosofia", com a imediata restrição
de que "o faz, por certo, apenas como problema que determina os confins
intransponíveis do 'nosso' pensamento, e como problema do qual excetuado esse
posicionamento dos limites não podem ser extraídas consequências de qualquer tipo
para o método do conhecimento, para o método das ciências".
10
E a argumentação
prossegue sempre na linha denunciadora da excludência kantiana entre razão e
contradição: "E onde Kant consigna à razão uma importância decisiva, na ética, a
contraditoriedade desaparece completamente para ele e Kant reconhece a oposição
6
Idem
, p. 7.
7
Idem
, pp. 7-8.
8
Idem
, p. 8.
9
Idem
,
ibidem
.
10
Idem
,
ibidem
.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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rígida, antinômica, entre o comando da razão e as sensações humanas, entre o eu
inteligível e o eu empírico. Por isso, na sua ética, domina exclusivamente a
incondicionada sujeição ao
dever ser
, e não há lugar para uma dialética dos conflitos
éticos".
11
Pela via da referida excludência, reafirma Lukács, "Kant veio a se tornar de
fato, contra sua própria vontade e sem ter consciência disto, a primeira figura
importante e influente na criação do todo dialético no idealismo da filosofia clássica
alemã. Sua filosofia é antes um sintoma da crise do que uma séria tentativa de solução.
Sob essa ótica a própria
Crítica da Faculdade de Julgar
não é uma exceção".
12
Para Lukács, esse travamento interno ou
irresolubilidade
do pensamento
kantiano é condicionado pela atitude do filósofo em face do evolver científico de sua
época, na qual a "recém-surgida biologia havia apresentado à filosofia questões que
obrigavam a despedaçar a moldura do pensamento coerentemente mecanicista das
correntes dominantes da época", uma vez que, ressalta também, "o nascimento da
biologia como ciência está ligado à luta pela evolução". Nesse quadro, "Kant assume
posição resoluta contra a nova corrente", o que significa "rejeição da possibilidade de
uma teoria científica das origens e da evolução", implicadora em Kant da "rejeição do
método científico de novo tipo que estava por superar o dos séculos XVII-XVIII".
13
Todavia, o desafio da nova problemática estava posto, e "Kant viu de modo
relativamente claro as tarefas que a ele se antepunham, bem entendido que dentro
dos limites impostos pelo idealismo subjetivo e o antievolucionismo".
14
Transcrevendo
na íntegra o mais importante dos parágrafos do inciso V (Do Juízo Reflexionante) da
Primeira Introdução
à
Crítica da Faculdade de Julgar
, em que "Kant formula a questão"
fazendo a distinção operativa entre
classificação
e
especificação
da diversidade,
segundo o pensamento remonte do particular ao universal ou, ao inverso, descenda
do universal ao particular , Lukács caracteriza o equacionamento kantiano do
problema. Depois de assinalar que o mesmo traduz, à semelhança da prática em geral
do pensamento iluminista, a identificação espontânea e acrítica de todo pensamento
ao pensamento metafísico, decorrendo disto que "a evolução é para Kant
conceitualmente incompreensível (não existe), ressalta a presença de um aspecto novo,
referindo-se diretamente à propositura da
classificação
e
especificação
: "Equivale a
11
Idem
,
ibidem
.
12
Idem
, p. 9.
13
Idem
,
ibidem
.
14
Idem
, p. 10.
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dizer que a indução e a dedução, que até então haviam se apresentado frequentemente
como escolas filosóficas em paralelo e às vezes até nitidamente divididas (pense-se
em Bacon, de um lado, e Espinosa, do outro), se apresentam aqui como métodos
coordenados", ainda que seja "certo que também em Kant são operações mentais
rigidamente separadas uma da outra".
15
Importa destacar, na longa e entrecortada argumentação da crítica lukácsiana, o
andamento pelo qual é advertido que
classificação
e
especificação
colocam, é evidente,
a questão das relações recíprocas entre universalidade e particularidade, demandando
com isso um novo
programa gnosiológico
, incompatível, de pronto, com a doutrina
fundamental da
Crítica da Razão Pura
; pauta essa que finda por desembocar, pelos
meandros de uma série de aporias, na retrocedente concepção hipotética do
entendimento intuitivo
"uma faculdade inteiramente espontânea da intuição seria
uma faculdade de conhecer distinta e totalmente independente da sensibilidade, ou
seja, um entendimento no sentido mais amplo do termo", concebido "negativamente,
ou seja, apenas como não discursivo" (
Crítica da Faculdade de Julgar
, § 77).
Propositura com a qual a obra kantiana, em suas oscilações, renteia os perigos das
vias cognitivas extrarracionais, é claro que, advertidamente, a elas voltando as costas,
pois, como acentua Lukács, "num único ponto, ele é capaz de ultrapassar o horizonte
da
Crítica da Razão Pura
: mas é no sentido da mais abstrata metodologia. Ainda
aqui, o conhecimento intuitivo emerge apenas como horizonte, como última
perspectiva. Kant pretende unicamente ter demonstrado que a hipótese de um
entendimento intuitivo (de um
intellectus archetypus
) não contém 'contradição alguma'.
Nessa tese cognitiva, ele vê um
para além
, algo que para o 'nosso' pensamento é por
princípio impossível de ser alcançado".
16
Com efeito, a linha mestra da crítica lukácsiana a Kant, a propósito da lógica da
particularidade, vai da configuração pela exigência de um novo
programa gnosiológico
,
posta pela questão das relações recíprocas entre universalidade e particularidade, em
contraposição à
Crítica da Razão Pura
, ao colapso do mesmo na
Crítica da Faculdade
de Julgar
, entendida como "um compromisso em face da Primeira Introdução", o que
manteve o espírito de fundo da
Crítica da Razão Pura
, mas por uma mutação qualitativa
da contraposição básica que a anima, frustrando o papel precursor de Kant na
15
Idem
, p. 11.
16
Idem
, p. 24.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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formulação da dialeticidade.
O desenho crítico do impasse é enérgico: dado que
classificação
e
especificação
implicam uma dialética de universal e particular, "para poder encontrar, em geral, uma
resposta de algum modo coerente às questões decorrentes de tais relações, Kant
precisa ir além daquela relação entre pensamento e ser que estabeleceu na
Crítica da
Razão Pura
, na qual, sabemos, qualquer integralização de forma, qualquer princípio
formador, provém exclusivamente da parte do sujeito, enquanto que o conteúdo deriva
das 'afecções' que a coisa-em-si exercita, através das sensações físicas, sobre o sujeito.
que todas as categorias, todas as formas, são produzidas pela subjetividade
transcendental criadora, Kant deve, consequentemente, negar ao conteúdo, ao mundo
das coisas em si, qualquer integridade de forma, concebê-lo como um caos privado de
ordem por princípio e que pode ser ordenado com as categorias do sujeito
transcendental. [...] Classificação e especificação constrangem Kant a ir para além dessa
concepção; ele o faz, certamente sem perceber que não é fiel, desse modo, aos
princípios da sua principal obra teórica. [...] De fato, o citado programa gnosiológico
para esse campo é inconciliável com a precedente contraposição entre formatividade
puramente subjetiva e caos de conteúdo".
17
O caminho kantiano para além dessa contraposição fundante é mostrado, no
percurso de momentos da
Crítica da Faculdade de Julgar
e da Primeira Introdução,
como claudicante e malsucedido, uma vez que, compreensivelmente, impedido de
buscar as raízes, os fundamentos efetivos da especificação e da classificação na
diversidade objetiva, e podendo, de sua posição, "postular uma subjetiva faculdade
cognitiva, é obrigado a reproduzir em nível mais elevado a contradição fundamental
da
Crítica da Razão Pura
, ao procurar alguma solução, ainda que aparente, sem demolir
de todo o seu sistema".
18
Assim, cotejando a diversidade de soluções entre o primeiro
e o segundo texto na Primeira Introdução, distintas "faculdades da alma" são
encarregadas da especificação e da classificação, ao passo que na
Crítica da Faculdade
de Julgar
, "em antítese a essa separação radical dos dois caminhos, a tarefa do
conhecimento, em ambos os casos é atribuída ao juízo",
19
muito significativamente
subdividido em
determinante
e
reflexivo
e, fazendo aflorar aspectos relativos às
17
Idem
, p. 12.
18
Idem
, p. 13.
19
Idem
, p. 15.
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NOVA FASE
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concepções kantianas de lei particular, necessidade e contingência, entre outras,
Lukács termina por estabelecer que evidente que lidamos, também aqui, com um
agnosticismo, que é, todavia, qualitativamente diverso daquele da
Crítica da Razão
Pura
". E o crítico explica: "Lá se tratava de uma incognoscibilidade derivada do
princípio das coisas em si, que não excluía um conhecimento continuamente crescente
e aperfeiçoado dos fenômenos. O fato de esse conhecimento se referir apenas ao
mundo dos fenômenos e não à realidade objetiva não tem maiores consequências para
a prática científica concreta",
20
enquanto que na
Crítica da Faculdade de Julgar
"Essa
contraditoriedade aparece ainda com maior profundidade quando se deve partir do
particular para o universal, na esfera do juízo
reflexivo
. [...] O subjetivismo e o
agnosticismo, portanto, aparecem de modo ainda mais pronunciado: o agnosticismo
domina todo o campo da ciência, todos os seus problemas concretos, as suas relações.
E o método inteiro se enrijece num aberto subjetivismo"
21
, arrematando que "para
Kant, é necessário aquilo que pode ser conhecido
a priori
; o resto escorrega
inevitavelmente para a contingência. Assim, para ele, qualquer diferenciação, qualquer
especificação da realidade e, por conseguinte, tudo que é particular e singular deve
necessariamente aparecer como contingente".
22
No que tange, especificamente, à particularidade, entende o pensador húngaro,
Kant tem parcialmente razão quando na relação da mesma com o universal o
momento da contingência, pois isto rompe com a rigidez mecanicista, e também é
correta sua "constatação de que aquilo que constitui a particularidade não é, em sua
especificidade, passível de ser meramente deduzido do universal, e que de um
particular não se pode obter
sem mais
um universal. A proposição do problema da
contingência nessa relação recíproca é, nesse sentido, justificada", porém, e é
explicitada uma objeção de fundo, tal justificação é válida em sentido forte "para
um pensamento realmente dialético que, ao mesmo tempo, reconheça na contingência
um elemento, um momento da necessidade. E desse reconhecimento não há traço
algum em Kant".
23
Sendo a emergência histórica da dialética o critério geral dos rumos
analíticos desse estudo, Lukács pode, então, depois de diversas ressalvas favoráveis a
momentos ascendentes
do pensamento kantiano, re-enunciar, em termos conclusivos,
20
Idem
, p. 16.
21
Idem
, p. 17.
22
Idem
, p. 18.
23
Idem
, p. 19.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 157-239 - jan./jun. 2021 | 165
que o pensador alemão "expõe uma gnoseologia na qual todos os problemas
concretos, que são insolúveis para 'nós', devam ser levados, todavia, à resolução. O
limite do conhecimento, aqui, não se situa, como na
Crítica da Razão Pura
, no horizonte
do conhecimento concreto real, sem que este seja tocado, mas no interior dos
conhecimentos concretos. Aqui não é proibido ultrapassá-lo, como na primeira crítica,
a ultrapassagem deve mesmo ser tentada; vale dizer, o limite deve ser superado, mas
com a consciência filosófica de que se trata de conhecimentos para 'nós'
insuprimivelmente problemáticos. Essa posição ainda mais oscilante de Kant indica
claramente que ele pelo menos intui e sente a crise filosófica de seu tempo. Por isso,
tendo admitido uma problemática sem solução, propõe, em contraste com a primeira
crítica, um salto no abismo do novo".
24
Donde resvalar, como foi referido de início, ao
hipotético
entendimento intuitivo
, que proporcionaria "uma 'universalidade sintética',
em antítese à 'universalidade analítica' do entendimento discursivo. Para tal maneira
de conhecer, o problema da contingência, por exemplo, na conexão do todo com as
partes, do universal com o particular, de fato não existiria. Como se vê, a dialética
interna dos problemas leva Kant até o ponto em que surgem as questões da dialética,
porém, nesse ponto ele faz marcha a ré e recorre à intuição, ao irracionalismo. Decerto,
também é evidente que Kant tem uma clara percepção dos perigos que derivam desta
sua posição filosófica. Ele está bem longe de a indicar como uma via que possa ser
trilhada integralmente, ela que é a saída metodológica indicada por suas
considerações. Chega mesmo a recusar energicamente ao 'nosso conhecimento' essa
capacidade de intuir, postulada por ele próprio; assim, é claro, fica subentendida a
abdicação de 'nosso' conhecimento a qualquer dialética".
25
Se Kant, em matéria de dialética da particularidade, é um precursor falido,
Schelling é o sucessor que consuma a ameaça irracionalista. Segundo Lukács, ao
contrário de Goethe, que "saúda a
Crítica da Faculdade de Julgar
como a confirmação
filosófica de seu modo espontaneamente dialético de considerar os fenômenos da
natureza",
26
não manifestando interesse pela antítese entre discursivo e intuitivo, nem
"hesitando em pôr de lado os escrúpulos gnosiológicos de Kant", Schelling "assume a
antítese kantiana entre discursivo e intuitivo e a identifica com a antítese entre
24
Idem
, p. 22.
25
Idem
, pp. 23-24.
26
Idem
, p. 24.
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NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 157-239 - jan./jun. 2021
pensamento metafísico e pensamento dialético".
27
Em compensação, desde o princípio de suas elaborações, "Schelling ultrapassa
decididamente o conceito kantiano da vida orgânica, conduzido pelo processo lógico,
espontaneamente justo, segundo o qual a unidade das leis naturais não pode ser
eliminada pelo reconhecimento de um modo particular de formação daquilo que é
orgânico". Faz também a crítica da contingência do
impulso formador
, rejeita a suposta
particularidade de uma
força vital
, e sustenta que a vida "consiste em
um livre jogo de
forças
, que é mantido continuamente por algum influxo externo. A vida, pois, não é em
si um particular, mas apenas uma determinada
forma
do ser". Donde a conclusão de
que "as forças que estão em jogo durante a vida não são forças
particulares
,
próprias
à natureza orgânica; porém, o que põe em
jogo
aquelas forças naturais, cujo resultado
é a
vida
, deve ser um princípio
particular
, que a natureza orgânica de um certo modo
toma da esfera das forças universais da natureza e transfere à esfera superior da vida,
aquilo que de outro modo seria produto morto de forças formadoras".
28
É a maneira schellinguiana de conceber e tratar da particularidade e da
contingência, já nos textos de juventude, que interessa a Lukács, entendendo que as
mesmas "assumem um significado dialético que Kant não teria podido compreender:
as duas categorias começam a perder aquela rigidez e abstratividade metafísica que
tinham em Kant, tornam-se mais concretas, vêm inseridas em nexos dialéticos".
29
E ao
mesmo tempo que assinala que esse aspecto se acentua nos trabalhos posteriores,
consigna "as tendências problemáticas de toda a sua filosofia", concentradas "na sua
firme manutenção do falso dilema kantiano entre discursivo e intuitivo, bem como no
desenvolvimento irracionalista do
intellectus archetypus
como intuição intelectual",
sem deixar de frisar, tendo por referência
A Alma do Mundo
, "os dois defeitos do
jovem Schelling: a nítida contraposição adialética entre necessidade e liberdade, como
herança kantiana, e a mistificação da liberdade como consequência da filosofia da
intuição".
30
Entrecruzando momentos positivos e negativos da reflexão schellinguiana, o
texto de Lukács procura destacar a linha ascendente da mesma no desenvolvimento
27
Idem
, p. 25.
28
Idem
, p. 26.
29
Idem
, p. 27.
30
Idem
, p. 28.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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da dialética entre universal e particular. Assim, flagra vícios de
dedutibilidade
no
tratamento da mesma "subsunção sem resíduos, 'não contingente', do particular e
do singular ao universal", mas toma por decisivo que "em face de Kant é um grande
avanço que Schelling suponha uma compenetração recíproca dos diversos momentos,
uma superação mútua deles, uma conversão de um no outro".
31
Também confere
grande relevância à influência exercida por Hegel, sob a qual "o idealismo objetivo de
Schelling se coloca sobre uma base própria", que é descrita nos seguintes termos
críticos: "essa objetividade, contudo, recebe um caráter platonizante, quer dizer, o
intelecto intuitivo postulado por Kant atua em Schelling como uma tentativa de
renovação dialética da doutrina platônica das ideias. É preciso salientar, decerto, que
essa reviravolta a Schelling a possibilidade de proclamar novamente a
cognoscibilidade das coisas em si no terreno do idealismo objetivo; por isso estão
presentes em sua obra apesar de todo o misticismo irracionalista também
tendências à objetividade, à admissão da cognoscibilidade do mundo exterior, e essas
tendências vão para muito além de Kant".
32
Todavia, e a crítica agora é levada à frente
por considerações relativas à categoria da
potência
, "um dos momentos mais
importantes da 'construção' schellinguiana do mundo" e em que pese "a relação
dialética do universal e do particular tenha podido se tornar um importante momento
do método filosófico, o ecletismo e o irracionalismo de Schelling destroem a cada
passo as conquistas que mal tinham sido feitas".
33
O desenlace se no caso mais relevante, apesar de apreensões adequadas,
porque "os momentos construtivos das potências e cada uma dessas potências é ao
mesmo tempo o absoluto (o universal, o idêntico) e, também, insuprimivelmente, o
particular. Isso está substancialmente ligado ao fato de que Schelling reconhece a
objetividade, a reprodução da realidade através do pensamento, na universalidade
abstrata. É por essa razão que nele a potência não é uma mediação real entre o
imediato e o absoluto e, sim, uma presumida relação quantitativa dos princípios
(objetivo, subjetivo etc.), em que a escolha, a determinação dessas proporções
quantitativas é pura e simplesmente abandonada ao arbítrio que constrói. Hegel,
portanto, tem razão quando diz da construção schellinguiana por meio das potências:
'Representar tudo como uma série é formalismo: encontramos determinações sem
31
Idem
, p. 29.
32
Idem
, p. 30.
33
Idem
,
ibidem
.
J. Chasin
168 | Verinotio
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necessidade, em lugar de conceitos, encontramos fórmulas'".
34
Em suma, "o platonismo
de Schelling tem como consequência que tudo inclusive a questão da relação do
universal ao particular sofra uma radical inversão: a essência da realidade objetiva
aparece como cognoscível, mas a ideia não deve ser o reflexo das coisas, mas, sim,
cada coisa ganha sua verdadeira existência, seu em si, na ideia. Surge, assim, um
mundo das ideias todo particular. [...] Dessa forma, em contraste com a teoria platônica
originária das ideias na qual as ideias representam a universalidade, a legitimidade
das coisas singulares e das relações a dialética do universal e do singular é levada
por Schelling diretamente ao próprio mundo das ideias".
35
Isso reconverte a
dinâmica
pretendida em
estática
, e a dialética do universal e particular se mostra de novo como
"um transpasse sem resíduos e misticamente colorido do particular ao universal
abstrato". De modo que o impulso schellinguiano à lógica da particularidade se esvai
em simples formalismo e sua "dialética degenera em jogo vazio de analogias e
paralelismos".
36
Às tentativas malsucedidas de Kant e Schelling, a crítica lukácsiana contrapõe o
cenário bem diverso da performance hegeliana. Esta assume, em tudo e por tudo, o
perfil de uma constituição decisiva para os propósitos analíticos do marxista húngaro,
vale dizer, para sua tematização do próprio processo constitutivo do pensamento
marxiano, que assim é alcançado em seu perfil e natureza. A diversidade entre Hegel
e seus antecessores se patenteia, desde logo, pelos contextos histórico-intelectuais:
enquanto Kant e Schelling "se acostaram aos problemas da universalidade e da
particularidade só, praticamente, do ponto de vista de uma compreensão filosófica do
problema da vida na biologia", Hegel "partiu precisamente da tentativa de
compreender filosoficamente as reviravoltas sociais de sua época", e só mais tarde se
voltou à filosofia da natureza. Motivos pelos quais "pôde superar de maneira concreta
e original os obstáculos que fizeram Kant se desviar do caminho".
37
Com efeito, a postura de Lukács em face de Hegel é franca e decidida. Não
titubeia em descartar, logo de saída, as concepções hegelianas sobre a natureza,
classificando-as como obscuras e antidialéticas, pelas quais seu autor se aproxima de
"limites idealistas análogos aos de seus predecessores", para proclamar logo em
34
Idem
, p. 31.
35
Idem
, p. 32.
36
Idem
, p. 33.
37
Idem
, p. 36.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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seguida, com toda razão, que, "Não obstante esses limites e essas indissolúveis
contradições, Hegel é o primeiro pensador a colocar no centro da lógica a questão das
relações entre singularidade, particularidade e universalidade, e não apenas como um
problema isolado, mais ou menos importante ou mais ou menos acentuado, mas como
questão central, como momento determinante de todas as formas lógicas, do conceito,
do juízo e do silogismo",
38
modulando essa ênfase com a observação restritiva de que,
"naturalmente, em seu tratamento vêm à luz todas as distorções provocadas pelo
idealismo objetivo, pela identidade sujeito-objeto, pela contradição entre sistema e
método", para estabelecer em conclusão que, apesar de "toda a sua contraditoriedade,
a lógica de Hegel representa um importante passo à frente na concretização e
clarificação de nosso problema", antecipando a explicação de que Hegel "só pode dar
esse passo porque fez múltiplas tentativas de compreender filosoficamente as
experiências da revolução burguesa de sua época, de encontrar nela a base para a
existência de uma dialética histórica, para iniciar daqui a construção de uma lógica de
novo tipo".
39
Segundo tal abordagem, essa postura já caracteriza o Hegel de Frankfurt,
representada mais enfaticamente pelas reflexões de
A Constituição da Alemanha
. Em
linhas gerais, ao mirar com aprovação "os objetivos burgueses antifeudais e a política
da Revolução Francesa", no sentido de que a tarefa da revolução seja a criação de "um
ordenamento estatal que corresponda às relações sociais reais", corrigindo com isso
"o contraste entre o real peso econômico-social do terceiro estado e a sua nulidade
política", Hegel "depara com o problema da dialética histórico-social de universalidade
e particularidade".
40
Em sua tradução filosófica desse processo histórico, ele "considera
o estado do
ancien régime
como uma formação que alimenta a pretensão de
representar a sociedade como um todo (em lógica: de ser universal), se bem que um
estado como tal sirva exclusivamente aos interesses dos estratos feudais dominantes
(em lógica: do particular). [...] quadro no qual um sistema socialmente sobrevivente
exerce uma real e verdadeira tirania que é desonrosa para todo o povo (o universal se
torna particular). A classe revolucionária, a burguesia, o terceiro estado, ao contrário,
representa na Revolução o progresso social, bem como os interesses das outras
38
Idem
, pp. 37-38.
39
Idem
, p. 38.
40
Idem
,
ibidem
.
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classes (o particular se torna universal)".
41
De sorte que a exposição lukácsiana insiste
a cada passo no formato do pensamento hegeliano como
tradução filosófica
da
realidade histórico-social, sempre que por reconhecida a validade de alguma de
suas inclinações reflexivas ou de certas tematizações específicas: "Hegel transpõe aqui
em termos filosóficos as situações sociais e as ideias políticas que as exprimem.
Entretanto, esta transposição à abstratividade lógica é uma concreta generalização de
temas reais e essenciais da Revolução Francesa. Não apenas uma generalização dos
pensamentos de atores importantes da Revolução, mas também daquela objetiva
situação ideológica, socialmente condicionada, cujas formas de expressão Marx definiu,
posteriormente, como 'ilusões heroicas' [...]. Também Hegel, naturalmente, estava
vinculado ao terreno dessas ilusões. Porém, isso não altera em nada o fato de que a
sua transposição em termos filosóficos era o reflexo de uma realidade social".
42
Pode mesmo ser dito, sem exagero, que no escrito considerado a interpretação
lukácsiana do pensamento hegeliano gira em torno do eixo da
transposição filosófica
,
que atua inclusive como critério de verdade, de tal forma que uma tematização
qualquer é adequada ou inadequada, correta ou incorreta, em algum grau ou nível,
sempre por correlação direta a concepções de realidade, dadas ou supostas como
verdadeiras ou falsas. Nessa linha, o tratamento conferido à concepção hegeliana da
história é uma excelente ilustração dessa acuidade para o concreto divisada em Hegel.
Assim, temos que as "necessárias reservas críticas em face das distorções idealistas
não podem, contudo, eliminar o fato de que a dialética do universal e particular na
história se apresenta em Hegel num nível mais elevado do que em qualquer
predecessor, que os seus pensamentos fundamentais não são absolutamente puros
esquemas formalistas, mas sim sérias tentativas de captar os momentos reais do
desenvolvimento histórico".
43
E, neste mesmo segmento, depois de enfatizar a
sensibilidade hegeliana para o
novo
na história, por referência à
Fenomenologia
,
Lukács prossegue com sua avaliação básica, pensando agora nas
Lições sobre a
Filosofia da História
: "Hegel, aqui, não se contenta em relacionar importantes
problemas da filosofia da história à dialética de universalidade e particularidade; essa
dialética tem também um importante papel na indicação das leis mais gerais do
movimento da história. [...] Na medida em que o espírito do mundo se apresenta para
41
Idem
, pp. 38-39.
42
Idem
, pp. 39-40.
43
Idem
, p. 45.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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Hegel como demiurgo da história, o idealismo mistificador atinge precisamente aqui o
seu apogeu. Por outro lado, todavia, Hegel busca conceber a própria história como
teatro das paixões humanas, dos interesses egoístas, dos objetivos particulares, e
representa estas particulares aspirações dos homens, dos grupos humanos etc. como
a força imediata e concretamente motriz da história. Como Engels sublinhou, o fato
aqui decisivo é que, mesmo se através de uma inversão idealista, seja afirmada a
grande verdade histórica de que as lutas das paixões particulares e egoístas dos
homens, na verdade, colocam diretamente em movimento os eventos; embora, no
conjunto, nasçam e morram outros conteúdos, mais altos e mais universais do que
aqueles que os homens colocaram imediatamente em jogo. Esta é a essência da teoria
hegeliana da 'astúcia da razão'".
44
No mesmo âmbito temático e sob o mesmo prisma favorável, Hegel é
reconhecido como o pensador que "fez as contas com as 'ilusões heroicas' da
Revolução Francesa, que haviam iluminado e guiado a sua própria juventude, no que
toca à adesão à sociedade capitalista e à sua forma ideal, representada pela economia
clássica inglesa. Ao mesmo tempo, outrossim, esta posição implicou uma refutação
radical de todas as ideologias da restauração que, sob roupagens mais ou menos
românticas, proclamavam um retorno às condições feudais (Haller, Savigny etc.). Essa
resoluta aprovação da economia capitalista, por outro lado, tem consequências muito
importantes para a concepção hegeliana da história; ela se torna um fator determinante
do juízo e da nova avaliação feita por Hegel da Antiguidade clássica, que fora seu ideal
e seu modelo no período das 'ilusões heroicas'. Hegel a antítese decisiva entre
Antiguidade e presente exatamente no terreno da economia e [...] esta antítese aparece
filosoficamente, ao mesmo tempo, como uma transformação histórica no modo de ser
da dialética de universal e particular: a função dialética do particular na sociedade
moderna, como princípio de suas leis e da necessária autorrenovação, tinha de ser
necessariamente na Antiguidade um princípio de autodestruição da sociedade", e o
raciocínio é confirmado por uma citação do § 185 da
Filosofia do Direito
: "O
desenvolvimento independente da particularidade é o momento que se manifesta, nos
estados antigos, pelo começo da corrupção dos costumes e como razão última de sua
decadência".
45
44
Idem
, p. 46.
45
Idem
, pp. 54-55.
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A exemplificação poderia ser bastante estendida nesse e noutros âmbitos,
todavia, basta mencionar apenas mais alguns poucos momentos nos quais é
assegurado que a
transposição filosófica
da realidade foi consumada, ao menos em
parte, para que fique esboçado um painel de referência. no combate juvenil de Hegel
(Iena), travado "no terreno puramente filosófico" contra a
positividade
categoria
"predecessora de conceitos centrais posteriores como alienação e estranhamento", se
manifestam por detrás desta, pela ótica de Lukács, "antíteses históricas na crítica de
formações sociais passadas, em face das quais Hegel tenta demonstrar a superioridade
da sociedade burguesa nascida da Revolução Francesa".
46
Em conexão com esse
argumento e dentro do mesmo feitio, mas extremando a operação, o crítico marxista,
tendo por referência um texto da outra ponta da produção hegeliana, sustenta uma
leitura que, ao menos pela amplitude e radicalidade da conclusão, não deixa de
surpreender. Tomando por base um trecho de
A Razão na História
, na qual Hegel diz
que "a passagem de uma formação espiritual a outra consiste, precisamente, em que
o precedente universal é superado quando é pensado como particular. Este
subsequente mais alto, por assim dizer, o gênero próximo da espécie precedente, está
intimamente presente, mas ainda não chegou a se afirmar; e isto torna oscilante e frágil
a realidade existente", Lukács sustenta: "O desenvolvimento que começa nesse ponto
é revolucionário e avança de colisão em colisão social. A transformação da
universalidade em particularidade e com isto a dialética de universalidade e
particularidade é o problema da ininterrupta transformação da sociedade como lei
fundamental da história", aditando em abono de sua afirmação mais uma passagem
do texto hegeliano: "Estas possibilidades agora se tornam históricas; elas incluem em
si mesmas um universal de tipo diverso do universal que constitui a base na existência
de um povo ou de um estado. Esse universal é um momento da ideia produtiva, um
momento da verdade que aspira e impele em direção a si mesma".
47
Cabem também, no quadro remissivo à
transposição
, momentos relativos à
tematização do complexo categorial do trabalho, ou mais precisamente a "uma das
descobertas mais geniais" de Hegel a "conexão entre trabalho e teleologia", ademais
que "a ideia decisiva do método histórico hegeliano, a concepção da 'astúcia da razão'
tem seu fundamento filosófico na concepção que Hegel tem do instrumento do
46
Idem
, p. 40.
47
Idem
, pp. 43-44.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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trabalho".
48
Do mesmo modo, pertence a esse painel o tratamento dado às concepções
hegelianas sobre a economia, pelo qual "Hegel compreende conceitualmente
determinadas características essenciais da moderna sociedade burguesa; em particular
e isto demonstra sua importância solitária entre os contemporâneos o papel e o
significado da economia política na estrutura e na reprodução desta sociedade".
49
E
Lukács destaca a respeito, apoiado na adenda do § 189 da
Filosofia do Direito
, que
na "filosofia hegeliana da economia", levando em conta o
sistema das necessidades
,
"aparentemente se cai no mundo da pura contingência, que as forças motrizes da
sociedade burguesa são os singulares desejos, aspirações, paixões etc. do indivíduo
singular. Todavia, como discípulo de Smith e Ricardo, Hegel reconhece: 'Mas este
formigamento do arbítrio produz, por si, determinações universais; e essa aparente
dispersão é conservada por uma necessidade, que intervém por si mesma'".
50
Outros exemplos ainda poderiam ilustrar a
tradução
ou
transposição filosófica
,
mas os novos casos, mais ainda do que os últimos arrolados, comparecem na
elaboração lukácsiana por meio de uma intrincada decantação de falso e verdadeiro,
ou seja, de efetivação ou inefetivação do translado do conteúdo da realidade à
filosofia, o que remete a outra componente característica do estudo aqui resumido: a
dos limites históricos e filosóficos da
transposição
hegeliana. Traços analíticos que
permitem, aqui, inclusive em favor da brevidade, tratamento mais restrito, direta e
estritamente voltado às dimensões conclusivas da investigação lukácsiana. Assim, em
termos globalizantes, temos que "tão somente quando Hegel, não obstante seu
idealismo, se mantém firmemente ligado à ideia do desenvolvimento é que sua
dialética dá lugar a grandes resultados",
51
enquanto as "inexatidões necessariamente
fervilham sobretudo por causa de sua filosofia idealista, por causa, consequentemente,
dos limites postos por esta à concepção de mundo democrático-burguesa mais
avançada e consequente (sabemos que Hegel, sob esse prisma, estava bem longe da
verdadeira coerência), por causa, finalmente, do crescente influxo da miséria alemã, na
época da Santa Aliança, sobre a filosofia de seus tempos mais maduros. Neste ponto,
deve-se sublinhar, energicamente, que aqui não se trata apenas do fato de que
concepções em si justas da dialética de universal e particular sejam turvadas pelas
48
Idem
, p. 48.
49
Idem
, p. 53.
50
Idem
, pp. 53-54.
51
Idem
, p. 50.
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distorções da posição filosófica e econômico-social, mas antes que, causadas por essa
falsa base, venham à luz concepções formalistas, mistificadas, que induzem a erros
precisamente na dialética entre universal e particular. O verdadeiro e o falso, o
progressivo e o retrógrado na filosofia de Hegel se encontram, pois, de modo muito
frequente, diretamente um ao lado do outro".
52
É a isso que Lukács denomina de "dupla face da filosofia hegeliana", que recobre
todo seu
corpus
teórico, embora se estampe de forma especialmente agudizada em
determinados pontos cruciais. Por exemplo, na concepção da teleologia, que mescla
descoberta extraordinária com generalização mistificadora: "A genial concepção da
teleologia em conexão com o trabalho permanece nele limitada a esse campo; Hegel
não pode explicar nem os pressupostos naturais nem as consequências desta justa
intuição sem distorcer, mística e idealisticamente, toda a questão",
53
ou seja, "quando
em Hegel o espírito do mundo se torna o artífice, o demiurgo da história, verifica-se
uma generalização mistificadora daquilo que era, no trabalho humano, a compreensão
real de sua essência concreta".
54
Dupla face
, amálgama de erros e acertos, que chega
aos seus piores momentos, como fora advertido por Marx, quando Hegel "com muita
frequência tenta interpretar o novo a partir do velho e não vice-versa"; ou ainda, para
evidenciar com uma referência específica, quando "tenta 'deduzir' logicamente as
instituições particulares da Prússia da época. Sobretudo, por exemplo, na 'dedução' da
monarquia. [...] Desaparece aqui qualquer real dialética de universal, particular e
singular, substituída por uma pseudodialética formalista e enganosa. E ela se
transforma em pura caricatura quando Hegel, o que decorre necessariamente desses
falsos pressupostos, busca deduzir 'de modo puramente especulativo' a pessoa do
monarca".
55
Em síntese, "a análise hegeliana da sociedade burguesa, a tentativa de
captar conceitualmente suas características em ser e devenir como dialética de
universal, particular e singular compreende toda uma série de ideias geniais (ou pelo
menos de intuições), mas também uma sofística vácua e reacionária. É preciso não
perder de vista essa mistura de justo e de falso, quando se quer compreender a
importância do fato de que Hegel funda pela primeira vez na história dessa disciplina
o edifício inteiro da lógica sobre as relações entre universalidade, particularidade e
52
Idem
, pp. 51-52.
53
Idem
, p. 50.
54
Idem
, p. 48.
55
Idem
, p. 62.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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singularidade. Toda a doutrina do conceito, do juízo e do silogismo tem como base e
conteúdo essas relações".
56
Dialética histórica
ou
lógica de novo tipo
, sob a ótica da crítica lukácsiana, o
grande mérito da lógica hegeliana reside, então, em sua forma de ser, ao menos em
dimensão ponderável, uma lógica de conteúdos ou da realidade: "Precisamente o que
é o aspecto mais positivo da análise de Hegel, o fato de que ele conceba as relações
de universalidade, particularidade e singularidade, não como um problema
exclusivamente lógico, mas como uma parte importante da dialética viva da realidade,
cuja mais alta generalização deve produzir uma forma mais concreta da lógica, tem
por consequência que a concepção lógica seja sempre dependente da justeza ou erro
da concepção da realidade. Os limites da lógica de Hegel são aqui determinados,
igualmente, pelos limites de sua posição em face da sociedade e da natureza, bem
como os seus momentos geniais são determinados pela progressividade de sua atitude
em face dos grandes problemas históricos de sua época".
57
Configuração essa que
Lukács reafirma e desdobra em várias passagens: necessário sublinhar, como um
grande passo à frente, o fato de que nessa dialética, pelo menos de acordo com os
princípios e o método, ainda que nem sempre até o fundo da realização sistemática,
seja um fator determinante precisamente o
conteúdo
histórico-social, e não, como em
Schelling, um esquema abstrato, uma construção formalista. esta reviravolta no
sentido de uma declarada prioridade do conteúdo em relação à forma representa um
importante progresso [...]. De fato, quando ele estabelece corretamente qualquer
relação de universal e particular, e vice-versa, ele o consegue não tanto porque observe
determinadas regras lógicas, mas antes porque compreende corretamente, segundo o
conteúdo, o fenômeno vital cuja generalização aparece em tal relação".
58
Sucessão de
argumentos que Lukács sintetiza, conclusivamente, em termos muito claros e
significativos: "Vimos que se trata de nexos reais da realidade, da natureza e da
sociedade, que na lógica recebem seu reflexo mais abstrato, contudo, tendencialmente
correspondente à realidade. Não é decisivo o fato de que a teoria do conhecimento
em Hegel não se baseie na teoria do reflexo; entretanto, a sua lógica aspira
objetivamente a um tal reflexo da realidade objetiva".
59
56
Idem
, p. 62.
57
Idem
, p. 60.
58
Idem
, p. 51.
59
Idem
, p. 71.
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Diga-se também e de passagem que, em consonância com essa prioridade do
conteúdo, a rejeição hegeliana ao formalismo é igualmente ressaltada, com menções
em especial de suas formulações de juventude, quando é referido que o "formalismo
tem sempre para Hegel fundamentos subjetivistas", de modo que um quadro
conceitual dessa natureza no caso, está em jogo "a ética formalista de Kant e Fichte"
60
"deforma a realidade; [...] dilacera a intuição e sua identidade de universal e particular,
contrapõe uma à outra as abstrações de universal e particular [...]; a unidade dialética
de universal e particular desaparece precisamente porque a vital conexão dialética de
contingência e necessidade é conceitualmente anulada".
61
É importante não deixar de
lado, no entanto, que para a interpretação lukácsiana a lógica de Hegel não está isenta
de formalismo ou logicismo; ao contrário, isto se manifesta até com bastante
frequência, mas sempre como aspecto integrante de formulações débeis ou errôneas
e nos vícios promovidos pela exercitação do espírito de sistema, defeitos pelos quais
o formalismo responde em grande medida: "o caminho do conceito ao silogismo
através do juízo representa uma série ininterrupta de passagens dialéticas, de
conversões ao seu contrário, de transpasses ao outro. Como sempre ocorre em Hegel,
um grande número dessas passagens é extremamente artificioso, é construído
formalmente",
62
de modo que o problema da
dupla face
não apenas reaparece no
terreno da lógica, mas claro que essa duplicidade deve se fazer sentir,
necessariamente, ainda mais na lógica".
63
Identificada enquanto
lógica de conteúdos
, sob a
dupla face da filosofia
hegeliana
, é por esse enquadramento que Lukács aborda, ao longo da dezena final
das páginas de seu estudo, certos elementos relativos a questões de princípio
diretamente relacionados à problemática da dialética entre universal, particular e
singular, que constitui seu tema específico. Explicitando que não faz, nem poderia estar
fazendo aí, a crítica de toda lógica hegeliana, antecipa por isso mesmo uma avaliação
de conjunto, ordenada e grifada pela acentuação do
caráter dinâmico
das três formas
clássicas do pensamento: "no esforço de Hegel por manter sempre o conceito, o juízo
e o silogismo em movimento dinâmico, no transpasse de um ao outro, na conversão
da diversidade em seu contrário, vemos algo de decisivamente positivo e progressivo;
60
Idem
, p. 40.
61
Idem
, p. 41.
62
Idem
, p. 69.
63
Idem
, p. 71.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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sem enfrentar, nem mesmo com um aceno, o problema de saber onde esse heraclitismo
lógico de Hegel encontra necessariamente limites, onde os direitos da lógica formal
devem ser defendidos em face de suas argumentações".
64
E também chama a atenção,
logo de saída, para o
processo de determinação
, pondo em foco que "Hegel aplica
sempre de modo consequente a famosa definição de Espinosa: '
omnis determinatio
est negatio
'; por isso, em Hegel, o processo da determinação é sempre um caminho
do universal ao particular. Nele, em geral, o particular não é tanto um estado
intermediário, uma categoria mediadora estável entre universal e singular, mas antes
o momento, em movimento autônomo, de um processo de movimento da
especificação".
65
E com isso, igualmente de pronto, estabelece a diferença entre a
especificação kantiana e a hegeliana: em Kant, a especificação ocorre "sobretudo como
resultado de um processo cuja essência, direção de movimento e correspondência a
leis devem permanecer desconhecidas para nós por princípio; enquanto em Hegel,
processo e resultado são dados em simultaneidade dialética, e a cognoscibilidade de
ambos não pode jamais se tornar um problema".
66
Ademais, detalha Lukács, "em Hegel,
naturalmente, não somente a particularidade, mas também a universalidade e a
singularidade são tanto processo como resultado; a universalização e a
individualização são nele, por outro lado, um movimento logicamente compreensível
e expressável das coisas e de suas relações, como a especificação, a particularização
(o determinar-se)".
67
Tanto é assim que "precisamente esses movimentos e sua
autoconsciência constituem para Hegel a verdadeira e autêntica dialética, a atividade
do pensamento concreto", de modo que, e com isso Lukács arremata o contraste, a
concepção hegeliana esem "antítese com a concepção metafísica que permanece
presa ao nível muito mais baixo da pura representação", o que é avalizado com a
seguinte afirmação de Hegel: 'Somente a pura
representação
, através da qual a
abstração os isolou, é capaz de manter o universal, o particular e o singular
rigidamente divididos".
68
Reconhecida como
lógica da realidade
, cujas doutrinas dinâmicas do conceito,
do juízo e do silogismo têm por fundamento a dialeticidade entre universal, particular
64
Idem
, p. 65.
65
Idem
,
ibidem
.
66
Idem
,
ibidem
.
67
Idem
,
ibidem
.
68
Idem
,
ibidem
.
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e singular, a lógica hegeliana, em suma, é decifrada, lukácsianamente, pelas relações
recíprocas entre essas três últimas categorias. E outra não seria, pensa Lukács, a
própria concepção que Hegel fazia da lógica, pois "considerava como um de seus
principais encargos indicar o movimento dialético que leva de cada categoria tratada
às demais", tanto que "protesta contra a concepção que pretende reduzir a relação
entre universalidade, particularidade e singularidade a relações puramente
quantitativas".
69
Com efeito, a natureza móvel e conversível dessas categorias é
essencial e imprescindível aos movimentos que elas têm de perfazer, pois, " estes não
vão simplesmente do singular ao universal e vice-versa e neste processo, para ambos
os movimentos, cabe ao particular a inevitável função de mediação mas, ao mesmo
tempo, da universalidade abstrata à concreta, da universalidade inferior à superior, o
que transforma a universalidade precedente numa particularidade, bem como da
singularidade puramente imediata à mediatizada etc.".
70
Ductilidade e movimento,
pois, no complexo de passagens lógicas, que abrange do conceito ao silogismo, e que
tem por fundamento real, relembra o pensador marxista, "o fato de que, segundo
Hegel, 'a determinação conceitual é essencialmente ela própria
relação
'".
71
É bem interessante, e bastante congruente com as diretrizes e os alvos de seu
escrito, que Lukács veja, na doutrina hegeliana do conceito, a dimensão típica ou
teoricamente mais rica de todo o edifício da lógica. Tanto é assim que escolhe a
"singularidade na doutrina do conceito" para exemplificar o
método hegeliano
, ou
seja, a dialética entre universal, particular e singular, uma vez que é na tematização do
conceito, "ao desenvolver a dialética da ação recíproca", que Hegel alcança "a
determinação mais geral de universalidade, particularidade e singularidade como base
da doutrina do conceito", para a qual Lukács ressalta a importância fundamental da
"identidade de identidade e totalidade". Nesta, "de fato, a concepção hegeliana dos
conceitos concretos se expressa do modo mais claro", sendo que "a primeira forma na
qual esta identidade se apresenta é a identidade de singular e universal, precisamente
em sua contraditoriedade".
72
Com efeito, a investigação lukácsiana é bem enfática ao destacar a originalidade
da doutrina hegeliana do conceito. E o faz não apenas porque esta "não constitui o
69
Idem
, p. 70.
70
Idem
,
ibidem
.
71
Idem
,
ibidem
.
72
Idem
, p. 63
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
Verinotio
NOVA FASE
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início da lógica, mas em estreita conexão com isso também porque [...] conceito,
juízo e silogismo se convertem muito mais energicamente uma na outra, se antecipam
reciprocamente e no tríplice sentido hegeliano da palavra se conservam ao se
superarem reciprocamente".
73
Ou seja, considerando uma visão desdobrada desse
conjunto de relações: "o juízo (e, em relação ao juízo, o silogismo) não é degradado
em tautologia, uma explicitação puramente formal de algo implícito já completamente
presente. O conceito, em verdade, é relação em si, mas é também, inseparavelmente,
algo de concluso dentro de si mesmo; ele é a unidade destes momentos antitéticos.
Por isso, o juízo pode produzir uma síntese superior, uma unidade mais rica em
determinações mais desenvolvidas".
74
Dado, então, que é o
resultado
o ponto de chegada da lógica, em contraposição
à maioria das vertentes filosóficas do andamento entrecruzado das relações entre
universalidade, particularidade e singularidade, que transpassa do conceito ao
silogismo, "em Hegel o conceito é o coroamento e a síntese de um longo e rico
desdobramento das determinações lógicas. O conceito hegeliano herda tudo o que
esse processo levou à luz do pensamento: 'o conceito é o que é
concreto
e
mais rico
do que tudo
, que ele é a base e a totalidade das determinações precedentes, das
categorias do ser e das determinações da reflexão. Essas mesmas por isso se
apresentam também no conceito'. Só no espírito desta metodologia é que Hegel pode
falar de conceito concreto e total".
75
Súmula da teoria do conceito que é ratificada nos
desdobramentos de uma outra passagem, já nos segmentos conclusivos do texto, na
qual Lukács contrasta a doutrina hegeliana com a das lógicas precedentes: "Em
qualquer lógica que principia pelo conceito, este é uma abstração artificiosamente
isolada. A conexão, a relação, o ligamento surgem apenas quando os conceitos,
rigidamente fechados em si mesmos, se unem no juízo com outros conceitos, para
cumprir, por meio do juízo, o mesmo processo no silogismo. Em Hegel, ao invés, o
conceito tem uma longa pré-história lógica, rica de mutações alternadas. Por isso ele
é muitíssimo mais concreto, mais cheio de significado do que em outros filósofos. E
essa riqueza de conteúdo, essa concretude, não se refere apenas à esfera de
significados do conceito. Em Hegel, ao contrário, o entrelaçamento recíproco dos
73
Idem
, p. 69.
74
Idem
, p. 70.
75
Idem
, pp. 65-66.
J. Chasin
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objetos já está contido no próprio conceito".
76
Por sua vez, matrizada pelo feitio do conceito como concreto mediatizado, a
determinação da singularidade é tecida na malha das relações dela mesma com a
universalidade e a particularidade. Usando as próprias palavras de Hegel, Lukács
mostra que "'A
singularidade
já está posta com a particularidade. Esta é
universalidade
determinada
; portanto, a determinação se referindo a si mesma, o
determinado
determinado
". Donde "A
universalidade
e a
particularidade
aparecerem [...] como os
momentos do
devenir
da singularidade'. Mas, segue-se disto, ao mesmo tempo, que
as singularidades, em sua existência real, jamais podem ser concebidas como
independentes do particular e do universal".
77
Essa linha de reflexão, ressalta a crítica
lukácsiana, "rompe radicalmente com qualquer tipo de empirismo e de nominalismo",
enquanto "a tendência do idealismo objetivo em colocar singularidade, particularidade
e universalidade no mesmo nível de realidade é um objetivismo, todavia, com
frequência, pelo menos, igualmente justificado, um materialismo invertido, como diz
Engels. O singular, portanto, também para Hegel, é 'um
este
ou
aquele
qualitativo'".
78
Este é, precisamente, o ponto ao qual Lukács pretendia chegar: a superação da
singularidade imediata pela singularidade mediatizada, enquanto tal concreta,
através da operosidade entre singular, particular e universal, o que exemplifica, de sua
ótica, "claramente o essencial do comportamento metodológico de Hegel. Central,
neste comportamento, é precisamente a objetividade e o movimento interior do
próprio conceito”.
79
Donde o arremate: " aqui se exprime o grande progresso na lógica
que o método de Hegel comporta, a prioridade do conteúdo em relação à forma".
80
Mesmo que rodeada de reservas, reparos e objeções, trata-se de uma síntese ou
fórmula não apenas demasiado arredondada e sonora, se levada em conta,
devidamente, a denúncia marxiana da
especulação
, mas problemática,
independentemente dos méritos ou deméritos hegelianos, acima de tudo porque
almeja, sem dúvida, ser a pedra angular esculpida para o enlace com o
método
marxiano
.
Visto o perfil da singularidade, resta abordar as categorias de universalidade e
76
Idem
, pp. 65-66.
77
Idem
, p. 66.
78
Idem
,
ibidem
.
79
Idem
, p. 67.
80
Idem
,
ibidem
.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
Verinotio
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particularidade. Enfatizando com sutilidade, Lukács garante que "De modo ainda mais
nítido, se isto é possível, Hegel sublinha o aspecto processual na relação entre
universalidade e particularidade".
81
Hegel, desde logo, "rechaça como metafísica, ou
pelo menos considera como modalidade inferior de apresentação, que deve ser
superada, a forma da universalidade que é uma simples soma abstrata de mortos
traços singulares",
82
pois, diz Hegel, " se por universal se entende o que é
comum
a
muitos singulares, parte-se da existência
indiferente
dos mesmos e mistura-se, assim,
na determinação conceitual, a imediatidade do
ser
".
83
De modo que "não basta extrair,
por meio da pura abstração, o que é comum a muitos singulares, dados imediata e
sensivelmente". Admitindo que as linhas essenciais dessa formulação possam ser
justificadas, Lukács consigna, porém, que, "na medida em que se recusa liminarmente
a admitir que se alcança a universalidade pela extração dos traços comuns, ela indica
os limites idealistas do pensamento de Hegel".
84
Decerto, independe de contexto e limites que a universalidade hegeliana seja um
complexo dinâmico de relações, cuja apresentação o escrito lukácsiano faz, descartada
a somatória dos traços comuns, por sucessivas aproximações. "'Agora, porém, o
universal do conceito não é simplesmente um universal comum, em face do qual o
particular tem sua subsistência para si, mas antes o próprio particularizante
(especificante)'. E de uma forma mais concisa e positiva: 'Mas, o universal é o que é
idêntico a si mesmo,
expressamente no significado
segundo o qual nele estão contidos
ao mesmo tempo o particular e o singular. Ademais, o particular é o diferenciado ou o
determinado, mas no significado de que ele é universal em si mesmo e enquanto
singular'. O singular, outrossim, tem o significado de que ele é
sujeito
, fundamento
que contém dentro de si o gênero e a espécie, e é ele próprio substancial. [...] 'O que
vale para o universal vale também para o singular e o particular; o que vale para o
particular vale para o singular; mas não vice-versa'. Ou ainda: 'O universal assume o
particular e o singular de forma
sotoposta a si
, o singular assume em si o particular e
o universal, o particular assume o universal'. Hegel indica aqui [...] na subsunção e na
inerência conceitos de relação, cuja dialética determina o relacionamento dessas
categorias uma com a outra. Assim, 'a particularidade é a determinação do universal,
81
Idem
,
ibidem
.
82
Idem
, p. 68.
83
Idem
, p. 66.
84
Idem
, p. 67.
J. Chasin
182 | Verinotio
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mas de tal modo que ela é superada no universal ou nela o universal permanece o que
ela é'".
85
A universalidade comparece, pois, com a dignidade própria à totalidade, mas
no equilíbrio da tríade categorial, sem usurpar lugares, nem ser dissolvida. Não parece
sofrer de exageros realistas, nem, é óbvio, de desqualificações nominalistas. Lukács
deixa para o capítulo subsequente de seu estudo a crítica da concepção hegeliana da
universalidade.
Além dos conceitos de relação, tratados por Hegel na subsunção e na inerência,
"Hegel reconhece também a relatividade posicional dessas categorias", o que põe em
face da determinação da particularidade, cuja urdidura, aliás, fora se dando, por
força do caráter interconexo das três categorias, ao longo dos parágrafos anteriores.
Convém, entretanto, acrescentar que Lukács, em parte citando Hegel, torna a escrever
que "'o particular é, com relação ao singular, um universal, e, com relação ao universal,
um determinado; ele é o meio que contém dentro de si próprio os extremos da
universalidade e da singularidade, por isso as funde em conjunto'",
86
para destacar
que, "assim, Hegel na medida em que isto é possível a um sistema idealista
determinou de maneira dialeticamente exata a posição específica da particularidade na
sua lógica".
87
Ou seja, "pela primeira vez na lógica, o lugar da particularidade foi
determinado como sendo um insuprimível membro da mediação entre singularidade e
universalidade, e isto em ambas as direções do movimento. O particular, porém, é mais
do que um momento da mediação, necessário de modo puramente formal".
88
Com isso,
Lukács alude a outras dimensões da particularidade não contempladas no capítulo dos
Prolegômenos
dedicado a Hegel: 1) a particularidade enquanto
forma de realidade
e
como
instrumento da determinação
, muito relevantes ontológica e
metodologicamente; 2) a particularidade como
centro organizador
da atividade
artística, fundamental para a
Estética
de Lukács. Questões que aborda em capítulos
subsequentes.
Uma vez estabelecido o complexo categorial formado pelo entrelaçamento
dinâmico e conversível de universalidade, particularidade e singularidade, Lukács
arremata, explicitamente, pelo resgate do legado hegeliano como importante
tarefa
marxista
: "Portanto, se as grandes e importantes conquistas da dialética hegeliana hão
85
Idem
, p. 68.
86
Idem
,
ibidem
.
87
Idem
, p. 69.
88
Idem
, p. 73.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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de ser utilizadas também nesse conjunto de questões atinentes à ciência e à filosofia,
é necessário antes de tudo desembaraçar radicalmente o terreno dos momentos da
problemática hegeliana que são falsos do ponto de vista do conteúdo social [...].
Somente nesta base é possível uma crítica materialista aprofundada da lógica
hegeliana, no que diz respeito ao problema da universalidade, particularidade e
singularidade, uma crítica que possa ajudar realmente na utilização para a ciência dos
pontos e intuições geniais de Hegel",
89
o que reafirma uma propositura anterior do
mesmo naipe: "tentar discernir o certo do errado. Tal seria a tarefa de uma crítica
marxista, e de um ulterior desenvolvimento crítico de toda lógica hegeliana".
90
Essa
exortação teórica, independentemente de aspectos
técnicos
de maior ou menor
alcance, traduz certa tendência ou prévia admissão intelectual, implícita ao ideário
lukácsiano, que nunca é levada à tematização, embora seja, tacitamente, divisada como
compatível e afiliável com proveito ao pensamento marxiano. Trata-se, numa palavra,
da admissão, sob moldes tradicionais da divisão e classificação das ciências, de um
lugar próprio à lógica, bem como da validade operatória desta, no interior de qualquer
corpus
teórico consistente. Enquanto os aspectos mais gerais dessa visão são
pacíficos, tudo muda de figura quando Lukács deixa entrever que, de algum modo,
Marx está ou poderia estar, em última análise, apoiado numa
lógica
enquanto
sustentação operatória de sua prática científica, ou, pelo menos, que uma
lógica
poderia legitimar as formas de sua reflexão. Em verdade, trata-se de um problema não
resolvido em Lukács e condicionado pelas contingências de seu próprio
desenvolvimento intelectual. Ver-se-á, em seguida, no último segmento deste
Posfácio
,
envolvendo precisamente essa questão, como é malsucedida a tentativa lukácsiana de
administrar a herança hegeliana em benefício da consistência e do esclarecimento do
pensamento marxiano, finalizando com isso a discussão e a sustentação da
teoria das
abstrações
.
A palavra
Marx
não integra o tulo do capítulo dos
Prolegômenos
voltado, em
princípio, ao pensamento marxiano. Em contraste com os anteriores, centrados em
Kant, Schelling e Hegel, nos quais os nomes dos autores identificam o escrito, o mesmo
ocorrendo depois com o texto centrado em Goethe, sintomaticamente, quando, ao
89
Idem
, p. 71.
90
Idem
, p. 65.
J. Chasin
184 | Verinotio
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menos por uniformidade, Marx deveria ser a
marca
identificadora, seu nome cede lugar
à falaz e incômoda
expressão
materialismo dialético
. Todavia, é um título honesto,
pois O Particular à Luz do Materialismo Dialético, Capítulo 3 dos
Prolegômenos
, não
está centrado, a rigor e precisamente no âmbito da lógica, por sua realização e a
contrapelo do projeto e das perspectivas do autor, na obra marxiana. Decerto, tal
descentramento não resulta de estranha e inesperada opção teórica, mas é decorrência
incontornável, induzida por falta de matéria-prima de origem marxiana, que seja
adequada ao respaldo, sob o foco exercitado, da elaboração lukácsiana.
Interessa, aqui, exclusivamente, esse aspecto desfocado da reflexão do autor
húngaro, mas é preciso ressalvar, de início, o que de válido e positivo no referido
capítulo, para não dar margem a ilações desmedidas e mal-entendidos gravosos em
detrimento desse importante autor marxista. Sobressaem no texto e são elaborações
relevantes a
crítica do universal
e, em especial, a tematização da
particularidade
. É
muito significativo que em ambos os casos a elaboração tenha preservado ao máximo
o vínculo com os textos marxianos.
A crítica à concepção hegeliana da universalidade é feita por Lukács não apenas
em estreita conjunção com fragmentos da obra de Marx, mas entendendo mesmo, o
que indica a grande importância atribuída às reflexões marxianas nesse plano, que
"Não é um acaso, evidentemente, que a crítica de Marx a Hegel se concentre sobre o
problema do universal". E isso ocorre, segundo sua apreciação, "Não porque se
trata de uma categoria do pensamento científico e o marxismo, que funda um novo
tipo de ciência qualitativamente superior, deve necessariamente determinar com
exatidão os conceitos centrais da ciência, [...] como também porque a definição errônea
da categoria da universalidade tem uma função extraordinariamente importante na
apologia do capitalismo".
91
Pondo em evidência extratos do conjunto da obra de Marx, particularmente dos
escritos da maturidade, a exposição lukácsiana deixa pespontado um painel crítico da
universalidade hegeliana, ao mesmo tempo em que esboça as formulações marxianas
correspondentes. Assim, inicia por menções à
Crítica de Kreuznach
e a
A
Ideologia
Alemã
, quando, no interior da "dialética de universal e particular, o conceito de
universal sofre uma mutação e uma clarificação qualitativamente decisivas",
92
por
91
Idem
, p. 84.
92
Idem
, p. 77.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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ocasião do tratamento de questões sociopolíticas. No primeiro caso, por exemplo, Marx
denuncia o reducionismo à universalidade, operado por Hegel "na passagem da família
à sociedade civil: 'A passagem, portanto, não deriva da essência específica da família
e da essência específica do estado, mas da
universal
relação entre
necessidade
e
liberdade
. É em tudo a mesma passagem que, na lógica, se efetua da esfera do ser à
esfera do conceito".
93
Da mesma obra ainda emerge a refutação da burocracia como
estrato universal
, a corporação particular que é a consciência, a vontade e a força do
estado, "forçada a proteger a
imaginária
generalidade do interesse particular, o
espírito de corporação, para proteger a
imaginária
particularidade do interesse geral,
seu próprio espírito".
94
Em consonância com essa linha crítica às astúcias lógicas e
práticas da universalidade, mais outra referência, agora tomada de
A Ideologia
Alemã
, é posta em evidência: a famosa prescrição atinente à obrigatória representação
do interesse particular como universal, enquanto ilusão necessária na luta pela
dominação política. Razão pela qual Lukács fala, sinalizando para a terrenalidade e a
mutabilidade qualitativa dos universais quando refletidos por Marx, em "modificação,
enriquecimento e concretização decisivas", na concepção e no tratamento marxianos
dos mesmos.
Todavia, é da obra da maturidade, ou melhor, dos
escritos econômicos
, que o
ensaio lukácsiano extrai a parte mais extensa de suas considerações críticas a respeito
dos traços comprometedores da acepção especulativa do universal, tais como o de
sua
generalização indevida
, por efeito do cancelamento da particularidade, e que
acaba por levar à sua
forma apologética
; nessa mesma linha também indigita a
substantivação
ou
divinização da universalidade
, constitutiva da "bancarrota
gnosiológica do idealismo", e assim por diante, em detalhes ou desdobramentos
pincelados ao longo dos comentários. Para aflorar a primeira questão, Lukács recorre
à Introdução de [18]57, lembrando que "Marx investiga aqui o conceito de 'produção
geral'. Ele constata que se trata, dentro de certos limites, de uma 'compreensível
abstração'. Os seus limites são fixados, sobretudo, a fim de que 'por causa da unidade
[...] não se esqueça a substancial diversidade'. Precisamente aqui emerge o problema
da apologia do capitalismo: 'Nesse esquecimento consiste, por exemplo, toda a
sabedoria dos economistas modernos, que demonstram a eternidade e a harmonia das
93
Idem
, p. 79.
94
Idem
, p. 83.
J. Chasin
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relações sociais existentes'".
95
Lukács agrega também a passagem em que "Marx cita
a necessidade dos instrumentos de produção, a partir dos quais a apologia chega à
seguinte conclusão: 'O capital é, portanto, uma relação natural, eterna, universal; mas
sob a condição de que eu abandone precisamente o elemento específico, que é o único
a fazer de um 'instrumento específico', de um 'trabalho acumulado', um capital'".
96
Fragmentos dos quais a análise lukácsiana extrai as devidas considerações: "Pode-se
ver como a apologética do ponto de vista metodológico , partindo do fato de uma
generalização, justificada dentro de limites determinados, a dilata ilimitadamente, e
esse resultado se pode obter se o conceito de universalidade é 'liberado' de
qualquer relação dialética (determinação, limitação, enriquecimento, concretização etc.)
com a particularidade; a formulação apologética e abstrata do universal liquida, pois,
ao mesmo tempo, a dialética de universal e particular, ou, no máximo, permite apenas
uma pseudodialética formalista".
97
A consistência e a expressividade do exemplo
dispensa a adição de outras passagens afins. Mas o outro grupo das críticas
lukácsianas à acepção hegeliana da universalidade não pode deixar de ser ilustrado,
ainda que de forma, igualmente, muito breve.
Para tratar da
substantivação
do universal, o marxista húngaro traz à baila, com
toda propriedade, o texto instrutivo e saboroso de O Mistério da Construção
Especulativa (
A Sagrada Família
, V, II), que é apresentado como representativo da
crise filosófica do período da "dissolução do hegelianismo". Contexto que faz com que
não seja "casual que Marx, na sua polêmica contra os irmãos Bauer, coloque em
primeiro plano a bancarrota gnosiológica do idealismo precisamente em relação com
o problema da universalidade".
98
O texto marxiano é, presumivelmente, bem
conhecido, mas não há como deixar de resumir, aqui, a correta entonação lukácsiana.
Assim, temos que "Marx ilustra este beco sem saída do idealismo filosófico com um
exemplo geral e simples, que chega mesmo à banalidade. A abstrata representação 'a
fruta' nasce do justificado processo mental que consiste em resumir as características
comuns das maçãs, peras etc. em um conceito. A mistificação especulativa tem lugar
quando esse processo real é invertido, quando a fruta é concebida como substância e
as maçãs, peras etc. como modos dessa substância. Por um lado, a realidade sensível
95
Idem
, p. 84.
96
Idem
,
ibidem
.
97
Idem
, pp. 84-85.
98
Idem
, p. 86.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
Verinotio
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é dessa maneira anulada especulativamente; doutro, nasce uma dificuldade inventada,
mas agora insuperável. 'Mas tanto é fácil diz Marx produzir, partindo das frutas
reais, a ideia abstrata 'a fruta', quanto é difícil produzir, partindo da ideia abstrata 'a
fruta', frutas reais. É até mesmo impossível chegar de uma abstração ao
contrário
da
abstração, sem
renunciar
à abstração".
99
Lukács leva a descrição até o fim da
argumentação marxiana, mas aqui basta ressaltar que a autonomização ou
substantivação do universal é a sua forma divina, exageração que o nulifica
cognitivamente, desnaturando, sem alternativa, o processo do conhecimento pelo
recurso a artifícios, ou seja, pela prática da "mistificação especulativa", como diz Marx,
que conclui pela ironia do milagre da criação dos seres reais pelos atos filosóficos do
intelecto abstrato.
Em franca oposição às fantasmagorias da universalidade especulativa, Lukács vai
apontando traços e características da concepção marxiana. Resumindo ao mínimo,
que registrar que "Marx considera a universalidade como uma abstração realizada pela
própria realidade, que então e então se torna uma ideia justa quando a ciência
reflete, adequadamente, o desenvolvimento vital da realidade em seu movimento, na
sua complexidade, em suas verdadeiras proporções".
100
Determinação que Lukács
avaliza, textualmente, com a parcela mais genérica de uma consideração de Marx a
respeito do trabalho em geral, tecida nos
Grundrisse
: "A indiferença para com um
gênero determinado de trabalho pressupõe uma totalidade muito desenvolvida de
gêneros reais de trabalho, onde não domine mais nenhum destes sobre o conjunto.
Assim, as abstrações mais gerais surgem apenas onde se o mais rico
desenvolvimento do concreto, onde uma característica parece comum a um grande
número, a uma totalidade de fenômenos. Então ela cessa de poder ser pensada apenas
em uma forma particular".
101
De modo que a universalidade, à semelhança da
particularidade e da singularidade, como fora muitas vezes observado por Lukács,
tem por essência a reprodução da realidade que lhe corresponde. Em decorrência,
todas essas categorias adquirem no pensamento marxiano "uma fisionomia
inteiramente distinta da que têm no idealismo. Não apenas porque nele todos os
conceitos e processos mentais tem o seu ponto de partida na realidade objetiva,
independente da consciência, na natureza e na sociedade, mas também,
99
Idem
,
ibidem
.
100
Idem
, p. 87.
101
Idem
, p. 88.
J. Chasin
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consequentemente, pela substância lógica. A universalidade, sobretudo, não é jamais
um ponto de chegada autônomo do pensamento";
102
por isso mesmo, "não pode
jamais se fixar como o coroamento definitivo do conhecimento, como ocorreu mesmo
em dialetas como Aristóteles e Hegel, mas exprime sempre uma aproximação, o mais
alto grau de generalização alcançado a cada volta. [...] na medida em que realiza e
desenvolve a aproximação da realidade objetiva, conjuntamente com o caráter
processual do pensamento como meio para essa aproximação, pode compreender a
universalidade em contínua tensão com a singularidade, em contínua conversão em
particularidade e vice-versa. Assim a concretude do conceito universal é purificada de
qualquer mistificação, é concebida como o veículo mais importante para conhecer e
dominar a realidade objetiva".
103
Do mesmo diapasão positivo é o tratamento conferido por Lukács à
particularidade, neste que é, estruturalmente, um capítulo mais do que problemático.
Em realidade, a determinação da particularidade como
categoria lógica
, que ele
apresenta nesta oportunidade, em conjunto com a retomada mais breve e
sistematizante do tema, que oferece no Capítulo 12, I da
Estética
, formam quase que
a totalidade de suas manifestações a respeito. Aqui, a referência a este último, é
evidente, remete estritamente à sua parte lógica, deixando excluídas suas incursões
pela ética, bem como os largos desenvolvimentos relativos à estética.
O Capítulo 3 dos
Prolegômenos
principia pela reafirmação da importância de
Hegel, "o primeiro a colocar o problema do particular de modo realmente concreto e
multilateral",
104
mas ressaltando, decididamente, páginas adiante, o uso hegeliano das
mediações como instrumento da dissimulação de oposições. A análise tem por base,
mais uma vez, uma passagem da
Crítica de Kreuznach
, atinente "às relações entre as
classes sociais e o estado: 'Ele (Hegel) faz do
elemento de classe
expressão da
separação, mas ao mesmo tempo esse elemento deve ser o representante de uma
identidade que não existe'". Uma vez que o programa hegeliano, raciocina Lukács,
uma contínua mediação entre os vários momentos e as várias tendências da sociedade
burguesa", e dado que Hegel "introduz nas classes sociais, de modo mistificador, esse
desdobre substancialmente inconciliável , é possível a ele fazer com que figurem
102
Idem
, p. 103.
103
Idem
, pp. 103-104.
104
Idem
, p. 73.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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sempre em mediações e conciliações desse gênero".
105
E na medida em que,
argumenta, "as categorias puramente lógicas, na sua construção, são formadas sobre
esse modelo, elas podem aparentemente desempenhar sem mácula a sua função
na filosofia do estado e da sociedade. A pseudorracionalidade desses nexos ganha
uma pseudoevidência na medida em que essas categorias se deixam unificar 'por si'
em um silogismo. Tudo isso, porém, é apenas aparência formalista. [...] As classes e os
estamentos hegelianos são, de um lado, as corporações medievais; doutro, ao mesmo
tempo, as classes da moderna sociedade burguesa. Enquanto Hegel constrange essa
inconciliabilidade numa mesma categoria, ao invés do conceito concreto, que ele
aspira, surge um
mixtum compositum
e, porque se serve deste como termo médio do
silogismo, o duplo sentido contraditório entra necessariamente em ação e mistifica o
nexo, em vez de exprimir seu núcleo racional".
106
E o fecho da refutação é dado com
sabor aforismático, por meio de uma frase de Marx voltada contra esses procedimentos
hegelianos: "O termo médio é o ferro de pau, é a oposição dissimulada entre
universalidade e singularidade".
107
De outra parte, legitimamente interessado em configurar o relevo da análise
particularizadora e sua correta efetivação no pensamento marxiano, Lukács, em
conexão com a crítica à concepção autonomizada e absolutizada da universalidade,
recolhe para tanto elementos caracterizadores dos escritos econômicos, em especial
de
O Capital
. Sublinhando ainda uma vez que a independentização do universal, pela
supressão da particularidade, liquida qualquer pretensão à dialeticidade, sustenta,
preliminarmente, que "qualquer análise do capitalismo não importa se se trata de
uma questão singular ou do problema fundamental do sistema inteiro confirma
necessariamente essa constatação sobre a dialética de universal e particular".
108
Em
seguida, certo de estar exemplificando essa validade universal, lembra que "Marx, ao
tratar da superprodução capitalista nos
Grundrisse
, diz: 'Aqui, basta demonstrar que o
capital contém uma
particular
limitação da produção que contradiz sua tendência
geral de superar qualquer limite da mesma para ter diante de si a base da
superprodução, a contradição fundamental do capital desenvolvido, para ter
descoberto em geral que ele não é, como consideram os economistas, a forma absoluta
105
Idem
, p. 81.
106
Idem
,
ibidem
.
107
Idem
,
ibidem
.
108
Idem
, p. 85.
J. Chasin
190 | Verinotio
NOVA FASE
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do desenvolvimento das forças produtivas'".
109
E o ressalto da particularidade
prossegue, agora por remissão a
O Capital
, em que "Marx expressa formulações que
sintetizam o problema todo, pondo em evidência como a dialética de universal e
particular é a determinação mais exata da questão. [...] 'A análise científica do modo
capitalista de produção demonstra que ele é um modo de produção de tipo particular,
especificamente definido pelo desenvolvimento histórico; que, da mesma maneira que
qualquer outro modo de produção determinado, pressupõe um certo nível das forças
produtivas sociais e de suas formas de desenvolvimento como sua condição histórica;
condição que é ela mesma o resultado histórico e o produto de um processo anterior,
do qual o novo modo de produção parte como de seu fundamento dado; que as
relações de produção correspondentes a esse específico modo de produção,
historicamente determinado relações nas quais os homens entram em seu processo
de vida social, na criação de sua vida social têm um caráter específico, histórico,
transitório'".
110
Com a evidenciação do trato da
particularidade
e da
particularização
no íntimo
da reflexão marxiana, Lukács transita para a caracterização mais detalhada dessa
categoria, sempre compreendida como um problema decisivo, de
porte universal
e
referido à realidade
. No que seja, talvez, sua determinação sintética mais arredondada,
temos que "o movimento do singular ao universal e vice-versa é sempre mediado pelo
particular; ele é um membro intermediário real, tanto na realidade objetiva quanto no
pensamento que a reflete de modo aproximadamente adequado. Ele é, porém, um
membro intermediário com características muito específicas".
111
Ou, nos termos mais
amplos e precisos do Capítulo 12: "A particularidade não é meramente uma
generalização relativa, nem tampouco um caminho que leva da singularidade à
universalidade e vice-versa, mas a mediação necessária produzida pela essência da
realidade objetiva e imposta por ela ao pensamento entre a singularidade e a
universalidade. Trata-se de uma mediação que não se limita a compor um membro de
enlace entre a singularidade e a universalidade ainda que esta função seja, sem
dúvida, um dos principais traços essenciais da particularidade , mas que ganha nessa
função, mediante sua realização, um significado substantivo".
112
Por isso mesmo, em
109
Idem
, p. 85.
110
Idem
, pp. 85-86.
111
Idem
.
112
LUKÁCS, G.
Estética
. Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1967, cap. 12, I, pp. 202-203.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
Verinotio
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reiteração ao particular como categoria da realidade, repicagem que realça também
sua importância como categoria da representação e, por conseguinte, na atividade
cognitiva, convém acrescentar ainda que, "de fato, os momentos particulares
mediadores têm frequentemente, na natureza como na sociedade, uma existência
relativamente bem delimitada, uma figura própria. Pense-se na espécie, no gênero etc.
na natureza; na classe, no estrato etc. na sociedade".
113
Identificada a particularidade em sua natureza primordial e assinalada sua
fundamentabilidade no plano do conhecimento, é bastante para os efeitos da
simples, mas categórica ressalva aqui pretendida consignar com brevidade apenas
os atributos mais importantes dessa categoria decisiva na elaboração lukácsiana.
Desde sua pura expressão linguística, a particularidade se distingue da singularidade
e da universalidade, "indicando que se trata de uma determinação menos unívoca [...].
Enquanto aqueles termos têm já do ponto de vista da linguagem um significado
bastante preciso, a expressão particularidade pode querer dizer muitas coisas. Ela
designa tanto o que impressiona, o que salta à vista, o que se destaca (em sentido
positivo ou negativo), como o que é específico; ela é usada, especialmente na filosofia,
como sinônimo de determinado etc.".
114
Essa oscilação semântica não "indica um
amorfismo fugidio; diz respeito apenas à prevalência do caráter posicional da
particularidade, isto é, ao fato de que ela, em relação ao singular, representa uma
universalidade relativa, e, em relação ao universal, uma singularidade relativa"
115
.
Relatividade posicional que é concebida como processual, bastando para isso levar em
conta, diz Lukács, a conversibilidade desse "termo médio" aos extremos da
singularidade e da universalidade. Nessa condição, o "termo médio" desempenha um
papel muito relevante: "o particular representa precisamente a expressão lógica das
categorias de mediação". Ao tratar desse aspecto, Lukács toma por lastro a passagem
do
Terceiro Manuscrito de 1844 em que Marx determina o indivíduo como
ente social
,
afirmando que "a vida individual e a vida genérica do homem não são
distintas
", mas
que há, necessariamente, todo um gradiente de
particularizações
na efetivação das
vidas individuais e da vida genérica. De sorte que o "termo médio" "só formalmente (e
em certos casos singulares) possui um caráter que possa ser fixado em determinado
ponto: ele é uma expressão englobante e sintética para o complexo inteiro de
113
LUKÁCS, G.
Introdução a uma estética marxista
,
op. cit.,
p. 118.
114
Idem
, pp. 116-117
115
Idem
, p. 117.
J. Chasin
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determinações que medeiam reciprocamente o início e a conclusão".
116
Ora, se
inclusive "início e conclusão (universalidade e singularidade) não são, de fato, pontos
fixos no sentido estreito da palavra, que o desenvolvimento do pensamento e do
conhecimento tem precisamente a tendência de deslocar sempre mais", então, há que
observar "que o meio mediador (a particularidade) menos ainda pode ser um ponto
fixo, um membro determinado, e tampouco dois pontos ou dois membros
intermediários, como diz Hegel criticando o formalismo da triplicidade, mas sim, de
um certo modo, um campo inteiro de mediações, o seu campo concreto e real que,
segundo o objeto ou o escopo do conhecimento, se mostra maior ou menor. O
aperfeiçoamento do conhecimento pode alargar esse campo, inserindo nas conexões
momentos dos quais, precedentemente, se ignorava que tinham função na relação
entre uma determinada singularidade e uma determinada universalidade; pode
restringi-lo, no caso em que uma série de determinações mediadoras, que até a um
dado momento eram concebidas como independentes e autônomas uma da outra, o
de agora em diante subsumíveis a uma única determinação".
117
Campo do particular
que pode abarcar, assim, "todo um mundo (um período inteiro de desenvolvimento),
cuja
inteireza
cria a base para fundar e alargar o conceito universal mais
compreensivo".
118
Pense-se na determinação marxiana do capitalismo como "modo de
produção de tipo particular", para a ilustração da particularidade enquanto um
período
inteiro de desenvolvimento
, e na
limitação particular da produção
intrínseca ao
capitalismo, para a visualização de complexos mais restritos ou questões singulares
em geral.
Por fim, nesse resgate da teoria lukácsiana da particularidade, a sua já lembrada
condição de
sinônimo da determinação
, traço da mais alta relevância pelo qual
desempenha sua função metodológica. Esta é configurada por Lukács pela articulação
analítica entre dois movimentos categoriais: "Do mesmo modo que a universalidade e
a particularidade se convertem uma na outra constantemente, assim também a
singularidade e a particularidade". É donde provêm "a natureza à primeira vista
contraditória do particular", uma vez que "manifesta sua peculiaridade pela mutação
em universal ou singular".
119
Em face do universal, "esse comportamento da
116
Idem
, p. 113.
117
Idem
,
ibidem
.
118
Idem
, p. 116.
119
LUKÁCS, G.
Estética
,
op. cit.,
p. 209.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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particularidade nasce de sua função como veículo do determinado. Nesse sentido,
Lukács se alonga de Espinosa a Hegel, da determinação como negação ao
reconhecimento de que "é um mérito de Hegel ter avançado neste ponto ao descobrir
a conexão necessária entre este complexo problemático (teoria da determinação) e a
determinação categorial da particularidade".
120
Por outro lado, no que tange à relação
entre particularidade e singularidade, a "situação também é decisiva" quanto ao
processo de determinação, que é tematizado pela superação da singularidade
imediata, que cede lugar à singularidade concreta, ou seja, especificada pelas
mediações, uma vez que "suas determinações, que aparecem borradas na imediação
sensível, se manifestam como determinações, e precisamente como determinações de
sua singularidade".
121
Processo determinativo que não vem de fora da singularidade,
mas que "é um desdobramento das determinações presentes objetivamente em si
no singular, mas que não podiam se manifestar na relação imediata entre objeto do
conhecimento e conhecimento mesmo da subjetividade. A mediação que torna
captável todo esse material oculto é precisamente a particularidade. Ela realiza esse
processo em consequência de sua função básica, criadora de determinação".
122
Em
suma, delimitando a universalidade ou mediatizando o singular, a particularidade
criador ou veículo é o instrumento do processo determinativo.
Precisamente por isso, entende Lukács, é que "na particularidade, na
determinação e na especificação está contido, pois, um elemento de crítica, de
determinação mais próxima e mais concreta de um fenômeno ou de uma lei. É uma
concretização crítica, obtida graças à descoberta das mediações reais para cima e para
baixo na relação dialética de universal e particular. Apenas nesse sentido deixam de
surgir equívocos, ou seja, quando vemos na particularidade, ao menos na mesma
medida, tanto um princípio de movimento do conhecimento quanto uma etapa, um
momento do caminho dialético".
123
Considerações que traduzem muito bem a enorme
significação das determinações particularizadoras na tematização lukácsiana, cujo teor
é ainda esclarecido por um outro ângulo, quando ela percorre a rota do
esquecimento
da particularidade na história da filosofia. "Essa tendência tem início com a dissolução
120
Idem
, p. 202.
121
Idem
, p. 209.
122
Idem
, p. 209.
123
LUKÁCS, G.
Introdução a uma estética marxista, op. cit.
, p. 117.
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do hegelianismo",
124
aponta o filósofo marxista e, a propósito, lembra de
Trendelenburg, "o primeiro lógico importante que criticou Hegel". Em sua obra,
formalizando as relações entre as três categorias, "polariza os extremos de
universalidade e singularidade, sem membros intermediários de mediação", ou seja,
"eles aparecem nela antes como representações da antítese entre pensamento e ser,
de tal modo que, naturalmente, toda mediação do ponto de vista metodológico é
antecipadamente excluída". Menciona também Stirner, que "não só abandona a
particularidade, como início a uma polêmica contra ela",
125
contrapondo com
arrogância ingênua o "único" ao particular. Tendência similar é encarnada por Bruno
Bauer com sua representação do homem como átomo e, "com acentos inteiramente
diversos, por Kierkegaard, no qual a singularidade na forma da unicidade se torna a
suprema categoria de valor, que deve ser colocada excluindo-se conscientemente
qualquer categoria de mediação em relação imediata com deus".
126
Tudo isso
convergindo, na diversidade dos planos e formas de abordagem, para a plataforma da
"luta contra a objetividade, a dialética e a concreticidade", ou seja, por alusão a certa
crítica marxiana: são cancelamentos confluentes da particularidade que "buscam
afastar idealmente da vida dos homens, juntamente com o particular, as determinações
sociais" que incidem sobre a individualidade humana. Tendência ao
esquecimento
da
particularidade que em desenvolvimentos posteriores redunda ou na "divinização do
universal, que é certamente de tipo idealista subjetivo, ou na degradação da
universalidade ao papel de simples subsídio técnico. [...] Se a concepção da
universalidade como pura determinação do pensamento é uma fonte de agnosticismo,
do outro polo, da acepção do ser como pura singularidade, tem de surgir o
irracionalismo".
127
Mesmo que ocioso, diante do painel tracejado, é de justiça deixar
patente que, tal como concebida e delineada por Lukács em suas linhas principais, a
teoria da particularidade ganha foro de problemática universal, como ele tinha por
suposto, dada a amplitude de sua irradiação metodológica e crítica, merecendo por
sua acuidade ser retomada e desenvolvida, depois de criticamente liberada dos
escolhos com que foi cercada por seu formulador.
O devido resgate da
crítica dos universais
e da
determinação da particularidade
,
124
Idem
, p. 118.
125
Idem
, p. 119.
126
Idem
, pp. 119-120.
127
Idem
, p. 121.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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além de reconhecer a validade e a importância dessas elaborações lukácsianas no
interior de um texto problemático, pôs em evidência um fato novo, decisivo em seu
significado essencial para questionar e recusar o núcleo da tese sustentada no escrito:
quanto mais estritamente
lógico
vai se tornando o discurso lukácsiano, tanto menos
ele se ampara em elementos teóricos e, por conseguinte, em citações diretas da obra
marxiana, até que estas desaparecem por completo dos enunciados. Tal como foi visto,
enquanto se trata da
crítica à universalidade hegeliana
e da
demonstração do caráter
particularizador da prática teórica marxiana
, o vínculo com os escritos de Marx é
mantido com grande energia e de modo muito convincente, à revelia mesmo da forma
descuidada e carente de melhor articulação e consistência do texto em seu conjunto.
Todavia, quando se trata da
teoria ou determinação da particularidade
e, muito
especificamente, da tese ou interpretação que busca estabelecer um
vínculo lógico
entre Marx e Hegel, os elos entre a elaboração lukácsiana e o pensamento expresso
de Marx se reduzem bastante no primeiro caso, e se dissolvem radicalmente no
segundo. Isto ocorre por motivos diametralmente opostos e com efeitos e valores
igualmente polares.
Efeito e valor positivos
no que tange à
teoria da particularidade
porque, de um lado, ela está próxima e subentende o esforço de evidenciação do
caráter particularizador da reflexão marxiana, do qual extrai seu impulso teórico e sua
legitimação intelectual; de outro, porque em grande parte à medida que se torna
eminentemente
lógica
é, antes de tudo, um produto original do pensamento
lukácsiano, contribuição séria e importante, independentemente do grau insuficiente
de elaboração com que é apresentada no plano da lógica em geral, e dos ricos e
amplos resultados atingidos na estética, razão maior, como já foi dito, de sua
dedicação ao problema. De outra parte,
efeito e valor negativos
no caso da tentativa,
inteiramente mal-sucedida, de estabelecer um denso
vínculo lógico
entre Marx e Hegel,
exatamente porque não como ligar esses dois autores, no
plano lógico
, por meio
de arrimos textuais diretos, não só porque estes efetivamente inexistem, mas também
porque os pronunciamentos marxianos a respeito desautorizam essa velha hipótese,
bem como, exponencialmente, suas declarações relativas à própria atividade científica
apontam para rumos inteiramente diversos, como será mostrado ao final dessas
considerações.
Em verdade, Lukács sabia muito bem que não dispunha da argamassa necessária
escritos marxianos pertinentes ou, pelo menos, razoavelmente indicativos, ainda que
esparsos e fragmentários, e nem mesmo, em último caso, de simples alusões
J. Chasin
196 | Verinotio
NOVA FASE
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cromáticas, que pudessem documentar e servir de fundamento à tese do
vínculo lógico
.
Tanto assim é que quase chega a ser tocante, mas não convence jamais, sua reiteração
em lastimar que Marx não tenha realizado o desejo de mostrar o que de racional
na
Lógica
de Hegel. Na primeira ocasião em que toca no assunto, afirma em tom
narrativo: "No exílio londrino, quando escrevia a primeira versão de
O Capital
e redigia
Para a Crítica da Economia Política
, Marx se ocupou com renovada intensidade da
lógica de Hegel; em 1858 nasce inclusive o projeto de elaborar concisamente, em um
breve escrito, o que de racional na obra de Hegel".
128
Como fonte única de
sustentação desse relato, remete à conhecida carta de Marx a Engels de 14/1/1858.
Embora deplore que, "infelizmente, esse projeto não pôde jamais ser realizado",
sustenta que, "apesar disso, os trabalhos suprarreferidos, natos àquela época, revelam
muitos traços do renovado e intenso interesse pela filosofia hegeliana".
129
por volta
da metade do capítulo, torna ao assunto para registrar, de novo, agora com uma
distorção gritante, que "infelizmente não possuímos a
lógica projetada
[
sic
, grifo meu]
por Marx; não podemos saber, pois, com segurança, qual seria a sua atitude em face
da estrutura da lógica de Hegel, a qual, como é sabido, se baseia sobre essa
dialética"
130
(do singular, particular e universal), mas assim mesmo não vacila em
reafirmar que um fato que os manuscritos dos
Grundrisse
, redigidos nesse período,
provam claramente que Marx se ocupou seriamente dessa questão, enquanto atinente
à estrutura lógica de toda a obra".
131
Mas aduz, imediatamente, que, "por certo, essa
ideia foi rechaçada", da mesma maneira que também não foi realizado um outro
esboço, conforme ele mesmo afirma, que "ordena as várias espécies e tendências de
desenvolvimento do capital como representações de universalidade, particularidade e
singularidade".
132
Ainda assim, no curso dessa argumentação, Lukács persiste em
raciocinar dilematicamente; após descartar os próprios indícios mais diretos que
levanta, reitera o mote de que, "em compensação, essa forma de construção lógica
emerge em vários pontos de
O Capital
". Dois pontos são aí mencionados: o parágrafo
inicial do "capítulo sobre a divisão do trabalho na manufatura e na sociedade" e a
"dedução da forma de valor no início do primeiro volume"
133
(pontos aos quais
128
Idem
, p. 74.
129
Idem
,
ibidem
.
130
Idem
, p. 95.
131
Idem
,
ibidem
.
132
Idem
, pp. 95-96.
133
Idem
, p. 96.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
Verinotio
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voltaremos mais à frente). Por fim, poucas ginas adiante, como se ainda não
houvesse bastado, torna a lastimar em tom superlativo que "jamais se terá lamentado
bastante que foi impossível para Marx realizar o plano de extrair o núcleo racional da
lógica de Hegel. Aquilo que agora estamos sublinhando, recolhendo pedaço a pedaço
de sua obra econômica, estaria diante de nós com inequívoca clareza".
134
Ponderação
que deixa transparecer uma parcela de dúvida e uma dose de incongruência, dadas as
evidências e certezas
oferecidas nas passagens anteriores.
Afinal, o que temos? Por certo, muito mais do que a pura repetição quase
patética de um lamento, pois esse regiro concentrado em torno de uma
lacuna
é
apenas a aparência invertida da essência para empregar categorias muito apreciadas
com toda razão por Lukács de um sofrimento intelectual movido por um dilema
teórico falso, artificial, ainda que historicamente criado, é verdade. Mas igualmente
verdadeiro é que Lukács o incorporou como herança, o que é uma pena, levada em
conta sua importância intelectual e a estatura de seu marxismo. Incorporação, aliás,
sintomaticamente confusa e mal alinhavada, cuja precariedade se manifesta logo à
superfície pela fragilidade e a construção embaraçada do arrazoado que pretende
evidenciar o aludido interesse de Marx pela lógica hegeliana, e a propagação desta na
prática científica marxiana. Resumido a seus elementos efetivos, o quadro é simples e
quebradiço, embora taxativo: "Marx se ocupou com renovada intensidade da lógica de
Hegel" em torno de 1858, tanto que "nasce o projeto de elaborar o que de racional
na obra de Hegel", e que Lukács chega a chamar, destemperadamente, de "a lógica
projetada por Marx". Porém, como o projeto nunca foi executado, "não podemos saber
com segurança qual seria a sua atitude em face da estrutura da lógica de Hegel",
embora reste a alternativa de "recolher pedaço a pedaço de sua obra econômica"
aquilo que de outra forma "estaria diante de nós com inequívoca clareza". Em outros
termos, na ausência do pronunciamento explícito, a opção pela certeza fragmentada e
indireta, que, no entanto, é categoricamente assegurada: os escritos econômicos
"provam claramente que Marx se ocupou seriamente dessa questão", ou neles "essa
forma de construção lógica emerge em vários pontos", mesmo tendo apontado casos
em que a cogitação de usar a
lógica
tenha sido uma "ideia rechaçada" ou se reduzido
a esboços abandonados. Transparece que se trata de uma
certeza incerta
, ou melhor,
de uma convicção amparada pelo exterior de seus enunciados, ou seja, pela inclusão
134
Idem
, p. 100.
J. Chasin
198 | Verinotio
NOVA FASE
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de recursos extrínsecos aos materiais analisados, de suportes da persuasão íntima,
cuja presença decisiva antecede e perspectiva o desenrolar da própria argumentação.
Sem dúvida, independentemente da contribuição que o processo analítico dos textos
marxianos possa ter oferecido a Lukács, o
vínculo lógico
é, antes de tudo, um
pressuposto da marcha de sua investigação.
Não fora assim, teria ficado sem lastro e orientação para encaminhar sua tese. A
principiar pelo vigor e a variedade de facetas significativas que julga respaldadas pela
carta de janeiro de [18]58. Esta, textualmente, diz infinitamente menos do que Lukács
pretende; a diferença entre o que Marx escreve e o que é lido por Lukács transcende
o largo fole das interpretações, para deslizar pelo campo do pensamento desiderativo:
Lukács não a carta escrita por Marx, mas a carta que ele sonhava que Marx tivesse
escrito. Em realidade, tudo que importa na carta real está condensado num único
parágrafo. Neste, depois de manifestar satisfação pelo andamento de seu trabalho,
dando por exemplo que havia "acabado com toda a teoria do lucro tal como existia
até agora", Marx, literalmente, diz: "No
método
de tratamento, o fato de ter por mero
acidente voltado a folhear a
Lógica
de Hegel me prestou um grande serviço. Freiligrath
achou alguns volumes de Hegel que pertenceram a Bakunin e me os enviou de
presente. Se alguma vez tornar a haver tempo para esse tipo de trabalho, gostaria
muito de tornar acessível à inteligência humana comum, em dois ou três cadernos de
impressão (algo entre 30 e 50 páginas), o que é
racional
no método que Hegel
descobriu, mas que ao mesmo tempo envolveu em misticismo...".
135
Como é
translúcido, nada de semelhante aos grandes estudos lógicos, nem mesmo à
formulação de um
projeto
propriamente dito, tal como propalados por Lukács. Todavia,
está a precisa indicação de qual foi a ajuda específica, propiciada a Marx pelo
método hegeliano, e também a explicitação de sua
atitude
básica em face do mesmo,
definição que se pauta por distinguir de seu todo uma porção racional da envoltura
mística. A mesma atitude que década e meia depois é reafirmada com acréscimos
importantes no Posfácio da Segunda Edição de
O Capital
: "a mistificação que a
dialética sofre nas mãos de Hegel não impede, de modo algum, que ele tenha sido o
primeiro a expor as suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente.
Nele, ela está assentada sobre a cabeça. É necessário virá-la (
umstülpen
), para
135
Carta de Marx a Engels, 16/01/1858.
Correspondance
, t. 5, Paris, Éditions Sociales, 1975, pp. 116-
117.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
Verinotio
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descobrir o núcleo racional dentro do invólucro místico".
136
Sabe-se, então, que o
"núcleo racional" diz respeito às "formas gerais de movimento", que não podem ser
outra coisa, na medida em que são as "formas gerais" da movimentação dialética, do
que a dinâmica geral de universalidade, particularidade e singularidade. Lukács parece
ter deixado escapar o melhor dos argumentos para fortalecer a relevância que confere
à dialética dessas três categorias. Contudo, boas razões para ter evitado esses
fragmentos, pois tanto o da carta, em que conseguiu ver tanta coisa, mas que não
transcreveu na íntegra, quanto especialmente o do Posfácio, que desconheceu por
completo, conduzem a um cenário totalmente desfavorável à tese do
vínculo lógico
.
Marx diz na carta com todas as letras que seu relance acidental na lógica hegeliana
"prestou um grande serviço no método de tratamento", o que é bem esclarecido, além
de confirmado de maneira extremamente mitigada no mesmo parágrafo do Posfácio:
"n
O
Capital
, sobre a teoria do valor, andei coqueteando [
kokettierte
] aqui e acolá com
os seus (Hegel) modos peculiares de expressão [
Ausdrucksweise
]".
137
Donde, "método
de tratamento" corresponde, simplesmente, a
método de exposição
, reduzido em
O
Capital
a mero coquetismo com
modos de dizer
. E quanto à distinção e à
secundariedade do método expositivo em relação ao método de pesquisa, não pode
haver qualquer dúvida no que tange às concepções marxianas, pois, nesse mesmo
Posfácio, colado às linhas já transcritas, lê-se: "É, sem dúvida, necessário distinguir o
método de exposição formal do método de pesquisa. A pesquisa tem de captar
detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua
conexão íntima. depois de concluído esse trabalho é que se pode expor
adequadamente o movimento real".
138
E, decisivamente, no processo fundamental da
produção do conhecimento, isto é, na captura do movimento real, ou seja, quanto ao
método de pesquisa, não há qualquer débito de gratidão de Marx para com a lógica
hegeliana. Muito ao contrário, ainda no mesmo lugar, o texto marxiano é categórico:
"Meu método dialético, por sua fundamentação, não só é diferente do hegeliano, mas
é também a sua antítese direta. Para Hegel, o processo do pensamento, que ele, sob
o nome de ideia, transforma num sujeito autônomo, é o demiurgo do real, real que
constitui apenas a sua manifestação externa. Para mim, pelo contrário, o ideal não é
136
MARX, K. “Nachwort zur zweiten Auflage” (24/01/1873).
Das Kapital
, Erster Band, Dietz Verlag
Berlin, 1971, pp. 26-27.
137
Idem, ibidem
.
138
Idem, ibidem
.
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200 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 157-239 - jan./jun. 2021
nada mais do que o material transposto e traduzido na cabeça do homem".
139
De fato, Lukács não podia trazer à baila passagens como essas, nem calcar sobre
a distinção entre método de pesquisa e de exposição, senão ficaria impedido de fazer
transitar determinações válidas num plano para a legalidade diversa do outro. É o que
se passa no que pretende que seja o exemplo mais forte e probante da irradiação do
substrato da lógica hegeliana nos procedimentos reflexivos de Marx a teoria do valor,
especificamente no que chama de "dedução da forma do valor", contida no Capítulo 1
de
O Capital
. Anuncia, taxativamente, como fato de grande importância, que "uma
seção tão decisiva da obra principal de Marx seja construída segundo esse princípio",
ou seja, "as ideias decisivas que ordenam todo material são, precisamente, as relações
de singular, particular e universal".
140
Dessa ótica, a singularidade ordena o passo
analítico inicial: "em Marx, a primeira etapa é 'a forma de valor simples, singular, ou
seja, acidental".
141
É característico desse enfoque lukácsiano que a determinação
marxiana inicial a
Forma Simples de Valor
, basicamente
expositiva
, que não é
descoberta em ato, mas só o ato que principia a mostrar o descoberto, isto é,
determinação cuja tônica não recai nem sobre a reprodução do complexo analítico da
descoberta, nem sobre o descoberto como complexo histórico concreto, seja
imediatamente tomada ou forçada a ser entendida como reprodução teórica de uma
etapa determinada de existência efetiva. É o que sustenta claramente Lukács,
acentuando inclusive, deliberadamente, as cores: "Esta concretização é sobretudo
histórica. Simplicidade, singularidade e, em conjunto com estas, casualidade da forma
do valor designam a sua gênese histórica, o tipo e a estrutura do estágio inicial. Por
isso, toda palavra deve ser rigorosamente entendida em seu significado histórico".
142
Essa transgressão desfiguradora do caráter do texto marxiano vai ainda mais longe.
Aproveitando para ressaltar, numa extensão da polêmica contra Kant, a importância
da categoria da casualidade e a possibilidade de seu tratamento racional, e com
relação a isto não há objeção a fazer, busca respaldar com Hegel, de fato, a visão de
que a tematização marxiana da forma simples de valor tenha a natureza de uma
investigação histórico-concreta. Assim, desenhando a casualidade no estágio inicial,
afirma: "ela designa o caráter imediato, socialmente não desenvolvido, dos atos de
139
Idem
,
Ibidem
.
140
LUKÁCS, G.
Introdução a uma estética marxista
,
op. cit
., p. 96.
141
Idem
, p. 96.
142
Idem
, pp. 96-7.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
Verinotio
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troca nessa etapa; a importante ideia de Hegel [...], segundo a qual o novo se apresenta
na história primeiro sob uma forma abstratamente simples e gradualmente se
atualiza a forma desenvolvida no curso do desenvolvimento histórico, aparece em sua
concretização materialista".
143
O segundo passo
expositivo
de Marx, a
Forma de Valor Total ou Desdobrada
, é
encarado, naturalmente, do mesmo modo impróprio: "Os caminhos do pensamento
para o conhecimento são reflexos do processo de desenvolvimento objetivo (para nós,
aqui, da economia). Por isso, o próximo grau da dedução é o da forma total ou
desdobrada do valor. Aparentemente, trata-se de um aprofundamento puramente
quantitativo. Isto significa que o valor 'é expresso agora em outros numerosos
elementos do mundo das mercadorias'. Esta extensão quantitativa da troca de
mercadorias aparece, todavia, como uma forma de valor qualitativamente diversa,
superior, mais desdobrada da 'forma particular de equivalência' [...]. Trata-se de um
imenso passo à frente com relação à simplicidade e singularidade da forma originária
do valor; o caráter social do intercâmbio de mercadorias cria, aqui, generalizações
superiores e mais desdobradas, produz uma forma de valor mais universal:
precisamente a particular".
144
A indistinção, aqui, entre o plano expositivo e a esfera
da investigação, bem como o deslizamento automático das determinações do primeiro
para a segunda, transforma asserções explicativas de uma configuração genérica
montada para explicitar
in abstractu
elementos essenciais de uma malha concreta
inabordada, que de outra forma seria muito mais trabalhoso ou amesmo impraticável
pôr em evidência em determinações de uma figura específica de realidade; ou seja,
no caso, transfigura os passos expositivos da
Forma de Valor Total
em "etapa de
desenvolvimento", com a agravante disso ser atribuído direta e literalmente a Marx, tal
como Lukács faz neste ponto, operando
ex nihil
um verdadeiro ato de criação, logo
ele, sempre o cuidadoso em recusar qualquer ingerência transcendente na ordem do
mundo.
Por fim, a figura da universalidade comparece a propósito da
Forma Geral do
Valor
, extraída a partir da crítica à forma anterior. Esta, acentuada como forma
particular do valor, "contém uma grande imperfeição: a má-infinitude para usar uma
143
Idem
, p. 97.
144
Idem
, p. 98.
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expressão de Hegel",
145
com a qual Lukács, citando
O Capital
(I,3, B,3), remete para o
quadro em que "existem, em geral, apenas formas equivalentes limitadas, que se
excluem reciprocamente", e que corresponde, convém lembrar, à figuração em que "a
expressão relativa de valor da mercadoria é incompleta, porque a série de
representações não termina nunca". Diante disso, diz Lukács, "apenas a superação
dessa má-infinitude, que se com a inversão da série infinita de equivalentes, graças
à qual uma mercadoria determinada se apresenta como equivalente de todas as
mercadorias, produz a forma universal do valor".
146
Observação a partir da qual
desemboca, diretamente, no fluxo de considerações que mais uma vez transitam de
um plano de legalidade discursiva a outro, desfazendo uma certa ambiguidade que
existe na passagem anterior. Assim, sem qualquer transição, preocupa-se em assegurar
que "naturalmente, essa extrema generalização, essa elevação da forma do valor ao
grau da autêntica universalidade, não é um produto do pensamento econômico: este
não é senão o reflexo daquilo que ocorreu realmente no curso do desenvolvimento
histórico da economia. [...] O pensamento humano pode efetivar uma verdadeira
generalização na economia quando reflete adequadamente o que foi produzido pelo
desenvolvimento histórico-social. Em nosso caso, vemos como o desdobramento da
forma do valor, devido ao desenvolvimento econômico real, se eleva, na realidade
objetiva, da singularidade à universalidade através da particularidade".
147
Ou seja, e
basta isso para sinalizar que a formulação merece uma crítica severíssima, a indistinção
lukácsiana entre processo expositivo e processo analítico de realidade acaba por
conduzir à surpreendente conclusão que a processualidade global da realidade
econômica é silogística. Todavia, essa espantosa desembocadura, ao buscar respaldo,
revela seu pressuposto analítico
,
exibe a
herança
a partir da qual e com a qual
enveredara pela tese do denso
vínculo lógico
entre Marx e Hegel.
Trata-se, em realidade, de herança e pressuposto assumidos de modo explícito.
Tendo retido as três formas de valor antes de tudo como figuras da singularidade,
particularidade e universalidade, e as equiparado a momentos históricos efetivos,
tornando com isso equivalentes o andamento da exposição marxiana e a marcha da
gênese e do desenvolvimento concretos do valor, e assim concluído por fim,
literalmente, pela redução do mundo econômico a um silogismo, Lukács, ato contínuo,
145
Idem
,
ibidem
.
146
Idem
, p. 99.
147
Idem
,
ibidem
.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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início ao parágrafo subsequente do texto pela ancoragem de seu resultado
silogístico ao solo de composição idêntica da mais que conhecida anotação de Lênin
sobre o mesmo assunto. Os termos e o sentido desse comentário giram igualmente e
com a mesma ênfase em torno da figura do silogismo hegeliano. Basta transcrever o
parágrafo lukácsiano em que foi intercalado, para deixar aludido que a perversidade
que envolveu o legado intelectual de Marx tem raízes em falácias muito antigas,
germinadas inclusive a partir dos chamados
clássicos do marxismo
, o que não converte
o autor húngaro em simples coadjuvante de certas mazelas teóricas, nem abranda sua
responsabilidade filosófica. É visivelmente com alta gratificação intelectual que ele
escreve no referido parágrafo: "é, portanto, extraordinariamente interessante o fato de
que Lênin, analisando a doutrina do silogismo de Hegel e as relações entre singular,
particular e universal, se refira precisamente a esse ponto de
O Capital
: 'Imitação de
Hegel por Marx no primeiro capítulo'; e, logo depois, ele acrescenta este aforismo: 'Não
se pode compreender perfeitamente
O Capital
de Marx, especialmente o primeiro
capítulo, se não se estudou a fundo e não se compreendeu
toda
a lógica de Hegel.
Por isso, meio século depois, marxista nenhum compreendeu Marx'".
148
E o discurso
lukácsiano prossegue, agora, literalmente como depoimento sobre a conexão íntima
entre sua própria formulação e a de Lênin: "E as subsequentes considerações de Lênin
indicam, de modo extremamente claro, que ele tem em mente precisamente aquele
ponto em Marx que nós estudamos como o que é metodologicamente decisivo: 'E
Hegel realmente
demonstrou
que as formas e as leis lógicas não são um invólucro
vazio, mas sim o
reflexo
do mundo objetivo. Ou, para dizer melhor, não o demonstrou,
mas o
adivinhou genialmente
'. Lênin, portanto, sublinha com a máxima energia o
aspecto da utilização crítica que Marx fez da herança de Hegel".
149
Lukács volta a
mencionar Lênin em mais algumas oportunidades, sempre em torno do mesmo ponto,
mas nunca deixando de o encarar como uma fonte restrita, ainda que desvanecedora,
de confirmação. O solo da plena certeza lukácsiana, no Capítulo 3 dos
Prolegômenos
,
é Engels.
Com efeito, escreve Lukács, "Lênin, por certo, se expressou de modo bastante
frequente sobre essas questões, principalmente nos seus extratos filosóficos, mas uma
tomada de posição direta e absolutamente clara sobre o nosso problema a
148
Idem
,
ibidem
.
149
Idem
, pp. 99-100.
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encontramos na
Dialética da Natureza
de Engels, onde ele oferece uma detalhada
interpretação materialista da doutrina hegeliana do juízo".
150
E nessa altura da
explicitação da herança, Lukács aproveita a oportunidade para fazer uma declaração
solene, que traz embutido um cotejamento suspicaz entre os portes das elaborações
de Marx e Engels relativas à questão: "nossa exposição parte da posição dos clássicos
do marxismo sobre a relação entre lógica e história. A nossa análise de Marx indicou
de que modo ele concebeu essa conexão. Mas Engels oferece uma síntese palpável de
seus princípios em sua recensão de
Para a Crítica da Economia Política
".
151
Essa
consideração estende e arremata a rie de lamentações com que Lukács sempre
refere a inefetivação do que seria o projeto marxiano de extração do núcleo racional
da lógica hegeliana. As lástimas traduzem, em verdade, a constatação da inexistência
de textos marxianos apropriados à sustentação da
herança hegeliana
, donde a
superioridade expressiva ou a palpabilidade dos textos leninianos e ainda mais
plenamente a dos escritos engelsianos.
É muito importante notar que a perversão teórica principia pela tradução
engelsiana, e o apenas através dos elementos retidos pela leitura lukácsiana, dos
procedimentos marxianos, simplesmente, à
relação entre lógica e história
. Não mais a
relação marxiana entre realidade (ou história) e pensamento, mas entre história e
lógica
, no que parece ser uma inocente sinonímia. Todavia não o é, pois introduz aí o
germe do epistemologismo, ainda que na mencionada recensão engelsiana a
argumentação penda mais, de certo modo, para o que seria o todo expositivo,
porque, de outra parte, o
método lógico
é uma espécie de recurso legítimo que
autoriza a tratar da história de modo breve ou sincopado, que viabiliza a produção do
conhecimento e facilita a compreensão de seus resultados. Sem dúvida, confuso e
primário, mas é o se lê, nas linhas que antecedem imediatamente a parcela do texto
aproveitado por Lukács. Diz Engels: "mesmo depois de adquirido o método, a crítica
da economia política podia ainda ser abordada de dois modos: o histórico e o lógico.
Como na história, tal como no seu reflexo literário, o desenvolvimento, a traços largos,
progride das relações mais simples para as mais complexas, o desenvolvimento
histórico-literário da economia política fornecia um fio condutor natural ao qual a
crítica podia se ligar e, a traços largos, as categorias econômicas apareceriam na
150
Idem
, p. 100.
151
Idem
,
ibidem
.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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mesma ordem do desenvolvimento lógico. Esta forma tem aparentemente a vantagem
de uma clareza maior, pois, assim, se acompanha o desenvolvimento
real
; de fato,
porém, no máximo, seria apenas mais popular. A história procede frequentemente por
saltos e em ziguezagues e, se houvesse que a seguir ao mesmo tempo por toda parte,
não se colheria muito material de pouca importância, como também o curso do
pensamento teria frequentemente que ser interrompido. Ademais, não se poderia
escrever a história da economia política sem a da história burguesa, o que tornaria o
trabalho infindável, uma vez que faltam os trabalhos preparatórios. Portanto, o
tratamento lógico da questão era o único adequado".
152
A título de contexto, para uma
apreensão um pouco menos fragmentária da passagem acima, vão algumas
passagens referentes ao
método
referido: 1) "Desde a morte de Hegel quase nenhuma
tentativa foi feita para desenvolver uma ciência no seu próprio encadeamento interno";
2) "Havia, portanto, aqui uma outra questão a resolver, que não tinha nada a ver com
a economia política em si. Como tratar da ciência?"; 3) "De um lado, encontrava-se a
dialética de Hegel na forma 'especulativa', completamente abstrata, em que Hegel a
tinha deixado; [...]. Em sua forma
presente
, o método de Hegel era imprestável. [...] Ele
partia do pensamento puro, e aqui se devia partir dos fatos mais tenazes. [...] Apesar
disso, de todo o material lógico existente era o único ao qual, ao menos, era possível
se ligar. Não tinha sido criticado, não tinha sido superado; nenhum dos adversários do
grande dialético tinha conseguido abrir uma brecha em seu garboso edifício; tinha
desaparecido porque a escola de Hegel não soube o que fazer com ele. Antes de mais
nada, tratava-se, pois, de submeter o método de Hegel a uma crítica profunda"; 4) "O
que distinguia o modo de pensar de Hegel de todos os outros filósofos era o enorme
sentido histórico que lhe servia de base. Por abstrata e idealista que fosse a forma, o
desenvolvimento do seu pensamento não deixava de transcorrer sempre em paralelo
com o desenvolvimento da história universal [...]. Foi o primeiro que tratou de
demonstrar um desenvolvimento, um encadeamento interno na história, e, por
estranha que agora muita coisa na sua filosofia da história nos possa parecer, a
grandiosidade da própria visão fundamental é ainda hoje digna de admiração, quando
se lhe comparam os seus predecessores ou mesmo aqueles que depois dele se
permitiram reflexões universais sobre a história. [...] Essa concepção que fez época foi
152
ENGELS, F. “A
Contribuição à Crítica da Economia Política
de Karl Marx”.
Obras Escolhidas
. Rio de
Janeiro: Editorial Vitória, t. I, 1956, p. 534.
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o pressuposto teórico direto da nova visão materialista e, por esse fato fornecia
também um ponto de partida para o método lógico"; 5) "Marx era, e é, o único que
podia se entregar ao trabalho de extrair da lógica hegeliana o núcleo que encerra as
descobertas reais de Hegel nesse domínio e restabelecer o método dialético, despido
de suas roupagens idealistas, na forma simples em que ele se torna a única forma
correta de desenvolvimento do pensamento. Consideramos a elaboração do método
que está na base da crítica da economia política como um resultado que, quase nada
fica a dever em importância à própria concepção materialista fundamental".
153
Lido a uma distância de quase século e meio, é muito simples opor ao texto dessa
recensão uma bateria cerrada de objeções, mesmo porque, para exemplificar,
tomando por alvo a mais próxima e coroada das afirmações transcritas, não se pode
saber, a rigor, do que Engels esteja falando quando refere, como se estivesse diante
de um fato consumado, "a elaboração do método que está na base" de
Para a Crítica
da Economia Política
, emprestando à frase a evidência própria à solidez das montanhas
e à vastidão dos oceanos. É verdade que se trata de um texto de afirmação política e
propaganda, o que obrigaria a fazer abatimentos, porém, ele se apresenta como
elaboração séria e Lukács o cita enquanto tal. Por isso mesmo, não é impertinência,
mas obrigação elementar, insistir na intransparência dessa categórica afirmação
engelsiana. Obscuridade diante da qual resta a tentativa da decifração, o que implica
análise e investigação. Mas, se estas estiverem, como no caso lukácsiano,
condicionadas e comprometidas pela necessidade da simples confirmação, sabemos
quais são os grandes riscos e os melancólicos resultados. Talvez se possa conceder
ao Lukács da década de [19]50 o benefício da dúvida, talvez ele ainda não soubesse,
ou melhor, estivesse impedido de saber. Por isso, sem alternativa, agarrou em favor
de seu trabalho e em nome dos
clássicos
o que pôde, a síntese conclusiva da recensão,
única passagem da mesma que cita: "'portanto, o tratamento lógico da questão era o
único adequado. Mas este não é, na realidade, senão o modo histórico, unicamente
despojado de sua forma histórica e de elementos ocasionais perturbadores. Do modo
que começa a história, assim deve começar também o curso dos pensamentos, e seu
curso ulterior não será mais do que o reflexo, de forma abstrata e teoricamente
consequente, do curso da história; um reflexo corrigido, mas corrigido segundo leis
que o próprio curso da história fornece, porquanto cada momento pode ser
153
Idem
,
Ibidem
.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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considerado no ponto de seu desenvolvimento em que atingiu sua plena maturidade,
sua forma clássica'".
154
Síntese nada esclarecedora, por sinal, e francamente sem a
mínima possibilidade de ser articulada com aquilo que Marx havia escrito na
Introdução de [18]57, que permanecia inédita e desconhecida para Engels, mas não
para Lukács, que sintomaticamente a malbaratou neste mesmo Capítulo 3, no qual
eleva aos céus, digamos assim por mera cortesia, as equívocas trivialidades
engelsianas.
Apesar da ênfase emprestada à menção da
Dialética da Natureza
como única
obra em que se encontra "uma tomada de posição direta e absolutamente clara sobre
o nosso problema", configurada e assumida por Engels em sua "detalhada
interpretação materialista da doutrina hegeliana do juízo", na qual procura "descobrir
o desenvolvimento histórico que está na base da sucessão das formas do juízo em
Hegel, de um ponto de vista de princípio e histórico real",
155
Lukács pouco exibe em
auxílio da sustentação de sua tese. Nas três ou quatro citações que faz do texto, tudo
se resume à reiteração da historicidade da formação e da sucessão das formas dos
juízos, de tal modo que do juízo singular ao universal, passando pelo particular (juízo
de reflexão/predicação relativa), sempre há para cada um deles um substrato histórico
que o engendra enquanto forma e conteúdo. É isto, em suma, que constitui a "inversão
materialista da teoria hegeliana do juízo e do movimento do singular ao universal
através do particular", operada por Engels. Tanto que, postas de lado as
exemplificações, que dominam o próprio texto engelsiano e que Lukács resume de
forma mais ou menos breve, restam somente asserções generalizadoras ou, então, de
caráter conclusivo.
Da natureza histórica das formas dos juízos e da sucessão das mesmas é tirada
a ilação que estabelece a identidade do pensamento dialético; Lukács é direto e
suscinto a esse respeito: "Engels declara, em diversas ocasiões, ver aqui a linha
fundamental do movimento do pensamento dialético. Queremos nos limitar a um
exemplo: 'De fato, todo conhecimento efetivo, completo, consiste somente nisto: que
nós, com o pensamento, elevamos o singular da singularidade à particularidade e desta
última à universalidade; que nós reencontramos e estabelecemos o infinito no finito, o
eterno no caduco. A forma da universalidade, porém, é forma fechada em si, isto é,
154
LUKÁCS.
Introdução a uma estética marxista
,
op. cit.,
p. 100.
155
Idem
, p. 102.
J. Chasin
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infinitude; ela é a síntese dos muitos finitos no infinito'".
156
De outra parte,
confluentemente, mas com repentinos tons escatológicos, Lukács generaliza a
historicidade dos juízos para o inteiro pensamento da humanidade. Tomando apoio
novamente em Engels, diz que "corrigindo e uniformizando, num breve estrato, a
teoria do juízo de Hegel [...], Engels opera essa simplificação e correção do curso
histórico, deixando simplesmente de parte todas as passagens artificiosas etc. de
Hegel e fazendo ver, na série ordenada das formas do juízo, a ação de um irresistível
impulso no desenvolvimento do pensamento humano, que avança do singular ao
universal através do particular. Esse impulso está presente no pensamento humano
(concebido historicamente como desenvolvimento do pensamento da humanidade),
mas só porque nele se refletem as leis de movimento da natureza e da sociedade, no
grau de consciência alcançável a cada volta",
157
ou sob forma mais compacta, poucos
parágrafos à frente, porém, comprometendo inclusive Marx na sustentação dessa
fórmula, no mínimo despropositada pela extensão do conteúdo e a impropriedade de
sua emergência no contexto dado: "Tanto a dedução dialética da forma do valor em
Marx quanto a interpretação da teoria hegeliana do juízo em Engels indicam, na
realidade e na consciência aproximadamente adequada desta, um movimento
irresistível, uma aspiração progressiva que conduz do puramente singular ao universal
através do particular".
158
Atropelo da reflexão marxiana que é antecedido por outro,
quando Lukács chega a escrever que "na obra de Marx, o desenvolvimento histórico
das categorias econômicas é sintetizado logicamente pelo modo definido por Engels
no trecho citado da
Dialética da Natureza
.
159
Quando um conjunto rudimentar de
considerações é identificado como decifração de uma das formas mais elaboradas e
precisas de prática teórica, algo mais no horizonte do que um grande erro, em
especial quando se trata de alguém do porte e da integridade de um pensador como
Lukács.
Tão decisivo quanto verificar a inconsistência da sustentação lukácsiana da tese
do denso
vínculo lógico
entre Marx e Hegel é atentar para a exterioridade desse
problema em relação ao universo marxiano. Embora a simples junção das duas faces
da crítica realizada proporcione, imediatamente, a visualização desse aspecto exógeno,
156
Idem
, p. 102.
157
Idem
, p. 101.
158
Idem
, p. 102.
159
Idem
, p. 101.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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é conveniente dedicar um pouco mais de atenção a essa face do problema. De um
lado, ficou estabelecida a absoluta precariedade teórica e documental da
argumentação lukácsiana que tenta extrair arrimos para a demonstração da herança
hegeliana de Marx: a interpretação circunscrita da obra, voltada a esse propósito, é
insubsistente, e a ausência absoluta de esparsos ou anotações favoráveis é confessa,
ao mesmo tempo em que Lukács desconheceu, liminarmente, sem nenhuma
justificativa, um conjunto numeroso de elaborações e pronunciamentos exatamente em
sentido contrário. Por outro, desamparado por Marx, amarrou a tese na fragilíssima
âncora engelsiana, à qual Lênin havia se atado anteriormente. Nesse panorama, o
primeiro aspecto da exterioridade está demarcado: a tese do
vínculo lógico
entre Marx
e Hegel não é uma problemática autorizada pela obra ou pelas convicções intelectuais
de Marx, mas uma formulação improcedente que tem rastros em Engels, pegadas em
Lênin e que, depois, foi expandida, a exemplo do caso de Lukács.
O segundo aspecto da exterioridade, pano de fundo do primeiro, é que a tese
constitui uma das respostas consequentes à
admissão
por marxistas de uma
problemática extrínseca às resoluções marxianas, operada no desconhecimento destas
e sob a premência de gerar respostas na guerra científica e filosófica. Em poucas
palavras, é a exterioridade, em face da obra marxiana, do complexo problemático do
conhecimento tomado sob o caráter e a feição em que este se manifestou e fixou no
universo científico-filosófico extramarxiano. A peculiaridade da resposta marxiana à
questão foi examinada em tópicos anteriores, em que ficou demarcada a impugnação
crítica e o descarte que efetua da querela gnosiológica em seu talhe tradicional, bem
como a fundamentação ontoprática do conhecimento que estabeleceu. Aqui, não se
trata senão de registrar o retrocesso havido a partir dos
clássicos
. Estes, duplamente
desfavorecidos, pois ignoravam a reflexão marxiana correspondente, esparsa e perdida
em inúmeros manuscritos, que muito depois seriam resgatados, e pressionados
pela maré montante da questão gnosiológica, que acabou por ocupar todos os
espaços, responderam ao desafio incorporando o problema sob a forma em que Marx
o havia repelido e superado.
O detalhamento concreto desse processo é algo que ainda está inteiramente por
fazer, mas bastam aqui algumas poucas referências para deixar configurada essa
assimilação desfiguradora. Por certo, Lênin combateu muita gente e outras tantas
concepções com seu
Materialismo e Empirocriticismo
. Mas, independentemente de
níveis ou padrões de qualidade, combateu o quê? É suficiente um relance pelos títulos
J. Chasin
210 | Verinotio
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dos capítulos deste livro para saber que ele guerreia
teorias do conhecimento
. Com
que arma travou o duelo? Empunhando uma outra teoria do conhecimento, suposta
como
verdadeira
, cuja natureza teórica e o simples nome o inteiramente estranhos
ao universo conceitual marxiano
a teoria do conhecimento do materialismo dialético
.
Lênin cita inclusive a II Tese
ad
Feuerbach,
160
sobre a qual tece comentários
pertinentes, mas não se dá conta, nem longinquamente, que esse aforismo, ao
estabelecer a prática como critério de verdade, impugna e destitui ao mesmo tempo o
próprio estatuto da teoria do conhecimento como disciplina filosófica. Ou seja, sem
saber, Lênin promove o refluxo da solução marxiana, dada no plano ontológico, para
o território ultrapassado da teoria do conhecimento. Banaliza o aforisma, ao fazer dele
uma resposta antiga para uma pergunta velha cuja forma nem deveria admitir. Da
parte de Engels já foi dito o bastante, ainda que apenas pelo interior e em função da
leitura que dele é feita por Lukács. Mas em relação a este último é que a questão da
exterioridade tem relevo especial.
Tratar do
vínculo lógico
, como tese decorrente da admissão pelo marxismo de
uma problemática exterior ao universo marxiano, é especialmente intrincado quando
essa assimilação diz respeito a Lukács, pois determinantes de várias procedências
entrariam em jogo, dadas as várias fases e definições de sua longa trajetória intelectual,
feita de mais de meio século e atravessada duramente por injunções políticas das mais
desfavoráveis. Aqui, tudo será limitado ao mínimo necessário para caracterizar o caso,
estritamente, em função da rota analítica em curso.
Lukács pendeu para o terreno ontológico desde seu período pré-marxista,
quando no bojo do neokantismo e, depois, do hegelianismo conviveu, sob fricções
diversas, com as postulações gnosiológicas então imperantes. Mas, desde então,
guardou traços daquilo que, ao final do tópico anterior, voltado aos dois primeiros
capítulos dos
Prolegômenos
, foi apontado como sua admissão tácita do arcabouço
tradicional do "sistema" das disciplinas filosóficas, cuja afloração mais saliente em seus
trabalhos acabou girando em torno do
método
, da
lógica
e da
teoria do conhecimento
.
E sua passagem ao marxismo pode muito bem ser caracterizada, para efeito da
questão em tela, pelo ensaio que abre
História e Consciência de Classe
, no qual
identifica a ortodoxia para o âmbito marxista, como é sabido, de modo epistêmico:
160
LÊNIN, V.
Materialismo e Empirocriticismo.
Lisboa: Editorial Estampa, 1971, p. 131.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
Verinotio
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"Em questões de marxismo a ortodoxia se refere antes e exclusivamente ao
método
.
Ela implica a convicção científica de que, com o marxismo dialético, foi encontrado o
método de investigação correto, que esse método pode ser desenvolvido,
aperfeiçoado e aprofundado no sentido de seus fundadores, mas que todas as
tentativas de superá-lo ou ‘aperfeiçoá-lo’ conduziram somente à banalização, a fazer
dele um ecletismo e tinham necessariamente de conduzir a isso".
161
Por mais atípica
que seja essa epistemologia considerada a sua concepção, explicitamente derivada
do arsenal hegeliano, de que "o proletariado é ao mesmo tempo sujeito e objeto de
seu próprio conhecimento", e que do ponto de vista deste "coincidem o
autoconhecimento e o conhecimento da totalidade"
162
trata-se, de qualquer modo,
de uma tematização presa, em grande medida, à querela gnosiológica tradicional, tanto
que a própria gênese do pensamento marxiano é estreita e decisivamente atada à
mesma: "A crítica de Marx a Hegel é a continuação e a elaboração diretas da crítica
que Hegel mesmo havia dirigido contra Kant e Fichte. Assim nasceu, por um lado, o
método dialético de Marx como continuação consequente daquilo que Hegel mesmo
havia aspirado, porém, sem o conseguir concretamente. Enquanto que, por outro lado,
restou o corpo morto do sistema hegeliano escrito como pasto de filólogos e
fabricantes de sistemas".
163
A partir desse estágio, inflexões pronunciadas foram se dando, em especial a
partir da década de [19]30, mas o que importa ressaltar, observado o objetivo bem
restrito dessas considerações, é que o percurso lukácsiano à ontologia marxiana foi
um verdadeiro caminho das pedras, que nunca se integralizou plenamente, embora
seja dele o mérito excepcional o que basta para o consagrar como o mais importante
pensador marxista do século de ter sido o primeiro a identificar, de forma imanente
ao espírito da obra marxiana, o caráter ontológico da mesma, bem como procurado
expor e desenvolver o panorama geral da questão e momentos fundamentais de sua
complexa estrutura categorial. Todavia, foi uma longa trajetória, uma procura árdua,
que cultivou incongruências e que não findou isenta de irresoluções e equívocos.
Assim, para dar um exemplo dessa difícil ascensão, em etapa bem avançada, é
impressionante notar que a própria
Estética
, em cuja arquitetura a dimensão
161
LUKÁCS, G. O que É Marxismo Ortodoxo?
In
:
História e Consciência de Classe
. Trad. Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 64.
162
Idem
, p. 37.
163
Idem
, pp. 32-33.
J. Chasin
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ontológica é patente, exiba a presença marcante da conciliação entre lineamentos do
ideário marxiano e a forma
exterior
da problemática do conhecimento. Em seu Capítulo
13, na parte voltada ao exame da categoria do
em-si
, pode-se apreciar com extrema
clareza a manifestação dessa ocorrência, na qual, à semelhança do que se passa no
conjunto da história da ontologia até Marx, os temas e os procedimentos propriamente
ontológicos são embaralhados e confundidos com problemas gnosiológicos. É natural
que isso ocorra nas vertentes pré-marxianas e em suas derivações posteriores, pois o
fundamento de todas, seja este qual for, é a qualquer tempo de caráter teorético, ao
partirem todas elas, sempre e desde logo, da forma da
interrogação cognitiva
do
mundo, de modo que o problema da cognoscibilidade é emparelhado, de imediato, ao
próprio objeto da indagação ontológica, cuja integridade é assim ferida e
transpassada, confundindo as coisas irremediavelmente, a ponto de dissolver por
completo o estatuto da própria posição ontológica, qual seja, o do reconhecimento
dos seres ou entes enquanto tais, em sua anterioridade ou independência da relação
cognitiva, isto é, em sua
efetividade
pré-teórica. Desordem que não ocorre no interior
da posição marxiana, pois esta, partindo exatamente da efetividade pré-teórica da
atividade sensível tanto como sujeito quanto como objeto , base da fundamentação
ontoprática do conhecimento, não confirma a legalidade específica do objeto e a
efetividade consumada do conhecimento, como favorece a legítima distinção entre os
dois âmbitos, justamente porque os reconhece no momento mais adequado ao seu
discernimento: ao tempo em que, pelas formas de suas diversidades, eles se medem e
transpassam mutuamente potencializando suas consequentes abordagens
desembaraçadas.
Todavia, não é o que se vê no tratamento lukácsiano do em-si; ao revés, este, no
momento decisivo da tematização, não é reconhecido ontopraticamente como
atividade sensível, mas admitido como figura epistemológica em sua máxima
abstratividade, a partir da qual, então sim, é processado o acesso científico ao
concreto. A trajetória discursiva, na mesclagem em pauta, é até engenhosa e se move
com alguma sofisticação, em talhe bem mais polido do que o empregado nos
Prolegômenos
, porém, isso só torna ainda mais evidente do que em outras partes não
apenas a extensão do espaço reflexivo ocupado pela
exterioridade
de fato, explícita
, mas o trânsito entrecortado do difícil caminho lukácsiano à ontologia marxiana.
Talvez, dado o entulho acumulado às portas da reflexão marxiana, seja meramente
ilusório cogitar que poderia ter sido de outro modo, mais direto e coerente desde o
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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princípio. O que importa, no entanto, é reter o fundamental da grande contribuição
lukácsiana, sem se perder em seus próprios extravios. Para tanto, é necessária a
distinção crítica entre suas partes lidas e impróprias, cuja arbitragem não pode ser
feita senão pelo próprio pensamento marxiano.
Depois de anunciar que o em-si e o para-nós estão entre "os elementos
constitutivos mais primários de toda imagem do mundo, de tal modo que é
inimaginável na vida, na ciência ou na arte um ato que, tendo por conteúdo a relação
do homem com o mundo externo e com sua aplicação na prática, não seja fundado
intelectual e emocionalmente em alguma concepção do em-si e do para-nós",
164
de
forma que "estas categorias expressam, com efeito, a relação mais importante do
homem com o mundo externo, relação na qual a necessidade absoluta de refletir essas
relações categoriais do modo mais adequado possível desempenha um papel decisivo
na prática, e por isso na vida inteira e na inteira existência do homem",
165
Lukács
envereda por uma súmula relativa à nese e à depuração dessas categorias, pois "a
verdade, tarda e laboriosamente conseguida, de que toda realidade objetiva possui o
caráter comum de imediato muito prosaico de existir com independência da
consciência, de existir em si, não pôde se impor a não ser superando as maiores
resistências, e nem mesmo hoje se impôs completamente, ao menos no terreno da
concepção do mundo".
166
É muito importante notar que essa sinopse histórica apesar de seu enraizado
ontológico e do propósito de assinalar, ainda que em traços bem ligeiros, até mesmo
os aspectos mais recuados do engendramento
prático
da categoria do ser-em-si,
incursionando inclusive por considerações antropológicas deslocadas e discutíveis
seja sintomaticamente encolhida, de maneira rude, no ponto central da exposição,
apenas sobre o plano cognitivo. Isso ocorre a partir da referência às ideias
renascentistas, por sinal, estreitamente configuradas, que postas mais sob a silhueta
que viria a demarcar o pensamento um século e tanto depois do que pelos traços de
sua própria multilateralidade: "A concepção da objetividade se converte
progressivamente no problema da depuração de seu reflexo de todos os acréscimos
subjetivos, e desemboca na prosaica e simples afirmação de que a objetividade, o ser-
164
LUKÁCS, G.
Estética
,
op. cit.,
p. 277.
165
Idem
,
p. p. 278.
166
Idem
, p. 279.
J. Chasin
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em-si, significa simplesmente independência existencial com relação à consciência dos
homens. [...] a questão do em-si se desenvolve cada vez mais resolutamente no sentido
de uma epistemologia do reflexo científico da realidade".
167
Desta formulação, através de passadas aqui irrelevantes, Lukács chega a Kant,
para oferecer aquela que é, provavelmente, a mais incisiva de suas raras apreciações
favoráveis a respeito desse pensador. Não sem recusar a kantiana "negação
epistemológica da cognoscibilidade das coisas em si", também não admitindo que se
trate de uma "fundamentação definitiva da filosofia, nem, neste sentido, de uma
'revolução copernicana'" e agregando ainda outras tantas restrições e críticas, Lukács,
todavia, assegura que "com Kant aparece um novo conceito do em-si, que terá
importantes consequências para a evolução filosófica", para explicitar com ênfase que
"seu conteúdo se reduz à estrita, porém, importante e decisiva afirmação de que o ser-
em-si significa simplesmente uma existência independente de toda consciência afetada
por ele e na qual se produzem por essa afecção percepções e representações. Com
ele se expressa definitivamente a nova evolução intelectual segundo a qual o em-si
não é, como na Antiguidade e na Idade Média, o ser último, valorativamente acentuado,
o ser que está 'por detrás' da física, mas a reconhecida objetividade da realidade
material".
168
Nova, dividida e contraditória formulação, mas que, pensa Lukács, também
"inverte o método de tratamento" do em-si, em contraste com a Antiguidade e a Idade
Média, de modo que agora o mesmo "se situa no começo de toda investigação
filosófica; se limita a exigir a supervisão da objetividade, da independência dos objetos
com relação ao sujeito cognitivo; e não é mais do que isso, porém, tampouco
menos".
169
Benévola e esperta interpretação, logo se verá por que, de espírito bem
distinto de tudo quanto Lukács costuma fazer pesar contra a organização subjetiva da
realidade e a incognoscibilidade da
coisa-em-si
, reputadas por ele, normalmente, como
os traços distintivos do sistema kantiano.
O passo subsequente, como não poderia deixar de ser, vai ao encontro do
território hegeliano: "Somente Hegel [Lukács mostra que isto não se dá com Fichte e
Schelling] em polêmica radical com a epistemologia kantiana recupera a fecunda
incitação filosófica provocada por Kant mesmo e considera o em-si como algo abstrato
167
Idem
,
p. 288.
168
Idem
, pp. 291-292.
169
Idem
,
p. 292.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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que expressa simplesmente a independência do objeto com relação ao sujeito (e
acrescenta Hegel, ultrapassando Kant a independência com relação aos demais
objetos). Com isso o em-si se converte em uma 'mera determinação abstrata e,
portanto, ela mesma externa'".
170
Todavia, ao lado dessa reiteração da fórmula, a
analítica lukácsiana adverte com força para "o fracasso último do idealismo filosófico,
também em sua versão hegeliana, diante do escolho do em-si",
171
pois "os limites do
avanço hegeliano à correta compreensão do em-si estão traçados por seu idealismo.
o pudemos ver a propósito da questão da objetividade, na qual, em que pese o seu
arranque logicamente correto, ele se desvia de sua própria concepção do em-si por
causa da concepção de fundo do sujeito-objeto idênticos. O aspecto mais positivo
dessa filosofia do em-si era precisamente essa abstrata generalidade epistemológica,
que permitia e até exigia que todo Algo, sem prejuízo de seu concreto ser-assim, fosse
contemplado como sendo-em-si, precisamente em consequência da independência de
sua existência em relação à subjetividade. Porém, quando através do estranhamento
sua objetividade se apresenta como um produto da evolução do sujeito-objeto
idênticos, cuja fase final é a ruína, a autodissolução na substância feita sujeito, de novo
é aniquilado o ser da objetividade independente da consciência. [...] Aqui se encontra
a fronteira intransponível para todo idealismo filosófico na teoria do conhecimento".
172
Apesar desse grave defeito, algo importante a reter, segundo Lukács, da
tematização hegeliana do em-si, pois "no pensamento de Hegel se encontra ao menos
o conato de uma concepção que contempla a objetividade como uma natureza
primária, originária de todo ente. Esta concepção se manifesta na conexão necessária
entre a coisa-em-si e suas propriedades: 'A
coisa-em-si
é, pois, como resulta,
essencialmente não apenas coisa-em-si, de um modo tal que suas propriedades sejam
o posto por uma reflexão externa, mas também de tal modo que se comporte de
determinada maneira por causa de suas próprias determinações; a coisa-em-si não é
um fundamento sem determinação, situado para além de sua existência externa, mas
que está presente como fundamento em suas propriedades'", razão pela qual, conclui
a interpretação lukácsiana, "a filosofia hegeliana, ao menos por uma de suas tendências
principais, ultrapassa amplamente a contraditória estreiteza kantiana, e não só põe o
em-si, como ponto de partida epistemológico, no começo da investigação científica e
170
Idem
,
p. 292.
171
Idem
,
p. 293.
172
Idem
,
p. 295.
J. Chasin
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filosófica do mundo, mas prepara também a possibilidade intelectual de superar, no
curso desse processo, sua abstração, preservando sua essência epistemológica".
173
Destilado, retido e enfatizado o em-si como abstrata figura epistemológica
valorizado precisamente por sua máxima abstratividade, que assegura o primado da
objetividade do real e sua condição de ponto de partida da investigação científica,
garantindo também, em sua versão hegeliana, apesar de tudo a mais completa de
todas, a possibilidade de superação dessa abstratividade, ou seja, ressaltado inclusive
como abstração que prepara o processo de concreção teórica do objeto , em última
análise, apresentado o abstrato em-si epistemológico como a quinta-essência da
constituição do espírito científico moderno, e dados os encaminhamentos lukácsianos
costumeiros, a expectativa, evidentemente, era que assomasse à tedra, então, a
figura de Marx. Porém, mais uma vez, sempre que Lukács serpenteia pelos meandros
da
exterioridade
, isso é completamente impossível, sem que haja antes uma mediação
preparatória, donde a aparição do sucedâneo do malfadado
materialismo dialético
e,
no caso, da palavra de Lênin. É uma rota estranha e sintomática: das virtudes e dos
limites de Hegel, rompendo a sequência cronológica, rigorosamente seguida até então,
e contornando diferenças temáticas, o salto vai para além de Marx, no tempo, e para
aquém dele na definição da natureza do plano analítico resolutivo: "O grande problema
colocado aqui à filosofia pela evolução da humanidade era o da distinção precisa entre
o pensamento e a realidade, entre a consciência e o ser. Como uma e outro se fundem
de modo epistemologicamente inadmissível inclusive na nova dialética de Hegel [...]
apenas o materialismo dialético podia aportar a solução desse problema".
174
E,
completando a mediação preparatória para o engate com Lênin, é oferecida uma
argumentação verdadeiramente bizarra para um marxista: "Em todas essas afirmações
que sublinhar o termo 'epistemologicamente'. Pois, somente nesse terreno é uma
questão filosófica vital a distinção precisa, intransigente, entre a consciência e o ser, a
subjetividade e a objetividade. Precisamente por isso, como observou Hegel com
acerto, se faz o em-si tão abstrato e tão sem conteúdo, pois precisamente essa
abstração e somente ela consegue garantir aos objetos a independência com
relação ao sujeito cognitivo, sem colocar, mediante determinações demasiado
concretas, um limite à investigação temática da natureza, da estrutura, das relações
173
Idem
,
p. 294.
174
Idem
,
p. 295.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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etc. dos objetos".
175
A transgressão desses preceitos é ilustrada com considerações a
respeito da própria exercitação teórica hegeliana, que, além de nunca distinguir
suficientemente entre objetividade e subjetividade, se excede na determinação do em-
si, mas o importante é ressaltar a natureza da conclusão lukácsiana diante dessa última
infração: "Com isso se mesclam os âmbitos de competência da teoria do conhecimento
e da concreta investigação científica",
176
que é translúcida quanto ao estatuto em que
se move aqui o discurso lukácsiano.
A passagem de Hegel a Lênin é bastante descolorida, consistindo apenas da
simples adição de um exemplo ratificador e retificador. Trata-se da conhecida
passagem de
Materialismo e Empirocriticismo
em que, a propósito da chamada crise
dos fundamentos da física e das matemáticas, que ocupou o pensamento na junção
dos séculos XIX e XX, "Lênin coloca a questão epistemológica: 'Existem elétrons, éter
etc. fora da consciência humana, como realidade objetiva, ou não?' Quaisquer que
sejam os descobrimentos consignados acerca da natureza concreta da matéria, na
teoria do conhecimento se pode e se deve voltar sempre a essa pergunta, e a resposta
não pode ser mais do que o seguinte: 'O conceito de matéria não significa
epistemologicamente [...]
mais do que isto
: a realidade objetiva, que existe com
independência da consciência humana e é reproduzida por ela'".
177
Nesta fórmula, a
análise lukácsiana encontra a única confirmação
materialista-dialética
de seu
tratamento do em-si e comenta: "Precisamente aquela abstração, aquela pobreza de
conteúdo do conceito, epistemológico, do em-si pode garantir tanto a correta
distinção entre subjetividade e objetividade na imagem do mundo (e para a prática)
quanto a ilimitada aproximação à realidade concreta".
178
Entende, ademais, que dela
imane, para além da confirmação, uma dupla correção de Hegel: "O materialismo
dialético, que assimilou a grande conquista de Hegel nesse campo, o corrige em dois
sentidos: torna esse resultado mais rigoroso (epistemologicamente) e, ao mesmo
tempo, mais concreto e elástico (como caminho do conhecimento da realidade
concreta".
179
A primeira é direta e textualmente extraída da formulação leniniana: "A
distinção de Lênin entre o em-si epistemológico e a estrutura concreta da matéria [...]
175
Idem
,
p. 295.
176
Idem
, p. 296.
177
Idem
,
ibidem.
178
Idem
,
ibidem.
179
Idem
, p. 298.
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não significa, naturalmente, que se tenha de abandonar o que de verdadeiro na
concepção hegeliana do em-si, a saber: que é sumamente abstrato e pobre de
conteúdo, porém, não completamente indeterminado. Todavia, o estabelecimento
destas determinações em sua concreção não cabe à teoria do conhecimento, mas às
várias ciências".
180
Note-se como a radicalidade ou depuração (em verdade, "mais
rigoroso" é, simplesmente, igual a mais abstrato) do em-si referido a Lênin, bem como
a concreção posterior são, literalmente, pensadas no interior das atribuições próprias
à divisão tradicional das ciências e das disciplinas filosóficas. A segunda correção diz
respeito à "concepção dialética da mutação recíproca entre o ideal e o real, entre o
subjetivo e o objetivo",
181
isto é, ao fato de que, "no processo real da realidade, o ideal
e o real, o subjetivo e o objetivo estão constantemente em mutação entre si, porque a
realidade está muito longe de traçar sempre entre eles fronteiras firmes e marcantes.
A salvaguarda intelectual de uma objetividade segura do em-si tem, pois, que se
combinar com essa dialética que reconhece o fluente, com o objetivo de poder refletir
adequadamente e interpretar com acerto o mundo em sua realidade e riqueza".
182
Tão somente agora, e não, propriamente, em relação ao em-si epistemológico,
mas em conexão com o processo de concreção do conhecimento, é que, afinal e a
duras penas, Marx é empurrado à cena, ainda assim de forma marginal, apenas alusiva
e claudicante. Trata-se de um ato textual sumário e repentino. Em simples adjacência
ao exposto como "contraposição" entre "a rigorosa sustentação epistemológica do em-
si" e o "mais concreto e elástico caminho do conhecimento da realidade concreta" os
dois corretivos aplicados pelo
materialismo dialético
ao pensamento hegeliano
,
Lukács tece o seguinte comentário: "Nas considerações metodológicas de Marx,
introdutórias à crítica da economia política, essa contraposição se expressa muito
claramente. Marx enlaça aí, ainda que não terminológica, mas tematicamente, com sua
polêmica juvenil anti-hegeliana, criticando a doutrina hegeliana do estranhamento
como gênese da objetividade e de sua posterior superação",
183
citando em seguida, a
título de evidência, a mais famosa das passagens da
Introdução de [18]57
, desde "o
concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do
diverso" até "mas este não é de
modo nenhum
o processo da gênese do próprio
180
Idem
, p. 297.
181
Idem
, p. 298.
182
Idem
, p. 297.
183
Idem
, p. 298.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
Verinotio
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concreto". E o comentário prossegue, aludindo de maneira formalista ao processo de
concreção encerrado no texto marxiano, pois não demarca as diferenças fundamentais
que o separam do hegeliano, para dizer que "a tendência está presente, certamente,
em Hegel: o movimento desde o em-si até o em-e-para-si tem essa direção",
arrematando na sequência com o trecho mais significativo da consideração: "Porém, a
incapacidade do idealismo para colocar adequadamente a questão epistemológica
básica lugar às consequências justamente criticadas por Marx. Como se vê, a
limitação rigorosa ao em-si abstrato, só concebível epistemologicamente, se converte
em ponto de partida de uma conceituação da realidade objetiva que arranca de sua
concretude, se esforça para se aproximar dela de acordo com a verdade por meio
de abstrações razoáveis e termina por chegar à concreção conceitual dessa mesma
realidade".
184
Talvez se possa ver e com certeza discordar de vários aspectos desse
pequeno, porém conclusivo arrazoado, mas, por maiores que sejam a boa vontade e
os esforços despendidos, não é possível vislumbrar em seu conjunto qualquer
elemento que ampare a tese lukácsiana do em-si; ao contrário, o que sobressai com
nitidez de seus rodeios é que a única tentativa de estabelecer um vínculo direto entre
Marx e o em-si epistemológico aliás, nunca textualmente enunciado, mas
permanentemente sotoposto não consegue ultrapassar a franja da vaga alusão, tão
rarefeita que inclusive fica exposta ao risco de ser considerada até mesmo como uma
tentativa de incorporação furtiva de um argumento o comprovado à malha
demonstrativa.
Deixemos, no entanto, que esses aspectos altamente comprometidos sejam
explicados pelos problemas globais que eivam o conjunto dessa tematização
lukácsiana. Antes de tudo, qual era a questão fundamental que Lukács enfrentava, ou
cuja solução pretendia estar reconstruindo? Ele próprio, além de a situar entre os
limites do pensamento hegeliano e a necessidade da superação dos mesmos, a
formulou de modo claro e preciso: "O grande problema aqui colocado à filosofia pela
evolução da humanidade era o da distinção precisa entre o pensamento e a realidade,
entre a consciência e o ser".
185
Sem margem para qualquer dúvida, trata-se de uma
questão de natureza estritamente ontológica. Não há o que discutir a respeito. Todavia,
a resposta oferecida pela tematização lukácsiana do em-si, também sem sombra de
184
Idem
, p. 299.
185
Idem
, p. 295.
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dúvida, e enquanto tal enunciada, é de natureza exclusivamente epistemológica. A
partir dessa gravíssima subversão de universos, verdadeiro beco sem saída do
pensamento, todos os erros e desmandos teóricos se tornam possíveis. Aliás, num
quadro desse feitio, onde os próprios planos reais e ideais são radicalmente
confundidos, erros e não mais do que erros são passíveis de efetivação, cujas
distinções possíveis só dizem respeito aos níveis e graus de rusticidade ou sofisticação
teóricas em que são vazados. Por conseguinte, a grande pergunta sobre o caso
lukácsiano é a interrogação pelo como e o porquê de desacertos tão radicais aa
época da elaboração da
Estética
.
Decerto, essa é a pergunta, mas o lugar para o seu devido tratamento o é
dado por estas páginas. Aqui, em atendimento às finalidades traçadas de início para a
discussão das formulações lukácsianas, tal como operado por ocasião do exame da
dialética entre universal, particular e singular, compete levar à frente a indicação
das impropriedades fundamentais relativas à tematização do em-si, em face da
natureza do pensamento marxiano, e arrematar pela apresentação em conjunto do
contraste de ambas as teses diante da resolução ontoprática do conhecimento e da
teoria das abstrações, motivação de toda essa longa peregrinação crítica.
É relevante notar que a própria formulação lukácsiana do problema da distinção
precisa entre ser e consciência envolve o condicionamento que leva a travestir a
legítima questão ontológica numa impropriedade epistêmica. Nela, a questão é referida
e relacionada imediata e geneticamente aos limites epistemológicos do pensamento
hegeliano. Vale reestampar os termos com os quais Lukács fixa essa configuração:
"como a consciência e o ser se fundem de modo epistemologicamente inadmissível
inclusive na nova dialética de Hegel [...] apenas o materialismo dialético podia aportar
a solução desse problema".
186
Razão suficiente, desde logo, para interrogar: essa
inadmissível fusão hegeliana
é exclusiva ou prioritariamente
epistemológica
? E a crítica
marxiana originária, elaborada na sua ruptura com o hegelianismo, é também antes de
tudo ou exclusivamente de caráter
epistêmico
? Ou ainda, a denúncia marxiana do
pensamento especulativo, no
Manuscrito de Kreuznach
e nos escritos que o
subseguem, lança o itinerário precípuo de uma problemática do conhecimento ou,
precisamente, transita da crítica neo-hegeliana à crítica ontológica? Por que Lukács
186
Idem
, p. 295.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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ignora sem justificar todos esses passos concretos do processo constitutivo do
pensamento de Marx? Pura e simplesmente porque não parte de Marx. Volta-se
decididamente para Marx, quer fazer do pensamento deste o centro normativo e
propulsor de sua própria reflexão, mas encara o pensamento marxiano a partir de um
ambiente espiritual estranho, ao qual, por sua natureza teórica, o mesmo não pertence.
Lukács, como tantos outros, a principiar por Engels e Lênin, em modos e graus
peculiares a cada adepto ou intérprete, considera o ideário marxiano sob os influxos
da atmosfera gnosioepistêmica que havia se constituído em horizonte da cientificidade
por volta da rotação do século XIX ao XX e por este afora. Isto refere, designadamente,
o postulado, então em vigência absoluta e consagrada, do primado da questão
cognitiva sobre o exercício concreto da cognição. Dessa ótica, o discurso sobre o
objeto é subsumido ao discurso sobre o próprio discurso. Aquele passa a valer menos
pelo que contém do que pelo certificado de garantia previamente expedido pelo
segundo, no mais das vezes uma simples autochancela protocolar. Todavia, foi uma
guerra prolongada, e nesse pugilato cartorial dos saberes os contendores dos
cenáculos político-gnosiológicos, internos e externos ao âmbito marxista,
pressionaram muito sobre o estatuto científico da obra marxiana. Basta lembrar, a
propósito, o extenso debate transcorrido ao tempo da II Internacional. Com efeito,
muitos fatores contribuíram para que Marx fosse convertido em objeto de
investigações epistêmicas, porém, antes de tudo, o espírito do tempo de uma dada
época científico-filosófica, que predominou inclusive sobre os mais compenetrados
discípulos do pensamento marxiano, por isso mesmo perversamente desentendido.
Lukács no curso de uma obra das mais ricas e significativas, entre
História e
Consciência de Classe
e a
Estética
, isto é, entre seu momento protomarxista e o tempo
da mais ampla realização de seu marxismo
proto-ontológico
(digamos assim, e não
apenas por homologia terminológica) é a mais alta expressão filosófica dessa
subsunção marxista de toda uma época ao
diktat
gnosioepistêmico, ou mais
estritamente, à força de sua irradiação como princípio normativo da
verdadeira
cientificidade
, atmosfera sob a qual o marxismo principiou a perder, desde muito cedo
e sob dimensão fundamental, nessa precisa batalha não travada, a guerra teórica do
século XX, na qual acabou destroçado.
A dialética entre universal, particular e singular, como súmula do denso
vínculo
lógico
entre Marx e Hegel, tanto quanto a teoria do em-si gnosiológico são exemplos
muito importantes dessa rota enviesada que desfigura e até mesmo banaliza o
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pensamento marxiano. Apesar de não refletirem, nem de longe, o
todo
do pensamento
lukácsiano no vasto período indicado, não são, de outra parte, reles momentos
infelizes ou equívocos fortuitos de uma grande jornada intelectual. Tomadas aqui
enquanto evidências da enorme dificuldade com que Lukács transitou para a ontologia
marxiana, não constituem ocorrências dispersas, isoladas uma da outra, como se
fossem tropeços ocasionais em caminhadas independentes. Ao contrário, combinam
muito bem, conceitualmente, e por sua articulação podem ser vistas como o eixo em
torno do qual girou boa parte da imagem lukácsiana da obra de Marx. Sob tal alinhavo,
a dialética entre as categorias de universalidade, particularidade e singularidade, pela
letra e pelo espírito de seu próprio enunciado, é a encarnação do
vínculo lógico
com
Hegel, bem como, por conseguinte, do
método científico
, enquanto o
em-si
gnosiológico
é o artefato fundante da cientificidade da doutrina.
Que essas fórmulas estejam em franca dissonância e até em contradição, sob
distintas maneiras, com o que há de mais substancial na obra lukácsiana não é apenas
um fato importante, que exija pura e tecnicamente um grifo forte, mas ocorrência tão
decisiva que, em verdade, deve ser mesmo
celebrada
, pois a grandeza do pensamento
marxista de Lukács se manifesta, precisamente, na enorme esfera reflexiva que
desenvolveu para além e de costas para o complexo da
exterioridade
, ao qual, no
entanto, estava subordinado. Que essa debilidade prejudicou seu pensamento é
também um fato palpável, que sua imagem global do pensamento marxiano foi por
isso mesmo significativamente afetada em pontos de extrema relevância, não resta
dúvida, mas este foi o seu caminho, assim é que transitou, por fim, ao ambiente da
ontologia marxiana, antes e mais apropriadamente do que ninguém. E aqui é disto que
se trata, precisamente dessa jornada, em especial de formulações errôneas das quais,
à época, Lukács não se deu conta; de problemas cujo enfrentamento e retificação
parciais só vieram a ocorrer na empreitada pela
Ontologia
, que, apesar de inconclusa,
não apenas na forma, mas nas próprias concepções, renovou a perspectivação de
conjunto, a qual, embora não tenha dirimido por completo as obliquidades e
irresoluções de seu próprio trabalho, proporciona finca-pés e o direcionamento geral
para uma nova abordagem crítica, aqui desenvolvida em torno de aspectos de sua
própria obra. Sob esse prisma, trata-se, então, de uma crítica a Lukács a partir de Marx,
gerada pela inspiração ou a própria mediação do último Lukács.
Vistas à luz dessa contraditoriedade englobante, talvez cause mais espécie ou
aversão, como grave impropriedade, a formulação lukácsiana do em-si do que o
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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próprio rebaixamento de nível pelo qual é sustentada a dialética do universal,
particular e singular. De fato, como é possível admitir, num suposto e almejado quadro
de referência marxista, que uma simples abstração levada ao extremo seja a resposta
satisfatória para o estabelecimento da precisa distinção entre ser e consciência? Ainda
mais do que rigorosamente débil e formalista, o em-si epistêmico, definido como
princípio de objetividade, como garantia da existência material e autônoma do objeto
e deste como ponto de partida da ciência, ressoa sobretudo enquanto ideação
artificiosa. A conversão dessa noção vazia em alicerce, do qual passam a pender e
depender a realidade e também a ciência, sugere uma ginástica conceitual de
acomodação em torno de um suposto vácuo, de um
não-sabido
, e da
tradição
filosófica
, lida ademais com ênfase excessiva recaindo sobre a continuidade histórica
das ideias. E o conjunto desses e de outros tantos passos frouxos de tal arcabouço
conceitual é radicalmente acentuado em sua gratuidade e incongruência tão logo seja
comparado à genuína reflexão marxiana correspondente. Já pela
II Tese
Ad Feuerbach
e vários dos demais aforismos, assim como reflexões por toda a obra marxiana
multiplicam esta evidência compreende-se que em Marx qualquer forma da coisa-
em-si abstrata e especulada cede lugar ao complexo ontoprático, que compreende a
globalidade das determinações da
atividade sensível
, tanto sob a figura do objeto
quanto do sujeito, e em plena atualização objetiva de suas formas de existência. Ou
seja, os objetos específicos são confirmados em suas existências específicas,
independentes, isto é, na objetividade própria aos seres-em-si, o mesmo ocorrendo
com os sujeitos, duplamente confirmados por sua vez, pois identificados ao mesmo
tempo como agentes sensíveis e cognoscentes. Diante desse complexo repleno,
opulentamente determinado, que falta pode fazer ou que papel restaria ao puro em-si
abstrato, na pobreza de conteúdo que é toda a sua virtude? Nenhuma, é óbvio,
podendo servir como ilustração de um grave equívoco, cuja inferioridade teórica
traduz, ao contrário do pretendido, o esvaziamento epistêmico da realidade, em
contraste com a farta conquista ontológica da mesma levada a cabo por Marx.
Tão embaraçante e comprometedora é essa linha
marxista
de sustentação da
doutrina marxiana, derivada da subsunção ao complexo da
exterioridade
, que ela
tisnou inclusive certas figuras marcantes do elenco conceitual lukácsiano, admiradas
no passado como reconsiderações temáticas exponenciais, e que até hoje, acrítica e
desavisadamente, ainda chegam a mover dadas elaborações marxistas mais picas e
nominalistas. Tome-se, por exemplo, a proeminente categoria da totalidade, que em
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certas versões lukácsianas é antes de tudo uma figura do cenário epistêmico, e como
tal homóloga à ênfase conferida ao método, isto é, à dialética entre universalidade,
particularidade e singularidade, e também ao em-si abstrato. É esclarecedor, ainda a
propósito da crítica a este último, acompanhar algumas das vicissitudes da noção de
totalidade no pensamento lukácsiano, pois elas abarcam extensa parte da obra do
pensador húngaro.
O ensaio dedicado a Rosa Luxemburgo em 1921, o segundo de
História e
Consciência de Classe
, começa por uma afirmação metodológica taxativa: " Não é o
predomínio dos motivos econômicos na explicação da história que distingue de
maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.
A categoria da totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre as partes
constituem a essência do método que Marx recebeu de Hegel e transformou de
maneira original no fundamento de uma ciência inteiramente nova".
187
Quase meio
século depois, no importantíssimo Prefácio de 1967 ao Volume II de suas
Obras
, no
qual, ao lado de outros textos menores,
História e Consciência de Classe
foi
republicada pela primeira vez, Lukács, ao inventariar os erros e acertos da obra, faz
ele mesmo a crítica daquela formulação: "Sem dúvida, um dos grandes méritos de
História e Consciência de Classe
foi ter restituído à categoria da totalidade, que a
'cientificidade' do oportunismo social-democrata empurrara totalmente para o
esquecimento, a posição metodológica central que sempre ocupou na obra de Marx.
[...] Mas [...] surgia em mim um exagero hegeliano, porquanto opunha a posição
metodológica central da totalidade à prioridade da economia". Transcreve, em seguida,
o texto estampado acima e acrescenta: "Esse paradoxo metodológico acentua-se ainda
mais porque a totalidade era vista como a portadora categorial do princípio
revolucionário na ciência: 'A primazia da categoria da totalidade é portadora do
princípio revolucionário da ciência'".
188
Lukács não explicita o teor do paradoxo, mas
se entende com facilidade que a denúncia e o descarte da contraposição têm por
conteúdo, precisamente, o reconhecimento da concepção marxiana, segundo a qual a
economia política é a própria
anatomia
da totalidade, jamais uma simples parte ao
lado de outras, à qual a totalidade como instância última e superior deva ser,
metodologicamente, contraposta. Portanto, sua autocrítica reporta uma correção
187
LUKÁCS, G.
História e Consciência de Classe, op. cit.
, p. 105.
188
LUKÁCS, G. “Prefácio (1967)”. In:
História e Consciência de Classe, op. cit.,
pp. 20-21.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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substancial. Todavia, um segundo equívoco na formulação primitiva, muito
importante para a discussão em curso, sobre o qual não se encontra uma única palavra
no Prefácio de 1967: a totalidade é definida, explicitamente, como
ponto de vista
. E
não apenas na passagem transcrita, mas também no próprio O que É o Marxismo
Ortodoxo?, no qual se pode ler que o "ponto de vista metódico da totalidade, que
apreendemos a reconhecer como problema central, como condição primordial do
conhecimento da realidade, é um produto da história num duplo sentido"
189
. Que, no
contexto dado, esse
ponto de vista
seja o do proletariado, enquanto sujeito e objeto
idênticos "do conhecimento da realidade social", apenas acentua que a totalidade é
concebida como uma configuração da consciência, simplesmente como um prisma ou
ângulo visual, embora privilegiado, mas não altera em nada que se trata de uma
identificação equivocada da mesma, pois, ainda que o proletariado seja o portador da
visão da totalidade, ele não é a própria totalidade social, de modo que seu privilégio
seria o de poder ver e não de ser a totalidade. É o que importa demarcar aqui,
exclusivamente: a totalidade é reduzida aos contornos de uma simples potência mental
ou possibilidade cognitiva.
Ocorre que, no Capítulo 13 da
Estética
, algo semelhante ou um resíduo dessa
acepção está presente, embora despojado dos ademanes do sujeito-objeto idênticos,
e diretamente vinculado à tematização do em-si epistêmico e do para-nós. Vejamos
alguns dos passos constitutivos dessa nova figura da totalidade. Para Lukács, "como
o para-nós representa o contrapolo subjetivamente coordenado com o em-si, o destino
de sua determinação é inteiramente paralelo ao processo aqui descrito: a concepção
do em-si contém um modelo do comportamento subjetivo para com ele, e determina
portanto ao mesmo tempo o modelo do para-nós. [...] Por essas razões se pode dizer
que a tipologia do para-nós, no que toca a seus traços mais essenciais, está contida
na do em-si. Isso determina antes de tudo a forma do para-nós no reflexo científico, a
forma adequada ao método desantropomorfizador" .
190
Quanto à repentina opulência
desta arquitetônica, para os efeitos aqui buscados, basta indagar: como é possível que
um conjunto tão grande e decisivo de determinações seja garantido, de alguma forma
e em algum momento, pela pobreza virtuosa do em-si epistêmico? Independentemente
dessa dificuldade irrevogável, o que importa é algo bem mais circunscrito. Consiste
189
LUKÁCS, G. O que É Marxismo Ortodoxo?
In
:
História e Consciência de Classe, op. cit.
, p. 100.
190
LUKÁCS, G.
Estética, op. cit.
, p. 299.
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em deixar assinalado simplesmente que, numa exposição bastante entrecortada e que
não prima pela clareza, a elaboração lukácsiana, no que seria a sua reconfiguração do
caminho marxiano do abstrato ao concreto, bastante afetada pela presença do em-si
abstrato, volta a compor a categoria da totalidade como algo próximo a um arquétipo
da subjetividade, mesmo que funcionalizado como aspiração de objetividade, à
semelhança do caso primitivo. De sorte que, no caso da ciência, "a transformação do
em-si em um para-nós aspira oferecer acima de tudo uma reconfiguração adequada
do em-si real".
191
Deixando de lado que, a seguir, é afirmado que "isto tem por
consequência que a questão epistemológica, tão decisiva no tratamento do em-si,
passe aqui ao último lugar, pois cada para-nós é o reflexo de um fato concreto real
objetivo, de uma conexão de fatos, de suas relações etc.",
192
o que no mínimo é
intrigante, há que reter que, "enquanto no caso do em-si a colocação se refere a toda
realidade, no caso do para-nós a totalidade se forma com um número infinito de
reflexos concretos singulares, ou com a síntese teorética daqueles que se referem a
um determinado complexo factual".
193
E intercalando mais uma vez, para deixar
igualmente de lado, fique o registro de que "a propósito desses detalhes e dessas
generalizações concretas, a questão epistemológica, tão decisiva no estudo do em-si,
não constituirá mais do que um fundamento geral",
194
o que denota obstáculo
intransponível para a homogeneização de ordens excludentes de fundamentação.
Retomando o fio da meada: na ciência, almejando a reconfiguração mais adequada do
em-si real, através da totalidade dos reflexos concretos, tem-se que "a transformação
do em-si em um número infinito de reflexos diversos na forma do para-nós coloca em
cada caso um duplo problema: o fenômeno refigurado singular, particular ou
universal tem que ser reproduzido do modo mais adequado possível, e a reprodução
tem que se encontrar ao mesmo tempo em harmonia com os demais reflexos. [...]
Também segue disto que do ponto de vista rigorosamente epistemológico a única
que pode ser considerada contrapolo concreto do em-si é a totalidade do para-nós
conduzido à síntese". Porém, "tomado com esse rigor, essa exigência de totalidade é
[...] um mero postulado. [...] Mas, apesar disso, o postulado de totalidade da teoria do
conhecimento tem grande importância prática e, por isso, filosófica [...]. Do ponto de
191
Idem, ibidem,
p. 299.
192
Idem, ibidem
.
193
Idem,
p. 300.
194
Idem, ibidem
.
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vista filosófico todos os para-nós constituem um todo conexo, ainda que este não se
realize nunca completamente na prática científica; e nesta forma constituem um
contrapolo real, formado na consciência cognitiva, do em-si epistemológico unitário;
somente nessa totalidade transformam sua abstração na madura totalidade concreta
do mundo conhecido".
195
Não como velar a confusa fisionomia desse discurso, mistura desafinada de
planos e abordagens discrepantes, condicionada basicamente pela tentativa de fundir
o aparato da
exterioridade
gnosioepistêmica com a analítica marxiana de caráter
ontológico, ou, nos termos empregados pelo discurso lukácsiano, o abstrato
fundamento do em-si gnosioepistêmico com a perspectiva do concreto em-si real, que
brigam entre si transparentemente nessas formulações lukácsianas, desatendendo e
prejudicando visceralmente a ambos. Mas deste cipoal interessam apenas, de imediato,
os elementos relativos à noção de totalidade, centro da atenção neste segmento.
Embora insista de início, sem maiores explicações e sob forma teórica igualmente
estranha ao pensamento marxiano, que "a concepção do em-si contém um modelo do
comportamento subjetivo", "razão pela qual a tipologia do para-nós, nos traços mais
essenciais, está contida na do em-si", e que isto "determina antes de tudo a forma do
para-nós no reflexo científico", Lukács termina, de acordo com os fragmentos do
parágrafo anterior, por configurar a totalidade, literalmente, como um postulado da
teoria do conhecimento. Chega, pois, no suposto de estar elaborando sob parâmetros
marxianos, uma bizarra configuração da ciência ou da atividade cognitiva, que mais
não seria do que o movimento dos reflexos que transformam o em-si abstrato em um
todo relativo do pensamento sob a inalcançável postulação da totalidade. É um
involuntário, mas sensível depauperamento epistemológico das possibilidades de
conhecimento da realidade, embora engendrado no propósito mesmo de firmar e reger
a cognição por determinações da própria realidade. Traçado pelo qual, de partida, o
em-si real, a totalidade efetiva, é pulverizada na diversidade dos reflexos, e, assim,
isolada de sua efetividade concreta, despojada de sua existência independente das
formas de consciência, resta ou é convertida em norma de procedimento, isto é, em
uma espécie de inatingível dever-ser da cientificidade. Em suma, o
ponto de vista
da
formulação primitiva é transformado em
postulado
na equação mais recente.
Pressuposto do conhecimento da realidade na primeira e princípio epistêmico na
195
Idem,
p. 301.
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segunda, em ambas a totalidade é estreitada e expressa como forma da subjetividade
que sobrepaira à realidade. E tanto mais graves se mostram as latências dessas agudas
impropriedades, quando se considera que Lukács, já em pleno vértice do
Prefácio de
1967, transcrevendo literalmente de O que É o Marxismo Ortodoxo? o afamado
trecho da canonização do
método
, o reafirma enquanto identidade do pensamento
marxiano: "as observações introdutórias ao primeiro ensaio já oferecem uma definição
da ortodoxia no marxismo que, segundo minhas convicções atuais, está o apenas
objetivamente correta, como poderia ter mesmo hoje, às vésperas de um renascimento
do marxismo, uma importância considerável".
196
Ora, a categoria da totalidade, tanto como formação real quanto ideal, preenche
espaços vitais no pensamento marxiano, mas não é jamais
ponto de vista
ou
postulado
.
Dessas formações se tratou em vários momentos ao longo deste Posfácio,
bastando agora uma breve rememoração. Na escala infinita das entificações reais da
totalidade, desde a singularidade de um simples objeto ou relação à universalidade
dos mesmos em suas respectivas completitudes, o complexo repleno da mesma, a
totalidade propriamente dita, é integrado pelas figuras da
atividade sensível
o
multiverso das coisas e a pluralidade dos sujeitos, na diversidade das formas de
interatividade orgânica em que o conjunto delas é produzido e reproduzido,
peculiarmente, em cada patamar de existência historicamente efetivado. Como tal,
forma ontoprática de existência, a totalidade é a formação real e concreta na
multiplicidade de seus traços e movimentos efetivos, ou seja, o todo funcional e
contraditório que engendra e vive sua lógica específica. É a realidade enquanto
realidade, material e espiritual, antes, durante ou depois de pensada, ou seja, o
lócus
e a substância de toda atividade sensível e de toda atividade ideal nela embutida; e
nessa concretude o ponto de partida da ciência, isto é, como diz Marx, da "elaboração
da intuição e da representação em conceitos". Tomada, para efeito analítico, em sua
plenitude ou por suas partes constitutivas, legitimamente destacadas ou iluminadas
em suas reais configurações unitárias, ou seja, encarada como objeto da atividade
cognitiva, na qual é reproduzida pelo pensamento, a totalidade assume a feição da
concretude pensada. São as duas formas da totalidade reconhecidas nos textos
marxianos: de um lado, o concreto real, de outro, o concreto ideal, tal como expostas
classicamente na Parte 3 da Introdução de [18]57: "O concreto é concreto porque é
196
LUKÁCS, G. “Prefácio” (1967). In:
História e Consciência de Classe, op. cit.
,
p. 29.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto
aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto
de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo [...] é a maneira de proceder do
pensamento para se apropriar do concreto, para o reproduzir como concreto pensado.
[...] O todo, tal como aparece no cérebro, como um todo de pensamentos, é um produto
do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível".
197
O processo cognitivo é, pois, a transposição de um concreto a outro, a reconfiguração
do real no ideal, isto é, a recomposição do todo real em todo conceitual. Dito de outo
modo, conhecer é precisamente capturar e expor a totalidade real da única maneira
pela qual isto é possível, ou seja, na forma da totalidade pensada. Não há lugar, pois,
para uma acepção da totalidade enquanto ponto de vista ou postulado, mesmo porque
ambos são por natureza, meramente, uma espécie de autoimperativo da subjetividade,
quando, marxianamente, o único imperativo a ser cumprido pela subjetividade
cognitiva é posto pela esfinge do objeto.
Que a decifração ou reprodução ideal de um objeto possa se delongar por
milênios, tome-se o exemplo histórico do
valor
, ou que o conhecimento se faça por
aproximações, rupturas e reviravoltas são outros aspectos ou problemas, nos quais,
por sinal, Lukács se embaraçou, tanto que, nas várias oportunidades em que traz à
tona excertos da parte metodológica da Introdução de [18]57, ele o faz
preponderantemente em arrimo de considerações que ressaltam esses traços do
andamento sócio-histórico da cognição, e não a propósito do modo pelo qual o
"cérebro pensante se apropria do mundo", produzindo uma "totalidade concreta como
totalidade de pensamentos", que é o conteúdo explícito das reflexões marxianas
nessas que são a esse respeito as suas páginas mais elaboradas. Trata-se de um
profundo lapso da análise lukácsiana, ou antes de uma pronunciada incorreção;
constitui, em verdade, um dos sintomas mais claros e fortes de uma lacuna muito
maior, algo que sinaliza para aquilo que, mais atrás, foi aludido como um
não sabido
,
que condicionou, ao menos até a
Estética
, parte considerável da analítica lukácsiana,
e que envolveu a admissão de um suposto vácuo no pensamento marxiano, cujo
preenchimento ela tentou levar a cabo em subordinação à
exterioridade
do complexo
gnosioepistêmico. Em termos bem gerais e sumários, tudo se passou nesse arcabouço
falaz como se o pensamento marxiano demarcasse uma
prática
metodológica
, mas o
197
MARX, K. “Introdução de 1857”. In:
Os Pensadores
. São Paulo: Abril Cultural, 1974, pp. 122-123.
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contivesse a sustentação teórica da mesma e, menos ainda, de sua fundamentação
gnosiológica. Donde todo o vasto quiproquó posto em cena.
A inexistência na obra de Marx de textos autônomos e sistemáticos sobre essa
matéria facilitou a emergência e a consolidação desse suposto, aliás, gerado bem antes
da incursão de Lukács pela esfera do marxismo. Contudo, sua visão tradicional do
arranjo das disciplinas filosóficas, acompanhada de ponderável acentuação na
continuidade histórica das ideias, foram as matrizes que dificultaram e confundiram
sua resistência às imposições e restrições teóricas de seu tempo, das quais o
conseguiu se libertar plenamente, seja em função do peso alcançado pelo
epistemologismo em geral, seja pelo fardo recebido do rudimentar tradicionalismo
gnosiológico de Engels e Lênin. Nesse sentido, é muito ilustrativa a justificação que
oferece no Prefácio de 1967 para o hiper-hegelianismo de
História e Consciência de
Classe
, em que pincela o viés desse rumo teórico pelo interior dos embates com as
tendências, igualmente errôneas, da II Internacional: "o recurso à dialética de Hegel
significa, por um lado, um duro golpe contra a tradição revisionista; Bernstein queria
eliminar do marxismo, em nome da 'cientificidade', tudo aquilo que lembrasse
principalmente a dialética hegeliana. E mesmo seus adversários teóricos, sobretudo
Kautsky, não estavam muito longe de defender essa tradição. Para o retorno
revolucionário ao marxismo, era um dever óbvio, portanto, renovar a tradição
hegeliana do marxismo.
História e Consciência de Classe
significou talvez a tentativa
mais radical daquela época de tornar novamente atual o aspecto revolucionário do
marxismo por meio da renovação e do desenvolvimento da dialética hegeliana e de
seu método".
198
Tal como Lênin na guerra das teorias do conhecimento, Lukács
admitira o confronto na arena do complexo da
exterioridade
: contra o kantismo dos
revisionistas empunhou a lança dialética de Hegel. É deplorável a fragilidade dessa
pobre tentativa de ressurreição teórica de Marx, soerguido a custo e projetado ao
futuro somente pela incorporação de um sopro do passado. Hoje, é evidente que toda
essa polêmica foi travada ao arrepio do caráter do pensamento marxiano, uma vez que
expõe à flor da pele o consenso subjacente que unia os contendores quanto à
existência do pretenso vácuo teórico na reflexão marxiana. Lukács, à semelhança dos
rivais, não tendo questionado a natureza e a validade do aparato das ciências e das
disciplinas filosóficas, tal como fora herdado dos fins do século XIX, também não pôde
198
LUKÁCS, G. “Prefácio de 1967. In:
História e Consciência de Classe, op. cit.
,
pp. 21-22.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
Verinotio
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escapar ao vórtice do pretenso vácuo teórico, e desse modo sucumbiu ao encargo
perverso de levar a cabo o aterro epistêmico do mesmo. Perdeu com isso, em grande
parte, como tantos outros, momentos dos mais agudos e característicos da legítima
propositura marxiana. De fato, o que escapou a Lukács até a
Estética
foi a própria
instauração ontológica de Marx, donde ter se dedicado à cerzidura lógico-epistêmica
de uma fenda inexistente, no que esteve muito bem acompanhado ao longo do século,
até mesmo por artífices mais hábeis e rigorosos, mas, em diversos casos, muito menos
preocupados com a autenticidade da herança marxiana, o que os eximia e exime de
certos encargos e responsabilidades que, inversamente, atingiam o grau máximo no
caso do marxista húngaro.
Ao não se dar conta ou muito ter relutado em admitir, e não estritamente por
motivos teóricos, a natureza ontológica do pensamento marxiano, até à redação da
Estética
, Lukács não pôde atinar com os rastros e os princípios da
resolução
ontoprática da problemática do conhecimento
e com o modo pelo qual o "cérebro
pensante se apropria do mundo", ou seja, com a
teoria das abstrações
, demarcadas
consistentemente por Marx. É, precisamente, esse conjunto de vigorosos elementos
teóricos que constitui o
não sabido
que Lukács, no interior de uma longa e
descarrilhada tradição interpretativa da obra marxiana, tomou ou deixou passar como
um vácuo à raiz do pensamento de Marx. Os múltiplos fatores que condicionaram e,
em larga medida, ainda condicionam essa falta de acuidade são de toda natureza e se
espraiam por todos os planos. Não há exagero em dizer que poucas vezes na história
do pensamento hão de se ter aglutinado tantas adversidades para gerar o
desentendimento da obra de um autor. Basta considerar que Marx foi o único em nome
de cujo ideário ponderáveis setores da humanidade tentaram a própria transfiguração
prática do mundo, e que essa tentativa redundou por suas inviabilidades originárias
no mais patético dos desastres históricos. Falência esclarecedora, todavia, que, ao lado
da plena entificação em curso do mercado mundial, confirma a teoria marxiana como
nenhum acontecimento anterior o fez, no exato momento, contraditoriamente, em que
Marx decaiu para o nível mais baixo de descrédito em que jamais se encontrou.
A reprodução do
não sabido
ou da ocultação histórica da reconversão marxiana
da problemática gnosiometodológica, em nada um privilégio das cogitações
lukácsianas, é mais especialmente impactante neste caso, dadas as inclinações
ontologizantes que Lukács sempre manifestou e, acima de tudo, porque foi ele próprio
que, na undécima hora, acabou por estabelecer a efetiva natureza do pensamento
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marxiano. Com efeito, uma proeza intelectual que abriu perspectivas extraordinárias
para o estudo de Marx, e a partir disto para o conjunto da questão ontológica e de
toda a sua história. Viabilizou, entre outras possibilidades, a apreciação crítica do
próprio itinerário lukácsiano, para além do espírito rotineiro e da superficialidade com
os quais em geral tem sido encarado; deste modo, a análise aqui desenvolvida é, por
sua direção, francamente tributária dos méritos derradeiros de seu objeto. Mas,
enquanto essa mutação analítica não ocorreu, lavraram na obra lukácsiana graves
dissonâncias em relação ao pensamento marxiano. É ocioso voltar ao seu
detalhamento, porém, a reaglutinação cortante dos eixos fundamentais de tais
desacertos pode ampliar sua visibilidade. Houvesse esbarrado, de algum modo, na
resolução ontoprática da problemática do conhecimento
e no delineamento da
teoria
das abstrações
, Lukács não se teria extraviado pela tortuosa justificativa do em-si
epistêmico e no modo pelo qual, através da dialética entre universalidade,
particularidade e singularidade, pretendeu estabelecer a fisionomia do método
marxiano. Por um lado, seriam absolutamente supérfluas e deslocadas as garantias
abstratas oferecidas à objetividade das coisas e à norma segundo a qual a ciência deve
partir do objeto, diante da resolutiva multilateralidade concreta do reconhecimento
ontológico da atividade sensível como sujeito e objeto, que ainda mais se eleva por
deixar estabelecida a possibilidade efetiva do conhecimento, dirimindo com isso a
clássica questão gnosiológica, pela qual o percurso lukácsiano simplesmente não
passa. De outra parte, se tivesse vislumbrado, ainda que parcialmente, a
teoria das
abstrações
, não chegaria a transformar a dialética da universalidade, particularidade e
singularidade no pretenso
vínculo lógico
entre Marx e Hegel, e assim preservado esses
dois grandes autores, pois a exposição da mesma, em verdade, não faz justiça a
nenhum deles. Reprovando e querendo se livrar dos lados mais especulativos do
procedimento hegeliano, ao mesmo tempo em que o procura tornar mais íntimo aos
objetos reais, Lukács termina por reter contornos e movimentos próximos a um
involuntário rito formalizante, produzido pelo conflito de suas tendências reflexivas:
de um lado, tende a deixar engastada na argumentação o subentendido de um certo
papel fundante da lógica, talvez o aspecto mais palpável de sua visão tradicional da
arrumação das disciplinas filosóficas; de outro, pende à supressão da lógica, não
porque almeja alcançar as coisas, mas porque propende a uma deslogificação de
Hegel, em benefício do ressalto de suas inclinações à objetividade. Que Hegel ou,
especificamente, sua lógica possam se prestar ou não a isso, aqui não vem ao caso,
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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mas apenas que todo esse urdume de contrapostos não passa de uma mediação
problemática, desnecessária e imprópria para preencher, por meio da herança
hegeliana, o pretenso vácuo do pensamento marxiano. Se tivesse vislumbrado os
contornos da
teoria das abstrações
, teria sido alertado que as empreitadas teóricas de
Marx não partem de uma lógica, e assim experimentado dificuldades intransponíveis
para embutir na estrutura dos procedimentos marxianos um aparato dessa natureza;
por consequência, a tese do
vínculo lógico
, em toda sua extensão, não teria tido como
subsistir. Por isso, exatamente, no início da Parte 4 deste Posfácio, voltada ao caso
lukácsiano, foi afirmado que a teoria das abstrações, por seu efeito norteador, pode
servir de âncora analítica a serviço da decifração da obra marxiana, tendo fluído por
conta disso, como exemplos marcantes de extravios, a exposição e crítica de algumas
das formulações lukácsianas. Em síntese, de posse da resolução ontoprática da
problemática do conhecimento e da teoria das abstrações, Lukács disporia de meios
para sustentar marxianamente a independência do ser em face da consciência, a
possibilidade do saber científico e a prioridade do objeto como ponto de partida da
ciência, sem lançar mão do débil estratagema do em-si epistêmico; da mesma maneira,
teria compreendido o modo pelo qual a cabeça se apropria da realidade por meio do
concreto de pensamentos, sem forçar à existência uma herança hegeliana pela
reiteração sem brilho da tese do vínculo lógico entre Marx e Hegel, que em outras
mãos acaba mesmo por se converter em dependência lógica do primeiro em relação
ao segundo, o que é ainda mais despropositado. Tratadas por essas vias extrínsecas
à concepção marxiana, as relações entre esses dois grandes autores findam inteira e
perversamente obscurecidas, contra as melhores intenções analíticas, inclusive as de
seus mais sofisticados praticantes.
Em contrapeso aos descaminhos lukácsianos, já foi ressaltado o acerto e a
importância de seu original tratamento da particularização marxiana. Contudo, mesmo
aqui a falta da correta orientação de fundo se fez sentir. Talvez porque estivesse
voltado, prioritariamente, para a categoria da particularidade como centro organizador
da atividade estética, mas com certeza porque também estava embaraçado no interior
do quadro da lógica entre universal, particular e singular, deixou de tirar maior e
melhor proveito de sua correta percepção e determinação da problemática da
particularidade. Esta, todavia, presa no interior dos movimentos de uma dialética do
universal, particular e singular, tal como traçada por Lukács enquanto método
marxiano, apesar do relevo com que é tratada, não alcança a centralidade e a
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complexidade que a particularização processo analítico de determinação ou
concreção possui na dinâmica multilateral do que Marx chama de "viagem ao
inverso", ou seja, do
caminho da volta
, que perfaz o retorno das abstrações razoáveis
ao todo concreto, andamento que constitui "manifestamente o método cientificamente
exato",
199
que não lida apenas com graus de generalização, mas com a totalidade das
determinações interconexas pelas quais as abstrações são convertidas em concretos
pensados. Numa palavra, escapa a Lukács a conexão mais estreita e decisiva entre
particularidade e o modo pelo qual o "cérebro pensante se apropria do mundo", isto
é, entre particularidade e teoria das abstrações, no interior da qual ela manifesta, no
plano ideal, sua plena força e significação. Talvez seja o caso de afirmar, a propósito
desse confinamento lógico da concepção lukácsiana da particularidade, o que ele
próprio disse de Aristóteles no que tange ao
termo médio
. No Capítulo 12, I, da
Estética
, tantas vezes citado, Lukács, observando que uma das debilidades
específicas da dialética aristotélica é operar somente com as categorias de
universalidade e singularidade, comenta com grande simpatia pelo trabalho do autor
grego: "não é nada insólito na história do pensamento que grandes inovadores não
consigam tomar consciência da importância plena, desenvolvida, daquilo que tenham
descoberto. Assim, por exemplo, Aristóteles conseguiu com seu posicionamento do
termo médio um caminho extraordinariamente fecundo para a fundamentação da ética,
porém, não foi capaz de dar o passo seguinte, que consiste em conceber esse termo
médio ou centro como particularidade".
200
Assim, guardadas as proporções, Lukács
pelo resgate da lógica da particularidade alcançou a fundamentação da estética, mas
não foi capaz de dar o passo subsequente, pelo qual a particularização é reconhecida
como o centro do método científico, isto é, da teoria das abstrações, pela óbvia razão
de que esta última não foi advertida por seu horizonte teórico.
Cabem, em linha semelhante, ponderações relativas ao conjunto da propositura
lukácsiana da dialética entre universalidade, particularidade e singularidade, desde
logo porque no parágrafo anterior, com destaque, foi feita a devida ressalva ao
tratamento que Lukács dispensou à categoria da particularidade. Recusar a tese do
vínculo lógico e criticar a impropriedade da formulação da lógica do universal,
particular e singular como método marxiano de extração hegeliana não implica a
199
MARX, K. “Introdução [1857]. In:
Os Pensadores
,
op. cit.
, p. 122.
200
LUKÁCS, G.
Estética
,
op. cit.
, p. 229.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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inexistência de qualquer tipo de nexo entre Marx e Hegel, mas o deslocamento de
quaisquer vínculos possíveis à devida esfera secundária das influências, ressonâncias
e absorções difusas, que se deram por certo em mais de um plano. Assimilações de
maior ou menor monta, porém, sempre integradas à ruptura de fundo, levada a cabo
na própria instauração do pensamento marxiano e jamais reconsiderada. Não se trata
aqui de enveredar por esse território, nem mesmo simplesmente de inventariar as
principais ocorrências desse tipo, mas de tecer apenas, sob o diapasão dessa ordem
de influências, considerações finais sobre a propositura da dialética entre universal,
particular e singular, para ressaltar, em primeiro lugar, que esta enquanto
preenchimento do
não sabido
referente à teoria das abstrações antes tolda do que
esclarece, mais afasta do que aproxima o procedimento marxiano da lógica de Hegel,
pois sob tal feição opera sem notar uma substituição radical e indevida, tornando
impossível investigar, por dissolução do objeto, que ressonâncias hegelianas mais ou
menos distantes poderiam ecoar no genuíno procedimento de Marx, concebido e
reiterado por ele próprio como oposto ao hegeliano. A diferença diametral "meu
método dialético não só difere do hegeliano, mas é também a sua antítese direta"
(Posfácio da Segunda Edição de
O Capital
, 1873) sabemos qual é: no mesmo lugar
é declarado que o processo do pensamento é hegelianamente transformado num
demiurgo do real, enquanto que na concepção marxiana o ideal não é nada mais do
que o material transposto e traduzido na cabeça do homem. Ou seja, a diferença
antitética é de caráter ontológico: o ser é prioritário em relação ao pensamento e este
é um concreto pensado, não um produto autônomo. Isto não impede, todavia, que
nesse mesmo Posfácio Marx reconheça a propósito da dialética, como em diversas
outras oportunidades e sempre praticamente do mesmo modo, que Hegel "tenha sido
o primeiro a expor as suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e
consciente", na qual reconhece também um "cerne racional". De modo que nada
impede que os movimentos de concreção da teoria das abstrações,
a síntese de
múltiplas determinações
, contenha subsidiariamente a contribuição de momentos da
determinação dessas formas gerais do movimento, sempre que imanentes ao objeto e
nunca a ele atribuídos pelo pensamento. Nesse sentido, na medida em que todo
processo de concreção analítica sempre se move, necessariamente, nos três níveis,
reais e ideais, de generalização, uma dialética de universal, particular e singular sempre
estará presente como o momento mais remoto e abstrato do processo determinativo.
Sob essa condição, uma lógica ou dialética do universal, particular e singular será o
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feixe "o elemento comum que é ele próprio um conjunto complexo, um conjunto de
determinações diferentes e divergentes" (Introdução de 1857, I) mais abstrato das
abstrações razoáveis, que enquanto tal não determina nenhum objeto concreto. Dada
a generalidade máxima dessa mais abstrata das abstrações razoáveis, ela é dizível de
qualquer objeto, é a voz abstrata mais tênue, uma generalidade tão universal que não
quebra a mudez do singular, apenas lembra ou assinala que isso é possível, e nesse
sentido pode servir de guia distante para a formulação das abstrações razoáveis, e do
mesmo modo para os passos da concreção. Donde o lugar e o sentido precisos de
uma dialética do universal, particular e singular, no âmbito da reprodução ideal dos
objetos, são dados precisamente pela teoria das abstrações, fora da qual e em
particular como sua forma substitutiva é uma extração sub-hegeliana, convertida em
contrafação marxista do procedimento marxiano.
Reconhecer, pois, influências e ressonâncias hegelianas no pensamento de Marx,
não conduz nem obriga a fazer deste um herdeiro ou dependente daquela vertente,
seja no campo da lógica ou em qualquer outro. Diante do porte e da significação
histórica da obra hegeliana, incompreensível seria mesmo se dela não houvessem
irradiado alguns nódulos ou certos estímulos e referenciais para a grande empreitada
marxiana. Considere-se de novo a menção explícita de Marx às "formas gerais do
movimento", mas agora não a respeito dos processos analíticos de concreção, e sim
remetidas aos movimentos do ser. Por certo, na esfera ontológica as irradiações
hegelianas no pensamento de Marx devem ser mesmo mais expressivas do que no
plano lógico, independentemente da fusão entre ambos no ideário de Hegel.
Figurações conceituais relativas à historicidade, processualidade, ao ser matrizado pela
contradição, ou seja, à universal contraditoriedade do mundo, e assim por diante são
aquisições de tal ordem que têm de ser retidas independentemente da forma e dos
meios pelos quais foram originariamente concebidas. Repercutem por seu próprio
peso, de maneira que o melhor será dizer que Marx terá se apropriado de alguns
resultados, mas contra os rumos e os meios pelos quais certas conquistas hegelianas
se efetivaram; apropriação, em especial, de lineamentos ontológicos isolados e
desinseridos de seus contextos, à semelhança do que fizera em relação a Feuerbach,
quando da instauração de seu próprio modo original de conceber e elaborar a
reprodução intelectual do complexo de complexos da mundanidade dos homens.
Desde logo porque um dos traços mais característicos da posição ontológica
instaurada por Marx é a ruptura com a especulação ou qualquer modo apriorista de
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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elaboração teórica, pois, como diz Mészáros com muita acuidade, "a metodologia do
apriorismo
não brota de uma árvore filosófica especial, advinda de um solo composto
a partir do nada, mas das contradições insolúveis de um determinado ser social, que
é forçado a
reverter
, em sua imaginação, as relações estruturais reais da sociedade, de
modo a produzir uma
'prova a priori'
da 'ordem racional' da sociedade descrita de cima
para baixo, da história concebida ao contrário. Isso é claramente evidente nas
construções hegelianas".
201
Ruptura que é uma passada crucial e essencial, não um
simples ajuste ou retoque, nem mesmo uma purificação mais completa de uma herança
grandiosa mas problemática, visto que, em "sua nova síntese, estruturada em oposição
consciente aos sistemas filosóficos de seus predecessores", "a concepção marxiana da
dialética foi além de Hegel, desde o momento inicial, precisamente em dois aspectos
fundamentais, embora Marx continuasse a considerar a dialética de Hegel como a
forma básica de toda dialética. Em primeiro lugar, a crítica da transformação hegeliana
da dialética objetiva em construção conceitual especulativa [...] estabelecia a ação
recíproca de forças objetivas como a verdadeira estrutura da dialética e como o terreno
real da determinação dos mais mediatizados fatores subjetivos. E, em segundo lugar,
a demonstração dos determinantes ideológicos da dialética conceitual-especulativa de
Hegel a 'dissolução e restauração do mundo empírico' como construção a-histórica,
que contradiz as potencialidades profundamente históricas da própria concepção
hegeliana pôs em relevo, de maneira enfática o dinamismo irreprimível dos
desenvolvimentos históricos reais, juntamente com uma indicação precisa das
alavancas necessárias com as quais o agente revolucionário está em condições de
intervir, de acordo com seus objetivos conscientes, na manifestação positiva da
dialética objetiva".
202
De sorte que, conclusivamente, a inspiração e o uso de certas
categorias hegelianas não se dão "no sentido de alguma 'influência' problemática que
deixaria um elemento estranho no corpo do pensamento marxiano, mas enquanto
categorias tomadas como
Daseinformen
na estrutura de uma teoria profundamente
original, transferidas de Hegel para o universo do discurso de Marx e aí reativadas em
sentido qualitativamente diferente".
203
Donde a simples noção ou a mera hipótese de
herança hegeliana ou
vínculo lógico
, bem como outras do gênero, transparecerem, em
face da natureza do pensamento marxiano, como um engano radical, que induz a
201
MÉSZÁROS, I.
Filosofia, Ideologia e Ciência Social
. São Paulo, Boitempo, 2008, p. 81.
202
Idem,
pp. 113-14.
203
Idem,
pp. 116-7.
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vastos descaminhos analíticos, promotores do desentendimento da obra de Marx em
vários planos.
Uma avaliação mais ampla das impropriedades teóricas lukácsianas durante a
longa duração de seu marxismo proto-ontológico não entra nem longinquamente, é
óbvio, nas cogitações da crítica aqui pespontada. Contudo, a natureza comum dos
conjuntos problemáticos abordados permite assinalar que a grande dificuldade
encontrada por Lukács, na identificação do pensamento marxiano, é da mesma ordem
daquela que transpassa toda a história da ontologia, cujo tratamento sempre esteve,
de algum modo, embaraçado por questões lógicas e gnosiológicas em geral. Basta
observar que somente à época da preparação da
Ontologia
, e isso não terá ocorrido
por mera casualidade, Lukács se deu conta ou tratou abertamente de aspectos dessa
questão, mesmo que limitando o enfoque ao panorama dos dois últimos séculos, que
demarcam a face mais aguda do problema, quando está em curso a própria
desqualificação e excludência da ontologia como prática teórica fundante. Foi apenas
nessa oportunidade que explicitou o problema sob a forma da contraposição entre
critério ontológico
e
critério gnosiológico
. Ocorreram, então, mudanças fundamentais.
A crítica a Hegel foi elevada acentuadamente, chegando ao ponto mais agudo nos
Prolegômenos para a Ontologia do Ser Social
, segunda e última versão da empreitada.
Em nenhum dos dois textos a tematização da dialética entre universalidade,
particularidade e singularidade foi retomada, e a "mais importante descoberta
metodológica de Hegel"
204
passou a ser a das determinações reflexivas
Reflexionsbestimmungen
(capítulo sobre Hegel, 2). É claro, a lógica cedeu lugar à
ontologia, posta agora no centro da tematização, que em Hegel foi vista, criticamente,
segundo o diagnóstico de uma dupla ontologia, a verdadeira e a falsa, ambas
expressas na forma de categorias lógicas: estas, no primeiro caso, são "componentes
dinâmicos do movimento essencial da realidade, como graus ou etapas no caminho do
espírito para realizar a si mesmo";
205
enquanto que, no segundo, as conexões reais são
constrangidas pelas conexões lógicas, de tal modo que "a ontologia sofre a violência
conceitual da lógica",
206
ou seja, se torna uma resultante deformada "pelo predomínio
204
LUKÁCS, G. “A Falsa e a Verdadeira Ontologia de Hegel”.
In
:
Ontologia do Ser Social
. São Paulo,
Editora Ciências Humanas, 1979, p. 77.
205
Idem
, p. 27.
206
Idem
, p. 55.
Da teoria das abstrações à crítica de Lukács
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metodológico dos princípios lógicos".
207
no que tange a Marx, agora este se
distingue de maneira mais nítida, tanto de Hegel quanto de sua imagem lukácsiana do
período proto-ontológico: "A ciência se desenvolve a partir da vida e, na vida, quer
saibamos e queiramos ou não, somos obrigados a nos comportar espontaneamente
de modo ontológico. [...] Acreditamos que, agindo assim, Marx criou uma nova forma
tanto de cientificidade em geral quanto de ontologia; uma forma destinada a superar
no futuro a constituição profundamente problemática, apesar de toda a riqueza dos
fatos descobertos, da cientificidade moderna" (capítulo sobre Marx, 1).
208
Sem dúvida,
a partir da identificação do caráter ontológico do pensamento marxiano, houve
transformações substanciais na elaboração lukácsiana, mas o processo não chegou à
integralidade, nem dispôs do tempo necessário de maturação para, talvez, vir a se
completar. Assim, embora tenha havido uma grande inflexão, restaram ainda no
sentido mais geral, apesar de tudo, uma espessa aura hegeliana e uma ênfase
praticamente irretocada sobre a questão metodológica, mesmo sob o novo diagrama
da subordinação dos problemas gnosiológicos ao plano ontológico, bem como se
manteve um grande conjunto de dissonâncias em relação a Marx, que o, desde
suposições exóticas como os "experimentos ideais da abstração", entendidos enquanto
meios de investigação científica, até a pétrea insensibilidade para a mais extraordinária
das concepções marxianas sobre a esfera política a sua determinação ontonegativa
da politicidade. Porém, tudo isso e muito mais é, simultaneamente, um universo
inaugural e o ponto de arribação de um itinerário longo e tortuoso, que demandam
exame específico e detalhado, que não pode ser confinado aos parágrafos finais de
uma abordagem desenhada por outros objetivos.
Como citar:
CHASIN, J. Da teoria das abstrações à crítica de Lukács.
Verinotio
, Rio das Ostras, v.
27, n. 1, pp. 157-239, jan./jun 2021.
207
Idem
, p. 65.
208
LUKÁCS, G.
Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx
. São Paulo, Editora Ciências
Humanas,1979, p. 27.