Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - jan./jun. 2021
O que é possível dizer sobre as relações entre
filosofia e sociedade em pleno
século XXI?
Ester Vaisman
*
Resumo: O objetivo principal do presente artigo
é discutir as relões entre filosofia e sociedade
nos escritos de Marx e Lukács. Para tanto, foram
selecionados e analisados momentos específicos
da obra dos dois autores, com especial atenção
aos escritos do filósofo ngaro. A ideia é
demonstrar o modo como ambos os autores
articulam tais relações, por meio da noção de
determinação social do pensamento, sem cair em
postulações mecânicas, como é comumente
entendida a relação filosofia e sociedade por
marxistas e não marxistas.
Palavras-chave: Marx e Lukács; determinação
social do pensamento; filosofia e sociedade.
Abstract: The main objective of this paper is to
discuss the relationship between philosophy
and society in the writings of Marx and Lukács.
Therefore, specific moments in the work of the
two authors were selected and analyzed, with
special attention to the writings of the
Hungarian philosopher. The idea is to
demonstrate how both authors articulate such
relationships, through the notion of social
determination of thought, without falling into
mechanical postulations, as the relationship
between philosophy and society is commonly
understood by Marxists and non-Marxists.
Keywords: Marx and Lukács; social
determination of thought; philosophy and
Society.
Para Mario Duayer
(in memoriam)
Introdução
Como parte das homenagens a György Lukács, por ocasião do cinquentenário de
sua morte e, também, em comemoração aos 25 anos da criação do grupo de pesquisa
Marxologia Filosofia e estudos confluentes, fundado por J. Chasin, pretendo retomar
alguns aspectos da pesquisa que tenho desenvolvido ao logo dos últimos anos,
sobretudo aquelas relativas ao legado do filósofo húngaro. O empenho aqui é o de
resgatar do mesmo modo algumas das mais valiosas contribuições de Chasin para a
devida recepção das obras de Marx e Lukács. Sem elas, teria sido impossível para mim
e para diversas gerações de estudiosos adentrar com o devido cuidado na seara
conturbada das interpretações a respeito. É claro que em se tratando de um artigo,
não será possível aprofundar o teor das análises, ficando para outro momento e lugar
*
Professora titular aposentada do Departamento de Filosofia da UFMG. Editora-chefe adjunta da
Verinotio
.
E-mail
: evaisman@fafich.ufmg.br
DOI 10.36638/1981-061X.2021.v27.610
Ester Vaisman
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a feitura de um balanço meticuloso dos principais aspectos da obra chasiniana, que,
infelizmente, tem sofrido um persistente processo de apagamento, que não por acaso,
vem ocorrendo não apenas nas instituições onde lecionou, mas perpetrado sobretudo
por aqueles que, em momentos distintos, usufruíram de seus ensinamentos,
participaram de pesquisas por ele orientadas, e também de algumas de suas iniciativas,
principalmente no campo editorial.
O presente artigo foi elaborado de modo a contemplar autores e temas
sobretudo Marx e Lukács sobre os quais tive oportunidade de trabalhar com vistas
à apresentação de trabalhos em congressos e seminários, à preparação de cursos em
nível de graduação e pós-graduação e, também, evidentemente à elaboração de
artigos publicados e não publicados.
Tendo em vista o caráter que resolvi imprimir ao texto, não foram mencionados
e nem referenciados autores com quem estabeleci valiosa interlocução, vários deles
ex-alunos, empenhados também na pesquisa e divulgação das linhas de investigação
inauguradas por Chasin. Deles espero a devida compreensão.
As conturbadas relações entre filosofia e sociedade
De longa data, e com certeza de forma acentuada ou dominante em nossos
tempos, por conta do predomínio de certas correntes filosóficas, à primeira vista,
filosofia e sociedade não aparecem essencialmente vinculadas. Não me refiro apenas
ao fato de que poucos admitem a complexa problemática da determinação social do
pensamento, mas também a modos de concepção que não entendem como irrelevante
o solo social da prática filosófica, nos quais, todavia, o nível resolutivo dos filosofemas
transcorre num patamar extra-histórico ou extra-social, que se empenha por ser
conotado como integralmente asséptico. Em outras palavras, mesmo aqueles que
reconhecem a importância do assim chamado “contexto social” (pelo menos
aparentemente), ao fim e ao cabo, consideram que os resultados obtidos pela reflexão
filosófica são indiferentes ou se desocupam de qualquer finalidade que não seja aquela
pensada como intrínseca ao próprio decurso da filosofia. Isto é, não reconhecem ou
não admitem a destinação social do produto filosófico.
Para essa perspectiva e outras do mesmo naipe, tanto melhor será a filosofia
quanto mais distante da sociedade ela se fizer. E se a isto for somada a negação
também de sua gênese social, estaremos no quadro perfeito da filosofia divorciada
das formas de sociabilidade. Num universo dessa ordem, qualquer conexão entre
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filosofia e sociedade é uma contingência subalterna ou falso problema.
Contudo, uma posição desse gênero não significa, automaticamente, a eliminação
do homem como objeto da reflexão. A ética e a antropologia, por exemplo, em
tematizações extrínsecas às formas de sociabilidade, são evidências de que a ruptura
concepcional entre filosofia e sociedade não é necessariamente também fratura entre
homem e filosofia. Mas, esta permanência de vínculo, nas condições dadas, ou seja, no
interior de uma abordagem que concebe o homem como despojado de sua
sociabilidade, não assegura que as condições de possibilidade da reflexão estejam
postas, nem que seus processos e resultantes estejam protegidos de unilateralizações
que mutilem ou mistifiquem, nem ainda que suas conclusões, contra todas as intenções
e aparências, se ponham contra o homem e sua humanidade, precisamente porque é
uma reflexão feita de costas para a sociabilidade.
Sugiro, com isso, que a fratura entre filosofia e sociedade paga um grande ônus,
tanto em moeda filosófica quanto em saques concretos contra a individualidade e a
universalidade do humano. Apenas a título de exemplificação, indico dois casos
paradigmáticos, pois seria impossível aqui contemplar as diversas tendências e seus
respectivos autores, que de um modo ou de outro, compartilham da posição acima
denunciada. São dois expoentes de abordagens contrapostas que, contudo, denotam
certos aspectos em comum a respeito do tema. E não por acaso.
Sabem todos, por exemplo, que o Wittgenstein, no
Tractatus
, trabalhou num
ambiente de euforia que se seguiu à publicação dos
Principia
de Russell e Whitehead,
tendo erigido o cálculo proposicional como padrão de inteligibilidade de todos os
sistemas formais, postulando, em consequência, sua unidade, o que lhe permitiu
conceber a lógica como um sistema total. Por sobre esta base, as questões semânticas,
os problemas que dizem respeito às relações do sistema do mundo foram propostos
de forma bastante ambiciosa.
Ora, como termina o
Tractatus
? Qual o seu último aforisma? Todos eso
lembrados que o celebérrimo aforisma 7 afirma que: “O que não se pode falar, deve
se calar”. A respeito do que Wittgenstein está refletindo e, para o qual oferece uma
resposta tão categoricamente impotente, como os aforismas antes do preceito do
silêncio, esconfigurada a questão. Eu encadeio, para traduzi-la, os aforismas 6.44,
a última sentença do aforisma 6.5, o aforisma 6.52. “O que é místico não é como o
mundo é, mas que ele seja (6.44); “Se uma questão pode ser colocada, poderá
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também ser respondida (6.5); “Sentimos que, mesmo que todas as possíveis questões
científicas fossem respondidas, nossos problemas vitais não teriam sido tocados. Sem
dúvida, não cabe mais pergunta alguma, e esta e precisamente a resposta” (6.52)
(WITTGENSTEIN, 1963, p. 128). No entanto, quando a resposta de uma filosofia à
indagação sobre a natureza dos problemas vitais oferece somente o preceito de calar,
que mais significa isso se o a confissão da falência dessa filosofia? Mas essa falência
do silêncio, na boca íntegra e lúcida de Wittgenstein, diante do beco sem saída do seu
próprio pensamento, estanca diante do abismo e seu silêncio é ruidoso,
profundamente não conformista, uma denúncia da manipulação universal da vida no
âmbito da sociedade contemporânea, ainda que seja feita na forma de protesto,
a
priori
, impotente. Que isto seja contraditório no interior do próprio pensamento de
Wittgenstein, reforça o argumento de protesto, aporque, no aforisma 309 das
Investigações Filosóficas
, e não importa aqui se esta obra conflui ou rejeita a primeira
de um quarto de século antes, lê-se o seguinte: “Qual o seu objetivo em filosofia?” e
a resposta do próprio aforisma: “Mostrar à mosca a saída do mosquiteiro”
(WITTGENSTEIN, 1975, p. 112).
Há traduções e interpretações que falam em vidro ao invés de mosquiteiro; ora,
tanto faz mosquiteiro ou vidro, campânula que detém a mosca. Como as únicas moscas
que fazem filosofia são os homens, e este aforisma é teleológico ético-prático, não há
como negar que nele se manifesta o preceito de uma filosofia resolutiva. Portanto, de
uma leitura não preconceituosa de Wittgenstein poderá decorrer, especialmente de
seus lapsos e contradições, não apenas o ceticismo que dele é dominantemente
extraído, mas de seus limites, de sua completa impotência,
a priori
, seu protesto
silencioso pode ser retido, com ele ou contra ele, este silêncio que aspira por uma
filosofia de bom caráter, por uma filosofia que em seu plano próprio seja resolutiva.
Que não renuncie aos problemas vitais da vida, nem renuncie sobre eles deitar a luz
indicativa dos pontos de saída; que ensine a romper os mosquiteiros ou vidros da
manipulação e prefigure a transformação das moscas. Na boa e antiga tradição de
filosofia em se ocupar do de onde e o para onde do homem no mundo.
À declaração de impotência de Wittgenstein, em face da manipulação
contemporânea, junto agora a impotência política de Adorno. Tudo à guisa de ilustrar
modos da prática filosófica em que a relação entre filosofia e sociedade não encontra
sua essencial vinculação. A propositura da dialética negativa de Adorno é liberar a
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dialética da natureza afirmativa
1
que possui de Platão a Marx, ou seja, desvincular a
dialética de qualquer resultado positivo, torná-la independente de qualquer
positividade. Desse modo, o perfil que almeja é alguma coisa próxima a um
antissistema. Tendo como fundamento o princípio da o identidade e enfatizando o
conceito de particular concreto, cuja significação reside mais na sua contingência do
que na sua universalidade, mas, de qualquer modo sendo o lócus da determinação
geral, ou seja, da estrutura social burguesa, a crítica de Adorno tem por objetivo a
verdade não intencional, ou seja, a verdade reside no objeto, inclusive na matéria
espiritual, isto é, no material das ideias, teorias, conceitos, romances, composições
musicais. Mas, se a verdade está no sujeito, não está simplesmente à mão, é necessário
o sujeito racional para que sua verdade seja liberada, de modo que o dado do objeto,
na sua imediaticidade, o sujeito racional escapa sua ideia ou essência que é o seu
conjunto social historicamente específico. Nesta prévia e rústica aproximação às
concepções do antissistema de Adorno, tudo ou quase tudo parece indicar que filosofia
e sociedade se encontram em conexão visceral. E que vale a pena favorecer ainda mais
esta impressão, lembrando que desempenhou um papel importante nas anti-teorias
de Adorno uma formulação lukácsiana em
História e Consciência de Classe
, qual seja:
de que o problema da fetichização da mercadoria era o protótipo de todas as formas
de objetividade e de todas as correspondentes formas de subjetividade na sociedade
capitalista, incluindo os próprios esquemas do pensamento burguês. Mas, depois da
Segunda Guerra, a fetichização e a reificação cedem lugar à possibilidade de uma
catástrofe total isto no pensamento de Adorno.
Para Adorno, o mal fundamental passa a ser a estrutura de dominação. Além
disso, é preciso enfatizar que: ao lado do aspecto negativo da filosoficamente
sofisticada crítica da ideologia de Lukács, um nível positivo que avançava da crítica
social da consciência burguesa para uma ação da consciência revolucionária da
categoria social do trabalho. Não importa aqui a maneira equivocada, hiper-hegeliana,
com que Lukács na época formulou a tese, interessa sim salientar que, de todo modo,
o marxismo aparecia então como um método cognoscitivo que conduzia a um
programa de ação. Este segundo passo, portanto, jamais foi dado por Adorno, cuja
rejeição à categoria social da atividade sensível ou do trabalho vai além da simples
recusa à tese hiper-hegeliana do proletariado como sujeito-objeto idêntico da história.
1
Cf. Adorno (2009).
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Na verdade, Adorno concebia a atividade do intelectual, sem qualquer relação de
responsabilidade direta pelos seus efeitos junto ao público, sustentando que a
atividade intelectual válida era revolucionária por si mesma. No envolver de suas
formulações, Adorno chamará sua posição de
Nichtteilnahme
, isto é, a não-
participação. Segundo Adorno, a não-participação (
Nichtteilnahme
) era absolutamente
necessária para manter viva a capacidade de experimentar o não idêntico, pois a
participação é ser consumido, tragado, pois ela é característica do novo tipo
antropológico que se identifica pela falta de curiosidade, pela falta de vontade da
experimentação do não idêntico. Participar é, neste contexto, não querer conhecer
nada de novo, nada que seja aberto e desprotegido. A isto é preciso agregar que toda
insistência da negatividade em Adorno consistia na resistência em reproduzir no
pensamento as estruturas de dominação e reificação manifestos na sociedade. E tem
por consequência que, em lugar de reproduzir teoricamente a realidade, a razão deve
se deter no plano crítico. Em suma, Adorno, procurando se assegurar de que a razão
não se transformasse em participação deglutinadora, faz com que a dialética negativa
anule a utilidade política e se transforme num fim em si mesma. A filosofia retorna
simplesmente à filosofia. O nexo entre a filosofia e a sociedade é, mais uma vez,
rompido. Mas quando o método da dialética negativa se perpassa como
monopolização total, a própria filosofia está ameaçada. A nova esquerda, na década
de 1960, censurava Adorno por ter conduzido a teoria crítica a um ponto morto;
tornara-se algo estático, meramente contemplativo. Esta paralisia de Adorno,
pergunto: não é, por caminhos totalmente diversos, o equivalente ao silêncio de
Wittgenstein?
Marx e o problema da sociabilidade
No interior de abordagens similares àquelas referidas no item anterior, é comum
surgirem críticas desairosas ao que supostamente Marx teria escrito a respeito do
vínculo entre a esfera da sociabilidade e as formas genericamente denominadas de
ideológicas, incluída aí, evidentemente, a filosofia, acusando-o, entre outros
impropérios, de ter se deixado levar por “sociologismos”.
2
Não obstante a
impropriedade de tais imputações, o é o caso de se debruçar sobre elas: são
2
Exemplo disso é o ensaio de autoria de Claude Lefort intitulado “Esboço de uma gênese da ideologia
nas sociedades modernas”, publicado na coletânea
As formas da História
, São Paulo, Editora Brasiliense,
1979. (Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes e Marilena Chauí).
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inúmeras e provêm de variadas tendências e, ademais, o espaço que dispomos seria
insuficiente para contemplá-las criticamente como merecem.
Ao compulsar as muitas páginas escritas por Marx ao longo de seu itinerário,
tanto o formativo quanto o da maturidade, não há elementos textuais que comprovem
a tese de um alegado “sociologismo” em seu pensamento. A não ser que levemos a
sério as postulações derivadas da divisão de trabalho acadêmico em áreas estanques
em que, de maneira geral, Marx é considerado “um dos clássicos da sociologia” ao
lado de Durkheim e Weber, é evidente que sua posição não se confunde, em momento
algum de suas análises, com algum tipo de autonomização ou desassociação da
“sociedade” em sua pretensa nitidez e oclusão substancial. Dito em outros termos, a
tese amplamente disseminada que postula a presença de um sociologismo na obra de
Marx é a evidência cabal de que:
O complexo da determinação ontoprática e societária do pensamento não
recebeu e nem tem recebido o devido tratamento por parte de grande
número de intérpretes, a ponto de ser tomado, em grande número dos casos,
em sentido predominantemente negativo,
à la
Durkheim (VAISMAN, 2006, p.
1).
Como consequência direta de afirmações dessa natureza, ou seja, o social
concebido enquanto exterioridade em relação ao indivíduo, é fácil perceber as razões
que levam à conclusão que ele não apenas constrange, freia, comprime e limita a vida
individual, mas, sobretudo, as próprias operações do pensamento. “Sendo assim, esse
efeito externo teria o poder de deformar, obstaculizar, ou mesmo impedir a produção
do conhecimento” (VAISMAN, 2006, p. 1), gerando-se, desse modo, toda uma linha
de interpretação, por exemplo, acerca de uma suposta teoria das ideologias em Marx,
cujo fenômeno passa a ser identificado com o “falso socialmente necessário” com uma
longa tradição entre pensadores marxistas e não marxistas.
A partir de um diapasão dessa natureza, avolumou-se e generalizou-se a ideia
de que a noção de determinação social do pensamento implicaria necessariamente um
elemento de caráter negativo que viria assim a impedir ou limitar a capacidade
cognitiva dos indivíduos, que, portanto, se “encontrariam posicionados sempre a partir
de pontos de vista particulares, condicionados historicamente, e dessa forma
impossibilitados ao exercício objetivo da produção do saber” (VAISMAN, 1996, p.
198), ou seja, inabilitados a alçar um “ponto zero”, expressão correntemente utilizada
na área da epistemologia das ciências humanas.
No entanto, a sociabilidade em Marx, ao contrário do que normalmente lhe é
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imputado, apresenta-se de um modo completamente distinto, pois:
Responde como fonte primária ou raiz polivalente pelas grandezas e falácias
do pensamento. De suas formas emanam carências e constrangimentos que
impulsionam ao esclarecimento, ou pelo contrário, conduzem ao
obscurecimento da consciência, em todos os graus e mesclas possíveis. De
suas formações, que demarcam épocas, tempos de luz e afirmação do
homem, ou de sombra e negação do mesmo. Se impõem e realizam,
abrangendo todo gênero em suas tendências peculiares e contraditórias
(CHASIN, 2009, p. 108).
No que diz respeito à relação indivíduo/sociedade, complexo categorial
específico, diretamente vinculado ao modo como Marx abordou e tematizou a
sociabilidade, ele se converteu, do mesmo modo, em objeto de inúmeras polêmicas,
por isso, é importante também, nesse momento da exposição, aduzir algumas
considerações de cunho explicativo com vistas a um devido posicionamento diante do
assunto.
Em outro lugar cheguei a afirmar que:
O desapreço por Marx, derivado do desconhecimento de sua obra e da
catástrofe impudente do Leste Europeu, levou inclusive intérpretes bem-
intencionados a navegar e submergir em ideias no mínimo problemáticas,
quando a grande tematização do homem está em Marx os indivíduos
sociais, a individuação, a formação social da individualidade. O
reconhecimento do forte vínculo entre indivíduo e sociabilidade, quando bem
fundamentado, amparado nas formulações do próprio autor ao longo de sua
obra, permite-nos compreender que a categoria da individualidade em Marx
não é nem pode ser compreendida de outro modo, a não ser recaindo em
mitos e supostos naturalistas ou transcendentais (VAISMAN, 2009, p. 442).
Ainda nesse mesmo artigo, linhas à frente, acrescento o seguinte esclarecimento:
Por ora, importa lembrar que, na VI Tese Ad Feuerbach, com objetivo de
rejeitar o naturalismo presente em Feuerbach, Marx é enfático ao afirmar que
“[...] a essência humana é o conjunto das relações sociais” (MARX; ENGELS,
2007, p. 534). O conteúdo desse conhecido, mas mal interpretado aforismo,
indica uma noção substancialmente diferente das concepções naturalistas ou
transcendentais, de longa tradição na história da Filosofia. Ademais, tal noção
vale a pena repetir - não deve ser tomada como um sociologismo
à la
Durkheim. Em verdade, postulações dessa natureza são estranhas ao
pensamento de Marx, pois é no interior do complexo e contraditório campo
da interatividade social, segundo ele, que a individualidade se forja,
simultaneamente à produção do próprio mundo social, emergindo, dessa
forma, não como dois polos excludentes, mas como âmbitos da existência
humana que se determinam mutuamente (VAISMAN, 2009, p. 442).
De fato, à atribuição de um “sociologismo” em Marx foi associada à tese de que
a individualidade nada mais seria do que um apêndice condicionado e conformado
pelo “meio social”, não possuindo assim identidade própria, autoentificada. Como tais
postulações aparecem, de modo geral, correlacionadas, é mister tratá-las aqui do
modo como convém a um escrito cujo objetivo final é discutir as relações entre filosofia
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e sociedade. Em um tal contexto, menções ao processo de individuação se tornam
necessárias.
Em suma, parece que obviedades ainda precisam ser ditas e repetidas inúmeras
vezes, numa espécie de espiral infernal em que se tenta convencer as pessoas que
Marx não falou isso nem disse aquilo”. Como parece não existir alternativa,
recordemos então algumas passagens de escritos fundamentais do autor em que é
possível identificar as características mais gerais de sua real posição a respeito do
tema em foco.
algum tempo, venho insistindo, na trilha aberta por Chasin,
3
na denúncia
das interpretações grosseiras e reducionistas acerca do complexo da determinação
social do pensamento. De fato, não se trata de uma questão fácil de ser devidamente
esclarecida, mas é necessário convir que houve e ainda uma certa vontade em
buscar a sua devida elucidação; muito mais fácil e cômodo, adequado ao tempo
presente, é continuar insistindo na mesma tecla ao invés de realizar um confronto leal
e honesto com os textos: procedimento que Chasin denominou de análise imanente.
Seguindo à risca as várias pistas e indicações concretas nos seus escritos desde a
década de 1970, constata-se que não se trata de algo parecido com a conhecida
“análise estrutural”, procedimento adotado pelos filósofos uspianos da velha geração,
nem muito menos com alguma técnica específica da “análise de discurso”, proposta
mais recente e mais ao gosto do noviciado. Diferentemente das hermenêuticas em
voga, sequazes que são de abordagens nascidas em meio à proliferação das correntes
irracionalistas, a análise não se confunde com operações que imputam ao texto
vivências de ordem subjetiva por parte do leitor. Ao contrário, não se trata de
identificar, como contemporaneamente ocorre, leitura à:
Interpretação, à atribuição de sentido ao texto ou documento pelo
pesquisador/intérprete. O que põe simultaneamente a equivalência absoluta
das várias interpretações ou operações hermenêuticas, uma vez que a
questão da verdade sobre o objeto em exame está totalmente afastada do
âmbito da investigação, seja como questão sem solução, seja como um falso
problema (VAISMAN, Alves, 2009, p. 8).
O próprio Chasin é enfático ao justificar a importância de uma tal propositura.
Diz ele:
Numa época devastada pela equivalência de ‘leituras’, [é necessário] ressaltar
uma questão fundamental: reproduzir pelo interior mesmo da reflexão
3
Ver a respeito CHASIN, 2009.
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marxiana o trançado determinativo de seus escritos, ao modo como o próprio
autor os concebeu e expressou. Procedimento, pois, que adquire articulação
e identidade pela condução ininterrupta de uma analítica matrizada pelo
respeito radical à estrutura e à lógica inerente ao texto examinado, ou seja,
que tem por mérito a sustentação de que antes de interpretar ou criticar é
incontornavelmente necessário compreender e fazer prova de haver
compreendido (CHASIN, 2009, p. 25).
A respeito do devido entendimento do significado da análise imanente, Ronaldo
Vielmi Fortes e eu tivemos oportunidade de ressaltar na apresentação à tradução
brasileira de
A destruição da razão
, de autoria de G. Lukács, que:
Contrariamente ao que uma observação mais ligeira sobre a questão poderia
denotar, não se trata de simples alinhavo de paráfrases ou de atulhamento
do escrito com citações em grande quantidade, enumeradas acriteriosamente
pelo intérprete de acordo com suas próprias crenças e convicções, mas
procedimento investigativo de rigor que almeja identificar a estrutura
categorial das obras, alvo da atenção do filósofo. Trata-se, enfim, de atitude
de respeito ao texto, em que o intérprete se subordina ao sentido nele
existente objetivamente. Que se trata de empreendimento de difícil execução,
não resta a menor dúvida. Muito mais cômodo e fácil seria simplesmente
atribuir ao material estudado o significado que subjetivamente o intérprete é
capaz de formular, à revelia da própria tessitura significativa presente no
escrito (VAISMAN; FORTES, 2020, pp. XI-XII).
Dito isso, é chegada a hora de trazer à tona alguns momentos da reflexão
marxiana acerca da questão sobre a sociabilidade, suas relações com a individualidade
e as maneiras de pensar. Evidentemente, não é o caso como já mencionado acima
de esgotar nesse momento todas as dimensões que tal tematização encerra.
4
O que
se pretende aqui é algo mais modesto e, evidentemente, circunscrito pelo espaço
disponível.
Com o fito de colocar, de início, a questão de maneira direta e sintética, para a
seguir desdobrá-la da maneira mais conveniente possível, ouso afirmar que a grande
descoberta filosófica de Marx foi a da sociabilidade como atividade sensível. No
entanto, em virtude do cenário nada auspicioso, tanto no terreno acadêmico como fora
dele, decorrente dos “mal-entendidos interpretativos”, distorções e ainda
simplificações vulgares,
5
ao dar início a uma exposição sobre qualquer tema específico
em Marx sobretudo a questão da sociabilidade impõe-se, antes de mais nada,
tratar, mesmo que de modo sumário, dos lineamentos básicos do novo padrão de
racionalidade instaurado no seu itinerário intelectual. Já em minha tese de doutorado,
procurei demonstrar à exaustão que na fase formativa de seu pensamento próprio, é
4
Em minha tese de doutorado intitulada A determinação marxiana da ideologia, defendida em 1996,
pude me dedicar ao tema da determinação social do pensamento em Marx com mais vagar.
5
Cf. Vaisman (2018).
O que é possível dizer sobre as relações entre filosofia e sociedade em pleno século XXI?
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possível identificar, por exemplo, o reconhecimento de Marx acerca “da vinculação
entre o momento real e o momento ideal, como fundada no interior da atividade prática
enquanto tal” (VAISMAN, 1996, p. 131). Tal conclusão foi obtida a partir de um
percurso investigativo que lidou com os escritos de Marx (e também Engels, como no
caso das obras
A ideologia alemã
e
A sagrada família
) em que é afirmada uma das
suas conquistas fundamentais na lida crítica com a filosofia especulativa: No centro do
processo objetivo real, por conseguinte, emerge a atividade objetiva, a partir da qual
os homens, modificando a natureza, produzem seus meios de vida e, por via de
consequência, a si próprios. Mas a produção dos meios de vida, resultante da atividade
de indivíduos humanos reais, ou seja, não abstraídos das suas condições efetivas de
existência, não é considerada apenas do ponto de vista de sua “reprodução física [...].
Trata-se, muito mais, de uma determinada forma de atividade dos indivíduos,
determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida deles” (MARX;
ENGELS, 2007, p. 87).
Importante assinalar na passagem acima que os autores:
Não restringem ou reduzem a produção dos meios de vida àqueles
diretamente necessários à reprodução física propriamente dita, mas
entendem os indivíduos produzindo seu modo de vida, vale dizer,
produzindo todas as dimensões da vida tomada em seu conjunto, em sentido
amplo e não apenas aqueles aspectos voltados às suas necessidades de
reprodução física ou biológica. Ao referir, consequentemente, que os
indivíduos produzem seu modo de vida, é identificado o caráter efetivante
da atividade humana, por meio da qual os homens produzem a si próprios
no sentido abrangente do termo, ou seja, entificam o seu próprio modo de
vida no contexto de dada materialidade específica, isto é, histórico-social,
que possui caráter objetivo (VAISMAN, 1996, pp. 132-33).
Ora, independentemente do “espanto” eventual que tal afirmação possa gerar
entre os possíveis leitores, a devida explicitação da rota intelectual de Marx,
identificada e analisada de modo competente por Chasin, pode evidenciar como tal
descoberta se verificou.
Contudo, não é possível, nesse espaço, identificar com detalhe o modo como
Marx constituiu sua própria concepção da sociabilidade, mas é necessário, no entanto,
apontar que tal concepção se constituiu em um contexto em que a sua lida crítica
confrontou o idealismo de Hegel e dos neohegelianos, e que, dado o seu caráter
ontocrítico, faceou a especulatividade da filosofia anterior, compreendida com
destaque a ontonegatividade da política, o que o levou ao deciframento da anatomia
da sociedade civil” após, um longo e intenso percurso voltado aos estudos de
economia política. Sendo assim, buscarei sintetizar alguns nódulos categoriais
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articulados indissoluvelmente com o problema em tela.
Resumidamente são eles:
A atividade sensível determina o homem enquanto individualidade ativa,
socialmente efetivada, capacitado a construir seu próprio mundo; este, por
isso mesmo, é atividade sensível enquanto universo posto pela ação humana.
O homem, por sua vez, ao construir seu mundo constrói a si próprio, sendo
igualmente, atividade sensível (VAISMAN, 1996, p. 186).
Em outras palavras, a autoentificação humana e de sua mundaneidade específica,
por meio da atividade prática, objetiva e concreta enquanto tal é que torna possível
compreender as razões que levam Marx a postular a sociabilidade enquanto condição
de possibilidade do pensamento, qualquer que seja a figura específica com que se
apresente: filosofia, arte, ciência, religião...
Inúmeras são as passagens dos escritos de Marx que comprovam essas
assertivas. No momento, basta lembrar de uma em especial presente nos Manuscritos
de Paris em que o autor sublinha, de um lado, a impossibilidade de “fixar a ‘sociedade’
como outra abstração frente ao indivíduo” e, de outro, o reconhecimento da:
Atividade do indivíduo, qualquer que seja, [...] implica a mediação da
sociabilidade. Vale dizer, nos termos dos Manuscritos econômico-filosóficos,
a exteriorização individual implica e confirma a sociabilidade [...] na medida
em que todo modo de efetivação individual prático/teórico se na trama
da interatividade humano-social. Enquanto tal, essa efetivação é apropriação
da vida humana (VAISMAN, 1996, p. 188).
Ademais, convém sublinhar mais uma vez o teor da conquista obtida por Marx
em um momento particularmente crucial representado pelos manuscritos aqui
referidos: a existência individual em si mesma é também atividade social e apropriação
do mundo.
Portanto, o esforço de Marx, nesse momento de seu itinerário intelectual, frente
à tradição de cunho idealista, assim como a crítica dessa mesma tradição realizada
pelos neohegelianos, em particular por Feuerbach, é demonstrar, a partir de um
processo árduo de autoesclarecimento, o papel da atividade sensível na constituição
da mundaneidade humana e do próprio indivíduo e a interrelação insuprimível entre
individualidade e sociabilidade, rejeitando assim toda a abordagem que afirma apenas
a dimensão abstrata da atividade humana como inerentemente humana e o seu
corolário: a realidade concreta enquanto mero submundo da existência.
6
6
Cf. Teses
ad Feuerbach
, em particular a primeira.
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O certo é que nos Manuscritos de Paris, nas obras imediatamente subsequentes
e, do mesmo modo, em sua ampla maturidade, a reflexão de Marx tem na atividade
prática concreta o seu eixo norteador. Evidências claras, nesse sentido, podem ser
identificadas, como já salientamos, em seus escritos da década de 1840, assim como
as suas repercussões no surgimento e configurações nas formas específicas com que
o pensamento é exercitado. E é natural que essas evidências surjam no contexto da
crítica à filosofia especulativa, como também tivemos a oportunidade de indicar. Resta
agora referir um trecho de
A Ideologia alemã
, sobejamente conhecido, para sublinhar
o processo que Marx percorre para constituir de modo irretorquível os vínculos entre
e o ser dos homens e seus atributos, no caso, o pensamento: os homens são
produtores de suas representações, de suas ideias, mas os homens reais e ativos”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 94), ou seja, as ideias, as representações estão diretamente
entrelaçadas com a atividade que os indivíduos realizam e ao transformá-la
“transformam também com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar,
não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 94). Desse modo, a devida compreensão do caráter social
do pensar e dos seus produtos passa necessariamente pelo reconhecimento da
impossibilidade de abstraí-lo, separá-lo ou isolá-lo de seus portadores reais, em sua
atividade concreta, historicamente delimitada.
Colocando a questão nos seus devidos termos, é perfeitamente perceptível que
Marx se encaminha na direção de afirmar a produção do pensar e de suas figuras
específicas como momento da prática humana concreta, constituído no interior da
própria sociabilidade, em nítido contraste com a posição filosófica de cunho idealista
então predominante no ambiente intelectual alemão. Ademais, é imperioso dizer que
não se trata de uma postulação de caráter economicista ou coisa que o valha. Trata-
se de acordo com as palavras de Chasin de:
Discernir condições, possibilidades ou impedimentos de atualização, é
deslindar processos genéticos, o que é possível de elisão em face do
incondicionado, do absoluto, cuja figura, aliás, ao inverso de consagrar uma
presença de validade infinita, remete ao vazio, pois basta desconhecer ou
abstrair a origem e o desenvolvimento de algo, para que o mesmo assuma a
máscara do eterno (CHASIN, 2009, p. 110).
E este decididamente não é o procedimento peculiar de Marx, muito ao contrário,
ele reiteradamente denuncia, por exemplo, o “ponto de vista da economia política”
cuja abordagem consagra a eternização das categorias específicas da produção
capitalista, e as universaliza por meio de um processo dissolutor de sua gênese
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histórica específica, cancelando assim a transitoriedade de sua existência. Por via de
consequência, o campo da efetiva interatividade social identificada por Marx na crítica
ontológica ao idealismo e à própria política ganhou contornos efetivos quando o autor
se volta de modo vigoroso à crítica da economia política em plena maturidade.
Impulsionado pelas conquistas teóricas resultantes do itinerário anterior, Marx pode
conferir um tratamento crítico específico à relação entre os quadros da sociabilidade
capitalista e os modos de configuração teórica que daí emergiram. Trata-se de
momentos eloquentes em que a questão da determinação social do pensamento
desponta na elucidação das teorias econômicas analisadas por ele.
Naturalmente, os textos mais adequados para identificar a posição de Marx nesse
quesito se encontram nos manuscritos de
As teorias da mais-valia
, nos quais analisa
criticamente as formações ideais da ciência econômica com o objetivo de avaliar os
“seus diferentes graus de aproximação da realidade, nunca deixando de apontar os
horizontes sociais dos quais essas promanam” (VAISMAN, 1996, p. 206).
Para os fins do presente artigo, inicialmente, iremos tecer algumas considerações
sobre as análises voltadas a Adam Smith, em primeiro lugar, tendo em vista que com
ele “a economia política atingira certa plenitude” (MARX, 1983, p. 597). Contudo, não
obstante as suas conquistas teóricas:
Smith move-se com grande ingenuidade em contradição contínua. Ora
investiga as conexões causais das categorias econômicas ou a estrutura
oculta do sistema burguês. Ora junta a essa pesquisa as conexões tais como
se exteriorizam na aparência dos fenômenos da concorrência (MARX, 1983,
pp. 597-8).
Ademais, Marx constata a existência de “dois ângulos, um penetra no nexo causal,
na fisiologia, por assim dizer, do sistema burguês; o outro apenas descreve, cataloga
e relata, ajustando a definições esquematizantes, o que se revela exatamente no
processo vital, tal como se mostra e aparece” (MARX, 1983, p. 598).
É importante ressaltar, no entanto, que embora Marx denuncie a existência
desses dois ângulos, que se desenvolvem paralelamente na analítica smithiniana,
redundando continuamente em contradições, ao mesmo tempo considera que isso se
justificava, pois Smith tinha pela frente uma tarefa dupla e difícil de ser levada a cabo,
dado o estágio inicial da aproximação feita pelo economista junto à realidade
capitalista da época” (VAISMAN, 1996, p. 219).
Com vistas a sumariar a avaliação marxiana da obra de Smith, pode-se dizer que
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a teorização econômica realizada por este último:
Representou, no plano das formações ideais, o ponto de vista burguês na
sua fase ascensional. Nessa medida, em diversos momentos, essa teorização
foi capaz de apreender vários aspectos fundamentais da constituição interna
do sistema capitalista, mas, ao mesmo tempo, contraditoriamente, pela
mesma razão, em outros momentos, se deteve apenas em seu nível
superficial e aparente. Donde, as contradições detectadas por Marx não
derivarem da falta de perspicácia teórica de Smith enquanto cientista, mas
do próprio estágio de desenvolvimento do ponto de vista burguês que ele
manifesta. Isso induz tanto seus acertos quanto seus erros (VAISMAN, 1996,
p. 214).
O caso de David Ricardo é mais contundente, dados os avanços que sua doutrina
econômica significou em comparação com seus antecessores, sobretudo Smith. Mas,
do mesmo modo que esse último, o pensamento de Ricardo apresenta contradições
insolúveis sobretudo no tocante ao modo como concebe o trabalho enquanto única
fonte de valor de troca e fonte ativa do valor de uso, mas onde, simultaneamente, o
capital é o regulador da produção e verdadeira fonte da riqueza. Em especial, a obra
de Ricardo expressa:
Apenas a essência da produção capitalista ou, se se quer, do trabalho
assalariado; do trabalho que se torna estranho a si mesmo e que a riqueza
por ele criada é enfrentada como riqueza alheia, a sua própria força produtiva
como força produtiva de seu produto, seu enriquecimento como
empobrecimento de si mesmo, seu poder social como poder da sociedade
sobre ele (MARX, 1985, p.1307).
Mas o que importa evidenciar nas análises de Marx acerca principalmente da
contraditoriedade em que se movem os economistas, é que o desenvolvimento real da
economia burguesa que proporciona essa expressão teórica ao mesmo tempo
contraditória e brutal.
Ainda que o volumoso manuscrito intitulado
Teorias da Mais-valia
se constitua
um manancial infindável de fontes para identificar o caráter da noção de determinação
social do pensamento em Marx, não podemos, por razões já ventiladas acima,
prosseguir no exame das várias páginas que compõe esse escrito. Mas ainda há espaço
para alinhavar alguns comentários finais a respeito. Percebe-se, ao longo de suas
análises, que, em várias ocasiões:
Marx explicita o lócus originário dos desdobramentos teóricos que
caracterizam o itinerário da ciência econômica, tanto na sua feição clássica
quanto na sua feição vulgar: a origem, desenvolvimento e a dissolução da
economia política clássica, bem como na emersão das formulações ‘vulgares’,
correspondem [por meio de inúmeras mediações] no plano teórico à
imanência das diferentes clivagens sociais no quadro de sua
contraditoriedade efetiva (VAISMAN, 1996, p. 229).
Em suma, a título de conclusão desta parte do texto dedicada a Marx, tem-se as
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condições para estabelecer as seguintes assertivas:
1) “a dimensão fundamental da noção de determinação social do pensamento,
ao contrário do que é genericamente suposto, diz respeito à sociabilidade como
condição de possibilidade do pensamento”.
2) “não significa restrição ou canga oposta ao pensar. Do mesmo modo o
significa condicionamento unilateral de verdade ou falsidade; é pois, ambivalente, se
especificando de acordo com óticas e angulações sociais possíveis, dentro de limites
históricos sempre mutáveis e de acordo com os graus de maturação das entificações
(VAISMAN, 1996, p. 244).
A contribuição de Lukács
Nos dias de hoje, devido a publicação de importantes obras de Lukács em
português, é de se esperar que o público interessado tenha conhecimento que o
filósofo se dedicou, nos seus últimos anos de vida, a um projeto concebido como uma
contribuição para a renovação do marxismo. Colocado em termos breves, o seu
objetivo central era demonstrar que o pensamento de Marx foi se constituindo a partir
do reconhecimento de uma determinada forma de ser a social , o que lhe permitia
pensar em um projeto ambicioso de formulação de uma ontologia a partir dos escritos
do filósofo alemão.
Quando tomei conhecimento desse projeto, ainda nos anos 1970, a reação
imediata passou por um questionamento inevitável: por que Lukács insiste em tratar
de um tema tão inusual em sua obra da maturidade, qual seja, a possível existência de
uma ontologia em Marx (o que causou grande estranheza até em seus discípulos mais
diletos), questão que tem suscitado recusa de quantos se dizem interessados por
assuntos afins, que a entenderiam por inadmissível?
Segundo Lukács, esta recusa e este estranhamento se devem ao fato de o critério
gnosiológico ter auferido predomínio no campo filosófico: a posição gnosiológica se
refere ao saber e, como tal, emerge enquanto atributo do campo da subjetividade; a
posição ontológica, pelo contrário, refere-se diretamente ao campo do ser e, portanto,
à objetividade dela mesma. A posição ontológica distancia-se da unilateralidade que
advém da postura gnosiológica, sempre especulativa em relação à organização e
atividade da subjetividade e, quando seguida adequadamente, orienta a pensar as
coisas rigorosamente a partir de seus próprios nexos, alcançando uma totalidade mais
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complexa.
A primeira vez que menções deste tipo apareceram em português foi em 1969,
quando a Editora Paz e Terra publicou o livro
Conversando com Lukács
(cujo original
veio a lume em 1967, portanto, no mesmo ano em que ele autoriza a republicação de
História e consciência de classe
com o “Prefácio” escrito para esclarecer seus novos
posicionamentos), uma série de entrevistas feitas com o pensador ngaro por Leo
Köfler, Wolfgang Abendroth e Hans Heinz Holz. Logo na primeira conversa, cujo título
era “Ser e consciência”, Holz indaga a Lukács quais eram os pressupostos ontológicos,
que nem sempre eram tratados explicitamente, da sua
Estética
:
Até que ponto certas posições de sua
Estética
são definidas e condicionadas
por pressupostos ontológicos? [...] Existe alguma coisa que se possa definir
como uma ontologia marxista? Que sentido pode ter o termo ‘ontologia’
numa filosofia marxista?” Ao que Lukács responde: “Suponho que sempre é
preciso começar e isto vale para os cientistas tanto como para qualquer
outra pessoa por questões da vida cotidiana (HOLZ; KOFLER;
ABENDROTH, 1969, p. 11).
Ideia semelhante fora anunciada na sua
Estética
(
Sobre a peculiaridade do
estético
, de 1963) e era agora reafirmada nesta entrevista. É necessário partir da
cotidianidade em todas as dimensões: seja na da vida das pessoas, seja no plano da
ciência, da arte ou da filosofia. Isso porque:
Na vida cotidiana, os problemas ontológicos se colocam num sentido muito
grosseiro. Darei um exemplo bastante simples: quando alguém caminha pela
rua mesmo que seja, no plano da teoria do conhecimento, um obstinado
neopositivista, capaz de negar toda a realidade ao chegar a um cruzamento,
deverá por força convencer-se de que, se não parar, um automóvel real o
atropelará, realmente; não lhe será possível pensar que uma fórmula
matemática qualquer de sua existência estará subvertida pela função
matemática do carro ou pela sua representação da representação do
automóvel. Tomo deliberadamente um exemplo tão simples para mostrar
como na nossa vida as diversas formas de ser estão sempre unidas entre elas
e o inter-relacionamento constitui o dado primário (HOLZ; KOFLER;
ABENDROTH, 1969, pp. 11-2).
Após este singelo e elucidativo exemplo, o pensador continua:
Ora, as atividades espirituais do homem não são, por assim dizer, entidades
da alma, como imagina a filosofia acadêmica, porém formas diversas sobre a
base das quais os homens organizam cada uma de suas ações e reações ao
mundo externo. Os homens dependem sempre, de algum modo, destas
formas, para a defesa e a construção de sua existência (HOLZ; KOFLER;
ABENDROTH, 1969, p. 12).
Trata-se da ideia de que as atividades de ordem cultural, científica, filosófica e
artística, em todos os níveis em que se manifestam, são sempre respostas a problemas
postos na vida cotidiana. Aquelas se distanciam e se autonomizam, mas, contudo,
invariavelmente a têm como seu ponto de partida e, também, de chegada, ainda que
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por meio de um conjunto complexo de mediações. No prefácio à
Estética
, Lukács
recorre, nesse sentido, à figura da vida cotidiana como um “grande rio” de cujo leito
se destacam as atividades espirituais superiores: os problemas sobre os quais estas
atividades se debruçam são, de maneira direta ou indireta, colocados pela vida
cotidiana e de alguma maneira as respostas formuladas retornam a ela, podendo, em
certas ocasiões, contribuir decisivamente para mudança do rumo com que ela caminha.
Além de destacar a fundamental importância da vida cotidiana para a devida
elucidação do sentido e significado das formações ideais, e, na:
Contramão das tendências dominantes, mesmo no interior do marxismo, as
linhas diretrizes da investigação de Lukács são devidas ao reconhecimento
marxiano da objetividade como propriedade originária dos entes. Já na fase
de preparação de sua
Estética
, Lukács procurou investigar a base ontológica
tanto do pôr estético quanto da recepção da obra de arte (VAISMAN, 2009,
p. 446).
Contudo, “ao assinalarmos acima a provável existência de um fio condutor,
principalmente entre a
Estética
e a
Ontologia
, não resulta de imediato a conclusão de
que Lukács tenha aderido, sem mais, à própria expressão, ainda que, como afirma
Oldrini, “[...] mesmo onde a coisa, o nexo conceitual exista em germe, falta a
palavra para exprimi-lo” . Em verdade, Lukács nutria sérias desconfianças e suspeitas
em relação à própria palavra, resistindo em utilizá-la; “[...] para ele, tomando a
conotação que lhe fora conferida por Heidegger, ela tem um valor negativo”
(OLDRINI, 2002
, apud
VAISMAN, 2009, p. 446).
No decorrer da entrevista concedida a Heinz, Holz e Abendroth, Lukács
reconhece justamente o que Oldrini assinala na citação acima, ou seja, que, durante
muito tempo, tinha restrições ao termo ontologia, e veio a utilizá-lo tardiamente.
Justifica tal decisão alegando que a palavra “ontologia” estava associada, na filosofia
contemporânea, ao existencialismo de Sartre e a Heidegger. E nessa direção, no
volume I da Ontologia, pode-se constatar a presença de críticas severas a Heidegger
muito embora o filósofo ngaro, morto em 1971, não tenha assistido ao pleno
triunfo das concepções que consagram o homem derrelito, denominação que
empregava ao se reportar a Heidegger , como havia feito a Sartre no livro
Existencialismo ou marxismo
. De fato, é bom deixar aqui assinalado que, em vários
aspectos, os comentários críticos dirigidos a Heidegger em
Para uma ontologia do ser
social
são mais contundentes e amplos do que aqueles formulados no livro
A
destruição da razão
, sobre o qual faremos algumas referências ainda no presente
O que é possível dizer sobre as relações entre filosofia e sociedade em pleno século XXI?
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artigo.
De todo modo, a linguagem em tom coloquial utilizada por ocasião das
“conversações” permite a Lukács se valer de certa ironia ao se referir ao termo:
Usamos a bela palavra ‘ontologia’, à qual eu mesmo me estou habituando,
mas dever-se-ia dizer: o enigma se desvenda no exato momento em que
descobrimos a forma de ser que produz este novo movimento do complexo.
O fato de que novos fenômenos se deixem deduzir geneticamente sobre o
fundamento de sua existência cotidiana é apenas um momento de uma
conexão geral, isto é, significa que o ser é um processo de tipo histórico
(HOLZ; KOFLER; ABENDROTH, 1969, p. 19).
A bem da verdade, a propósito do termo “ontologia”, é forçoso reconhecer que
é algo muito diverso discutir a questão ontológica nos dias de hoje do que três
séculos, para dizer o mínimo. Ora, o clima teórico que envolvia a questão até o século
XVIII era completamente distinto daquele que vivemos hoje e ao qual estamos direta
ou indiretamente condicionados. Tal indicação não é um dado óbvio, mas visa a
problematizar uma grave clivagem, que Lukács não desconhecia. As dificuldades para
o devido enfrentamento da questão ontológica hoje são enormes e já eram conhecidas
por Lukács. “Tais dificuldades, grosso modo, poderiam ser atribuídas inicialmente às
tendências que têm como ponto de partida o criticismo kantiano, que se impuseram
na viragem do século XIX para o XX, com a redução da filosofia ao circuito da
problemática do conhecimento” (VAISMAN, 2006, p. 6).
De fato, os interessados pela obra tardia de Lukács, sobretudo
Para uma
Ontologia do Ser Social
, sabem que se trata de esforço de ampla envergadura e cuja
devida compreensão e interpretação é um projeto ainda inacabado, a despeito de
esforços de vários de seus intérpretes. A complexidade do tema em si já se apresenta
como um desafio, muitas vezes de aparência incontornável, que a facilitação e a
vulgarização não desfazem. Ao contrário, só fazem complicar e dificultar ainda mais a
incontornável tarefa de enfrentar a argumentação cerrada e, não raras vezes,
problemática que o autor procurou, no entanto, preparar com cuidado e rigor.
No que diz respeito aos temas sobre os quais o presente artigo se debruça, é
facilmente constatável, que, ao longo da volumosa obra em questão, um dos empenhos
mais marcantes de Lukács foi o de demonstrar que a inserção social do indivíduo não
é algo artificial, como se individualidade e sociabilidade fossem esferas estranhas e
oclusas uma em relação à outra, mas ele sublinha e procura demonstrar
ad nauseam
se tratar de um vínculo constitutivo ineliminável de ambas as dimensões,
independentemente do fato em si relevante e que marca o caráter específico do
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estranhamento de permanecerem ao longo da história (com raras exceções) no
interior de uma relação contraditória.
7
Nesse passo, é necessário recordar que, sempre de acordo com Lukács, a
personalidade de cada indivíduo é resultado de escolhas que ele realiza ao longo da
vida. Se tais escolhas são realizadas a partir de um “campo de possíveis”, isso não
modifica no essencial a questão aqui ventilada, pois, “[...] o curso da vida de qualquer
ser humano consiste numa cadeia de decisões, que não é uma sequência simples de
decisões heterogêneas, mas sempre se refere espontaneamente ao sujeito da decisão”
(LUKÁCS, 2010, p. 91). Ao chamar atenção para o caráter autoconstitutivo da
individualidade, ou seja, a dimensão ativa do sujeito diante das pressões e limites de
seu “campo de possíveis” postos na vida social, tem-se aqui mais um elemento para
compreendermos a preocupação de Lukács em sua obra derradeira. Em outras
palavras, qual é a “margem de manobra” do indivíduo diante do desenvolvimento das
forças produtivas, que se dão no nível do gênero, mas, sobretudo, sua, repito, “margem
de manobra” diante da reificação que se manifesta na vida cotidiana? A resposta a
essa questão ficará para outra oportunidade...
O que importa ressaltar nesse passo é que Lukács não deixa margem para
dúvidas: O processo de constituição da individualidade é longo e complicado na exata
medida em que é fundado sobre os pôres teleológicos da atividade, em qualquer nível
que ela se desenvolva” (VAISMAN, 2009, p. 454). Reconhece e determina que a
emergência da individualidade é fruto de:
Um longo desenvolvimento das relações sociais, que inicialmente é
lentíssimo, para fazer emergir como real e, sobretudo, como universal o
problema da individualidade [...] Esse processo, que se desenvolve no plano
subjetivo e objetivo, na constante interação entre subjetividade e
objetividade, é aquilo que faz nascer as bases ontológicas por meio das quais
a singularidade originária do ser humano em vários aspectos ainda
simplesmente natural, pode assumir pouco a pouco o caráter da
individualidade (que é social, que é possível somente na sociabilidade)
(LUKÁCS, 2010, p. 78 modif.).
Temos na citação acima importante caracterização não a respeito do caráter
histórico do surgimento e transformação da individualidade, mas também de seus
laços constitutivos com a atividade concreta dos próprios indivíduos. Trata-se, é bom
frisar, de um processo constitutivo tanto da dimensão subjetiva quanto da objetiva
7
Evidentemente, não se trata aqui de avaliar em que medida Lukács seguiu ou não as concepções de
Marx, mas nesse caso específico, não como deixar de reconhecer as semelhanças entre ambas as
formulações.
O que é possível dizer sobre as relações entre filosofia e sociedade em pleno século XXI?
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que ocorre simultaneamente, o que implica reconhecer a construção da individualidade
a partir das respostas singulares práticas que se verificam em decorrência das múltiplas
demandas que o mundo social coloca para os agentes singulares.
A determinação social do pensamento e a filosofia
Embora se constitua em tarefa essencial, creio que ainda não é este o lugar para
expor de modo adequado o longo e sinuoso itinerário intelectual de György Lukács.
Tal empreitada faria sentido se resultasse de esforço de vários pesquisadores,
orientados por cuidado, rigor e profundidade, voltado à decifração das etapas de sua
vida e à complexidade de suas obras.
8
O que se pretende nesse artigo, evidentemente, é muito mais modesto, muito
embora aspire estabelecer, em traços gerais, o modo como Lukács articulou a noção
de determinação social do pensamento. Porém, não é fácil, em poucas linhas,
identificar e expor de modo convincente um tema desse teor junto à obra tão intricada
e diversa do autor.
9
Contudo, há indicações que permitem supor que, ao menos desde
História e Consciência de Classe,
houve da parte do autor:
Um esforço intelectual marcante no sentido de pôr em evidência um campo
de reflexão teórica, a então relegado a segundo plano. De fato, [...] se
revestiu de importância decisiva, na medida que representou a tentativa
independentemente de seus embaraços e malogros de reconhecer e
ressaltar a natureza e as complexas funções da esfera ideológica (VAISMAN,
1996, p. 57).
Todavia, nesse momento específico de seu itinerário, tal esforço acabou por se
converter numa espécie de autonomização e hipertrofia da esfera subjetiva em
detrimento das condições objetivas de sua efetivação, como o próprio Lukács
reconhece no afamado Prefácio de 1967 à referida obra.
A despeito do prestígio auferido por livros como
Alma e as
formas e Teoria do
romance,
que foram simplesmente deixados para trás, a partir dos anos 1930,
adepto das formulações de Marx, Lukács se dedica febrilmente ao campo da análise
das obras de arte, em especial da literatura, “onde a alma do filósofo húngaro
encontrou, mais do que qualquer outra parte, os horizontes infinitos de que carecia
8
Ronaldo V. Fortes e eu perseguimos um intento dessa natureza na apresentação ao livro
Prolegômenos
para uma ontologia do ser social
, de autoria de G. Lukács, publicado pela Boitempo editorial em 2010.
Contudo, passados onze anos desde aquela publicação, creio que determinadas formulações ali contidas
necessitam ser revistas, a partir do avanço das pesquisas que temos realizado.
9
Também por essa razão não iremos contemplar as várias polêmicas que foram criadas em torno da
sua trajetória intelectual como, por exemplo, aquela que afirma a superioridade do Lukács pré-marxista
frente à sua suposta involução na fase posterior.
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para se expandir e frutificar” (VAISMAN; PATRIOTA, 2008, p. 8). Contudo, os cerca de
30 anos que separam o início do percurso do autor e suas obras de plena maturidade
como a
Estética
e
Para uma ontologia do ser social
, incluídos seus
Prolegômenos
,
além de serem marcados por escritos que contribuíam decisivamente para um cenário
carente de formulações analíticas sobre a arte inspiradas em Marx, permitem constatar
a existência de um projeto de cariz eminentemente filosófico, em que estão presentes
de modo indelével o tema que aqui nos preocupa. Exemplos monumentais desse
empreendimento, além, é óbvio, de seus trabalhos de análise literária, são os livros
O
jovem Hegel
(cujo término da redação se deu em 1938, mas a publicação apenas dez
anos depois) e
A destruição da razão
(1954), (sem esquecer de
Goethe e seu
tempo
,
publicado em 1938), obras que colocaram em xeque, de modo original e competente,
teses dominantes no panorama filosófico da época, diga-se de passagem, tanto
aquelas esposadas pelos representantes do marxismo oficial quanto de acadêmicos e
especialistas renomados que se debruçaram sobre os autores tratados.
Além de trazer à tona características e dimensões do pensamento do jovem
Hegel, por exemplo, até então inexploradas, ou seja, os vínculos entre a economia
política clássica, notadamente Adam Smith, e a dialética hegeliana, Lukács afirma o
ponto de partida da investigação, cujos resultados são expostos no livro em questão:
“Hegel é precursor da dialética materialista de Marx” (LUKÁCS, 2018, p. 20).
Independentemente da correção ou falsidade do ponto de partida que deu ensejo ao
caminho analítico percorrido por Lukács, o que importa destacar, em primeiro lugar, é
o empenho do autor em desfazer a versão fascistizante na tentativa em “fazer de Hegel
um irracionalista conveniente aos fascistas” (LUKÁCS, 2018, p. 54) e, em segundo
lugar, a diretiva que orienta a investigação realizada pelo filósofo ngaro, qual seja
identificar “o componente histórico-social” e não meramente biográfico com vistas a
fornecer a explicação possível “para o desdobramento do método dialético no interior
dela [filosofia clássica alemã] até chegar à versão hegeliana da dialética” (LUKÁCS,
2018, pp. 54-55), sobretudo a Revolução Francesa.
Com esse propósito em mente do mesmo modo que mais tarde irá proceder
quando da redação de
A destruição da razão
Lukács dedicou várias porções do livro
à exposição do desenvolvimento histórico-social da Alemanha, bem como as possíveis
repercussões de acontecimentos que marcaram o continente europeu, nas quais afirma
o que se segue:
O que é possível dizer sobre as relações entre filosofia e sociedade em pleno século XXI?
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Hegel não detém, na Alemanha, a compreensão mais elevada e justa da
essência da Revolução Francesa e do período napoleônico, como é, ao
mesmo tempo, o único pensador alemão que analisou seriamente os
problemas da Revolução Industrial na Inglaterra; ele foi o único a estabelecer
uma conexão entre os problemas da economia inglesa clássica e os
problemas da filosofia, ou seja, os problemas da dialética (LUKÁCS, 2018, p.
61).
As conclusões a que chega Lukács resultaram de uma extensa e pormenorizada
investigação junto aos escritos de Hegel datados de 1793 a 1807 em que, ao lado
da identificação de clivagens cruciais de seu itinerário juvenil, é revelado não apenas
seu significado no interior da filosofia clássica alemã, como também o modo com que
se articula aos eventos socioeconômicos e políticos da sociabilidade capitalista de
então. Contundente em suas conclusões, Lukács evidencia nessa volumosa obra a
intricada e complexa rede de relações entre a filosofia de um grande autor e as agruras
de seu tempo, sem resvalar, sequer por um instante, para relações rasas e mecânicas
entre filosofia e sociedade.
O mesmo pode ser dito a respeito do polêmico livro
A destruição da razão
. Nesse
caso específico, o alvo do autor é investigar a trajetória do irracionalismo alemão até
o momento em que emergem as vertentes propriamente nazifascistas. Conforme
assinalado na sua apresentação:
O livro apresenta em vários momentos da exposição considerações acuradas
sobre a constituição do fenômeno do imperialismo em geral, de um lado, e
como o fenômeno se constituiu de modo particular em território alemão, de
outro. A averiguação das condições econômicas, sociais e políticas de tal
contexto histórico tornou-se assim crucial para a devida análise das visões
de mundo que se instalaram no seio das posições teóricas pesquisadas.
Como é evidente, não se trata de postulações mecânicas acerca das relações
entre modos de pensar e o chão social de onde emergem, mas acima de tudo
do reconhecimento de sua vinculação inextrincável, sem o que é inconcebível
a própria vida humana enquanto tal (VAISMAN; Fortes, 2020, p. XII).
À primeira vista, a partir de uma posição professoral pretensamente neutra, como
aquelas descritas na primeira parte do presente artigo, questionamentos no campo
filosófico com relação às possibilidades e limites do conhecer são concebidos como
entraves ahistóricos insuperáveis, derivados da natureza inevitavelmente
manipulatória da ciência, identificada que é
tout court
com a pecha de positivismo
e estigmatizada por conta de seus métodos quantitativos. Posicionamentos esses que
atribuem ainda tais limites ao caráter derrelito do homem, simplesmente lançado no
mundo, em que a intuição passa a ser valorizada em detrimento da razão etc., parecem
não ter qualquer tipo de influência sobre a vida cotidiana, sobre os embates travados
e os dilemas que vicejam na vida social. Seriam puras manifestações de
individualidades supostamente superiores dedicadas a cultivar o jardim de sua própria
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interioridade.
No entanto, avaliações acerca da fratura intrínseca entre filosofia e sociedade
parecem carecer de amparo na realidade e se mostram puramente ilusórias. Basta
observamos o que se passa em nosso entorno e sair, pelo menos por um instante, do
“casulo filosófico” para perceber que formulações destituidoras do humano estão aí a
todo vapor a engrossar posicionamentos altamente regressivos, disseminados em
todos os espaços da cotidianidade e da vida social em seu conjunto, tanto no Brasil
como no mundo afora.
As descobertas de Lukács acerca da trajetória do irracionalismo alemão
evidenciaram como uma corrente de formulações diversas no campo filosófico diga-
se de passagem não possuíam vínculos diretos com a ideologia propriamente
nazifascista contribuíram para a formulação de um caudal que nutriu direta ou
indiretamente o florescimento do nazifascismo.
Contudo, de acordo com o próprio Lukács, ao avaliar a cena filosófica do pós-
guerra, a influência daquelas formulações filosóficas, analisadas por ele no referido
livro, não se limitou aos eventos que precederam à eclosão da Segunda Guerra
Mundial, ao contrário, simultaneamente ao reconhecimento que apesar do:
Irracionalismo puro e simples o desempenha[r] hoje um papel dirigente
como o dos tempos da organização da segunda conflagração mundial, [...]
ainda constitui uma atmosfera, por assim dizer, ideológica da nova
propaganda de guerra; ao menos não desempenha nela um papel
desimportante. A advertência aqui proposta para se aprender com o passado
não perdeu de modo algum sua atualidade só porque as condições atuais se
modificaram sob muitos aspectos. Tanto menos porquanto uma série de
elementos que foram decisivos no irracionalismo “clássico” no tempo de
Hitler ainda cumpre um papel em nada reduzido, às vezes até acentuado, na
propaganda da ‘guerra fria’ (agnosticismo, relativismo, nihilismo, tendência
para a criação de mitos, acriticidade, credulidade, em milagres,
preconceitos de raça, ódio racial etc., etc.)” (LUKÁCS, 2020, p. 83).
Se o próprio Lukács reconhece que a presença das posturas irracionalistas
embora diferentes de sua forma “clássica” (ou seja, alemã) continuou a vicejar nos
tempos da guerra fria”, que dizer dos tempos atuais, em que tais tendências
ampliadas e diversificadas, com um sem-número de adeptos, granjeiam prestígio
ilimitado tanto na esfera acadêmica quanto na vida artística e cultural, arrastando
consigo movimentos e figuras de proa que se colocam inclusive no campo da
malfadada esquerda?
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Diante do descalabro que tem assolado o país, é de fato curioso e desconcertante testemunhar os
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A essa altura dos acontecimentos, com toda a experiência histórica acumulada
ao longo de décadas, em que formulações como aquelas criticamente analisadas por
Lukács passaram a desfrutar de modo cada vez mais intenso e ampliado a hegemonia
ideológica, penetrando com sucesso nos vários níveis em que se dá atividade
intelectual, e repercutindo, de modo cada vez mais intenso, nas formas de pensar e
sentir do cotidiano, não é mais possível negar que:
Todo pensamento possui uma gênese social e, assim, cumpre igualmente
uma função social específica. Este é o sentido da determinação lukácsiana
segundo a qual ‘não há filosofia inocente’. Todo pensamento cumpre, nessa
medida, uma missão social, aspecto que destaca seu enraizamento nas
tendências contraditórias postas pela realidade social de dado momento
histórico. O irracionalismo no campo da filosofia não é, desse modo, apenas
uma tendência filosófica nascida da
disputatio
interna do pensamento
ocidental. No caso específico do pensamento alemão, ele reflete tendências
sociais oriundas particularmente do processo de transição alemão para o
capitalismo. Lukács resgata o caráter conservador desse trânsito para a forma
da sociabilidade capitalista [...] (VAISMAN; FORTES, 2020, p. XIII).
Sendo assim:
Tal como Lukács demonstra à exaustão, as concepções por ele analisadas
sobretudo aquelas de Nietzsche e Heidegger inibem o pensamento e
desmobilizam a ação, tanto no nível singular quanto no plano mais geral da
vida humana. Por isso mesmo e graças a um complexo conjunto de
condicionantes sociais e econômicas, visões de mundo matrizadas por
vertentes irracionalistas se encontram amplamente difundidas no interior da
própria vida cotidiana, sem que tal presença seja percebida e conscientizada
como tal. Todo um conjunto de concepções cuja origem se encontra na esfera
filosófica passa assim a orientar as ações dos indivíduos (VAISMAN; FORTES,
2020, p. XVII).
A partir da pesquisa exaustiva e rigorosa junto aos textos de vários expoentes
da filosofia alemã dos séculos XIX e XX, Lukács reuniu as condições necessárias para
afirmar, em especial, a presença de traços marcantes da filosofia nietzschiana no seio
da vida cotidiana, nos seguintes termos:
As massas foram fortemente envenenadas por tais ideologias sem que jamais
tenham colocado os olhos sobre a fonte direta do envenenamento. A
barbarização nietzschiana dos instintos, sua filosofia da vida, seu
“pessimismo heroico” etc. são produtos necessários do período imperialista,
e o aceleramento desse processo provocado por Nietzsche pôde surtir efeito
comentários críticos de personagens com grande influência, inclusive nos meios midiáticos,
esbravejando contra as posturas negacionistas do atual presidente da república, quando até ontem se
empenhavam na condenação da ciência e da técnica, concebidas como causadoras das desgraças
humanas. São de fato comuns, principalmente no meio universitário, a disseminação de modismos
teóricos que vão desde a execração por princípio da ciência e da técnica até aqueles que denunciam
o controle dos corpos pelo Estado, valendo-se da noção de biopolítica, que, se examinados de modo
isento, corroboraram as posturas execráveis do negacionismo. bom lembrar que o movimento
antivacina, a homeopatia, a astrologia e outras vertentes do mesmo talhe lograram a adesão de
segmento expressivo de personalidades que se colocam à esquerda do espectro político, o que
demonstra a capilaridade das posições aqui denunciadas).
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em milhares e milhares de pessoas que sequer conheciam o seu nome
(LUKÁCS, 2020, p. 77).
Depois dessa avaliação decisiva e contundente acerca do modo como as
formulações filosóficas quaisquer que sejam chegam a influenciar posturas e
reações práticas na órbita do cotidiano, é possível perceber as razões que levaram
Lukács a dedicar parte de sua obra postumamente publicada ao problema da
ideologia. Foram vários anos de dedicação e pesquisa junto a tendências e autores
diversos, tanto no campo da filosofia quanto da arte, notadamente a literatura, que
propiciaram ao autor tematizar sob uma perspectiva ontológica as formações
ideológicas, contrariando, portanto, as interpretações correntes amparadas sobretudo
no critério gnosiológico. Como é sabido, tais abordagens acabaram por consagrar a
identidade entre ideologia e falsidade, o que é questionado vivamente por Lukács.
Não por acaso também que, ao tratar do tema, determina a filosofia, ao lado da
arte, como forma pura de ideologia. Como será possível constatar nas linhas que se
seguem, o autor fornece um conjunto de elementos com o objetivo de esclarecer o
modo como a filosofia exerce sua influência em termos ideológicos.
Talvez seja o caso lembrar aqui mais uma vez a imagem referida que Lukács
recorre no prefácio da
Estética
de 1963 para ilustrar o evolver histórico humano no
curso da história, em que diferentes modos de atividade de desenvolvem e se
autonomizam progressivamente para constituir esferas específicas, regidos por leis
próprias, mas que a partir de múltiplas mediações têm origem e voltam a essa esfera
de origem constantemente para se fundar e, ao mesmo tempo, influenciar esse âmbito
da vida. Esses domínios da atividade, diz Lukács, encontram na vida cotidiana sua
fonte e seu ponto de chegada:
O comportamento cotidiano do homem é ao mesmo tempo começo e fim de
toda atividade humana. Se representarmos a cotidianidade como um grande
rio, pode-se dizer que dele se desprendem [...] a ciência e a arte, [que] se
diferenciam, se constituem de acordo com suas finalidades específicas,
alcançam sua forma pura nessa especificidade [...] para, portanto, em
consequência de seus efeitos, de sua influência na vida dos homens,
desembocar de novo na vida cotidiana (LUKÁCS, 1965, pp.11-12).
Ressalte-se, no entanto, que tal influência depende, para seu pleno exercício, que
demandas surgidas na vida cotidiana sejam, de algum modo, reconhecidas e atendidas
a partir das respostas dadas pelas formações ideais. Consciente do caráter dessa
interrelação, na parte introdutória de
Para uma ontologia do ser social
, Lukács
identifica o lócus preciso de onde brotam as necessidades a atender pelas formações
ideais. Ele diz:
O que é possível dizer sobre as relações entre filosofia e sociedade em pleno século XXI?
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A práxis postula por si só, necessariamente, uma imagem do mundo com a
qual possa harmonizar-se e a partir da qual a totalidade das atividades vitais
produz um contexto pleno de sentido. É claro que a ciência e a filosofia a ela
vinculada são chamadas em primeiro lugar a oferecer uma resposta adequada
[...] como partes da inteira realidade social (LUKÁCS, 2012, p. 31).
É evidente, que ao reconhecer o papel que a filosofia cumpre, enquanto forma
de ideologia pura, Lukács rejeita o modo como convencionalmente esse tipo de saber
é concebido. De acordo com ele, a filosofia;
Nunca constitui um fim em si mesmo, nunca é uma síntese meramente
enciclopédica ou pedagógica de resultados acreditados, mas uma
sistematização, como meio de possibilitar a compreensão mais adequada
possível desse ‘de-onde’ e ‘para-onde’ do gênero humano” (LUKÁCS, 2013,
p. 540).
E acrescenta:
Não existe filósofo que realmente mereça essa designação, o no sentido
estritamente acadêmico, cujo pensamento não esteja direcionado para
interferir decisivamente nos conflitos decisivos de seu tempo, elaborar
princípios de seu enfrentamento e resolução e, por essa via, imprimir a esse
enfrentamento um rumo mais decidido” (LUKÁCS, 2013, p. 541).
Consequentemente, o papel das formas ideológicas puras no caso aqui a
filosofia por sua própria natureza e escopo é o de não intervir diretamente, pois não
possuem os próprios meios para tal, no ambiente socioeconômico conflituado.
Diferentemente da política e do direito, o âmbito de influência da filosofia está
diretamente relacionado com questões humanas universais e expressam um
“determinado nível evolutivo da relação individualidade/generidade os dois polos
fundamentais do ser social , ao mesmo tempo em que desempenham importante
função subjetiva no processo de socialização enquanto tal” (VAISMAN, 2010, p. 56).
Conclui-se assim que, de acordo com a caracterização lukácsiana, “a filosofia é
uma área do conhecimento interessado, interessada pelo destino do homem, pela sua
essência, voltada às questões que dizem respeito ao gênero humano, e jamais se
esgotando num simples conjunto de conhecimentos voltados exclusivamente para si
mesmos” (VAISMAN, 2010, p. 56).
Em suma, segundo a reflexão lukácsiana, a filosofia se revela como forma
específica de ideologia na sua peculiaridade de forma pura. Pura na medida em que,
de um lado, as questões sobre as quais se expressa ultrapassam a imediaticidade
cotidiana (âmbito do direito) e também a globalidade social conflituada, que é o
território da política; e, de outro, se caracteriza por não dispor de meios próprios, ao
contrário dos aparatos políticos, para colocar em prática as suas generalizações.
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De tal modo e a seu modo, a filosofia age como ideologia. Mas, aqui também,
como em outros casos, não se pode nem se deve pensar em efeitos simplesmente
automáticos e mecânicos, de acordo com o pensamento de Lukács, várias vezes
ressaltado. O aspecto crucial desse tipo de tematização, ao contrário do que é
propalado nos ambientes acadêmicos, a influência ideológica da filosofia se faz
presente na própria vida cotidiana, na medida em que as formulações filosóficas
acabam inevitavelmente desaguando nessa esfera da vida, ainda que seu fazer
pressuponha um certo tipo de distanciamento. Lukács exemplifica na mesma linha de
avaliação contida e referida no livro
A destruição da razão
: “não é preciso ter lido
Marx para reagir em termos de classe aos acontecimentos do dia; não é preciso
vivenciar artisticamente Dom Quixote ou Hamlet para ser influenciado por eles”
(LUKÁCS, 2013, p. 561). Essas influências exercidas pelas formas ideológicas puras
podem ser regressivas ou progressivas. Neste sentido, Lukács acrescenta de forma
incisiva: “Isso [a influência ideológica] é assim tanto no bem quanto no mal – o que no
campo ideológico, nem pode ser diferente; tampouco foi necessário estudar Nietzsche
ou Chamberlain para tomar decisões fascistas” (LUKÁCS, 2013, p. 561).
Com vistas a encaminhar a parte conclusiva do presente artigo, vale a pena
sintetizar agora alguns pontos para o devido entendimento do problema sobre as
relações entre filosofia e sociabilidade. Segundo Lukács, em primeiro lugar, a filosofia
“une, portanto, sinteticamente os dois polos, mundo e homem, na imagem da
generidade concreta” (LUKÁCS, 2013, p. 543). A filosofia, forma pura de ideologia,
realiza esta tarefa na medida em que seu objeto central é o gênero humano, isto é,
uma imagem ontológica do universo e, dentro desta, da sociedade a partir do
aspecto de como ela realmente foi, veio a ser e é para que se produzisse como
necessário e possível cada um dos tipos atuais de generidade” (LUKÁCS, 2013, p.
543). Ou seja:
A filosofia perfaz o exame e especificação da generidade, estando implicado,
pois, a própria socialização da sociedade, o que compreende intelecções e
posse de mundo. É sobre o que se pronuncia a filosofia, como prévia-ideação
dos embates do homem em seu ‘de-onde para-onde’, enquanto generalidade
humana no mundo. (VAISMAN, 2010, p. 57)
À primeira vista, uma leitura superficial e descuidada do texto lukácsiano
poderia inferir que se trata de uma proposta desvirtuadora da natureza intrínseca da
atividade filosófica, na medida em que, supostamente, introduz um elemento estranho,
desfigurador ou espúrio no interior dessa esfera, como indicado no início das nossas
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considerações sobre o tema, nas páginas iniciais desse artigo. Nada mais equivocado,
sobretudo se considerarmos que o valor das grandes obras filosóficas reside
justamente no fato de refletir acerca dos grandes dramas humanos prementes em cada
momento do tempo. Depreciação ocorre quando se restringe e se limita o seu valor
ao se desconhecer o papel que suas formulações desempenham para a vida humana
em sociedade, para o bem ou para o mal. Para o mal, como parece ser o caso que nos
interessa nesse momento do século XXI, com suas tendências regressivas persistentes,
cujas origens radicam, em grande medida, nas filosofias examinadas por Lukács. Ou
seja, queiramos ou não, gostemos ou não, o que se passa no universo filosófico
aparentemente tão evanescente e distante deságua na vida cotidiana, pois dela
partiu, trazendo consigo suas dores e as possíveis direções a seguir, para frente ou
para trás.
Consequentemente, a determinação ontológica da filosofia como forma de
ideologia pura não a reduz, nem a desqualifica. Ao contrário, desvela sua eficácia
própria, ao dar por conhecida sua gênese e sua finalidade, indissoluvelmente ligadas
à humanidade urdida pela sociabilidade, as quais, a seu modo, mas de fato, ajuda a
construir.
Por último, nunca é demais sublinhar, as conclusões a que o filósofo húngaro
chegou a esse respeito foram fruto de uma vida inteira dedicada ao estudo e ao embate
crítico de obras literárias e filosóficas, além de ter mantido certo ou errado, aqui não
importa intensa polêmica com as correntes político-ideológicas (tanto à direita
quanto à esquerda) que dominaram o século XX, e cujos adeptos e seguidores
contumazes continuam a dominar o cenário, em nada encorajador. Certamente tais
atributos do autor aqui referido não podem ser desconhecidos ou subestimados,
independentemente dos erros, acertos, sucessos e fracassos que pontuaram sua vida.
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Como citar:
VAISMAN, Ester. O que é possível dizer sobre as relações entre filosofia e sociedade
em pleno século XXI?.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 1, pp. 277-307, jan./jun
2021.