Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - jan./jun. 2021
Ontologia do ser social: considerações sobre o
valor e o dever-ser em Lukács
*
Ana Selva Albinati
**
Resumo: O texto apresenta a análise de Lukács
acerca do valor e do dever-ser no interior da
ontologia do ser social. Identificando a gênese
dessas duas categorias puramente sociais no
processo de trabalho, o autor afirma essa esfera
como protoforma das demais formas mais
complexas da práxis social, cujas distinções
podem ser compreendidas segundo “uma
relão de identidade de identidade e não-
identidade”. Uma vez esclarecida essa relação,
Lukács dialoga com a tradição filosófica sobre
questões tais como a objetividade/subjetividade
do valor, a autenticidade histórico-social dos
valores, o caráter imanente do dever-ser, entre
outras.
Palavras-chave: Lukács; valor; dever-ser;
trabalho; ética.
Abstract: The text presents the analysis of
Lukács about the value and the ought-to-be
within the ontology of social being. Identifying
the genesis of these two purely social
categories in the work process, the author
affirms this sphere as a protoform of the others
more complex forms of social práxis, whose
distinctions can be understood in “a
relationship of identity identity and non-
identity”. Once this relationship is clarified,
Lukács dialogues with the philosophical
tradition on issues such as the
objectivity/subjectivity of value, the historical-
social authenticity of values,the imanente
character of the ought-to-be, among others.
Keywords: Lukács; value; ought-to-be; work;
ethics.
O esforço lukácsiano de maturidade
é consagrado a uma elucidação das
categorias sociais em suas interrelações, esforço que nos deixou uma extensa e ainda
inconclusa apresentação da efetiva relação entre os fenômenos abrangidos na esfera
das formações ideais, incluindo as instâncias normativas, que se orientam a partir de
valores, e a esfera da produção e reprodução da vida, como instância ontologicamente
prioritária da vida humano-social. Na sua análise sobre o valor, Lukács trata de dilemas
tais como a universalidade ou a relatividade dos valores, a objetividade ou
subjetividade dos valores, o problema da contraditoriedade entre os valores, a partir
de um tratamento desse complexo de questões, ordenado sobre a perspectiva
marxiana de compreensão da existência social.
Ele se interroga sobre a gênese das categorias do valor e do dever-ser,
*
Texto com reformulações a partir do originalmente publicado em VAISMAN, E.; VEDDA, M. (Orgs).
Lukács: Estética e Ontologia
. São Paulo: Alameda, 2014, pp.123-137.
**
Doutora pela UFMG e professora do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais.
DOI 10.36638/1981-061X.2021.v27.611
Ontologia do ser social: considerações sobre o valor e o dever-ser em Lukács
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identificando-a no ato inaugural da existência social, que é o trabalho. Da análise do
trabalho, em seu sentido mais geral, como produtor de valores de uso, Lukács extrai
uma série de esclarecimentos acerca dos atributos propriamente sociais, aquelas
categorias que se fazem presentes apenas quando da passagem do ser orgânico ao
ser social. Recusando as formulações filosóficas que atribuem um dever-ser aos seres
naturais na forma de uma teleologia de origem transcendente, o autor encaminha sua
reflexão no sentido de demonstrar a gênese do dever-ser e do valor duas categorias
estreitamente relacionadas no processo de trabalho, quando, ao lidar com a
objetividade natural, o homem projeta e realiza uma objetividade para-nós, moldando
o que se deseja a partir de um ser em si que porta determinadas potencialidades.
O valor se refere ao que é desejável enquanto ser-para-nós. É apenas no ser
social, na interrelação entre a consciência que coloca um pôr teleológico, e a natureza
minimamente conhecida em seus nexos causais, que surge o ser-para-nós. O valor,
nesse sentido, está presente no produto como idealidade que pode ser objetivada
através de comportamentos pautados por um dever-ser. Esclarecendo essas duas
categorias que fazem parte do mesmo complexo, diz Lukács:
Indissoluvelmente ligado ao problema do dever-ser enquanto categoria do
ser social está o problema do valor. Pois, assim como o dever-ser enquanto
fator determinante da práxis subjetiva no processo de trabalho pode
cumprir esse papel específico determinante porque o que se pretende é
valioso para o homem, então o valor não poderia tornar-se realidade em tal
processo se não estiver em condições de colocar no homem que trabalha o
dever-ser de sua realização como princípio orientador da práxis (LUKÁCS,
2013, p. 106).
O valor influi na posição do fim desejado, está em relação estreita com o por
teleológico e com o julgamento que se faz acerca do produto alcançado (se é provido
ou desprovido de tal valor). Já o dever-ser atua como regulador da práxis, orientando-
a rumo à obtenção daquele valor.
O valor é, portanto, uma categoria social, desconhecida nas esferas naturais, uma
vez que o valor está relacionado ao por teleológico, atividade subjetiva por excelência.
As formulações filosóficas que afirmam o valor em si, presente nos seres naturais como
uma propriedade objetiva, compartilham da ideia de uma criação transcendente que
sustente tal objetividade. Aliada a essa perspectiva, esa suposição de uma teleologia
da natureza, na qual os seres naturais, criados por uma inteligência transcendente,
possuem um valor em si e assumem papéis no interior de uma teleologia natural. A
análise de Lukács busca, ao recusar tal fundamentação filosófica, uma proposição que
responda também ao extremo inverso dessa postulação, qual seja, às posições
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filosóficas que retiram da objetividade qualquer elemento passível de valoração,
respondendo à pergunta pela origem do valor através do reconhecimento da mesma
em uma operação subjetiva tão somente. A atividade de valoração seria assim uma
operação dos sujeitos frente a uma objetividade neutra. É valioso o que o sujeito
delibera como portando valor, o que pode ser extremamente variado a ponto de se
tornar uma questão indefinível. A esse respeito, Lukács reitera que, se o valor não se
extrai de forma natural da objetividade, é na transitividade entre subjetividade e
objetividade que ele se estabelece, de forma que também a posição subjetivista acerca
da origem do valor é desqualificada pelo autor: “O valor de uso não é um simples
resultante de atos subjetivos, valorativos, mas, ao contrário, estes se limitam a tornar
consciente a utilidade objetiva do valor de uso; é a constituição objetiva do valor de
uso que demonstra a correção ou incorreção deles e não o inverso” (LUKÁCS, 2013,
p. 108).
Para tal constituição do valor de uso, o conhecimento da objetividade, de sua
causalidade natural, é de fundamental importância, de tal forma que os polos da
objetividade enquanto possibilidade natural posta e da subjetividade que coloca um
télos como produto a partir dessa possibilidade, estão intimamente conectados na
gênese do valor. Essa relação entre subjetividade e objetividade se mantém, nos
termos da relação teleologia-causalidade, desde a sua expressão na esfera do trabalho
enquanto produtor de valor de uso, aas suas formas mais espiritualizadas, mais
puramente sociais. Lukács elucida a origem do valor e do dever-ser a partir da
atividade do trabalho, detendo-se na análise do valor de uso, e toma o trabalho como
modelo para se pensar todas as outras formas de valor e de dever-ser implicadas nas
atividades mais espirituais da vida humana. No caso do trabalho, o critério do valor
está muito imediatamente colado ao que é útil: o valor de uso diz exatamente essa
condição de algo que serve à alguma finalidade. No entanto, mesmo nesse caso, a
categoria da utilidade não deriva imediatamente da natureza, não é um atributo
natural, mas, ao contrário, só pode ser apreendida como realidade na relação com os
indivíduos em situação histórico-social determinada, uma vez que o sentido do que
seja útil acompanha as transformações sociais. Como Marx nos esclarece em
O Capital,
os valores de uso são históricos, o que torna impertinente pensar em termos de valor
ao se tratar meramente do ser natural.
Em relação ao dever-ser, também é a partir do trabalho que Lukács identifica a
sua gênese: “A essência ontológica do dever-ser no trabalho dirige-se, certamente, ao
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sujeito que trabalha, e determina não apenas seu comportamento no trabalho, mas
também seu comportamento em relação a si mesmo enquanto sujeito do processo de
trabalho (LUKÁCS, 2013, p. 104).
O dever-ser atua como mediação no processo de trabalho, ajustando o
comportamento ao fim almejado e informado pelo valor. Mas o ponto mais interessante
dessa observação de Lukács é que isso não se refere apenas aos procedimentos
técnicos implicados na relação com as objetividades no sentido de torná-las “para-
nós”, mas também, e fundamentalmente, ao comportamento do indivíduo em relação
a si mesmo. O domínio de suas faculdades, o autocontrole sobre suas forças essenciais
e a disciplina frente ao processo de trabalho para atender ao fim almejado são fatores
fundamentais no processo de vida social, de interação dos indivíduos entre si, de tal
forma que Lukács afirmará a origem da liberdade como decisão entre alternativas que
se encontra primariamente na atividade do trabalho, como decorrente desse domínio
das faculdades e transformação da natureza interior dos indivíduos, como elementos
que de fato atualizam a decisão, a tornam efetiva enquanto ação no mundo.
Em suma, a análise do trabalho realizada por Lukács acompanha e desenvolve a
formulação marxiana de que os homens transformam a natureza externa e a sua
natureza interna, situando nesse momento singular do processo de socialização, a
origem das categorias mais elevadas e espirituais que definem o ser social. Como
afirma o autor, “o dever-ser do trabalho desperta e promove certas qualidades dos
homens que mais tarde serão de grande importância para formas da práxis mais
desenvolvidas; é suficiente recordar o domínio sobre os afetos (LUKÁCS, 2013, pp.
104-5).
a partir dessas poucas referências, podemos compreender o alcance de suas
considerações quando ao final do capítulo sobre o trabalho, o autor afirma a rica
significação do trabalho no processo de hominização do homem, mas também no de
humanização do homem, pois como ele mesmo reconhece, trata-se de reconhecer
muito mais coisas no processo de trabalho do que tradicionalmente se quer admitir:
Independentemente da consciência que o executor do trabalho tenha, ele,
nesse processo, produz a si mesmo como membro do gênero humano e,
desse modo, o próprio gênero humano. Poder-se inclusive dizer, de fato, que
o caminho do autocontrole, o conjunto das lutas que leva da determinidade
natural dos instintos ao autodomínio consciente, é o único caminho real para
chegar à liberdade humana real (LUKÁCS, 2013, p. 155).
Ao se debruçar sobre a análise das categorias implicadas no complexo do
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trabalho, a intenção de Lukács é reposicionar a discussão sobre o dever-ser e os
valores em sua efetiva relação com a vida humana em sua totalidade. É uma resposta
à filosofia idealista que relega a expressão material da vida a um estado natural, a uma
face de menor importância na definição do que seja o ser humano. Lukács, ao afirmar,
de acordo com a análise marxiana, a ineliminável mediação que existe entre a esfera
material e as expressões ideais em seus níveis mais sofisticados, intenta demonstrar
os equívocos das filosofias que autonomizam essas duas esferas em um ou em outro
sentido, confundindo a questão da prioridade ontológica com a dimensão axiológica.
Em sua longa explanação dedicada a essa questão, o autor não deixa de advertir que
a consideração do trabalho enquanto modelo para toda práxis social não encobre as
profundas diferenças entre essas práxis, a saber, “que entre o modelo e suas
sucessivas e mais complexas variantes uma relação de identidade de identidade e
não identidade” (LUKÁCS, 2013, p. 104).
Sua intenção era, como se sabe, a constituição de uma ética materialista, que
pudesse responder aos impasses relativos a uma hipostasiação dos valores, tidos
como eternos e universais, por um lado, e uma posição subjetivista que reduzisse o
estatuto dos valores à mera escolha subjetiva, por outro. Tinha uma profunda
consciência da dificuldade de se tratar dessa questão ao largo dos encaminhamentos
relativos à elucidação das categorias que constituem o ser social. Por isso, não raras
vezes, encontramos passagens nas quais Lukács se refere à intenção de uma melhor
abordagem dessas questões no que seria o exame da ética, o que nos foi deixado
inconcluso. De toda forma, os lineamentos deixados por ele nos permitem uma
compreensão dos fundamentos de sua reflexão ética ou, ao menos, a limpeza do
terreno sobre o qual ele pretendia realizar sua reflexão. Nesse sentido, a tematização
da gênese das categorias fundamentais das expressões normativas da vida social nos
oferece um entendimento que nos permite atravessar o conjunto de equívocos que se
encontra a respeito de categorias tais como a liberdade, o valor, o dever-ser.
O que Lukács realiza é o ancoramento ontológico da vida espiritual, realizada a
partir de determinados valores que determinam as escolhas individuais relativos aos
pores teleológicos secundários. Em outras palavras, ele esclarece os vínculos dessa
instância ainda que reconhecendo e destacando a imensa complexidade que
diferencia as ações nesse âmbito mais estritamente social das relações humanas com
a sua gênese no trabalho e com a forma determinada da reprodução da vida social. A
consideração do trabalho como protoforma das relações sociais se coloca em vista da
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emergência que se tem no processo de trabalho da configuração adequada entre
causalidade e pôr teleológico:
Teleologia e causalidade não são, como até agora aparecia nas análises
gnosiológicas ou lógicas, princípios mutuamente excludentes no
desdobramento do processo, do ser-aí e do ser-assim das coisas, mas ao
contrário, princípios mutuamente heterogêneos, que, no entanto, apesar da
sua contraditoriedade, somente em comum, numa coexistência dinâmica
indissociável, podem constituir o fundamento ontológico de determinados
complexos dinâmicos, complexos que no campo do ser social são
ontologicamente possíveis, cuja ação nessa coexistência dinâmica constitui a
característica principal desse grau do ser (LUKÁCS, 2013, p. 89).
Todas as práticas sociais, por mais complexas que sejam, se assentam sobre essa
relação entre causalidade e teleologia. A noção abstrata de liberdade cede lugar aqui
ao entendimento da liberdade enquanto decisão subjetiva individual frente a essa
relação, no sentido de procurar fazer valer determinadas posições teleológicas futuras.
Assim, a respeito da liberdade, nos diz Lukács:
A liberdade obtida no trabalho originário era, por sua natureza, primitiva,
limitada; isso o altera o fato de que também a liberdade mais alta e
espiritualizada deve ser conquistada com os mesmos métodos com que se
conquistou aquela do trabalho mais primitivo, e que o seu resultado, não
importa o grau de consciência, tenha, em última análise, o mesmo conteúdo:
o domínio do indivíduo genérico sobre a sua própria singularidade particular,
puramente natural. Nesse sentido, acreditamos que o trabalho possa ser
realmente entendido como modelo de toda liberdade (LUKÁCS, 2013, p.
156).
A gênese da liberdade se encontra na relação consciente que se estabelece entre
o por teleológico em sua conjunção com o valor , e as condições objetivas nas quais
a ação se dará, o que se traduzirá por uma práxis orientada por um dever-ser. Nas
formas mais espiritualizadas das relações humanas, essa premissa ontológica
permanece, ou seja, o valor se realiza no agir que, por sua vez, pressupõe uma
objetividade social dada. O valor, para se realizar, necessita de uma substancialidade
social, sem a qual seria apenas uma ideia vazia de sentido, sem vínculo com a
realidade.
Em consonância com o texto marxiano, Lukács enfatiza o caráter histórico da
substância social, da qual se derivam as expressões ideais. Isso equivale a dizer do
caráter social do valor e do dever-ser. Estes não exibem uma racionalidade
transcendental, nem são frutos de uma argumentação racional, a não ser que se
compreenda esta última como assentada sobre a substancialidade social concreta. O
conteúdo do dever-ser se refere a uma dada configuração social, que para se
reproduzir, coloca determinadas finalidades no que se refere ao comportamento dos
indivíduos sociais. Lukács contrapõe-se assim às filosofias idealistas que,
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negligenciando a relação entre as instâncias da vida social, autonomizam a esfera da
moralidade e pretendem enfatizar o polo da consciência sobre o da necessidade. Dessa
forma, a moral é tida abstratamente como um universo autônomo e superior às
atividades relacionadas mais diretamente à reprodução material da vida social.
Sempre que as filosofias idealistas pretendem ver aí um dualismo, elas
colocam em confronto, em geral, as funções da consciência humana
(aparentemente) apenas espirituais, inteiramente separadas (aparentemente)
da realidade material, com o mundo do ser meramente material. Não
surpreende, então, que o terreno da atividade propriamente dita do homem
ou seja, o seu metabolismo com a natureza, do qual ele provém, mas que
domina cada vez mais mediante a sua práxis e, em particular, mediante o seu
trabalho, perca sempre mais valor e que a única atividade considerada
autenticamente humana caia ontologicamente do céu pronta e acabada,
sendo representada como “supratemporal”, “atemporal”, como mundo do
dever-ser contraposto ao ser (LUKÁCS, 2013, pp. 61-2).
O pensamento idealista seria incapaz de estabelecer as relações ontológicas
reais, na medida em que inverte a ordem determinativa, priorizando e autonomizando
a instância das expressões ideais. Sustenta dessa forma artificiosa uma esfera do
dever-ser auto-gestada, posta abstratamente sobre a realidade das relações sociais, e
incapaz de se perceber enquanto momento de inteligibilidade dessa mesma realidade.
O ponto culminante dessa absolutização da razão se encontra na filosofia moral de
Kant, na qual:
o dever-ser se apresenta subjetiva e objetivamente como algo separado
das alternativas concretas dos homens; à luz de uma tal absolutização da
ratio
moral, essas alternativas aparecem como meras encarnações adequadas
ou inadequadas de preceitos absolutos, permanentes, portanto,
transcendentes ao homem (LUKÁCS, 2013, p. 101).
Lukács escapa do rigorismo kantiano que afirma o dever de forma tautológica
como a ação por respeito à lei oriunda de uma razão prática pura. O dever-ser em
Lukács encontra o seu esclarecimento em vista do por teleológico, informado pelo
valor. Essas categorias valor, por teleológico, dever-ser se encontram assentadas
em uma substancialidade social da qual retiram sua razão de ser. A diferença
fundamental entre o exercício dessas categorias na esfera da moral, em relação à esfera
da reprodução material da vida, diz respeito ao nível de complexidade e de
indeterminação que se acentua nas esferas superiores da vida social. Enquanto no
trabalho as tomadas de posição alternativa são mais simples e unívocas, “nas tomadas
de posição morais perante certas consequências da economia sobre a vida parece
dominar um antagonismo de valores” (LUKÁCS, 2013, p. 120). Em outras palavras, a
complexidade das tomadas de posição no campo propriamente dito da moralidade
está em que se trata da relação não com objetos e sua causalidade, mas da relação
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com sujeitos e situações existenciais cuja causalidade é sempre mais imprecisa e cujo
resultado é imprevisível. É a esfera dos pores teleológicos secundários que envolvem
indivíduos diversos em situações particulares diversas e que, nessa medida, costuma
dar-se em meio a valores antagônicos que expressam a particularidade dos sujeitos
envolvidos.
Essas alternativas antagônicas parecem indicar uma falta de fundamentação
objetiva para os valores, questão que levou Max Weber a cair em uma concepção
trágico-relativista, segundo a qual o pluralismo conflitual de valores é o fundamento
da práxis humana, portanto, um fundamento decisionista em última instância, que
sucumbiria ao irracionalismo. Observa Lukács que se pode identificar, no tratamento
reservado à problemática dos valores, basicamente duas posições filosóficas, que
seriam a do relativismo histórico e a do dogmatismo lógico-sistemático. Enquanto a
primeira reduz os valores à uma expressão casuística, ligados de maneira linear à uma
situação histórica determinada, a segunda tende a homogeneizá-los num sistema
formal, que culmina na sua “desistoricização”. Segundo sua análise, o
tertium datur
para essa antinomia se encontra na concepção de “substancialidade” do processo
histórico, que “se conserva em essência, mas de modo processual, transformando-se
no processo, renovando-se, participando do processo” (LUKÁCS, 2012, p. 413). Nessa
concepção, os valores perdem a sua pretensão de eternidade, mas, por outro lado, se
justificam, em virtude de, autenticamente, corresponderem ao curso do processo
social. Em relação ao aparente pluralismo de valores, observa Lukács:
Isso, no entanto, é apenas uma aparência. Com efeito, atrás dele o se oculta
a própria realidade, mas, por um lado, a permanência na imediatidade com a
qual se mostram os fenômenos e, por outro, um sistema hiperracionalizado,
logicizado, hierárquico, dos valores. Esses extremos igualmente falsos
produzem, quando são postos em marcha de maneira autônoma, ou um
empirismo puramente relativista ou uma construção racionalista não aplicável
adequadamente à realidade; na medida em que um é relacionado com o
outro, nasce a aparência de que a razão moral é impotente diante da
realidade (LUKÁCS, 2013, p. 121).
Aqui, tocamos em um aspecto fundamental da análise lukácsiana. Primeiramente,
torna-se compreensível todo o seu esforço em recuperar o método de investigação
marxiano, recuperar o vínculo entre essência e fenômeno para, a partir daí, pavimentar
o caminho que permite atravessar as dicotomias que se erguem na história da filosofia,
aqui, especificamente, em torno da questão da escolha moral. A passagem acima é
exemplar desse procedimento: o antagonismo de valores é compreendido por Lukács
não enquanto uma realidade inapreensível, de fundo irracionalista, e sim como uma
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expressão fenomênica dessa realidade que se explica pela própria pluralidade e
antagonismo concretamente existente no ser social. Para não se cair no empirismo
relativista, nem no seu extremo que seria uma hiperracionalização dos valores
considerados subsistentes por si mesmos, é preciso compreender a autenticidade de
determinados valores a partir da base social que lhes origem: “A fonte autêntica
dessa gênese é, muito mais, a transformação ininterrupta da estrutura do próprio ser
social, e é dessa transformação que emergem diretamente os pores que realizam o
valor” (LUKÁCS, 2013, p. 122).
O reconhecimento da gênese social dos valores permite a compreensão da
contradição entre valores surgidos da mesma realidade social. Essa contradição
objetiva está relacionada aos antagonismos da reprodução social como um todo, na
qual se encontram separados e, por vezes, contrapostos os interesses dos indivíduos
em sua particularidade e em sua constituição como generidade para si. Lukács se refere
nesse ponto à própria lógica da reprodução da ordem econômica que inclui não
um antagonismo entre “a essência objetiva de seu processo e suas respectivas formas
fenomênicas na vida humana, mas faz do antagonismo um dos fundamentos
ontológicos do próprio desenvolvimento em seu conjunto” (LUKÁCS, 2013, p. 121).
Isso leva, no plano da ideação dos valores, a dois fenômenos aparentemente
contraditórios: em primeiro lugar, uma aparente contraposição entre a ordem moral e
a ordem econômica, aspecto examinado por Marx nos
Manuscritos econômico-
filosóficos.
Nesse momento, Marx nos aponta que, de maneira aparentemente
paradoxal, os valores normativos a um tempo correspondem e se contrapõem à
ordem econômica, uma vez que os valores contrapostos se exercem nos limites da
própria ordem econômica.
Lukács chama atenção para o fato de que, no que se refere à essência do
processo, temos uma coercitividade que Marx tematizava dizendo de uma
objetividade econômica que “arrasta os indivíduos sob pena de ruína”. Essa
objetividade, por si só, coloca questões de ordem moral para os indivíduos em suas
decisões cotidianas. Enquanto no plano da essência, a contradição se instala na forma
do antagonismo social, de forma que a evolução humana se sob a marca de uma
contraditoriedade essencial, essa fonte de conflitos se amplifica no plano fenomênico,
assumindo formas variadas que tocam a vida cotidiana de modo desigual, através de
estranhamentos diversos, e que recebe dos indivíduos as mais diversas respostas.
Ontologia do ser social: considerações sobre o valor e o dever-ser em Lukács
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Uma vez retida a significação adequada do remetimento que Marx faz da esfera
dos valores não econômicos à base produtiva da existência social, Lukács não recai na
interpretação reducionista que trata as formas de consciência como meros
epifenômenos da infraestrutura. Ao contrário, o surgimento de valores sociais diversos
e contraditórios entre si atesta a complexidade da constituição das esferas que
compõem o conjunto das formações ideais, e que expressam parcelas do conteúdo
social e das relações sociais postas por um dado modo de produção. Em sua expressão
fenomênica, tem-se a aparência de que os valores não portam uma necessidade em si,
o que leva à suposição de que cabe aos indivíduos decidirem em meio a uma disputa
caótica de valores. Porém, diferentemente disso, Lukács identifica que as contradições
entre as instâncias reguladoras das relações sociais e a base econômica não significam
uma falta de correspondência, que permitiria a consideração autônoma dos valores,
tal como se verifica na postura idealista, mas, ao contrário, essa relativa autonomia
constitui-se como um elemento necessário na reprodução da ordem social.
Lukács desenvolve ainda essa questão ao retomar a relação singular-particular-
universal no que se refere aos antagonismos presentes nas possibilidades da escolha
moral. Aqui, tem-se a compreensão do autor acerca da ética enquanto ultrapassamento
da particularidade rumo à universalidade do gênero. Reconhecendo a objetividade da
contradição social entre indivíduo e gênero, o autor aponta, no entanto, o papel da
subjetividade em relação à sua condição particular, que se coloca entre a fixação
imediatista na particularidade ou o agir consciente com vistas à superação do
aprisionamento na particularidade, o que significa a passagem do gênero em si ao
gênero para si.
Um outro aspecto merece ser apontado aqui: na mesma passagem acima citada,
ao se referir à postura dogmático-logicizante e à postura relativista acerca do
pluralismo de valores, Lukács se vale da seguinte expressão: “Quando se os relaciona
entre si, apresentam a aparência de uma impotência da razão moral frente à realidade.”
O que é curioso é que ele se exprime usando uma expressão lebre de Marx: “A moral
é a impotência posta em ação” (MARX; ENGELS, 1974, p. 307),
porém, com um sentido
diferente. Enquanto para Marx, a questão se refere à situação paradoxal da moral, aos
limites da moral frente à existência social, em Lukács a impotência não se refere
propriamente à moral em si, mas tal impotência seria uma aparência a ser desfeita
atendo-se ao entendimento ontológico do fenômeno da moralidade.
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Se atentarmos a essa distinção entre os dois autores, perceberemos que se trata
de duas perspectivas que, embora exibam uma série de consonâncias, nesse ponto
apresentam diferenças significativas. Marx constata a situação paradoxal da moral, na
medida em que esta “toda vez que luta contra um vício, perde” (MARX; ENGELS, 1974,
p. 307), se deparando com a irresolução via moral (e política) para os impasses da
sociedade capitalista, apontando, consequentemente, para uma resolução social.
Lukács, ainda que não negligencie a vinculação entre a objetividade social e as
possibilidades individuais, assegura o lugar da ética no interior das atividades
humanas como fundamentalmente a possibilidade da transcendência da
particularidade rumo à construção consciente do gênero para si. O caráter da
individualidade é enfatizado em Lukács:
Embora seja, no fundo, óbvia a permanência do estranhamento como
fenômeno social, e que, por isso mesmo, em última análise ele possa ser
superado por vias sociais, para a condução da vida de uma pessoa, assume
sempre o lugar de um problema central quanto à realização ou ao fracasso
do desenvolvimento pleno da personalidade, quanto à superação ou à
persistência do estranhamento na própria existência individual (LUKÁCS,
2010, p. 244).
Nesse ponto, o encaminhamento do autor em direção à constituição de uma ética
constitui um voo-solo em relação a Marx, na medida em que este trabalha o tema da
moralidade objetiva, enquanto expressão ideal que dota de inteligibilidade as relações
concretas entre os indivíduos, mas o desenvolve os elementos de uma ética. O
encaminhamento de Lukács, nesse sentido, se apresenta como uma caminhada original
na qual a relação objetivação-alienação-estranhamento é trabalhada de forma diferente
da qual se encontra nos textos de Marx. Importa sublinhar que, no âmbito em que se
registra a reflexão de Lukács, nos traços mais gerais do ser social, ele reflete a partir
da condição do trabalho como produção de valor de uso, o que autoriza a distinção
entre as categorias
Entäusserung
e
Entfremdung
, ao passo que Marx aproxima essas
categorias na medida em que reflete sobre o trabalho sob o capital. Embora não seja
esse o espaço adequado para tratar dessa questão complexa, a forma peculiar como
Lukács compreende a alienação (
Entäusserung)
, como exteriorização que retorna
modificando o sujeito, parece apontar para uma tematização que abre a possibilidade
de uma ética, enquanto o que encontramos em Marx é uma elucidação mais objetiva
da relação entre alienação e estranhamento, mediada pela condição específica da
compra e venda generalizada da mercadoria força de trabalho.
Uma outra questão significativa quando se pensa as considerações de Lukács
Ontologia do ser social: considerações sobre o valor e o dever-ser em Lukács
Verinotio
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acerca dos valores seria em relação à autenticidade e à transformação destes. Vimos
como, a respeito do valor de uso, o autor registra que o critério do valor está associado
à sua utilidade. O valor não pode obter-se imediatamente das coisas naturais, mas só
na medida em que se torna útil para a vida humana. Isso vale tanto para os valores de
uso quanto para os valores mais espirituais. Quanto a esse aspecto, poderíamos nos
colocar o seguinte problema: como dizer de uma gênese social dos valores, sem colar
essa nese ao imediatismo de uma prática social marcada pela fragmentação, pela
oposição da vida civil, pela exigência pragmática da qual brotaria o sentido do útil, e
portanto, do valor? Como vincular o útil, que se refere ao que é (no interior de uma
existência social dada) a um dever-ser (que pressupõe uma normatividade) através da
definição do que é “valor” (sendo que este se gesta na relação subjetividade-
objetividade, portanto, em uma efetividade dada)? Em suma, em que Lukács se
distingue de uma perspectiva pragmatista?
Podemos dizer que Lukács se distingue da postura pragmatista basicamente ao
resguardar e tematizar a diferença entre aparência e essência e ao distinguir, a partir
daí, a diferença entre o processo objetivo da evolução humano-social e sua apreciação
axiológica. No que se refere aos valores morais, o deslocamento do sentido do útil
está vinculado à pretendida superação da generidade em si em nome da generidade
para si, o que transcende a mera utilidade imediata dos valores. Ou seja, os valores
podem entrar em conflito em vista de interesses mais ou menos imediatos, aqueles
que dizem respeito à esfera fenomênica mais vulnerável ao imediatismo da vida
cotidiana, e aqueles que dizem respeito à transcendência da particularidade rumo à
generidade humana. O útil, e portanto, a questão da objetividade do valor, se confirma
pela afirmação da posição teleológica, que se traduz em atos de alienação, que em
sua totalidade, definem o caráter de um indivíduo. Mas longe de ser um mero
voluntarismo, ou de um apelo piedoso, o autor chama a atenção para o fato de que a
posição teleológica diz respeito às objetividades em questão, senão redundaria em
quimera. Essa posição teleológica, que na esfera do trabalho, diz respeito à
causalidade natural, nas esferas mais espirituais, diz respeito à essência genérica do
homem, em última instância. Donde o útil se eleva a uma dimensão que escapa ao
pragmatismo.
De fato, o reconhecimento da utilidade como categoria central no
estabelecimento do valor, ou seja, o valor se refere àquilo que é desejável, o que
guarda relação estreita com o que é útil, seja no nível mais restrito das situações
Ana Selva Albinati
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individuais, seja no âmbito mais alargado da reprodução social. No entanto, isso não
significa dizer da admissão da utilidade retirada acriticamente das condições empíricas
da existência humano-social. Em outras palavras, o remetimento ao solo ontológico do
qual brotam os valores não significa a capitulação empirista às condições da
reprodução social. Nesse sentido, o que é útil transcende a empiria e se coloca no
patamar mais elevado do que sejam as verdadeiras necessidades humanas, e mais que
isso, às verdadeiras possibilidades humanas, que dariam passagem da generidade em
si à generidade para si. Com isso, tocamos em um último aspecto da análise de Lukács
acerca dos valores que precisa ser ressaltado nesse momento: o caráter de sua análise
é objetivo-ontológico, o que significa dizer, como ele mesmo o faz em várias
passagens, que remeter a esfera dos valores à sua base econômica não significa em
momento algum um procedimento axiológico. Trata-se, o somente, de identificar a
gênese e a relação entre as instâncias do ser social, o que não significa rebaixar o
significado dos valores na condução da vida humana. Ao contrário, a identificação de
tal gênese não retira o sentido do elemento moral e sim o torna mais compreensível.
Sobre o elemento valorativo, ele observa: Se, no entanto, esse momento é
absolutizado de maneira improcedente, cai-se numa concepção idealista do processo
histórico-social; se simplesmente ele é negado, incorre-se naquela carência de
conceitos que se encontra indefectivelmente presente na praticista
Realpolitik
(LUKÁCS, 2013, p. 154).
No que se refere à esfera das relações interpessoais, tem-se que os traços
individuais dos homens singulares imprimem nuances significativas do ponto de vista
moral e social. A deliberação individual a partir da eleição de um valor frente a outro
torna-se um elemento essencial na reprodução ou transformação de uma
substancialidade social. O apreço à dimensão ética transparece ao longo da obra do
autor, para o qual “todas as valorações que alcançam validade nessas decisões
subjetivas estão ancoradas na objetividade social dos valores, na importância destes
para o desenvolvimento objetivo do nero humano” (LUKÁCS, 2013, p. 154).
Referências bibliográficas
LUKÁCS, G.
Para uma ontologia do ser social.
v. I. São Paulo: Boitempo, 2012.
LUKÁCS, G.
Para uma ontologia do ser social.
v. II. São Paulo: Boitempo, 2013.
LUKÁCS, G.
Prolegômenos para uma ontologia do ser social
. São Paulo: Boitempo,
2010.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.
A sagrada família
. 2. ed. Lisboa: Presença; Martins
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Fontes, 1974.
Como citar:
ALBINATI, Ana Selva. Ontologia do ser social: considerações sobre o valor e o dever-
ser em Lukács.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 1, pp. 338-351, jan./jun 2021.