Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Goethe: para além das aparências
Myreli Xavier*
VEDDA, Miguel.
Leer a Goethe
. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Quadrata, 2015.
192 p.
Leer a Goethe
, de Miguel Vedda, integra a
coleção
Llaves de lectura
, que, como o próprio
nome sugere, busca oferecer ao leitor
ferramentas que sejam úteis tanto para
aproximação inicial como para aprofundamento
em obras de grandes autores da literatura. A
sutileza do mote desta coleção não deve, no
entanto, induzir-nos a erro: trata-se
precisamente de portas de entrada e de chaves
no plural que se propõem a abrir as obras
de cada autor em múltiplas direções, conforme
assinalado pelo próprio editorial. Em
consonância com esse objetivo, no número
dedicado a Goethe, o leitor não encontrará uma
chave de leitura unívoca que o colocará em
contato com um todo fechado e pleno de
sentido. Muito pelo contrário.
Ocorre, já no primeiro capítulo, um combate
devidamente fundamentado às leituras que
ofuscam as ambiguidades e se traduzem em
uma sistematização homogeneizante e inflada
de coerência tanto da vida como da obra do
escritor alemão, apresentando-o como uma
personalidade harmônica, dotada de unidade
orgânica, e cujas obras também possuiriam essa
suposta característica, refletindo, assim, um
trajeto trilhado de forma consciente, e sempre
ascendente, no desenvolvimento de um gênio
rumo ao aperfeiçoamento pessoal à
semelhança do modo com que os protagonistas
de obras como
Fausto
e
Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister
foram
vulgarmente recepcionados pelo grande
público da época.
Tais leituras simplificadoras e unilaterais,
que seguem, em larga medida, vigentes,
concentram-se apenas em alguns aspectos e
não vão além da superfície mais aparente,
colocando em risco a riqueza do legado
goethiano. Nesse sentido, a proposta de Vedda
é, em linhas gerais, justamente promover um
resgate da vida e da obra do autor de
Fausto,
*Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com financiamento
concedido pela Fapemig.
E-mail
: xavier.myreli@gmail.com.
e os motivos pelos quais ele é merecedor dessa
(laboriosa) empreitada vão sendo expostos
paulatinamente ao longo de seu livro.
Se, por um lado, são realmente
apresentadas ao leitor algumas chaves
interpretativas no sentido de esclarecer
alguns
Leitmotivs
, figuras recorrentes e
elementos mitológicos presentes nas obras de
Goethe, além de explanações sobre
acontecimentos históricos e biográficos , por
outro lado, essas leituras lançam luz justamente
sobre a heterogeneidade, as contradições e os
sinais da história acerca dos quais encontramos
vestígios na vida e na produção literária do
escritor alemão, mas que não foram expressos
ali de maneira direta, emotiva ou autobiográfica
fosse assim diriam respeito apenas a um
indivíduo singular, quando muito a um pequeno
grupo, e não integrariam o patrimônio cultural
da humanidade. É justamente na configuração
estética das “contradições vivas de seu tempo”
dos problemas atinentes a todos os homens,
quer tenham consciência deles ou não que se
encontra sua riqueza e fecundidade. Esses
aspectos, que hoje podemos acessar por meio
de seus escritos, articulam a importância de se
resgatar Goethe, conforme nos revela Vedda
(2015, p. 14-15) e também sinalizam a
importância do esforço empreendido pelo
catedrático argentino.
Como o próprio autor expõe logo na
abertura do primeiro capítulo, trata-se de uma
leitura própria solidamente fundamentada,
devemos acrescentar da obra do escritor
alemão, que não tem o propósito de oferecer
uma visão coerente e exaustiva a seu respeito.
Tal tarefa seria impossível, o apenas pelo
caráter predominantemente geral e introdutório
da proposta, mas também e principalmente
porque se trata, segundo suas próprias
palavras, de uma obra “especialmente
inapropriada para um tratamento sistemático,
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.630
Goethe: para além das aparências
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unitário e generalizador” (VEDDA, 2015, p.
11)
1
, nos moldes do que foi costumeiramente
conferido por vários intérpretes.
Leer a Goethe
inicia-se, portanto, com esse
laborioso esforço de desarticular leituras
homogeneizadoras, que contribuíram para
converter Goethe em um mito, uma lenda.
Desse modo, valendo-se do material produzido
por críticos e biógrafos relevantes, da
correspondência pessoal do escritor alemão,
bem como de sua vasta produção literária,
Vedda se dedica a demonstrar que quando se
efetua uma leitura honesta e objetiva do
conjunto, sem privilegiar apenas o que
impressiona e o que se harmoniza com
interesses e pontos de vista próprios ou pré-
estabelecidos, resulta clara a incorreção das
referidas interpretações. Por outro lado,
procura destacar também a proximidade dessas
interpretações unilaterais com posturas de
matizes variados: a pequeno-burguesa,
protestante e
middle-class,
que degrada os
escritos goethianos a “uma sorte de catecismo
moral simplificador e coerente”, supostamente
alinhados à moral da classe média; a estilização
idealista, que trata de “afirmar uma unidade
perfeita entre vida e obra e, por sua vez, entre
ambas e o desenvolvimento intelectual da
Alemanha” e, por último, porém próxima a esta
última, a canonização nacionalista, que converte
Goethe em herói nacional, pai da nação, líder
(
Führer
) “de uma aristocracia de espíritos”
estratégia ideológica fascista que perdura até
hoje.
Por vias diversas, Vedda observa que se
buscou uma unidade orgânica no interior das
obras de Goethe e também na própria vida do
autor para a qual sua autobiografia contribuiu,
em alguma medida que na realidade não
existiu. Encontramos, de fato, algumas
continuidades e elas são pontuadas pelo autor
da análise. Mas ele chama atenção para o fato
de que uma leitura fidedigna não pode se furtar
a reconhecer a existência no geral muito maior
e mais significativa das irregularidades e
dissonâncias, menosprezadas ou obscurecidas
por correntes de orientações distintas, ainda
que, em alguma medida, afins.
Tendo em vista os objetivos e limites de uma
resenha, não cabe reproduzir aqui todo o
trajeto por meio do qual o autor não leva a
cabo as referidas críticas como demonstra e
sustenta suas teses. Para conhecê-lo, exortamos
a leitura desse texto, no qual o leitor será
introduzido a um Goethe multifacetado, que
inovou praticamente em todos os gêneros
literários com os quais entrou em contato. Um
indivíduo que, a despeito do grande artista que
1
Todas as traduções são da autora da resenha.
foi, possuía uma personalidade vacilante, era
incerto de sua própria capacidade criadora,
insatisfeito com a recepção de suas obras e
buscava um ponto de solidez ao qual se agarrar
em meio ao caos: “um homem que se
esforçado muito” e para o qual a escrita não se
realizava de forma fácil e espontânea.
Nosso principal objetivo aqui será apontar
alguns dos traços do Goethe de Miguel Vedda
que sobressaem nos três capítulos posteriores
à sua crítica inicial, que acabamos de esboçar.
Em termos de estrutura, pode-se dizer, em
linhas gerais, que cada um deles é dedicado
porém, não de forma rígida e hermética a um
período da vida do escritor alemão, começando
por sua juventude. Tendo em vista a
impossibilidade de abarcar, e muito menos de
sistematizar, toda a produção de Goethe,
Os
sofrimentos do jovem Werther
,
Torquato Tasso
e
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister
são as principais obras analisadas por Vedda.
Ainda que rios outros títulos sejam
incorporados à discussão e examinados, em
maior ou menor grau, com grande domínio e
propriedade, estas obras são representativas
de diferentes fases da produção literária do
escritor alemão e podemos dizer que
constituem uma espécie de fio condutor das
análises empreendidas pelo catedrático
argentino em cada um dos referidos capítulos.
O objetivo último é aquele ao qual fizemos
referência: resgatar o autor de
Fausto
das
banalizações e restituir laboriosamente a
complexa riqueza e multiplicidade de sua vida
e de sua obra, “que a pseudocultura pequeno-
burguesa insiste em lhe subtrair” (VEDDA,
2015, p. 182).
No capítulo dedicado aos anos de juventude
do escritor alemão, destacam-se a abordagem
e a caracterização do movimento
Sturm und
Drang
, no seio do qual Goethe começou a
escrever, além da influência do sentimentalismo
e de autores como Lessing e Herder.
Combatendo mais uma vez teses comumente
reproduzidas, Vedda se empenha em
demonstrar que, por mais importante e decisivo
que tenha sido o papel de Herder para a
formação do jovem escritor como de fato foi
, as raízes de sua visão de mundo e de sua
literatura encontram-se em um período anterior
ao do encontro com o mentor, quando se
dedicou ao estudo da “filosofia emanativa” ou
do
systema emanativum
.
Conforme esclarece o professor argentino,
esse sistema “propunha uma cosmovisão na
qual o valor dos elementos singulares depende
da função que eles possuem dentro da
totalidade. Central é a categoria da
Myreli Xavier
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polaridade
(VEDDA, 2015, p. 53). Goethe, que
tinha grande antipatia pelas sistematizações e
pela ideia de sistema e que a despeito de
todas suas observações nesse sentido acabou
sendo vítima delas
2
, não assimilou essa
filosofia como um sistema fechado, mas sim
como um ponto a partir do qual elaborou uma
“cosmovisão pessoal”, que ele mesmo veio a
designar, mais tarde, como sua “religião
pessoal”.
Detemo-nos nesse episódio porque,
conforme defende Vedda, é nesse período que
começa a ser elaborada a ideia da polaridade
como traço essencialmente humano, e crucial
para a sua compreensão. Essa ideia
desempenhará um papel muito importante na
conformação das obras goethianas, e podemos
dizer que é uma das grandes responsáveis por
sua fecundidade. Ainda segundo o autor de
Leer a Goethe
, traços da assimilação pessoal
dos conteúdos da referida filosofia podem ser
vistos desde os seus escritos de juventude, nos
quais ocupa lugar de destaque justamente a
polaridade: forças luciferinas e ganimédicas,
concentração e expansão e sístole e diástole
como impulsos contrários que confluem para a
geração do pulso da vida. No entanto, isso é
configurado sem que se realize nem uma
depreciação e uma censura; nem uma
sobrevalorização de um único polo,
fundamentada em uma moral abstrata e
normativa. O que se almeja é o estabelecimento
de uma reconciliação, um “equilíbrio
superador”. Ambos os polos possuem “valor
relativo, porém inquestionável”, de modo que,
no interior das forças luciferinas, são
identificados traços como a concentração no
mundano, o impulso individualista, o
ensimesmamento, a tendência para a ação e a
faculdade criadora (por vezes representada
pelo fogo, elemento luciferino que aparece em
algumas obras); ao passo que no polo
ganimédico o reconhecidas, por exemplo, a
aspiração a uma fusão com a totalidade, a
elevação ao espiritual e a melancolia que, em si
mesma, é ambígua e pode ser tanto mórbida e
patológica, como divina e positiva. Uma
multiplicidade e uma variação caleidoscópica
destes e de outros traços aparecem
configuradas em vários personagens da
literatura goethiana e por vezes no interior
2
El modo más ingenioso de volverse tonto es a través de un sistema
: esta frase de Shaftesbury, que
en el verano 1774 copió Goethe en el cuaderno de un amigo, podría funcionar como epígrafe de su
producción literaria y científica; en ella encontramos una continua fascinación por la multiplicidad y
concreción naturales, y una crítica al reduccionismo. Esto hace que resulte especialmente absurdo el
empeño en volverse ingeniosamente tonto rastreando en el
Fausto
y el
Wilhelm Meister
una unidad
ausente. Pero, como vimos, el furor unificador no se circunscribió a la obra, sino que se extendió a la
propia vida del autor, en la que se pretendió ver también algún tipo de coherencia orgánica.(VEDDA,
2015, p. 19)
mesmo de alguns que, não raro, influenciam-
se mutuamente em um complexo
(des)equilíbrio.
Paralelamente às análises literárias, o
contemplados também acontecimentos
históricos e biográficos que impactaram a
formação e o desenvolvimento do escritor
alemão, acerca dos quais encontramos vestígios
em sua produção literária o período em
Weimar e a vida ativa, na qual se gestou o que
se conhece como o objetivismo em Goethe, o
convívio amistoso com Charlotte von Stein, a
relação amorosa, à época escandalosa, com
Christiane Vulpius, a amizade com Schiller, a
Revolução Francesa etc. Vários desses
acontecimentos adentram o universo dos
personagens goethianos não como expressão
direta das vivências e sentimentos de seu autor,
mas sim de maneira muito mais diversificada,
sutil e complexa, de modo que as posições dos
protagonistas não são necessariamente as de
seu criador. Muitas delas ele, inclusive,
desaprova. Por isso, lê-lo nesta chave
constituiria não apenas uma banalização, mas
principalmente a esterilização de seu caráter de
memória do gênero humano.
O Goethe que Miguel Vedda introduz ao
leitor é um exímio observador da realidade de
seu tempo, com grande habilidade para o
distanciamento, a auto-observação e a
autoironia, aspectos por vezes ausentes em
alguns protagonistas, como Werther, que
chegou a ser diretamente identificado pelo
grande público da época com o próprio Goethe,
em uma “confusão entre ficção e realidade”
(VEDDA, 2015, p. 61-62). Goethe era alguém
com excepcional capacidade para reconhecer e
configurar a situação objetiva, para “abordar
um problema a partir de perspectivas
contrapostas, sem outorgar a nenhuma a
verdade definitiva” (VEDDA, 2015, p. 95). Um
homem versado em política e literatura que
destacou vestígios da Modernidade em seus
personagens, repartindo entre eles doses
equilibradas de razão e desrazão, de acerto e
de erro (VEDDA, 2015, p. 107).
Associada a isso encontra-se outra
característica importante do escritor alemão,
que sobressai ao longo da exposição de Vedda:
muito embora seja capaz de identificar
precocemente, podemos dizer alguns
Goethe: para além das aparências
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malefícios e problemas nodais da Era Moderna,
submetendo-os a uma crítica precisa e acurada
(as instituições impessoais, que parecem ganhar
vida própria e que se tornam hostis aos
homens; a redução dos indivíduos às suas
funções; o individualismo; o excesso como
medida, a veloz marcha
velociférica
em que
caminhava a modernidade etc.), Goethe não é
um romântico que idealiza um retorno ao
passado. Apesar dos graves problemas, ele o
perde de vista a existência de progressos e de
potencialidades que não devem ser
abandonadas, nas quais repousa uma pequena
centelha de esperança, praticamente utópica,
de dias melhores. Ainda que, enquanto
observador agudo e preciso da modernidade
estivesse desencantado com a possibilidade
efetiva da atualização dessas potências naquele
momento, o escritor alemão que, como
destaca Vedda (2015, p. 184), “não pensava de
forma deliberada e consciente em termos de
emancipação humana” – soube enxergar “tanto
seus aspectos bárbaros e bestiais como suas
débeis, porém reais potencialidades de
liberação”.
Extremamente hábil para o reconhecimento
e a configuração da realidade de seu tempo,
para perceber seu caráter extremamente
fragmentário oposto à unidade e harmonia do
período clássico e seu potencial tanto
negativo como positivo lembremo-nos da
ideia da polarização que apontamos , o
escritor alemão não capitula diante dos
problemas de sua época. Não cai na melancolia
mórbida e no lamento romântico, infrutíferos
para a ação, mas também não é um defensor
cego da causa dos modernos, nem celebra
incondicionalmente o triunfo do indivíduo.
Tampouco se aproxima de uma postura filisteia,
de adequação sem reservas à barbárie que se
instaurava. A mediação e o equilíbrio evocado
entre diferentes polos, bem como a esperança
de alcançá-lo, não adquire, no entanto,
contornos definidos, de modo que uma solução
unívoca para os problemas não é objetivamente
apresentada. Conforme observa Vedda, a obra
é muito mais frutífera na colocação das
questões do que no fornecimento de respostas.
E isso não constitui necessariamente uma falta,
pois, de fato, “a literatura cumpre muito melhor
com seu propósito quando configura de
maneira complexa um problema do que quando
se propõe a avançar soluções” (VEDDA, 2015,
p. 178). Ainda, o fato de permanecer vaga
quanto a este aspecto serve também como
indício de uma recusa às soluções ingênuas e
simplificadoras que, perante a complexidade do
problema e da variedade de elementos
envolvidos, acreditam que a “resposta certa” é
aquela que busca preservar o que é bom” e
eliminar o que é “ruim”, a fim de otimizar o
resultado à semelhança do otimismo filisteu
de Wagner, assistente de
Fausto
.
Antes de prosseguirmos, é preciso fazer
uma importante advertência: os traços do
Goethe descortinado por Miguel Vedda que
temos destacado até agora podem ter passado
a errônea impressão de que o catedrático
argentino estivesse tentando transformar o
autor de
Fausto
em um protomarxista,
restringindo a compreensão deste ao âmbito
dos debates estéticos travados nessa corrente.
Não se trata disso. Embora algumas afinidades
pontuais com o que posteriormente pensou
Marx sejam assinaladas no decorrer das
análises, Vedda reconhece igualmente a
existência de divergências que não podem ser
ignoradas. Aqui também é realizado o
referido esforço de uma apreensão fiel do
conjunto que não busca suprimir a diversidade
e os elementos que se mostrariam
inconvenientes caso se pretendesse realizar tal
conversão e identificação direta o que não é
o caso.
Passando, finalmente, ao período de
maturidade do escritor alemão, no qual se
encontram obras como
Os anos de aprendizado
de Wilhelm Meister
e o segundo
Fausto
,
encerraremos com alguns apontamentos sobre
o que ficou conhecido como
Altersstil
: o estilo
de velhice de Goethe. Esse é um período em
que se observam a concisão estilística, o
realismo, a propensão à ironia e a composição
de obras abertas. Ele é caracterizado, nas
palavras do autor da análise, por “sua
enigmática abstração, sua renúncia a toda
referencialidade direta, sua extrema distância
de qualquer expressão emocional imediata”
(VEDDA, 2015, p. 123).
Há, porém, ainda outro traço muito
importante desse período, para o qual
procuramos chamar a atenção no título desta
resenha. Se, por um lado, nosso título faz uma
referência indireta à crítica e à incorreção da
mitificação e aparente unidade orgânica entre a
vida e a obra do escritor alemão, por outro lado,
ele está relacionado sobretudo ao fato de que
um dos principais traços de seu estilo de velhice
é a propensão ao genérico e ao essencial,
expressos por Vedda (2015, p. 124) como a
“vontade de remeter aos princípios essenciais
do real, por trás das fantasmagóricas
aparências”.
Conforme apontado pelo professor
argentino, o interesse prioritário pelo genérico
possui, no caso de Goethe, uma afinidade com
a identificação de traços essencialmente
humanos como a “faculdade ética presente
como latência” apenas entre os seres humanos
e totalmente ausente na natureza, assim como
os ideais de justiça e felicidade. Esses traços
essenciais são representativos de “uma débil
Myreli Xavier
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força salvadora” perante a fragmentação da Era
Moderna e encerram em si a esperança em uma
possibilidade remota, sem contornos
objetivamente definidos que não se
apresentava como algo imediatamente
realizável para o escritor alemão no potencial
de reconciliação do gênero humano com a
natureza e consigo mesmo
3
.
Uma marca importante de suas obras,
sobretudo daquelas da maturidade, é que
Goethe toca na essência; toca em problemas
nodais do processo de civilização e em
questões éticas importantíssimas.
Configurando-os com agudeza e precisão, ele
não lhes conferiu um tratamento dogmático, no
plano transcendental, mas sim no plano
histórico e social ao qual esses dilemas
pertencem e de onde efetivamente provêm ,
com a convicção de que é neste plano, ou seja,
no âmbito terrenal, que os preceitos éticos e as
convicções morais devem ser colocados à
prova, testadas e validadas (VEDDA, 2015, p.
183). Essa refiguração artística ímpar bem
como o tratamento social desses temas,
constituem, segundo o autor de
Leer a Goethe
,
a maior riqueza de seu legado e também o
motivo pelo qual ele passou a integrar a
memória do gênero humano. Por tudo isso é
que Miguel Vedda se dedicou à laboriosa e
necessária tarefa de resgatá-lo das
banalizações pequeno-burguesas, e que
recomendamos sua leitura atenta.
Como citar:
XAVIER, Myreli. Goethe: para além das aparências [resenha].
Verinotio
, Rio das Ostras,
v. 27, n. 2, pp. 461-464, mar. 2022.
3
Acabamos de destacar o fato de que Vedda considera incorreto e tendencioso estabelecer uma
identificação direta com as posteriores reflexões marxianas, neste caso, com aquelas sobre a essência
genérica do ser humano [
Gattungwesen
].