Lukács diante da estetização do direito
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 58-88 - mar. 2022| 67
da personalidade dos indivíduos. Mas, para que se compreenda isto, é necessário
explicitar a gênese do direito e do modo pelo qual, objetivamente, ele depende de
certos especialistas.
Ao falar das comunidades primitivas, em grande parte em diálogo com Gordon
Childe, diz Lukács em
Para uma ontologia do ser social
que:
Por mais que, naquelas condições primitivas, as pessoas singulares, em
situações vitais, tomavam espontaneamente decisões em média mais
parecidas do que posteriormente, por mais que, na igualdade de interesses
que naquele tempo ainda predominava, tenha havido menos razões objetivas
para resoluções contrárias, sem dúvida houve casos de fracasso individual,
contra os quais a comunidade precisou se proteger. Assim, teve de surgir
uma espécie de sistema judicial para a ordem socialmente necessária, por
exemplo, no caso de tais cooperações, muito mais no caso de contendas
armadas; porém, ainda era totalmente supérfluo implementar uma divisão
social do trabalho de tipo próprio para esse fim; os caciques, os caçadores
experientes, guerreiros etc., os anciãos podiam cumprir, entre outras, também
essa função, cujo conteúdo e cuja forma já estavam traçados em
conformidade com a tradição, a partir de experiências reunidas durante longo
tempo. (LUKÁCS, 2013, p. 230)
A dissolução das comunidades traz a contraposição das pessoas singulares entre
si e diante do interesse coletivo. Trata-se do processo em que o interesse da
comunidade começa a destoar dos individuais. Este processo está na base da gênese
do direito.
Ele já traz consigo uma espécie de sistema judicial, mas ainda não leva à uma
divisão social do trabalho de tipo próprio. Ou seja, inicialmente, este tipo de sistema
judicial ainda não traz os especialistas que posteriormente serão necessários ao
desenvolvimento do complexo jurídico. Líderes dos mais diversos tipos ainda realizam,
dentre outras, as funções que posteriormente serão características do direito.
Neste momento, isto se dá ainda de acordo com a tradição. Ou seja, a
contraposição entre o público e o privado começa a emergir e a gênese do direito está
baseada nesta dissolução dos laços comunitários. Porém, um sistema judicial
propriamente dito ainda não está presente. Ele somente vai aparecer com a divisão
das sociedades em classes e em meio ao intercâmbio de mercadorias:
Só quando a escravidão instaurou a primeira divisão de classes na sociedade,
só quando o intercâmbio de mercadorias, o comércio, a usura etc.
introduziram, ao lado da relação “senhor-escravo”, ainda outros
antagonismos sociais (credores e devedores etc.), é que as controvérsias que
daí surgiram tiveram de ser socialmente reguladas e, para satisfazer essa
necessidade, foi surgindo gradativamente o sistema judicial conscientemente
posto, não mais meramente transmitido em conformidade com a tradição. A
história nos ensina também que foi só num tempo relativamente tardio que
até mesmo essas necessidades adquiriram uma figura própria na divisão
social do trabalho, na forma de um estrato particular de juristas, aos quais