VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
A pintura na
Estética
: revisão analítica e
aproximação com a categoria realismo crítico
Painting in
Aesthetics
: analytical review and approach to the critical
realism category
Ronaldo Rosas Reis*
Resumo: O propósito deste ensaio é realizar uma
revisão analítica de parte da seção 6 do volume
II da
Estética
de György Lukács. Trata-se do
problema da mimese na pintura, em especial o
tratamento dado pelo autor húngaro aos
pressupostos para a condição de universalidade
da obra de arte. Complementarmente o título do
ensaio indica um esforço aproximativo no sentido
de apreender a categoria realismo crítico na
pintura. O eixo norteador do estudo parte da
problematização do impulso teleológico do
artista na realização da pintura diante do desafio
de dar forma humana à realidade que o cerca.
Por conseguinte, adota como pressupostos a
ideia lukácsiana que relaciona a imanência
ontológica da atividade criadora na arte à
capacidade de esta fundar a autoconsciência
histórica do ser humano; e ainda a ideia marxiana
de que à educação estética formal cabe
reproduzir criticamente o conhecimento teórico
acumulado sobre a arte. Além das obras
específicas do pensador húngaro e do reperrio
de Marx e Engels, nos valeremos de
contribuições pontuais de Lionello Venturi e
Fredric Jameson, dentre outros.
Palavras-chave: Realismo crítico; pintura;
estética; educação estética.
Abstract: The purpose of this essay is to carry
out an analytical review of part of the section 6
of volume II of the
Aesthetics
of György Lukács.
It deals with the problem of mimesis in painting,
in particular the treatment given by the
Hungarian author to the presuppositions for the
condition of universality of the work of art.
Complementarily, the title of the essay indicates
an approximate effort to apprehend the
category of critical realism in painting. The
guiding axis of the study starts from the
problematization of the artist's teleological
impulse in the realization of the painting, facing
the challenge of giving human form to the
reality that surrounds him. Therefore, it adopts
as presuppositions: the Lukacsian idea that
relates the ontological immanence of the
creative activity in art to its capacity to find the
historical self-awareness of the human being;
and still the Marxian idea that formal aesthetic
education is responsible for critically
reproducing accumulated theoretical
knowledge about art. In addition to the specific
works of the Hungarian thinker and the
repertoire of Marx and Engels, we will make use
of specific contributions from Lionello Venturi,
Fredric Jameson among others.
Keywords: Critical realism; painting; aesthetic;
aesthetic education.
* Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com Pós-doutorado
em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires e Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Professor Titular aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pintor e desenhista
Instagram: @ronaldorosa63.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.648
Ronaldo Rosas Reis
116 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
Introdução
Para os leitores do Ocidente a ideia György
Lukács tem, frequentemente, parecido mais
interessante do que o real György Lukács.
Fredric Jameson
O que distingue o pior arquiteto da melhor
abelha é que ele figura na mente sua construção
antes de transformá-la em realidade.
Karl Marx
No ano em que lembramos a passagem dos 50 anos da morte de György Lukács,
pensei no interesse que poderia despertar junto a um público leitor mais amplo do
que somente os estudiosos da estética uma abordagem do tema do realismo crítico
nas Belas Artes
1
, considerando, no caso, a especificidade da pintura. Se é verdade que
a lembrança da data não oferece muitos motivos para comemorações no contexto atual
de indigência em que se encontram as condições de produção e exposição artística
em nosso país, fato que tem mantido os setores combativos da sociedade em
permanente estado de atenção, busco salientar, nesse sentido, que o tema foi
motivado principalmente pela urgente necessidade de debater questões estéticas e
artísticas que talvez possam contribuir para a resistência do que kantianamente
subsumimos como “humanismo crítico” (LIMA, 2008). Quero dizer com isso que, na
ausência de um termo mais adequado para designar uma perspectiva humanista não
necessariamente marxista, este, ao menos, pareceu-me mais próximo de um termo
progressista.
A partir dos escritos estéticos de Lukács é forçoso reconhecer que a abordagem
do realismo crítico nas artes plásticas não é tarefa tranquila sob qualquer um dos dois
pontos de vista necessários, o teórico e o prático. E isso não quer dizer que o seria
caso estivéssemos abordando a literatura e a poesia ou mesmo o teatro , expressões
artísticas as quais o filósofo húngaro dedicou o seu mister crítico por mais de meio
século ao longo de sua vida adulta. Primeiramente porque os escritos lukácsianos
voltados para as Belas Artes, salvo os que se apresentam de forma mais sistematizada
nos volumes 2 e 4 da
Estética
(1972; 1967), respectivamente, estão esparsos em
diversas publicações, a maioria deles na forma de um comentário esclarecendo ou
exemplificando uma determinada tese na exposição principal. É verdade que, conforme
indica José Paulo Netto,
1
Refiro-me basicamente às categorias tradicionais das Belas Artes ou artes plásticas, ou ainda artes
visuais, sendo elas o desenho, a pintura, a gravura, a escultura, a cerâmica, a colagem.
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 117
As bases da
Estética
configuram nitidamente uma concepção ontológica do
marxismo, ainda que não seja explicitada como tal. Por isso, não há nenhuma
relação excludente (ou mesmo colidente) ou ainda, externa entre a
Estética
e
a elaboração dos últimos anos de Lukács, salvo no plano terminológico.
Antes, o que de fato se verifica é uma articulação íntima e medular entre a
Estética
e a
Ontologia:
nesta, os pressupostos daquela são expostos e
tratados enquanto fundantes de toda a reflexão marxiana (não por acidente,
Lukács enfatiza os “princípios ontológicos fundamentais” de Marx) (NETTO,
2012).
Tome-se como um bom exemplo disso o que encontramos na amplitude do
capítulo sobre o Estranhamento, em
Para uma ontologia do ser social II
(2013, pp.
576-838). Nele o filósofo recupera a sua tese genérica da contribuição da arte para a
autoconsciência do indivíduo desenvolvida na seção IV
Base y perspectiva de la
liberación
do último capítulo do citado volume 4 da
Estética
(1967),
La lucha
revolucionária del arte
(pp. 368-576), aplicando-a ao processo ontológico de
desfetichização. Para tanto, partindo do pressuposto lukácsiano segundo o qual a
relação entre os sentidos imanentes do artista e o brotar espontâneo da criação do
artista “[...tornando-o], como criador, uma personalidade não mais particular” (LUKÁCS,
2013, p. 616), é que o presente ensaio irá deitar algumas de suas raízes. Com efeito,
recorrendo a Cézanne, Lukács reporta que o pintor considera
[...] a sua própria pessoa particular como um bom aparelho de registro da
realidade, mas quando ela interfere na reprodução da realidade ele rejeita
radicalmente essa atividade da “miserável”, visto que ela turva e perturba o
essencial que ele exige da obra de arte, a saber, conferir constância à
natureza nas mudanças fenomênicas de seu ser-em-si (LUKÁCS, 2013, p.
616).
Ademais, do que está explícito na relação acima apontada pelo filósofo, o
segundo aspecto a ser considerado no presente ensaio, refere-se à problemática
teórica da educação dos sentidos, explorada quase sempre de forma insuficiente nos
textos da área de Educação. Ainda na
Ontologia
, Lukács procura deixar claro uma
situação recorrente no senso comum quando defrontada com a obra de arte: a
presença das teorias deformadoras que vislumbram [na arte] um comportamento
puramente contemplativo [...] ou que absolutizam a tomada de partido que sempre
estará contido nela” (LUKÁCS, 2013, p. 616). Das “teorias deformadoras” é bastante
conhecido o paradoxo produzido pelo senso comum quando apreende a atividade
artística como um trabalho não necessário, ou mesmo supérfluo, ao mesmo tempo em
que atribui ao indivíduo que a realiza uma inspiração de natureza divina, um dom, “[...]
velando a sua materialidade concreta e alimentando a dissociação entre o trabalho de
arte e o trabalho em geral”. Portanto, atribuições genéricas como “dom”, “genialidade”
etc. acabam por encobertar “os processos concretos de produção artística desde a sua
Ronaldo Rosas Reis
118 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
aprendizagem até o momento em que o produto artístico é consumido como
mercadoria pelo público” (REIS; REQUIÃO, 2015, p. 128).
A publicação no Brasil de
As ideias estéticas de Marx
, de Adolfo Sánchez
Vázquez, precedeu em um ano o lançamento da primeira edição de
Realismo crítico
hoje
(1969). Cabe recordar que antes mesmo dessas duas publicações, em 1966,
A
necessidade da arte
, de Ernst Fischer, poeta e ensaísta austríaco, por alguns anos
próximo a Lukács, seria publicado no país e, em 1967 Leandro Konder publicaria
Os
marxistas e a arte
. Cinco anos depois, os dois volumosos tomos de
História social da
literatura e da arte
(1972), do historiador da arte húngaro Arnold Hauser, companheiro
de Lukács e de outros estudiosos da arte no Círculo Dominical de Budapeste,
chegariam ao público brasileiro, e em 1978, a
Introdução a uma estética marxista
, era
publicada no país fechando um ciclo inaugural de publicações traduzidas e colocadas
ao alcance de uma geração de universitários carentes de obras de referência marxistas
no campo da arte e da estética em língua portuguesa. A propósito disso, ainda hoje
me parece surpreendente que todas essas publicações tenham sido traduzidas,
editoradas, comercializadas e adotadas em muitos cursos superiores do país no
mesmo período em que a ditadura civil-militar (1964-1985) editava o Ato Institucional
5/1968 e o Decreto-lei 477/1969, os quais impunham, dentre outras
barbaridades, a censura prévia, a proibição de manifestações públicas contra o regime
e a perseguição de professores e alunos então considerados subversivos.
O significado da menção que faço a esse contexto histórico-social pretérito sobre
as publicações marxistas no campo da estética deve-se, primeiramente, à percepção
de um certo efeito tardio do pensamento marxiano em geral e, particularmente o de
Lukács, no Brasil, em especial nos terrenos da cultura e da educação. É importante
registrar que por “efeito tardio” entenda-se um modo de pensar as teses marxistas
que se contrapõem ao marxismo filistino que por anos vigorou na esquerda brasileira
antes das publicações mencionadas no parágrafo anterior. Certo ou errado quanto a
esse ponto, o fato é que, entre nós, o avanço do repertório marxiano na estética e na
história social da arte se fez e faz aos solavancos, entre arbitrariedades e liberalidades
da elite dominante. Após o fértil ciclo de lançamentos desse repertório registrado nos
anos 1960 e 1970, nas três décadas seguintes (1980-2000), sob os auspícios da
abertura política lenta e gradual do país, setores da
intelligentsia
burguesa, até então
relativamente próxima da resistência aos desmandos do regime, se entrega
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 119
vigorosamente ao que há tempos chamei de
impulso anti-intelectualista
(REIS, 2012)
2
.
Ao voltar o seu interesse para a crítica agenciada ideologicamente pelo mercado de
arte europeu e estadunidense, a
intelligentsia
nacional zelosamente se propõe a
provocar uma reversão radical no rumo do debate cultural e educacional do país,
mitigando a tensão causada por algumas tendências marxistas que ganhavam força no
ambiente cultural e educacional, em meio ao avanço do movimento pela abertura
política do país. Mais do que isso, de corte conformista e celebratório de uma
apoteótica “inatualidade aberta”, conforme pregava o crítico de arte italiano Achille
Bonito Oliva (
apud
PONTUAL, 1984, p. 38), o anti-intelectualismo difundido por
jornalistas e formadores de opinião com assento nos cadernos culturais e nas editoras
nacionais, em verdade travavam uma luta política, no sentido tático, a fim de operar
uma metamorfose teleológica na ideia de criação artística, associando o seu sentido
libertador à exigência de dar cabo da razão moderna. Isto é, de acordo com a crítica
anti-intelectualista, para abrir espaço para o imaginário criador e libertário pós-
modernista, tornava-se necessário destruir todo e qualquer tipo de racionalidade
aprisionadora (REIS, 2012)
3
. Conforme notava Fredric Jameson à época (1992), o
surgimento dessa visão populista ou demagógica segundo a qual a cultura do alto
modernismo teria gerado um valor social estigmatizado por sua associação com a elite
universitária, estava atrelada à radical guinada à direita no Ocidente que se seguiu à
ascensão de Margaret Thatcher, na Inglaterra, continuada por Ronald Reagan nos EUA,
até a condução de Helmut Kohl ao poder na Alemanha. Com base no pressuposto de
que o “governo não era a solução, mas o problema” (Ronald Reagan
apud
HOBSBAWM,
1995, p. 401), o trio conhecido como “falcões do neoliberalismo”, executaria um
repertório de medidas ultraliberais, tornando-as desde então o fio político condutor
da economia mundial, e se impondo como a expressão da
liberdade empreendedora
.
na superestrutura global, o crescimento por toda a parte da Teologia da
Prosperidade somado a um anti-intelectualismo derrisório, todavia eficaz no combate
avant la lettre
do que pejorativamente hoje chamam de
Marxismo Cultural
,
2
Cabe o registro das exceções às publicações simultâneas, em 1992, por editoras diferentes, de
Arte
moderna
, e
História da arte como história da cidade
, ambas do historiador da arte e político italiano
comunista, Giulio Carlo Argan.
3
Os principais ideólogos europeus da reação conservadora no campo das artes visuais foram os críticos
Achille Bonito Oliva (Itália), Rudi Fuchs (Holanda) e Jacques-Louis Binet (França), e, no Brasil, Sheila
Leirner, Roberto Pontual e Frederico Morais. Ver: (REIS, 1994).
Ronaldo Rosas Reis
120 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
conformariam a lógica cultural anarquista-reacionária e predadora que conhecemos
nos tempos atuais. Ao final do ensaio voltaremos a abordar esse assunto.
O esforço dos diversos grupos de estudo e pesquisa com acesso a bibliotecas
detentoras de antigas publicações em português e em língua estrangeira, de algum
modo manteve vivo o pensamento de Lukács, especialmente nos cursos de filosofia,
sociologia e educação. A despeito desses grupos terem produzido algumas dezenas
de dissertações e teses ao longo dos anos 1990 e 2000, o alcance limitado desses
meios de difusão limitaram a sua reprodução e a amplitude do debate, sendo que nos
cursos universitários de formação artística, nas licenciaturas em arte e nas respectivas
pós-graduações, a produção intelectual associada ao pensamento estético marxiano-
lukácsiano se manteve praticamente estagnada. Apesar de tudo, certamente as
editoras nacionais devem ao esforço desses setores da academia o recente e tímido
ressurgimento do interesse pela ontologia e pela estética marxiana, fato esse que nos
coloca diante do desafio de José Paulo Netto, para quem a viabilidade do marxismo
será possível somente se ele estiver “aberto ao debate e plural, mas com fronteiras
claras e suscetíveis de polêmica e dissenso”, e é nesse sentido que devemos apreender
a atualidade da obra de Lukács como um pensamento prospectivo (NETTO, 2012).
Procurando concluir essa introdução que se faz extensa, daremos início ao
desenvolvimento metodológico do texto abordando a universalidade da pintura
enquanto fenômeno social, portadora de uma linguagem que comunica e expressa a
particularidade do ser. Para tanto, nessa parte, realizaremos uma revisão analítica dos
textos de Lukács sobre o reflexo estético, especialmente a mimese, de modo a
problematizar adiante as categorias
naturalismo
e
realismo
na pintura. Além das ideias
de Lukács, Marx e Engels, centrais nessa revisão, nos valeremos, subordinadamente,
de autores como Arnold Hauser (1972) e Lionello Venturi (1968). Seguiremos adiante
abordando a especificidade da categoria realismo crítico na perspectiva ontológica
lukácsiana. Aqui o nosso esforço metodológico será no sentido de transportar as
referências literárias do autor para o terreno das Belas Artes, buscando responder
teoricamente à pergunta sobre a natureza dos elementos que devem ser considerados
na concepção de mundo e na intenção do artista quando da definição prévia do tema
e da realização da obra. Em suma, a pergunta busca apreender na pintura o
télos
originário do artista mediante o qual a sua expressão final “poria em relevo uma
realidade que se situa muito além dos dados brutos, imediatamente fornecidos pelo
processo associativo [...]” (LUKÁCS, 1969, p. 34).
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 121
Da pintura: princípios e problematização
Pôr teleológico e generidade
Em
A ideologia alemã
, uma das obras seminais para a moderna ontologia, Marx
e Engels apresentam uma chave para compreendermos o papel da linguagem na
evolução do ser social. Para eles, o fato de a linguagem ser “a consciência real, prática
[...] da humanidade”, existindo para os outros seres humanos como também, primeiro,
para mim mesmo , demonstra que ela nasce da necessidade de o ser da espécie se
relacionar com outros seres da mesma espécie, de realizarem trocas, de se
comunicarem entre si e de expressarem seus sentimentos diante de tudo o que se
apresenta estranho ou aparentemente intangível (MARX; ENGELS, 2002, p. 24). E
completam dizendo que ainda que no seu estágio evolutivo inicial a linguagem seja
“uma simples consciência gregária” acionada pelos sentidos, portanto, longe de
adquirir condições de se desenvolver plenamente como consciência, ela reúne na sua
forma singular as características de um “instinto consciente” (MARX; ENGELS, 2002
pp. 25-26). Saliente-se aqui que o fenômeno ontologicamente casual da existência nos
hominídeos de um cérebro pensante está associado ao seu metabolismo mediatizado
pelo trabalho na natureza. Com efeito, os primeiros grupos de hominídeos não sabiam
produzir ferramentas, tal como machados, lanças, serras, armas de caça etc. Eram
grupos nômades, em grande parte coletores, que dependiam de encontrar um animal
morto ou ferido. Gordon Childe (1966) destaca que duraria cerca de 250 mil anos o
processo de observação, seleção e classificação que levaria alguns grupos, como o do
Homem de Pequim, a produzir instrumentos ocasionais recolhendo pedaços de pedras
e outros materiais, como galhos de árvore, fosse para utilizá-los aumentando a
potência da força das suas mãos e braços com a finalidade de quebrar alguma coisa
(nozes, o crânio de um inimigo ou de um animal), ou como extensão deles, a fim de
colher frutos localizados nos lugares mais altos de uma árvore. Numa fase posterior
eles desenvolveriam armadilhas mimetizando os silvos dos pássaros ou utilizando as
peles de animais mortos a fim de atrair a possível caça, portanto, ainda não haviam
desenvolvido uma ferramenta específica para cada finalidade. Entretanto, esse longo
período serviria para que, submetidos ao esforço coletivo para fazer frente às suas
necessidades elementares, os indivíduos desenvolvessem, inicialmente, a práxis social
que os distinguiria das demais espécies. Com o aumento das necessidades e da
população, a divisão do trabalho material imporia a exigência de planejamento
intelectual dando origem a uma nova divisão do trabalho, condição que levaria à
Ronaldo Rosas Reis
122 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
transformação da consciência gregária em “consciência que representa
realmente
algo
sem representar algo real” (MARX; ENGELS, 2002, p. 26, grifos da publicação). É nesse
ponto que a consciência na forma de linguagem é apreendida como consciência
universal que o ser da espécie comunica e expressa o que os seus sentidos
experimentam das coisas e dos fatos comuns a todos os demais seres humanos. Ora,
se “o que faço a partir de mim, faço a partir de mim para a sociedade, e com a
consciência de mim como um ser social” (MARX, 2004, p. 107), temos, por
conseguinte, que a emancipação da consciência é o salto da sua condição particular
para a condição de generidade. Tal característica positiva da linguagem é o que define
o pôr teleológico do ser humano, uma decorrência ontológica exclusiva do trabalho
intelectual. Nesse sentido, parece evidente que a processualidade da objetivação de
um conceito, ou seja, o caminho percorrido entre o trabalho intelectual (o pôr
teleológico) de criar e atribuir previamente uma ideia ou nome a um determinado
objeto, não está isento de contradições, dentre elas a alienação.
Na arte, a universalidade concreta ou generidade do fenômeno estético ocorre
de forma diferenciada na totalidade dos variados gêneros expressivos conhecidos.
Todavia, ressalta Lukács, alguns desses gêneros, como o canto, a dança, a música, a
encenação, a escultura e a arquitetura, alcançaram muito mais rapidamente o “terreno
de um nível socialconsciente de si mesmo como vida pública” do que a pintura, fato
que muito contribuiu, desde sempre, para serem estudados como gêneros artísticos
historicamente reconhecidos (LUKÁCS, 1972, p. 164). De modo breve, a dimensão
pública a que se refere o filósofo está conectada à empatia, ou seja, à possibilidade
de cada pessoa reconhecer emocionalmente na particularidade de uma obra o seu
próprio mundo, conferindo a ela a qualidade de um conceito comum a todas as demais
pessoas presentes na sua vida social cotidiana. A universalidade de uma obra de arte
não se restringe, evidentemente, a mera aparência da representação e do
representado, posto que, conforme lembra Marx nos
Manuscritos de Paris,
[...] a apropriação
sensível
da essência e da vida humana, do ser humano
objetivo, da
obra
humana para e pelo homem, não pode ser apreendida
apenas no sentido da
fruição imediata
, unilateral, o somente no sentido da
posse
, no sentido do
ter
. O homem se apropria da sua essência omnilateral
de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total (MARX, 2004,
p. 108, grifos do tradutor).
Por extensão, Marx está aqui sublinhando com toda clareza que no processo de
apropriação e fruição da realidade pelo ser humano, os órgãos que caracterizam o ser
sócia, como “pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar etc.” (MARX, 2004,
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 123
p.108), igualmente participam no desenvolvimento da práxis artística, nela imprimindo
o sentido comunitário. Nesse ponto, aplicando o que dissemos um pouco antes, vemos
que é, primeiramente, o resultado do trabalho intelectual do artista, cujo pôr
teleológico a prospectou na sua mente sob a forma de um conceito que,
secundariamente, ao ser apropriado e mediado pela coletividade, assume a condição
de generidade. Adiante retomarei essa problemática de modo a relacioná-la com a
processualidade da criação artística.
Mimese: bidimensionalidade e tridimensionalidade
Analisando o “espaço mimético de criação do mundo” na pintura, Lukács chama
a atenção para a maior dificuldade de se examinar a apreensão da sua universalidade
em relação a outras manifestações artísticas. Como visto logo acima, a ausência de
uma dimensão pública da pintura é o principal fator que confere a esse gênero artístico
um caráter específico no estudo da problemática estética da mimese. Dado que a
pintura tem uma origem “enraizada profundamente na vida privada do cotidiano”
(LUKÁCS, 1972, p. 164), fato que pode ser comprovado nas pinturas rupestres do
paleolítico situadas em locais ermos no interior das cavernas em determinadas regiões
da Europa continental ou de difícil alcance nos continentes americano, africano e
asiático, e nas pinturas históricas etrusca e cretense anteriores à Antiguidade clássica
na Grécia. Para demonstrar essa dificuldade, Lukács exemplifica traçando brevemente
uma linha evolutiva de um processo no qual as incorporações de representações de
uma grande diversidade de descrições de elementos naturais (bosques, hortas,
pomares etc.), evocativas de modos de vida particulares cotidianos, impõem barreiras
para o reconhecimento da sua universalidade. A partir desses e de outros fatos
psíquicos análogos da vida cotidiana, nasce a demanda pela pintura:
[...] a exigência de refiguração mimética de um espaço concreto em cada caso,
também preenchido por objetos concretos de tal forma que pareçam ter um
local adequado de sua existência e de tal forma que tudo isso tenha para o
espectador a forma aparente de ser a refiguração visível e dominável do
mundo do homem (LUKÁCS, 1972, p.165).
Bidimensionalidade
Em sua origem pré-histórica a pintura era chapada na parede da caverna. Para
fins da representação o autor não tirava partido do suporte (se curvo, reto, inclinado,
convexo, côncavo etc.) para fins miméticos, fato perceptível dada a ausência de
bidimensionalidade ou, grosso modo, de
enquadramento
. Segundo Fischer (1983, pp.
33-34), isso pode ser explicado na medida em que “o homem pré-histórico via o
Ronaldo Rosas Reis
124 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
mundo como um todo indeterminado”, desde o ponto de vista representacional, a
inexistência de eixos bidimensionais, verticais e horizontais determinantes nas pinturas
rupestres. Por conseguinte, a imagem dissolvida em meio a outros objetos no espaço,
e, não mantendo assim qualquer relação com um espaço específico, expõe a dupla
negatividade da bidimensionalidade, fato que Lukács destacará como uma expressão
fortuita de uma individualidade singular, acrescentando que
Não é por acaso que, quando uma multiobjetividade relacional começa a
aparecer, o milagre da individualidade singular termina ao mesmo tempo que
as figuras ligadas entre si se aproximam de uma certa simplicidade e
abstração ornamental (LUKÁCS, 1972, p. 166).
Ainda sobre esse ponto, o esforço seguinte do filósofo será no sentido de
demonstrar que, contrariamente ao que afirma a dialética idealista, as pinturas
rupestres não são elementos de uma dupla negatividade, sendo, de um lado, “mimese
pura” e, de outro lado, sua antítese, “ornamentação pura”. Em verdade, a pintura
rupestre não nasce de si mesma nem tampouco da imitação de outra, mas, sim, de
“reflexos estéticos e formas de expressão estéticas de uma complicada evolução
histórica”. Lukács apoia a sua tese na convicção de que a pintura rupestre “não é um
movimento primário da vida social, o movimento estrutural, mas, sim, um movimento
da superestrutura no qual [...] toda transformação se segue das alterações
fundamentais do modo de produção da vida” (LUKÁCS, 1972, p. 166). Nessa mesma
direção, o paleontólogo francês André Leroi-Gourhan (s/d, p. 191) dirá que “com
muitas variantes, a arte pré-histórica gira em volta de um tema provavelmente
mitológico, onde se defrontam complementarmente
imagens de animais e representações de homens e
mulheres” (Figs. 1/1a). Com efeito, produzida longe
dos olhos da coletividade, em grutas e outros lugares
de difícil acesso e visualização, a pintura rupestre não
encontrava um
sentido público
, como ocorria com o
canto, a dança, a encenação etc. De fato, ainda que em
sua origem estivesse associada ao momento em que a
dialética homem-natureza se encontrava num
estágio de desenvolvimento em que a consciência do
indivíduo havia introjetado a existência de uma
segunda natureza
(a cultura), a pintura, diversamente
das demais formas expressivas citadas, não alcançava
Figs. 1 e 1a - França, c. 40.000 anos
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 125
a coletividade, a despeito de manifestar, como as demais, a imaginação de o artista
poder exercer um domínio mágico sobre o mundo que o cercava. Nos termos de
Lukács, a pintura rupestre era despojada de universalidade, “uma ornamentística sem
mundo” (LUKÁCS, 1972, p. 166).
Tridimensionalidade
Lukács destacará dois aspectos importantes da pintura no seu despertar para
uma mimese “orientada para a universalidade” (LUKÁCS, 1972, p. 166). O filósofo
nota, primeiramente, que o surgimento da pintura na Antiguidade histórica não tem
conexão histórica alguma com o paleolítico, posto que, não somente a pintura renasce
espontaneamente partindo de uma nova situação vital, como, em segundo lugar, é
também qualitativamente diversa do paleolítico, não podendo ser continuação desta
sob nenhum aspecto, devendo ser apreendida, do ponto de vista ornamental-
decorativo, como uma nova consideração artística do mundo (LUKÁCS, 1972, p. 167).
Diz ele inicialmente que, nessa nova condição, os princípios ordenadores decisivos da
mimese também devem ter caráter mimético. Lukács
justifica essa caracterização dizendo que “os objetos
representados e igualmente as relações entre eles e
com o espaço que os cerca, que eles preenchem,
pertencem a um sistema de complicadas interações,
se convertendo em um espaço concretamente
evocador”. Portanto, tais objetos não o mais um
acréscimo secundário, determinável por categorias
abstratas geométricas (no sentido de decorativos). De acordo com o filósofo, na
principal corrente evolutiva da pintura, a composição nascente detém princípios que
podem derivar da coexistência tridimensional de
figuras humanas e objetos da natureza de suas
relações (de seu dramatismo, por exemplo, como
ocorre de forma diversa no afresco
A crucificação de
São Pedro
(Fig. 2, 1545-1550), de Michelangelo, e
no óleo
A lição de anatomia do Dr. Tulp
(Fig. 3,
1632), de Rembrandt, ou de sua função
representativa como é frequente na obra de Rafael,
Fig. 3 - A lição de anatomia do dr. Tulp
Fig. 2 - A crucificação de S. Pedro
Ronaldo Rosas Reis
126 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
especialmente no afresco
A Escola de Atenas
(Fig. 4,
1511). De acordo com o filósofo húngaro, os
princípios ordenadores da mimese voltada para a
universalidade, têm a característica do estético
(artístico) pleno em suas origens , nascendo
organicamente em cada caso “a partir do ser
concreto, portanto, do conteúdo a ser modelado,
generalizando a sua singularidade da maneira específica à arte”, justificando assim “a
inesgotável variedade histórica e individual das composições originadas neste campo”,
não necessariamente isso significando um “arbítrio subjetivista” (LUKÁCS, 1972, p.
167).
Conteúdo
Para Lukács, por um lado, os “princípios da composição estão determinados pelo
conteúdo em cada caso”, sendo que, se o conteúdo nasce de “necessidades sociais
reais, uma classe real, em um tempo histórico real, isso é interpretado visualmente
pelo artista segundo a concepção de mundo de cada um, ou seja, pela posição
individual diante dos problemas da vida” (LUKÁCS, 1972, p. 167). Segundo o filósofo,
[...] desse modo a subjetividade conformadora pode se impor livremente e
de forma ampla, mas sempre limitada pela natureza, o alcance etc. do jogo
formal e de conteúdo nascido desses condicionamentos, e movida em
determinadas direções, de acordo com determinados modos e meios de
expressão etc. (LUKÁCS, 1972, p. 167).
Por outro lado continua ele:
a subjetividade criadora se move pelo caminho direcionado por esses
componentes. Nenhum artista pode ignorar a coerência do que foi iniciado
dessa maneira, porque o valor estético da sua subjetividade mostra sua
justificativa precisamente no fato de que eles podem empreender e seguir
até suas consequências finais um caminho ousado e incomum (LUKÁCS,
1972, p.168).
Lukács ressalta, porém, que a unidade da objetividade visual evocadora,
tridimensional e concreta não é mais um aspecto da composição. Quer ele dizer que,
numa composição, a imagem tridimensionalmente representada, capaz de evocar algo
real, conhecido, realiza também uma unidade bidimensional de algo formado por
vários elementos, tais como a cor, a linha, a sombra etc. Em suma, diz o filósofo que a
universalidade da pintura se deve à convergência entre a tridimensionalidade e a
bidimensionalidade. Para ser capaz de revelar a intensidade do conjunto representado
e de cada uma de suas partes, e novos aspectos a todo momento, cada elemento da
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 127
obra tem de cumprir inúmeras tarefas na conformação do detalhe e na coordenação
compositiva. Conforme Lukács, muito embora essa tendência se encontre
germinalmente na forma inicial da mimese, logo ela se eleva a um nível
qualitativamente superior, se difunde, se aprofunda e intensifica pela unidade
inseparável da mimese espacial-objetiva que tende a uma totalidade concreta destas
novas formas do decorativo-ornamental. A referencialidade recíproca indissolúvel
funciona em ambos os fatores, modificando-os. A busca pela totalidade, pelo
fechamento de tendências frequentemente orientadas de forma abrangente em um
espaço relativamente pequeno e a busca pela intensidade do sistema de referências
entre os objetos de representação, devem ser reforçadas mesmo nessa interação. Em
vez disso, o princípio decorativo-ornamental perde muito de sua abstração e falta de
conteúdo (ou seu conteúdo transcendente, que é o mesmo). Mas como seu trabalho a
serviço do todo é reduzido a colocar objetos concretos e suas relações também
concretas em contextos bidimensionais, ou seja, despertar suas possibilidades
decorativas, o que é exclusivo a esse princípio recebe um acento positivo. Como será
visto logo em seguida, torna-se o princípio da consumação final de uma aspiração à
totalidade concreta, ao conteúdo consumado, ao
próprio mundo artístico do homem, como se pode
constatar na admirável tela
A rendição de Breda
(Fig. 5, 1635), do pintor ibérico Diego Velázquez.
Lukács (1972, p. 169) adianta a exposição desse
princípio resumindo a trajetória de sua análise “das
formas abstratas do reflexo” até aqui. Diz ele
primeiramente que, com a exceção da
ornamentística puramente geométrica, todas as
formas abstratas de reflexão com conformação mimética da realidade têm um caráter
meramente aproximativo. Como esses elementos (ritmo, proporção, simetria etc.)
aparecem como os princípios ordenadores de uma realidade objetiva mundana, sua
aplicabilidade é tanto uma realização quanto uma autodissolução. Quanto mais
mundana uma formação mimética se torna, mais determinado é o caráter meramente
aproximado das formas abstratas. Mas isso significa, ao mesmo tempo, uma inflexão
qualitativa de todo o relacionamento conteúdo-forma. Adiante retomaremos essa
questão.
Fig. 5 - A rendição de Breda
Ronaldo Rosas Reis
128 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
O geométrico aparece agora meramente como
limite extremo da concentração mimética, quase como
uma
ideia reguladora
, no sentido kantiano, determinando
ao mesmo tempo tudo e nada na objetividade real
4
Sem
embargo, um dos exemplos mais famosos desse tipo de
composição é o quadro de Leonardo da Vinci,
A virgem,
o menino Jesus e Santa Ana
(Fig. 6, 1503-1519).
Segundo Wölfflin, trata-se de uma composição formando
um triângulo equilátero, no qual todas as figuras se
movem concentricamente e as direções opostas estão
concentradas em formas fechadas. Para ele, Leonardo teria tentado preencher num
espaço cada vez menor uma quantidade cada vez maior de conteúdos de movimento
etc. Por seu turno, Lukács diz ser desnecessário estabelecer uma discussão especial
com as ideias de Wölfflin, tendo como finalidade o esclarecimento do contraste entre
a função artística de tal triângulo e a que ela teria em um ornamento verdadeiramente
abstrato. Para o filósofo húngaro, no exemplo de Leonardo e dos artistas seus
contemporâneos, a consequência da universalidade do trabalho na vida dos homens
já pode ser afirmada objetivamente, algo que até o momento podíamos fazer apenas
de uma maneira geral.
Concluindo esta análise específica do princípio do conteúdo, diz ele que agora
os princípios abstratos da ordenação devem ser reformulados para fornecer categorias
de objetividade concreta. Em seguida, Lukács dirá que as tendências decorativas-
ornamentais da pintura recaem inicialmente sobre a complexidade por ela alcançada à
medida que no seu desenvolvimento passa a se encontrar a si mesma como arte
(LUKÁCS, 1972, pp. 169-170). Ou seja, quanto mais avançado for o estágio de
desenvolvimento da pintura, maiores serão as exigências para a sua fruição. Tal
complexidade se mostra na importância crescente da combinação decorativa das cores
e do uso dos fundamentos de suas funções mais complicadas de objetividade e
espacialidade em sua
harmonia fisiológica
5
, como o claro-escuro, as sombras, a
4
Lembrando que, em Kant, as ideias têm a função de regular as ações humanas, assim listadas: Deus,
Alma e Mundo como totalidade metafísica. Ver: (FERRATER, 1994).
5
Peço desculpa pela extensão da nota, mas acho importante comentar a utilização que me parece no
mínimo curiosa do termo
harmonia fisiológica
. É um termo médico há tempos conhecido e pesquisado
na fisiologia. Trata-se de um estado de equilíbrio do meio interno do corpo humano independente do
que se passa no meio externo. O meio interno é o líquido que circula em nossas células chamado de
Fig. 6 - A virgem, o menino Jesus e
Santa Ana
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 129
perspectiva, o valor etc. Para o filósofo, essa harmonia se apresenta de maneira tanto
mais mediada e oculta quanto mais elaborada for a pintura como tal, de todo modo,
sendo a sua base, deve sempre estar presente, porque, caso contrário, toda a
bidimensionalidade se torna confusa, sem caráter, incoerente etc. Certamente que esta
supremacia do puramente pictórico (de novo, do princípio da bidimensionalidade) não
se reduz, óbvio, ao colorido pois que está presente em todos os aspectos da
composição. Um desenho em preto e branco pode estar projetado de um modo
pictórico, e também o desenho pode dominar perfeitamente as pinturas coloridas.
Entretanto, por mais complexa e oculta que seja a influência dessas determinações, há
sempre uma harmonia bidimensional da pintura, seu arranjo e domínio passivo por
princípios decorativos. De acordo com Lukács, na história da pintura moderna isso não
ocorre, porém, de imediato, sendo observado que, dependendo da mimese específica
do momento, de resto conformada pelo próprio mundo tridimensional, muitas novas
correntes têm sido admiradas ou recusadas de modo igualmente apaixonado. Segundo
ele, dessas disputas entre os
ismos
de vanguarda decorre a formação de uma
consciência estética geral conformada segundo a natureza decorativa da pintura
modernista. Para ele, estas e outras tendências subjetivistas e formalistas promovidas
pelo idealismo filosófico burguês na sua consideração mais recente da arte terminam
por induzir muitos pesquisadores importantes da arte a identificar (confundir) na
pintura o decorativo como pictórico.
Por ora é importante observar que, nesse ponto, Lukács procede a duas críticas
importantes para a compreensão das suas ideias. Na primeira delas dá como exemplo
as análises “grosseiras”, segundo ele próprio, de um seu famoso contemporâneo, o
historiador da arte estadunidense Bernard Berenson. Nesse sentido, a crítica de Lukács
(1972, p. 171) se volta principalmente para a separação entre forma e conteúdo que
Berenson faz, atribuindo ao último uma qualidade extra artística e à primeira uma
qualidade artística, medida que leva “à destruição da unidade da obra de arte”. Cabe
aqui abrir um parêntese para registrarmos que o pesquisador estadunidense é
conhecido pelos numerosos estudos sobre a arte renascentista italiana. No Brasil tem
intersticial. Nas primeiras décadas do século XX essa dinâmica foi investigada pelo fisiologista
estadunidense Walter Cannon que a denominou de
homeostase
. Como Lukács não faz referência a isso
e tampouco menciona qualquer estudo de estética ou filosofia anterior que tenha utilizado o conceito,
me permiti considerar a hipótese de que ele tenha mimetizado o conceito de forma original para
designar o equilíbrio interno da composição pictórica.
Ronaldo Rosas Reis
130 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
um único livro publicado,
Estética e história
(1972), restando dizer que dos cinco
ensaios publicados no livro apenas dois deles,
Valor
e o aqui aludido por Lukács,
Ilustração
, o suficientes para apreendermos a extração filosófica idealista do autor,
sendo que os demais se mostram sem interesse e flagrantemente datados. Lukács
criticará ainda a posição formalista do historiador da arte vienense Alois Riegl
6
. Não
obstante, dirá que Riegl se distingue “vantajosamente sobre muitos dos seus colegas
na medida em que percebe haver uma conexão entre conteúdo artístico e conteúdo
iconográfico” (LUKÁCS, 1972, p. 171). Citando Riegl:
“Pois não pode haver dúvida de que entre as representações que o homem
deseja ver tornadas sensíveis na obra de arte, e a maneira como ele aspira
tratar os meios sensíveis utilizados (figuras etc.), existe uma conexão íntima”
(LUKÁCS, 1972, p. 171).
Nesse sentido, Lukács observa que decerto o tratamento do conteúdo
iconográfico é muitas vezes totalmente separado dos problemas estéticos da criação
de formas, e que, inversamente, muitas vezes o conteúdo nada mais é do que um
pretexto para expressar efeitos pictóricos decorativos, independentemente do espaço
e do tempo da história. Mais adiante devemos voltar a isso. Por ora, ele irá insistir no
esclarecimento de que o estético não pode ser contrastado conscientemente,
especificamente, em todos os seus detalhes, considerando a dialética conteúdo e forma
com suas contrapartes mecânicas. Todavia, aqui, ele afirma que “se deve indicar que
o que normalmente é chamado de conteúdo iconográfico faz parte da demanda que a
vida coloca em cada caso da arte”. Este conteúdo abrange certas situações humanas,
ações que as preparam e as seguem, certos personagens, destinos, relacionamentos
entre homens etc. Explicitamente:
Na medida em que esse complexo se constitui como mito, saga, escrita
sagrada ou profana, a demanda por conteúdo colocado na representação
artística constitui, apesar de toda determinação como conteúdo, e mesmo no
caso de uma formulação iconológica exata e profunda, uma matéria-prima
caótica, sem caráter, do ponto de vista do artista. Este a transforma em
conteúdo artístico concreto o que se contrapõe como postulado, como
imposição social, desde a conformação pictórica tanto decorativos como
miméticos, bem como sua unidade na coincidência dos princípios
tridimensionais e elementos de composição com os bidimensionais (LUKÁCS,
1972, pp. 171-172).
Em suma, o que Lukács afirma é que tais conteúdos iconográficos não podem
ser impostos, exceto como uma forma específica desse conteúdo, que já é particular,
6
Falecido em 1901, Alois Riegl foi um importante pesquisador da arte italiana de características
helenísticas na fase de declínio do Império Romano.
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 131
e não iconograficamente geral. Para ele,
[...] nem a pintura é uma mera realização da tarefa social iconograficamente
proposta, nem a missão social é um mero pretexto de que a arte pode fazer
qualquer coisa. A melhor maneira de descrever a essência dessa relação é
considerá-la um campo de jogo:
concreto
, porque engloba e de alguma forma
resume os desejos de continuidade, a eles uma certa figura, uma certa
direção etc.;
abstrato
, porque apenas a atividade artística de modelagem
realiza inequivocamente as possibilidades, muitas vezes contraditórias, que
nela dormem (LUKÁCS, 1972, p. 172).
Lukács faz referência aos estudos de Riegl para insistir no fato de que as relações
entre as exigências sociais de conteúdos iconográficos, por exemplo, o retrato de um
rei, de um papa, de um nobre ou de um burguês poderoso, e o conteúdo pictórico
(estético/mimético) adotado pelo artista são “complicadíssimas” (LUKÁCS, 1972, p.
171). Ainda fazendo referência a Riegl, ele diz que o fato de determinados conteúdos
iconográficos guardarem alguma convergência com a “solução formal”, não significa
isso uma “vinculação unívoca”, dado que os
caminhos que se apresentam para a solução são
variados. Como exemplo, Lukács chama a atenção
para o quadro de Rembrandt
Os síndicos da guilda
de alfaiates
(
De Stallmeesters
, Fig. 7, 1662),
utilizado por Riegl para comprovar a sua tese
teoricamente e também factualmente, isto é, no
quadro ele mesmo. O tema da pintura vem a ser um
retrato de regente
, entendendo-
se tal sujeito (regente) como um indivíduo em posição de mando. O tema é
especialmente reconhecido pela sociedade holandesa no século XVII, tendo sido
adotado por um grande número de artistas, os quais eram disputados pela aristocracia
e pela burguesia indistintamente. Riegl, de acordo com Lukács, mostra que se de um
modo geral o tema da regência
promove e produz um modo de composição orientado a coordenar a atenção
do espectador, mas ao mesmo tempo mostra como [nesse quadro]
Rembrandt subverte isso acrescentando uma subordinação, dado que ele
seguia uma concepção do mundo que em seus esboços sempre tende a
capturar o germe de um conflito dramático (LUKÁCS, 1972, pp. 172-173).
Ainda sobre a questão do conteúdo iconográfico, Lukács passa a abordar a tarefa
social-iconográfica, dado que oferece um escopo ao pintor no momento de ele
organizar a composição, mesmo que ocorra de as diferenças contidas no quadro não
aguçarem as eventuais contraposições. Também entende, com Riegl, que tal tarefa
igualmente oferece uma meta aos princípios que orientam o conteúdo iconográfico do
Fig. 7 - Os síndicos da guilda
de
alfaiates
Ronaldo Rosas Reis
132 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
quadro (coordenação e subordinação) na sua ordenação formal quanto à disposição
dos elementos bidimensionais (altura e largura) e tridimensionais (altura, largura e
profundidade). Entretanto, na medida em que o artista avança na realização da pintura
transpondo o registro factual de um determinado modelo, um retrato apenas, por
exemplo, para o terreno do artístico de fato
,
por extensão, um retrato artístico, “tomam
uma direção de conteúdo decisiva para a qualidade evocadora da imagem”. No caso
da pintura de Rembrandt acima vista, uma situação estática e tranquila ou dramatismo
interno. Lukács refere-se tanto à pose coordenada dos retratados como à relação de
subordinação que eles mantêm com o pintor (por extensão categórica com o
espectador da cena). Analisando o quadro segundo a categoria “coordenação”, temos
a postura estática dos retratados, aparentando tranquilidade pela consciência do
status
social que têm como representantes de uma guilda importante à época. Os seis
retratados estão em torno de uma mesa que ostenta uma rica tapeçaria importada de
seda (possivelmente da Pérsia). À exceção de um personagem que está em ao
fundo, possivelmente um criado ou secretário, que olha para o síndico, todos os
demais, inclusive o próprio síndico, o par mais influente do grupo, olham na direção
do espectador. Enquanto os demais componentes da guilda o aguardavam, o síndico,
flagrado no momento em que se curva para sentar-se a fim de dar início à reunião,
toma o assento mais próximo do primeiro plano do quadro. O grupo parece ter sido
surpreendido pela entrada do observador, no caso, Rembrandt, contratado para
registrar a cena. Nesse ponto, a coordenação do quadro é subvertida dramaticamente
pela subordinação imposta pelo olhar do artista (por extensão, do espectador) sobre
os participantes da cena. Todo esse conjunto de olhares e poses somados aos
elementos decorativos da composição, a parede e o painel ornamental de estuque com
sanca à meia altura envolvendo uma lareira de pedra, às ricas cadeiras trabalhadas,
além do já citado tapete cobrindo a mesa central, contrastando com as vestes negras
ornadas com golas alvas e largas resume o que Lukács denomina como “a dramática
natureza contraditória de uma sociedade” que acolhe e esnoba o artista, que nela tem
a sua fonte de oposição composicional entre coordenação e subordinação (LUKÁCS,
1972, p. 173). De passagem, Lukács adverte que seria um grande erro esquemático-
formalista identificar simplesmente o contraste entre tais princípios de composição
com as contraposições de concepção do mundo que acabou de indicar (o mundo
burguês na Holanda, especialmente, mas não somente, em Amsterdã de meados do
século XVII). Ele refere-se, evidentemente, ao dramatismo explorado conscientemente
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 133
por Rembrandt neste e em outros muitos
quadros com a mesma temática retrato de
regente”
7
. Em suma, nem todos os quadros
do período renascentista denotam o
interesse do artista pela contraposição,
coordenação e subordinação explorada
dramaticamente por Rembrandt. Dentre os
exemplos por ele citados, chamamos a
atenção para a tela
A crucificação
(Fig. 8,
1617), de Pieter Bruegel, na qual a
subordinação é utilizada articuladamente com a coordenação, para expressar a
violência e a injustiça do Duque de Alba contra aldeões em Flandres, produzindo um
efeito dramático trágico, como vemos na tela. Por fim, Lukács nota conclusivamente
ser “evidentemente claro que o que acabou de expor vale também para a concentração,
em última instância formal, das formações mimético-cotidianas em todos os casos de
aplicação de princípios de composição decorativa” (LUKÁCS, 1972, p. 173). Alinha
ainda algumas considerações pertinentes às formas abstratas de reflexo que absorvem
e assimilam a mimese criadora de mundo. Diz ele que as formas abstratas o estão
em contraposição antinômica com as tendências mimético-realistas, muito embora,
contraditoriamente, são fecundas no reforço a essas tendências. Recorda que ao
estudar o ritmo em outra parte da
Estética
, a aplicação deste na poesia e no canto
serve para elevar a um nível superior o reflexo realista da realidade. Para Lukács, a
arte abstrata é uma “arte sem mundo”, a despeito de em determinados casos alcançar
a universalidade. Tal aparente paradoxo ocorre apenas quando elementos ornamentais
que, em um nível inicial, são suficientes apenas para esse fim, para criar uma grande
classe de arte, embora sem mundo, mas perfeita precisamente no seu mundanismo.
Isto é, ela pode ter um repertório temático e elementos gramaticais capazes de
constituir uma obra de arte que afete os sentidos humanos de uma forma universal.
Todavia, como se trata de um repertório e de uma linguagem sem referência ontológica
nas relações sociais, sua universalidade é superficial, restrita ao transitório, ao que é
mundano, incapazes de “formar sistemas estéticos fechados e substantivos” (LUKÁCS,
7
Dentre os mais conhecidos, o já mostrado aqui
Lição de anatomia do Doutor Tulp
(1632) e a
A ronda
noturna
(1642).
Fig. 8 - A crucificação
Ronaldo Rosas Reis
134 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
1972, p. 174). De acordo com ele, na pintura, as
tendências ornamentais-decorativas se
encontram, por sua essência estética, “ao serviço
de uma consumada conformação artística da
mimese”. Observa ele como ressalva que “o fato
de historicamente serem produzidos com
frequência quadros nos quais o predomínio do
princípio decorativo leva à superficialidade ou
variedade, ou a do princípio mimético à desordem
artística, é algo que não afeta a validade dessa
afirmação” (LUKÁCS, 1972, p. 174). Nesse
sentido, Lukács encaminha a conclusão da sua
abordagem oferecendo um exemplo, a partir de
Wölfflin (1982), comparando os respectivos
afrescos da última ceia de autorias de Leonardo da
Vinci (Fig. 9), de Ghirlandaio (Fig. 10) e de Giotto (Fig.
11), respectivamente, e uma pintura sobre o mesmo
tema de Tintoretto (Fig. 12). Segundo o filósofo, não
se trata de fazer um juízo de valor sobre as obras, mas
tão somente demonstrar de que modo a disposição
dos personagens no espaço pictórico de cada autor é
instrutiva, na medida em que nos permite apreender a
relação entre “ordenação decorativa e conteúdo tonal
espiritual”. Ou seja, de que modo a unidade de cada
quadro é capaz de sintetizar a mimese imaginária com
o sentimento religioso. Lukács diz que tal unidade
“produz uma intensificação da infinitude de todos os
detalhes e de tudo que abrange as suas relações
internas” (LUKÁCS, 1972, p.175.), acentuação que
leva uma composição a se tornar mais viva.
Naturalismo e realismo
“O naturalismo desenvolve-se à custa da forma”, adverte o historiador da arte
húngaro Arnold Hauser na obra
História social da literatura e da arte
(1972, p. 782),
Fig. 9 - Última Ceia, Leonardo da Vinci, 1498
Fig. 10 - Última Ceia, Ghirlandaio, 1480
Fig. 11 - Última Ceia, Giotto, 1306
Fig. 12 - Última Ceia, Tintoretto, 1566
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 135
mais especificamente no capítulo dedicado ao classicismo no contexto da emergência
revolucionária da burguesia europeia. Para Hauser,
A história da arte moderna é assinalada pelo progresso consistente e quase
ininterrupto do naturalismo; as tendências no sentido do rigoroso formalismo
só, rarissimamente, se manifestam e assim mesmo de forma transitória,
existindo, não obstante, sempre presentes de forma latente (HAUSER, 1972,
p. 782).
Evidencia-se aqui uma contradição em termos no que diz
respeito ao naturalismo como tendência estética das artes
plásticas no interior do classicismo, sendo esta a primeira
manifestação artística da era moderna. O naturalismo não apenas
esteve presente na origem renascentista do classicismo em fins
do século XV, como acompanharia a evolução deste último,
tornando-se, de fato, a mais extraordinária tendência estética
representada ao longo da existência do classicismo. Todavia, isso
de modo algum quer dizer que internamente o naturalismo não
tenha enfrentado conflitos e se metamorfoseado teleologicamente
ao longo daquela evolução. Sem embargo, ao atingir o
Setecentos, período em que a manifestação classicista seria
consolidada em quase toda Europa, ela experimentaria diversos
conflitos na sua orientação artística, sendo o naturalismo, como
tendência estética dominante, aquela que apresentaria o maior
número de oposições internas. Dentre os
conflitos mais significativos citamos os
observados entre o intelectualismo formalista do
legado artístico da pintura da renascença clássica
e a liberdade pictórica adotada por artistas como
Parmigianino (Fig. 13, 1540), El Greco (Fig. 14,
c. 1600), Caravaggio (Fig. 15, c. 1590) e Velázquez (Fig. 16,
1656), respectivamente, principais representantes das
tendências estilísticas maneiristas e barrocas surgidas entre
1510 e 1670.
Antes de seguirmos adiante nesta revisão analítica
abordando as categorias estéticas do naturalismo e do realismo
na pintura, achamos que poderá ser útil retomarmos num
Fig. 16 - Autorretrato
Fig. 14 - Autorretrato
Fig. 13 - Autorretrato
Fig. 15 - Autorretrato
Ronaldo Rosas Reis
136 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
parêntese a questão conteúdo-forma deixada em aberto mais atrás. Por um lado,
porque pode nos ajudar a esclarecer dois ou três aspectos do pensamento lukácsiano
sobre a forma artística, até para entendermos o motivo de ele não a adotar ao lado do
conteúdo como um princípio. Depois, porque apesar de em várias oportunidades da
Estética
e em outros textos afins o filósofo adotar o partido de Hegel quanto à
conversão recíproca e incessante de um no outro, Lukács (1978) considera que a forma
artística é sempre a forma de
um determinado conteúdo
(LUKÁCS, 1978, p. 183,
grifo da publicação), acrescentando que, para ter “interesse estético”, a forma deverá
se apresentar de “modo genuíno e original”, isto é,
[...] como objetivação do reflexo estético da realidade, no processo criador e
no comportamento estético-receptivo em face da arte [ficando aqui evidente]
precisamente quando tiver importância estética a forma específica e
peculiar daquela determinada matéria que constitui o conteúdo de uma dada
obra (LUKÁCS, 1978, p. 184).
Caminhando no sentido contrário à dialética marxiana, Lionello Venturi,
respeitado historiador e crítico de arte italiano, contemporâneo de Lukács, considera
a pintura “uma síntese de forma e conteúdo” (VENTURI, 1968, p. 89), conferindo a
uma e outra uma acentuada autonomia relativa, diferentemente do que pensa Lukács,
conforme vimos anteriormente. O crítico italiano parte da ideia de que os elementos
constitutivos da composição estrutural da obra, tais como, proporção, simetria,
dinamismo, plástica, volume, massa e anatomia, serão determinantes para a
caracterização da forma artística pictural desde que em unidade com o conteúdo. Para
Venturi, grosso modo, o conteúdo de uma obra estaria associado à temática espiritual
desenvolvida pelo artista, cabendo registrar a esse propósito que ao atribuir à
processualidade criativa/produtiva de cada artista a busca da expressão individual, o
historiador e crítico italiano tangencia a categoria da particularidade de Lukács. De
fato, Venturi credita à particularidade do “artista autêntico uma concepção própria de
beleza” identificando-a com o ideal que a sua
imaginação procura atingir” (VENTURI,1968, p. 10). Para
ele, a processualidade da realização da obra de arte é o
momento da mediação entre o pôr teleológico do artista
e a objetivação da pintura, tal como busca explicitar a
seguir num juízo estético sobre o conhecido afresco de
Michelangelo Buonarroti,
A tentação de Adão e Eva
(Fig.
17, 1512). Nesse sentido,
Fig. 17 - A tentação de Adão e Eva
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 137
A concepção de forma de Michelangelo era baseada no seu conhecimento de
anatomia. Na sua
Tentação
, as imagens possuem um acentuado relevo, como
se fossem não imagens picturais, mas estátuas em pleno relevo. São vistas
por meio de claro-escuro e não das cores. Os seus gestos têm por fim pôr
em evidência as qualidades plásticas. [...] O objetivo de Michelangelo é não
mostrar quer a ação, quer a forma do corpo, mas transcender forma e
ação na expressão da energia e do movimento (VENTURI, 1968, p. 87, grifo
da publicação).
-se aqui que Venturi busca fixar a sua ideia de “síntese forma-conteúdo”
considerando o processo mediador entre o pôr teleológico e a execução/produção do
afresco do artista renascentista. Todavia, ao dar continuidade às suas considerações a
ideia de síntese parece se enfraquecer quando o crítico distingue duas caracterizações
na concepção de forma artística: a
pictural
e a
plástica
. Utilizando como exemplo
distinguidor uma pintura a óleo de Ticiano com o mesmo
tema pintado por Michelangelo,
A tentação de Adão e
Eva
(Fig. 18, 1550), Venturi diz ser a
forma pictural
atribuída a Ticiano aquela que prioriza a massa e
concebida pelo caminho do exterior do suporte pictórico
para o interior do mesmo. a
forma plástica
atribuída
a Michelangelo aquela que prioriza a estrutura da
superfície a ser observada, concebida a partir do interior
do suporte pictórico para o exterior. Por conseguinte, o
que apreendemos aqui é, como disse antes, o
enfraquecimento da ideia de ntese, posto que na
processualidade da execução está estabelecido um
a priori
da verificação da síntese,
qual seja, a objetivação da forma segundo uma espécie de taxonomia, subordinando
o juízo estético do resultado a um determinado ideal previamente estabelecido. Por
fim, embora presuma que tais considerações marginais à revisão analítica do problema
do reflexo estético em Lukács justificam a relevância da abordagem da forma em
Lionello Venturi, gostaria de concluir esse parêntese sobre a questão conteúdo-forma
reforçando que a diferença entre a “conversão num e noutro” (Lukács) e a “síntese de
ambos” (Venturi), deve-se à diferença metodológica utilizada pelos respectivos autores
na apreciação estética da pintura, sendo de um lado a ontologia crítica e, de outro, a
gnosiologia kantiana.
Retomando e seguindo adiante na abordagem dos conflitos internos do
naturalismo, citamos os observados entre o intelectualismo formalista do legado
artístico da pintura da renascença clássica e a liberdade pictórica dos artistas
Fig. 18 - A tentação de Adão e Eva
Ronaldo Rosas Reis
138 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
maneiristas e barrocos. Segundo Arnold Hauser (1972), o principal fator constituinte
dessa oposição foram as relações sociais de produção e reprodução associadas à
disputa pelo poder político entre as classes médias burguesas e a diversidade de
aristocracias espalhadas pelo território europeu. Nos países onde o puritanismo da
reforma protestante avançou e se consolidou, o gosto pela literatura, a poesia e o
teatro, fazendo com que o classicismo setecentista buscasse agir como “um freio
contra os instintos, uma defesa contra a torrente de emoções, um dissimulador do que
é vulgar e exageradamente natural”, a disputa na esfera religiosa, no plano jurídico e
relativamente às respectivas formações estético-culturais prevaleceu na classe média
burguesa culta (HAUSER, 1972, p. 785). nos países predominantemente católicos,
como a Itália e a Espanha, as artes plásticas, especialmente a pintura e a escultura,
acumulavam prestígio e gozavam dos benefícios da cultura palaciana. Hauser busca
esclarecer tal aspecto do Setecentos chamando a atenção para
O fato de o classicismo naturalista nunca haver predominado tão fortemente
nas artes plásticas como no drama deve atribuir-se, principalmente, a serem
as relações históricas da burguesia francesa muito menos íntimas com a
pintura do que com o teatro e à circunstância de elas ainda não poderem
dispor dos recursos necessários para exercer uma influência tão
verdadeiramente esmagadora (HAUSER, 1972, p. 784).
O esclarecimento de Hauser é, sobretudo, indicador do contraste apontado
anteriormente por Lukács ao fazer referência ao modo que apreendemos a relação
entre ordenação decorativa e conteúdo tonal espiritual das formas expressivas de
quatro representações distintas de um mesmo substrato temático, no caso,
a última
ceia
. Estendendo-se até pouco mais de meados do Setecentos, a pintura maneirista e,
principalmente, a barroca, enquanto tendências estilísticas internas ao classicismo,
seriam fontes permanentes de conflito com o naturalismo como tendência formalista
dominante, contudo, sobretudo a pintura barroca, denotaria desde logo os sinais do
esgotamento da estética naturalista no classicismo e, concomitantemente, uma
transição fragmentária dos estilos até então conhecidos. Nesse sentido, pedindo
desculpa mais uma vez por tomar a liberdade para abrir um novo parêntese, penso
ser interessante comentar o realismo na pintura analisando a conhecida pintura
barroca
As meninas
, de Diego Velázquez (Fig. 19, 1656)
8
.
8
Talvez uma das pinturas mais analisadas de todos os tempos. A título de ilustração a Wikipédia oferece
um interessante conjunto de informações acerca do quadro. Ver em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/As_Meninas_(Vel%C3%A1zquez).
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 139
Na tela de grandes dimensões encontram-se
onze personagens mais um cão num amplo salão. Da
esquerda para direita ocupando o primeiro plano do
quadro vemos a parte posterior de uma grande tela
esticada num chassi e apoiada num cavalete. Logo
atrás num plano intermediário, uma dama de
companhia agachada serve algo para a princesa
Margarida, a herdeira do trono, de pé ao seu lado. À
esquerda desta, outra dama de companhia faz uma
mesura, e, completando o semicírculo, se encontram
outros funcionários da corte com algum título
nobiliárquico menor: uma bufona anã e um bufão liliputiano que apoia o pé sobre um
grande cão. À esquerda do espectador, um pouco afastado dessa cena, encontra-se o
próprio Velázquez, pintor oficial da corte. Ele está posicionado com o pincel e a paleta,
como se estivesse observando, comparando e avaliando, simultaneamente, a grande
tela que parece pintar e a totalidade da cena refletida num grande espelho defronte a
todos. Um pouco mais atrás, à direita do espectador, encontram-se mais dois
funcionários da corte: a aia e o valete, cuidadores pessoais da rainha e do rei,
respectivamente. Ao fundo, num plano extraquadro à direita do espectador, logo atrás
de um portal de onde é projetada uma claridade acentuada, encontra-se o Marechal
do Palácio, Dom Velázquez, tio do pintor. Também ao fundo, à esquerda da porta
aberta onde se encontra o Marechal, vemos um espelho menor refletindo as imagens
do rei Filipe IV e de sua esposa, a rainha Maria Ana de Áustria. Por suposto, o casal
real está de sob o arco de uma porta ao lado do grande espelho, numa posição
simétrica à porta ao fundo do salão tendo à sua frente toda a cena. Compondo a cena,
vemos as paredes do grande salão ocupadas por quadros e tapeçarias, sugerindo que
o salão seria a pinacoteca real e ainda o ateliê do pintor.
Ao longo de quase quatro décadas como pintor oficial e curador do acervo
artístico da corte real espanhola, Velázquez trouxe à luz uma extraordinária quantidade
de quadros cujas composições tinham manifestamente um acentuado foco social.
Consta do anedotário das Belas Artes que o tema da obra
As meninas
, concluída em
1656, a corte real, teria surgido a partir das visitas da infanta Margarida, herdeira do
trono espanhol, e de sua mãe, Maria Ana de Áustria, ao salão onde o pintor trabalhava
e boa parte do acervo do reino estava guardado sob os cuidados deste último.
Fig. 19 - As meninas
Ronaldo Rosas Reis
140 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
Contando com isso, Velázquez reuniu o núcleo da família real, suas damas de
companhia e seus funcionários mais próximos, incluindo dois bufões, todos com níveis
variados de nobreza. Desde pronta, a obra jamais deixou de provocar um
extraordinário interesse de críticos e historiadores da arte, colecionadores, filósofos e
artistas, dentre eles Pablo Picasso no século XX. Seguindo uma linha explorada pelo
professor de arte e psicanalista MD Magno num conhecido estudo de 1982, procurarei
me concentrar apenas na sua composição para comentar o realismo do pintor.
Numa de suas primeiras publicações,
As palavras e as coisas
, de 1966, Michel
Foucault analisa a composição de
As meninas
tendo duas hipóteses em mente: de que
o quadro denota o interesse do pintor em estabelecer a relação hierárquica de
autoridade a partir do casal real até o seu reflexo no espelho menor ao fundo do salão.
Assim, o casal real, situado num ponto onde estão o próprio artista, e, por extensão,
o espectador. Todo esse grupo admira à sua frente a parte da corte que lhe priva da
intimidade, que lhe é mais próxima. E Velázquez faz isso tanto se valendo dos eixos
geométricos bidimensionais e tridimensionais, como se valendo do claro-escuro e da
luz vazada do exterior e refletida nos dois espelhos que descrevemos acima. Na
sequência e conclusivamente, Foucault busca demonstrar que na medida mesma em
que o quadro intenta “representar-se a si mesmo” (FOUCAULT, s/d, p. 33), isto é,
representar a organização coordenada da subordinação de todos retratados ao casal,
algo como uma epistemologia do poder real na corte espanhola do século XVII,
também representa o vazio disso tudo ou o seu desaparecimento, se oferecendo, por
conseguinte, como “pura representação” (FOUCAULT, s/d, p. 33).
Concordando até o ponto em que a convicção gnosiológica de Foucault se
reporta à ausência de sentido do poder da realeza, ao vazio propriamente dito, temos,
no entanto, uma divergência quanto à conclusão do estruturalista francês. Ou seja, ao
autonomizar a representação estabelecida no quadro, Foucault desqualifica as relações
sociais concretas nele presentes. E, nesse sentido, destitui do quadro o domínio
mediador do artista e o seu poder de provocar a empatia a partir da experiência
particular sobre as condições estabelecidas pela realidade espanhola no Seiscentos.
Sem embargo, o que vemos na obra de Velázquez é a intenção (o pôr teleológico do
artista) em estabelecer uma contraposição ao poder da realeza quanto à capacidade
de reconhecer o que é verdadeiramente autêntico, o que é, de fato, real. Como
aludimos antes, ao longo de sua vida artística Velázquez, sem deixar de realizar os
retratos e os temas religiosos e míticos mais explorados pelo barroco cortesão do
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 141
Seiscentos na Espanha e na Itália, sempre manteve em suas obras um olhar crítico
voltado para o contraste entre o ócio cortesão e a rudeza do trabalho manual. Nesse
sentido, no caso de
As meninas
, entendemos que o pressuposto do artista é uma
disputa tal como as obras de Jordaens e de Rubens, seus contemporâneos e
influenciadores, expostas no salão retratado. Poderíamos resumir a disputa
perguntando quais dos onze personagens representados teriam acesso autêntico à
realidade e em que condições?
No quadro exposto no Museu do Prado, o espectador pode reconhecer os temas
das tapeçarias expostas ao fundo da tela na parte superior do espelho que reflete a
imagem do casal real, cujos significados históricos remetem a uma iconografia de
disputas mitológicas, como a disputa de Hera
versus
Aracne em torno da melhor tecelã,
e de Apolo
versus
Mársias sobre quem era o melhor músico. Além disso, no
autorretrato de Velázquez ele se representa como um pintor destro, o que seria no
mínimo estranho considerando que sendo ele destro e todo o quadro um reflexo do
grande espelho, sua representação segurando o pincel seria com a mão esquerda
diante do espectador, tal como Picasso o retratou num de inúmeros estudos realizados
na primeira metade da década de 1950 sobre
As meninas
(Fig. 20). Portanto, é factível
considerar que o dramatismo interno explorado por
Rembrandt no quadro anteriormente visto
Os
síndicos da guilda dos alfaiates
, é reproduzido aqui
pelo pintor ibérico. Um drama tramado em torno da
disputa da autoridade sobre o autêntico
conhecimento sobre a realidade social em meio às
relações desiguais numa época de crescimento e
consolidação do mundo burguês.
A fim de concluir essas considerações em torno dos conflitos entre as tendências
estilísticas internas ao classicismo, tendo o naturalismo como tendência formalista
dominante, penso ser importante registrar a posição de Lukács sobre o fenômeno que
combina o esgotamento de uma tendência estilística e a transição para outra. Para ele,
parte dos conflitos que permeara o classicismo teve como elemento determinante o
papel exercido pela técnica na elaboração da obra de arte. Segundo o filósofo, dado
que “a forma artística é a forma de um conteúdo determinado” o contraste no interior
da tendência dominante dá-se em razão de uma “impossibilidade de aplicar
universalmente uma determinada técnica artística, e menos apenas a de recebê-la
Fig. 20 - As meninas - estudo
Ronaldo Rosas Reis
142 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
pronta e acabada, sem fazer nenhuma modificação” (LUKÁCS, 1978, p. 189). Nessa
direção, Hauser dirá em acréscimo que, pertencendo o classicismo ao
Zeitgeist
da
modernidade artística, no qual sobressai uma intensa polaridade entre a regulação ou
o controle da técnica e a liberdade formal (HAUSER, 1972, pp. 786-788), não haveria
surpresa que, na evolução do naturalismo, emergissem tendências estilísticas
fragmentadas pela aplicação de novas técnicas, tal como, de resto, foi analisado aqui
quando abordamos a concepção de forma artística em Venturi. Ademais, a transição
fragmentária do classicismo que se estende do fim do Setecentos a meados do
Oitocentos é, para Hauser, representativo de um “processo dialético que é tanto
resultado das circunstâncias extrínsecas como um passo novo na tendência dominante”
(HAUSER, 1972, p. 788). Nesse sentido, a partir de meados do Oitocentos, parece
natural que o reflexo das lutas revolucionárias por independência em curso no extenso
continente americano, e também no próprio continente europeu, configurasse nas
artes a divisão de posições na sociedade da época. O ecletismo advindo da
fragmentação das tendências estéticas manifestas em estilos como o rococó cortesão
dominante, o classicismo arqueológico das classes médias da burguesia de oposição,
e outras manifestações artísticas menores na preferência do público, por um certo
tempo disputariam um espaço no mercado de arte e no gosto popular.
Em fins do Século XVIII, no período pós-revolucionário, abrigado pelo espírito
romântico em toda esfera da cultura, nas Belas Artes, em especial na pintura, além da
tendência Neoclassicista liderada pela figura carismática de Jacques-Louis Davi,
inúmeras outras tendências pictóricas emergiriam e desapareceriam sem deixar
vestígios no curso do Novecentos, dentre elas o Historicismo, o Neobarroco e o
Palladianismo. Em todas elas prevaleceu uma rigorosa orientação acadêmica mediante
a qual era contemplado o gosto dos setores ricos e conservadores da sociedade,
fossem eles da burguesia ou remanescentes da antiga aristocracia. Nesse contexto do
romantismo e em oposição ao seu espírito de rebeldia, todavia, no período da
Restauração, surgiria ainda na pintura um classicismo de corte realista conservador
“essencialmente burguês”, nas palavras do historiador da arte Arnold Hauser (1972,
p. 898). De fato, enquanto na literatura e na poesia as obras de Stendhal, Balzac e
Goethe vicejavam contrapondo a realidade das relações de produção e reprodução da
vida social à rebeldia niilista e à mistificação alienadora da crítica romântica subjetivista
de Flaubert e de Proust, nas Belas Artes, em especial na pintura, o realismo
conservador das elites burguesas consolidava sua posição nas academias, no mercado
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 143
de arte e nos acervos das instituições museológicas. Isso porque, de algum modo,
tornou-se norma oculta nas instituições artísticas e museológicas sob a guarda do
Estado, operarem um aparato legislador sobre a estética das artes e ofícios, seja para
manter sob seu controle o sistema de formação de novos artistas, a produção, a
reprodução e a guarda de obras, seja para agregar valor artístico ao produto final.
Nesse sentido, os mestres catedráticos das diferentes disciplinas exerciam a função de
autoridades oficiais com a finalidade de exarar juízos estéticos (REIS, 2018), e, por
conseguinte, pintores formados pelo francês Jean-Auguste Ingres e o retratista alemão
Franz Winterhalter, dentre outros mais, representavam “a maioria daqueles que
encomendavam, compravam ou criticavam publicamente os quadros, que dirigiam as
academias artísticas e decidiam quais os trabalhos que seriam expostos”, de resto
estabelecidos no idealismo acadêmico (HAUSER, 1972, p. 950).
O realismo crítico na pintura: uma aproximação
Para Hegel, contrariamente aos românticos, a saúde ética dos povos depende do
sentido de sua liberdade. Nesse sentido, ele diria que “a simples recusa à escravidão
resultante do acúmulo dos anos de passividade, se impõe na forma de uma melancolia
decadente, da lassidão moral e do niilismo sendo subsumidos num mesmo sentimento
de perdição e revolta” (HEGEL
apud
HYPPOLITE, 1971, p. 80). Ora, vivenciamos no
mundo inteiro o dilema de que não basta apenas sermos contra o que nos revolta,
como a escravidão e o racismo, é preciso que no presente lutemos contra as novas
formas de escravidão e que sejamos antirracistas, eis a atualidade do realismo crítico
contido no pensamento de Hegel. Parto desse ponto para uma aproximação do
realismo crítico com a pintura.
Se na literatura o leitor segue a narrativa estabelecida pelo autor e
pari passu
os
personagens, o cenário e o contexto vão se formando em sua mente como uma
composição, na pintura o mesmo não ocorre dessa forma. Nesta última recebemos de
imediato e em conjunto o impacto das formas, das manchas de cor, da luz e dos demais
elementos da composição. Num primeiro momento o olhar do espectador busca se
apropriar do conteúdo da pintura selecionando aqueles elementos e organizando a
composição conforme a sua sensibilidade é afetada como um todo. Desde que
organizado esse primeiro momento na mente do espectador, o conteúdo pretendido
pelo autor começa a se configurar como narrativa singular sobre a realidade, momento
esse em que a fruição estética toma impulso e ganha intensidade para admirar, ou
Ronaldo Rosas Reis
144 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
condenar, a interpretação criativa, ou modo de ver particular do artista sobre a
realidade. Na condição de mediada pelo olhar do espectador, a pintura artística assume
a condição de generidade, independente de vir a ser considerada obra de arte
autêntica ou não. Ora, logo no início deste ensaio chamamos a atenção para a
importância da educação estética na formação social do ser humano, a qual
relacionamos agora com a “saúde ética dos povos” e o sentido dado à sua liberdade,
conforme sublinhado por Hegel no parágrafo anterior. Assim, se do ponto de vista da
recepção, a pintura irá exigir da parte do espectador uma formação estético-cultural
que lhe condições objetivas para uma apreciação crítica, em contrapartida, temos
que a particularidade individual do artista não deve se limitar à pura sensibilidade
passiva diante da realidade, dado que aquela particularidade “abarca todas as reações
do indivíduo diante dos fenômenos da vida em sua espontaneidade imediata, o que
naturalmente não exclui nem o caráter adquirido nem o seu ser objeto da consciência
(LUKÁCS, 1978, p. 200). Dê-se o nome de “beleza moral”, como quer o crítico de arte
Lionello Venturi (1968, pp. 184-185), ou realismo crítico, como até aqui vimos nos
aproximando, o fato é que, desde que autêntica, a obra de arte comporta a realidade
incorporando o sentido ético e moral e as emoções sob domínio do artista. Conforme
Lukács,
No processo do reflexo da realidade, no processo de sua reprodução artística,
os dois estratos da personalidade do criador entram incessantemente em
oposição. Até aqui ainda não existe nada que seja específico do reflexo
estético, que a vida cotidiana de todo homem está repleta de conflitos.
Para o processo de criação artística, porém, é característico que o resultado
possa se fixar e ganhar forma na obra de modo a contradizer os preconceitos,
ou mesmo a concepção de mundo própria do artista, que este nível superior
receba uma forma estética sem que para isto deva ter um lugar
correspondente na personalidade privada particular-individual do artista
(LUKÁCS, 1978, pp. 200-201).
No sentido do exposto, o filósofo chamará a atenção para a influência recíproca
entre concepção de mundo e realização formal determinantes das condições de
efetivação do realismo crítico. Com base em Hegel, Lukács observa que o momento
do nascimento de um novo olhar sobre a realidade social decaída deve estar no centro
da criação artística, refletindo as causas e consequências das modificações estruturais
da sociedade nas relações recíprocas entre os indivíduos. Ora, notamos aqui o filósofo
húngaro retomar o seu (também nosso) pressuposto da arte como autoconsciência do
desenvolvimento da humanidade, dado que ao situar o olhar do artista como
determinante no ato do reflexo estético (o centro da criação artística), faz nascer no
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 145
sujeito estético uma contradição dialética que, por sua vez, é reveladora do reflexo das
condições de desenvolvimento da humanidade (LUKÁCS, 1978).
Precisaríamos de um esforço muito mais abrangente e intenso, além de tempo
útil e de espaço de publicação indefinidos, para continuarmos esta aproximação do
conceito de realismo crítico e a pintura, se é que conseguiríamos realizar isso. Gostaria
de ter ido além das breves observações sobre o realismo na magnífica pintura
As
meninas
(Fig. 19), de Diego Velázquez, e, ainda, concluir o ensaio analisando uma
pintura de Siron Franco, fabuloso artista goiano, cujo olhar crítico sobre a realidade
social do país ao passo que estimula a resistência dos setores progressistas da
sociedade, há décadas vem denunciando o desastre das políticas sociais e ambientais
perpetrado pelas elites brasileiras no país. De todo modo, antes de avançar para o
final do ensaio quero retomar brevemente o que deixei prometido na introdução acerca
dos ataques décadas perpetrados por correntes anti-intelectualistas de extrema
direita contra o que denominam “Marxismo cultural”. Acredito que, com isso, sempre
correndo o risco de cair num desvio reformista, poderei justificar a minha posição
acerca da controversa radicalidade de Lukács ao qualificar genericamente a mimese
decorativa da arte de vanguarda modernista como um “modismo superficial”.
No século XX, grande parte dos estudos de arte subordinaram a produção
artística ao axioma positivista da arte pura (da arte pela arte) e, por conseguinte, à
ideia de um evolucionismo da forma artística. Nesse sentido, a principal determinante
dos tipos essenciais dos
ismos
modernos como o funcionalismo, o abstracionismo, o
surrealismo, o hipermaneirismo etc., a arte moderna passaria a ser analisada como um
movimento natural, isto é, mais uma evolução estilística no curso da história da arte.
Sem embargo das particularidades expressas no campo ideológico para a
compreensão geral da arte contemporânea, é fato que tais estudos se sustentam sobre
uma base idealista que participa da ideia de que a natureza original da obra de arte
estaria associada às teorias deformadoras criticadas por Lukács, conforme aludimos
no início desse ensaio. Parece óbvio que tais estudos desconsideraram a avassaladora
pressão fetichizante da mercadoria, e dao serem absorvidas pela indústria cultural
e as indústrias de bens de consumo, as obras modernistas perderiam as suas
características transgressoras de origem, sua negatividade, e, subsumidas na forma
mercadoria e massificadas pelo
mass media
, as inovações formais modernistas seriam
internalizadas subliminarmente no imaginário das massas consumidoras como o novo
télos
estético-cultural do mundo burguês. Assim, na curta passagem de duas décadas
Ronaldo Rosas Reis
146 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
e meia, aproximadamente, a práxis artística das vanguardas europeias se deparou com
inúmeras contradições internas perdendo o que ainda restava do vigor criativo de
origem. Portanto, o refluxo observado no desenvolvimento da arte foi o tempo
necessário para que o mapa das relações sociais de produção artística fosse
redesenhado a fim de se ajustar à teleologia do sistema que emergia metamorfoseado
pela crise daquele período. Nesse sentido, podemos concordar com Lukács em vários
sentidos sobre o fato de o modernismo europeu ter transformado a busca de uma arte
verdadeira numa disputa sem fim e sem propósito estético algum, decorrendo daí o
decorativismo por ele criticado. Notoriamente amplo e propositadamente indefinido, o
modernismo representa a unificação num conceito híbrido das mais variadas práticas
artísticas e ideologias estéticas vanguardistas que se estenderam por cerca de trinta
anos consecutivos (ANDERSON, 1985). Mesmo para um pensador liberal como Roland
Barthes, as disputas travadas pelas inúmeras correntes vanguardistas constituíam um
caso limite de atrito entre a arte e o mercado, contribuindo para tornar ainda mais
“espessa a cultura burguesa” (BARTHES, 1982, p. 131). Pois, à medida que a arte de
vanguarda passara a depender do mercado para obter o reconhecimento da
atualização do seu ajustamento aos avanços da técnica e da ciência, isso significava
reconhecer o mercado como indispensável para sua própria renovação, sua condição
de vitalidade.
Apesar disso, a generalização lukácsiana afirmando que o que foi produzido se
encaixa num modismo superficial, não condiz com o fato de uma parcela significativa
das pinturas de artistas como Picasso (Fig. 21, 1937), a despeito do caráter decorativo
da mimese pictórica, e com
todas as suas diferenças e
contradições estilísticas e
estéticas, produziram muito
mais do que apenas registros
históricos fundamentais, como
suas obras foram seminais para
a compreensão de um novo
modo de interpretar o mundo.
Teresópolis Rio de Janeiro, primavera de 2021
Fig. 21 - Guernica
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 147
Referências bibliográficas:
ANDERSON, P. Modernidade e revolução
. Revista Novos Estudos
, São Paulo, Cebrap,
n. 14, p. 2-15, 1985.
ARGAN, G. C.
Arte moderna
. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
______.
História da arte como história da cidade
. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BARTHES, R.
Mitologias
. São Paulo: Difel, 1982.
BERENSON, B.
Estética e história
. São Paulo: Perspectiva, 1972.
CHILDE, V. G.
A evolução cultural do homem
. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.
FERRATER MORA, J.
Dicionário de filosofia
. São Paulo: Loyola, 1994.
FOUCAULT, M.
As palavras e as coisas
. Lisboa: Portugália, s/d.
HAUSER, A.
História social da literatura e da arte
. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1972.
HYPPOLITE, J.
Introdução à filosofia da história de Hegel
. Trad. Hamílcar de Garcia. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
HOBSBAWM, E.
Era dos extremos
. O breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
JAMESON, F.
Marxismo e forma
. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 127-160.
______.
Pós-modernismo
A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática,
1992.
LEROI-GOURHAN, A.
O gesto e a palavra
v 1. Técnica e linguagem. Lisboa: Edições 70,
s/d.
LIMA, M. C. O humanismo crítico de Edward W. Said.
Lua Nova,
São Paulo, Cedec
,
73,
p. 71-198,
2008.
LUKÁCS. G.
Realismo crítico hoje
. Brasília: Editora de Brasília, 1969.
______.
Estética
: la peculiaridad de lo estético v. II: Problemas de la mimesis.
Barcelona/Ciudad de México: Grijalbo, 1972.
______.
Estética
: la peculiaridad de lo estético v. IV: Cuestiones liminares de lo estético.
Barcelona/Ciudad de México: Grijalbo, 1967.
______.
Introdução a uma estética marxista
. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
______.
Para uma ontologia do ser social
v. II. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, K.; ENGELS, F.
A ideologia alemã
. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MARX, K.
O capital
v. I. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005.
______.
Manuscritos econômico-filosóficos.
o Paulo: Boitempo, 2004.
MD MAGNO.
Psicanálise & polética
. Rio de Janeiro: Aoutra editora, 1986.
NETTO, J. P. Marxismo e humanismo. Entrevista a Rogério Petrônio.
O Estado de S.
Paulo
, São Paulo, 7 dez. 2012. Disponível em:
<https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,marxismo-e-humanismo,970720>.
Acesso em 20 jan. 2021.
PONTUAL, R.
Explode geração
. Rio de Janeiro: Avenir, 1984.
Ronaldo Rosas Reis
148 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
REIS, R. R.; REQUIÃO, L. “Trabalho, arte e educação: contribuição crítica ao estudo da
arte e do seu ensino no Brasil”. In: VENTURA, J.; RUMMERT, S. (Org.).
Trabalho e
educação
- Análises críticas sobre a escola básica. Campinas: Mercado de Letras,
2015.
REIS, R. R. “O antirreino da liberdade. Pós-modernismo e má-fé”. In: RODRIGUES, J. S.
A universidade brasileira rumo à Nova América
. Pós-modernismo,
shopping center
e ensino superior. Niterói: Eduff, 2012.
______.
Ideologia e evidência na arte brasileira dos anos 80
. Tese (Doutorado)
apresentada à Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 1994.
______. Arte, valor e educação estética.
Revista En Fil,
Niterói, Feuff, 2018. Disponível
em: https://periodicos.uff.br/enfil/article/view/44333.
VÁZQUEZ, A. S.
As ideias estéticas de Marx
. Petrópolis: Paz & Terra, 1968.
VENTURI, L.
Para compreender a pintura.
De Giotto a Chagall. Lisboa: Estúdios Cor,
1968.
WÖLFFLIN, H.
El arte clásico
. Madrí: Alianza/Forma, 1982.
Referências das imagens
Figuras 1 e 1a: http://www.artchive.com/ftp_site.htm
Figura 2: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2009/07/589716-vaticano-acha-
autorretrato-de-michelangelo-em-afresco.shtml
Figura 3:
https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Li%C3%A7%C3%A3o_de_Anatomia_do_Dr._Tulp
Figura 4: http://www.artchive.com/ftp_site.htm
Figura 5: http://www.artchive.com/ftp_site.htm
Figura 6: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Virgem_e_o_Menino_com_Santa_Ana
Figura 7: http://www.artchive.com/ftp_site.htm
Figura 8: http://www.schilderijen.nu/schilderij/pieter-brueghel-de-
jonge/kruisiging?i=4401
Figura 9: https://veja.abril.com.br/cultura/a-ultima-ceia-de-da-vinci-em-
impressionante-versao-digitalizada/
Figura 10:
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Ghirlandaio,_ultima_cena_di_san_marco.jpg
Figura 11: https://pt.wahooart.com/@@/9GEL8N-Giotto-Di-Bondone-%C3%9Altima-
Ceia
Figura 12: https://www.galeriaaymore.com/post/o-desejo-da-cor-entre-a-
raz%C3%A3o-da-linha-e-a-abstra%C3%A7%C3%A3o-da-cor
Figura 13: https://www.wikiart.org/pt/parmigianino/self-portrait-1540
Figura 14: https://pt.wikipedia.org/wiki/El_Greco
Figura 15: https://www.lacapital.com.ar/informacion-gral/caravaggio-no-murio-sifilis-
sino-una-infeccion-una-espada-n1679642.html
Figura 16: http://www.artchive.com/ftp_site.htm
Figura 17: https://www.wikiart.org/pt/michelangelo/adao-e-eva-1512
A pintura na
Estética
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 149
Figura 18: https://tendimag.com/2012/11/13/vestir-os-nus/19-ticiano-adao-e-eva-
1550/
Figura 19: http://www.artchive.com/ftp_site.htm
Figura 20: https://mundovastomundo.com.br/barcelona/museu-picasso/
Figura 21: https://entretenimento.uol.com.br/noticias/afp/2017/03/31/obra-
guernica-de-picasso-completa-80-anos.htm
Como citar:
REIS, Ronaldo Rosas. A pintura na Estética: revisão analítica e aproximação com a
categoria realismo crítico.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 115-149, mar.
2022.