VerinotioNOVA FASEISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Ainda sobre Lukács e o romantismo:
algumas considerações sobre os passos do
itinerário de uma vida*
Still about Lukács and romanticism:
some considerations about the steps of a life's itinerary
Ester Vaisman**
Resumo: No presente artigo pretende-se, de um
lado, configurar alguns momentos do itinerário de
Lukács, com o objetivo de indicar as
características de suas constantes autoavaliações.
De outro, apontar para os modos pelos quais ele
faceou o romantismo e a originalidade de sua
análise a respeito de Goethe.
Palavras-chave: György Lukács; romantismo;
Goethe.
Abstract: This article intends, on the one hand,
to characterize some moments in Lukács'
itinerary, with the aim of indicating the
characteristics of his constant self-evaluations.
On the other hand, point to the ways in which
he faced romanticism and the originality of his
analysis of Goethe.
Keywords: György Lukács; romanticism; Goethe.
Se quisermos combater a influência das correntes
reacionárias alemãs dominantes até agora não
com fraseologias, mas na realidade, é
imprescindível tomar conhecimento das lutas
culturais, ideológicas que produziram a literatura
e a filosofia alemãs clássicas.
(Lukács, Prefácio de 1947 a
Goethe e seu tempo
)
Introdução
Talvez possa ser dito que uma das principais contribuições de Lukács tenha
sido a de sustentar em uma época quando ainda era necessário demonstrá-lo
mesmo aos marxistas que seria possível pensar uma estética a partir de Marx,
muito embora as suas formulações sobre a arte em geral e a literatura em particular
nunca tenham se constituído em um sistema inteiramente conexo e fechado. A
despeito disso, para comprovar sua tese, Lukács refere a existência de passagens,
*Reedição, com modificações, do capítulo originariamente publicado em: (VAISMAN; VEDDA, 2014).
**Professora titular aposentada do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.653
Ester Vaisman
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trechos de obras e correspondências em que Marx e Engels tocaram em problemas
capitais da literatura, por exemplo (LUKÁCS, 1981, p. 164-165).
Tal propositura é revelada em um artigo escrito em 1922, intitulado Origem e
valor da obra poética.
nesse momento, em pleno processo de transição ao
marxismo, com todas as vicissitudes por ele reconhecidas em 1967
1
, afirma a
superioridade da abordagem de Marx em comparação às
considerações mitologizantes da história literária burguesa, que pretendem
explicar a época a partir das grandes personalidades e a arte a partir da
essência do nio; com isso, tais considerações se movem,
evidentemente, em círculos, que o gênio, por sua vez, pode ser
explicado a partir das obras de arte (LUKÁCS, 2009, p. 27).
Com o intento de demonstrar a fertilidade do tratamento marxista da obra de
arte, Lukács aduz que mesmo “se estivéssemos em condições de explicar, segundo o
método marxista, não apenas a
origem
, mas também, o
efeito
da obra poética, não
teríamos esgotado em verdade o conhecimento da literatura” (LUKÁCS, 2007, p. 29).
Por quê? Porque seria necessário, ainda segundo ele, explicar as razões que levam
determinadas obras a exercer influência em rias épocas históricas. De acordo com
Guido Oldrini,
no início dos anos 30, durante o trabalho realizado em Moscou em
colaboração com o crítico soviético Michail Lifschitz, amadurece em Lukács
a certeza acerca da autonomia estética do marxismo, a convicção de que a
estética forma uma seção orgânica coerente em si mesma (OLDRINI,
2007, p.139).
Afirmar, contudo, a possibilidade do tratamento da obra de arte a partir da
perspectiva de Marx, não implica, por parte do autor húngaro, o tratamento
a priori
do fenômeno artístico a partir de categorias subjetivas ou previamente elaboradas.
Muito ao contrário. No decorrer de vários anos, Lukács se dedicou
a ensaios de crítica literária e estudos de história da literatura e filosofia,
sem incursões, exceto as crítico-históricas, no âmbito da estética. O
trabalho na estética propriamente dita somente pôde começar depois de
que, em novembro de 1952, ele coloca a palavra fim no livro
A
destruição da razão
[...] (OLDRINI, 2007, p. 139).
Antes disso, porém, a ideia de uma estética sistemática sequer existia, fato que
o próprio Lukács refere no prefácio de sua
Estética
: “Quando por volta de 1930
voltei a ocupar-me intensamente de problemas artísticos, não pensava em uma
estética sistemática, a não ser como uma perspectiva muito distante no horizonte”
1
. Cf. Prefácio de 1967 ao livro
História e consciência de classe
(LUKÁCS, 2003, p. 1-50).
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(LUKÁCS, 1966, p. 30).
I Alguns momentos do itinerário de Lukács:
Vamos examinar alguns momentos desse longo e sinuoso percurso, tomando-
se como ponto de partida as estadas de Lukács em Moscou. É claro que não se tem
a pretensão aqui de apresentar um roteiro biográfico completo do autor em tela. A
ideia é resgatar alguns episódios de seu itinerário com o fito de esclarecer, de modo
mais aproximado possível, o modo como Lukács, em linhas gerais, lidou com a
cultura e a realidade alemãs e, sobretudo, com o romantismo, além de destacar o
caráter precoce de suas propaladas “autocríticas”, que marcam o curso de sua
formação. Outrossim, dada a proliferação de abordagens que vinculam, por meio de
critérios duvidosos e sem amparo textual, o romantismo às reflexões e
posicionamentos do autor, é imperioso, ainda que de modo aproximativo, tratar
criticamente o modo como Lukács, de fato, lidou com a questão.
Ademais, é bom esclarecer, que não se pretende esgotar o conteúdo, muitas
vezes complexo e pleno de facetas e descontinuidades, com que Lukács faceou o
tema ao longo de seu longo e sinuoso itinerário. O objetivo aqui é bem mais
modesto e visa, do mesmo modo, a tecer alguns comentários ao relevante conjunto
de textos intitulado
Goethe e seu tempo
, recentemente publicado no Brasil.
Na sua primeira estada em Moscou, a partir do começo de 1930, ao deixar o
exílio de Viena, trabalha por mais de um ano no Instituto Marx-Engels, dirigido na
época pelo competente filósofo David Borisovich Riazanov, que então cuidava da
edição dos manuscritos juvenis de Marx e empreendia a publicação da
Marx-Engels
Gesamtausgabe
(Mega), que restou incompleta com sua expulsão em 1931 do PC
soviético, e posterior desaparecimento no bojo dos expurgos stalinistas. Foi uma
experiência mais do que invulgar, responsável por sua
inflexão decisiva
em relação
ao pensamento marxiano, e da qual ele se recordava com grande entusiasmo até o
fim da vida, como, por exemplo, na entrevista à
New Left Review
em 1968:
Quando estive em Moscou, em 1930, Riazanov me mostrou os manuscritos
de Marx elaborados em Paris em 1844. Você pode imaginar meu
excitamento: a leitura destes manuscritos mudou toda a minha relação com
o marxismo e transformou minha perspectiva filosófica (LUKÁCS, 1981, p.
49).
Essa experiência invulgar abriu certamente novas perspectivas para o filósofo, entre
as quais, a de que era necessária como referimos linhas acima uma estética
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marxista que partisse da reconstrução das concepções estéticas formuladas por Marx
e Engels, que por seu turno não se restringia a uma aspiração de ordem puramente
teórica, “a elaboração também tinha como objetivo uma política cultural que se
opusesse às tendências no interior do
Proletkult
, ou seja, as simplificações
sociologistas da linha iniciada por Plekhánov e Mehring” (BOLLENBECK, 2007, p.
130).
Na segunda, desde o momento em que é obrigado a abandonar a Alemanha,
avassalada pelo nazismo. Longo período de mais de uma década, não pôde retornar,
como da primeira vez, ao Instituto Marx-Engels, tendo centrado suas atividades em
revistas como
Internationale Literatur, Uj Hang
(Nova Voz),
Das Wort
e, muito
especialmente, na
Literaturnyi Kritik
, publicação de feitio independente que circulou
de 1933 a 1940, da qual foi, junto com M. Lifschitz, o eixo intelectual. Contraposta
às tendências literárias oficiais, representadas em especial pelo romancista Alexander
Fadeyev, que por sua estrita obediência política ao stalinismo detinha papel dirigente
na
União dos Escritores
(sucessora da RAPP), a
Literaturnyi Kritik
sofreu ataques
constantes e desafios polêmicos, e acabou extinta por ocasião de uma
“reorganização”. A partir daí, Lukács não teve mais acesso à imprensa literária russa.
2
Evocando o primeiro turno desses exílios, no Prefácio ao seu volume antológico
Arte e sociedade
, publicado em Budapeste no ano de 1968, Lukács declara:
No Instituto Marx-Engels conheci e trabalhei com o companheiro Michail
Lifschitz, com quem, no curso de longos e amigáveis colóquios, debati as
questões fundamentais do marxismo. O resultado teórico mais importante
desta clarificação foi o reconhecimento da existência de uma estética
marxista autônoma e unitária. Essa afirmação, indiscutível hoje em dia,
parecia no início dos anos trinta um paradoxo até para muitos marxistas.
(LUKÁCS, 1977, p. 11-12)
Neste campo, importa lembrar, imperavam ainda as concepções próprias ao
quadro de ideias formulado pela II Internacional.
Assim, nos discursos teóricos sobre fenômenos estéticos continuavam a
dominar as opiniões de Plekhánov e Mehring, para os quais a estética não
era uma parte integrante do sistema marxista. Plekhánov se reportava
principalmente ao positivismo francês e às tradições da crítica democrático-
revolucionária russa; Mehring por sua vez invocava a Kant e a Schiller
(LUKÁCS, 1977, p. 11-12).
No entanto, estas posições típicas da II Internacional cederam lugar, com
inesperada rapidez, à tese sustentada por Lukács e Lifschitz, junto a uma parte dos
2
A esse respeito, ver Lukács, (1974) e Prévost (1974, p. 7-59).
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marxistas daquele momento. Estes, todavia, sintomaticamente ignoravam a origem
intelectual dessa viragem. A difusão da nova tese se dera, e disto se beneficiara, em
meio ao emaranhado do combate oficial à chamada ortodoxia plekhánoviana, a ideia
de que Plekhánov fosse o mediador entre Marx e Lênin. A nova posição, que
agregou ao debate a crítica às concepções estéticas de Mehring, tornou-se pública
precisamente com o ensaio
O debate Franz von Sichingen entre Marx-Engels e
Lassalle
(
Internacionale Literatur
, 1933), no qual Lukács examina a discussão
travada, entre março e maio de 1859 (note-se que é logo após a redação de
Para a
crítica da economia política
), a propósito da extemporânea tragédia histórica de
autoria de Ferdinand Lassalle.
Em realidade, com esse texto, ou mais precisamente com o padrão reflexivo
alcançado no tratamento de sua temática básica, é que Lukács baliza, segundo
avaliação explícita, o início da parte propriamente marxista de sua obra. É no mesmo
Prefácio de
Arte e sociedade
que se lê:
A guerra e depois as revoluções russa e húngara determinaram uma
inflexão profunda na minha concepção da sociedade e na minha ideologia,
fazendo de mim um marxista. Procurei examinar de modo particularizado
esse processo, sem excluir o fracasso de minha primeira tentativa filosófica
marxista (
História e consciência de classe
) [...]. Limitar-me-ei a ressaltar que
esse processo termina em 1930, quando levei a termo meus estudos sobre
Marx no Instituto Marx-Engels de Moscou. [...] Até aquele momento havia
procurado interpretar corretamente Marx à luz da dialética hegeliana; a
partir daquele momento procurei utilizar para o presente os resultados de
Hegel e do pensamento filosófico burguês - que havia alcançado com Hegel
seu ponto culminante e também a crítica de seus limites, na base da
dialética materialista de Marx e Lênin. Enquanto a maior parte dos
dirigentes da segunda internacional havia visto em Marx exclusivamente, ou
ao menos em primeiro lugar, aquele que havia revolucionado a economia
política, agora, pelo contrário, se começou a compreender que com ele teve
início uma nova época na história de todo o pensamento humano, que a
atividade de Lênin havia tornado atual, efetiva.
O reconhecimento da
autonomia e da originalidade da estética marxiana foi o meu primeiro passo
na compreensão e efetivação de uma nova inflexão ideológica
(LUKÁCS,
1977, p. 11-12, grifos meus).
II - Do ensaísmo neokantiano à filosofia marxiana
Esclarecimentos do tipo acima estampados, que determinam as vicissitudes da
formação marxista de G. Lukács, devem ser plenamente considerados, quando mais
não seja por simples isenção e elementar honestidade intelectual. Constituem, de
fato, um autoentendimento reiterado por décadas, uma refletiva convicção que não
resultou de constrangimentos externos, mas de posturas rara e exigente, peculiar à
biografia lukácsiana: submeter a avaliações periódicas, com rigoroso critério objetivo,
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sua própria vida e obra.
Conduta que a adesão ao marxismo reforçou, mas que bem antes estava
configurada. Isso põe em evidência, acima de tudo, o perfil de um caráter, o grau de
desenvolvimento de uma personalidade, que pelo seu feitio não pôde deixar de
irritar e chocar, de afrontar e levar à perplexidade o tão diverso padrão de conduta
intelectual dominante no último século e, não por acaso, com cores acentuadas
atualmente.
Que outro pensador contemporâneo foi capaz de renunciar crítica e
deliberadamente, como ele fez por diversas vezes, ao prestígio de obras
consagradas? Renúncia que chegou ao total divórcio delas, a ponto mesmo de
manifestar completa desidentidade autoral por textos que teriam feito, cada um de
per si
, a inconfessa e sempre almejada glória de carreira de qualquer um (sobretudo
no meio acadêmico), inclusive dos melhores e mais respeitáveis.
Esse desapego, sinônimo de enorme exigência para consigo mesmo, que nunca
declinou em arrogância ou pedantismo, nem em autoproclamações de méritos ou em
bravatas de autossuficiência, em que pese a imensa solidão teórica a que esteve
constrangido seu trabalho, essa aguda consciência da responsabilidade de ser
homem e intelectual aflorou muito cedo, logo aos primeiros passos
3
.
Tem com certeza sabor de arroubo juvenil a decisão, aos dezoito anos (1903),
de queimar todos os seus escritos literários alguns dramas
à la
Ibsen e Hauptmann
(redigidos nos três anos anteriores), que em definitivo julga então “horrivelmente
ruins”. Gesto incomum, exatamente porque juvenil, e ainda mais porque dele nasceu
um critério secreto para estabelecer as fronteiras da literatura, qual seja: era
ruim aquilo que eu também poderia escrever. A literatura começa onde
tenho a impressão de não poder escrever a obra em questão (LUKÁCS,
1999, p. 32).
Apreendido pela anatomia da maturidade e velhice de Lukács, o impulso
invulgar da juventude aparece como germe ou prenúncio. Bem menos drástico, não
por isso deixando de ser muito mais significativo, é o episódio que envolve o
primeiro livro de Lukács,
História da evolução do drama moderno
, cuja primeira
versão foi finalizada aproximadamente quatro anos depois. Ainda estudante da
Faculdade de Letras de Budapeste, Lukács empreende, de 1904 a 1909, um amplo
3
Sobre as continuidades e descontinuidades no itinerário de Lukács ver: Fortes (2015, p. 177-193).
Ver também Tertulian (2008).
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projeto no campo teatral, através da fundação da
Thalia Bühne
(
Thalia Gesellschaft
),
da qual foi um dos diretores. É a sua participação no radicalismo intelectual húngaro,
que havia identificado no teatro o instrumento mais apropriado para promover a
“subversão das consciências” que tinha por alvo. Desse empenho concreto no campo
artístico, da reflexão de inúmeras questões dramatúrgicas praticamente afrontadas é
que tem origem
O drama moderno
. Premiado pela obra em 1908, Lukács entra em
desespero porque Eu achava que toda aquela gente não era competente para julgar
o assunto. Por conseguinte, a atribuição do prêmio a mim significava,
automaticamente, que devia haver algo ruim no meu livro”. É muito expressivo, do
traço lukácsiano, aqui posto em evidência, que ele confesse que Procurava o que
havia de ruim, sem, no entanto, conseguir descobrir”, e que, no caso, a ajuda tenha
vindo de Léo Popper, a quem considerava “talvez o maior talento que encontrei na
vida”, e de quem afirmava também que possuía um senso infalível para a
qualidade”. Ajuda que consistiu não da indicação do que não funcionava no livro,
mas, ao contrário, do que “funcionava bem”. Bem mais adiante, sem desmerecer em
nada o auxílio de o Popper, tornando a avaliar a obra, em outro diapasão
analítico, recordou que A verdadeira filosofia do meu livro sobre o drama é a
filosofia de Simmel (LUKÁCS, 1999, p. 38), o que no contexto da historiografia
literária húngara do começo do século, no entanto, significava um contraste total
com a mesquinhez das variantes positivistas tanto do oficialismo literário como de
seus opositores, entre os quais também se manifestava, em sua estreiteza, o
impressionismo subjetivista a título de posição estética.
Em verdade, o que movia Lukács, desde o início, era a busca de uma forma de
interpretação das manifestações literárias que não fosse uma mera abstração de seus
conteúdos peculiares. Donde, na contraposição teórica em que se encontrava e sob a
aderência ao neokantismo, não ter ido além, naquela época, da equação armada em
História da evolução do drama moderno
: a da pura síntese intelectual entre
sociologia e estética, sob o amparo e sustentação do pensamento de Simmel, em
lugar de partir “das relações diretas e reais entre a sociedade e a literatura”, como
dirá no Prefácio
a
Arte e sociedade
. No qual afirma também que “não pode
surpreender que de uma postura tão artificiosa tenham derivado construções
abstratas”, sempre insatisfatórias, até mesmo quando atinam com alguma
determinação verdadeira.
Em suma, o que então praticara e que “funcionava bem” , mas que
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indiretamente o pusera em desespero, em que atinasse com a natureza do problema
fora um brilhante exercício de
ciência do espírito
. A mero título de ilustração, vale
reproduzir uma passagem do Preâmbulo da obra, escrito em dezembro de 1909: “A
forma autêntica do artista autêntico é
a priori
: é uma forma constante em face das
coisas, um algo sem o qual ele nem mesmo as poderia perceber. [...] Dizíamos: a
forma é a realidade social, participa vivamente da vida espiritual” (LUKÁCS, 1964, p.
77-78). Com abstrativismos desse tipo a forma como um
a priori
social , que
buscam exatamente amalgamar estética e sociologia (ou melhor, uma certa
sociologia), não é impossível brilhar, mas se deixa fora de alcance a especificidade
literária, bem como o preciso conteúdo humano-social que ela refigura em cada
expressão efetiva. Para quem aspirava o inverso e praticara o contrário do
pretendido, havia mesmo com que se desesperar, não obstante o talento revelado na
confecção do livro, que fora reconhecido e laureado. É precisamente a denúncia
dessa abstratividade destemperada que constitui o núcleo das considerações de
Lukács sobre
O drama moderno
no Prefácio
a
Arte e sociedade
:
Embora o ponto de partida histórico-literário, a tentativa de explicar a
forma dramática através dos efeitos produzidos sobre a massa, fosse dado
por generalização de observações justas, embora o livro contenha também,
sem dúvida, análises que se revelaram exatas, a concepção de fundo, a tese
segundo a qual o conflito dramático (trágico) é uma manifestação
ideológica da decadência de classe, precisamente por efeito de sua
abstratividade é uma construção vazia. É decerto verdadeiro que um drama
autêntico nasce somente se na realidade social as normas morais válidas,
que se criam necessariamente na sociedade, entram em contraste entre si e
se excluem mutuamente, mas a dedução direta e necessária desta
concepção da decadência de classe é de todo abstrata e se manifesta,
portanto, como uma construção vazia. (LUKÁCS, 1977, p. 6)
integrado à sua estrutura de personalidade, o “exame de consciência”
alcançará depois, sucessivamente, dois livros famosos:
A alma e as formas
(1911) e
A teoria do romance
(1914/15), obras do trânsito lukácsiano de Kant a Hegel que
culmina no último. É o percurso que o leva, sem abandonar o território das assim
chamadas
ciências do espírito
(Dilthey, Simmel, Weber), da filosofia e da nascente
sociologia alemã de Simmel para uma forma da
ciência do espírito
acoplada ou
traspassada pelo hegelianismo, responsável pela urdidura de
A alma e as formas
e
com acentuação maior de
A teoria do romance
.
Estas, é de lembrar, foram obras muito bem recebidas, inclusive por expoentes
máximos da cultura alemã, de então: Thomas Mann foi dos leitores que aprovaram
A
teoria do romance
e anteriormente afirmara que
A alma e as formas
era “a coisa mais
extraordinária que jamais fora dita sobre este tema paradoxal”; Max Weber, por sua
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vez, que não exerceu, naquele momento, influência sobre Lukács, mas sofreu a
influência deste, especialmente no que tange à reflexão das questões éticas, além de
apreciar esses dois livros, mostrou-se muito sensibilizado por outro texto lukácsiano
daquela época
Sobre pobreza do espírito
(1911), ao qual se referiu como um
“ensaio profundamente artístico” no qual à força criativa do amor é concedido o
direito de infringir a norma ética. E Max Dvorák, historiador tcheco da arte, chegou
mesmo a considerar
A teoria do romance
como o trabalho mais importante no
âmbito da vertente configurada pelas ciências do espírito (TERTULIAN, 1971, p. 18).
E, já nos princípios dos anos sessenta, Lucien Goldmann dirá que o livro
A alma
e as formas
por numerosas razões marca uma data essencial na história do pensamento
contemporâneo. Em primeiro lugar, porque depois de muitos anos de
filosofia acadêmica, Lukács recuperava nessa obra a grande tradição da
filosofia clássica, colocando no centro de suas preocupações o problema
das relações entre a vida humana e os valores absolutos (GOLDMANN,
1963, p. 25).
E ainda mais, que é com essa obra que “provavelmente começa na Europa o
renascimento filosófico que se seguiu à Primeira Guerra Mundial” (GOLDMANN,
1963, p. 25). De modo que Lukács “foi o primeiro no século XX a colocar os
problemas que dominam o pensamento filosófico e que desde a morte de Hegel
havia, mais ou menos, desaparecido da consciência europeia”. Sobre
A teoria do
romance
, Goldmann não é menos acolhedor e enfático. É também em sua Introdução
aos
Primeiros escritos de Georg Lukács
que se lê:
A
Teoria do romance
estuda as grandes formas épicas que, contrariamente
às que havia elegido precedentemente, são
realistas
, isto é, descansam, se
não sobre uma acepção da realidade, pelo menos sobre uma atitude
positiva em relação a uma realidade
possível
, cuja possibilidade está
fundada no
mundo existente.
[...] Assim, numa época em que a crise da
sociedade ocidental se tornara manifesta a todos aqueles que, poucos anos
antes, não haviam sequer suspeitado dela, Georg Lukács, que havia sido um
dos primeiros a descobri-la, afirma a categoria da esperança realista e
esboça, por isso mesmo, a categoria central de seu pensamento ulterior, a
categoria de
possibilidade objetiva.
(GOLDMANN, 1963, p. 25)
Sucesso e boa acolhida, no entanto, que não impediram Lukács, em suas
avaliações, de denunciar
A teoria do romance
precisamente como um produto típico
das ciências do espírito, por isso mesmo comprometida pelo seu método ilusionista,
que operava por meio do estabelecimento intuitivo de abstrações infundadas, a
partir das quais, por dedução, eram abordados os fenômenos singulares. O mesmo
ocorrendo quanto ao passo anterior desse andamento, que se esforçava por dar
as costas ao modo abstrato-especulativo de entender e examinar as formações
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literárias e de refletir sobre os problemas vitais da existência humana que elas
encerram.
O autor admite que certas tematizações por ele alcançadas em
A alma e as
formas
teriam logrado alguns avanços, mas
o meu esforço de concreção se limitava à tentativa de apreender a estrutura
interna, a essência geral de determinadas formas típicas do comportamento
humano e de relacioná-las, assim, às formas literárias, mediante a
refiguração e a análise dos conflitos da vida (LUKÁCS, 1964, p. 9 -10).
De modo que as substancialidades das formas literárias afloravam nitidamente
em separado do processo histórico real. O que lhe permite concluir, pondo sem o
dedo sobre a ferida, que neste momento de seu itinerário intelectual não havia se
alçado mais do que a uma posição que “opunha, ao sociologismo abstrato das
minhas primeiras tentativas (
O drama moderno
), uma generalização filosófica não
menos abstrata" (LUKÁCS, 1964, p. 9-10).
É oportuno ressaltar, para que não reste qualquer dúvida, quanto à natureza
das autoavaliações lukácsianas, que sua insatisfação e completo distanciamento de
A
alma e as formas
é extremamente precoce. Mal havia transcorrido um ano de sua
publicação, manifesta total
indiferença
pela obra; sentimento que veio a reiterar,
ao longo de toda a vida, em relação a todos os seus “trabalhos intelectuais
superados”.
É numa carta (25 set. 1912) à escritora Margarete Susman (von Bendemann),
que três semanas antes havia publicado uma resenha de
A alma e as formas
, que
podemos apreciar por inteiro a posição e o comportamento de Lukács, em flagrante
tão característico quanto ilustrativo, especialmente porque distante quase vinte anos
de sua desembocadura propriamente marxista.
O pensador húngaro principia por declarar, gentilmente, que quase tudo que
havia de essencial em seu livro fora compreendido e formulado com força e
segurança pela resenhista, como poucos o haviam feito até então; agradece muito
que M. Susman tenha “apreendido o momento mais importante do meu caminho: o
meu conceito de forma” e externa também muita satisfação porque a autora do
pequeno artigo ressaltara “o papel da história, bem como a importância dos ensaios
inicial (
Sobre a essência e a forma do ensaio
) e final (
Metafísica da tragédia
)” no livro
sumariado (LUKÁCS, 1984, p. 302-305).
Todavia, logo à frente, naquele longínquo momento, Lukács explicita,
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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tipicamente, em face dos comentários da resenhista, um “ponto de discordância”,
que muito menos censura uma interpretação errônea do livro tal como ele é do que
denuncia um defeito de sua própria obra. Para o autor de
A alma e as formas
,
Margarete Susman converte em “traço característico” aquilo que é “condição” do
ensaio, ou seja: “a ética da forma ensaística é o desespero, que nasce do
antiquíssimo dissídio interno dessa forma”. Em outros termos, “a inevitável falta de
conclusão última é o desespero deste livro”. A esse admitido comprometimento
formal da obra, Lukács contrapõe, de imediato, a seguinte consideração sintomática,
relativa à necessidade de conclusão “mas ao menos como o sinto hoje ela é
mirada algumas vezes de longe”. E desenvolve a crítica, dizendo que Susman
“considera essa meta inatingível e a sua inatingibilidade um ‘fato’ da filosofia da
história, uma característica do nosso tempo”, para replicar duramente e com muita
ênfase:
Para mim (inclusive no momento em que escrevi os ensaios inicial e final) a
meta está diante de mim perfeitamente atingível. Todavia, se eu não a
atingisse, isso não seria um fato para extrair conclusões acerca da
essência do sentimento metafísico, mas uma sentença a meu respeito (e
somente a meu respeito), sobre meu não chamamento à filosofia (LUKÁCS,
1984, p. 302-305).
De fato, é indubitável a recusa lukácsiana à inconcludência ensaística, tanto
quanto sua franca perseguição a uma verdade única e real, mesmo que à época a
identificasse abstratamente a um sistema absoluto, como testemunham suas próprias
palavras:
Se refutamos a possibilidade de responder a pergunta última, que decide
tudo, todas as nossas categorias perdem por isso seu significado
constitutivo e cada anunciado nosso acerca daquilo que está além e fora de
nós permanece em nós, torna-se reflexivo, nós perdemos a decisiva
responsabilidade pelo rigor dos conceitos, que de fato pode se dar pelo
enquadramento hierárquico no sistema absoluto (LUKÁCS, 1984, p. 302-
305).
É este, em realidade, o verdadeiro problema da crítica lukácsiana a
A alma e as
formas
, pouco depois de sua publicação: a inconcludência da obra determina sua
indiferença por ela, pois ao contrário do que gostariam de ver alguns de seus
intérpretes, não é de seu espírito, nem mesmo em sua fase idealista mais
exacerbada, exultar no gozo da patinação impotente entre contrapostos
“equivalentes” e indeterminações “intransponíveis”. Para ele, naquele momento, a
incapacidade de concluir é uma debilidade muito grande e muito desconfortável, que
confessa, ao mesmo tempo que anseia por ultrapassar. É o que esclarece à
resenhista, afirmando que, nos ensaios de
A alma e as formas
, não deixou nunca de
Ester Vaisman
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procurar fugir ao perigo da invalidação da
questão última
, de modo que “tudo que
neles de aparentemente muito subjetivo, ‘poético’, fragmentário nasceu do
esforço de tentar ser unívoco, incisivo, responsável sem possuir, sem
ainda
, a
responsabilidade evidente do sistema completo” (LUKÁCS, 1984, p. 302-305).
É óbvio, portanto, que seja, no mínimo, extremamente problemático atribuir a
Lukács, mesmo ao tempo dessa obra, um mero e simples
pathos trágico
, e, muito
mais do que isso, estender tal estado de espírito para seus futuros trabalhos. Tal
tese desentende e subverte por completo o perfil lukácsiano, especialmente em
momentos cruciais de sua evolução, inviabilizando a compreensão do momento
efetivo de sua inflexão marxiana.
Para efeito, no entanto, do que aqui se pretende sua precoce
incompatibilização com
A alma e as formas
basta arrematar com um último trecho
da carta a Margarete Susman:
Em realidade, por este livro, que provavelmente é menos do que um início,
não deveria esperar ser entendido, e decerto não o poderia exigir (como
pode pretender um ato do espírito que seja objetivo, concluso). Está, de
fato, repleto de saber intuitivo sobre aquilo que (por mim) virá,
pensamentos cujos caminho e fim somente agora vão se tornando claros
quando o conjunto e sua forma se tornaram para mim absolutamente
estranhos
(LUKÁCS, 1984, p. 302-305).
Esta última frase, grifada por mim, foi retomada por Lukács cinquenta e cinco
anos depois de escrita, para com ela evidenciar que sempre se tornou
indiferente
em
relação a obras superadas. Está inserida no volume II de suas
Obras completas
,
precisamente no Prefácio de 1967, o que lhe confere, pela importância do texto e
pela proximidade da morte do autor, expressividade ainda maior. O que deve
prevalecer, a força de um testemunho meio secular, muito bem articulado, ou alguma
grosseira imputação especulativa das muitas que a mediocridade lhe tem brindado?
Por sua vez, o diagnóstico que oferece sobre
A teoria do romance
, aludido
mais atrás, não não exclui esta obra do terreno achatado das abstrações na
prática da análise literária, como até mesmo confere a ela dimensão de
exemplaridade na ordem dessa debilidade analítica. Ou, posto em suas próprias
palavras:
A teoria do romance
é um representante típico da ciência do espírito, sem
apontar para além de suas limitações metodológicas” (LUKÁCS, 2009, p. 11). O que
é tanto mais significativo, se não se põe de lado que o talhe da crítica lukácsiana é
consistentemente matizado; ou seja, não deixa de discernir e apontar aspectos
válidos, conquistas parciais efetivadas nesse livro como nos anteriores.
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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Discernimento, todavia, que não o induz, como é tão frequente, a fragilizar a reflexão
crítica e a partir disso resvalar para o fosso comum da relativização de méritos e
deméritos. Ao contrário, é sobre a malha diferenciada destes que faz sobressair a
franqueza do resultado:
O autor de
A teoria do romance
estava em busca de uma dialética geral dos
gêneros, baseada na essência das categorias estéticas, na essência das
formas literárias dialética esta que aspira a uma vinculação entre
categoria e história ainda mais estreita do que aquela por ele encontrada
no próprio Hegel; buscava apreender intelectualmente uma permanência na
mudança, uma transformação interna dentro da validade da essência. Seu
método, no entanto, permanece muitas vezes extremamente abstrato,
precisamente em contextos de grande relevância, desvinculado das
realidades histórico-sociais concretas. Por isso, com exagerada frequência
ele conduz [...] a construções arbitrárias. (LUKÁCS, 2009, p. 13)
O reconhecimento dos matizes a propósito de
A teoria do romance,
alcança
inclusive as determinações extrateóricas da gênese desse livro, e com isso torna
ainda mais precisa a fisionomia intelectual e vivencial do seu autor quando da
elaboração do texto.
O estalar da guerra de 1914 e seu efeito sobre a intelectualidade de esquerda,
ao ser assumida pela social-democracia, é que determinam o projeto de redação de
A teoria do romance
. Esta “nasceu de um estado de espírito de permanente
desespero diante da situação mundial” (LUKÁCS, 2009, p. 8), diz Lukács, que por
mais de uma vez lançou mão de uma fórmula de Fichte para caracterizar a imagem
que nutria daquele tempo: “época da pecaminosidade consumada” (LUKÁCS, 1999,
p. 49). Essa visão infernal de uma Europa sem brechas e sem horizontes, tecida de
pessimismo eticamente modulado, faz do Lukács de
A teoria do romance
um
utópico
primitivo
, para utilizar uma expressão quase idêntica de seu próprio uso. De tal sorte
que ele pode afirmar:
A teoria do romance
não é de caráter conservador, mas
subversivo” (LUKÁCS, 2009, p. 16). E, de forma mais concreta:
no plano metodológico é um livro de história do espírito. Mas acredito
que seja o único livro desse tipo que não é orientado à direita. Do ponto
de vista moral, eu considero a época inteira condenável, e a arte como boa
só quando se contrapõe a este fluxo das coisas (LUKÁCS, 1999, p. 49).
Não expressões mais fortes do que as do próprio filósofo húngaro para
designar o utopismo sobre o qual assentava, então, sua reflexão e sua perspectiva
prática: “primitivo”, “sumamente ingênuo”, “totalmente infundado” são os
qualificativos que emprega sem qualquer embaraço. Toda sua esperança residira na
cândida suposição de que “do colapso do capitalismo, do colapso a ele
identificado [...] das categorias socioeconômicas inanimadas e hostis à vida, possa
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nascer uma vida natural, digna do homem (LUKÁCS, 2009, p. 16). É algo como uma
antecipação do que na década de vinte viria a se firmar como uma ideia da reação:
ultrapassar o mundo da economia por meio da movimentação social; e não deve
escandalizar a lembrança de que, por suas características teóricas e práticas, a
Segunda Internacional não está isenta de responsabilidade quanto à preparação
dessa idealidade perversa. Mas, ao tempo da redação de
A teoria do romance
, a
tônica estava do outro lado, e o quadro em germe daquele nódulo ideológico ainda
não havia se clivado, de modo que ambos, quadro e tônica, pertenciam à
generosidade equivocada de muitos daqueles que aderem, como Lukács, pela
extinção do prosaico mundo burguês. Em outros termos, o inocente utopismo que
subjaz em
A teoria do romance
não é um privilégio negativo de seu autor, mas, em
sua esquálida figura alimenta um texto que expressa apesar de tudo uma corrente
espiritual que, efetivamente, existia na época” (LUKÁCS, 2009, p. 17).
Possuído por esse estado de ânimo, hoje quase inacreditável, e atado a uma
ciência do espírito formalmente hegelianizada, sobre a qual ainda projetava
elementos kierkegaardianos, além de conceber a realidade social pela lupa de Sorel,
eis em concreto o polifrontismo teórico-político que (des)organiza a cabeça de
Lukács aos trinta anos de idade. Contudo, mesmo nesse escândalo eclético-utópico,
pleno e reconhecido, Lukács, nos seus reexames, é capaz de garimpar as distinções,
localizando com toda propriedade o polo de inflexão positiva:
A teoria do romance
permaneceu uma tentativa que fracassou tanto no projeto quanto na execução, mas
que em suas intenções aproximou-se mais da saída correta do que seus
contemporâneos foram capazes de fazê-lo” (LUKÁCS, 2009, p. 13). O caráter dessa
impulsão, que faz chegar mais perto do que ninguém da solução apropriada, está
inscrito na própria obra (o que faz das “intenções” algo para além do mero desejo ou
do voto piedoso), pois ela
delineia - naturalmente ainda no interior da literatura burguesa - a teoria do
romance revolucionário. Não havia ainda qualquer coisa do gênero naquela
época. Existia uma concepção do romance na esteira das ciências do
espírito, que era conservadora tanto no plano artístico quanto no plano
ideológico. A minha
Teoria do romance
não era revolucionária no sentido
do revolucionarismo socialista, mas era revolucionária comparada à ciência
da literatura e à teoria do romance da época (LUKÁCS, 1999, p. 49).
A diferença entre os dois níveis revolucionários está em que
a época da pecaminosidade consumada de Fichte significa que a Europa
foi lançada, da solidez aparente em que os homens viviam até 1914, para
onde se encontrava. Por isto essa época corresponde perfeitamente, em
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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sentido negativo, à verdade. falta, naturalmente, aquilo que foi a
conclusão de Lênin, isto é, que a sociedade inteira deve ser radicalmente
transformada. Em
A teoria do romance
isto ainda não existia (LUKÁCS,
1999, p. 50).
Posto em outras palavras, deliberadamente contundentes: em 1915 Lukács
ignorava completamente a Lênin, e estava muito aquém do Marx de 1844. Palavras
fortes, aliás, que não podem surpreender, visto que os depoimentos lukácsianos vão
sempre nessa direção, como por exemplo, em
Pensamento vivido
, quando ao invocar
como documento o romance
Os otimistas
de Ervin Sinkó, afirma:
como era confusa a relação ideológica que os intelectuais daquela época
mantinham com o comunismo. Dizer que eu fazia parte do grupo de
pessoas que via as coisas com certa clareza revela a magnitude de tal
confusão. Não pretendo exaltar a mim mesmo, quero delinear o estado
de ânimo geral. A formação marxista, mesmo de pessoas como eu, que
tinham lido Marx, era muito limitada (LUKÁCS, 1999, p. 56).
Portanto, a contundência empregada visa muito mais à identificação crítica da
época do que do autor. Tempo, em suma, como outros do gênero, que desfavorecem
e embaraçam o acesso à lucidez; no caso, a ascensão para o pensamento marxiano
de um talento íntima e espontaneamente inclinado, sem o saber, para as teses e
resoluções desta vertente. Esta observação não é efeito de mera conjectura genérica.
Data do remoto 1906, tendo tudo a ver com o que acaba de ser afirmado, uma
ocorrência do mais forte significado para a biografia lukácsiana, que estava em seus
princípios mais recuados: seu contato - de ““influência absolutamente revolucionária
com a poesia de Endre Ady. O solavanco interior recebido da obra de Ady (
Novos
versos
) [...] foi uma das experiências mais decisivas da minha vida”. Da qual, todavia,
naquela época eu não tinha a mínima ideia de sua importância. Apenas senti pelos
poemas de Ady um entusiasmo sem reservas. Esta impactante, ainda que “confusa
primeira impressão de 1906”, “não foi uma descoberta ao acaso, como
frequentemente acontece com os jovens”, e levou mesmo Lukács a ser o primeiro a
escrever, três ou quatro anos depois, a respeito da relação pessoal de Ady com a
revolução, que ele foi um revolucionário que considerava a revolução necessária para
sua própria realização pessoal”. Mas o “efeito perturbador” não se esgota neste
flanco, mesmo porque o revolucionarismo compunha a inquietação espiritual de
Lukács em sua mais tenra mocidade.
mais, e algo muito mais específico, nesse solavanco interior” produzido
pelos versos de Endre Ady:
uma coisa muito importante que na época, na verdade, o compreendi e
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cuja influência decisiva sobre toda minha formação literária e até mesmo
sobre meu desenvolvimento para além da literatura agora vejo com
clareza. [...] Mas algo havia acontecido, cuja importância compreendi
mais tarde, ou seja, que no desenvolvimento alemão e não apenas em Kant,
que eu conhecia na época, mas também em Hegel (ts ou quatro anos
mais tarde passei às apalpadelas de Kant para Hegel), bem como naqueles
alemães modernos que eu lia, se ocultava uma boa porção de concepção
conservadora do mundo (LUKÁCS, 1999, p. 40).
Para esta longa e penosa clarificação, aqui diretamente referida por Lukács, é
que terá contribuído o espírito poético do “eu não me deixo comandar” ou “me
oponho, mesmo que isto não adiante nada”, que traduziria o ânimo poético de E.
Ady, estado de espírito “que para mim declara Lukács sempre foi a música de
acompanhamento para a
Fenomenologia
e a
Lógica
de Hegel”. Referência e restrição
a Hegel que havia sido formulada, na conclusão de sua entrevista a
New Left
Review
(1968), em forma que amplia e clarifica a especificidade da crítica:
Recebi minhas primeiras influências políticas lendo Marx como um menino
de escola e depois, o mais importante de tudo, lendo Ady o grande
poeta húngaro. [...] Ele era um revolucionário que tinha grande entusiasmo
por Hegel, embora nunca tivesse aceitado aquele aspecto de Hegel que eu,
desde o início, também rejeitava: sua
Versöhnung mit der Wirklichkeit
sua
reconciliação com a realidade estabelecida (LUKÁCS, 1981, p. 40-41).
Como arremate deste trecho, no qual alude à produção histórica de barreiras à
lucidez, concretamente os embaraços sofridos por Lukács à altura da Primeira Guerra
Mundial, cabe então transcrever a conclusão que ele próprio oferece a respeito:
Nasceu, assim, uma mistura que não existia na literatura da época, ou seja, que
alguém, hegeliano e representante da ciência do espírito, assumisse ao mesmo
tempo uma posição de esquerda e mesmo, dentro de certos limites, revolucionária
(LUKÁCS, 1999, p. 41).
Basta, no entanto, para suscitar certa empatia pela disjunção vivida por Lukács,
recordar um esclarecimento seu, repetido em várias oportunidades, a propósito da
condenação absoluta que fazia de toda a situação da época, que reafirma seu
ferrenho antibelicismo, mas que vai para muito além deste:
O meu ponto de vista na época era mais ou menos o seguinte: “Os
exércitos alemão e austríaco talvez derrotem os russos, e os Romanoff
cairão. Tudo bem. Também pode ser que os exércitos alemão e austríaco
sejam derrotados pelo exército anglo-francês e que os Habsburgos e os
Hohenzollern caiam. Tudo bem também. Mas, então, quem nos protegeria
das democracias ocidentais?” Esta era a questão que se colocava. (LUKÁCS,
1999, p. 45).
Ou seja, não via nada que pudesse colocar no lugar daquilo que existia
(LUKÁCS, 1999, p. 45).
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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Em verdade aqui se está em face de uma famosa tematização de Lukács sobre
si mesmo, ou melhor, sobre uma das mais referidas de suas encruzilhadas.
Duas inclinações marcantes, desde o início presentes e que se mantêm ao
longo de todo seu itinerário juvenil, que matrizam ou traspassam a elaboração
lukácsiana. Todavia, incapazes de atinar com as vias de sua efetiva encarnação,
redundam a cada esforço numa perversão de si mesmas. A tendência mais geral e de
fundo, que orienta o homem e o pensador, é constituída pelo seu “ódio cheio de
desprezo que sentia desde os tempos de infância pela vida no capitalismo” (LUKÁCS,
2003, p. 5); a outra, restrita à esfera teórica, almeja ultrapassar a mera confecção
abstrata na atividade científica. Forças de impulsão, todavia, que se esboroam pela
trajetória que são levadas a trilhar: o antiburguesismo visceral se esvai em utopismo
ético, e o antiabstrativismo morde a própria cauda e reitera o objeto de sua própria
repulsa.
No plano e na execução de
A teoria do romance
, os dois balizamentos e seus
inversos
comparecem de modo extremado, cada um pelo seu lado mais fraco
potencializa o flanco mais débil do outro: Lukács sufoca na bruma de seu
antiburguesismo impotente, e sucumbe, mais uma vez, aos ardis do abstrativismo
da abstração irrazoável, corrompida ademais pela sua transfiguração imperial -, que
se reapresenta, apesar da nutrida aversão, com a aura do portador de soluções. As
balizas, portanto, se fundem.
A fusão de tendências de espírito contraditório é justamente o diagnóstico de
Lukács a respeito de si mesmo enquanto autor de
A teoria do romance
.
É obrigatório remeter, aqui, à famosa passagem do Prefácio de 1962 ao livro
em destaque em que essa avaliação é categoricamente formulada: “Dito
sumariamente, o autor de
A teoria do romance
possuía uma concepção do mundo
voltada a uma fusão de ética ‘de esquerda’ e teoria do conhecimento (ontologia etc.)
‘de direita’”. Para, menos de duas páginas adiante, quase ao final do Prefácio, tornar
a ela sob expressão ainda mais concisa, na qual se celebrizou e difundiu: “síntese de
ética de esquerda e epistemologia de direita” (LUKÁCS, 2009, p. 17-18).
A fórmula, para Lukács, não pretende retratar um vício ou exotismo intelectual
e anêmico de ordem meramente pessoal, mas indigitar uma posição agudamente
falaciosa que, na Alemanha, foi apenas inaugurada pela
A teoria do romance
.
Equívoco grave que, em verdade, veio a se expandir bastante na produção ideológica
Ester Vaisman
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dos anos vinte, à custa não mais de Lukács, mas de outros e diversos autores. O
Prefácio explicita alguns: Bloch, Benjamin, Adorno em seus primórdios; e assinala
que o fenômeno de “uma fusão de ética de ‘esquerda’ e epistemologia de direita’”,
na França, “era conhecido” e “emergiu muito antes do que na Alemanha”, vindo a ter
“hoje em Sartre o representante de extrema influência dessa corrente” (LUKÁCS,
2009, p. 17-18).
Interessa reproduzir na íntegra o comentário a respeito de Bloch, porque é o
mais completo, mas também porque este autor foi para Lukács uma verdadeira chave
mestra, na orientação de seu processo formativo. Em
Pensamento vivido
, declara o
pensador húngaro em seus derradeiros meses de vida:
Bloch exerceu uma enorme influência sobre mim, pois com seu exemplo me
convenceu de que é possível fazer filosofia à maneira tradicional. Até então,
eu estava perdido em meio ao neokantismo do meu tempo e encontrei
em Bloch o fenômeno de alguém que filosofava como se toda a filosofia
atual não existisse, que era possível filosofar como Aristóteles ou Hegel.
(LUKÁCS, 1999, p. 39)
Reconhecimento que não desmente, nem é contraditório com sua crítica
contundente do mesmo Bloch no Prefácio de 62, feita quase dez anos antes:
Que Ernst Bloch persevere até agora, impassível, em sua síntese de ética de
esquerda e epistemologia de direita (ver, por exemplo,
Philosophische
Grundfragen I, Zur Ontologie des Noch-Nicht-Seins
[Questões Filosóficas
Fundamentais, I, Para a ontologia do Ainda-Não-ser],
Frankfurt
, 1961)
honra seu caráter, embora não possa mitigar o anacronismo de sua postura.
teórica (LUKÁCS, 2009, p. 18-19)
No primeiro caso, Lukács mostra-se agradecido a Bloch, até o fim da vida, por
ter conseguido se desembaraçar, num momento crucial da juventude, do
gnosiologismo do começo do século. Foi, daí para frente, uma lição para toda sua
existência intelectual: a abertura da senda ontológica que, apesar de todas as
adversidades sofridas, acabou por se mostrar uma aquisição definitiva. No segundo
caso, reprova em Bloch, o que o tom de censura fraterna reforça o padrão
convencional da prática ontológica que o caracteriza; a incapacidade de romper com
procedimentos teóricos limitados e distorcidos que só podem afastar dos propósitos
configurados pela ética assumida.
Mas, do que consiste a
síntese
denúncia?
A resposta es contida, também de forma breve, no mesmo Prefácio: “uma
ética de esquerda, norteada pela revolução radical, aparece alinhada a uma exegese
tradicionalmente convencional da realidade” (LUKÁCS, 2009, p. 18).
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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O estudo da colocação é inteiramente distinto da natureza alusiva de uma mera
fórmula
expressiva: sua crítica incide sobre os dois polos da amálgama - não apenas
sobre a
síntese
de ambos e implica complexos problemáticos de ideação,
designadamente “a base filosófica de tais teorias é a atitude cambiante, tanto em
termos filosóficos quanto políticos, do anticapitalismo romântico” (LUKÁCS, 2009, p.
16).
De fato, não obstante a forma sumária, Lukács faz sua análise remontar a
pontos relativamente distantes, promovendo a inclusão de elementos diversificados
na malha das determinações.
Principia por exemplificar o momento inicial da referida linha de pensamento
com o jovem Carlyle ou em Cobbett, estágio em que trata-se de uma verdadeira
crítica do horror e da hostilidade cultural do capitalismo nascente”, ressaltando
imediatamente a seguir que, na Alemanha, essa atitude fez-se aos poucos uma
forma de apologia do atraso político-social do império dos Hohenzollern”. E para
bem enfatizar o sentido dessa mutação radical, com toda elegância, Lukács alude,
sem o dizer, ao envolvimento germano-belicista de Thomas Mann com a Primeira
Guerra Mundial, ponderando que um livro tão importante como as
Considerações de
um apolítico
, publicado pelo romancista em 1918, superficialmente pode ser
entendido como uma obra que “segue nessa mesma linha”, mas que a evolução de
Mann nos anos 20 justifica a caracterização que ele próprio ofereceu do texto:
É uma batida em retirada em grande estilo a última e mais tardia de uma
burguesia romântica alemã -, levada a efeito com a plena consciência de
sua inutilidade [...] até mesmo com a percepção da insalubridade e
imoralidade espirituais de toda a simpatia para com o que está fadado à
morte. (LUKÁCS, 2009, p. 16)
Sem dúvida, Lukács toma emprestada a força excepcional dessas frases de
Mann para fustigar com o máximo rigor, tanto a
nostalgia romântica
, quanto, com
igual obviedade, a
miséria alemã
. Em verdade, estabelece explicitamente um
contraste entre o autor de
A teoria do romance
e o autor de
Considerações de um
apolítico
. Trata-se de uma confrontação frontal e levada ao extremo, uma vez que
toma por medida o porte espiritual de um raro gigante da literatura do século XX.
Comparação que, bem a propósito, não favorece o grande romancista; ao contrário,
enquanto no escritor de
Considerações
ainda se manifesta, para usar suas próprias
palavras: “insalubridade e imoralidade espirituais de toda a simpatia para com o que
está fadado à morte”, isto é, a nostalgia romântica pela miséria alemã, Lukács pode
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categoricamente assegurar que “no autor de
A teoria do romance
[...] não se
percebem tais estados de ânimo” (LUKÁCS, 2009, p. 16). O filósofo húngaro, com
esse inteligente volteio, mais uma vez define o romantismo, e exibe a antiguidade de
sua própria definição intelectual diante dele.
Leve-se em conta, ademais, pelo espírito e contexto da distinção lukácsiana,
que não se está simplesmente em face de uma desigualdade corriqueira entre
consciências individuais isoladas, mas que a contundente contraposição é formulada
em conexão com o discernimento de modos também contrastantes de sofrer as
heranças culturais da miséria alemã. Enquanto Mann, até a proximidade dos anos
vinte, ainda que sob a forma do “último e mais tardio combate de retirada”, está
vinculado à “sublimação e estilização ideológica” que, após a solução prussiana da
unificação, apresenta a Alemanha como destinada a superar as contradições da
democracia moderna por uma ‘unidade superior’”, expressão mistificada de sua
incontemporaneidade (LUKÁCS, 2009, p. 16, modif.), Lukács, por outro lado, na
superioridade inquestionável de sua atitude, apresenta-se, todavia, fragilizado pela
debilidade do que fora a oposição iluminista à monarquia, entre a unificação e o fim
da I Guerra:
Se a Alemanha Guilhermina conheceu uma literatura oposicionista de
princípios, se escudou nas tradições do Iluminismo, na maioria das vezes,
sem dúvida, em seus epígonos mais rasteiros, e assim uma postura de
recusa global inclusive das valiosas tradições literárias e teóricas da
Alemanha. (LUKÁCS, 2009, p. 17)
Heranças - para cujas diferenças fundamentais não terão sido desprezíveis -, o
peso do laço germânico,
central
em Mann, e o vínculo, bem mais leve, húngaro-
periférico de importação intelectual alemão, de Lukács, que de ter favorecido e
apressado ao segundo a compreensão da estreiteza comprometida do romantismo e
do nacionalismo europeu, fazendo com que assumisse muito cedo uma postura de
inquirição estética e existencial de viés aristocratizante - a espera olímpica do
desmoronamento da desumanidade da capital -, mas de fina e diferenciada
elaboração, que marca sua juventude, em que pesem todos seus limites e
insuficiências reais e clamorosas.
Posto em termos estritamente conceituais, isso significa que a prática
lukácsiana das ciências do espírito, desde a redação de
A teoria do romance
, é
desatada de qualquer
pathos
romântico - típico ou atípico. “Sua oposição ao vazio
cultural do capitalismo não contém nenhuma simpatia pela ‘miséria alemã’, e seus
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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resíduos no presente” (LUKÁCS, 2009, p. 16). O tributo pago ao conservantismo
teórico está no próprio exercício da
Geisteswissenschaft
. Lukács é
extraordinariamente preciso no tratamento da questão, que é pedra angular para o
entendimento de todo seu itinerário pré e protomarxista. Seu trânsito de Kant a
Hegel, esclarece no Prefácio de 1962, dá-se “sem contudo alterar em nada minha
relação com os métodos das chamadas ciências do espírito” e agrega que
justificativa histórica para esse problemático caminho, pois era a alternativa para
“diante da bidimensionalidade rasteira do positivismo neokantiano ou de quantos
mais, tanto no tratamento de figuras ou correlações históricas, quanto na correta
compreensão de realidades intelectuais (lógica, estética etc.)” (LUKÁCS, 2009, p. 9).
E reforça o argumento referindo
o efeito fascinante de
Das Erlebnisund die Dichtung
[Vivência e poesia],
(Leipszig, 1905) de Dilthey, um livro que em muitos aspectos parecia ser
terra virgem. Essa terra virgem nos parecia, então, um mundo intelectual de
sínteses grandiosas, tanto no horizonte teórico quanto histórico (LUKÁCS,
2009, p. 9).
Adesão entusiástica, sem dúvida, porém acrítica, pois, “não nos dávamos conta
de quão pouco esse novo método superara definitivamente o positivismo, de quão
pouco objetivamente suas sínteses eram objetivamente fundadas” (LUKÁCS, 2009, p.
9).
Um arcabouço explicativo dessa ordem fora explicitado, quase trinta anos
antes, em
Meu caminho para Marx
. Vale, no entanto, sua transcrição por inteiro, não
por ser a prova do tempo da autodiagnose lukácsiana, mas também porque
oferece alentos para uma visão mais integral do problema e da evolução futura do
autor, particularmente no que tange à sua completa recusa do kantismo;
audácia
esta
que veio a ser, a um tempo, fator dos mais relevantes para a figuração de sua obra,
bem como o motivo inconfesso de certas iras que recolhe mais hoje do que nunca, e
que não lhe perdoam ter dado as costas à revolução copernicana”, o que desarvora
os filosofantes de nosso tempo. Sem mais, eis as considerações que faz em 1933 a
respeito de sua remota juventude:
A tese neokantiana da imanência da consciência ajustava-se perfeitamente
à minha posição de classe na época; não a submetia a qualquer exame
crítico, mas a aceitava passivamente como ponto de partida de toda e
qualquer colocação do problema gnosiológico. Na verdade, mantinha uma
constante suspeita frente ao extremado idealismo subjetivo (tanto a da
escola neokantiana de Marburgo quanto a da teoria de Mach), uma vez que
não conseguia compreender como o problema da realidade poderia ser
definido, considerando-a simplesmente como uma categoria imanente da
consciência. Embora isso não tenha me conduzido a conclusões
Ester Vaisman
22 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022
materialistas, acabou me levando muito mais a uma aproximação com
aquelas escolas filosóficas que queriam resolver este problema de forma
irracionalista e relativista e até, muitas vezes, mística (Windelband-Rickert,
Simmel, Dilthey). [...] Seguindo o exemplo de Simmel eu, de um lado,
separava o quanto possível a sociologia do fundamento econômico,
concebido de modo bastante abstrato, e, de outro lado, via na análise
sociológica apenas o estágio inicial da verdadeira e real pesquisa
científica no campo da estética. Os meus ensaios publicados entre 1907 e
1911 oscilavam entre este todo e um subjetivismo místico. (LUKÁCS,
1988, p. 92-93)
Em suma, o perfil do conservantismo teórico está desenhado, o
convencionalismo cognitivo das ciências do espírito posto em evidência. Todavia, a
centralização da denúncia sobre as
Geisteswissenschaften
não equivale a simples
reiteração crítica de um mesmo ato representativo inalterado; ao inverso, é a
denúncia de uma matriz que irradia por diversificações, integrando procedimentos
compósitos pluralizados.
A variante consubstanciada em
A teoria do romance
, por sua inflexão
hegeliana, acentua diferenças e aguça contrastes, tornando ainda mais visível o alto
tributo conservador pago pelos procedimentos analíticos lukácsianos à época, como
põe em evidência a própria tensão anticonservadora na qual elabora o autor, e que
aparece, por circunstância, mas, não por acaso, como uma luta difícil e nuançada
contra o neokantismo, conduzida contraditoriamente no interior e através da
atmosfera kantiana das ciências do espírito, das quais, como assinalado, Lukács
ainda não se livrara, nem tão cedo se livrará. No Prefácio de 1962, as considerações
a respeito são transparentes. Diz seu autor:
se mencionou que o autor de
A teoria do romance
tornara-se hegeliano.
Os mais antigos e importantes representantes do método das ciências do
espírito postavam-se em solo kantiano, não livres de restos positivistas;
esse é o caso sobretudo de Dilthey. E as tentativas de superar o
racionalismo raso e positivista significavam quase sempre um passo rumo
ao irracionalismo; este é o caso de Simmel, mas também do próprio Dilthey
(LUKÁCS, 2009, p. 11).
Ao lado dessa situação, uma dupla heterodoxia; o cultor
hegeliano
das
Geisteswissenschaften
e a própria heterodoxia de seu hegelianismo:
Sem dúvida, o autor de
A teoria do romance
não era um hegeliano
exclusivista e ortodoxo. As análises de Goethe e Schiller, as concepções de
Goethe em seu período maduro (o demoníaco, por exemplo), as teorias
estéticas do jovem Friedrich Schlegel e de Solger (a ironia como meio
moderno de configuração) complementam e concretizam os contornos
hegelianos genéricos. (LUKÁCS, 2009, p. 12)
E, ao assinalar que no território da estética o resultado principal da renovação
hegeliana fora a “historicização das categorias estéticas”, argumenta muito
Ainda sobre Lukács e o romantismo
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022| 23
sintomaticamente:
Kantianos, como Rickert e sua escola, cavam um abismo metodológico entre
valor atemporal e a realização histórica do valor. Dilthey está longe de
apreender essa contradição o bruscamente, embora nos esboços do
método da história da filosofia -, não além da criação de uma tipologia
meta-histórica das filosofias, que se realizam historicamente em variantes
concretas. (LUKÁCS, 2009, p. 12)
Para concluir centrando sobre aspectos decisivos, já postos aqui em evidência:
O fundamento da cosmovisão desse conservadorismo filosófico é a atitude
histórico-política conservadora dos principais representantes das ciências
do espírito, que remonta intelectualmente a Ranke e com isso se opõe
frontalmente com a evolução dialética do espírito do mundo de Hegel.
(LUKÁCS, 2009, p. 12)
III A crítica ao romantismo
É notória, ainda que mal conhecida, a crítica de Lukács ao romantismo. Todavia,
aqui, é preciso se deter um pouco mais sobre o tema, posto que não falta nem
mesmo quem queira sustentar que haja e que permaneça válida uma lição
“revolucionária” do romantismo e do messianismo, inclusive com e por meio de
Lukács, o que é um simples paradoxo, para não dizer que se trata apenas de um
mero escândalo. Seja como for, paradoxo ou escândalo, é necessário que seja
afastado energicamente, a bem de um mínimo de rigor no tratamento da obra
lukácsiana e do próprio marxismo
4
.
Lukács fala criticamente sempre de c
rítica romântica do capitalismo
, não de
romantismo revolucionário
. Fazer com que uma expressão seja tomada pela outra, ou
sugerir alguma sinonímia entre ambas, é promover, a respeito desse importante
complexo temático, o desentendimento das análises lukácsianas centrais para o
conjunto de sua obra , em outros termos, é toldar voluntária ou involuntariamente a
excludência daquelas expressões. Quando de algum modo é forçada qualquer
afinidade entre Lukács, o romantismo e seus derivados é desviada e rebaixada a
herança marxiana que ele assumiu.
4
« Si le marxisme de György Lukács, dans ses écrits des années 20, donne une place si importante à
la dimension de la subjectivité révolutionnaire, c’est sans doute parce qu’il appartenait, dans les
années précédant son adhésion au communisme, au courant romantique/révolutionnaire en Europe
centrale. Par romantisme il faut comprendre non seulement un mouvement littéraire et artistique, mais
une des principales visions du monde de la culture moderne. Le romantisme peut être défini comme
une protestation culturelle contre la civilisation capitaliste moderne, au nom de valeurs prémodernes.
Souvent passéiste ou rétrograde, il peut prendre aussi - de Jean-Jacques Rousseau aux surréalistes -
des formes critico-utopiques, ou volutionnaires. C’est à cette sensibilité qu’appartenait le jeune
Lukács, ainsi que plusieurs de ses amis de jeunesse (Karl Mannheim, Ernst Bloch) et beaucoup d’autres
intellectuels de culture allemande, souvent d’origine juive. » (LÖWY, 2006, p. 150).
Ester Vaisman
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Lukács, em certa época, foi tributário da crítica romântica ao capitalismo, não
do romantismo “revolucionário” verdadeira contradição nos termos que não
encontra lastro em sua obra. Mesmo porque sua crítica ao romantismo da qual a
síntese denunciada
o é mais do que, e apenas em certa dimensão, um pequeno
aspecto está vinculada, por contraposição, a um dos eixos fundamentais do
conjunto de toda sua investigação e de todo seu esforço intelectual, em torno do
qual se manteve empenhado por toda a vida - a história real do classicismo alemão e
sua
Aufhebung
por Marx. Por consequência, a
síntese denunciada
não é uma análise
ou frase de circunstância, não é uma fórmula “conveniente” para si, para o caso de
sua própria evolução teórica, mas um resultado aplicado a si mesmo por força e
mérito de estudos conduzidos ao longo de décadas.
A “criação” ou reconstituição de um Lukács romântico (operação esta, sim, de
natureza romântica, na acepção verdadeira e negativa do termo, tanto no sentido de
salto para trás
, como de desrazão
teórica
) integra o que foi chamado de
mitificação do jovem Lukács
e tem por orientação básica fazer a defesa de suas fases
pré e protomarxista, voltando-as contra o período culminante de sua evolução, o
platô de chegada de onde desenvolveu sua obra propriamente marxista.
É o extremar, desde a década passada, de uma tendência anterior, que
converte
História e consciência de classe
em cimo da obra lukácsiana, a partir da
qual pretensamente dar-se-ia o declínio e a decadência do autor, supostamente
subordinado às teses stalinistas. Por força da inclinação dessas linhas, a valorização
passa a alcançar as obras anteriores e, coerentemente com o diapasão dessa
analítica regressiva, é recuperado o
pathos
romântico que, também supostamente,
não traspassaria toda a fase juvenil, mas seria a pedra angular de seu significado
e valor. Assim, são altamente valorizadas, por exemplo, sólidas convergências entre
A teoria do romance e O espírito da utopia
de Bloch, assim como são sublinhadas
com euforia a influência exercida por
História e consciência de classe
sobre a Escola
de Frankfurt. Quanto mais estas correlações são identificadas com correção, tanto
mais é evidente, para infelicidade dos propósitos de tais análises, a falsidade das
teses centrais que as animam - o romantismo de Lukács e o valor revolucionário do
romantismo.
Importante esclarecimento acerca da presença de supostas teses de cunho
romântico em sua trajetória intelectual são trazidas por Vedda no prefácio à edição
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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brasileira de
Goethe e seu tempo
. Contestando fortemente a tese de um jovem
Lukács romântico, o pesquisador argentino, contra as tendências ventiladas acima,
afirma:
A crença de que o jovem Lukács era defensor do romantismo e que mais
tarde mudou de posição, após ingressar no comunismo, está difundida.
Essa versão está muito longe da verdade: rigorosamente, Lukács nunca foi
tão hostil ao romantismo como no início. O ensaio sobre Novalis é uma
dura e contundente crítica contra a filosofia romântica da vida, e
A alma e
as formas
é a obra de um pensador convencido de que o neoclassicismo
oferece a resposta mais adequada aos dilemas estéticos do início do século
XX e propõe enunciar uma dramaturgia inspirada no classicismo de Racine,
Alfieri e do contemporâneo Paul Ernst e hostil ao modelo shakespeariano,
que não apenas inspirou Lessing e o
Sturm und Drang
, mas, sobretudo, o
drama romântico.
A teoria do romance
propõe uma afinidade essencial
entre o romance (
roman
) e o romantismo (
Romantik
) para apresentar toda a
era burguesa como uma época individualista cujo caráter decadente
contrasta com a epopeia antiga (Homero) e medieval (Dante), assim como
com a nova epopeia que parece brilhar na Rússia de Dostoiévski (VEDDA,
2021, p. 21).
5
De todo modo, em oposição às interpretações sobre o tema inauguradas, em
grande medida, por M. Löwy, María Guadalupe Marando, depois de extensa pesquisa
e análise do problema junto às obras mais marcantes sobre o assunto e que
culminaram na elaboração de sua tese de doutorado, afirma existir uma “visión
matizada, compleja, dialéctica del Romanticismo que se desprende de buena parte
de los escritos lukácsianos” (MARANDO, 2020, p. 244). Ademais, questiona
firmemente certas imputações destituídas de base textual que insistem em proclamar
que “el filósofo habría rechazado en bloque el movimiento en tanto eslabón de la
serie irracionalista” (MARANDO, 2020, p. 229). Ao revés, afirma ainda a autora que
la recepción lukácsiana del Romanticismo es bastante más sinuosa y
matizada de lo que la crítica, ante todo la posterior a 1945, ha estado
dispuesta a reconocer. La continua ocupación con la corriente romántica
desde
Die Seeleund die Formen
hasta los escritos filosóficos tardíos,
pasando por hitos como
Moskauer Schriften
y el trabajo ensayístico sobre
Hölderlin, Kleist, Heine y Eichendorff en los años treinta, constituye una
advertencia suficiente contra la interpretación del simple rechazo
(MARANDO, 2020, p. 229-230).
De todo modo, nunca é demais insistir, dada a difusão de atribuições feitas a
Lukács, no mais das vezes, inteiramente destituídas de fundamento, que romantizar
Lukács obriga a sê-lo mero caudatário das tendências conservadoras e irracionalistas
5
Vedda vai mais longe ao asseverar que “Nesse contexto, podem ser consideradas as reflexões sobre
o romantismo presentes em
Goethe e seu tempo
, que não se reduzem a mero rechaço e que são mais
matizadas que aquelas que apareciam em escritos anteriores. [...] Lukács argumenta que uma das
razões da superioridade de Balzac sobre Stendhal é que este ‘rejeita conscientemente o romantismo,
desde o início’” (VEDDA, 2021, p. 23).
Ester Vaisman
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de pensamento que subvertem, distorcem e mutilam a própria história da cultura
alemã. Assim, por exemplo, interpretações de cunho irracionalista tendem a atribuir
desde o
Sturm und Drang
, de Herder, até Goethe ou ainda de Hegel e Hölderlin,
manifestações ou, no mínimo, antecipações do romantismo, velando com isso por
completo o caráter do classicismo alemão e sua cortante distinção daquele. Isso é
tanto mais relevante, se não for cometida a atrocidade de deixar de lado o fato de
que para Lukács “a ocupação ideal e estética com a grande literatura alemã, tem sido
um elemento decisivo de toda a minha vida, que principiou na mais remota
juventude e que não terminou nunca” (LUKÁCS, 1968, p. 7), e que nesta condição de
empenho investigador refutou aquelas teses, produzindo um balanço objetivamente
radical da cultura alemã.
Nesse campo, desfaz a tentativa da “história reacionária” de contrapor
asperamente o desenvolvimento cultural alemão ao “movimento histórico-universal
da Ilustração”, refutando a imputação de que “grandes ideólogos progressistas do
renascimento nacional alemão” tenham alimentado “um chauvinismo antifrancês”,
aberração a partir da qual aquela historiografia introduz sub-repticiamente na
literatura alemã do final do século XVIII uma ideologia obscurantista hostil ao
Iluminismo (A teoria do assim chamado pré-romantismo)” (LUKÁCS, 2021, p. 38).
Mehring, recorda Lukács na obra acima citada, havia demolido a tese da
francofobia ao evidenciar, a propósito de Lessing, que a crítica deste a Corneille e
Voltaire estava ligada à luta contra a pseudocultura das pequenas cortes alemãs, e
que sua polêmica tinha por arrimo a luta “travada por Lessing não sob o
estandarte de Sófocles e Shakespeare, mas e até em primeiro lugar sob o de
Diderot” (LUKÁCS, 2021, p. 38).
A falsificação cresce e é muito mais corrosiva a respeito do
Sturm und Drang
.
A história oficial e reacionária elabora, de um lado,
contrapondo a visão de mundo histórica que surge aqui ao pretenso a-
historicismo do Iluminismo; por outro lado, parte da confrontação mecânica
entre razão e sentimento, chegando assim ao suposto irracionalismo da
literatura alemã daquela época. Esta última tese não precisa ser refutada
aqui. [...] pois o que se tornou moda designar de irracionalismo no
Iluminismo em geral é isto: uma investida na direção da dialética, uma
tentativa de suplantar a lógica formal dominante até então. [...] A essa
questão está estreitamente vinculada a do historicismo. O anti-historicismo
do Iluminismo é uma lenda inventada pela reação romântica; é pensar
em fenômenos como Voltaire ou Gibbon para perceber, sem mais, a
insustentabilidade dessa lenda. No entanto, ocorreu também nesse aspecto
uma evolução por parte do Iluminismo alemão. Porém essa evolução não
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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procede no sentido do pseudo-historicismo romântico: por exemplo, a
universalidade histórica de Herder é precursora da visão de mundo dialética
de Hegel (LUKÁCS, 2021, p. 39).
Em verdade, sustenta Lukács, “um século de falsificação histórica sistemática,
que distorceu por completo todo o período clássico da literatura alemã” (LUKÁCS,
2021, p .36); o que, no sentido de uma determinação eminentemente geral e
abstrata, es vinculado à antiga observação engelsiana de que, em cada época e
para cada problema histórico, os franceses encontraram uma solução progressista e
os alemães uma solução reacionária. Ou, mais concretamente: a questão específica
da falsificação histórica do espírito alemão está associada ao complexo particular da
miséria alemã
, e o seu infeliz desfecho prussiano-conservador, ao fato de que a
Alemanha
só muito tardiamente tomou o caminho do aburguesamento moderno, tanto
em termos econômicos e políticos quanto em termos culturais. No Ocidente,
se travavam as primeiras grandes batalhas da luta de classes da classe
trabalhadora em ascensão quando, em 1848, afloraram na Alemanha, pela
primeira vez de forma concreta, os problemas da revolução burguesa
(LUKÁCS, 2021, p. 33).
Por consequência, tal como procedeu Mehring em seu estudo sobre Lessing, a
análise da literatura alemã, dos finais do século XVIII e princípios do XIX tem que
reconhecer a circunstância decisiva de que “essa literatura é o trabalho ideológico de
preparação da revolução democrático-burguesa na Alemanha”, e com esta
constatação distinguir, “todo o período de Lessing até Heine, a partir desse ponto de
vista conseguiremos vislumbrar onde se encontram nele as tendências realmente
progressistas ou aquelas realmente reacionárias” (LUKÁCS, 2021, p. 36), não
descuidando, porém, de que
A grande Revolução Francesa, o período napoleônico, a Restauração e a
Revolução de Julho são eventos que exerceram sobre o desenvolvimento
cultural alemão uma influência quase tão profunda quanto a estrutura social
interna da Alemanha. Todo escritor alemão significativo não pisou o
chão de seu desenvolvimento trio, mas foi, ao mesmo tempo, em maior
ou menor grau, um contemporâneo elaborador e aperfeiçoador
compreensivo, e o reflexo espiritual desses eventos mundiais (LUKÁCS,
2021, p. 36-37).
É do interior dessa malha determinativa que Lukács recusa o “lugar-comum
tanto da história burguesa da literatura quanto da sociologia vulgar que Iluminismo e
Sturm und Drang
, especialmente
Werther
, encontram-se em oposição excludente”;
oposição que vem a ser “o meio ideológico mais eficaz de levantar uma muralha
chinesa entre o Iluminismo e o classicismo alemão, de rebaixar o Iluminismo em favor
das tendências reacionárias posteriores do romantismo” (LUKÁCS, 2021, p. 43-44).
Ester Vaisman
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A falsa ruptura entre o Iluminismo e o
Sturm und Drang
tem por base a
afirmação de que o
Iluminismo supostamente teria levado em conta apenas o intelecto. O
Sturm und Drang
alemão teria sido, em contraposição, uma revolta do
“sentimento”, do “caráter”, do “impulso” contra a tirania do intelecto. Essa
abstração pobre e vazia serve para glorificar as tendências irracionalistas da
decadência burguesa e soterrar toda a tradição do período revolucionário
do desenvolvimento burguês (LUKÁCS, 2021, p. 44-45).
Nesse ponto da argumentação aqui exposta, é indispensável, mais uma vez,
fazer referência à análise de Vedda (2021) sobre tão intrincado assunto, pois ele
reposiciona o problema novamente, ao se contrapor não apenas, como vimos linhas
acima, ao modo como comumente são abordadas as relações entre Lukács e o
romantismo ao longo de seu complexo itinerário intelectual, mas sobretudo ao
aventar o fato de que nos ensaios que compõem o livro
Goethe e seu tempo
, o
filósofo húngaro desenvolve considerações sobre o romantismo que “não se
reduzem a mero rechaço e que são mais matizadas que aquelas que apareciam em
escritos anteriores” (VEDDA, 2021, p. 23), o que vai ao encontro da avaliação acima
realizada por Marando. Ademais, o autor argentino apresenta linhas à frente uma
importante conclusão, ao afirmar que
no contexto examinado, a incorporação de componentes românticos é um
elemento necessário para a consolidação de uma grande arte realista;
portanto, uma das razões que justificam a superioridade de Goethe sobre
Schiller é que aquele era muito menos intransigente que este em sua
rejeição das poéticas românticas (VEDDA, 2021, p. 24).
Tal assertiva abre uma perspectiva de interpretação mais factível do aquelas
comumente ventiladas a respeito, pode ser comprovada quando Lukács coloca duas
questões com o objetivo de contra-argumentar a posição que estabelece uma
ruptura inconciliável entre o Iluminismo e o
Sturm und Drang
:
1 - “Em que consistiu a essência do famigerado ‘intelecto’ no Iluminismo?”. 2 -
“Será que eles [os iluministas] mostravam algum desprezo ou menosprezo pela vida
sentimental humana?” (LUKÁCS, 2021, p. 45).
As respostas, oferecidas mais de 80 anos (o texto em citação, sobre
Os
sofrimentos do jovem Werther
, é de 1936), rejeitam essas lendas e falsificações, que
tanto embaraçam e corrompem, até hoje e na atualidade mais do que antes , não
a realidade factual, mas lastimavelmente envolvem a própria projeção dos atos
que os imperativos do presente e de futuro colocam como necessidade dramática e
incontornável, além de prejudicar fortemente a devida compreensão dos
Ainda sobre Lukács e o romantismo
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022| 29
posicionamentos de Lukács acerca do romantismo.
No que tange ao ‘famigerado ‘intelecto’” do Iluminismo, a resposta é direta e
contundente, tem a força da evidência irrecusável, que a corrosão e as filosofias da
desconstrução só podem cobrir de detritos:
é uma crítica implacável da religião, da filosofia teologicamente
contaminada, das instituições do absolutismo feudal, dos mandamentos
religiosos feudais da moral etc. É fácil entender que essa luta implacável
dos iluministas se tornou ideologicamente insuportável para a burguesia
em vias de se tornar reacionária (LUKÁCS, 2021, p. 43-44).
Em suma, trata-se da produção do falso por “necessidade ideológica mais
profunda”, gerada na contraposição, esta sim, do “ódio da burguesia reacionária
contra o Iluminismo revolucionário” (LUKÁCS, 2021, p. 43-44).
E basta considerar, a respeito do pretenso desprezo do Iluminismo pela vida
afetiva, a crítica de Lessing a Corneille, como o faz Lukács, para que desmorone a
contraposição entre aquele e o
Sturm und Drang
.
O próprio motor da crítica do iluminista Lessing à dramaturgia de Corneille
reside na denúncia de que a
concepção do trágico em Corneille é inumana, de que Corneille não leva em
consideração a alma humana, a vida sentimental humana, que ele, enredado
nas convenções cortesãs e aristocráticas de seu tempo, oferece construções
sem vida e puramente intelectuais (LUKÁCS, 2021, p. 46).
Ou seja:
A grande luta teórico-literária de iluministas como Diderot e Lessing era
contra as convenções da nobreza. Eles as combatiam em toda a linha, tanto
sua frieza intelectual quanto sua antirracionalidade. Entre a luta de Lessing
contra essa frieza da
tragédie classique
e sua proclamação dos direitos do
intelecto, como na questão da religião, não subsiste nem a menor
contradição. (LUKÁCS, 2021, p. 46)
A generalização dessa análise pontual rende a conclusão de que, nos
confrontos ideológicos cruciais pelo novo - humano e social, “jamais se trata (a não
ser na fantasia apologética de ideólogos reacionários) da luta entre uma qualidade
abstrata e isolada do homem contra outra qualidade isolada e abstrata (impulso
contra intelecto)”. Ou, de forma ainda mais ampla, valendo agora para a generalidade
das contradições sociais:
E essas contradições naturalmente não estão dadas de modo rígido e
definitivo na vida social mesma. Pelo contrário, elas emergem de maneira
extraordinariamente desigual, correspondendo à desigualdade do
desenvolvimento social, obtêm uma solução aparentemente satisfatória em
determinado estágio do desenvolvimento, reaparecendo de forma
intensificada em um estágio mais elevado do desenvolvimento
Ester Vaisman
30 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022
subsequente. (LUKÁCS, 2021, p. 46)
Configurados os liames de realidade e extraídos deles certas tramas reflexivas,
que protegem contra a simplificação mistificadora ou a gratuidade especulativa,
tantas vezes ungida com os óleos da profundidade, sempre que é feita a “defesa” do
sentimento contra a racionalidade, pode aparecer então a verdade do
Sturm und
Drang
, em sua própria complexidade e através do melhor dos meios - suas
produções e seus autores. Para ilustrar sumariamente basta arrolar os nomes de
Goethe e de Schiller. Tomados, evidentemente, em sua mocidade, quando o
Werther
habita “no mesmo nível dos dramas juvenis francamente revolucionários de Schiller”
(LUKÁCS, 2021, p. 53); ou seja:
A juventude tanto de Goethe quanto de Schiller é o último ponto de
culminância artístico do período pré-revolucionário do Iluminismo. Tanto
sua prática de juventude quanto as teorias da arte que a acompanharam
estão apoiadas sobre os ombros do Iluminismo anglo-francês do século
XVIII. Elas formam a última síntese significativa do gênero específico do
Realismo artístico do Iluminismo, do período de desenvolvimento da
burguesia anterior à Revolução Francesa. (LUKÁCS, 2021, p. 86)
De modo que o delineamento lukácsiano do
Sturm und Drang
não apenas
descobre seus vínculos estruturais com o Iluminismo, mas também sua condição de
polo extremo deste na fase pré-revolucionária. Razão pela qual o associa,
particularmente por meio de sua análise do
Werther
, ao pensamento de Rousseau,
“pois é nele que as facetas ideológicas da execução plebeia da revolução burguesa
assomam pela primeira vez de modo predominante” (LUKÁCS, 2021, p. 47).
Plebeísmo
que é caracterizado como uma “elaboração dialética incipiente das
contradições da sociedade burguesa" (LUKÁCS, 2021, p. 47), e que constitui a
“valiosa novidade trazida por Rousseau”, ou seja, “novo estágio mais elevado e mais
contraditório do Iluminismo” (LUKÁCS, 2021, p. 47). E não faz diferença alguma,
mesmo porque confirma e expõe ainda mais a extensão da falsidade de vistas da
historiografia cultural pós-revolucionária, o fato de que Rousseau seja posto por
ela, cuidando de gerar ao menos certa coerência discursiva, em contraposição total
ao Iluminismo, “querem solucionar essa questão fazendo com que Rousseau se
encontre em oposição excludente com o Iluminismo, fazendo dele um ancestral do
romantismo reacionário” (LUKÁCS, 2021, p. 44).
É pela amplitude dessa via analítica, que desvenda os enlaces entre
obra
,
particularidade nacional e universalidade de certos eventos mundiais, que Lukács
pode determinar que “A produção do jovem Goethe é uma
continuação
da linha
Ainda sobre Lukács e o romantismo
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022| 31
rousseauniana” (LUKÁCS, 2021, p. 47).
Com isso, a análise lukácsiana não confere ao jovem Goethe a condição de
revolucionário, nem mesmo algo próximo da posição juvenil de Schiller, mas,
distinguindo obra de autor
, a subjetividade imediata deste de sua subjetividade
estética, realiza a apreensão de que “no sentido da vinculação íntima com os
problemas básicos da revolução burguesa, as obras do jovem Goethe significam uma
culminação revolucionária do movimento iluminista europeu”, pois O ponto central
de
Werther
é constituído pelo grande problema do humanismo revolucionário
burguês, o problema do desenvolvimento livre e universal da personalidade humana”
(LUKÁCS, 2021, p. 48). Centralidade que alcança grandeza especial com o jovem
Goethe, na medida em que a acuidade de suas elaborações está baseada numa visão
em que “oposição entre personalidade e sociedade burguesa” é alcançada para além
do “absolutismo semifeudal de pequeno formato da Alemanha de seu tempo”, e diz
respeito à “sociedade burguesa em geral”. Ou, dito de maneira detalhada, Goethe
constata que
a sociedade burguesa, cujo evolver trouxe propriamente para o primeiro
plano com toda essa veemência o problema do desenvolvimento da
personalidade, ininterruptamente opõe obstáculos a ele. As mesmas leis,
instituições etc. que servem a tal desenvolvimento no sentido classista
estrito da burguesia, que produzem a liberdade do
laisser faire
, constituem
simultaneamente os estranguladores impiedosos da personalidade que de
fato se desenvolve. A divisão capitalista do trabalho, sobre cujo
fundamento unicamente pode se dar aquele desenvolvimento das forças
produtivas que constituem a base material da personalidade desenvolvida,
simultaneamente submete a si o homem, fragmenta sua personalidade em
uma especialização sem vida etc. (LUKÁCS, 2021, p. 49).
Em suma,
Goethe figura a vida cotidiana de seu tempo com uma compreensão tão
profunda das forças motrizes, das contradições fundamentais, que a
importância de sua crítica transcende em muito a de uma crítica das
condições em que se encontra a Alemanha atrasada. A recepção
entusiástica que Werther teve em toda a Europa mostra que as pessoas dos
países mais desenvolvidos em termos capitalistas imediatamente foram
forçadas a vivenciar o destino de Werther como:
tua res agitur
(LUKÁCS,
2021, p. 48-49).
Lukács ressalta com muito vigor que o “conteúdo literário principal de
Werther
é a luta pela realização dessa máxima, uma luta contra obstáculos externos e
internos a sua realização, precisamente a batalha pela integralidade humana, a luta
contra obstáculos externos e internos a sua realização”, o que é literariamente
configurado pela dação de forma a personagens muito diferenciados que vivem
complexamente esses problemas, e que exprimem - o autor e seus personagens -
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uma enérgica e fervorosa rebelião contra as regras da ética” (LUKÁCS, 2021, p.
50).
É fundamental se atentar que o se trata mais ou apenas, em contraposição à
estreiteza das regras do privilégio estamental, da demanda por “leis unificadas de
validade universal para a ação humana” (que ganham com Kant e Fichte sua
expressão filosófica mais refinada), mas da reação em face das resultantes
promovidas pela contraditoriedade da própria solução histórica superior, pois, por
mais necessária que esta seja, “o que ela produz é ao mesmo tempo um obstáculo
para o desenvolvimento da personalidade”. Ou ainda de modo mais explícito:
A ética no sentido de Kant-Fichte quer encontrar um sistema unificado de
regras, um sistema de prescrições isento de contradições para uma
sociedade movida pelo princípio básico da contradição mesma. O indivíduo
que age nessa sociedade, que forçosamente reconhece, em termos gerais,
em princípio, o sistema de regras, tem de entrar ininterruptamente em
contradição com esses princípios no caso concreto. E isso não do modo
como Kant imagina, ou seja, que os impulsos do homem, baixos,
egoístas, contradizem as elevadas máximas éticas. Pelo contrário, a
contradição se origina, com bastante frequência e nos casos exclusivamente
determinantes aqui, das melhores e mais nobres paixões dos homens.
(LUKÁCS, 2021, p. 50-51)
Isso é bem configurado concretamente no caso do
Werther
, em que
sem exceção, paixões que, em si e por si sós, não contêm nada de vil, nada
de associal ou antissocial, e leis que, em si e por si mesmas, o são
rejeitadas como absurdas e inibidoras do desenvolvimento (como é o caso
das divisões estamentais da sociedade feudal), mas que carregam em si
apenas as limitações gerais de todas as leis da sociedade burguesa
(LUKÁCS, 2021, p. 52).
Em suma, Goethe e o
Sturm und Drang
estão diante da grande e grave questão
da “interação contraditória entre paixão humana e desenvolvimento social”, ou seja,
no tempo específico de que se trata:
a geração do jovem Goethe, que experimentou profundamente essa
contradição viva, mesmo que sua dialética não a tenha compreendido
intelectualmente, arremete com furiosa paixão contra esse obstáculo ao
livre desenvolvimento da personalidade (LUKÁCS, 2021, p. 51).
Rebelião ética
que foi chamada por Friedrich Heinrich Jacobi, amigo de
juventude de Goethe, de a
lei de majestade do homem
, o selo de sua dignidade”, e
cuja formulação mais explícita, na época, pensa Lukács, é também oferecida por ele,
numa carta aberta que dirigiu a Fichte, quando diz:
Sim, eu sou o ateísta e o ateu que [...] quer mentir como a Desdêmona
moribunda mentiu, que quer mentir e enganar como Pílades ao se oferecer
por Orestes, que quer assassinar como Timoleão, violar a lei e o juramento
como Epaminondas, como Johann de Witt, decidir-se pelo suicídio como
Otão, cometer o saque do templo como Davi sim, colher espigas no
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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sábado, pela simples razão de estar com fome e a lei ter sido feita por
causa do homem e não o homem por causa da lei. (LUKÁCS, 2021, p. 51)
É, pois, um combate no qual a dimensão plebeia não emerge em forma política,
mas sob a intensificação trágica do
dever-ser
dos ideais humanistas,
mas como oposição entre os ideais revolucionários humanistas e a
sociedade estamental do absolutismo feudal e o filistinismo. Todo o
Werther é uma confissão ardente por aquele novo homem que surge no
decorrer da preparação para a revolução burguesa, por aquela
humanização, por aquele despertar da atividade universal do homem
produzido pelo desenvolvimento da sociedade burguesa e, ao mesmo
tempo, condenado tragicamente à ruína. A formação desse novo homem
acontece, assim, no contraste dramático ininterrupto com a sociedade
estamental e o filistinismo (LUKÁCS, 2021, p. 53).
Rebelião ética
que se vincula, no jovem Goethe, com o “caráter popular de suas
aspirações”. Sob este prisma, assinala ainda a análise lukácsiana, o grande poeta
alemão é, em sua mocidade, um efetivo continuador das “tendências rousseaunianas
em oposição ao aristocratismo distinto de Voltaire, cujo legado se tornaria
importante para o Goethe posterior, bastante decepcionado e resignado” (LUKÁCS,
2021, p. 52). De sorte que, nas obras do período, é constante a contraposição entre
a nova cultura do homem e
a malformação, a esterilidade, a incultura dos estamentos superiores e
com a vida enrijecida, mesquinha e egoísta dos filisteus. E cada uma dessas
confrontações é uma indicação flamejante de que a apreensão real e viva
da vida, o tratamento vivo dos seus problemas podem ser encontrados
exclusivamente junto ao próprio povo. [...] E os elementos formativos
inseridos de modo profuso no texto (alusões à pintura, a Homero, Ossian,
Goldsmith etc.) movem-se sempre nesta direção: Homero e Ossian são para
Werther
e para o jovem Goethe grandes poetas populares, reflexos
literários e expressões da vida produtiva, que está presente única e
exclusivamente entre o povo trabalhador (LUKÁCS, 2021, p. 53).
Assim, Goethe que não é, pessoalmente, nem plebeu, nem revolucionário
político, proclama com sua obra “os ideais popular-revolucionários da revolução
burguesa”, ou seja, o que Lukács denomina de linha cultural e literária de
Rousseau”, que tem sua melhor clarificação com a célebre consideração de Marx
sobre o jacobinismo:
maneira plebeia de acabar com os inimigos da burguesia
, com
o absolutismo, o feudalismo, e o filistinismo” (LUKÁCS, 2021, p. 52)
6
.
6
Para uma análise crítica acerca das abordagens que atrelam demasiadamente as fases da obra de
Goethe à sua personalidade e eventos que marcaram a sua biografia, estabelecendo uma relação
altamente questionável de causa e efeito entre ambas, ver: (VEDDA, 2014). Em contraposição às teses
defendidas por Vedda, pode-se identificar no livro de autoria de Walter Benjamin, intitulado
Ensaios
reunidos:
escritos sobre Goethe (2018), procedimento que busca explicar as características das obras
de Goethe a partir de sua biografia. Ademais, o mesmo Benjamin, em direção oposta àquela de
Lukács, considera que Goethe foi revolucionário na juventude e conservador na velhice.
Ester Vaisman
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Jacobino
ético
, continuador da linha estética e cultural de Rousseau, Goethe o
é, no entanto, com uma importante diferença: o “mundo exterior, com exceção da
paisagem, ainda se dissolve em estados de alma subjetivos, o jovem Goethe é, ao
mesmo tempo, herdeiro do modo de figuração objetivamente claro do mundo
exterior, do mundo da sociedade e da natureza” (LUKÁCS, 2021, p. 55). De maneira
que, por esse diapasão e por essa elevação épica da dação estética de forma,
compreende-se que o
Werther
possa ser, pela adequada fundação da subjetividade,
“o ponto culminante das tendências subjetivistas da segunda metade do século XVIII.
E esse subjetivismo não é nenhuma exterioridade no romance, mas a expressão
artística adequada da revolta humanista”. Para tanto, para que essa dimensão seja
posta em seu lugar próprio e em seu autêntico significado, “tudo o que ocorre no
mundo de
Werther
é objetivado por Goethe com uma plasticidade e uma
simplicidade inauditas, tal como nos grandes realistas”, evidenciando, assim, que foi
ao longo de toda a mocidade um discípulo do Homero, popularmente entendido
(LUKÁCS, 2021, p. 55).
É por isso mesmo pela capacidade poética de articular o épico e a
subjetividade, exigida pela matéria prima que o grande escritor quer esteticamente
dominar e reconfigurar, que o
Werther
é dos romances de amor mais importantes da
literatura universal. Exatamente porque,
como toda figuração poética realmente grande da tragédia do amor
também
Werther
oferece muito mais do que uma simples tragédia amorosa.
O jovem Goethe logra envolver organicamente nesse conflito amoroso
todos os grandes problemas da luta pelo desenvolvimento da
personalidade. A tragédia amorosa de
Werther
é uma explosão trágica de
todas as paixões que, de resto, aparecem distribuídas pela vida, de modo
particular, abstrato, mas aqui, no fogo da paixão amorosa, são fundidas em
uma só massa abrasadora e reluzente (LUKÁCS, 2021, p. 56).
De sorte que é preciso dizer, no e para o âmbito em geral do
Sturm und
Drang
e seu timbre característico, que
A revolta humanista popular em
Werther
é uma das mais importantes
manifestações revolucionárias da ideologia burguesa na fase de preparação
para a Revolução Francesa. Seu sucesso mundial é o de uma obra
revolucionária. Em
Werther
culminam as lutas do jovem Goethe pelo homem
livre e universalmente desenvolvido, aquelas tendências que ele igualmente
expressou em
Götz
, no fragmento de Prometeu, nos primeiros esboços de
Fausto etc. (LUKÁCS, 2021, p. 54).
Mas compreender com isso, e nisto reside a determinação mais concreta, que o
Werther
“não é apenas a proclamação dos ideais do humanismo revolucionário, mas
é, ao mesmo tempo, também a
figuração consumada
da contradição trágica desses
Ainda sobre Lukács e o romantismo
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022| 35
ideais” (grifo meu), ou em outras palavras: “O conflito de Werther, sua tragédia, já é a
do humanismo burguês, evidencia o antagonismo insolúvel entre o
desenvolvimento livre e universal da personalidade e a própria sociedade burguesa”
(LUKÁCS, 2021, p. 55-56).
Determinação mais concreta, que não integraliza a peculiaridade da obra e
do movimento a que pertence - ambos centrados sobre a questão crucial da
autoconstrução humana
, que atormenta (ou deveria atormentar) mais hoje do que em
sua origem, exatamente porque a revolução do capital, agora, além de sua difusão
planetária e recorrentes modernizações, conta não com o velamento neoliberal
do problema, através das “excelências” da
razão mercantil
, mas também com as
“soluções” do irracionalismo contemporâneo, além, é claro, do fracasso das
transições intentadas para o socialismo - mas, determinação mais concreta, repito,
que também, exatamente por sua concretude, acesso à compreensão do passo
subsequente do evolver literário universal:
Werther
, portanto, não é um ponto culminante da grande literatura
burguesa do século XVIII, mas simultaneamente também o primeiro grande
precursor da grande literatura realista orientada a problemas do século XIX.
Quando enxerga em Chateaubriand e seus adeptos o seguimento literário
de
Werther
, a história burguesa da literatura menoscaba de maneira
tendenciosa a importância deste. Não são os românticos reacionários, mas
os grandes figuradores do ocaso trágico dos ideais humanistas no século
XIX, Balzac e Stendhal, que dão continuidade às reais tendências de
Werther (LUKÁCS, 2021, p. 55-56).
Tudo, portanto, no esforço lukácsiano de investigação da literatura alemã, faz a
demolição da lenda reacionária que procura fazer de Goethe um inimigo do
Iluminismo, valendo-se fragmentariamente de posicionamentos seus posteriores ao
Sturm und Drang
, lendas que principiam por seu
afastamento da vida pública motivado pelo ódio à Revolução Francesa, a
lenda converte o autor em uma das grandes figuras da moderna “filosofia
da vidade cunho irracionalista, um ancestral espiritual de Schopenhauer e
Nietzsche, e, ademais, literariamente um dos fundadores do antirrealismo
estilizante. Essa lenda histórica está o disseminada e é tão influente que
se pode observar seu efeito até mesmo em autores progressistas e
antifascistas (LUKÁCS, 2021, p. 40).
Como tivemos a oportunidade de assinalar, ao longo do percurso de Lukács,
desde suas obras de juventude até aquelas elaboradas a partir da década de 1930,
a leitura atenta desses textos permite concluir que, independentemente de ter se
voltado criticamente ao romantismo, denunciando, por exemplo, os seus vínculos
com o atraso alemão e com as tendências irracionalistas, nas análises de Lukács
Ester Vaisman
36 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022
uma dupla avaliação do movimento, em que são ressaltados tanto os aspectos
negativos quanto positivos, o que pode ser comprovado em
A alma e as formas
ou
nos escritos moscovitas, como por exemplo,
Hyperion de Hölderlin
, que compõe o
livro
Goethe e seu tempo
, que acaba de ser publicado no Brasil.
Não é tarefa fácil debruçar-se sobre o caráter das análises do filósofo húngaro
a respeito do tema em pauta, assim como em diversos outros assuntos e debates
polêmicos em que se envolveu, mas parece evidente que Lukács, em seus escritos
não teve a pretensão de escrever uma nova biografia do autor alemão.
Definitivamente não era o caso. Mesmo porque, de acordo com seu intento e
procedimento analíticos, além de ser um empreendimento de grande monta, o que
de fato importava era resgatar a contribuição efetiva de Goethe, desviando-a da
sanha de críticas literárias de cunho irracionalista tão em voga nos dias de hoje
bem como das avaliações temerárias que se fazem ao arrepio de sua letra,
estabelecendo com frequência ilações destituídas de fundamento, ao atrelar, no mais
das vezes, seus escritos às suas características biográficas, sejam as de
personalidade ou mesmo a determinados posicionamentos que assumiu ao longo da
vida.
No presente artigo, não houve a pretensão de esgotar tão intrincado assunto,
um dos vários que resta esclarecer devidamente na obra do filósofo húngaro.
Contudo, caso se tenha conseguido ao menos indicar que se trata de assunto que
merece a devida atenção e tratamento rigoroso, acredita-se que, ao se alertar ainda
para os equívocos que se acumularam ao longo de décadas, o presente artigo, ainda
que modesto em seus contornos, tenha cumprido seus objetivos.
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Como citar:
VAISMAN, Ester. Ainda sobre Lukács e o romantismo: algumas considerações sobre
os passos do itinerário de uma vida.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 1-38,
mar. 2022.