DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.690  
Marx e o cardápio da taberna do futuro:  
sobre os caminhos para uma revolução russa no  
século XIX  
Marx and the meal plans of the tavern of the future:  
on the paths to a Russian revolution in the 19th century  
Gabriella M. Segantini Souza*  
Resumo: a questão russa na obra de Marx nos  
oferece importantes materiais para as discussões  
sobre as diferentes vias de entificação do  
capitalismo e sobre os rumos da história na obra  
do autor. No presente trabalho, o propósito é  
analisar alguns escritos do autor renano sobre a  
Rússia, com destaque para a correspondência  
com a revolucionária russa Vera Zasulitch, a fim  
de compreender a perspectiva do autor sobre a  
possibilidade de uma revolução na Rússia no  
século XIX.  
Abstract: the russian issue in Marx’s work offer  
important materials to the discussion on the  
different ways of capitalist entification and the  
courses of history in the author’s work. In the  
present work, the aim is to analyse the writing  
of the rhenish author with emphasis on the  
correpsondence with the russian revolutionary  
Vera Zasulitch — in order to understand Marx’s  
perspective on the possibility of revolution in  
19th century Russia.  
Palavras-chave: Rússia; comuna agrária russa;  
regeneração social; narodniks; marxistas russos;  
Vera Zasulitch.  
Keywords: Russia; russian agrarian commune;  
social regeneration; narodniks; russian marxists;  
Vera Zasulitch.  
Introdução  
Em seu autoexílio na Suíça, a revolucionária russa Vera IvanovnaZasulich buscava  
solucionar a questão que dividia seus compatriotas revolucionários, uma questão que  
Zasulich asseverou ser “de vida ou morte” para o partido socialista na Rússia  
(ZASULICH In. SHANIN, 2017, p. 146). A disputa entre os socialistas russos será  
analisada de forma pormenorizada na devida oportunidade, bem como seus principais  
atores, mas por enquanto basta esclarecer que o cisma” entre os revolucionários  
russos tinha como cerne o futuro da comuna agrária russa e seu potencial  
revolucionário. Um dos lados da disputa, os autointitulados marxistas russos,  
preconizavam que a comuna agrária era uma forma arcaica de produção e que estaria  
condenada a desaparecer pela história” (ZASULICH In. SHANIN, 2017, p. 147),  
*
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestranda em Direito pela  
Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: gabriella.segantini.souza@gmail.com  
Verinotio ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, jul-dez. 2022  
nova fase  
 
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
fundamentando sua posição no que acreditavam que Marx concluiria sobre a comuna  
agrária russa. Assim, o mais lógico para resolver a contenda do que solicitar que aquele  
a quem recorriam para dar o veredicto sobre o futuro da comuna agrária desse seu  
posicionamento de uma vez por todas.  
Em virtude disso, em 16 de fevereiro de 1881 Vera escreveu sua carta a Marx,  
na qual conta ao autor como ele provavelmente sequer imaginava o quanto sua obra  
era importante na Rússia, ressaltando como seu O Capital havia adquirido na Rússia  
grande relevância, sendo que as poucas cópias que não foram confiscadas pelas  
autoridades russas eram “lidas e relidas pela massa de pessoas mais ou menos  
instruídas(ZASULICH In. SHANIN, 2017, p. 147). Zasulich explica ainda como a crítica  
à economia política de Marx havia ganhado particular interesse entre os russos  
principalmente “nas discussões sobre a questão agrária na Rússia e nossa comuna  
rural” (ZASULICH In. SHANIN, 2017, p. 147), e que por isso havia se proposto a  
escrever ao autor renano, esperando que sua resposta pudesse solucionar a discussão  
de uma vez por todas.  
Quando Marx recebeu a carta de Vera Zasulich, o autor começou logo a tentar  
elaborar a resposta solicitada por Vera, dedicando-se por cerca de três semanas para  
confeccionar um texto definitivo a ser enviado. Nesse processo, Marx elaborou três  
esboços e a resposta enviada, sendo os rascunhos em si consideravelmente mais  
longos e complexos que a carta enviada a Vera.  
Além do evidente interesse historiográfico e biográfico que possui essa  
correspondência entre Marx e Zasulich, a importância dessas cartas (sobretudo dos  
rascunhos de Marx) não para aí. Esses escritos não só nos permitem um acesso a  
‘“cozinha do pensamento de Marx” (SHANIN, 2017, p. 42), mas ao tratarem da  
questão agrária russa, também temos levantada uma das mais relevantes discussões  
no contexto do marxismo, a da possibilidade da revolução em países que  
experimentaram um desenvolvimento econômico distinto da via clássica1. Como será  
demonstrado mais à frente, o cerne da disputa entre os socialistas russos na época  
era justamente acerca da possibilidade de revolução socialista na Rússia agrária, sendo  
1
Tratamos por via clássica do desenvolvimento capitalista aquela experimentada sobretudo pela  
Inglaterra. Como Marx esclarece no prefácio da Primeira edição de O Capital, é na Inglaterra que vemos  
o “modo de produção capitalista e suas correspondentes relações de produção e de circulação” (Marx,  
2017, p. 78) em sua “localização clássica” (Marx, 2017, p. 78), razão pela qual o autor se dela serve  
como ilustração para a exposição teórica de O Capital.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 289  
nova fase  
 
Gabriella M. Segantini Souza  
que o lado que defendia que a revolução comunista seria possível apenas em  
sociedades de economia capitalista clássica [madura”], como a Inglaterra, defendiam  
seu ponto a partir do que acreditavam que Marxhavia escrito em O Capital. Assim, ao  
escrever a Marx, Zasulich buscava a resposta sobre essa questão, isto é, se Marx  
defendia de fato que a revolução só seria possível onde já havia se havia passado  
pelos processos que engendram o capitalismo, ou se havia outras vias possíveis.  
Trata-se de ponto bastante controversa nos debates marxistas, dado que a  
questão da possibilidade de uma revolução socialista em um país como a Rússia, onde  
no final do século XIX ainda conviviam o modo de produção asiático e o modo de  
produção comunal, parecendo contradizer o que vemos em O Capital. Isso porque no  
vigésimo quarto capítulo do primeiro livro de O Capital, que trata da assim chamada  
acumulação originária, vemos que, para se colocar sobre seus próprios pés, o modo  
de produção capitalista pressupõe a separação dos produtores e os meios e condições  
de produção, de modo que o camponês antes ligado à terra se torne trabalhador  
assalariado e as pequenas propriedades rurais deem lugar à propriedade privada2. Por  
conseguinte, a ideia de uma revolução socialista em um país que não havia passado  
por esse processo pareceria materialmente impossível, dado que o comunismo nasce  
do ventre do capitalismo. Como seria então possível uma sociedade agrária comunal  
ser suplantada por uma revolução comunista se sequer capitalista ela é, mas sim um  
país agrícola?  
Para discutir esse aspecto na teoria marxiana, serão tocados importantes debates  
na teoria marxista, como a crítica à linearidade da história, a importância da questão  
da particularidade nacional e à crítica ao que nos referiremos por etapismo, os quais  
cabem ser analisados mais a fundo mais a seguir. Mas o que nesse momento importa  
ressaltar é que para os que veem na obra marxiana uma filosofia da história,  
transformando-a em uma teoria histórico-filosófica, ou seja, que vêm ali uma noção de  
progresso linear e necessário, de fato não seria possível uma revolução socialista na  
Rússia agrária comunal3. Essa posição (ou leitura”, poderíamos dizer) aparece já  
durante a vida de Marx, como vemos no caso de seus seguidores russos, mas ela se  
2
Trataremos dos diferentes tipos de propriedade da terra que havia na Europa Ocidental quando da  
assim chamada acumulação originária e na Rússia no século XIX mais a frente  
3 Sobre isso, cf. SARTORI, V. Marx diante da revolução social na Rússia do século XIX. Verinotio, v. 23,  
n. 1, abril de 2017. pp. 126-153; e MACHADO, G. Sobre a possibilidade de uma revolução russa nos  
escritos de Marx . Verinotio, v. 23, n. 1, abril de 2017, pp. 247-267.  
Verinotio  
290 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
   
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
fortalece sobretudo após a morte do autor em 1883. O evolucionismo se tornou um  
forte traço do marxismo no final do século XIX e no século XX, principalmente no bojo  
da II Internacional Comunista, em que a noção de que a história humana para Marxera  
basicamente uma sucessão de etapas necessárias aparece de forma proeminente.  
Aparece também no marxismo (stalinismo) da União Soviética, em que as discussões  
sobre a especificidade nacional são sufocadas pelo pensamento stalinista4.  
Contudo, não está presente essa interpretação apenas dentre certos marxistas,  
mas também dentre os críticos de Marx, principalmente no século XX. Grosso modo,  
podemos dizer que uma das principais críticas feitas ao autor renano seria de que  
considerava a via de desenvolvimento europeia como parâmetro do desenvolvimento  
humano como um todo, fazendo de Marx um evolucionista, além de eurocêntrico.  
Como exemplo dessas críticas, podemos citar o conhecido livro de Edward Said,  
Orientalism, publicado em 1978, bem como os trabalhos de autores do chamado  
pensamento decolonial, como Walter Mignolo e Ramón Grosfoguel.5  
Por outro lado, uma leitura mais cuidadosa e completa da obra de Karl Marx nos  
mostra uma pintura bastante diferente do que tanto os detratores quanto seus  
supostos seguidores esboçaram. Naquilo que o autor nos deixou de escrito, com  
destaque aos escritos de sua maturidade intelectual, como os próprios rascunhos de  
resposta à carta de Zasulich (que serão nosso principal objeto, embora não sejam os  
únicos textos pertinentes), essa aparente contradição se dissolve, revelando um  
complexo teórico muito mais refinado do que a interpretação que lhe foi dada por  
muito tempo sugere.  
Nesse sentido, partindo da análise da carta enviada por Karl Marxem resposta à  
questão de Vera Zasulich, esse trabalho busca investigar a questão do  
desenvolvimento histórico na obra marxiana a fim de demonstrar a incompatibilidade  
entre o tecido compositivo do pensamento marxiano e a posição que encontra em o  
4 Sobre isso, cf. SAWER, Marian. Marxism and the Question of the Asiatic Mode of Production. Hague:  
Martinus Nijhoff, 1977; CLAUDÍN, Fernando. A crise o movimento comunista. Trad. José Paulo  
Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2013; DEUTSCHER, Isaac. Stálin: uma biografia política. Trad.  
Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.  
5
Sobre isso, cf. SAID, Edward. Orientalism. Nova York: Vintage Books, 1979. GROSFOGUEL, Ramón.  
Descolonizando los universalismos occidentales: el pluriversalismo transmoderno decolonial desde Aimé  
Césaire hasta los zapatistas. In. CASTRO-GOMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramón, El giro decolonial:  
reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre,  
2007, pp. 6378; MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina (la derecha, la izquierda y la opción  
decolonial). In.: Revista Crítica y Emancipatión, n. 02, 2009, pp. 251276.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 291  
nova fase  
   
Gabriella M. Segantini Souza  
O Capital um esquema do movimento inevitável do desenvolvimento humano, sem  
considerações quanto à especificidade geográfica e histórica. Assim, buscaremos  
contrapor as leituras que transformamMarxem um etapista histórico e aquilo que o  
autor nos deixou de escrito sobre a Rússia, sobretudo nos esboços de resposta à carta  
de Zasulich, pois nesse escrito sobre uma sociedade de desenvolvimento atípico  
encontramos diversas considerações sobre a especificidade do contexto russo e a  
importância de as considerar ao estudarmos a Rússia.  
No presente artigo, intenciona-se fazer uso do que ficou conhecido por análise  
imanente ou estrutural(CHASIN, 2009, p. 25), a qual se trata da busca pela apreensão  
do sentido mesmo do texto, independentemente das preferências do intérprete,  
rejeitando, portanto, premissas impostas de antemão pelo leitor para dar primazia ao  
texto-objeto. Sobre a leitura/análise imanente, esclarece o autor que  
Tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto a  
formação ideal em sua consistência autossignificativa, aí  
compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto  
positivos como negativos:o conjunto de suas afirmações, conexões e  
suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o  
perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos  
modos pelos quais é encarada, de frenteou por vieses (CHASIN, 2009,  
pp. 25-26).  
Assim, propõe-se, pois, a uma leitura [imanente] dos textos, ou seja, investigá-  
los em suas próprias determinações, deles extraindo seu sentido próprio na tarefa de  
investigação do objeto de pesquisa aqui proposto. Isto é, busca-se “apreender o texto  
na forma própria à objetividade de seu discurso enquanto discurso, ou seja, na  
efetividade de uma entificação peculiar” (CHASIN, 2009, p. 25), não pelo que dele foi  
dito por outros intérpretes, dado que “independe para ser discurso […] dos olhares,  
mais ou menos destros, pelos quais os analistas se aproximam dele e o abordam”  
(CHASIN, 2009, p. 25).  
Marx e a Rússia antes de 1870: a questão da emancipação dos servos e  
movimentações internas na Rússia  
No que concernia o tratamento da Rússia, na década de 1840 e no começo da  
década de 1850, o principal foco de Marx (e também de Engels) parecia ser  
principalmente o governo tzarista, o qual era especial objeto de fortes críticas do autor  
sobretudo em razão de seu papel na reação europeia aos movimentos da década de  
1840. Em 1848/1849, a Rússia e sua autocracia aparentemente estável e resistente  
haviam restado imune aos fogos revolucionários que correram pela Europa Ocidental  
Verinotio  
292 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
(MARX, 2010c, p. 259), tendo em 1849 avançado com suas forças armadas contra  
essas revoluções (HOBSBAWM, 1982, p. 176), razão pelas quais a Rússia era naquele  
momento um espectro da velha sociedade europeia, espreitando ameaçadoramente  
contra as revoluções no Ocidente. A Rússia era o centro da contrarrevolução em  
1848/49, a alma da “aliança dos senhores ‘pela graça de Deus e do chicote’” (MARX,  
2020, p. 359). Como Marx (2010, p. 454) escreveu na última edição da Nova Gazeta  
Renana, em 18 de Maio de 1849, o exército russo coalizionava e representava a  
aliança da velha Europa, que se opunha às forças da nova Europa revolucionária.6 A  
Rússia era, portanto, um enorme empeço no caminho da revolução europeia naquele  
momento, na medida que constituía a última grande reserva da reação europeia”  
(MARX & ENGELS, 2005, p. 72).  
Nos anos 1850, nos artigos jornalísticos que Marx escreveu para o New York  
Daily Tribune sobre a Guerra da Crimeia também transpareciam as fortes críticas do  
autor à Rússia. Por exemplo, em um artigo sobre a Guerra da Crimeia escrito para o  
New York Daily Tribune em 29 de julho de 1853, Marx se posiciona favoravelmente  
pela Turquia contra a expansão russa, referindo-se à Rússia como “a demoníaca Roma  
do Leste” (MARX, 2010c, p. 231), bem como uma bárbara autocracia que representava  
o cajado do conservadorismo na Europa. Marx aponta ainda que, embora França e  
Inglaterra aparecessem como aliadas da Turquia contra a Rússia, o verdadeiro inimigo  
da Rússia não eram os países europeus, mas sim a Revolução, pois enquanto a  
“iluminadaaristocracia e burguesia inglesas prostravam-se diante da Rússia e a rainha  
da Inglaterra oferecia banquetes para princesas russas, era o proletariado quem se  
revoltava diante dessa degradação e impotência das classes dominantes, colocando-  
se firmemente contra as pretensões russas e contra a complacência inglesa com a  
Rússia.  
Em função do foco nas relações externas da Rússia nesses textos, neles não  
aparecem muitos comentários de Marx sobre as relações internas russas, com exceção  
de comentários sobre a natureza autocrática de seu Estado e a natureza retrógrada de  
sua produção (MARX, 2010b, p. 486). Isso de certa forma muda aproximadamente em  
6
“Como despedida, recordamos a nossos leitores as palavras de nosso primeiro número de janeiro:  
“insurreição revolucionária da classe trabalhadora francesa, guerra mundial eis o sentido do ano de  
1849”. E no oriente um exército revolucionário composto de combatentes de todas as nacionalidades  
já enfrenta a velha Europa representada e coalizionada no exércitorusso, de Paris já ameaça a “república  
vermelha”!" (MARX, 2020, p. 557)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 293  
nova fase  
 
Gabriella M. Segantini Souza  
1858, com três peças jornalísticas sobre os planos para a abolição da servidão pelo  
Czar Alexandre II, escritas por Marx em 1848, oportunidade na qual o autor analisou  
mais diretamente as tensões internas que marcavam a Rússia naquele momento.  
Em 1º outubro de 1858, Marx escreveu um artigo intitulado The question of the  
abolition of serfdom in Russia7, o qual foi publicado no dia 19 de outubro daquele ano  
no New York Daily Tribune. Nesse texto, Marx analisa as movimentações por parte do  
tzar Alexandre II no sentido de levar a cabo a abolição na servidão na Rússia, com  
destaque para o contexto em que se dava a discussão da emancipação dos servos,  
bem como que a havia provocado. Antes do filho ressuscitar a emancipaçãodos servos,  
o pai de Alexandre II, Nicolau I (assim como seu antecessor, Alexandre I), já havia  
ventilado a ideia da emancipação, tendo tentado colocar em efeito uma transformação  
pacífica da situação dos servos na Rússia (em função de questões do Estado, não por  
qualquer tipo de sentimento de humanidade”), mas logo abandonou os planos da  
abolição da servidão diante das revoluções de 1848-1849, ali tendo se tornando um  
ansioso adepto do conservadorismo” (MARX, 2010e, p. 52). Afinal, como escreveu  
Marx em 31 de dezembro de 1858, na segunda parte de The Emancipation Question,  
publicada 17 de janeiro de 1859 no Tribune, o governo russo possuía o hábito de,  
desde Alexandre I, conjurar a fata morgana da liberdade” (MARX, 2010e, p. 145)  
perante os servos8. Em 1858, o czar Alexandre II retornou às discussões sobre a  
emancipação dos servos, mas, assim como seu pai antes dele, fê-lo não por qualquer  
tipo de sentimento humanitário”, sim diante da inquietação crescente dos servos em  
razão da guerra com os turcos.  
De certa forma, a abolição da servidão na Rússia era uma questão que não podia  
mais ser ignorada, razão pela qual Alexandre II se viu forçado a dar início ao processo  
de supressão da servidão. Como Marx escreve, “with Alexander II, it was hardly a  
question of choice whether or not to awaken the sleeping elements9(MARX, 2010e,  
p. 52). Marx escreve no Tribune que  
the peasantry, with exaggerated notions even of what the Czar  
7 [A questão da abolição da servidão na Rússia] (tradução livre)  
8 Interessante remarcar como nesse período, a Rússia possuía um modo de produção bastante peculiar,  
no qual conviviam uma produção de contornos feudais como vemos nessestextos do New York Daily  
Tribune e da Nova Gazeta Renana , baseada na servidão, uma produção que Marx se refere como  
asiática, baseada no despotismo asiático (cf. MARX, 2011) e uma produção baseada na propriedade  
comunal da terra (cf. MARX, 2013)  
9
[com Alexandre II, dificilmente se tratava de uma questão de escolha acordar ou não os elementos  
adormecidos]. (Tradução livre)  
Verinotio  
294 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
     
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
intended doing for them, have grown impatient at the slow ways of  
their seigneurs. The incendiary fires breakingout in several provinces  
are signals of distress not to be misunderstood. It is further known  
that in Great Russia, as well as in the provinces formerly belongingto  
Poland, riots have taken place, accompanied by terrible scenes, in  
consequenceof which the nobility have emigratedfrom the country to  
the towns, where, under the protection of walls and garrisons, they  
can bid defiance to their incensed slaves. (MARX, 2010e, p. 53)  
[grifo meu]  
No final da década de 1850, a questão dos servos não poderia mais ser  
postergada, tendo se tornado particularmente polvorosa diante dos levantes  
camponeses que eclodiam em diversas províncias russas: os camponeses russos  
estavam cada vez mais impacientes pela abolição da servidão. Os “fogos incendiários”  
que estouravam por diversas regiões da Rússia pressionavam Alexandre II a olhar com  
seriedade o velho flerte dos czares com a abolição da servidão embora as  
expectativas do campesinato em relação aos planos de abolição não correspondessem  
exatamente aos modos morosos e reticentes do czar para com a questão.  
É bastante evidente nesses textos como a abolição da servidão na Rússia  
levantava considerável entusiasmo em Marx, pois o autor percebia como o fim da  
servidão traria inevitavelmente grandes transformações no contexto interno russo. Isso  
na medida que, como explica o autor renano, “it is impossible to emancipate the  
oppressed class without injury to the class living upon its oppression, and without  
simultaneously discomposing the whole superstructure of the State reared on such a  
dismal social basis11(MARX, 2010e, p. 52). Isto é, a supressão da servidão provocaria  
uma considerável transformação no modo de produção russo e decomporia a  
superestrutura do Estado russo que se fundava nas bases sociais da servidão, bem  
como inevitavelmente prejudicaria a classe aristocrática que vivia da opressão dos  
servos, os quais seriam os mais diretamente afetados pelos planos de Alexandre II para  
a abolição da servidão.  
Nota-se, pois, como a questão russa já era de interesse nos escritos de Marx a  
10 [o campesinato, com ideias exageradas até mesmo do que o czar pretendia fazer por eles, tonaram-  
se impacientes com as maneiras lentas de seus senhores. Os fogos incendiários eclodindo em diversas  
províncias são sinais de agitação inconfundíveis. É sabido ainda que na Grande Rússia, bem como em  
províncias que antes pertenciam à Polônia, revoltas têm acontecido, acompanhadas por cenas terríveis,  
em razão das quais a nobreza emigrou do campo para as cidades, onde, sob a proteção de muros e  
guarnições, podem oferecer resistência aos seus escravos enfurecidos] (tradução livre)  
11[é impossível emancipar a classe oprimida sem ferir a classe que vive dessa opressão e sem  
simultaneamente decompor a superestrutura do Estado gerada sob uma base social tão sombria]  
(tradução livre)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 295  
nova fase  
   
Gabriella M. Segantini Souza  
partir da década de 1860, pois em diversos textos das décadas de 1840 e 1850 a  
Rússia aparece com certa frequência, com tratamento de questões tanto afeitas à sua  
política externa e seu papel de bastião da tradição europeia, quanto às suas tensões  
internas, com destaque para as discussões afeitas à servidão na Rússia. Contudo, como  
escreveu em uma carta a Engels em 29 de abril de 1858, “the movement for the  
emancipation of the serfs in Russia strikes me as importantin so far as it indicates the  
beginning of an internal development that might run counter to the country's  
traditional foreign policy12(MARX, 2010f, p. 310), em 1858 as transformações  
internas na Rússia interessavam Marxprincipalmente pelo impacto delas na tradicional  
política externa russa, dado que, conforme delineado acima, a intervenção russa havia  
sido a salvação dos príncipes e da burguesia europeus contra o proletariado que se  
despertara em 1848-1849 (MARX & ENGELS, 2005, p. 73).  
Nesse sentido, podemos inferir desse trecho da correspondência entre Marx e  
Engels - sempre com o devido cuidado ao tratar de documentos como cartas que,  
embora a dissolução da servidão traria o desmoronamento das estruturas de produção  
e de exploração que nela tinham sua base, nesse momento essa transformação  
nas relações produtivas na Rússia parecia importante mais no que isso poderia  
representar para as revoluções na Europa Ocidental, isto é, pelos impactos na política  
internacional russa, não tanto ainda pelo impacto de uma revolução no seio da própria  
Rússia.  
Todavia, isso não significa de forma alguma que Marxignoravaas movimentações  
dos servos russos e dos impactos desses levantes para o contexto russo. Pelo  
contrário, como vemos na segunda parte do artigo The emancipation question, escrita  
em 31 de dezembro de 1858, bem como em The question of the abolition of serfdom  
in Russia, escrito em 1º de outubro de 1858. Esses artigos foram escritos em um  
contexto bastante peculiar na história russa, em que profundas transformações sociais  
pareciam iminentes na Rússia, como Marx nesses artigos não deixa de notar, como  
veremos mais a frente. Sobre esse contexto, HOBSBAWM (2012) ilustra bem como  
Depois da guerra da Crimeia, uma revolução russa parecia não mais  
apenas desejável, mas cada vez mais provável. Esta era a maior  
inovação da década de 1860. O regime que, por mais reacionário e  
ineficiente que pudesse parecer, tinha aparecido até então como  
12 [o movimento de emancipação dos servos me parece importante na medida em que indica o começo  
de um desenvolvimento interno que pode ir no sentido contrário da política externa tradicional do país  
[Rússia]] (tradução livre)  
Verinotio  
296 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
 
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
estável e poderoso externamente, imunetanto àrevolução continental  
de 1848 como capaz de fazer marchar seus exércitos contra ela em  
1849, revelava-se agora internamente instável e externamente mais  
fraco do que parecia. Suas maiores fraquezas eram políticas e  
econômicas, e aí reformas de Alexandre II (1855-81) poderiam ser  
vistas mais como um sintoma do que remédio para estas fraquezas.  
Na realidade, como veremos […], a emancipação dos servos (1861)  
criara as condições para um campesinato revolucionário, enquanto  
que as reformas administrativas, jurídicas e outras do tzar (1864-70)  
fracassaram em remover as fraquezas da autocracia tzarista, ou  
mesmo em compensar aaceitação tradicional queagorase encontrava  
ameaçada. (HOBSBAWM, 2012, p. 176)  
Ciente dessas circunstâncias, em The emancipation question e em The question  
of the abolition of serfdom in Russia, Marx aponta como a principal razão que forçou  
Alexandre II a retomar os projetos de abolição da servidão foram as insurreições dos  
servos, as quais se espalhavam pela Rússia desde 1842 e que haviam se intensificado  
após a Guerra da Crimeia. Por demais, ao avaliar o conteúdo do plano do Comitê  
Imperial Central para a emancipação dos servos, Marx indicava também que os planos  
do czar para a libertação dos servos certamente haveriam de insatisfazer os  
camponeses russos, sobretudo diante do fato de que o plano de Alexandre II para dar  
fim à servidão despiria a comunidade das vilas de suas faculdades de auto-governo  
para dar lugar a um sistema de governo patrimonial, introduzindo a figura do landlord.  
Esse plano traria um sistema que seria absolutamente repulsivo para os camponeses  
russos, para quem era a comunidade a proprietária da terra em que vivia, inexistindo  
a concepção de propriedade individual da terra.  
Assim, Marx considerava que, ao invés de efetivamente pacificar os servos, o  
plano de abolição da servidão certamente inflamaria ainda mais os camponeses,  
trazendo novas revoltas. As pressões da história se assomavam sobre o tzar:  
encurralado de um lado pelos nobres e de outro pelos servos, Alexandre II, postula  
Marx, certamente falharia em cumprir de forma satisfatória com as reformas por ele  
pretendidas, e os servos que de um lado possuíam altas expectativas para os planos  
do czar e consideravam que Alexandre II era seu aliado, de outro estavam convencidos  
de que a nobreza era quem impedia o imperador de fazer avanços mais significativos  
inevitavelmente se revoltariam. Marx percebe, pois, que se estava diante de uma  
segunda virada na história russa, com potencial para reais e profundas transformações  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 297  
nova fase  
Gabriella M. Segantini Souza  
na tessitura social da Rússia13. Dessa forma, ao fim da década de 1850, a Rússia não  
era mais apenas a prima conservadorada Europa Ocidental, uma força impermeável  
aos fogos revolucionários de 1848. Como aponta Marx nos artigos do Daily Tribune,  
a Rússia continha em si um potencial para profundas transformações na Rússia,  
tratando-se da força transformadora das rebeliões dos camponeses e das pressões  
que elas provocavam sobre a aristocracia russa.  
Importante ressaltar, contudo, que embora nesse momento Marx considerava  
ainda que fosse iminente uma guerra dos servos na Rússia14 e, portanto, que era  
iminente uma profunda transformação na tessitura social russa , não aparece ainda  
a possibilidade efetiva de se levar a cabo uma revolução na Rússia partindo da  
propriedade comunal da terra, tampouco de uma revolução iniciada na própria Rússia.  
Como vemos em uma carta que Marx escreveu a Engels em dezembro de 1859, Marx  
escreve que o movimento revolucionário na Rússia progredia como em nenhum outro  
país europeu e que, com a vinda da próxima revolução, diferentemente do que ocorreu  
em 1848, a Rússia se juntaria à ela. Ressalte-se, portanto, que a revolução não partiria  
da Rússia, mas ela dessa vez não resistiria a ela diferente de como a questão  
aparece no prefácio à edição russa de O Capital, em que Marx e Engels escrevem que  
uma revolução na Rússia seria um sinal para a revolução proletária no Ocidente (MARX  
& ENGELS, 2013, p. 103).  
Marx e seus estudos russos: 1860-1880  
Desde outubro de 1869 Marx se dedicava avidamente ao estudo da questão  
agrária russa, incentivado por Nikolai Danielson, que lhe havia presenteado uma cópia  
de A situação da classe operária na Rússia, de V. V. Bervi-Flerovsky. Para que pudesse  
ler o livro de Flerovsky em sua língua original, Marx se dedica a aprender a língua  
russa, o que faz em alguns meses (WADA, 2017, p. 81). Com isso, Marxpassa a estudar  
13  
Isto é “and finally place real and general civilization in the place of that sham and show introduced  
by Peter the Great”. (MARX, 2010e, p. 178) [“E finalmente instituir uma civilização real e geral no lugar  
da farsa e espetáculo introduzidos por Pedro, O Grande”] (tradução livre), ou seja, finalmente poderiam  
ocorrer transformações reais na Rússia, ao invés das reformas de Pedro, o Grande, que Marx aforma  
não terem sido nada mais que uma farsa e um espetáculo  
14 Sobre esse período, Marx escreve que “the symptoms of a servile war are so visible in the interior of  
Russia, that the Provincial Governors feel themselves unable otherwise to account for the unwonted  
fermentation than by charging Austria with propagating through secret emissaries Socialist and  
revolutionary doctrines all over the land” (MARX, 2010d, p. 568) [“Os sintomas de uma guerra servil  
são tão visíveis no interior da Rússia, que os Governadores Provinciais se sentem incapazes de explicar  
a fermentação extraordinária senão culpando a Austria de propagar emissários socialistas secretos e  
doutrinas revolucionárias por todo o campo.”]  
Verinotio  
298 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
   
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
a comuna agrária russa a partir de textos de autores russos em sua língua original,  
como, além de Bervi-Flerovsky, Tchernichevski autor extremamente importante para  
a tradição revolucionária russa (SILJAK, 2013) , Skaldin, A. I. Koshelev, A. N.  
Engelgardt, A. I. Vasilchakov, P. A. Sokolovsy, N. O. Kostomarov e Maksim Kovalevsky  
amigo pessoal de Marx (WADA In. SHANIN, 2017), bem como diversos outros  
autores russos cujos artigos e livros Danielson lhe enviava, como se lê nas  
correspondências entre Marx e Danielson (MARX, DANIELSON & ENGELS, 1981, pp.  
85-86). Assim, partindo desses extensos estudos acerca da situação russa e da  
questão agrária com destaque para N. Tchernichevski, autor populista por quem Marx  
possuía grande admiração, conforme vemos no Posfácio à Segunda Edição de O  
Capital (MARX, 2017, p. 86) que o autor da crítica à economia política constrói o  
posicionamento acerca da comuna agrária russa que exporemos em seguida, sendo  
marcante a influência de autores populistas (ou narodniks) em sua argumentação,  
como ainda será tratado aqui.  
Antes de partirmos à análise das cartas de Vera Zasulich e Marx propriamente  
ditas, parece-nos importante ressaltar como o que Marx escreve em 1881 sobre a  
Rússia não é sinal de uma virada no pensamento do autor, mas sim o resultado de  
anos de estudo acerca da questão agrária na Rússia e dos movimentos que se  
colocavam na sociedade russa. Ao contrário do que postula Michel Löwy15, os escritos  
sobre a Rússia principalmente da década de 1880 não se colocam como uma ruptura  
em relação ao que havia escrito antes por Marx, mas sim inseridos no mesmo esforço  
teórico, qual seja, a crítica à economia política. Como bem coloca MUSETTI (2018),  
esses textos não revelariam, por fim, uma  
virada metodológica, políticae estratégica” na trajetória intelectual  
dos dois autores, mas a radicalidade da crítica ontológica  
desenvolvida por Marx desde 1843, quando rompeu com a  
concepção hegeliana de ser para constituir um novo patamar de  
15  
Conforme adiantado acima, Michael Löwy afirma haver uma “‘virada metodológica’, política e  
estratégica” (LÖWY In. MARX & ENGELS, 2013, p. 8) a partir dos estudos principalmente de Marx sobre  
a Rússia. Defende o autor que há uma ruptura com interpretações unilineares, etapistas, eurocêntricas  
do materialismo histórico que outrora deixaram suas marcas na obra marxiana; ele defende que “o  
conjunto de escritos sobre a Rússia nos anos 1877-1894 sugere uma hipótese que rompe com o  
economicismo, o eurocentrismo e o progressista” evolucionista: as revoluções sociais poderiam  
começar não nos países mais industrializados, nas grandes metrópoles capitalistas onde supostamente  
as condições estariam maduras” (como se a história fosse uma laranjeira) , mas na periferia do sistema  
capitalista, nos países atrasados” – “semifeudais”, coloniais e semicoloniais”, ou subdesenvolvidos”,  
segundo uma terminologia do século XX. Esta hipótese sim é que se realizou no curso do século XX,  
desde a Revolução Russa de 1917 até a Cubana de 1959-1961.” (LÖWY In. MARX & ENGELS, 2013,  
p. 14)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 299  
nova fase  
 
Gabriella M. Segantini Souza  
racionalidade, que redirecionava a crítica filosófica para a apreensão  
do objeto em seu significado específico”, rejeitando todo  
procedimento que dissolva a heterogeneidade dos processos  
históricos a partir da subsunção destes a uma lógica autônoma  
(MUSETTI, 2018, p. 219)  
Isso quer dizer que os estudos de Marx acerca de sociedades não capitalistas  
(sociedades nas periferias do capitalismo, nos termos de SHANIN (2017), ou às  
margens do capitalismo (ANDERSON, 2019)) nas décadas de 1870 e 1880 não são  
desvios em relação ao trabalho desenvolvido anteriormente, mas sim uma  
consequência da natureza da teoria marxiana, como será evidenciado a frente.  
Diferentemente do proposto por Löwy (LÖWY In. MARX & ENGELS, 2013), os estudos  
dessas sociedades têm direta continuidade com a teoria marxiana de antes do 1880-  
1870 (bem como descontinuidades, como é natural do desenvolvimento intelectual do  
autor), constituindo parte integrante dos esforços de Marxpara empreender sua crítica  
à economia política, sempre tendo em vista o objeto de investigação em suas  
determinações concretas e específicas.  
Como bem coloca MUSTO (2018), Marx nas décadas de 1870 e 1880 não só  
deu continuidade às pesquisas que vinha conduzindo desde a década de 1840 –  
contrariando autores como David Riazanov, que supunham que na década de 1880  
a saúde fragilizada de Marxhavia desacelerado o ímpeto intelectual do autor (MUSTO,  
2018, p. 30) , mas, ambicionado por finalizar o segundo volume de O Capital,  
também as extende a novos campos, com intuito de ampliar seu conhecimento sobre  
os períodos históricos, as áreas da geográficas e as temáticas que considerava  
essenciais para a crítica à economia política, sobretudo no que concerne à  
acumulação16 de capital no âmbito da produção global capitalista. Tais estudos  
permitem, inclusive, avanços na área. Portanto, os estudos russos empreendidos de  
1867 a 1881 por Marx não foram impulsionados por simples curiosidade intelectual,  
mas sim com uma intenção rigorosamente teórico-política. Dessa forma, tratar os  
estudos do velho Marx como uma virada em relação aos estudos anteriores é  
desconsiderar a natureza da própria teoria marxiana, que não se propõe como um  
sistema fechado em si, hermético a mudanças e desenvolvimentos e que é sempre  
propulsionada pela radicalidade do pensamento do autor e pela busca da apreensão  
16 Que aqui não pode ser confundida com a assim chamada acumulação originária, que se refere a um  
processo distinto  
Verinotio  
300 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
 
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
dos objetos em suas determinações próprias.17  
A disputa entre narodniks e os chamados marxistas russos  
Antes de tudo, são necessárias duas advertências. Como coloca SHANIN (2018,  
p. 33), o uso dos rótulos “marxistas russos” e “populistas” / “narodniks” pode se  
demonstrar enganoso por algumas razões. Primeiro, acerca do uso do termo marxistas  
russos para denominar um dos grupos do debate do qual trataremos, apesar de que  
os chamados marxistas russos se denominarem como tal deriva do fato de que esses  
russos baseavam sua posição revolucionária na leitura que fizeram da obra marxiana,  
alegando que sua posição era a de Marx, como será melhor exposto, isso não é um  
equívoco. Em verdade, a posição postulada pelos chamados marxistas russos em nada  
se parece com a posição do próprio Marx, como o próprio autor faz questão de  
ressaltar para Vera Zasulich, quando escreve que “os marxistasrussos de que falais  
me são desconhecidos” (MARX, 2013, p. 85), utilizando-se de aspas irônicas ao se  
referir aos russos que Zasulich trata como marxistas. Assim como Marx um dia disse a  
Paul Lafargue sobre o chamado marxismo da França, aplica-se aqui também que, se  
esses russos era os marxistas, Marx provavelmente teria reiterado que “Ce qu'il y a de  
certain c'est que moi, je ne suis pas Marxiste” (MARX, 2010g, p. 356). [O que há de  
certo é que eu não sou marxista] (tradução livre)  
Em segundo lugar, sobre os narodniks ou populistas, o termo se demonstra  
enganoso na medida que se refere a um grupo que abrangia desde revolucionários,  
liberais reformistas a grupos de extrema direita, sendo os narodniks aos quais Zasulich  
se refere em sua carta são aqueles da vertente revolucionária, por assim dizer. Nessa  
eiva, não podemos nos confundir populistas como Piotr Lavrov e Nikolai  
Tchernishevski ambos pelos quais Marx possuía grande respeito, sendo inclusive  
Lavrov amigo pessoal de Marx e Tchernichevski enormemente admirado pelo próprio  
Lenin —– estes que, conforme explica Theodor Shanin, eram os populistas que se  
colocavam na extrema direita do que se denominava narodniks na época (SHANIN,  
17  
A questão que tocamos aqui é de enorme complexidade e a mencionamos aqui simplesmente para  
deixar clara nossa posição no debate aqui colocado, embora não nos seja possível explorar de forma  
pormenorizada a razão pela qual discordamos de Löwy e Shanin quanto à existência de uma ruptura  
no Marx tardio em relação aos textos de antes da década de 1880. Tal trabalho demanda uma análise  
que não cabe no espaço do qual aqui dispomos, mas para uma introdução no debate, cf. SAYER &  
CORRIGAN, In. SHANIN, 2017  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 301  
nova fase  
 
Gabriella M. Segantini Souza  
1983, p. 8).18  
No começo da década de 1880, quando uma já exilada Vera Zasulitch escreve a  
Karl Marx, dois grupos revolucionários russos de um lado, os autoproclamados  
marxistas russos, dentre os quais, em certa medida, incluíam-se Plekhanov e a própria  
Zasulich19, militantes da Partilha Negra (cf. SHANIN, 1983); de outro, os narodniks,  
conhecidos também como populistas (HOBSBAWM, 1977, p. 255)20 travavam uma  
acirrada disputa acerca da questão agrária russa, de quais seriam os rumos de sua  
propriedade comunal agrícola e, consequentemente, de qual deveria ser a estratégia  
para uma revolução na Rússia21. Os narodniks (ou populistas) defendiam a  
possibilidade de “uma comuna camponesa revolucionada […]constituir a base de uma  
transformação socialista direta da Rússia, poupando o país dos horrores do  
desenvolvimento capitalista(HOBSBAWM, 1988, p. 256), ao passo que “os marxistas  
russos acreditavam que isso não era mais possível, porque a comuna já estava se  
dividindo em dois grupos mutuamente hostis, burguesia e proletariado rurais”  
(HOBSBAWM, 1988, p. 256).  
Em meio a esse debate no qual O Capital de Marxdesempenhava papel central  
, a jovem revolucionária buscava as palavras do autor alemão na forma de uma carta  
que pudesse ser traduzida e publicada na Rússia, a fim de solucionar uma questão que  
ela afirma ser de “vida ou morte, sobretudo para o nosso partido socialista [a Partilha  
Negra]” (ZASULICH In. MARX & ENGELS, 2013, p. 66), bem como que do  
posicionamento de Marx nesse debate dependeria “até mesmo o nosso destino  
pessoal como socialistas revolucionários” (ZASULICH In. MARX & ENGELS, 2013, p.  
66). Dessa forma, é com extrema urgência que Zasulich escreveu a Marx, pedindo-lhe  
que expusesse suas “ideias sobre o possível destino de nossa [da] comuna rural e  
sobre a teoria da necessidade histórica de que todos os países do mundo passem por  
todas as fases da produção capitalista” (ZASULICH In. MARX & ENGELS, 2013, p. 66).  
18 Sobre essas distinções, cf. Tvardovskaia, El populismo ruso, 1978  
19  
Como SILJAK (2013) aponta, é no mínimo curiosa a interessante contradição entre o conteúdo da  
resposta que Marx envia à carta de Zasulich e a posição que Zasulich e seus companheiros da Partilha  
Negra defendiam na década de 1890, aproximando-os aos chamados marxistas russos e, ironicamente,  
do pensamento do próprio Karl Marx  
20  
Sobre a crítica de Lenin sobre os narodniks, Cf. em Lenin, Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia,  
1982. Sobre essa polêmica, cf. também Hobsbawm, A Era do Capital, 1977; cf. também Coggiola,  
Realidade e lenda do bolchevismo, 2017  
21 Conforme vemos em WADA (2017, pp. 107-108), o contexto exato desse debate é também objeto  
de discussões. Sobre isso, cf. WADA In. Shanin, 2017  
Verinotio  
302 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
       
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
Assim, Vera Zasulich propõe a Marx em sua carta uma questão de alta complexidade,  
tratando-se de um marcado dilema para os revolucionários na Rússia naquele  
momento: a revolução na Rússia dependeria da dissolução da terra comunal? O que  
deveriam fazer os russos que desejavam a regeneração social na Rússia?  
Na carta a Marx, Vera Zasulitch afirma haver apenas duas interpretações acerca  
da comuna que permeavam os debates russos na época. A primeira, defendida pelos  
narodniks, em linhas gerais tinha que a comuna agrária russa deveria ser a base para  
a regeneração social russa, dado que já se tratava de uma forma de produção baseada  
na posse comum da terra. Nesse sentido, os revolucionários na Rússia deveriam focar  
na libertação da comuna agrária e da transição para o comunismo a partir dela.  
A comuna rural, liberada das exigências desmesuradas do fisco, dos  
pagamentos aos donos das terras e da administração arbitrária, é  
capaz de se desenvolver pela via socialista, quer dizer, de organizar  
pouco a pouco sua produção e distribuição de produtos sobre bases  
coletivistas. Nessecaso, o socialistarevolucionário deve envidar todos  
os seus esforços em prol da libertação da comuna e de seu  
desenvolvimento. (ZASULICH, 2013, p. 52)  
De acordo com os partidários dessa posição, a revolução na Rússia deveria se  
voltar contra os inimigos da comuna agrária o Estado russo para libertá-la das  
amarras que a impediam de se desenvolver, o que possibilitaria à obchtchina russa  
(comuna agrária) tornar-se a base da transição da Rússia para um modo de produção  
socialista — sua “regeneração social” (MARX, 2013, p. 94). Em outras palavras, os  
narodniks entendiam que a transição para o modo de produção socialista era possível  
na Rússia sob as bases da obchtchina russa e, com isso, sem que fosse forçoso que a  
Rússia passasse pelo regime de produção capitalista e seus “fourches caudines”  
(MARX, 2013, p. 94), isto é, que antes da revolução precisasse desenvolver sua  
produção de forma capitalista. Ou seja, tratava-se justamente da defesa do socialismo  
em um país de desenvolvimento não clássico, rejeitando a ideia de que o socialismo  
só era possível onde já se tinha um modo de produção capitalista classicamente  
consolidado. Contestava-se a tese segundo a qual: (i) o passado da Europa Ocidental  
revelaria o futuro da Rússia, de maneira que os processos de expropriação das terras  
comunais e das pequenas propriedades pelos quais os países europeus passaram —  
isto é, os processos de que Marxtrata no Capítulo XXIV de O Capital, na assim chamada  
acumulação primitiva ocorreria inevitavelmente na Rússia; (ii) uma revolução  
socialista só seria possível em um país que, com a Inglaterra, já tivesse um modo de  
produção capitalista consolidado, pois se trataria de uma etapa necessária antes do  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 303  
nova fase  
Gabriella M. Segantini Souza  
socialismo (ou seja, o capitalismo em si seria necessário, e não o desenvolvimento de  
forças produtivas que ele enseja).  
No outro polo da controvérsia acerca do papel da obchtchina na regeneração  
social da Rússia estavam os autoproclamados “marxistas” russos, cuja tese se opunha  
frontalmente a dos narodniks nessa questão. Segundo “marxistas russos”, a obchtchina  
estava fadada ao fracasso, restando apenas como um resíduo de uma forma produtiva  
fadada à superação capitalista. Chegaram a essa conclusão a partir do exemplo  
histórico da acumulação primitiva na Inglaterra, conforme trazidopor MarxnOCapital.  
Defendiam que a comuna agrária “é uma forma arcaica, condenada à morte, como  
se fosse a coisa mais indiscutível, pela história, pelo socialismo científico” (ZASULICH,  
2013, p. 66), argumentando que, embora em O Capital a Rússia não seja o objeto de  
análise de Marx, o autor certamente o teria dito. A partir da via inglesa de  
desenvolvimento capitalista, arguiam que as terras comunais na Rússia, tal qual  
ocorreu com as commons inglesas, seriam fatalmente desintegradas e os camponeses  
russos, necessariamente, proletarizados. Marxnos explica muito bem a argumentação  
desses chamados marxistas em sua carta à redação da revista Otechestvenye Zapiski  
[Notas Patrióticas], colocando em linhas diretas o que se segue:  
se a Rússia tende a tornar-se uma nação capitalista a exemplo das  
nações da Europa ocidental e durante os últimos anos ela se  
esforçou muito nesse sentido , não será bem-sucedida sem ter  
transformado, de antemão, uma boa parte de seus camponeses em  
proletários; e, depois disso, uma vez levada ao âmago do regime  
capitalista, terá de suportar suas leis impiedosas como os demais  
povos profanos. (MARX, 2013, p. 45)  
Percebe-se, pois, que segundo essa explicação, o desenvolvimento do  
capitalismo na Rússia seria um desenrolar necessário da história, bem como que, para  
que se desenvolvesse um modo de produção ali, a Rússia inevitavelmente haveria de  
percorreria uma via necessariamente análoga à que engendrou o modo de produção  
capitalista na Europa ocidental, não obstante as diferenças históricas que separam os  
dois contextos. Assim, a Rússia vivenciaria os mesmos processos violentos de  
expropriação dos produtores dos meios e condições de produção e de criação leis  
sanguinárias que submetem os trabalhadores ao novo modo de produção, de forma  
semelhante ao processo da assim chamada acumulação originária pelo qual em  
maior ou menor medida passaram os países da Europa Ocidental. E,  
consequentemente, a comuna agrária seria desintegrada, tal como ocorreu no resto da  
Europa Ocidental, de modo que uma revolução na Rússia que partisse da comuna  
Verinotio  
304 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
jamais poderia levar ao socialismo, uma vez que a comuna deveria ser sucedida pelo  
capitalismo e este pelo socialismo, tal como fases necessárias. Com isso  
ao socialista como tal não resta outra coisa senão dedicar-se a  
cálculos mais ou menos mal fundamentados para descobrir em  
quantas dezenas de anos a terra do camponês russo passará de suas  
mãos para as da burguesia, em quantas centenas de anos, talvez, o  
capitalismo atingirána Rússiaum desenvolvimento comparável ao da  
Europa ocidental. Eles deverão, portanto, fazer a propaganda apenas  
entre os trabalhadores das cidades, que por sua vez serão  
continuamente inundadas pela massa de camponeses, a ser lançada  
em seus paralelepípedos em buscade salário, como consequênciada  
dissolução da comuna. (ZASULICH, 2013, p. 66)  
É importante aqui um breve adendo sobre a assim chamada acumulação  
originária. No Capítulo XXIV de O Capital, que trata da assim chamada acumulação  
primitiva/originária, Marx descreve como nos capítulos anteriores  
vimos como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do  
capital é produzido mais valor e do mais-valor se obtém mais capital.  
Porém, a acumulação do capital pressupõe o mais valor, o mais valor,  
a produção capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas  
relativamentegrandes de capital e de força de trabalho nas mãos de  
produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto,  
gerar num círculo vicioso do qual só podemos escapar supondo uma  
acumulação primitiva(originária), prévia acapitalista, umaacumulação  
que não é o resultado do modo de produção capitalista, mas seu  
ponto de partida.” (MARX, 2017, p. 785).  
Assim, Marx começa a exposição explicitando como o dinheiro historicamente foi  
transformado em capital, sendo que o capital pressupõe o mais valor e este, por óbvio,  
pressupõe a produção capitalista. Contudo, como a produção capitalista só pode se  
colocar sobre seus próprios pés na medida que existem grandes massas de capital e  
força de trabalho para ser comprada, chega-se nesse ponto em uma explicação cíclica,  
na medida que a acumulação de capital pressupõe a produção capitalista, a qual, por  
sua vez, pressupõe a acumulação de capital. Adam Smith resolve esse círculo  
pressupondo uma acumulação prévia à acumulação capitalista, a qual possibilitou o  
modo de produção de se instaurar e, então, iniciar-se a acumulação capitalista.  
Como Marx aponta, a acumulação originária desempenha um papel de certo  
cunho religioso desempenhado pela acumulação primitiva na economia política, na  
medida que, assim como o pecado original teológico explica como o homem foi  
condenado a comer o pão molhado com o suor de seu rosto, o pecado original da  
economia política nos mostra como pode haver gente hoje que não possui nenhuma  
necessidade disso, de trabalhar para sobreviver, contando que, no passado, uns  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 305  
nova fase  
Gabriella M. Segantini Souza  
trabalhavam e foram inteligentes para guardar, ao passo que outros gastavam tudo.  
Essa elite laboriosa e prudente acumulou riquezas, poupou o produto de seu trabalho,  
e os últimos, por sua insensatez e imprudência, foram obrigados a vender sua própria  
pele para sobreviver esse foi seu pecado original, que explica a razão pela qual  
hoje trabalha para sobreviver. E é daí que vem a necessidade ainda existente da venda  
da força de trabalho para um e a riqueza dos poucos, que continua crescente, embora  
há muito tenha deixado de trabalhar” (MARX, 2017, p. 786).  
Porém, na história real, como Marxnos mostra no Capítulo XXIV, o papel principal  
nessa parábola econômica não é da virtude de uns e do vício de outros, mas sim da  
conquista, subjugação, assassinato, em suma, da violência. Portanto, se para a  
economia política direito e trabalho foram fontes de enriquecimento, na história real a  
violência teve esse papel. Isto é, nesse capítulo, o autor visa pôr por terra a justificativa  
ética do capitalismo, de que o que explica porque uns têm que trabalhar para  
sobreviver enquanto alguns poucos não têm essa necessidade não é que uns  
pouparam e outros não, mas sim o roubo e a violência, da apropriação privada do  
trabalho alheio. Isto é, o autor no Capítulo XXIV da obra visa desafiar a ideia de que  
“numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e  
sobretudo perniciosa e por outro vadios que gastavam tudo” - uma explicação que,  
além de diversos outros equívocos que serão explorados mais a frente, situa a origem  
das classes burguesa e proletária na esfera de circulação, colocando aqueles como os  
que, com parcimônia e prudência, apropriaram-se da riqueza universal (poupando-a),  
ao passo que estes usufruíram da riqueza real ao invés de poupá-la, razão pela qual  
têm que trabalhar para sobreviver. O objetivo de Marx com esse Capítulo é provar  
que, em verdade, o capitalismo não é engendrado pela acumulação primitiva, isto é,  
pelo fato de que, num passado distante, alguns se apropriaram da riqueza universal  
enquanto outros usufruíam da riqueza real, ou seja, que una pouparam enquanto  
outros gastavam, mas sim da expropriação, da separação do produtor direto dos meios  
e condições de produção.  
Prossigamos na exposição.  
Os “marxistas” russos, portanto, acreditavam que, antes e para que ocorresse  
uma revolução socialista na Rússia, era preciso, em primeiro lugar, que a comuna fosse  
destruída e os camponeses fosses transformados em proletariado, segundo o modelo  
da Europa ocidental. Sem que isso ocorresse, a regeneração social russa não seria  
Verinotio  
306 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
possível. Desse modo, os esforços dos revolucionários russos estariam desperdiçados  
se fossem voltados para a preservação da comuna russa, uma vez que, segundo esse  
ponto de vista, estaria fadada à desintegração. Seu principal argumento para sustentar  
sua posição:Foi Marx quem disse isso” (ZASULICH, 2013, p. 66)  
Diante do exposto, poderíamos colocar a questão sobre a qual Vera Zasulich  
propõe que Marx se pronuncie nos seguintes termos: era possível que, na Rússia do  
final do século XIX uma economia predominantemente rural , fosse levada a cabo  
uma revolução? Ou a comuna agrária russa estava fadada à desintegração e a  
revolução deveria, necessariamente, partir do proletariado urbano? Fosse essa a  
resposta, seria necessário um maior amadurecimento da indústria russa e de seu  
proletariado, de forma que na época em que Zasulitch escrevia a Marx a revolução  
comunista não era ainda viável22.  
Sobre a relevância das cartas  
Em 1917, um mês após a tomada do Palácio de Inverno de Nikolai II pelos  
bolcheviques, um jovem Antônio Gramsci escreveu um curto artigo para a Revista  
Avante! comentando sobre a Revolução na Rússia, texto intitulado A Revolução contra  
O Capital. Nesse artigo, Gramsci afirma que a Revolução na Rússia era  
a revolução contra O Capital de Karl Marx. O Capital de Marx era, na  
Rússia, mais o livro dos burgueses que dos proletários. Era a  
demonstração crítica da necessidade inevitável que na Rússia se  
formasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se  
instaurasse umacivilização de tipo ocidental, antes que o proletariado  
pudesse sequer pensar nasua insurreição, nas suas reivindicaçõesde  
classe, na sua revolução. Os factos ultrapassaram as ideologias. Os  
factos rebentaram os esquemas críticos de acordo com os quais a  
22  
Sobre as circunstâncias nas quais as cartas foram encontradas, sabe-se que Marx escreveu sua  
resposta definitiva à Vera em 8 de março de 1881, desculpando-se pela brevidade da carta, bem como  
pela sua relativa demora na escrita, pois havia se agravado uma doença nervosa que o acometia há  
mais de 10 anos. Curiosamente, embora Vera tenha pedido a Marx que fizesse uma resposta que  
pudesse ser traduzida para o russo e publicada para seus compatriotas, a promessa de publicação não  
foi cumprida por Zasulich e seus companheiros. A carta caiu na obscuridade até 1911, quando David  
Riazanov cuidava de uma série de escritos de Marx que estavam sob cuidado do genro do autor renano,  
Paul Lafargue. Em meio aos vários textos que estavam com Lafargue, Riazanov encontrou várias cartas  
em formato de oitava, escritas com sua letra manuscrita, bem pequena. Elas eram cheias de supressões  
e continham várias inserções e adendos, também muito riscadas” (RIAZANOV In. SHANIN, 2017, p.  
181). Após uma classificação inicial, Riazanov percebeu que tinha em suas mãos vários rascunhos de  
respostas à carta enviada por Vera Zasulich, de 16 de fevereiro de 1881. Lembrou-se ainda de ter  
ouvido falar de uma quase mítica correspondência entre Vera Zasulich e Karl Marx, mas nunca havia  
visto as cartas em si. Curioso sobre essa correspondência, Riazanov escreveu a Gueorgui Plekhanov,  
indagando sobre a resposta de Marx, mas Plekhanov disse que Marx nunca havia respondido à carta de  
Vera. Após escrever à própria Vera, também perguntando sobre a carta de Marx, Riazanov recebeu a  
mesma negativa: não havia recebido resposta alguma a sua carta a Marx.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 307  
nova fase  
 
Gabriella M. Segantini Souza  
história da Rússia devia desenrolar-se segundo os cânones do  
materialismo histórico. Os bolcheviques renegam Karl Marx quando  
afirmam, com o testemunho da ação concreta, das conquistas  
alcançadas, que os cânones do materialismo histórico não são tão  
férreos como se poderia pensar e se pensou. (GRAMSCI, 1976, p.21)  
Gramsci afirma, portanto,que a Revolução Bolchevique de 1917 renegava Karl  
Marx e O Capital, na medida que a obra do autor traria cânones do materialismo”  
segundo os quais a Rússia estaria ainda demasiadamenteimatura para a ser palco de  
uma revolução comunista em virtude de sua economia agrária e pelo fato de não  
possuir uma classe burguesa. O autor afirma que O Capital significaria para a Rússia  
que, antes de uma revolução nos moldes marxianos, era necessário que a Rússia  
desenvolvesse uma estrutura produtiva semelhante à dos países da Europa Ocidental,  
de modo que a Revolução de 1917, ao não seguir os supostos cânones do  
materialismo histórico(GRAMSCI, 1976, p. 21), seria a rejeição por parte dos  
revolucionários do caminho que Marx teria proposto nO Capital.  
A Revolução de 1917 teria significado para Gramsci, portanto, a rejeição à  
doutrina de Marx de que a história humana segue etapas necessárias, de modo que  
seria possível a revolução comunista em um lugar tal como a Inglaterra, onde se tinha  
um capitalismo maduro e uma burguesia estabelecida. Assim, os bolcheviques, ao  
tentarem fazer uma revolução comunista na Rússia, atuavam no sentido contrário ao  
de Marx e aos “cânones do materialismo” (GRAMSCI, 1976, p. 21) histórico, pois o  
país não havia passado pelo processo histórico de desenvolvimento do modo de  
produção capitalista como o da Europa Ocidental. Gramsci afirma: “Eles não são  
marxistas, é tudo; não retiraram das obras do Mestre uma doutrina exterior feita de  
afirmações dogmáticas e indiscutíveis” (GRAMSCI, 1976, p. 22), ou seja, rejeitavam a  
ideia de que a Rússia não poderia ser palco de uma revolução, o que, para Gramsci  
em 1917, era uma rejeição a Marx.  
Embora muito menos sofisticado do que o texto de Gramsci, podemos ver uma  
interpretação semelhante nos escritos de Joseph Stálin, com destaque a Sobre o  
Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico, de 1938. No ensaio em questão,  
Stálin utiliza-se da obra de Marx para defender a existência de um modelo teórico dos  
momentos da história humana, os quais se sucederiam de forma inevitável o  
comunismo primitivo, a antiguidade escravista, o feudalismo, o capitalismo e o  
Verinotio  
308 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
socialismo (STALIN, 1938)23. Em verdade, ao longo do século XX uma leitura etapista  
de Marx tornou-se bastante comum, sendo muitos os autores que liam na obra  
marxiana um esquema da história humana. Conforme essa leitura etapista, poder-se-ia  
identificar na obra do autor - com destaque para O Capital - uma teoria acerca do  
curso imposto aos povos pela História de forma inevitável.  
Com base no uso por parte de Marx do desenvolvimento capitalista inglês como  
pano de fundo para a análise da produção capitalista, fez-se do “esquema histórico da  
gênese do capitalismo na Europa ocidental(MARX, 2013, p. 45)uma teoria histórico-  
filosófica do curso geral fatalmente imposto a todos os povos, independente das  
circunstâncias históricas nas quais eles se encontram” (MARX, 2013, p. 45). Dessa  
forma, utilizando o desenvolvimento do capitalismo na Europa ocidental –  
principalmente na Inglaterra24 – como uma “chave-mestra uma teoria histórico-  
filosófica geral, cuja virtude suprema consiste em ser supra histórica(MARX, 2013, p.  
46), cria-se uma fórmula geral a ser seguida necessariamente, a despeito das  
condições materiais e históricas de dada lugar.  
O etapismo do marxismo do século XX sendo etapismo a interpretação da  
teoria marxiana como uma leitura teleológica da história, despreocupada com a análise  
concreta e desatenta às especificidades de cada povo e momento histórico , subsiste  
ainda hoje, embora em graus mais atenuados. Por exemplo, a italiana Silvia Federici  
critica Marx por considerar que o autor renano vê no modo de produção capitalista  
uma necessidade histórica, interpretação que denota tons de etapismo. Como afirma  
a autora, embora Marx fosse profundamente consciente do caráter criminoso do  
desenvolvimento capitalista […], não cabe dúvida de que considerava isso como um  
passo necessário no processo de libertação humana” (FEDERICI, 2017, p. 27) [grifo  
meu]. Federici considera que quando Marxtrata dos avanços produtivos trazidos pelo  
capitalismo, ele vê o modo de produção capitalista como um passo necessário na  
evolução humana,isto é, a autora identifica em Marxuma leitura teleológica da história.  
Principalmente com relação aos estudos sobre colonialismo e os escritos que  
Marx sobre o assunto, a ideia de que Marx era um etapista histórico, bem como um  
determinista e evolucionista também se fazem fortes. A ideia de que para o autor  
23  
“A história conhece cinco tipos fundamentais de relações de produção: o comunismo primitivo, a  
escravidão, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo” (STALIN, 1938)  
24 Cf. Marx, 1996a, p.130  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 309  
nova fase  
   
Gabriella M. Segantini Souza  
existem leis econômicas inexoráveis que regem a vida humana de forma homogênea,  
fazendo da história humana um caminho linear, em que todos os povos passam por  
momentos necessários de desenvolvimento. Por exemplo, KATZ (1990) afirma que  
Marx, embora reconhecesse a brutalidade do colonialismo, assinalava à exploração das  
metrópoles um papel historicamente necessário, bem como que o capitalismo nas  
colônias teria um papel progressista. Em sentido semelhante, HOBSBAWM (2011)  
argumenta que a sugestão de eurocentrismo  
surge na obra de Marx em suacrençade que as sociedades europeias  
se autogeram por meio de uma via de desenvolvimento linear  
endogenamente determinada, conforme suas características  
excepcionais, de modo que o Milagre Europeu foi previsto ou  
preordenado ou foi, simplesmente, o destino manifesto da Europa  
(HOBSBAWM, 2011, p. 155)  
Embora esses autores consigam encontrar em certos textos de Marx elementos  
que podem ser usados para corroborar essa visão de que o autor era um etapista  
histórico, uma leitura mais atenta e completa da obra marxiana torna mais difícil esse  
intento, sobretudo diante dos textos aos quais o presente trabalho se dedica.  
Conforme é evidente nos textos sobre a Rússia, há uma profunda rejeição da parte de  
Marx à ideia de uma leitura teleológica da história, sendo evidente no autor uma clara  
preocupação em assinalar o caráter historicamente específico da via inglesa de  
desenvolvimento25, sendo que o processo da assim chamada acumulação originária  
aparece de formas diferentes em cada local e momento histórico.  
Ademais, nas obras do chamado Marxtardio26, encontramos de forma ainda mais  
evidente elementos que nos permite colocar em dúvida a acusação de que o autor era  
um etapista histórico. Por exemplo, nos chamados Cadernos Etnológicos estudos  
de Karl Marxsobre as obras de autores como Lewis Morgan, James Money, John Phear,  
Henry Maine e John Lubbock o autor trata de temas como a pré-história, o  
desenvolvimento dos vínculos familiares (com interessantes notas sobre a historicidade  
25  
A qual aparece de forma proeminente em O Capital, na medida que era na Inglaterra onde o  
capitalismo aparecia em sua via clássica, permitindo a percepção das leis imanentes da produção  
capitalista de forma mais evidente do que em outras formações sociais, conforme já aludido  
anteriormente.  
26 “Marx tardio” é como Teodor Shanin se refere ao Marx da década de 1872-1882, de modo a sugerir  
uma descontinuidade entre a obra do Marx desse período e do Marx de antes da década de 1870, pois  
naquela haveria uma suposta ruptura com o evolucionismo e unilinearidade que teriam marcado a obra  
de Marx desde as décadas de 1840 a 1860 (cf. SHANIN, 2017). A ideia de que há uma ruptura interna  
na obra de Marx, entre sua juventude e sua maturidade também aparece em autores como Louis  
Althusser e Michel Löwy, embora com cada qual com certas particularidades. Conforme já apontado,  
não coadunamos com essa cisão.  
Verinotio  
310 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
   
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
da família patriarcal burguesa), a origem da propriedade privada, bem como a questão  
das mulheres na história e o colonialismo27. Especificamente sobre a civilização  
burguesa e a tendência evolucionista de autores da época de coroar a sociedade  
europeia como o ápice do desenvolvimento humano,Marxrejeita fortemente tal ideia,  
reforçando sua convicção de que a luta consciente da classe trabalhadora superaria  
essa sociabilidade por uma melhor. Marxtambém rejeita acidamente o uso de termos  
de forte conotação racista pelos autores que lia, além de rejeitar suas teorias  
apologéticas ao colonialismo. Além dos Cadernos, os estudos do velho Marx sobre a  
situação russa trazem importantes contribuições para o debate sobre o suposto  
etapismo histórico do autor, com destaque para a correspondência de Marx com a  
revolucionária russa Vera Zasulich, objeto desse trabalho.  
Reflexões sobre o futuro da comuna agrária e o destino dos povos: a(s)  
resposta(s) de Marx  
Para responder a complexa questão de Vera Zasulich, Marx escreveu quatro  
esboços antes de enviar sua resposta final em 8 de março de 1881 três longos  
esboços, contendo explicações extensas sobre a questão e um quarto não terminado28.  
A partir do primeiro, segundo e terceiro esboços que Marx escreveu para responder  
Zasulich, nos propomos a compreender se, para Marx, seria ou não possível uma  
revolução comunista que não partisse de uma economia industrial capitalista, isto é,  
se uma Rússia rural estava ‘pronta’ ou não para passar por uma revolução.29 Ressalte-  
se que ao colocar tais questionamentos não nos dedicamos a um exercício de  
divinação, tentando adivinhar uma resposta correta para questão tão controversa do  
passado. Não se trata então de elaborar “e se’s”, mas de analisar a posição marxiana  
acerca da possibilidade de uma revolução comunista em países com desenvolvimentos  
27 sobre a questão dos chamados Cadernos Etnológicos de Marx, cf. ÁLVARES, Lucas Parreira. Flechas  
e Martelos: Marx e Engels como leitores de Lewis Morgan. Orientador: Vitor Bartoletti Sartori.  
Dissertação (Mestrado) Direito e Justiça, Faculdade de Direito e Ciências do Estado da Universidade  
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019  
28 Acerca da ordem cronológica em que foram escritos os quatro esboços, WADA (In. SHANIN, 2017, p.  
108) adere à suposição de Hinada Shizuma de que Marx escreveu os esboços I, II, III e IV não nessa  
ordem, como organizou Riazanov na publicação original, mas sim na seguinte ordem: II, I e III. Shizuma,  
como explica Haruki Wada, supõe que a ordem teria sido essa mencionada e não a ordem feita por  
Riazanov na medida que o conceito da “comuna agrária” só aparece no meio do esboço I e aparece em  
todo o esboço III, ao passo que estaria ausente no esboço II. Além disso, o esboço I parece mais  
desenvolvido do que o esboço II, sugerindo que aquele teria sido escrito depois desse.  
29  
Sobre isso, vale a pena conferir o Prefácio que Marx e Engels escreveram para a Edição Russa do  
Manifesto Comunista. Cf. Marx, 2013, p. 81, do qual trataremos mais a frente  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 311  
nova fase  
     
Gabriella M. Segantini Souza  
econômicos distintos do inglês a partir do que o autor escreveu acerca dos possíveis  
caminhos de uma revolução na Rússia.  
O ponto principal é que caso a posição de Marxfosse realmente a que é creditada  
a ele pelos “marxistas” russos, a resposta que se deveria esperar era que a segunda  
alternativa trazida por Zasulitch era a correta, de modo que mais próximos de Marx  
estariam os “marxistas” russos. Marx haveria então que responder sobre o destino  
maldito da obchtchina, a qual estaria fadada a perecer tal qual havia ocorrido na  
Inglaterra e que os revolucionários russos deveriam direcionar seus esforços ao  
amadurecimento do proletariado urbano, dado que seria dali que partiria a revolução  
na Rússia. A Rússia rural fatalmente seria suplantada por uma Rússia urbana industrial,  
tal como se observou em outros países da Europa Ocidental. Seria, pois, um  
desperdício de esforços e energia por parte dos revolucionários buscar uma revolução  
que partisse do seio da comuna, dado que o desenvolvimento histórico-material de  
Europa Ocidental nos mostrava que esta estava fadada a sucumbir perante o motor da  
história, destinada a ser suplantada por uma economia industrial.  
Essa não foi, contudo, a resposta de Marx aos questionamentos de Vera  
Zasulitch. Marx não só considerava possível que essa revolução partisse da  
propriedade comunal, mas considerava que essa era a melhor alternativa. A Rússia não  
precisava destruir a comuna agrária: ela era “a alavanca da regeneração social da  
Rússia” (Marx, 2013, p. 74) – e, por isso, poderia atuar complementarmente à  
revolução no Ocidente. Portanto, para a regeneração social russa, não era a comuna  
que deveria perecer para abrir caminho para a revolução, mas “as influências deletérias  
que a assaltam de todos os lados e, então, assegurar-lhe as condições de um  
desenvolvimento natural” (Marx, 2013, p. 74).  
Aqui se faz necessário um breve parêntesis. Quando Marx trata da revolução na  
Rússia como “regeneração social”, é importante notar que o autor não faz nem um  
elogio unilateral ao progresso, nem à forma primitiva comunal. Como bem adverte  
Sartori (2017),  
Marx não valorizava a comuna russa” por esta se colocar em uma  
forma de comunidade” (Gemeinschaft) emoposição àcivilização” ou  
à
sociedade (Gesellschaft): não há nenhum romantismo  
revolucionário” (cf. LÖWY; SAYRE, 1995) no autor; também neste  
ponto, sua análise nada tem de romântica; o aspecto coletivo da  
comunarural” se evidenciavano momento em que, enquanto maior  
força produtiva da Rússia”, estatinha “a superioridade econômicada  
propriedade comunal, como base do trabalho cooperativo e  
Verinotio  
312 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
combinado” (MARX, 1985a, p. 132) frente àatomização da produção.  
Marx fazia justamente o contrário de uma idealização romântica da  
comunarussa” e não era porque não aceitava a solução dos novos  
pilares da sociedade” – a imposição brutal do capitalismo que se  
voltava para o passado (SARTORI, 2017, pp. 146-147)  
Não se trata, pois, de um retorno um retorno ao passado da comuna, tanto  
porque se fala em apropriar os desenvolvimentos das forças produtivas do Ocidente.  
Tampouco se fala também em um progresso que destrói tudo e nada deixa para trás,  
afinal o autor claramente trata a questão como uma de regenerar a comuna agrária  
russa, de preservar seus elementos progressivos e de desenvolvê-la.30  
Marxafirma, então, que a revolução na Rússia não dependia da transição de uma  
economia rural, baseada na propriedade comunal da terra, para uma industrial  
burguesa, baseada na propriedade privada nas mãos de poucos e na exploração do  
trabalho assalariado. Tampouco dependia do desenvolvimento de uma burguesia  
urbana, mas sim da derrubada do czarismo na Rússia, que pressionava a comuna e a  
impedia de se desenvolver31. Ou seja, seria necessário que a Revolução se posicionasse  
contra o czarismo e aristocracia russa. Tratava-se, portanto, de eliminar “a opressão  
por parte do Estado e a exploração pelos intrusos capitalistas que se tornaram  
poderosos, à custa dos camponeses, com a ajuda do próprio Estado” (MARX, 2013,  
p. 62), bem como o elemento de propriedade privada que existe na obschina, na  
medida  
que hoje a própria existência da comuna russa corre perigo advindo  
de uma conspiração de interesses poderosos; esmagada pelas  
exações diretas do Estado, exploradafraudulentamente pelosintrusos  
capitalistas”, mercadores etc., e pelos proprietários” de terras, ela,  
ainda por cima, enfrentao mercado minado pelos usurários dacidade,  
pelos conflitos de interesses provocados em seu próprio seio pela  
situação em que ela foi colocada. (MARX, 2013, p. 83)  
Importante ressaltar que não se trata, contudo, de uma defesa de um socialismo  
agrário sob as bases da comuna tal como ela existia na Rússia naquele momento, mas  
da possibilidade de uma vez eliminadas as amarras que ameaçavam a existência da  
obstchina e a impediam de se desenvolver serem apropriadas as riqueza que o  
capitalismo no Ocidente produz sem ser necessário passar pelo regime capitalismo –  
30  
Não é possível desenvolver de forma pormenorizada o debate sobre o suposto romantismo de Marx  
na presente ocasião. Sobre isso, cf. SARTORI, 2018 e SARTORI, 2019.  
31  
A apropriação das riquezas do Ocidente estaria envolvida nesse processo de desenvolvimento da  
comuna agrária sua transformação em comuna para uma forma de produção comunista. Cf. MARX,  
2013, p. 68  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 313  
nova fase  
   
Gabriella M. Segantini Souza  
algo que só era possível graças ao desenvolvimento das forças produtivas nos países  
da Europa ocidental a partir do modo de produção capitalista, para que então se  
desenvolvesse a comuna agrária. A revolução na Rússia deveria, portanto, primeiro  
voltar-se contra o despotismo dos czares, uma vez que se tratava do principal inimigo  
da comuna russa32. Marx coloca nos seguintes termos:  
Falando em termos teóricos, a comuna rural russa pode, portanto,  
conservar-se, desenvolvendo suabase, apropriedade comum daterra,  
e eliminando o princípio da propriedade privada, igualmente  
implicado nela; ela pode tornar-se um ponto de partida direto do  
sistemaeconômico parao qual tende a sociedade moderna, ela pode  
trocar de pele sem precisar se suicidar; ela pode se apropriar dos  
frutos com que a produção capitalistaenriqueceu ahumanidade sem  
passar pelo regime capitalista, regime que, considerado  
exclusivamente do ponto de vista de sua duração possível, conta  
muito pouco na vida da sociedade. (MARX, 2013, p. 78)  
Marx fala aqui de como a Rússia não precisava atravessar os estágios do  
desenvolvimento dos modos de produção pelos quais os países da Europa ocidental  
passaram antes de realizar uma revolução que visasse a implantação do socialismo,  
justamente porque o lhe eram acessíveis naquele momento os frutos com que a  
produção capitalista havia enriquecido a humanidade, quais sejam: um  
desenvolvimento de forças produtivas sem precedentes na história humana33. Ou seja,  
devia-se às suas circunstâncias históricas extremamente específicas, que permitiram  
que a comuna agrária houvesse sobrevivido por toda a Rússia e que fosse  
contemporânea à produção capitalista. Assim, o único argumento histórico em favor  
de sua dissolução perde seu fundamento, na medida que, diferentemente de outras  
32 Como ressalta Hobsbawm, desde a Guerra da Crimeia, o czar tentava impulsionar a “modernização”  
da Rússia. Para isso, a comuna agrária deveria ser substituída pela agricultura parcelar em outras  
palavras: a propriedade comunal do campo deveria ser substituída pela privada. (HOBSBAWM, A Era  
dos Impérios, 1988)  
33  
Ao atribuir um papel ao modo de produção capitalista na luta pela emancipação humana, Marx  
sustenta não que a emancipação humana existe dentro do capitalismo, mas sim que provoca o  
amadurecimento dos “elementos criadores de uma nova sociedade” (MARX, 2017, p. 571) ao  
amadurecer “as condições materiais e a combinação social do processo de produção” (MARX, 2017, p.  
571). Um dos elementos centrais dessa questão está no papel que o capital tem em criar “tempo  
disponível” na medida reduz o tempo de trabalho necessário (MARX, 2011, p. 506), o que, para Marx  
é imprescindível para a emancipação do trabalho (MARX, 2011, p. 585). Dessa forma, conforme  
assinalado por Marcello Musto em O Velho Marx, Marx via “alguns elementos potencialmente  
progressistas” (MUSTO, 2018, p. 65) no capital, sendo importante, todavia, ressaltarmos a dimensão  
potencial desses elementos, eis que ainda não efetivados no modo de produção capitalista. Ou seja, de  
fato, Marx vê no capitalismo a gênese dos elementos para uma sociabilidade superior, mas esses  
elementos aparecem de forma potencial e que tal “síntese superior” (MARX, 2013, p.) só é atingida “por  
meio da luta consciente da classe trabalhadora” (MUSTO, 2018, p. 37), rejeitando o autor qualquer  
ideia de uma evolução mecânica. Todavia, esse “levantamento” de forma alguma obstrui a compreensão  
em Marx do preço cobrado em carne humana por tal amadurecimento das forças produtivas no  
capitalismo.  
Verinotio  
314 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
   
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
formas comunais de propriedade da terra, a obschina encontrava-se em circunstâncias  
únicas.  
A Rússia poderia, pois, partir para um modo de produção desenvolvido, baseado  
na posse comum dos meios de produção, a partir da comuna agrária teria, inclusive,  
maior facilidade do que os demais países europeus, nesse sentido, pela vitalidade com  
a qual a comuna havia sobrevivido. A comuna russa não precisaria ser destruída e a  
Rússia não precisaria passar pelo regime capitalista para poder passar para o  
socialismo, graças ao fato de a comuna ter sobrevivido tempo suficiente para ser  
contemporânea ao capitalismo no resto da Europa um capitalismo que havia chegado  
próximo de seu ponto de ruptura.  
Do ponto de vista histórico, o único argumento sério a favor da  
dissolução fatal da comuna de camponeses russos é este: quando  
muito, se encontra em toda parte na Europa ocidental um tipo mais  
ou menos arcaico de propriedade comum;eladesapareceu totalmente  
com o progresso social. Por que ela escapariaa esse mesmo destino  
tão somente na Rússia? Respondo: porque na Rússia, graças a uma  
combinação de circunstâncias únicas, a comuna rural, ainda  
estabelecidaem escalanacional, pode se livrar gradualmente de suas  
características primitivas ese desenvolver diretamentecomo elemento  
da produção coletiva em escala nacional. É justamente graças à  
contemporaneidade daprodução capitalistaque elapode se apropriar  
de todas as conquistas positivas e isto sem passar por suas  
vicissitudes desagradáveis. A Rússia não vive isolada do mundo  
moderno, tampouco foi vítima de algum conquistador estrangeiro,  
como o foram as Índias Orientais. (MARX, 2013, p. 74)  
Mas como seria possível que uma economia agrária como a russa passasse  
“diretamente” para uma transição entre capitalismo e comunismo, sendo que ela não  
havia passado por um desenvolvimento capitalista industrial propriamente dito? Ora,  
como foi mencionado, a Rússia não se encontrava congelada em uma placa de âmbar,  
isolada do resto da Europa. Ela não só era contemporânea às transformações trazidas  
pelo modo de desenvolvimento capitalista europeu ocidental, mas também interagia  
com o resto da Europa, como parte de um mercado mundial. Ela era, portanto,  
permeável às mudanças ocorridas na Europa ocidental e ao capitalismo (MARX, 2013,  
p. 59). Por um acaso, ela já não desfrutava de linhas ferroviárias, de um sistema  
bancário, de sociedades de crédito e das máquinas a vapor? Isto é  
para explorar as máquinas, os barcos a vapor, as ferrovias, a Rússia  
foi forçada, a exemplo do Ocidente, a passar por um longo período  
de incubação da indústriamecânica? Que eles me expliquem de novo  
como fizeram para introduzir entre eles num piscar de olhos todo o  
mecanismo de trocas (bancos, sociedades de crédito etc.), cuja  
produção custou séculos ao Ocidente? (MARX, 2013, 74)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 315  
nova fase  
Gabriella M. Segantini Souza  
A comuna poderia, portanto, se desenvolver apropriando-se das conquistas  
positivas do capitalismo, sem precisar a Rússia se tornar capitalista. Não sendo ela  
isolada do resto da Europa capitalista, era possível que se aproveitasse das  
transformações positivas trazidas pelo modo de produção capitalista como o já  
aludido desenvolvimento sem precedentes das forças de produção , sem precisar se  
submeter às suas leis exploratórias e aos sofrimentos que ele impõe (MARX, 2013, p.  
59) ou seja, poderia “trocar de pele sem se suicidar” (MARX, 2013, p. 74). Assim, o  
modo de produção russo baseado nas terras comunais poderia ser desenvolvido e se  
tornar a base de um modo de produção coletivo e social e para isso o elemento da  
propriedade privada que se desenvolvia deveria ser extirpado , livrando-se das  
características arcaicas que ainda possuía e chegando a uma forma mais desenvolvida  
da comuna.  
Caso a Rússia fosse, de fato, totalmente vedada às mudanças e transformações  
que ocorreram desde a dissolução das terras comunais europeias ocidentais com a  
consequente consolidação de uma economia capitalista após a Revolução Industrial –  
, poderíamos até admitir a afirmação de que antes de uma transição do capitalismo  
para o comunismo por meio de uma revolução a Rússia deveria vivenciar o  
desenvolvimento capitalista em si. Nesse caso, uma revolução que partisse da comuna  
provavelmente seria inviável teríamos não uma comunidade de riquezas, mas sim a  
comunidade da miséria, afinal, a comuna agrária certamente não era marcada pelo  
mais elevado desenvolvimento dos meios de produção ou pelo uso das técnicas mais  
avançadas no solo. Mas isso não se deveria a uma suposta necessidade das fases em  
si, de um curso inexorável da história humana, mas decorreria das transformações  
históricas e materiais que elas produzem e que foram essenciais no desenvolvimento  
do capitalismo, bem como das contradições internas que são a origem de sua própria  
destruição.  
O que se fazem essenciais para Marx para uma eventual sociedade comunista  
são as forças produtivas gestadas pelo capitalismo as quais, tendo em vista a  
tendência do capitalismo enquanto modo de produção de se colocar mundialmente,  
eram acessíveis aos países com vias de desenvolvimento atípico como a Rússia ,  
mas não o da formação social capitalista em si esta de forma alguma é uma fase  
necessária da história humana, mas um fruto da atividade humana ao longo da história.  
Importante ressaltar como tal ideia de instrumentalidade entre períodos, considerando  
o passado apenas como um passo necessário para chegarmos a um futuro  
Verinotio  
316 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
determinado isto é, ver no desenvolvimento do modo de produção capitalista  
apenas um ingrediente para o futuro comunista já era criticada pelo autor desde a  
Ideologia Alemã, em que coloca o que se segue:  
A histórianada mais é do que o suceder-sede gerações distintas, em  
que cada uma delas explora os materiais, os capitais34 e as forças de  
produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por  
um lado ela continua a atividade anterior sob condições totalmente  
alteradas e, por outro, modifica com uma atividade completamente  
diferente as antigas condições, o que então pode ser  
especulativamente distorcido, ao converter-se a história posterior na  
finalidade da anterior, por exemplo, quando se atribui à descoberta  
da Américaa finalidade de facilitar a irrupção da Revolução Francesa,  
com o que a históriaganhafinalidades àparte e torna-se umapessoa  
ao lado de outras pessoas” (tais como: “Autoconsciência, Crítica,  
Único” etc.), enquanto o que se designacom as palavras “destinação”,  
“finalidade”, “núcleo”, “ideia” da históriaanterior não é nada além de  
umaabstração da históriaposterior, umaabstração da influênciaativa  
que a históriaanterior exerce sobre a posterior. (MARX, 2007, p. 40)  
Isso quer dizer que, embora a história seja fruto da sucessão de gerações, em  
que o trabalho da geração anterior é transmitido para a sua sucessora e que seus  
frutos modificam e são modificados pelo trabalho da geração seguinte, disso não se  
pode extrair que esses momentos se sucedem necessariamente e que encontram um  
no outro sua finalidade. Como bem adverte LUKÁCS (2009), se por um lado o trabalho  
humano é movido por pores teleológicos, “o processo global da sociedade é um  
processo causal, que possui suas próprias leis, mas não é jamais dirigido objetivamente  
para a realização de finalidade(LUKÁCS, 2009, p. 236), de maneira que, embora seja  
possível encontrar certas tendências nesse processo causal, este não é guiado por uma  
finalidade que o conduz a um fim específico, mas sim por relações causais postas em  
movimento pela atividade consciente dos homens.  
Assim, ainda que Marx postule que o comunismo (e a emancipação humana)  
sucederia historicamente o capitalismo, isso não significa que é o capitalismo o  
caminho para o comunismo ou que o comunismo seja o resultado natural do  
capitalismo. Simplesmente quer dizer que o modo de produção capitalista nos fornece  
as condições materiais que possibilitam o comunismo, no sentido colocado acima, de  
que as sociabilidades que se sucedem exploram as condições materiais das que lhe  
antecederam. Afirmar que a o regime de produção capitalista observado nos países da  
34  
É importante notar que aqui a noção de “capitais” não é a mesma que Marx emprega posteriormente.  
Aqui “capitais” parece referir-se a uma coisa, e não a uma relação, ao passo que em O Capital, “capital”  
significa um conjunto de relações sociais e históricas  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 317  
nova fase  
 
Gabriella M. Segantini Souza  
Europa Ocidental é o único caminho para o comunismo ou que é a formação necessária  
para que seja possível uma revolução que reivindique o comunismo é falacioso,  
sobretudo imputar tal leitura a Marx, que não só a todo momento frisa a influência das  
sociabilidades anteriores ao mesmo tempo que ressalta o absurdo que seria considerar  
o presente a finalidade do futuro, mas também é bastante claro quanto à possibilidade  
de apropriação pela Rússia das riquezas propiciadas pelo modo de produção  
capitalista sem que seja necessário passar pelas vicissitudes associadas a uma  
sociedade capitalista.  
É verdade que entre o nascimento da produção capitalista e a dissolução das  
terras comunais na Europa ocidental há um grande lapso temporal, mas isso não se  
deve a uma necessidade do lapso temporal em si ou da consolidação de uma formação  
social semelhante à europeia na Rússia em si. Em outras palavras: a Rússia não  
precisava passar por todas essas transformações pelas quais a Europa ocidental  
passou, por conta própria, ao longo de uma longa série de evoluções, uma vez que as  
conquistas econômicas que consolidaram o capitalismo são a ela acessíveis sem que  
precisasse passar por todos aqueles processos e evoluções que produziram tais  
transformações nos demais países europeus. “Ela [estava] […] em condições de  
desenvolver e transformar a forma ainda arcaica de sua comuna rural em vez de  
destruí-la(MARX, 2013, p. 62), podendo “se apropriar dos frutos com que a produção  
capitalista enriqueceu a humanidade sem passar pelo regime capitalista(MARX, 2013,  
p. 62).  
Se os adeptos russos do sistema capitalista negam a possibilidade  
teórica de tal evolução, eu lhes proporia a seguinte questão: para  
explorar as máquinas, os barcos a vapor, as ferrovias, a Rússia foi  
forçada, a exemplo do Ocidente, a passar por um longo período de  
incubação da indústria mecânica? Que eles me expliquem de novo  
como fizeram para introduzir entre eles num piscar de olhos todo o  
mecanismo de trocas (bancos, sociedades de crédito etc.), cuja  
produção custou séculos ao Ocidente? (MARX, 2013, p. 59)  
A Rússia encontrava-se em uma situação deveras particular a produção comunal  
era contemporânea de um sistema capitalista que chegava ao ponto de ruptura , de  
modo que a revolução na Rússia deveria se aproveitar dessa curiosa circunstância,  
apropriando-se das riquezas que o amadurecimento dos meios de produção  
capitalistas permitiu, sem ser necessário passar por todos os processos infernais que  
conduziram até esse ponto. Marxobserva a situação bastante particular da Rússia, na  
qual ela poderia passar diretamente de um sistema rural para a transição ao  
Verinotio  
318 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
comunismo, sem que fossem necessários todos os estágios do desenvolvimento  
capitalista observados na Inglaterra. Tratava-se de uma situação única, na qual poderia  
utilizar-se da própria comuna rural para instalar um modo de produção baseado na  
posse comum da terra e isso poderia ser feito partindo do seio da própria comuna,  
dado que seu esteio é justamente a terra comunal.  
Ademais, como Marx alerta, “o capítulo sobre a acumulação primitiva visa  
exclusivamente traçar a rota pela qual, na Europa ocidental, a ordem econômica  
capitalista saiu das entranhas da ordem econômica feudal.” (MARX, 2013, p. 44), de  
modo que daí não se pode extrair um modelo trans-histórico do curso do  
desenvolvimento dos povos. Isso porque a história de formação do modo de produção  
capitalista “assume coloridos diferentes nos diferentes países e percorre as várias fases  
em sequência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, que, por  
isso, tomamos como exemplo, mostra-se em sua forma clássica(MARX, 1996, p. 342).  
Por essa razão que Marx deixa claro que quando alerta seus leitores alemães no  
prefácio à primeira edição de O Capital de que “de ti fala a fábula!” (MARX, 1996, p.  
130), que “o modo de produção capitalista e as suas relações correspondentes de  
produção e de circulação observados na Inglaterra(MARX, 1996, p. 130) configuram  
a imagem do futuro de países industrialmente menos desenvolvidos, ele não quer dizer  
que o modo como se chegou a essa conformação na Inglaterra será repetido os  
processos, os movimentos e transformações que levarama esse específico , tampouco  
que esse arranjo é o futuro de todos os povos.  
Não só isso, mas como. Marx deixa bem claro que a Inglaterra nos fornece uma  
imagem (aproximada) do futuro de países da Europa Ocidental, uma vez que eles  
possuem um desenvolvimento similar ao inglês, mas não para todos os povos. Além  
disso, não seria possível que o desenvolvimento histórico do capitalismo inglês fosse  
repetido para todos os povos, afinal a forma como se deu esse processo é produto  
das condições históricas e materiais específicas da Inglaterra. A história de um povo  
não pode se repetir em tempos distinto para povos distintos. Isso quer dizer que a  
maneira como se deu o processo de acumulação originária na Inglaterra é impossível  
de ser replicada, naqueles moldes, na Rússia35. Ao analisar o desenvolvimento  
35 Uma vez que o mundo sensível é “o produto da indústria e do estado de coisas da sociedade, e isso  
precisamente no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de  
gerações, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram sua indústria e seu  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 319  
nova fase  
 
Gabriella M. Segantini Souza  
capitalista da Europa ocidental, Marxnão visa chegar a uma “teoria histórico-filosófica  
de como o desenvolvimento histórico de todos os povos inevitavelmente seria(MARX,  
2013, p. 45).  
A criação de tal modelo inevitável seria impossível, dado que cada lugar vivencia  
um desenvolvimento distinto, de tal forma que cada formação social possui suas  
especificidades. Não se poderia esperar que o desenvolvimento histórico russo  
passasse por todas as fases do desenvolvimento histórico inglês, porque Inglaterra e  
Rússia possuíam condições materiais e histórica extremamente distintas. Não há como  
o desenvolvimento do capitalismo na Rússia se dar do mesmo modo como o  
desenvolvimento do capitalismo que Marxanalisa n’O Capital, uma vez que Marx toma  
como base o desenvolvimento do capitalismo inglês, sendo essa formação social  
particular às condições histórico-materiais específicas observadas na Inglaterra. O  
mesmo vale para a França, a Alemanha, os Estados Unidos cada um deles observa  
um desenvolvimento capitalista particular as suas condições materiais e históricas, de  
modo que não podemos esperar que as fases do desenvolvimento capitalista tratadas  
por Marx n’O Capital sejam observadas de forma literal e exata nesses lugares.  
Podemos dizer: esperar que o desenvolvimento capitalista em dois lugares distintos  
se desse da mesma forma seria tão absurdo como que esperar que duas pessoas  
pintassem uma figura da mesma forma, sendo que a elas foram fornecidos tipos  
diferentes de tintas, papeis e pincéis.  
Uma diferença específica que Marx ressalta entre as formas pré-capitalistas da  
Europa Ocidental e a propriedade comunal da Rússia torna isso bastante claro. Marx  
explica que quando trata da “fatalidade histórica(MARX, 2013, p. 84), ele fez questão  
de a restringir aos países da Europa ocidental” (MARX, 2013, p. 84). Isso por uma  
razão fundamental: a forma de propriedade da terra da qual Marx trata no Capítulo  
XXIV e que é suplantada não é a mesma que a existente na Rússia ao final do século  
XIX. Esta era uma forma de propriedade comunal, não privada, ao passo que aquela  
era uma forma de propriedade privada da terra, mas ao invés de pertencer a não  
trabalhadores (como na produção capitalista), era pertencente aos produtores diretos.  
Ou seja, tratam-se de formas de propriedade da terra essencialmente distintas.  
Nesse sentido, o processo da assim chamada acumulação originária consiste na  
comércio e modificaram sua ordem social de acordo com as necessidades alteradas.” (MARX, 2007, p.  
30)  
Verinotio  
320 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
substituição “de uma forma da propriedade privada e particionada dos trabalhadores  
pela propriedade capitalista de uma ínfima minoria (p. 342), ou seja, levou à  
substituição de um tipo de propriedade por outro” (MARX, 2013, p. 85), de modo que  
não podemos esperar que na Rússia se passasse o mesmo que ocorreu na Inglaterra  
nos séculos XIV-XVI, afinal, “como isso poderia se aplicar à Rússia ou à terra que não  
é e jamais foi propriedade privada” do agricultor?” (MARX, 2013, p. 85). Assim,  
quando fala sobre a “separação radical entre o produtor e seus meios de produção”  
(MARX, 2013, p. 85) como algo que se repete fatalmente nos países europeus36, Marx  
explicita que se referia aos países europeus ocidentais, sendo que na Inglaterra foi o  
único deles em que esse movimento se deu “de um modo radical”37. Ele continua:  
E por quê? Verificai, por favor, o capítulo 32, no qual se lê: [O]  
movimento de eliminação que transforma os meios de produção  
individuais e esparsos em meios de produção socialmente  
concentrados e que, por conseguinte, converte a propriedade nanica  
de muitos em propriedade gigantesca de poucos, essa expropriação  
dolorosa e terrível do povo trabalhador, aí estão as origens, aí está a  
gênese do capital. [...] A propriedade privada, fundada no trabalho  
pessoal [...] é suplantadapelapropriedade privada capitalista, fundada  
na exploração do trabalho de outrem, sobre o trabalho assalariado.  
(MARX, 2013, p. 58)  
Isso demonstra, portanto, que o curso da história na Europa Ocidental não serve  
para prever o futuro da Rússia e, caso os liberais russos fossem bem sucedidos em  
dissolver a terra comunal e expropriar os camponeses, isso não ocorreria pois no  
Ocidente se deu assim, mas sim graças às circunstâncias particulares do caso russo.  
Nesse sentido, Marx deixa bem claro a razão pela qual o movimento de  
expropriação agrária, observado na Inglaterra e em outros países embora, se  
comparados com aquela, em bem menor grau nestes , não pode ser tido como um  
processo que será observado em todos os povos. A acumulação primitiva tratada por  
MarxnOCapital38 é uma “fatalidade histórica(MARX, 2013, p. 58)restrita “aos países  
da Europa Ocidental(MARX, 2013, p. 58), de modo que não poderíamos afirmar, com  
segurança, que tal movimento se repetiria na Rússia, justamente em função das  
36  
Ressalte-se ainda que ele não trata isso como uma previsão do futuro, dado que esse processo já  
havia se dado ou já havia pelo menos se iniciado em maior ou menor medida nos países da Europa  
Ocidental. Trata-se, portanto, de um palpite razoável, não uma previsão, na medida que observava uma  
tendência já existente.  
37 Marx deixa bem claras suas razões pela escolha da Inglaterra n’O Capital. Podemos encontrar essas  
razões no Prefácio da primeira edição (cf. MARX, 1996a, p. 130) e uma breve referência a elas no  
capítulo sobre a [assim chamada] Acumulação Originária (cf. MARX, 1996b, p. 330).  
38 Cf. MARX, 1996, p. 339-381  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 321  
nova fase  
     
Gabriella M. Segantini Souza  
particularidades que a tornavam tão distinta dos outros países europeus.  
O movimento de expropriação da propriedade do produtor rurale a concentração  
dos meios de produção nas mãos de uma minoria se dá, portanto, no sentido de  
suplantação de uma propriedade privada “fundada no trabalho pessoal(MARX, 2013,  
p. 58) em pequenas propriedades rurais que se baseiam na pequena agricultura de  
subsistência e no trabalho familiar, sem haver, portanto, o emprego de mão de obra  
assalariada – pela grande “propriedade privada capitalista, fundada na exploração do  
trabalho de outrem” (MARX, 2013, p. 58) isto é, nos grandes latifúndios, baseados  
numa produção de cunho capitalista e emprego de mão de obra assalariada. É a  
substituição de uma produção agrícola baseada em pequenas propriedades para uma  
capitalista e latifundiária, havendo a proletarização dos pequenos agricultores. Marx  
prossegue:  
Assim, em última análise, ocorre a transformação de uma forma de  
propriedade privada em outra forma de propriedade privada. A terra  
nas mãos dos camponeses russos jamais foi a sua propriedade  
privada; então, como se aplicaria esse desenvolvimento? (MARX,  
2013, p. 58)  
O processo de acumulação primitiva que ele descreve n’O Capital é, pois,  
baseado na expropriação das pequenas propriedades [privadas] rurais e no acúmulo  
de terras por uma minoria. Trata-se, portanto, da substituição de pequenas  
propriedades privadas familiares por grandes latifúndios que exploram a mão de obra  
assalariada. Os pequenos agricultores abandonam suas terras e são obrigados, então,  
a vender sua força de trabalho para sobreviver.  
Com isso, nos indagamos: como esse movimento ocorreria dessa forma se o  
camponês russo nunca foi proprietário das terras que ele cultiva? O camponês, na  
Rússia, deixou de ser servo em uma terra que não lhe pertence para cultivar em  
propriedades que são de posse comum a terra comunal que lhe é atribuída não lhe  
pertence39. Assim, não é possível que o mesmo movimento observado na Europa  
ocidental seja observado na Rússia, uma vez que o campo russo não era baseado em  
pequenas propriedades privadas, mas na terra comunal seu modelo produtivo era  
distinto do que é suplantado na Europa Ocidental na assim chamada acumulação  
originária.  
39  
Sobre a questão da comuna russa, arrendamento e propriedade, Cf. Lenin, A desintegração do  
campesinato russo, 1982, p. 35-121  
Verinotio  
322 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
 
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
A forma como a gênese e o desenvolvimento da produção capitalista ocorreu na  
Europa Ocidental não poderia ser esperada igualmente na Rússia, justamente porque  
a forma como as forças produtivas e as condições materiais se arranjam são  
completamente distintas. Não se poderia esperar que a mesma forma pela qual se deu  
a gênese do capitalismo na Inglaterra se repetisse na Rússia e nem que o resultado do  
desenvolvimento das forças produtivas fosse o mesmo para os dois países, uma vez  
que as forças que estão em jogo não são as mesmas. Não há como haver “a separação  
radical entre o produtor e seus meios de produção” (MARX, 1996, p.340)se os meios  
de produção nunca pertenceram ao produtor russo; os camponeses russos não  
poderiam ser expropriados quando a propriedade da terra jamais foi sua de forma  
individual.  
Tendo isso em vista, cai por terra o argumento utilizado por autores como  
Antônio Gramsci em 1917 para afirmar que a Revolução bolchevique seria contra O  
Capital, que na Rússia seria  
mais o livro dos burgueses que dos proletários. Era a demonstração  
crítica da necessidade inevitável que na Rússia se formasse uma  
burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma  
civilização de tipo ocidental, antes que o proletariado pudesse sequer  
pensar na sua insurreição, nas suas reivindicações de classe, na sua  
revolução (GRAMSCI, 1976, p. 21)  
Isso porque, como vemos nos esboços de Marx, o autor renano de forma alguma  
defender que a Rússia não estaria ainda pronta para uma revolução que tivesse como  
fim a transição para o comunismo, dado que ela própria não possuía um modo de  
produção capitalista como o que é analisado por Marx em sua obra. Pelo contrário,  
Marx critica abertamente os que postulavam que a Rússia deveria antes passar por  
todas aquelas transformações que aconteceram ao longo de vários séculos em países  
como a Inglaterra e que desenvolveram “de forma maravilhosa as forças produtivas da  
sociedade, mas, de outro lado, trouxeram consigo sua própria incompatibilidade com  
as forças que elas engendram” (MARX, 2013, p. 62) – em outros termos, a completa  
desintegração da comuna russa, a consolidação de uma burguesia industrial e de um  
proletariado urbano, às semelhanças de sistemas capitalistas como o inglês.  
Se Marx fosse realmente de acordo com essa posição a ele atribuída, teria  
concordado com os “marxistas russos”, os quais acreditavam que concentrar seus  
esforços na comuna russa seria desperdício. Teria também aconselhado Vera Zasulitch  
e seus companheiros a concentrarem seus esforços nas cidades, dado que a comuna  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 323  
nova fase  
Gabriella M. Segantini Souza  
agrária estaria fadada a padecer e os camponeses russos se tornariam, com o tempo,  
parte de um proletariado urbano industrial. Mas, como podemos ver nos esboços de  
respostas à carta enviada por Zasulitch, Marx não estava preocupado em determinar  
um modelo de desenvolvimento inevitável pelo contrário, ele se preocupou muito  
mais em criticar esses modelos. A Rússia não precisava perder sua comuna agrária  
para poder tornar-se comunista Marx defende o oposto: com a dissolução da  
comuna agrária “para suportar todas as vicissitudes fatais do regime capitalista”  
(MARX, 2013, p. 54) que a Rússia perderia a melhor oportunidade já oferecida a um  
povo para sua regeneração social.  
Marx rejeita a interpretação de que apenas em países cuja via de  
desenvolvimento fosse a observada na Europa ocidental que ele usa como substrato  
para suas análises n’O Capital seria possível uma transição para o comunismo. Ele  
analisa a Inglaterra por seu desenvolvimento capitalista permitir uma análise clara  
acerca do modo de produção capitalista, não porque aquela é a única forma possível  
de arranjo das forças de produção ou porque a Inglaterra necessariamente seria o  
berço da revolução proletária.40 Jamais se poderia apoiar em Marx e afirmar que a  
comuna russa iria inevitavelmente ser desintegrada e o camponês russo proletarizado  
porque foi a forma como aconteceu na Inglaterra e na Europa Ocidental. Como Marx  
escreve em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, “não é no passado, mas unicamente  
no futuro, que a revolução social do século XIXpode colher sua poesia(MARX, 2011b,  
p. 28), ou seja, os caminhos da revolução na Rússia não podem ser retirados do  
passado [da Europa].  
Com efeito, isso não quer dizer que estamos impossibilitados de fazer analogias  
entre dois lugares ou dois períodos históricos distintos trata-se de um exercício  
comum de ser feito. Por exemplo, ao longo de O Capital, o autor faz recorrentes  
menções ao destino dos plebeus na Roma Antiga quando da expropriação de suas  
pequenas parcelas de terra no decurso da história romana, de forma semelhante ao  
que ocorreu com os camponeses ingleses entre os séculos XVI e XVII. Assim como os  
ingleses, os plebeus “eram originalmente camponeses livres que cultivavam, cada qual  
pela própria conta, suas referidas parcelas. No decurso da história romana, acabaram  
40  
“A expropriação da base fundiária do produtor rural, do camponês, forma a base de todo o  
processo. Sua história assume coloridos diferentes nos diferentes países e percorre as várias fases em  
sequência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, que, por isso, tomamos como  
exemplo, mostra-se em sua forma clássica.” (MARX, 1996, p. 342)  
Verinotio  
324 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
 
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
expropriados” (MARX, 2013, p. 56), surgindo também “de um lado homens livres,  
desprovidos de tudo menos de sua força de trabalho, e do outro, para explorar o  
trabalho daqueles, os detentores de todas as riquezas adquiridas” (MARX, 2013, p.  
56).  
Todavia, uma vez expropriados, não só os plebeus não se tornaram trabalhadores  
assalariados tal como se deu com os camponeses expropriados da Europa nos séculos  
XVI e XVII, mas também a produção romana não se desenvolveu de forma capitalista.  
Os romanos expropriados se tornaram uma “mob [turba]’ desocupada […] e ao lado  
deles se desenvolve um modo de produção que não é capitalista, mas escravagista”  
(MARX, 2013, p. 56). Assim, embora tenham sido acontecimentos de uma  
surpreendente analogia, o fato de terem se passado em ambientes historicamente  
distintos, produziram resultados igualmente diferentes. Como Marx escreve, “quando  
se estuda cada uma dessas evoluções à parte, comparando-as em seguida, pode-se  
encontrar facilmente a chave desse fenômeno(MARX, 2013, p. 56), mas dessa análise  
comparativa de forma alguma se chegará a uma “chave-mestra uma teoria histórico-  
filosófica geral, cuja virtude suprema consiste em ser supra histórica”. (MARX, 2013,  
p. 57).  
Ou seja, podemos até comparar o desenvolvimento histórico russo com o inglês  
e encontrar certas determinações em comum entre as duas formas, mas sempre de  
forma cautelosa e com consciência das diferenças específicas que as separam. Isso está  
claro nos Grundrisse, quando Marx trata acerca da questão da produção geral. Ele  
escreve que  
A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável,  
na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum,  
poupando-nos assim da repetição. Entretanto, esse Universal, ou o  
comum isolado por comparação, é ele próprio algo multiplamente  
articulado, cindido em diferentes determinações. Algumas  
determinações pertencem a todas as épocas; outras são comuns  
apenas a algumas. [Certas] determinaçõesserão comunsàépocamais  
moderna e à mais antiga. Nenhuma produção seria concebível sem  
elas; todavia, se as línguas mais desenvolvidas têm leis e  
determinações em comum com as menos desenvolvidas, a diferença  
desse universal e comum é precisamente o que constitui seu  
desenvolvimento. As determinações que valem para a produção em  
geral têm de ser corretamente isoladas de maneira que, além da  
unidade decorrente do fato de que o sujeito, a humanidade, e o  
objeto, a natureza, são os mesmos , não seja esquecida a diferença  
essencial. Em tal esquecimento repousa, por exemplo, toda a  
sabedoria dos economistas modernos que demonstram a eternidade  
e a harmonia das relações sociais existentes. (MARX, 2011a, p. 36)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 325  
nova fase  
Gabriella M. Segantini Souza  
[grifo meu]  
Ou seja, é possível que sejam abstraídas determinações que existem em comum  
na produção humana de forma geral, que constituirão o que Marx se refere como a  
produção geral ou o comum isolado por comparação, tratada por Marx como uma  
abstração razoável. Isto é, o que faz da produção geral uma abstração razoável é o  
fato de que não se trata de algo “produzido por um volteio autônomo da mesma  
[abstração], pois seu mérito é operar subsumida à comparação dos objetos que  
investiga”, mas sim uma abstração ação que “retém e destaca aspectos reais, comuns  
às formas temporais de entificação dos complexos fenomênicos considerados”  
(CHASIN, 2005, p. 124), ou seja, trata-se de um geral “extraído das formações  
concretas, posto à luz pela força de abstração” (CHASIN, 2005, p. 124). Ademais, Marx  
faz questão de ressaltar que, embora a partir dessas determinações comuns exista  
uma unidade, um universal, essa produção geral possui diversas determinações  
distintas que a cindem, existindo aspectos dessa unidade que não são comuns a todos  
os momentos da história humana, uma vez que “os traços comuns não são substâncias  
puras, mas texturas complexas” (CHASIN, 2005, p. 125) — nisso também reside a  
razoabilidade dessa abstração: a compreensão de que, assim como as realidades são  
complexas, as abstrações de seus elementos comuns também o são.  
De forma semelhante ao que ocorre com a linguagem, em que existem certos  
aspectos que são comuns a línguas das mais desenvolvidas e complexas às mais  
simples, existem aspectos que podem ser comuns a formas das mais às menos  
desenvolvidas da produção humana,sendo que que o que constitui o desenvolvimento  
das formas mais complexas a diferença essencial do universal e comum. Isso faz com  
que que, embora abstração de elementos comuns às diferentes formas de produção  
seja razoável e útil, não podemos a partir disso tentar chegar a uma chave geral para  
o desenvolvimento humano, uma vez que é marcado por particularidades e  
circunstâncias específicas que nos impossibilitam de fazê-lo, de tal maneira que um  
esforço como tal perde toda sua razoabilidade. Isso na medida que “ignorar a diferença  
essencial é perder de vista os objetos reais e com isso o horizonte do pensamento de  
rigor, tal como os economistas que naturalizam e perenizam a sociedade capitalista,  
pondo de lado exatamente o que nela é específico” (CHASIN, 2005, p. 125).  
Não existe em O Capital o modelo do desenvolvimento humano, isto é, uma  
prescrição para o cardápio da taverna do futuro(MARX, 2017, p. 88). Primeiramente,  
a obra em questão sequer se propõe a ser um estudo historiográfico da Inglaterra:  
Verinotio  
326 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
embora no Capítulo XXIV os acontecimentos da história inglesa sejam usados, ali Marx  
busca analisar as tendências da assim chamada acumulação primitiva e dos processos  
que engendraram o capitalismo. Em segundo lugar, utilizar-se dessas tendências da  
Europa Ocidental para prever a história russa acaba por  
metamorfosear totalmente o […] esquema histórico da gênese do  
capitalismo na Europa ocidental em uma teoriahistórico-filosóficado  
curso geral fatalmente imposto atodos os povos, independentemente  
das circunstâncias históricas nas quais eles se encontrem, paraacabar  
chegando à formação econômicaque assegura, com o maior impulso  
possível das forças produtivas do trabalho social, o desenvolvimento  
mais integral possível de cada produtor individual. (MARX, 2013, p.  
45)  
Tentar criar um modelo geral de como a história de todos os povos irá correr vai  
muito além das pretensões de Marx. Ele afirma com ironia que se sentia tão honrado  
como ofendido pela suposição. Honrado, talvez, por suporem que ele fosse capaz de  
prever como o desenvolvimento histórico ocorreria independente das condições fáticas  
e particularidades de cada povo, de efetivamente prever “o cardápio da taberna do  
futuro(MARX, 2017, p. 88) – nem mesmo Marxseria capaz de tal exercício. Ofendido,  
provavelmente, pelo fato de interpretarem seus esforços de forma tão absurda,  
julgando que o velho mouro havia intentado um esforço de uma arrogância e  
presunção sem precedentes (MARX 2013, p. 45).  
O prefácio ao Manifesto Comunista  
Parte das discussões relacionadas à correspondência entre Marx e Zasulich  
aparecem no prefácio à edição russa do Manifesto Comunista, escrita por Marx e  
Engels41 em janeiro de 1882. Nesse prefácio, os autores trazem uma breve reflexão  
de como estavam diferentes as circunstâncias nos Estados Unidos e na Rússia que  
não aparecem no Manifesto Comunista na época em que o Manifesto foi escrito  
41 É importante ressaltar que existem discussões quanto a autoria desse prefácio. Alguns autores como  
Haruki Wada creditam a escrita do texto a Engels, sugerindo que Marx teria pedido ao amigo que  
rascunhasse um prefácio para a edição russa de O Manifesto Comunista e que teria apenas feito  
correções mínimas e assinado, de forma que o prefácio expressaria a opinião de Engels e não a de Marx  
sobre a questão russa. O objetivo deste trabalho não é adentrar na questão de forma pormenorizada  
na discussão, mas consideramos que, caso realmente não tenha sido um texto de autoria conjunta de  
Marx e Engels, o fato de Marx ter lido e assinado o texto é um forte indício de sua concordância com o  
que teria sido escrito por Engels. O argumento de Wada de que Marx não teria ficado satisfeito com o  
rascunho escrito por seu amigo não parece possuir muitos indícios textuais que o sustente, pois a uma  
carta de Marx a Lavrov que Wada usa para comprovar sua tese na qual Marx escreve sobre o prefácio  
“Se esta peça, que é para tradução para russo, for para ser publicada como está, em alemão, ainda  
precisa de toques de estilo” (MARX apud. WADA In. Shanin, 2017, p. 116) não permite concluir que  
Marx não estava de acordo com o conteúdo do texto, apenas que acreditava serem necessários ajustes  
estilísticos para publicação. Sobre isso, cf. WADA In. Shanin, 2017.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 327  
nova fase  
 
Gabriella M. Segantini Souza  
(final da década de 1840) e na década de 1880.  
Sobre a Rússia na década de 1840, Marxe Engels escrevem que “naquela época  
[em 1848], a Rússia se constituía na última grande reserva da reação europeia(MARX  
& ENGELS, 2013, p. 102), constituindo-se (junto aos EUA à época embora cada um  
por razões distintas), pilares da ordem europeia vigente, sendo que “durante a  
revolução de 1848-1849, a burguesia e os monarcas europeus viam na intervenção  
russa a única maneira de escapar do proletariado que despertava. O czar foi  
proclamado chefe da reação europeia(MARX & ENGELS, 2013, p. 102). Marxe Engels  
fazem aqui referência ao fato de que, como já aludido anteriormente, enquanto na  
Europa Ocidental fogos revolucionários acendiam o proletariado, a Rússia e o tzar  
pareciam a única salvação da burguesia, tendo a Rússia sido o bastião do  
conservadorismo à época.  
Contudo, em 1882, o contexto russo era completamente distinto. Se em 1848-  
49, o czar Nicolau I aparecia para a burguesia como o chefe da reação europeia contra  
as revoltas proletárias, em 1882, o czar Alexandre III sucessor de Alexandre II,  
morto por revolucionários do grupo Vontade do Povo em 1º de março de 1881  
(SILJAK, 2013, p. 336) era prisioneiro de seu próprio medo: enclausurado em no  
palácio Gatchina, temendo ser alvo da revolta do povo. Em 1882, o czar era “em  
Gatchina, prisioneiro de guerra da revolução, ao passo que a Rússia forma a vanguarda  
da ação revolucionária na Europa” (MARX & ENGELS, 2013, p. 102).  
As circunstâncias haviam mudado radicalmente desde 1848-49 e 1882: a Rússia  
não mais era a prima conservadora da Europa, a salvação da burguesia europeia: ela  
mantinha o czar (outrora símbolo do poder reacionário da Rússia) refém de seu medo  
medo da revolução e era um dos países com uma das atuações revolucionárias  
mais proeminentes da Europa, sendo que a própria Vera Zasulich, após ter cometido  
um atentado de assassinato contra prefeito de São Petesburgo, Feodor Trepov em  
1878, havia se tornado por toda a Europa um símbolo do movimento revolucionário  
russo do final do século XIX42.  
42  
Vê-se aqui mais um indício da tese defendida anteriormente de que, ao contrário do que autores  
como Teodor Shanin e Michel Löwy sustentam acerca do caso russo na teoria marxiana, de que se  
trataria de uma ruptura com relação aos trabalhos anteriores a 1880, as mudanças que vemos entre os  
escritos de Marx sobre a Rússia em 1840 e 1880 devem-se muito mais a desenvolvimentos do contexto  
russo e de um amadurecimento gradual e crescente no pensamento do autor do que uma mudança  
abrupta. No livro de Shanin, o artigo de Derek Sayer e Philip Corrigan (cf. SAYER & CORRIGAN In.  
Verinotio  
328 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
 
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
Por demais, no prefácio Marxe Engels ainda tocam a questão da comuna agrária  
na Rússia. Escrevem os autores que “o Manifesto Comunista tinha como tarefa a  
proclamação do desaparecimento próximo e inevitável da moderna propriedade  
burguesa” (MARX & ENGELS, 2013, p. 102), mas que na Rússia, “vemos que, ao lado  
do florescimento acelerado da velhacaria capitalista e da propriedade burguesa que  
começa a desenvolver-se, mais da metade das terras é posse coletiva dos camponeses”  
(MARX & ENGELS, 2013, p. 102), ressaltando a particularidade do caso russo, em que  
a comuna agrária permanecia uma das maiores forças produtivas na Rússia ou seja,  
ali a moderna propriedade burguesa não havia se colocado sobre os próprios pés,  
sendo a forma comunal a forma de propriedade de metade das terras na Rússia , de  
maneira que não haveria como o caminho da revolução russa poderia ser o mesmo do  
da Europa Ocidental.  
Diante dessas circunstâncias extremamente peculiares,Marxe Engels aludindo  
diretamente ao dilema do narodniks e marxistas russos discutido na carta a questão  
na Rússia se colocava nos seguintes termos: “poderia a obchtchina russa – forma já  
muito deteriorada da antiga posse em comum da terra transformar-se diretamente  
na propriedade comunista?” (MARX & ENGELS, 2013, p. 102), como defendiam os  
populistas, “ou, ao contrário, deveria antes passar pelo mesmo processo de dissolução  
que constitui a evolução histórica do Ocidente?” (MARX & ENGELS, 2013, p. 102), tal  
como pontuavam os autoproclamados marxistas russos. Marx e Engels respondem a  
questão da seguinte maneira:  
Hoje em dia, a única resposta possível é a seguinte: se a revolução  
russa constituir-se no sinal para a revolução proletária no Ocidente,  
de modo que uma complemente aoutra, a atual propriedade comum  
da terra na Rússia poderá servir de ponto de partida para uma  
evolução comunista. (MARX & ENGELS, 2013, p. 103)  
Aqui, assim como Marx já havia feito na sua resposta à indagação de Zasulich,  
vemos Marx e Engels não só defender a possibilidade da regeneração social na Rússia  
partindo de sua base agrária comunal mais uma vez rejeitando a visão etapista de  
que o desenvolvimento mento russo haveria de seguir a evolução ocorrida no Ocidente  
, mas também defendendo que a revolução na Rússia poderia ser o sinal para a  
SHANIN, 2017) traz uma visão muito mais nuanceada sobre a questão, apontando como o pressuposto  
de que Marx havia sido evolucionista e etapista até a década de 1880 é um equívoco, sustentando que,  
diferentemente do que postula Shanin, os textos do Marx tardio seriam mais uma clarificação de sua  
teoria do que uma ruptura.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 329  
nova fase  
Gabriella M. Segantini Souza  
revolução proletária no Ocidente, a qual deveria ser complementar à revolução na  
Rússia. Nessa eiva, esse texto reforça a posição expressa por Marx nas respostas à  
carta de Zasulich, reiterando sua rejeição à uma filosofia da história.  
Conclusão  
A resposta final que Marx escreveu a Vera Zasulich datada de 8 de março de  
1881 foi bastante mais sucinta do que os esboços que o autor de O Capital havia  
elaborado (com exceção do quarto esboço, que parece inacabado), embora a essência  
seja a mesma. Embora de forma menos pungente (e talvez menos irônica do que nos  
esboços I, II e III), Marx escreve que  
Nesse processo ocidental [da assim chamada acumulação originária],  
o que ocorre é a transformação de umaforma de propriedade privada  
para outra forma de propriedade privada. Já no caso dos camponeses  
russos, ao contrário, seria preciso transformar sua propriedade  
comunal [propriété commune] em propriedade privada. Desse modo,  
a análise apresentadanO capital não oferece razões nemafavor nem  
contra a vitalidade da comuna rural, mas o estudo especial que fiz  
dessa questão, para o qual busquei os materiais em suas fontes  
originais, convenceu-me de que essa comuna é a alavanca [point  
dappui] da regeneração social da Rússia; mas, para que ela possa  
funcionar como tal, seria necessário, primeiramente, eliminar as  
influências deletérias que a assaltam de todos os lados e então  
assegurar-lhe as condições normais de um desenvolvimento  
espontâneo. (MARX, 2013, p. 94)  
Assim, apesar da brevidade, percebe-se que Marx não deixa de ressaltar para  
Vera Zasulich que O Capital não apresenta respostas para o caso da comuna agrária  
na Rússia: somente o estudo do caso particular russo poderia permitir qualquer  
diagnóstico sobre a vitalidade da obschina. E mais, pelo que ele havia estudado da  
questão agrária na Rússia, a comuna deveria ser para os revolucionários russos a  
alavanca para a regeneração da Rússia (não um obstáculo), desde que as influências  
deletérias que a assaltavam de todos os lados fossem eliminadas, i.e., o estado russo.  
Ele ressalta, portanto, que não era a fatalidade da história que ameaçava a comuna  
agrária na Rússia: era a opressão do estado russo e o ingresso dos intrusos capitalistas  
(conduzido pelo próprio estado). Dessa forma, em sua resposta, Marx faz questão de  
apontar para Vera Zasulich que o caminho da revolução na Rússia não era aquele  
defendido pelos autoproclamados marxistas russos, mas sim algo muito mais próximo  
defendido pelos populistas russos, na medida em que aqueles buscavam a solução da  
questão “o que fazer?dentro da Rússia, na concretude objetiva de suas circunstâncias  
históricas, não em um esquema histórico que prescreve o destino dos povos  
Verinotio  
330 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
independente de suas particularidades.  
Diante do exposto, percebe-se a relevância dos textos tratados acima não por  
demonstrarem uma virada no pensamento marxiano, mas sim por deixarem  
extremamente clara a natureza da teoria de Karl Marx. Como bem colocam Derek Sayer  
e Philip Corrigan, o Marx tardio que vemos nos textos sobre a Rússia nos oferece  
acima de tudo, uma reflexão consistente a culminância de uma reflexão de toda  
uma vida de reflexão modelada por um profundo compromisso com as lutas políticas  
do momento” (SAYER & CORRIGAN, 2017, p. 139), bem como uma clarificação de  
como seus textos madurosdeveriam ser lidos” (SAYER & CORRIGAN, 2017, p. 123),  
pois nesses textos, vemos de forma bem desenvolvida e evidente a importância da  
questão das particularidades das diferentes formas de desenvolvimento humano na  
obra marxiana como um todo.  
Não só isso: o estudo da questão russa em Marx nos permite ainda perceber  
como em nada se aproxima o Marx verdadeiro o Marx que lemos naquilo que o  
próprio autor nos deixou escrito daquilo que a II Internacional Comunista e a  
“vulgata stalinista43 (CHASIN, 2013, p. 37) fizeram dele. Como já aludido, o  
“marxismo” do século XX — com destaque para o “marxismo” do stalinismo — era  
marcado pela “negligência acerca da especificidade do desenvolvimento nacional de  
cada forma distinta mediante a qual o capitalismo se objetiva” (SARTORI, 2017, p.  
127), na medida que utilizava-se de uma suposta filosofia marxiana da história que  
organizaria o desenvolvimento humano em etapas necessárias, a fim de criar uma  
espécie de modelo geral, uma “teoria histórico-filosófica geral, cuja virtude suprema  
consiste em ser supra-histórica”. Tendo isso em vista, perceber a óbvia e aguda  
rejeição de Marxà uma leitura linear e reducionista da história humana que vemos nos  
escritos sobre a Rússia não só nos permite evidenciar o quanto o marxismo do XX se  
afastou de Marx, mas também é um importante passo nos esforços de recuperar o  
pensamento do autor alemão em toda sua complexidade.  
E, por fim, a preocupação de Marx no que concerne à Rússia de buscar um  
caminho para a revolução social a partir da própria Rússia e não, como supunham  
seus seguidores russos, a partir da Europa Ocidental e partindo de uma forma  
43 Importa ressaltar que, embora Gramsci tenha se equivocado em sua interpretação acerca da natureza  
da teoria marxiana no texto que aqui abordamos e que a leitura que o autor faz de Marx, de forma  
alguma colocamos o autor junto a essa “vulgata stalinista”.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 331  
nova fase  
 
Gabriella M. Segantini Souza  
primitiva de propriedade da terra nos oferece um importante arsenal crítico nas  
discussões sobre um suposto eurocentrismo e um evolucionismo em Marx. Se por um  
lado existem certas instâncias por exemplo, no Manifesto Comunista ou em alguns  
textos do New York Daily Tribune da década de 1840 e do começo da década de  
1850 sobre a Índia e a China, segundo ANDERSON (2010) em que parece haver  
em Marx um certo tom elogioso ao papel do capitalismo na dissolução de formas  
produtivas arcaicas, com base nas quais alguns autores sustentam uma tese de que  
Marx via na formação social capitalista da Europa Ocidental uma fase necessária no  
desenvolvimento humano e que dava centralidade à forma europeia de entificação do  
capitalismo, o estudo do caso russo nos é bastante esclarecedor nessa discussão.  
Conforme exposto neste trabalho, Marx propõe que, ao invés de um obstáculo  
para a revolução social na Rússia, a sobrevivência da comuna agrária seria para os  
russos uma enorme vantagem no caminho da regeneração social naquele país, pois  
permitiria a apropriação das riquezas produzidas pelo capitalismo sem ser necessária  
a consolidação desse modo de produção na Rússia ou seja, seria possível apropriar  
do aumento das forças de produção engendrados pelo capitalismo sem que, como  
ocorreu na Europa Ocidental, a forma comunal de produção fosse dissolvida. Ele  
esclarece, portanto, que quando fala em O Capital das “tendências que atuam e se  
impõem com férrea necessidade” (MARX, 2017, p. 114), ele trata especificamente das  
leis naturais da produção capitalista, bem como que quando afirma que “o país  
industrialmente mais desenvolvido não faz mais do que mostrar ao menos  
desenvolvido a imagem de seu próprio futuro” (MARX, 2017, p. 114), refere-se aos  
países da Europa Ocidental, nos quais as tendências de desenvolvimento capitalista  
são bastante semelhantes, não sendo possível extrapolar essas tendências específicas  
a países como a Rússia, que experimentam condições bastante distintas.  
Dessa forma, percebe-se nos trabalhos aqui analisados a profunda rejeição por  
parte de Marx de leituras lineares e reducionistas acerca do desenvolvimento humano  
e das formações sociais, demonstrando o quão equivocado é ver na obra do autor  
uma teoria histórico-filosófica que busca ser um oráculo do destino dos povos  
Referências bibliográficas  
ANTUNES, P. Marx, Engels e Lénine: as guerras civis Americana, Francesa e Russa.  
Verinotio, v. 23, n. 2, outubro de 2017. pp. 39-69.  
ANDERSON, K. Marx at the Margins: on nationalism, ethnicity, and non-western  
societies. Londres, Chicago: The Univertity of Chicago Press, 2010  
Verinotio  
332 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
CHASIN, J. Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo. 2009  
_____. Excertos sobre revolução, individuação e emancipação humana. Verinotio, v.  
23, n. 1, Abril de 2017. pp. 10-105.  
_____. O integralismo de Plínio Salgado: Formade regressividade no capitalismo hiper-  
tardio. São Paulo: Ciências Humanas, 1978  
COGGIOLA, O. Realidade e lenda do bolchevismo. Verinotio, v. 23, n. 1, abril de 2017.  
pp. 183-216.  
FEDERICI, S. Calibã e a Bruxa. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Editora Elefante.  
2007  
_____. Mulheres e a Caça às Bruxas. Tradução: Heci Regina Candiani. São Paulo:  
Boitempo. 2019.  
FONTES, Y. Revolução Russa e questão nacional em Mariátegui. Verinotio, v. 23, n. 1,  
Abril de 2017. pp. 106-125.  
GRAMSCI, A. A Revolução contra O Capital. In.: vários, Revolución rusa y Unión  
Soviética. Tradução: J. A. Gonçâlez. Barcelona: Editora R. Torres, 1976. pp. 21-26  
HOBSBAWM, E. A Era do Capital. Tradução: L. C. Neto. Rio de Janeiro: Editora Paz &  
Terra, 1977.  
HOBSBAWM, E. A Era dos Impérios. Tradução: S. M. Campos, & Y. S. Toledo. Rio de  
Janeiro: Editora Paz & Terra, 1988.  
LÊNIN, V. O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. São Paulo: Nova Cultural,  
1982.  
MACHADO, G. Sobre a possibilidade de uma revolução russa nos escritos de Marx .  
Verinotio, v. 23, n. 1, Abril de 2017, pp. 247-267.  
MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Tradução: Rubens Enderle; Nélio Schneider;  
Luciano Calvino Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.  
_____. O Manifesto Comunista. Tradução: Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo. 2005  
_____. Lutas de Classes na Rússia. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo.  
2013.  
_____. Marx & Engels Collected Works: Marx & Engels 1849. Londres: Lawrence &  
Wishart, v. 9, 2010a  
_____. Marx & Engels Collected Works: Marx & Engels 1851-53. Londres: Lawrence  
& Wishart, v. 11, 2010b  
_____. Marx & Engels Collected Works: Marx & Engels 1853-54. Londres: Lawrence  
& Wishart, v. 12, 2010c  
_____. Marx & Engels Collected Works: Marx & Engels 1856-58. Londres: Lawrence  
& Wishart, v. 15, 2010d  
_____. Marx & Engels Collected Works: Marx & Engels 1858-60. Londres: Lawrence &  
Wishart, v. 16, 2010e  
_____. Marx& Engels Collected Works: Letters 1856-59. Londres: Lawrence & Wishart,  
v. 40, 2010f  
_____. Marx& Engels Collected Works: Letters 1880-83. Londres: Lawrence & Wishart,  
v. 46, 2010g  
MARX, K. O Capital: Livro I: O Processo de Produção do Capital. Tradução: Regis  
Barbosa; Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, v. 1, 1996. (Os Economistas).  
_____. Grundrisse. Tradução: Mario Duayer; Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo,  
2011a.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 333  
nova fase  
Gabriella M. Segantini Souza  
_____. O 18 de Brumário de Luis Bonaparte. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo:  
Boitempo, 2011b.  
_____. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. Tradução: Jesus Ranieri. São Paulo:  
Boitempo, 2004.  
_____. Nova Gazeta Renana. Tradução: Lívia Cotrim. São Paulo: Expressão Popular,  
2020.  
_____. O Capital. Livro I: O Processo de Produção do Capital. Tradução: Rubens  
Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017a.  
_____. O Capital. Livro III: OProcesso Global da Produção Capitalista. Tradução: Rubens  
Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017b.  
MUSETTI, F. Marx e Engels sobre a particularidade das lutas de classes na Rússia.  
Verinotio, v. 20, n.1, Outubro de 2015, pp. 216-219  
MUSTO, M. O velho Marx. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo. 2018  
SARTORI, V. Marx diante da revolução social na Rússia do século XIX. Verinotio, v. 23,  
n. 1, Abril de 2017. pp. 126-153.  
_____. Acerca da individualidade, do desenvolvimento das forças produtivas e do  
“romantismo” em Marx Parte I: O desenvolvimento de cada um e o de todos.  
Revista Práxis Comunal, v. 1, n. 1, Dezembro de 2018, pp. 32-70.  
_____. Acerca da individualidade, do desenvolvimento das forças produtivas e do  
“romantismo” em Marx Parte II: revolução e indivíduos universalmente  
desenvolvidos. Revista Práxis Comunal, v. 1, n. 2, Janeiro de 2019, pp. 170-201.  
SILJAK, A. O Anjo da Vingança. Tradução: Dinah Azevedo. Rio de Janeiro: Editora  
Record, 2013  
SHANIN, T. (org). Marx Tardio e a Via Russa. São Paulo: Editora Expressão Popular,  
2017  
STALIN, J. Sobre Materialismo Dialético e MaterialismoHistórico.Rio de Janeiro: Editora  
Horizontes, 1945  
VEDDA, M. Ubi Lenin, ibi Jerusalem? Ernst Bloch sobre la Revolución de Octobre.  
Verinotio, v. 23, n. 2, outubro de 2017. pp. 9-21.  
Como citar:  
SOUZA, Gabriela M. Segantini. Marx e o cardápio da taberna do futuro: sobre os  
caminhos para uma revolução russa no século XIX. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n.  
2, pp. 288-334, mar. 2023.  
Verinotio  
334 |  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023  
nova fase