Marxismo, arte
e literatura
Verinotio
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas
Dossiê
ISSN: 1981-061X - ano XV - 2020
Grupo de Estudos Marxologia: Filosofia e Estudos Confluentes/CNPq
Curso de Serviço Social (UFF - Universidade Federal Fluminense - Rio das Ostras)
26
número 1
jan-jun/2020
VERINOTIO – REVISTA ON-LINE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ISSN 1981-061X v. 26 n. 1 JAN./JUN. 2020
PERIODICIDADE: SEMESTRAL
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dos respectivos autores.
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SUMÁRIO
Editorial ............................................................................................... 07
Miguel Vedda
DOSSIÊ
A crítica da cultura e a educação estética .............................................. 16
Elisabeth Soares da Rocha, Ronaldo Rosas Reis
Alegoria e símbolo: a imanência cismundana refletida
artisticamente ...................................................................................... 44
José Deribaldo Gomes Santos
Triunfo do realismo: o que é isso? Sobre uma categoria da teoria do
realismo de Lukács ............................................................................... 64
Paula Alves Martins de Araújo
Arte autônoma ou arte política? ............................................................ 85
Bruno Daniel Bianchi
Lukács e a emigração na URSS (1933-45): realismo e sorte em tempos de
catástrofes ............................................................................................ 96
Juarez Torres Duayer
Origem do reflexo estético, mundanidade e considerações preliminares
sobre a obra de arte na Estética (1963) de György Lukács ................... 106
Renata Altenfelder Garcia Gallo
Lukács y la renovación del realismo: autonomía y perspectiva
en Pabellón de cáncer, de Soljenítsin …………………………..… 126
Martín Salinas
Siegfried Kracauer e a teoria do romance policial ............................... 145
Leandro Candido de Souza
Dickens, “nuestro amigo en común”: un recorrido por las
aproximaciones marxistas a la obra de Dickens ……………….…………..… 161
Jesica Daniela Lenga
Sátira e alienação na construção do narrador não confiável em Goethe e
Machado de Assis ................................................................................ 194
Ana Laura dos Reis Corrêa
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La configuración de la realidad en dos momentos de la obra de
Paul Zech …………………………………………………………………..………………. 203
Tomás Sufotinsky
El pensamiento utópico en Christa Wolf ……………………..………………… 216
María Belén Castano
TRADUÇÃO
A Estética de Hegel: introdução .......................................................... 228
György Lukács
ARTIGOS DE FLUXO CONTÍNUO
La otra teoría de la reflexión de Lênin: la formulación de una segunda
teoría leninista del reflejo en el Resumen de la Ciencia de la lógica …. 263
Manuel Alejandro Bonilla
Roberto Schwarz e György Lukács: uma aproximação dialética .......... 278
Henrique Coelho
Os Manuscritos de 1844 de Karl Marx e a retomada da economia política
no pensamento pós-hegeliano ............................................................ 301
Douglas Rafael Dias Martins
Os juristas nas Teorias do mais-valor de Karl Marx: produtividade e
desenvolvimento capitalista diante da concepção marxiana de
socialismo .......................................................................................... 330
Vitor Bartoletti Sartori
A particularidade da constituição do capitalismo alemão em Marx:
algumas passagens dos anos 1840 ...................................................... 353
Vladmir Luis da Silva
RESENHA
O capital monopolista financeiro no Brasil ........................................ 385
John Kennedy Ferreira
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.565
Miguel Vedda
7
Editorial
Miguel Vedda
1
La historia de las múltiples relaciones entre estética y marxismo
constituye uno de los capítulos más importantes de esas dos formas de
pensamiento y de praxis. Sin embargo, sigue siendo aún usual que teóricos de
la literatura y del arte vean a las reflexiones marxistas como un modo de
abordaje necesariamente reduccionista, que solo podría aportar una
perspectiva histórica o sociológica, en cualquier caso externa al análisis
formal. Aún más preocupante es que muchos marxistas se limiten a arrojar una
mirada despectiva hacia la estética, como una suerte de injerto extraño o de
departamento de baja jerarquía dentro de la construcción del materialismo
dialéctico, escasamente relevante en comparación con la crítica de la economía
política o el análisis historiográfico. Posiciones como esta no permiten dar
cuenta de por qué el estudio minucioso de la literatura tanto como de la estética
filosófica era tan importante para Marx, que no en vano lamentaba no disponer
del tiempo necesario para escribir su libro sobre Balzac. El menosprecio hacia
lo estético tampoco explica la atención que le dedicaron muchos de los mayores
teóricos marxistas a través de la historia: Mehring, Luxemburg, Lukács,
Gramsci, Bloch, Benjamin, Kracauer, Adorno, Mariátegui, Fischer… La lista
podría ser muy extensa y acrecentarla no le añade validez a un argumento que
nos parece suficientemente probado.
¿Por qué esta atención del marxismo a los fenómenos estéticos? Las
respuestas a la pregunta podrían ser variadas; pero nos atrevemos a sugerir
una que encontramos particularmente importante y que se refiere ante todo a
la literatura. En una entrevista realizada en 1968, Lukács dijo que lo más
importante que aprendió Marx de la literatura es “a comprender los conflictos
en la historia y los períodos de transición no solamente como la suma total de
las jugadas de ajedrez individuales, sino a ver la forma en la que estaban
conectadas, es decir, a verlas en su propio contexto”
2
. Para entender mejor esta
declaración, convendría remitirse a ideas que aparecen en otras obras de
Lukács, aun las correspondientes al período premarxista. Así, refiriéndose a
Shakespeare en su libro temprano sobre el drama moderno, Lukács afirma que
el dramaturgo isabelino no escribió la historia, sino la filosofía de la historia
del feudalismo decadente: es como si Shakespeare se encontrara en una
atalaya desde la cual observa, no los “pequeños” detalles fácticos, sino las
1
Profesor Titular Plenario de Literatura Alemana, director del Departamento de Letras (Facultad de
Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires) e investigador principal del Conicet. Miembro del
colectivo marxista “Herramienta”. E-mail: miguelvedda@yahoo.com.ar.
2
Cf. Entrevista: En casa, con György Lukács. Trad. Mariela Ferrari. En: LUKÁCS, György. Testamento
político y otros escritos sobre política y filosofía. Ed. al cuidado de Antonino Infranca y Miguel Vedda.
Buenos Aires: Herramienta, 2003, pp. 113-124; aquí, pp. 118 y s.
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grandes fuerzas históricas, con una notable capacidad de abstracción. En
términos parecidos estudiará, en La novela histórica, la obra de Scott,
diferenciándola de los novelistas empeñados en reconstruir
arqueológicamente el pasado “tal como realmente fue”. Sería pertinente trazar
en este aspecto un paralelo entre la capacidad de abstracción de autores como
Dante y Shakespeare, como Kafka y Thomas Mann y el énfasis puesto por Marx
en la abstracción como herramienta ineludible para dar cuenta del
capitalismo; recordemos la afirmación del prefacio a El capital según la cual,
para el análisis de las formas económicas, no sirven ni el microscopio ni los
reactivos químicos: es la fuerza de abstracción la que tiene que sustituir a
ambos. La capacidad excepcional de abstracción que le permitió a Marx
comprender las leyes fundamentales del modo de producción capitalista –su
fisiología– por detrás del ámbito superficial de las apariencias se orienta en el
sentido de colocar, dentro del capitalismo, cada elemento individual dentro de
la totalidad de la que es parte integrante. Las condiciones de producción de
cualquier sociedad forman un todo: esto es particularmente válido para la era
capitalista; solo que, como muestra Marx, en esa era la relativa
autonomización de las partes, unida a la complejidad del sistema, hace que en
la vida cotidiana no se perciba esa unidad, que vuelve a tornarse visible en las
crisis: cuando una interrupción en el proceso de circulación continuo que exige
la lógica del capital hace notorio en qué medida están interconectados las
distintas partes, en apariencia autónomas. La abstracción en Marx, como en
los grandes artistas y escritores de la modernidad, busca establecer una
distancia respecto del modo superficial y fragmentado en que la realidad social
se presenta de manera inmediata a la conciencia cotidiana. Lo que Brecht
entendía como extrañamiento [Verfremdung] y lo que el viejo Lukács define
como efecto desfetichizador del arte coinciden en promover esta ruptura
iluminadora con la inmediatez; es en este sentido que se dice, en La
peculiaridad de lo estético, sobre la catarsis estética que ella no se reduce
a mostrar nuevos hechos de la vida, o a iluminar con luz nueva
hechos ya conocidos por el receptor; sino que la novedad cualitativa
de la visión que así nace altera la percepción y la capacidad, y la hace
apta para la apercepción de nuevas cosas, de objetos ya habituales
en una nueva iluminación, de nuevas conexiones y de nuevas
relaciones de todas esas cosas con él mismo
3
.
Las diferentes contribuciones al dossier que aquí presentamos
muestran algunas de las formas diversas en que el arte (y la reflexión sobre él)
ofrece una educación estética para la emancipación, desarticulando las
mistificaciones de la modernidad. El artículo de Elisabeth Soares da Rocha y
Ronaldo Rosas Reis subraya la relevancia que las consideraciones sobre la
3
LUKÁCS, György. Estética 1. La peculiaridad de lo estético v. II. Trad. Manuel Sacristán. Barcelona:
Grijalbo, 1982, p. 528.
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sensibilidad humana del Marx de los Manuscritos económico-filosóficos y el
pensamiento ontológico lukácsiano poseen como métodos para abordar temas
estéticos y culturales. A partir de esta constatación, traza un recorrido por la
obra de una serie de pensadores destacados del marxismo del siglo XX
Antonio Gramsci, Guy Debord, Terry Eagleton (La idea de la cultura), además
de otros autores pertenecientes al marxismo o ajenos a él–; los autores
destacan la importancia de la educación estética y de la conciencia teórica
acerca de la sensibilidad humana, como estrategias fundamentales de cara a
una época que, como la nuestra, se encuentra totalmente permeada por la
lógica de la mercancía y su carácter esencialmente fetichista. José Deribaldo
Gomes Santos se ocupa de examinar el significado y la función que tienen, en
La peculiaridad de lo estético (1963), las categorías de alegoría y símbolo,
partiendo de las definiciones goetheanas y mostrando la significación que
ambos términos tienen para la discusión lukácsiana sobre la literatura y el arte
modernos. El trabajo establece también un paralelo entre la teoría lukácsiana
y el sentido que concede Walter Benjamin a la alegoría y el símbolo en el libro
sobre el Trauerspiel. Paula Alves Martins de Araújo recupera una de las
categorías más controvertidas (y más incorrectamente entendidas) de la teoría
literaria lukácsiana: la de triunfo del realismo; un término que, en el filósofo
húngaro, excede incluso el marco de la producción y la reflexión estéticas para
extenderse a los ámbitos de la acción política y la praxis cotidiana. El artículo
indaga atentamente y con minuciosa precisión histórica el desarrollo del
concepto engelsiano y su significación en los debates en los que se vio
implicado Lukács durante la década de 1930 y comienzos de la de 1940. El
artículo de Bruno Daniel Bianchi trata de someter a discusión la dialéctica de
arte autónomo / arte comprometido en la obra madura y tardía de Lukács,
estableciendo también algunas referencias a otros autores. Bianchi concluye
que, en Lukács, el partidismo [Parteilichkeit] no contradice la autonomía de la
obra, ni anula el efecto desfetichizador que debería tener toda auténtica
producción artística o literaria. Juarez Duayer bosqueja un cuadro muy rico
sobre la situación existencial, política e intelectual de Lukács durante los años
de permanencia en la URSS (1933-45), en el que delimita con exactitud tanto
la especificidad de las posiciones estéticas del autor como su dimensión
polémica, en clara delimitación respecto del stalinismo imperante. A la vez que
estudia los ensayos lukácsianos, Duayer también discute detalladamente con
algunos de los estudiosos más significativos de la obra del pensador húngaro
(Oldrini, Tertulian, entre otros). Martín Salinas aborda los artículos de Lukács
dedicados a la obra de Soljenítsin, con especial atención al ensayo sobre
Pabellón de cancerosos, mostrando no solo la vinculación que estos artículos
mantienen con la concepción general del filósofo sobre el realismo estético,
sino también con el contexto social y cultural del poststalinismo. Se establecen
también comparaciones provocadoras con otras novelas; en especial, con La
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montaña mágica, de Thomas Mann, que en definitiva es también una novela
sobre el microcosmos clínico. Leandro Candido de Souza ofrece un estudio
pormenorizado sobre el estudio más extenso de Siegfried Kracauer sobre el
policial clásico, La novela detectivesca. Un estudio filosófico, compuesto
durante la primera mitad de la década de 1920, pero publicado solo después
de la muerte del autor. El artículo despliega la estructura argumentativa tanto
como el contexto histórico de investigación con el que se enfrentó Kracauer al
redactar el tratado, y discute con teóricos marxistas (Benjamin, Gramsci,
Fischer, Godmann, Mandel) y con especialistas en la obra del ensayista
frankfurtiano, entre quienes se destaca nuestro querido y añorado Carlos
Eduardo Jordão Machado.
A este segmento predominantemente teórico del dossier siguen varias
contribuciones dedicadas a análisis particulares. La de Jesica Lenga presenta
una reseña crítica de varias aproximaciones críticas a la obra de Charles
Dickens –las de Caudwell, Lukács, Adorno, Williams, Eagleton, entre otros–
con el propósito de destacar la peculiaridad de cada análisis y de relacionarlo
polémicamente con los restantes. Ana Laura dos Reis Corrêa construye un
paralelo sumamente lúcido y original entre los procedimientos narrativos
(ante todo: la construcción de un narrador no confiable y el empleo de un
distanciamiento satírico) aplicados por Goethe en el Werther y por Machado
de Assis en su obra madura, sobre todo a partir de su novela maestra Memórias
póstumas de Brás Cubas. Sobre la base de una discusión de varias perspectivas
críticas –entre ellas, las desarrolladas por Lukács en Sobre la cuestión de la
sátira–, el artículo no solo muestra la influencia concretamente documentada
de Goethe sobre el narrador brasileño, sino aún más las semejanzas entre
ambos escritores en el plano de la técnica narrativa. Tomás Sufotinsky
presenta un panorama sobre el desarrollo de la obra poética del escritor
alemán antifascista, emigrado a la Argentina, Paul Zech, con vistas a establecer
una serie de correlaciones con las reflexiones estéticas de Lukács y Adorno.
María Belén Castano revisa dos importantes ensayos de Christa Wolf para
mostrar la influencia que ejerció sobre ellos el concepto de utopía presente en
la obra de Ernst Bloch; el artículo, al mismo tiempo, brinda una ocasión para
evaluar las ideas de la escritora alemana sobre el Romanticismo alemán.
La diversidad de perspectivas no debería ocultar la identidad de
propósitos. Todas las contribuciones a este dossier intentan y, efectivamente,
consiguen realizar aportes a la reflexión sobre la literatura y el arte (y sobre la
teoría de la literatura y el arte) en tiempos muy oscuros, en que un
pensamiento comprometido con la emancipación humana tiene que
enfrentarse ya no solo con las mistificaciones generadas por el neoliberalismo
aún hegemónico a nivel mundial, sino también con la complicidad que con él
mantienen las nuevas derechas latinoamericanas, con su renovado intento de
exterminar toda disidencia y de liquidar cualquier convencimiento en que otro
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mundo es posible, más allá de las formas concretas de explotación que todos
conocemos y, sobre todo, de la ley del valor. Bajo estas condiciones, lo estético
retiene –y debe desplegar– todo ese potencial que le reconoció
persistentemente Lukács, desde sus primeras impresiones juveniles hasta sus
reflexiones tardías: el potencial de ser más auténtico, más verdadero que esa
mentira que representa el mundo existente, sustancialmente cosificado. Como
verdad –y no como ficción, si se la entiende banalmente como un sinónimo de
mentira tendrá la mímesis estética una función importante que cumplir,
como alternativa, en general, frente a las fantasmagorías del capitalismo
contemporáneo, pero ante todo, particularmente, ante las mistificaciones de la
industria cultural.
El autor de esta presentación querría aprovechar esta ocasión para
agradecer a los autores sus valiosas contribuciones, y a Ester Vaisman tanto
por la oportunidad de coordinar este dossier como por su persistente
compromiso y por su valiosa amistad.
***
A presente edição de Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências
Humanas traz um texto de G. Lukács inédito em português, traduzido
diretamente do original alemão por Ronaldo Vielmi Fortes, especialista no
pensamento lukacsiano que se tornou referência na tradução das obras do
filósofo húngaro no Brasil. Trata-se do prefácio escrito por Lukács à Estética
de Hegel publicada em 1955, cuja importância dispensa maiores comentários,
tanto no que se refere ao próprio Hegel quanto, principalmente, para o devido
entendimento do modo como Lukács concebia a contribuição do filósofo
alemão em uma época particularmente adversa para esse tipo de discussão.
Logo no início do texto é possível perceber o esforço de Lukács em demonstrar
“os traços positivos da filosofia hegeliana”, como também que os “clássicos do
marxismo mantinham particularmente grande apreço por esse trabalho”. O
autor passa em revista as contribuições no campo da filosofia da arte anteriores
ao advento do pensamento hegeliano para concluir, em seguida, que a
Estética de Hegel é um compêndio crítico enciclopédico de todas essas
tendências”, ressaltando ainda que a preocupação estética emerge apenas em
um momento mais tardio de seu itinerário intelectual. Mas isso não significa
que em seus escritos anteriores o tema não tenha sido contemplado. Lukács
chama a atenção para o fato de que na Fenomenologia do espírito é possível
identificar a presença de preocupação dessa ordem, assim como na primeira e
na segunda edições da Enciclopédia das ciências filosóficas e, também, em
seus cursos e palestras. Ademais, examina com detalhe os vários momentos de
construção e reconstrução do pensamento estético de Hegel até a sua chegada
a Heidelberg. A preocupação de Lukács em caracterizar, em breve prefácio,
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conquistas incontornáveis do filósofo alemão é de fato evidente, sobretudo a
sua visão de história, que forneceria ponto de partida justo para a devida
avaliação das obras de arte. Mas Lukács não para por aí. Chega a afirmar que
“Hegel comprova de maneira aguda o quão desfavorável é a sociedade
capitalista para o desenvolvimento da arte”. Contudo, é evidente que Lukács
não pretende sobrevalorizar em demasia as dimensões positivas da
contribuição de Hegel para a reflexão sobre os problemas da estética, muito ao
contrário. Ele reconhece que “a estética hegeliana é a primeira e a última
síntese científica, teórica e histórica abrangente da filosofia da arte a que a
filosofia burguesa poderia chegar”. Ápice do movimento ascensional burguês
no plano da filosofia, apresenta, no entanto, “todas as deficiências e limitações
do pensamento burguês”, com as mistificações que lhe são características. O
fim da arte é apenas um eles....
O autor do artigo La otra teoría de la reflexión de Lênin: la formulación
de una segunda teoría leninista del reflejo en el Resumen de la Ciencia de la
lógica, Manuel Alejandro Bonilla, argumenta que Lênin teria formulado uma
teoria do reflexo para, acima de tudo, evidenciar e esclarecer as intrincadas
relações entre o ideal e a sociabilidade. O problema estaria presente de modo
rápido em alguns textos anteriores, mas seria Materialismo e
empiriocriticismo que a questão do reflexo passa a ser desenvolvida de modo
mais cabal, afirmando a tese que se constituiria na espinha dorsal de sua
reflexão, qual seja, a de que a teoria é aproximação contínua da realidade.
Como o autor demonstra, a tese passou a ser teoria oficial do Diamat, mas, ao
mesmo tempo, tornou-se objeto de crítica intensa pelos representantes do
assim chamado “marxismo ocidental”. Diante disso, Bonilla procura mostrar
que nin elaborou argumentos que poderiam se contrapor às teses
mecanicistas: trata-se do Resumo da Ciência da lógica, em que teria ocorrido
o “redescobrimento” de Hegel justamente por parte de Lênin, que, no entanto,
não teria sido levado em consideração pelos intérpretes do revolucionário
russo. No referido escrito, Lênin teria resgatado algo de fundamental
importância: o movimento do pensamento se acerca do real em um processo
de aproximação, destacando, assim, as relações reflexivas entre pensamento e
mundo. Nesse reencontro, as categorias dialéticas teriam sido reavaliadas e
enriquecidas.
Henrique Coelho comparece neste número com o texto Roberto
Schwarz e György Lukács: uma aproximação dialética. O autor inicia
explicando o trânsito ao pensamento maduro de Lukács desde sua época pré-
marxista quando, conforme o autor, abordava a obra de arte de maneira
imanentista, com base em uma divisão rigorosa entre subjetividade e
objetividade que impedia à arte reconciliar indivíduo e mundo, mas servindo
como escape da vida cotidiana dilacerada pela reificação da modernidade.
Passando pelo seu protomarxismo, Coelho aborda a posição lukacsiana
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madura perante a arte realista, nem hipertrofia da subjetividade nem reflexo
mecanicista da realidade objetiva, mas figuração da objetividade como
consciência dos problemas universais, histórico-sociais. Em seguida, o autor
aborda algumas análises literárias de Roberto Schwarz nas quais este salienta,
em autores como Machado de Assis, o estilo que aglutina na própria forma e
na própria trama elementos para “alinhavar a natureza da tenaz e desigual
estrutura social brasileira”, “localização realista e dialética da particularidade
na universalidade” do capital. Coelho conclui que uma aproximação entre
as estéticas de Lukács e de Schwarz, pois em ambas estão presentes a
prioridade ontológica do real e a averiguação do escrutínio artístico em seu
terreno específico, além do distanciamento de estreitas visões sociologistas,
havendo divergência apenas no trato da questão das vanguardas.
o artigo intitulado Os Manuscritos de 1844 de Karl Marx e a
retomada da economia política no pensamento pós-hegeliano, de autoria de
Douglas Rafael Dias Martins, como próprio tulo indica, tem por objetivo
central analisar o sentido e as implicações dos estudos sobre economia política
clássica que tiveram início no período em que Marx residiu em Paris. O autor,
tomando como base variada bibliografia, em que um conjunto de intérpretes
também se debruçou sobre o assunto, procura avaliar o caráter dos nculos
teóricos que Marx estabelece com os neo-hegelianos e com o próprio Hegel a
respeito do tema. Além de ressaltar os traços característicos da realidade alemã
do período, refere de modo razoavelmente detalhado as concepções teóricas
das figuras mais representativas do movimento influenciado pelo pensamento
do filósofo de Heidelberg. Por meio desse procedimento, prepara o caminho
para abordar então o texto marxiano propriamente dito, em cuja análise
também se vale de um certo número de intérpretes com o objetivo de adensar
a própria análise. Dias Martins conclui, entre outros aspectos, que nesse texto
seminal se encontra um momento importante na trajetória do autor em tela,
tendo em vista que se encontram elementos fundamentais da concepção
materialista que Marx e Engels desenvolverão mais tarde.
Vitor Bartoletti Sartori apresenta o artigo Os juristas nas Teorias do
mais-valor de Karl Marx: produtividade e desenvolvimento capitalista diante
da concepção marxiana de socialismo. O autor parte do debate sobre a
concepção marxiana de trabalho produtivo, tomando por base texto de Marx
pouco analisado no campo no direito. Salienta que conceituar trabalho
produtivo como produção de valores de uso é apenas parcialmente correto,
sendo mais adequado afirmar que se trata do trabalho subordinado ao capital,
categoria típica do modo de produção capitalista, em que o essencial é a
valorização do valor e, portanto, a extração do mais-valor. Segundo Sartori,
Marx mostra como a apologia do trabalho produtivo está relacionada ao
momento progressista da burguesia, relativo à grande indústria (englobando,
portanto, o trabalho do proletariado). Tão logo fique evidente que o trabalho
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daqueles que se subordinam imediatamente ao capital comercial, financeiro
ou portador de juros não é produtivo, mas é essencial para a reprodução do
modo de produção capitalista, a burguesia promove um alargamento acrítico
do termo trabalho produtivo, distanciando-o do operário de cuja força de
trabalho é extraído o mais-valor e aproximando-o dos funcionários da
maquinaria estatal, do que se poderia chamar de setor de serviços, dos
rentistas da terra etc. Sartori chama a atenção para o fato de que o crescimento
do trabalho improdutivo é o resultado também do aumento da produtividade
do trabalho e dos “diversos liames novos que acompanham tal incremento”,
destacando-se o adensamento de camadas com maior grau cultural e ligadas
somente de modo mediado ao processo imediato de produção (inventores,
médicos, juristas) que realizam um trabalho intelectual ao mesmo tempo
subordinado à produção capitalista e mantendo para com seu processo
imediato certa autonomia relativa. Conclui que o desenvolvimento científico
abre possibilidades para as capacidades humanas que não se realizam na
produção capitalista, por não caberem na medida do valor, e que a pauta do
trabalho não é uma sociabilidade calcada no trabalho produtivo (e, portanto,
na valorização do valor), mas uma em que o tempo livre é medida de riqueza.
O artigo A particularidade da constituição do capitalismo alemão em
Marx: algumas passagens dos anos 1840, de Vladmir Luis da Silva, realiza uma
análise imanente de textos marxianos da década de 1840, com foco nas
observações marxianas sobre seu país natal, a Alemanha, tema constante,
ainda que não tratado diretamente, em diversas obras do período: é que o
pensador alemão buscava no modo particular de constituição do capitalismo o
núcleo estruturador das múltiplas configurações espirituais e práticas, donde
o debate sobre a particularidade do capitalismo alemão estar tratado, em
diferentes níveis de aprofundamento, nos textos desse período de constituição
da própria posição teórica e de crítica da filosofia especulativa alemã. O
diagnóstico marxiano acerca das condições particulares de desenvolvimento
da Alemanha não passa por mudanças no período, de acordo com o autor,
conhecendo, porém, um aprofundamento e um desenvolvimento conforme o
próprio processo histórico se desdobra. Marx sintetiza as condições objetivas
de atraso social e político do país e as debilidades das suas classes sociais
modernas na expressão miséria alemã, à qual contrapõe o processo de
formação dos países de via clássica, como Inglaterra, França e Estados Unidos.
Como observa Silva, porém, a crítica marxiana passa longe dos simplismos,
uma vez que é capaz de apontar a coexistência do atraso e da conciliação com
a modernidade no campo teórico, no qual a Alemanha alcançou o máximo
nível de desenvolvimento possível ao pensamento burguês. Bem assim, ao
criticar a miséria alemã Marx não faz a defesa dos países capitalistas então
mais avançados, mas demonstra também as suas contradições (como o caráter
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Miguel Vedda
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limitado da emancipação política) e afirma a necessidade da revolução social,
ensejadora da emancipação humana.
A resenha O capital monopolista financeiro no Brasil, escrita por John
Kennedy Ferreira acerca do livro Anatomia de um credo: o capital financeiro
e o progressismo da produção, de autoria de Ronald Rocha, finaliza a presente
edição. No texto, o resenhista busca identificar um certo debate sobre o caráter
da burguesia brasileira e nele insere o livro em questão, em que Ronald Rocha
busca caracterizar a constituição dos capitais presentes na atualidade
brasileira. Ademais, sublinha a posição crítica do autor sobre a separação
fictícia entre capital produtivo e capital financeiro, para em seguida reconhecer
o processo de financeirização da economia e a consequente formação de seus
respectivos conglomerados. De acordo com Ferreira, o livro é uma importante
contribuição para análise da realidade brasileira, seus impasses e as
alternativas de luta.
Convidamos o leitor à leitura e à reflexão, imprescindíveis para toda
determinação de transformar o mundo.
Como citar:
VEDDA, Miguel. Editorial. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências
Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 7-15, jan./jun. 2020.
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.517
Elisabeth Soares da Rocha
Ronaldo Rosas Reis
16
A crítica da cultura e a educação estética
1
Elisabeth Soares da Rocha
2
Ronaldo Rosas Reis
3
Resumo:
A tomada de uma consciência teorética sobre a sensibilidade humana na
perspectiva indicada por Marx nos Manuscritos de Paris, se impõe
ontologicamente no exame da arte como reflexo do mundo que realmente
existe. Com base nesse pressuposto, buscamos na Estética do filósofo húngaro
Lukács, assim como nos teóricos marxistas, Gramsci, Eagleton, Jameson,
Debord, os elementos para o exercício da crítica da cultura e do caráter social
formativo dos sentidos estéticos, manifestamente sobre a criação artística, o
conhecimento estético e a produção material sob o sistema capitalista.
Palavras-chave: crítica; cultura; ideologia; estética; educação.
The cultural criticism and the aesthetic education
Abstract:
The taking of a theoretical consciense about human sensitivity in the
perspective indicated by Marx, imposes itself ontologically in the examination
of art as a reflection of the world that really exists. Based on this assumption,
we sought in the Aesthetics of the philosopher Lukács, as well as in the Marxist
theorists, Gramsci, Eagleton, Jameson, Debord, the elements for the exercise
of cultural criticism and the formative social character of the aesthetic senses,
1
O presente artigo tem por base a tese de doutoramento Estudo crítico sobre as
políticas públicas e a formação estético-cultural em Campos dos Goytacazes,
defendida por Elisabeth Soares da Rocha, sob orientação de Ronaldo Rosas Reis, no
PPG-Educação/UFF (2017).
2
Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense, em Campos dos
Goytacazes (IFF-Campos). E-mail: bethrocha12@gmail.com.
3
Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Professor Titular aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF),
credenciado do PPG-Educação/UFF. E-mail: ronaldorosas.uff@gmail.com.
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manifestly about artistic creation, aesthetic knowledge and material
production under the capitalist system.
Keywords: critique; culture; ideology; aesthetic; education.
Introdução
Se a centralidade do trabalho é, desde o ponto de vista da ontologia
crítica, determinante para compreendermos o processo de humanização do
homem, certo é igualmente que a contínua exploração do trabalho humano
pelo próprio homem se tornou o dilema central desse processo, porquanto
historicamente amparado ideologicamente pela construção de uma cultura
anti-humanista empreendida por uma classe hegemônica. Ao atribuírem ao
trabalho a atividade principal pela qual o homem se cria a si mesmo, Marx e
Engels reconhecem no caráter ontológico do trabalho a chave para esse dilema
que aflige a organização da vida social: a hegemonia ideológica que se
manifesta na cultura. Com efeito, no século XIX, refletindo criticamente sobre
as ideias pretensamente revolucionárias dos jovens filósofos hegelianos, eles
assim escreveram sobre a disputa hegemônica no campo da cultura:
Apesar de suas frases pomposas, que supostamente revolucionam o
mundo, os ideólogos da escola jovem hegeliana são os maiores
conservadores (...). Esquecem que eles próprios opõem à fraseologia
(dos seus oponentes] nada mais que outra fraseologia e que não
lutam de maneira alguma contra o mundo que existe realmente ao
combaterem unicamente a fraseologia desse mundo (...). Nenhum
desses filósofos teve a ideia de se perguntar qual era a ligação entre
a filosofia alemã e a realidade alemã, a ligação entre a sua crítica e o
meio natural. (MARX; ENGELS, 2002, p. 9)
Em Lukács encontramos o principal interlocutor e, certamente, o mais
vigoroso defensor da cientificidade da ontologia do ser social assumida na
crítica marxiana-engelsiana ao estatuto epistemológico do saber consagrado
pela filosofia clássica, ao positivismo e toda sorte de neofiliação a esta corrente
filosófica. De acordo com Vaisman e Fortes, “o combate sugerido por Lukács
ao predomínio das reflexões gico-epistemológicas tem, (...) a perspectiva que
concilia a posição teórica com a necessidade prática” (2010, p. 20). Para esses
estudiosos da obra do filósofo húngaro, “a ontologia recoloca o problema
filosófico essencial do ser e do destino do homem” (2010, p. 21).
No Brasil, a despeito da existência hoje de uma quantidade significativa
de estudos críticos sobre a relação cultura, arte e sociedade, publicados e
debatidos intensamente, é fato que esses estudos, em sua grande maioria,
carecem de uma maior aproximação com o campo da estética, em especial
aquela orientada pelo rigor analítico da ontologia crítica. É verdade também
que, de um modo geral, a produção acadêmica e ensaística brasileira voltada
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para esse campo tem sido descontínua, quase sempre preambular, em sua
maioria pouco afeita ao estudo das relações de produção da arte e do valor
como expressão hegemônica dessas relações no mundo capitalista
4
. Tais
estudos passam ao largo, portanto, do esforço dedicado a uma compreensão
dialética da dinâmica estrutura-superestrutura da vida social tal como ocorre
na perspectiva humanista da ontologia crítica.
No sentido contrário a essa condição incipiente, o presente artigo adota
como pressuposto a exigência/competência particular de que a crítica da
cultura como reflexo do mundo que realmente existe deve ser o ponto de
partida para a apreensão do caráter social dos sentidos estéticos,
manifestamente sobre a criação artística, o conhecimento estético e a produção
material sob o capitalismo. Para tanto, em três seções que esperamos
complementares, buscaremos problematizar a cultura e a vida social
considerando o papel formador do campo da estética no seu interior. Por fim,
numa seção conclusiva, seguindo a ideia debordiana de cultura espetacular,
analisamos o dilema contemporâneo em que nos encontramos em face da
distopia do tempo presente.
I. Da crítica da cultura
Ao resgatar o télos da cultura, em A ideia de cultura, Terry Eagleton
(2011) não se detém ao seu significado antropológico, mas busca aprofundar o
debate sobre a dialética da natureza e da cultura numa compreensão de que
cultura não é unicamente aquilo de que vivemos. Ela também é, em grande
medida, aquilo para o que vivemos e assim, compreender seu significado é
fundamental para entendermos sua nova função política (EAGLETON, 2011).
Antes mesmo disso, em A ideologia da estética (1993), Eagleton, haveria de
considerar relevante para a compreensão dos processos materiais pelos quais
a produção cultural configurou-se na sociedade burguesa, a discussão da
estética como categoria teórica, a partir da sua defesa de que o “estético é
inseparável das formas ideológicas dominantes na sociedade”, em suas
palavras,
a categoria do estético assume tal importância no pensamento
moderno europeu porque falando de arte ela fala dessas outras
questões, que se encontram no centro da luta da classe média pela
hegemonia política. A construção da noção moderna do estético é
assim inseparável da construção das formas ideológicas dominantes
4
Por toda parte tem-se antecipadamente que o valor de uma canção, um livro, uma
pintura etc. é algo “já cristalizado enquanto criação artística”; isto é, tais artefatos
detêm antecipadamente uma particularidade distinta dos demais (MARTINS, 2005,
p. 123).
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da sociedade de classes moderna, e na verdade, de todo um novo
formato da subjetividade apropriado a esta ordem social
(EAGLETON, 1993, p. 8).
A contribuição de Eagleton para a compreensão do conceito de cultura
é ampliada quando busca em sua etimologia a raiz inglesa coulter, do latim
culter
5
, a origem do significado cultivo: “Nossa palavra para a mais nobre das
atividades humanas, assim, é derivada de trabalho e agricultura, colheita e
cultivo” (EAGLETON, 2011). Nesse sentido, cultura aproxima-se da expressão
natureza, referindo-se àquilo que tem como característica fundamental o fato
de ser natural, apontando para o sentido de que a própria natureza produz
cultura que transforma a natureza. Dessa forma, os meios culturais que
usamos para transformar a natureza são eles próprios, derivados dela, ou seja,
a cultura pode ser vista como meio da autorrenovação constante da natureza,
em que a natureza mesma produz os meios de sua própria transcendência. Ou
seja, se a natureza é sempre de alguma forma cultural, então as culturas são
construídas com base no incessante tráfego com a natureza que chamamos
trabalho (EAGLETON, 2011).
Sendo considerados seres culturais, também somos parte da natureza
que trabalhamos. A este processo de auto moldagem, unem-se ação e
passividade, ao mesmo tempo em que nos assemelhamos à natureza, diferimos
dela, pois podemos fazer isso a nós mesmos. Assim tem-se naturalmente, a
cultura a que pertencemos bem como a ampliação em nós dessa cultura que
recebemos. O termo cultura neste viés sugere uma divisão dentro de nós
mesmos, entre aquela parte de nós que se cultiva e refina, e aquela que
constitui a matéria-prima para este refinamento. Essa natureza da cultura
significa tanto o que está a nossa volta como o que está dentro de nós
(EAGLETON, 2011). Na ação dessas transformações em que estão presentes os
elementos que constituem o universo cultural contido no homem e na
natureza, estes, ao agirem entre si produzem novas formas de manifestação de
cultura. Pois se o homem se reconhece homem pelo trabalho, e nessa ação
entre homem e natureza, o homem, ao transformá-la por meio do trabalho
produz tanto objetividade, quanto subjetividade, assim, o trabalho representa
a própria constituição do homem social. Ou seja, nesse tráfego em que
natureza e homem se transformam pela ação do trabalho, no desenvolvimento
desse processo reprodutivo, cada vez menos o homem encontra na natureza de
forma pronta estas condições, portanto, elas passam a ser criadas mediante a
prática social dos homens.
5
Relha de arado
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O trabalho humano como resultado da transformação da natureza visto
em Eagleton, aponta de certa forma para a afirmação de Marx quando este
considera que o homem é a própria natureza e dela faz parte:
O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o
qual ele tem que ficar num processo contínuo para não morrer. Que
a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza
não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada
consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza. (MARX,
2004, p. 84)
Para Marx e Engels (2002) o primeiro pressuposto de toda história
humana é, naturalmente, a existência de seres vivos. A principal ação do
homem frente aos outros animais está na possibilidade de que agindo sobre a
natureza, ele produz seus próprios meios de sobrevivência. Assim, o homem é
ao mesmo tempo transformado pelo processo do seu trabalho, atuando sobre
a natureza, e esta por sua vez sobre o homem, modificando-se mutuamente,
partindo assim, do ser natural, desenvolvendo-se pela práxis, para um ser cada
vez mais social. Nesse processo de autoconstrução humana ergue-se uma
dupla determinação: uma insuperável base natural e uma constante
transformação social desta base natural, ou seja, o ser social que se realiza a
partir de relações causais que compõem a natureza e a base de complexos
particularmente sociais. Ou, ainda, no que se refere ao homem e sua relação
com a natureza por meio do processo do trabalho, encontramos nessa inter-
relação a sua expressão cultural, na qual trabalho e cultura podem ser
considerados intrínsecos a existência humana.
Nessa condição da relação do ser humano com o ambiente que o cerca
o modificando de forma a produzir sua própria sobrevivência e reprodução,
Harvey declara que:
Somos seres sensoriais em relação metabólica com o mundo que nos
cerca. Alteramos esse mundo, e, ao fazê-lo, alteramos a nós mesmos
mediante nossas atividades e labores. (...) temos capacidades e
potencialidades específicas de nossa espécie, sendo as mais
importantes, ao que se diz, a de alterar e adaptar nossas formas de
organização social (por exemplo, criar divisões do trabalho,
estruturas de classe e instituições), construir uma longa memória
histórica por meio da linguagem, acumular conhecimentos e formas
de compreender que estão coletivamente à nossa disposição como
guias para uma ação futura, refletir acerca do que fizemos e fazemos
de maneiras que nos permitam aprender com a experiência (não
a de nós mesmos como a dos outros), e, em virtude de nossas
destrezas particulares, construir todo tipo de extensões de nós
mesmos (por exemplo, ferramentas, tecnologias, formas
organizacionais e sistemas de comunicação) para levar nossas
capacidades de ver, ouvir e sentir bem além das limitações
fisiológicas que nos são impostas por nossa constituição corporal.
(2004, p. 272)
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O termo cultura de sua derivação de natureza, de trabalho e agricultura,
colheita e cultivo, como citamos anteriormente, foi gradativamente
transferindo-se de uma denotação inicial como um processo completamente
material, para um sentido metaforicamente relacionado as questões do
espírito, passando a designar as atividades que configurariam um conceito que
abarcaria os aspectos relacionados à imaterialidade, na qual se inserem as
expressões artísticas (EAGLETON, 2011).
Com as mudanças históricas que distinguiriam os habitantes urbanos
dos habitantes rurais, formou-se uma nova etapa para o conceito de cultura,
uma separação, que colocava de um lado uma elite intelectual ou econômica,
considerada culta, detentora de um saber, e, por outro lado aqueles que
cultivavam a terra como menos capazes de cultivarem a si mesmos, que
impedidos de tempo para o lazer, em virtude do trabalho e a necessidade de
sobrevivência, não dispunham de tempo para o cultivo de si mesmos. Essa
dicotomia no conceito de cultura separou indivíduos por sua classe social, pelo
acesso à informação e conhecimento disponíveis para ele, marcando profunda
e definitivamente o modo de produção capitalista:
No linguajar marxista, ela reúne em uma única noção tanto a base
como a superestrutura. Talvez por detrás do prazer que se espera
que tenhamos diante de pessoas “cultas” se esconda uma memória
coletiva de seca e fome. Mas essa mudança semântica é também
paradoxal: são os habitantes urbanos que são “cultos”, e aqueles que
realmente vivem lavrando o solo não o são. Aqueles que cultivam a
terra são menos capazes de cultivar a si mesmos. A agricultura não
deixa lazer algum para a cultura. (EAGLETON, 2011, p. 10)
Considerando as relações intrínsecas entre trabalho e natureza, o
pensador italiano Antonio Gramsci (1999) se debruçaria sobre a ideia da não
exclusividade de um grupo social sobre a cultura, destacando inversamente a
capacidade criadora de cada indivíduo, seja qual for a atividade desenvolvida,
braçal ou intelectual. Para ele, cada grupo social, nascendo no terreno
originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria
para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de
intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não
apenas no campo econômico, mas também no social e no político. Cada um
desses grupos sociais cumpre um papel na organização econômica, com uma
carga cultural que se refere a toda atividade exercida dentro dessas relações de
trabalho. No ato de realização desse trabalho, o homem aplica o seu
conhecimento para promover a modificação no ambiente chamado natureza.
Nesse movimento de transformação, a natureza responde com os elementos
que lhe permitem sofrer alteração pela ação do homem, e aquilo que
modificará a ação do homem, por exigir deste uma nova forma de pensar sua
ação transformadora na natureza.
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A partir da organização cultural da sociedade, Gramsci (1999) ao
afirmar que todo homem é filósofo, busca debater sobre a separação entre o
trabalho intelectual e trabalho instrumental, pois “o operário ou proletário, por
exemplo, não se caracteriza especificamente pelo trabalho instrumental, mas
por este trabalho em determinadas condições e em determinadas relações
sociais”, ou seja:
É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os
homens são filósofos, definindo os limites e as características desta
filosofia espontânea, peculiar a “todo o mundo”, isto é, da filosofia
que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de
noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de
palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e
no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo
o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir
que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por folclore.
(GRAMSCI, 1999, p. 93)
Gramsci amplia o conceito de cultura ao elaborar uma crítica ao
pensamento de que cultura seja privilégio das classes dominantes. Para ele, se
é no âmbito da linguagem que o homem manifesta a sua concepção de mundo
ou ideologia e isso inclui toda a diversidade de concepções possíveis o
problema fundamental se torna em reconhecer na vida social o palco das
disputas hegemônicas em torno de movimentos culturais onde estejam
contidas as concepções de mundo ou ideologias que se pretendem dominantes.
Para o pensador italiano, a descoberta de que uma multidão de homens
seja conduzida a pensar coerentemente de maneira unitária a realidade
presente é bem mais original do que a descoberta de uma nova verdade
pertencente a pequenos grupos intelectuais. Nesse sentido, de acordo com
Gramsci, criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente
descobertas originais; significa também, sobretudo, difundir criticamente
verdades já descobertas, socializá-las por assim dizer, e, portanto, transformá-
las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual
e moral (GRAMSCI, 1999).
A partir desses pressupostos que Gramsci irá reafirmar que todos os
homens são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente, que, até
mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer,
na linguagem, está contida uma determinada concepção do mundo, ele aponta
para um segundo momento, por ele chamado de momento da crítica e da
consciência. Porém, o próprio Gramsci coloca uma questão sobre se
é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma
maneira desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma
concepção do mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente
exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos
estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo
consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se
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originar na paroquia e na “atividade intelectual” do vigário ou do
velho patriarca, cuja “sabedoria” dita leis, na mulher que herdou a
sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela
própria estupidez e pela impotência para a ação), ou é preferível
elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente
e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio
cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar
ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si
mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca
da própria personalidade? (GRAMSCI, 1999, pp. 93-4, grifo nosso).
Para ele, porém, é necessário que se considere que não é possível ser
filósofo, ou seja, ter uma concepção de mundo criticamente coerente, sem a
consciência da própria historicidade, assim como, ter conhecimento das fases
de desenvolvimento que esta consciência representa, e que a coloca em
contradição com as demais concepções, ou com os elementos destas
concepções. Assim, essa própria concepção de mundo, responde aos
problemas impostos pela realidade, que são ao mesmo tempo determinados e
originados em sua atualidade.
O sentido de ser filósofo, em Gramsci, passa, portanto, por um processo
de construção que busca tornar possível a elevação do senso comum para o
bom senso, num sentido em que uma filosofia da práxis pode apresentar-se,
inicialmente, em atitude crítica, como superação da maneira de pensar
precedente e do pensamento concreto existente (ou no mundo cultural
existente). que para ele, neste sentido, não se pode separar a filosofia da
história da filosofia, da mesma forma que não se pode separar a cultura da
história da cultura. Assim, Gramsci reforça o sentido histórico da cultura,
colocando-a num patamar de possibilidade tal qual a elevação do homem à
condição de filósofo que lhe é possível ao transpor-se do senso comum à
consciência filosófica, analogamente, o homem pode ascender da cultura para
a crítica cultural.
Gramsci, ainda reforça a necessidade de concentrarmos forças racionais
na busca por uma concepção que forneça um sentido consciente, que precisa
ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente, e aponta para a
impossibilidade de separação entre uma filosofia científica e a filosofia vulgar
e popular,
Mas, nesse ponto, coloca-se o problema fundamental de toda
concepção do mundo, de toda filosofia que se transformou em um
movimento cultural, em uma “religião”, em uma “fé”, ou seja, que
produziu uma atividade prática e uma vontade nas quais ela esteja
contida como “pressuposto” teórica implícita (uma “ideologia”,
pode-se dizer, desde que se ao termo “ideologia” o significado
mais alto de uma concepção do mundo, que se manifesta
implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em
todas as manifestações de vida individuais e coletivas) isto é, o
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problema de conservar a unidade ideológica em todo o bloco social
que está cimentado e unificado justamente por aquela determinada
ideologia. (GRAMSCI, 1999, pp. 98-9)
Para que haja um avanço neste processo da compreensão crítica de si
mesmo, Gramsci aponta para alguns procedimentos primordiais a serem
considerados, os quais perpassam por uma luta de hegemonias políticas,
primeiramente no campo da ética, seguido pelo campo da política, a fim de
atingir uma elaboração superior da própria concepção do real. Pois, não se
pode separar a filosofia da política, antes, deve-se demonstrar que a escolha
crítica de uma concepção de mundo, são, também elas, fatos políticos
(GRAMSCI, 1999).
Assim, a consciência política é a primeira fase de uma autoconsciência
onde teoria e prática se unificam, não de uma forma mecânica, mas como
consequência de um devir histórico que gradativamente progride dentro das
lutas hegemônicas no processo de distinção e de separação, e progride até a
aquisição real e completa de uma concepção de mundo. Então, o processo para
tal condição filosófica dá-se nesse desenvolvimento político que o conceito de
hegemonia representa, e supõe necessariamente uma unidade intelectual e
uma ética adequada à uma concepção do real que superou o senso comum e
tornou-se crítica (GRAMSCI, 1999).
Nos processos para alcançar essa visão crítica de mundo, Gramsci
chama a atenção para a necessidade de aprofundarmos sobre um estudo que
possibilite o conhecimento de como se dá a estrutura ideológica de uma classe
dominante, ou seja, a organização material voltada para a manutenção, defesa
e desenvolvimento a “frente teórica ou ideológica”. Nessa estrutura ideológica,
a impressa é considerada a mais dinâmica, mas não a única, pois tudo que pode
exercer influência sobre a opinião pública, ainda que direta ou indiretamente,
faz parte dessa estrutura. Assim, pode-se considerar como aparelho originário
desta influência tanto as bibliotecas, as escolas, os círculos, os clubes, até a
arquitetura, quanto à disposição e os nomes das ruas (GRAMSCI, 2001).
Ou seja, a relação entre cultura e ideologia tendo como base o conceito
de hegemonia apresentado por Gramsci, entendendo-a como processo no qual
uma classe dominante tem sua visão de mundo imposta e aceita pelos
indivíduos por ela dominados, faz uso para tanto, dos aparelhos de hegemonia
que podem ser instituições de estado, mas também os não oficiais como livros,
filmes etc. Portanto a relação entre cultura e ideologia precisa ser considerada
como base para a compreensão do processo de dominação nas sociedades
capitalistas (GRAMSCI, 2001).
Gramsci ainda considera que não seja possível aceitar uma população
totalmente imersa em uma neblina ideológica homogênea e paralisante, pois
mesmo na condição de dominado, ele acredita que não seja possível ao homem
uma cegueira totalizante que o torne incapaz de pensar criticamente, de se
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debelar, de se mobilizar e assim lutar por alternativas. Isto é, mesmo na
consciência dos oprimidos, uma complexa combinação contraditória de
valores, resultante tanto da visão de seus governantes quanto, em alguma
medida, derivado do próprio saber e suas experiências políticas e sociais.
Na teoria política de Gramsci, portanto, ideologia, não pode advir de um
conceito unissonante, mas complexo, pois ao mesmo tempo que pode ser
retratado como recurso que mascara a realidade, pode surgir como capaz de
cimentar a constituição de subjetividades políticas. Assim, se a ideologia não
constitui um reflexo das estruturas materiais por ter uma autonomia relativa,
ela também não poder ser uma simples criação da imaginação ilusória e
deformada das pessoas, uma vez que é um fato real e histórico. Nesse sentido,
Gramsci é enfático em ressaltar que é por meio da ideologia que as camadas da
população podem adquirir consciência crítica na direção da transformação
social (SEMERARO, 2006).
II. Vida social e cultura
Em O capital, Marx (2005) explicita que nos processos em que se deram
o desenvolvimento da indústria, pode-se observar as transformações entre o
que se considera primeira etapa do desenvolvimento da produção capitalista,
baseada na cooperação simples do trabalho para o processo de produção
dividido em várias operações realizadas por diferentes operários. Ou seja, o
período da manufatura que tinha sua produção baseada na divisão de trabalho
e na técnica artesanal cedeu lugar a grande indústria mecânica, cujo emprego
das máquinas, transformou o operário em seu apêndice trazendo como
características, o prolongamento do dia de trabalho, a incorporação de
mulheres e crianças, a formação de um exército industrial de reserva e o
aumento do proletariado, assim como seu empobrecimento.
Vale relembrar que o capitalismo como sistema que começou com a
revolução industrial inglesa tornou-se um fenômeno histórico de alcance
mundial durante o século XIX. Aliás, Marx conseguiu fazer a anatomia da
economia política desse modo de produção construindo uma teoria geral,
exatamente a partir da metade desse século, quando ainda vigiam uma ampla
competitividade e o período de laissez-faire na Inglaterra. Pode-se extrair
dessa análise os elementos invariantes dessas relações sociais e que estariam
presentes em todas as formas de capitalismo existentes até hoje. De acordo
com Harvey (2014), são consideradas três as características fundamentais
gerais do capitalismo:
1. Na sua própria forma de constituição, o capitalismo é orientado para o
crescimento contínuo, pois a acumulação de capital, pedra de toque de todo
o sistema, só pode ser garantida com o crescimento ininterrupto dos lucros.
Dessa forma, o capitalismo precisa desse crescimento em forma de valores
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reais, e para alcançar esses objetivos ele precisará romper com todas as
barreiras políticas, sociais, geopolíticas ou ecológicas;
2. Esse crescimento inevitável e contínuo está baseado na exploração do
trabalho vivo na esfera da produção. Assim, mesmo que o trabalho participe
e até receba uma parte desse valor, a base do crescimento para o capitalista
está sempre na diferença entre o que o trabalho retém e a totalidade do valor
que ele cria. É inexorável para que o capitalismo se perpetue, o controle
desse trabalho, tanto na produção, quanto no mercado;
3. Para continuar exercendo esse controle sobre o trabalho e
consequentemente o crescimento contínuo dos lucros, o capitalismo precisa
estar se renovando o tempo todo, provocando através de mudanças
tecnológicas e organizacionais, o aumento crescente da produtividade do
trabalho, fonte essencial de criação do valor e para isso continuar ocorrendo
é fundamental o envolvimento de um marco regulatório que irá envolver a
criação de um aparelho de estado, sistemas políticos de representação,
ideologias etc.
No período denominado como modernismo o termo é controverso,
porém inevitável
6
–, segundo o qual a cultura seria reconhecida na longa
travessia de aproximadamente século e meio desde fins do século XVIII, os
inúmeros ciclos de expansão e crise do capitalismo se fariam acompanhar da
emergência e da decadência de uma diversidade exuberante de estilos e
manifestações artísticas conforme o interesse peculiar do mercado mundial de
arte, do gosto hegemônico da burguesia e, até mesmo, dos empuxos
contraculturais singulares encabeçados por artistas e intelectuais burgueses. É
importante enfatizarmos que independentemente da forma como a evolução e
o esgotamento das linguagens artísticas e os embates teóricos no campo da
estética ficaram conhecidos no período, a cultura já tinha sido subsumida pelo
valor, deixando como lastro o pressuposto de humanidade como um fim em
si. Integrada no processo geral de produção de mercadorias, a cultura e a arte
se viram cada vez mais esgotadas levando o homem a uma constante alienação
da realidade social e de si mesmo (FISCHER, 2014). Na concepção de Marx
(2004), essa alienação, traduzida pela contradição entre realidade e aparência
no mundo em que vivemos, é definida por fetichismo. Harvey esclarece que
este conceito
se referia a várias máscaras, disfarces e distorções do que realmente
acontece ao nosso redor (...). A contradição entre realidade e
aparência é, de longe, a contradição mais geral e disseminada que
temos de enfrentar quando tentamos resolver as contradições mais
6
Para Perry Anderson (1985), a noção de modernismo incorre desde a origem num
equívoco conceitual histórico, logo, conforme será abordado, a noção de pós-
modernismo seria um duplo equívoco.
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específicas do capital. O fetiche entendido dessa maneira não é uma
crença absurda, uma simples ilusão ou uma sala de espelhos (apesar
de muitas vezes parecer). A questão, na verdade, é que o dinheiro
pode ser usado para comprar mercadorias e que podemos viver sem
muitas preocupações, a não ser a respeito de quanto dinheiro temos
e quanto conseguimos comprar com ele (HARVEY, 2016, p. 19).
A desumanização resultante da fragmentação do homem e de seu
mundo, sob a lógica capitalista, encontrou no niilismo o modus faciendi da
intelectualidade burguesa rebelde, e a arte iniciou a longa trajetória ao
encontro de sua própria morte. Se o mundo burguês industrializado e
objetificado havia se tornado estranho aos seus habitantes, escritores, músicos
e artistas se puseram em campo para agarrar qualquer coisa que lhes
garantissem uma possibilidade de romper com a casca rígida dos objetos. Tal
dessocialização e desumanização produziria na evolução dos estilos artísticos
no decorrer da história, uma ausência de correspondência às necessidades
humanas concretas e um total afastamento das relações sociais (FISCHER,
2014).
A partir da segunda metade do século XX, os recorrentes empuxos
observados no interior da cultura acabariam por redesenhar o estatuto
teleológico do modernismo conhecido até então. Na ausência de uma
denominação que se ajustasse à distopia presente para designar qualquer coisa
cultural contida pelo modernismo, desde que o mesmo não o fosse mais,
cravou-se provisoriamente um termo indefinido que permaneceria
indefinidamente na falta de outro: pós-modernismo
7
. De todo modo, dado que
a extraordinária expansão do valor havia globalizado as relações de produção,
o poder de estado, as estruturas da própria psique etc., tornando a vida social
uma expressão cultural, pouco ou quase nada restou a ser apreendido como
original ou simplesmente verdadeiro (JAMESON, 1996). Segundo Harvey
(2014), as estruturas das formas culturais do pós-modernismo passam a
expressar o sentido do aparecimento de uma sociedade pós-industrial inserida
numa nova referência, a qual se abre para uma perspectiva radical de poder no
qual:
O capital foi reempoderado em relação ao trabalho pela produção de
desemprego e desindustrialização, imigração, deslocalização e toda
sorte de mudanças tecnológicas e organizacionais (a
subcontratação, por exemplo) (...). As concepções mentais do
mundo foram reformuladas, na medida do possível, com o recurso
aos princípios neoliberais da liberdade individual, necessariamente
incorporados no livre-mercado e livre-comércio. Isso exigiu a
regressão do estado de bem-estar social. (...) Novas formas de nicho
7
Dado o que expusemos na nota anterior, o jogo de palavras que impusemos aqui é
proposital e conveniente.
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de consumo e estilo de vida individualizados também apareceram de
repente, construídos em torno de um estilo pós-moderno de
urbanização (a Disneyficação dos centros das cidades e a
gentrificação), além do surgimento de movimentos sociais em torno
de uma mistura de individualismo egocêntrico, política de
identidade, multiculturalismo e preferência sexual. (HARVEY,
2014, p. 110)
Em linhas gerais, o s-modernismo
8
é destituído de qualquer utopia
(política, artística, pessoal, etc.), e se constitui de um processo acelerado de
coisificação em que questões como a essência e a verdade cederam lugar
apenas à aparência das coisas. Num amplo sentido pode-se dizer que é o
processo de abandono radical da natureza enquanto algo que se opõe à
humanidade, sendo o mundo natural encarado como uma extensão da cultura,
na qual subjaz a lógica da rentabilidade. Sobre o processo de coisificação das
relações sociais daí decorrente, Sennett, em sua obra A cultura do novo
capitalismo (2006), aponta para uma reflexão sobre as relações sociais dentro
do processo de fragmentação inerente às relações de trabalho estabelecidas
nesse novo capitalismo. Nesse sentido, o sociólogo realiza uma abordagem a
partir do momento histórico vivido na década de 60, em que, jovens imbuídos
de ideais libertários, tomavam como alvo as instituições como, as grandes
corporações e os governos inflados, os quais, dado seu tamanho, sua
complexidade e rigidez pareciam prender os indivíduos num tenaz de ferro. Os
insurgentes dessa juventude acreditavam que desmontando as instituições
seriam capazes de gerar comunidades com relações pessoais diretas de
confiança e solidariedade, constantemente renovadas por novas negociações
que proporcionassem um reino comunitário com pessoas sensíveis às
necessidades uma das outras. O que se viu, no entanto, foi uma fragmentação
das grandes instituições deixando em estado dilacerado a vida de muitos
indivíduos, cujos locais de trabalhos se assemelhavam com o ir e vir de uma
estação de metrô, com a vida familiar sob desorientação pelas exigências do
trabalho, a migração como ícone da era globalizada. Ou seja, o
desmantelamento das instituições, não gerou maior senso comunitário, ao
contrário, essas novas instituições em condições sociais instáveis e
fragmentárias contribuíram para relações de curto prazo, onde a migração de
um trabalho e/ou uma tarefa para outra com tamanha velocidade, obriga o
indivíduo a improvisar a narrativa de sua própria vida, ao mesmo tempo em
que a exigência pelo desenvolvimento de novas capacidades potenciais, torna-
se inevitável diante das demandas contidas nessa nova realidade. Como
resultado, tem-se assim, um indivíduo voltado para o curto prazo, preocupado
8
Ver nota 6.
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com as habilidades potenciais e disposto a abrir mão das experiências passadas
em busca sempre do novo (SENNET, 2006).
Essa instabilidade visível, inerente ao modelo capitalista, que se
apresenta nas turbulências dos mercados, na dança apressada dos
consumidores, no vale tudo pela ascensão social, no colapso e transferência
das fábricas, na migração em massa de trabalhadores em busca de melhores
ou algum emprego, constituíram um processo que desencadeou numa
economia de disseminação global da produção, do mercado, das finanças e do
advento das novas tecnologias, numa forte e inevitável incerteza:
As pessoas que tenho entrevistado, especialmente na última década,
mostram-se demasiado preocupadas e inquietas, muito pouco
resignadas com seu próprio destino incerto sob a égide da mudança.
O que mais precisam é de uma âncora mental e emocional; precisam
de valores que as ajudem a entender se as mudanças no trabalho,
nos privilégios e no poder valem a pena. Precisam, em suma, de uma
cultura. (SENNET, 2006, p. 168)
Não obstante o debate sobre o lugar da cultura nas relações sociais de
produção estar rendido à pressão do mercado global, sendo apresentado como
capaz de homogeneizar o planeta, na realidade as diferenças locais estão sendo
aprofundadas (SANTOS, 2012). Para Santos, o culto ao consumo é estimulado
mediante a busca por uma estandardização, a serviço de marcas mundiais,
distanciando ainda mais da construção de uma perspectiva cidadã, ou seja,
esse processo, da forma como está configurado, transforma o consumo em
ideologia de vida, fazendo de cidadãos meros consumidores, massificando e
padronizando a cultura e concentrando a riqueza nas mãos de poucos. Em suas
palavras:
Um mercado avassalador dito global é apresentado como capaz de
homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças locais são
aprofundadas. uma busca por uniformidade, ao serviço dos
atores hegemônicos, mas o mundo se torna menos unido, tornando
mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal.
Enquanto isso, o culto ao consumo é estimulado. (SANTOS, 2012, p.
19)
Sobre essa cultura globalizada, colocada por Santos, o economista e
filósofo francês, Latouche (1996), reconhece a cultura ocidental, como sendo
“a única cultura que verdadeiramente se mundializou, com uma força, uma
profundidade e uma rapidez jamais vistas, (...) a única cultura dominante que
não consegue assimilar seus próprios membros”. A partir do desenvolvimento
tecnológico do ocidente e da força com que a academia projetou seus
pensadores, artistas, filósofos, cientistas, a cultura ocidental assumiu poderes
simbólicos de uma dominação insidiosa, na qual novos agentes repousam
sobre essa dominação cultural: ciência, técnica, economia e o imaginário,
como valores do progresso. Nesses termos, Latouche considera ainda que
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a relação entre Cultura de elite e a dominação da cultura ocidental
está no fato de terem transformado os fluxos culturais em “mão
única”, de onde projetam para as demais partes do mundo através
dos meios de comunicação (jornais, rádios, televisões, filmes, livros,
discos, vídeos), imagens, palavras, valores morais, normas jurídicas
e códigos políticos que informam aos seus receptores os seus desejos
e necessidades, as formas de comportamento, as mentalidades, os
sistemas de educação que devem ter, porém asfixiando toda
criatividade dos receptores passivos de tais mensagens
(LATOUCHE, 1996, p. 16).
Segundo Reis, os meios de comunicação cuja veiculação realiza-se “pela
extensa cadeia midiática, incluindo meios impressos, TV, rádio, cinema e,
principalmente, a Internet com suas redes sociais” (2015, p. 14), mediante suas
intensas campanhas publicitárias, tem sido responsáveis pela sedução da
população trabalhadora na busca de realização de seus anseios ao ponto de
gestos simples como o ato de cozinhar entre família e amigos sejam
transformados em refeições “não mais para serem simplesmente sentidos pelo
paladar, mas, tão somente para comercializarem uma extraordinária
quantidade de produtos, restaurantes e serviços de profissionais da cozinha”
(REIS, 2015, p. 14). Reis acrescenta ainda que,
na esfera cultural propriamente falando as produções teatrais, o
cinema, as artes plásticas, salvo as exceções de praxe, convergem
para o mercado concorrendo com os subprodutos televisivos
produzidos pela indústria cultural de massa. Em todas essas
circunstâncias a dimensão criativa da atividade humana é
simplesmente elidida ou travestida pelo consumo conspícuo de algo
fadado à obsolescência. No sentido contrariamente dialético dessa
sedução se encontram aqueles que praticarão o terrorismo privado
e de estado contra a classe trabalhadora: banqueiros usurários,
rentistas, empresários, agentes públicos no controle das economias
do estado etc. (2015, pp. 14-5).
Ou seja, a dimensão da criatividade humana travestida pelo consumo
conspícuo conforme vimos, transformou a vida em filme, evocando o título da
obra Vida, o filme. Como o entretenimento conquistou a realidade, de Neal
Gabler (1999), na qual o escritor estadunidense apresenta uma análise sobre
como a mídia, por meio da
aplicação deliberada de técnicas teatrais em política, religião,
educação, literatura, comércio, guerra, crime, em tudo, converteu-
os todos em ramos da indústria do entretenimento, na qual o
objetivo supremo é ganhar e satisfazer uma audiência (REIS, 2015,
p. 16).
Chamando ainda a atenção para o
momento em que a cultura se submete à tirania do entretenimento
e a vida se torna um filme, os críticos reclamam que os Estados
Unidos retrocederam a uma “cultura carnavalesca”, ou “cultura do
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lixo”, onde tudo é embrutecido, vulgarizado e banalizado, (...) onde
os laços comunitários antes forjados por tradições e valores morais
comuns são hoje forjados pelas manchetes dos tabloides, por
mexericos e pela mídia (REIS, 2015, p. 16).
Designada a partir do latim inter (entre) e tenere (ter), inter tenere,
entretenimento significa “um espetáculo público ou mostra destinada a
interessar ou divertir”, ou nas palavras de Gabler, o entretenimento “enterra
suas esporas em nós e nos puxa, mantendo-nos cativos, levando-nos cada vez
mais para dentro dele (o entretenimento), e de nós mesmos, ou pelo menos de
nossas emoções e sentidos, antes de nos libertar” (REIS, 2015, p. 25).
III. Estética e educação
Os sentidos aprisionados de que fala Gabler pertencem a uma categoria
complexa e sobretudo importante na literatura marxiana, em especial nos
estudos do campo da estética: o estranhamento. Marx a abordou
primeiramente em 1844, nos escritos de Paris, no excerto “Trabalho
estranhado e propriedade privada” (2004, pp. 79-97), do qual recuperamos de
forma sintética a ideia de que sendo o valor a expressão manifesta do
capitalismo, e o corpo do trabalhador a materialidade concreta dos sentidos
humanos, tem-se que o processo de produção sob o capitalismo é, a um
tempo, o processo de estranhamento do corpo do trabalhador em relação
àquilo que ele produz (a cultura humana), e também o processo de subsunção
do corpo do trabalhador a uma sensibilidade vicária, uma fantasmagoria. Em
outras palavras, Marx aponta que na medida em que o corpo do trabalhador é
mantido apenas fisicamente, os seus sentidos ou se se preferir a sua
sensibilidade se tornam “sem valor e indignos, deformados, bárbaros,
impotentes, pobres, mais servis à natureza” (2004, p. 82). Nos termos do
próprio Marx:
O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privações
para o trabalhador. Produz palácios, mas produz cavernas para o
trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador.
Substitui o trabalho por máquinas, mas lança uma parte dos
trabalhadores de volta a um trabalho bárbaro e faz da outra parte
máquinas. Produz espírito, mas produz imbecilidade, cretinismo
para o trabalhador. (2004, p. 82)
Ora, se em sua origem natural o homem é provido de sentidos mediante
os quais ele é capaz, contrariamente aos animais, de “reproduzir a natureza
inteira” (2004), temos que na condição concreta ora examinada o homem “não
se sente bem”, é infeliz posto que sua physis se encontra mortificada e seu
espírito arruinado (2004, pp. 82-3). Estranhados do mundo dos objetos que
produz e que o cerca (a cultura), destituídos de liberdade criativa, os sentidos
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do corpo do trabalhador se encontram limitados quanto à fruição das leis da
beleza (MARX, 2004).
Para Marx, a verdadeira ciência é aquela que começa pela natureza,
logo, sendo a percepção sensível “uma forma dupla de consciência sensível e
necessidade dos sentidos”, será ela a base de todo conhecimento científico.
Portanto, ao considerar a sensibilidade como um elemento fundador do
próprio corpo, e assim, inaugurador de todo o conhecimento, Marx aponta o
apenas para uma reabilitação da percepção sensível ou sensorial, mas também
para uma revalorização do conhecimento artístico. De acordo com Marx,
os sentidos do homem social são diferentes dos do homem que não
vive em sociedade. pelo desenvolvimento objetivo da riqueza do
ser humano é que a riqueza dos sentidos humanos subjetivos, que
um ouvido musical, um olho sensível à beleza das formas, que numa
palavra, os sentidos capazes de prazeres humanos se transformam
em sentidos que se manifestam como forças do ser humano e são,
quer desenvolvidos, quer produzidos. (...) A formação dos cinco
sentidos representa o trabalho de toda a história do mundo até hoje
(MARX, 2004, p. 110).
Ao considerarmos, no entanto, a relação do corpo humano numa
sociedade que passou a se apresentar sob a perspectiva do sistema capital e
seu avanço tecnológico, na qual as relações de trabalho, transformaram o
corpo sensível num impulso único de possuir, encontramos, assim, os sentidos
físicos e intelectuais substituídos pela simples alienação de todos — no sentido
de ter. Ou seja, a lógica do capitalismo reduz a plenitude corpórea de homens
e mulheres à simplicidade crua e abstrata da necessidade, porque quando a
mera sobrevivência material está em jogo, as qualidades sensíveis dos objetos
intencionados por essas necessidades não se tematizam. Sobre esse aspecto,
Reis (2004) chama a atenção para a forma com a qual Marx, ao apreender a
maneira em que o mundo construído se apresenta, desde as formações sociais
primitivas às mais complexas, o apresenta por meio de uma “metáfora
materializada do corpo trabalhador”, no qual, todo o sistema de produção
econômica constitui o elemento que age sobre o processo de “descorporificação
e espiritualização de homens e mulheres”. Ainda acrescenta que:
Na medida em que a plenitude sensível do indivíduo é reduzida ao
impulso único de possuir, isto é, na medida em que a plenitude
corpórea de homens e mulheres é reduzida ao simples ato de suprir
as suas necessidades elementares, faz sentido afirmar a ocorrência,
nesse nível, de uma ruptura da vida sensível. (REIS, 2004, p. 233)
Ou seja, por um lado, temos o trabalhador devastado pela necessidade,
sem tempo para usufruir da arte, cultura, lazer, por outro lado, o desocupado
das classes altas, alienado da vida sensível, percebe-se um aleijão que, pela
ausência de necessidade, desenvolve desejo pelas circunstâncias materiais que
se torna perversamente auto produtivo, representando apetites refinados,
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antinaturais e imaginários que crescem luxuriosamente em suas extremas
sutilezas. Isto é, o é a apropriação de um objeto pelo uso que corrói a sua
sensibilidade, mas a submissão do objeto ao valor e à consequente
desumanização da sua necessidade de fruição
9
.
Sob esse aspecto, Lukács aponta para a possibilidade de um processo
desfetichizador da obra de arte como um meio de recuperar a percepção
sensível do corpo do trabalhador. Para ele, a criação artística deve partir de um
processo social geral e organicamente articulado no qual o homem torna seu,
o mundo por meio da própria consciência. Nesse sentido, o crítico tanto quanto
o artista ao aspirarem à objetividade do realismo, é necessário que o façam
como resultado da “complexa dialética objetiva de essência e fenômeno, (...)
na inter-relação que liga sempre o escritor à realidade refletida, sua relação de
influência recíproca com a concepção de mundo e o estilo artístico” (OLDRINI,
2002, p. 58).
Dessa forma, a realidade objetiva implica, portanto, na não
neutralidade mediante os fenômenos sociais pois, tal objetividade não se acha
contraditoriamente em relação ao fator subjetivo da arte. E sim, no sentido de
totalidade, onde o artista não representa coisas ou situações estáticas, mas as
investiga, buscando conhecer e definir o caráter dentro das relações dos
processos sociais. Ou seja, numa tomada de consciência, está implícita a
tomada de posição, que a concepção de que o artista seria um espectador
passivo desses processos, é uma ilusão, uma forma de autoengano, ou ainda,
uma evasão, uma fuga diante dos grandes problemas da vida e da arte. Oldrini
acrescenta a este debate que a obra de arte para Lukács deve ser compreendida
como uma necessidade interna da nova teoria que está sendo
construída exatamente pelo fato de que, melhor do que qualquer
outra tendência artística, ela traz em si a consciência dialética da
“totalidade”. Se a “representação” realista vale mais do que a crônica
e a reportagem, se o “narrar” vale mais do que o “descrever”, é
porque quem narra e representa penetra, com meios artísticos, mais
profundamente nas “leis dialéticas objetivas” da estrutura do real
(OLDRINI, 2002, p. 57).
Temos então contrapostos narração e descrição. Enquanto nesta última
se encontra em de igualdade a ação humana e as coisas esvaziadas do
sentido da vida social, ao contrário disso na narração encontramos um
ordenamento hierárquico do enredo, evitando as digressões desnecessárias,
9
A se considerar correto o pressuposto de que “a maneira como os indivíduos
manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são” (MARX; ENGELS, 2002, p.
11), temos que, nas condições sociais atuais, pobres e ricos compartilham uma
existência dialeticamente parasitária, como tão bem ilustrou o cineasta coreano Bong
Joon-ho no seu premiado filme Parasita (2019).
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onde os detalhes são importantes quando se desencadeiam na ão humana,
e estão a serviço delas. Ou seja, para Lukács o potencial utópico da arte está na
sua capacidade para expressar a essência genérica. A obra de arte é produto de
uma subjetividade que transcende a individualidade e seu condicionamento
histórico e de classe para configurar e plasmar em sua singularidade, universal
e permanente: a memória da humanidade. Esta particularidade da arte para
captar os momentos essenciais da história da evolução humana, permite
desenvolver nos homens uma autoconsciência sobre sua própria essência
genérica. Esta essência genérica capturada através da arte, não está
identificada com uma suposta relação com o tempo, mas sim, com a história
concreta do homem.
Lukács definirá como categorias indissociáveis do homem, o trabalho, a
linguagem, a cooperação e a divisão social do trabalho, entendidas como
intrínsecas à sociabilidade humana, que por sua vez originam níveis mais
complexos do ser social, constituindo a ideologia, cujas formas mais
específicas o o direito, a política, diretamente mais ligadas a práxis social e
numa forma mais mediatizada, a filosofia e a arte. Ou seja, tanto a cultura
quanto a arte, contrariamente às visões formalistas e elitistas, compreendem
uma dimensão humana essencial. Ao fazer referência à arte como pioneira da
generidade para si, Lukács chama a atenção para uma arte que seja capaz de
produzir uma consciência do indivíduo diante da sua situação particular, o que
não significa que a arte infira efeitos diretos na prática cotidiana do receptor,
mas que ela seja capaz de produzir uma revelação de novas possibilidades de
se compreender no mundo (ALBINATI, 2014, p. 266).
É nesse sentido que a arte pode adquirir a possibilidade de gerar no
indivíduo, a sua própria concepção do real, tal como descrito em Gramsci, a
compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de uma luta de
hegemonias políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética,
depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da
própria concepção do real” (GRAMSCI, 1999, p. 103). A partir dessa
formulação emerge uma ideia da organicidade entre forma e conteúdo na
dimensão estética e sua conexão com as relações entre estrutura e
superestrutura. Nesse ponto Gramsci ressalta a dívida da arte em relação à
história, pois, é a partir desta que através da atividade revolucionária que
poderão ser criados, o novo homem e as novas relações sociais
10
. A concepção
10
Ao formular a sua concepção de arte dentro de uma dimensão estética do fato artístico, o
pensador sardo propõe que ela deve representar uma síntese dinâmica entre a forma e o
conteúdo, ou seja, a luta por uma nova cultura advinda de um novo humanismo, tendo como
fundamento a fusão entre a crítica dos costumes das concepções e sentimentos do mundo e a
crítica estética.
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gramsciana de arte fica mais clara ainda quando ele reconhece, de certa forma
aproximando-se das concepções de Lukács, que momentos em que essa
relação se inverte e é a arte que faz a história.
Lukács irá defender uma arte a partir do que ele denominou de realismo
crítico. Tal conceito não sugere uma escola, nem tampouco um estilo, mas sim,
um procedimento com relação a como a realidade se constitui, isto é,
historicamente, e não datada. O realismo para Lukács é uma trajetória de
autoconhecimento do homem, onde o artista examina e apreende as
possibilidades significativas da realidade, tomando posição perante essa
realidade que se traduz na seleção e reordenamento dos elementos que compõe
a obra de arte. A relação entre criador e receptor, considerando a capacidade
comunicativa e evocativa da obra de arte, proporciona possibilidades de auto
constituição do humano, elevado a uma consciência crítica da realidade que o
cerca, tornando-o capaz de sair do homem inteiro da cotidianidade ao homem
inteiramente (ALBINATI, 2014, p. 267). Na sua visão do realismo crítico,
Lukács desenvolve uma crítica à arte vanguardista, que aparecia implícita
desde sua obra Teoria do romance, onde apontava para a crise estética
presente na modernidade decorrente da decadência do ocidente, em que a
literatura do romance, desprovida do caráter imanente e orgânico das
Tragédias da Grécia antiga, encontra-se num mundo reificado, no qual o
indivíduo perdeu seus laços com a comunidade. O romance, portanto, no qual
o herói luta em nome dos valores que a sua época renega, provoca nesse
sentido, uma distância entre o mundo objetivo e subjetivo. Ou seja, realismo é
um método para reproduzir a realidade e para tanto, pressupõe uma atitude
do escritor perante o real. Logo, o realismo vem dos gregos até os dias de hoje,
cujo modelo no qual se baseia encontra em Balzac sua melhor expressão, ao
mesmo tempo em que Lukács apresenta uma visão matizada, valorizando a
atitude perante o real, que se modifica o tempo todo, buscando a cada mudança
captar as novas etapas da realidade, tal como se segue.
Um aspecto central considerado por Lukács (1969) é o problema da
fetichização da arte na sociedade do valor. Nesse sentido, ele chama a atenção
para a necessidade de o artista romper esse invólucro a fim de desvelar o
núcleo humano da obra
11
. Outro aspecto importante destacado pelo filósofo
húngaro é o reconhecimento, extraído de Hegel, de que a obra de arte é uma
manifestação sensível, na qual, aparência e essência, forma e conteúdo estão
traduzidas numa unidade. Assim, Lukács enfatizará que não deve haver
predomínio de um elemento sobre o outro pois, quando se destaca
unilateralmente, a forma ou o conteúdo, a obra de arte fracassa. A ênfase dada
11
No caso específico da literatura, do romance, isso significa dizer que é necessário
colocar em primeiro plano a centralidade da ação, isto é, a ação dos personagens.
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à forma pelo naturalismo e ao conteúdo pelo expressionismo, exemplificam
respectivamente como o primeiro faz uma descrição da aparência imediata, e
o segundo promove uma deformação intencional da forma para tornar visível
o conteúdo. Nesse sentido, insistindo na sua crítica ao vanguardismo, Lukács
considera que, num primeiro momento, a classe burguesa age de forma
revolucionária e progressista, tem interesse em desvendar a realidade, e dentro
deste contexto é que aparecem o romance realista, a economia clássica inglesa
e a democracia. Tal produção literária, denominada como romance burguês,
se apresenta como uma arte que vai tratar os homens como produtos da
sociedade e acompanhar a afirmação dessa classe burguesa na história. Porém,
com o levante da classe operária contra a burguesia, esse pensamento inicial
burguês sofre mudanças, perdendo a dimensão do futuro, portanto, do
processo de desenvolvimento da própria história. O romance realista se torna
naturalista, a economia clássica vira economia vulgar. Assim, seus interesses
se voltam não mais em conhecer como funciona a sociedade, mas para um
pensamento manipulador no qual a democracia vai se restringir ao liberalismo
e a participação popular é posta de lado.
Essa decadência ideológica da burguesia marcou o fim de um ciclo
histórico, a partir do que se modificou também a concepção do capital em
relação a arte e o escritor burguês se situou diante de uma mistificação
crescente que penetra a consciência do homem e o impede de ver o nexo real
que compõe a vida social. Tal situação geraria uma literatura com visões
objetivistas que, por um lado, se apegou a aparência do real, e sucumbiu ao
conformismo, retratando os resultados finais da deformação capitalista do
homem, e por outro lado, os escritores procuraram refúgio na subjetividade da
alma, inteiramente autônoma em relação ao mundo. Nesse sentido, Lukács
(1965) enfatiza sua crítica ao ressaltar que esses escritores apenas reproduziam
a aparência fetichista de um mundo burguês, não acreditando mais na
possibilidade do homem de modificar-se. Em suas palavras:
A hostilidade da ordem de produção capitalista à arte se manifesta
igualmente na divisão capitalista do trabalho. Um maior
desenvolvimento na compreensão desse aspecto do tema nos
remeteria, ainda uma vez, ao estudo da economia como uma
totalidade. Do ponto de vista do nosso problema, vamos nos
contentar em fixar aqui um princípio, que será, novamente, o
princípio do humanismo, o princípio que a luta emancipadora do
proletariado herdou dos grandes movimentos democráticos e
revolucionários precedentes, herança elevada a um plano qualitativo
superior, ou seja, a reinvindicação do desenvolvimento harmônico e
integral do homem. Ao contrário, a hostilidade à arte e à cultura,
própria do sistema capitalista comporta o fracionamento da
totalidade concreta do homem em especializações abstratas.
(LUKÁCS, 1965, p. 20)
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Para Reis, “não seria exagero considerar o romantismo o marco
inaugural do sentimento libertário que mais adiante impregnaria os
movimentos vanguardistas no século XX” (2015, p. 218), todavia,
considerando as sucessivas rupturas estilísticas que ocorreram nos diversos
períodos marcados por aqueles movimentos, é necessário enfatizar que elas
esbarraram na sua pequena dimensão política e insuficiente inserção social,
pois as supostas revoluções artísticas lideradas por esses movimentos, ficaram
apenas na aparência, por deixarem de lado a essência das relações sociais.
Nos desdobramentos das reflexões sobre a arte até aqui desenvolvidas,
buscaremos sintetizar a visão de Lukács sobre a música, tema do volume
quatro da sua Estética (1967). Ali o filósofo propõe examinar a questão da
mimese musical, a partir do que buscaremos extrair, alguns elementos a
respeito da relação da estética musical com a formação humana.
Lukács início ao seu exame da música tendo como referência um
extenso e detalhado estudo do professor grego Theophratos Georgeadis acerca
da música e do ritmo entre os gregos. Nesse estudo, o filósofo húngaro toma
noção de que Aristóteles buscava demonstrar a natureza mimética da música,
afirmando que os ritmos e as melodias musicais podem suscitar no ser humano
sentimentos que variam de acordo com a combinação desses sons na
composição musical, conforme lemos na citação feita por Lukács:
Los ritmos y las melodías se acercan mucho como copias a la esencia
verdadera de la cólera y la dulzura, así como del valor y la mesura, y
de sus contrarios, junto con la naturaleza peculiar de los demás
sentimientos y propiedades éticas. Así lo muestra la experiencia.
Oímos tales melodías y cambia nuestro ánimo. Mas no hay mucha
distancia entre la costumbre adquirida de entristecerse o alegrarse
por lo semejante y el mismo comportamiento respecto de la
realidad. (ARISTÓTELES apud LUKÁCS, 1967, p. 9)
Também Chasin (2008) irá buscar em Aristóteles o reconhecimento da
música como um ato mimético, como expressão da vida afetiva, interioridade
que se exterioriza, subjetividade que sente, onde ritmos e melodias afloram do
interior e sensificam sentimentos, que na prática “ao ouvir tais mimeses, a
alma muda de estado” (CHASIN, 2008, p. 15). Conforme lemos na citação que
faz do filósofo grego, Chasin destaca que:
as peças de música, pelo contrário, contêm atualmente em si
mesmas imitações de caracteres, e isto é evidente, pois que na
própria natureza das simples melodias diferenças [recíprocas], de
modo que ao ouvi-las as pessoas sentem-se afetadas de diferentes
maneiras, e não têm os mesmos sentimentos em relação a cada uma
delas; escutam, umas, com um espírito lamurioso e mais retraído,
como, por exemplo, o modo chamado mixolídio; outras, num estado
suave e brando da mente, como são as melodias livres; outras num
estado de equilíbrio e da maior serenidade, como parece que, entre
todas, alcançam somente as do modo dórico; enquanto que o modo
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frígio infunde entusiasmo aos homens. Estas coisas, com efeito,
foram bem determinadas pelos que estudaram esta forma de
educação, já que eles extraíram a evidência de suas teorias dos fatos
atuais da experiência (ARISTÓTELES apud CHASIN, 2008, pp. 14-
5).
Vemos aqui introduzida uma preocupação com a tomada de
consciência teorética sobre aquilo que os sons manifestam mimeticamente
permitindo-nos apreendê-los na forma de melodia
12
. Ou seja, como Lukács
assinala, a imitação dos sons da natureza não se sem uma consciência
teorética, posto que um salto entre os sons existentes na natureza e a
captação do ouvido humano destes sons até a configuração musical elaborada
pelo homem. Citando Herder, Lukács destacará que, “ningún artista ha
inventado nunca un sonido ni le ha dado un poder que no tuviera en la
naturaliza y en su instrumento; pero sí que lo descubrió, y le oblicon dulce
fuerza a salir a la luz” (HERDER apud LUKÁCS 1967, p. 11). Nesse sentido, é
fundamental considerar que este processo foi possível pela evolução social
do homem. Isto é, o fato de que o som do instrumento seja determinado por
leis naturais ainda que o tenham distinguido de outros produtos do
trabalho: a diferença está no propósito dos efeitos alcançados, a partir do
fenômeno natural simples:
Pues la concepción de la música como una particular especie de
mimesis acentúa enérgicamente con una seguridad dialéctica nada
sorprendente en los griegos, aquello que, desde el punto de vista de
la mimesis, aparece con la música en el cosmos de las artes, y al
mismo tiempo, e inseparablemente, lo que separa a la música de
todas las demás artes, lo que constituye su peculiaridad específica.
No había duda para los griegos de que toda relación humana con la
realidad, la científica igual que la artística, se basa en un reflejo de la
naturaleza objetiva de dicha realidad. Las divergencias internas y
externas entre la música y las demás artes no pudieron nunca
resquebrajar esa convicción de ellos. Por otra parte, los griegos
vieron con toda claridad que el objeto miméticamente reproducido
por la música se distingue cualitativamente de los de las demás
artes: es la vida interior del hombre. (LUKÁCS, 1967, p. 8)
No encontro da música com a realidade considerando o aspecto de seu
reflexo, assim como o objeto-sujeito, ela é inexoravelmente parte da
interioridade humana, da vida emocional humana. Porém, é preciso
considerar que imediatamente e originalmente, esta interioridade não existe
12
A consciência teorética, expressão utilizada originariamente por Marx nos
Manuscritos de Paris (2004), detém um por teleológico que é a educação dos
sentidos. Isto é, a necessidade de provimento da sensibilidade humana de uma
consciência sobre as formas visuais, sonoras, tácteis, palatáveis etc., com a finalidade
social de estabelecermos distinções estéticas.
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em todas as esferas como independente da vida humana, mas sim como
produto histórico-social da humanidade. Ou seja, a música como resultado da
mimese da vida interior, se dá a partir da função que a tem designado todas as
circunstâncias históricas e sociais de toda a cultura. Nesse sentido, a tarefa
filosófica da arte consiste em descobrir as conexões categóricas que se impõem
neste processo, desde que tal função ordenadora da música esteja
essencialmente conectada com a sua materialidade histórica (LUKÁCS, 1967).
Nestes termos, de se considerar as questões entre o original e a
reconfiguração, isto é, no fato de que a música por um lado se expressa a partir
de vibrações que se identificam com precisão matemática, e por outro lado
subjetivo, no que se refere a audição e impressões que lhe é inerente como
consequência das percepções do homem. Recordando que em Marx, a
interioridade do homem presente na sua subjetividade é consequência de sua
percepção sensível, não podemos ignorar que nas condições sociais de
produção capitalista há de se pensar que sem uma operação facilitadora destes
processos de trabalho não será possível obter a liberação da interioridade do
homem. Se considerarmos este fenômeno pelo lado subjetivo, vemos que a
diminuição do esforço para aumentar o efeito do trabalho traz consigo o início
de uma liberação da interioridade, da expansão das sensações que
acompanham o trabalho e, portanto, da vida emocional do homem como um
todo.
Nesse sentido, Lukács relaciona
la posición del hombre entero respecto del trabajo específico de cada
caso, su relación subjetiva con la totalidad del trabajo en su vida, con
las condiciones de trabajo, con las relaciones de trabajo en general,
como contenido de la mimesis de las impresiones [onde a música
configura como] consecuencia necesaria de su esencia estética como
refiguración de la totalidad emotiva, o sea, como mimesis de una
mimesis (1967, pp. 20; 69).
A música circunscrita a partir da estética defendida por Lukács, afigura-
se particularmente no que diz respeito ao seu efeito e o seu lugar na vida dos
homens. A partir das ideias de Platão e Aristóteles no que se refere ao
“significado ético, pedagógico e social da música”, Lukács coloca assim a
música pelo seu efeito catártico como sendo capaz de produzir no homem um
ver-se em um espelho, confirmando a essência de sua própria vida,
precisamente porque mostra, fornecida pela mimese estética, essa
possibilidade, acima do que normalmente se encontra acessível, a uma
consciência sobre as verdadeiras condições humanas. Isto é, por meio da
catarse produzida pela música, o homem experimenta a própria realidade da
vida humana, em comparação com a realidade da vida cotidiana. A música se
distingue, segundo Lukács, das outras artes, bem como a catarse por ela
produzida, pelo fato de que não é sobre a interação dos mundos externos e
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internos, provocando a comoção libertadora, que ela se dá. O que significa
dizer, que a música pode provocar no homem uma subjetividade tão intensa,
capaz de levá-lo a alcançar a sua própria interioridade (LUKÁCS, 1967).
El profundo efecto de la música consiste precisamente en que
introduce al receptor en su mundo, le hace vivir en él y vivenciarlo,
pero, pese a la penetración s profunda, pese a la más vehemente
liberación de las emociones, construye ese mundo siempre como
diverso del yo del receptor, como un mundo distinto de él y
significativo para él precisamente gracias a esa diversidad específica.
La obra de arte musical recibe de fuentes de contenido el carácter de
“mundo” para-sí: de la madura totalidad de las emociones que se
revelan en ella. Sólo cuando esas emociones son, vistas
humanamente, cosa esencial, sólo cuando son capaces de desplegar
a su vez hasta las últimas consecuencias, las emociones que ellas
mismas desencadenan, sólo entonces puede surgir un “mundo” en
el sentido del arte. (LUKÁCS, 1967, p. 81)
Mas nem toda atividade artística produz obras de arte capazes de
cumprir esse papel apontado por Lukács, posto que, na sociedade do valor, a
profunda alienação em relação a tudo aquilo que o indivíduo supõe hoje ser
uma civilização, resulta de uma conta de resultado impossível: quanto mais do
mesmo ele acumula para si, mais profunda é a sua ignorância de saber-se
prisioneiro do mesmo. É o que procuraremos considerar no exame seguinte a
título de conclusão.
IV. Estetização da vida social e a “comunicação do incomunicável”
Partimos nesse texto da exigência de que a crítica da cultura como
reflexo do mundo que realmente existe, deve contemplar o caráter ontológico
dos sentidos como forma de apreender “a riqueza objetivamente desdobrada
da essência humana” (MARX, 2004, p. 110). Para tanto buscamos até aqui
problematizar a cultura e a vida social considerando o papel formador do
campo da estética no seu interior. Não por acaso deixamos para o final o exame
da correlação entre a música e a consciência teorética na formação do homem
singular em busca de um sentido particular para as suas emoções mais
profundas. Nele apontamos que numa sociedade na qual a arte é
sistematicamente submetida à lógica da sociedade do espetáculo (DEBORD,
2017), decerto que a incapacita de elevar o indivíduo à esfera da
particularidade. Como ressalta Lukács, tal condição contemporânea, impõe ao
indivíduo uma solidão ontológica peculiar (1969), empurrando-o, ao fim e ao
cabo, a se defrontar com o dilema universal do nosso tempo: a renúncia da sua
própria condição humana.
É nesse quadro distópico e parasitário que vimos sobressair o aumento
exponencial do abismo entre os poucos indivíduos que têm e a imensa maioria
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daqueles indivíduos que nada possuem
13
. Com efeito, abandonando-se em
meio à decadência que ele próprio criou, o indivíduo do presente faz e refaz os
seus cálculos à maneira de um prestidigitador para manter a sensação de
satisfação que ora assume a forma de uma fantasmagoria moral, ora a forma
de uma fantasia narcísica. Subordinada sistemicamente ao valor, a vida social
sua economia, organizações jurídicas, religiosas, educacionais, artísticas,
culturais etc. –, submete o indivíduo a um extraordinário processo de
reificação contínua, seduzindo-o e pressionando-o esteticamente ao consumo
espetacular explicitando na esfera cultural “o que ele é implicitamente na sua
totalidade: a comunicação do incomunicável(DEBORD, 2017, p. 149, grifo
do autor).
Renunciando à fruição estética tout court, ou seja, ao valor de uso da
arte e das demais relações com o mundo, o indivíduo revela o abandono da
cultura como transcendência de si em face do mundo natural. Como pensava
Lukács (1967), as realizações pseudoestéticas que integram o ciclo
problemático do agradável constituinte da arte submetida à gica do
entretenimento, não produzem a capacidade de arrancar o indivíduo da mera
singularidade, desenvolvendo nele o caráter social em contato com o gênero,
transformando-o do em si, para si. Por fim, recuperando Marx (2004) ainda
uma vez, há de se destacar que na medida mesma da consciência política que
o indivíduo vier a desenvolver em todos os campos da vida social, incluindo o
campo da arte, o salto transformador exigirá sempre uma tomada da
consciência teorética sobre os sentidos humanos.
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Ver nota 9.
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Como citar:
ROCHA, Elisabeth Soares da; REIS, Ronaldo Rosas. A crítica da cultura e a
educação estética. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências
Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 16-43, jan./jun. 2020.
Data do envio: 6 fev. 2020
Data do aceite: 18 maio 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.516
José Deribaldo Gomes Santos
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Alegoria e símbolo: a imanência cismundana refletida
artisticamente
José Deribaldo Gomes Santos
1
Resumo:
Este artigo debate o modo como Lukács concebe a diferença entre símbolo e
alegoria. O autor húngaro, para tal, apoia-se nas distinções entre o simbólico e
o alegórico desenvolvidas por Goethe. Com isso, o esteta magiar estrutura a
sua própria concepção de realismo. O realismo, para o esteta de Budapeste, é
o que marca a autenticidade artística. Este trabalho opta por um estudo de
caráter teórico-bibliográfico. Por meio de uma análise imanente sobre recorte
da Estética do autor húngaro, o artigo considera que a chamada arte de
vanguarda, por se inclinar para uma alegoria vazia de conteúdo, abandona as
demandas do drama humano. Esse abandono faz com que a arte moderna, de
modo geral, caminhe, por um lado, em direção do conformismo decorativo e,
por outro, do inconformismo irracional.
Palavras-chave: Alegoria; símbolo; arte moderna.
Allegory and symbol: everyday immanence artistically reflected
Abstract:
This paper debates how Lukács conceives the difference between symbol and
allegory. In order to do that, the author relies on the distinctions between the
symbolic and the allegorical developed by Goethe to build his own conception
of realism. Lukacs claims that Realism is what characterizes artistic
authenticity. This is a theoretical-bibliographic study. Based on Lukacs'
Aesthetics, we sustain that avant-garde art abandons the demands of human
drama because it leans towards an empty allegory of content. On one hand,
this conducts modern art to flirt with decorative conformism and, on the other
hand, irrational non-conformity.
Keywords: Allegory; symbol; modern art.
1
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará (Uece). E-mail:
deribaldo.santos@uece.br.
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José Deribaldo Gomes Santos
45
Introdução
O objetivo principal deste artigo é tematizar como Lukács diferencia
símbolo de alegoria. O caráter metodológico recai sobre um estudo teórico-
bibliográfico. Opta-se, como recurso de análise, por um exame imanente da
Grande estética de George Lukács, principalmente, sobre o capítulo XVI.
Sobre essa base, o artigo observa que, enquanto a alegoria se aproxima
da desantropomorfização, o simbólico aproxima-se ao antropomorfismo. Essa
distinção faz uma diferença basilar para a compreensão da estética marxista,
dado que a diferença e até a contraposição entre o alegórico e o simbólico
possibilitam ao edifício estético criado por Lukács em sua Grande estética se
aproxima do conceito de realismo haja vista que, na compreensão do esteta
magiar, o realismo não é um entre outros estilos artísticos, senão a marca
maior da autenticidade da arte.
Com base em uma análise histórica, que investiga a aparição da alegoria
no barroco e na arte contemporânea, o presente artigo conclui, sempre com
base nas investigações de Lukács, que a arte moderna se desvia do autêntico
realismo. Por se produzir uma dada fragmentação decompositiva nas criações
contemporâneas, consequentemente, processa-se certo afastamento entre a
obra e aquilo que o sujeito real e concreto experimenta no seu cotidiano. A
chamada arte de vanguarda, por exemplo, opta por refigurar uma
individualidade autônoma e vazia para ocupar a lacuna individualista
aparece o Nada com o objetivo de cumprir o papel principal. O resultado é que,
quanto mais resolutamente se remove das obras sua relação com a realidade
concreta, mais nitidamente se manifesta a natureza vazia das composições
contemporâneas, a exemplo da dita arte de vanguarda.
O início do debate: Goethe como parâmetro
É inegável a dificuldade para se definir arte. A polêmica distinção entre
alegoria e símbolo também se depara com muitas complicações. Para enfrentar
o desafio de conceituar arte, György Lukács (1966a; 1966b; 1967a; 1967b),
apropria-se dos conceitos antropomorfização, desantropomorfização,
imanência e transcendência para aproximar e distanciar a arte da ciência e do
cotidiano. Quando precisa desenvolver a polêmica entre alegoria e símbolo,
por sua vez, o esteta de Budapeste toma como ponto de partida as investigações
de Goethe. Isso se justifica pois, embora essa problemática seja antiga, apenas
após as pesquisas de Goethe, tal contraposição ganha acento para o debate nas
demais artes. Como enfatiza o húngaro, antes do poeta alemão, o problema era
restrito à questão das artes plásticas.
O criador de Fausto relaciona a problemática do simbolismo à categoria
da particularidade, apoiando sua argumentação sobre a relação entre universal
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e particular. Na interpretação do autor húngaro, Goethe vê claramente a
grande diferença entre o artista que busca a particularidade correspondente ao
geral ou encontra o geral no particular. No primeiro caso, se produz a alegoria.
a produção do simbólico dá-se quando uma particularidade encontra o geral
sem buscar correspondência com ele. Nesse encontro há, porém, a viva
captação da particularidade que, ao mesmo tempo, carrega a universalidade.
No livro Introdução a uma estética marxista, por exemplo, Goethe é
bastante utilizado por Lukács (1978) para indicar a categoria da
particularidade como central para a esfera estética. Exatamente no contraste
entre alegoria e símbolo, o filósofo húngaro entende residir um dos pontos
centrais para a adequada compreensão da estética: o realismo.
Na Estética do autor húngaro, importa lembrar, o que garante à arte sua
autenticidade é, exatamente, o realismo. Lukács encontra na distinção
goethiana entre o alegórico e o simbólico elementos que possibilitam uma
melhor aproximação do realismo artístico. Para Lukács (1967b), a tentativa
goethiana de opor alegoria ao mbolo apresenta uma importante novidade
para o debate estético. O poeta alemão foi o primeiro a indicar que enquanto a
alegoria se inclina para o desantropomorfismo, o simbólico tende para a
antropomorfização.
Para demostrar essa oposição, Goethe entende que o simbólico se
aproxima da ideia subjetiva e antropomórfica do sujeito pensante. O conceito,
por sua vez, acerca-se do alegórico, pois tem caráter desantropomórfico, ou
seja, existe com independência da consciência subjetiva. Expliquemos isso
melhor:
O conceito é a imagem refletida na consciência do sujeito;
A ideia assume a função mediadora entre a imagem e sua aparência, uma
vez que a ideia apenas capta, no imediato, a aparência do objeto;
Disso se desprende que o conceito, por delimitar e definir, procurando
aclarar a univocidade desantropomorfizada do objeto, preserva-se na
alegoria.
O fato de o conceito tornar-se uma imagem refletida na consciência do
sujeito, para Lukács, entretanto, não significa que haja uma superação da
alegoria. O autor em tela entende que, em vez de superação, se constrói um
abismo entre a reflexão sensível-subjetiva (a ideia) e o objeto concreto
(conceito) responsável por gerar o reflexo que, por sua vez, é captado pela
consciência do sujeito. Separa-se, assim, a reflexão concreta sentida pelo
sujeito e o reflexo conceitual-desantropomorfizador. O resultado desse abismo
é que o modo aparentemente sensível da imagem apenas pode surgir do
contraste entre o mundo imanente e o transcendente. Como entre o sujeito e o
mundo sensível o identidade, de um lado do abismo temos o objeto
mundanamente imanente em sua desantropomorfização; do outro, o objeto
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captado por meio da imagem transcendida de seu conceito.
Sobre esta questão, vale registrar que, na Grande ontologia, o esteta
marxista adverte que o reflexo do objeto quando chega à consciência subjetiva,
o faz como um não-reflexo, logo, nunca é o objeto em-si senão sua
representação reflexiva na consciência do ser pensante
2
.
Goethe, não obstante, por abrigar sua reflexão sob os ensinamentos de
Schelling e Hegel, ultrapassa o puro idealismo kantiano. Essa ultrapassagem
possibilita, como visto, que ele conceba a ideia como uma rica mediação entre
aparência e imagem que, por sua riqueza, não se limita, simplesmente, a captar
o conteúdo vindo do fenômeno.
Por meio das palavras do poeta alemão, Lukács (1967b, p. 424) assim
sintetiza: “Este é o verdadeiro simbólico, no qual o particular representa o
geral, não como sombra ou sonho, mas como revelação viva e instantânea do
ininvestigável”, do que é inominável. Para o autor magiar, com esses
princípios, Goethe define o contraste entre alegoria e símbolo. Ou seja:
A alegoria transforma a aparência em um conceito, e o conceito em
uma imagem, mas de tal modo que o conceito deva se manter e se
ter na imagem limitada e completamente, e sendo a imagem o
verdadeiro interlocutor. O simbólico transforma a aparência em
ideia, e a ideia em uma imagem, de tal modo que a ideia é, na
imagem, sempre infinitamente ativa e inalcançável, e que, mesmo
em todos os idiomas, permanece indizível. (GOETHE apud
LUKÁCS, 1967b, p. 424)
Como o objeto é radicalmente distinto da imagem e o conceito,
repetindo, é a matriz que gera a ideia, ficam determinadas as relações entre a
aparência e a sua reprodução fiel. Em resumo: essa mediação relacional entre
a aparência e a imagem empresta as características essenciais para que a
imagem seja plasmada na ideia do sujeito.
Por isso, quando Goethe fala de “indecibilidade” ou “inefabilidade” da
configuração simbólica, quer ressaltar que é própria da esfera artística o
caráter indecifrável, impreciso, inefável, entre outras objetividades
indeterminadas. A objetividade da ideia, formulada por Goethe, é, para
Lukács, uma formulação filosófica que pode ser aplicada à infinitude extensiva
e intensiva do objeto real. No caso estético, o objeto e a ideia não podem se
separar, haja vista que tal cisão destruiria o nculo entre a arte e a vida. No
simbolismo, a imagem, por tomar como base a aparência fenomênica, deixa
explícita a manifestação da ideia, o que atende à exigência artística da
transformação da universalidade em particularidade.
Como a relação goethiana entre natureza e ideia, não se pode separar
sem destruir a relação entre arte e a vida. A imagem, que no simbólico explícita
a ideia com base na aparência fenomênica, atende à exigência goethiana de
2
Sergio Lessa (1997) publicou instigante ensaio sobre o não-ser do reflexo em Lukács.
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descobrir na realidade o universal, transformando-o em particular. Com essa
transformação, a particularidade, por ser uma peculiaridade sensível da
manifestação dos próprios objetos, alcança a intuição.
Em suma, o simbolismo em Goethe é essencialmente um conceito
oposto à alegoria, dado que tem manifestação sensível no sujeito por meio da
imagem que se forma antropomorficamente, enquanto a alegoria apenas pode
se erguer com base no conceito que, por sua vez, é desantropomórfico.
Com base na iluminação posta sobre a relação entre alegoria e símbolo,
em que este ganha acento antropomorfizante e aquela ganha a marca da
desantropomorfização, o filósofo magiar sente-se em condições de aproximar
o realismo artístico ao simbolismo goethiano.
Comecemos pelo fato de que a essência antropomorfizadora da reflexão
estética tende a convergir, por um lado, com a concepção de mundo
cismundana e, por outro, com a imanência estética da estrutura da obra. Em
termos da relação conteúdo-forma, tal convergência tende a produzir um
mundo para um ser que existe para ele. Quando essa tendência é autêntica e
profunda, abarca o sujeito humano por inteiro. Com base nesse capturar-se
por inteiro e pôr o indivíduo em relação com o mundo externo, pode-se afirmar
que é impossível ao agente pedestre ser capturado de maneira subjetivista,
dado que o mundo criado para ele não seria apropriado se não carregasse em
sua imanência a cismundanidade. É justamente a produção de um mundo
esteticamente apropriado ao humano que marca a positividade da posição
estética. A arte esforça-se por refletir a relação entre o sujeito humano e o
mundo em sua verdade objetiva, adequando os desejos, as ilusões, e as
imaginações dos humanos ao lugar que lhes corresponde no complexo total da
representação.
Esse panorama permite enriquecer o conceito lukacsiano de tipicidade,
dado que, por meio da particularidade, o típico assume a função de mediador
entre a arte e a vida. Essa mediação possibilita o florescimento da arte como
tal, pois reforça suas raízes nas relações essencialmente vitais dos homens e
mulheres, o que permite que a arte madura cumpra a importante missão de
registrar a autoconsciência da evolução da humanidade.
É preciso problematizar um pouco mais a importância desse registro,
pois um dos problemas centrais da existência terrena humana, no curso do
cumprimento das tarefas mais importantes, é transformar a privaticidade de
cada indivíduo não em um obstáculo, mas em um motor. Pela influência que o
reflexo estético da conformação da realidade objetiva tem sobre o sujeito
humano, a transformação que essa refiguração pratica no imediatamente dado
da vida aponta, precisamente, para a transformação da privaticidade em
exemplaridade típica, ou seja, em particularidade.
Essa tipicidade, ao contrário de aniquilar o pessoal-privado, o supera
com preservação, alçando a singularidade pessoal do movimento vital do
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humano. A especificidade da positividade estética, com efeito, tem sua
natureza no movimento “central” que purifica a generalidade abstrata e, ao
mesmo tempo, a privacidade empirista, abrindo caminho para que aquela se
encontre nesta e que esta possa se fundir naquela.
A alegoria e sua contradição
Esses são os parâmetros principais para que possamos considerar
adequadamente o papel da alegoria no âmbito do estético. Ou seja, dado que o
mais importante para o realismo estético é o simbolismo, qual o lugar da
alegoria no debate estético?
Para iniciar a problematização, é necessário reconhecer a validade
autônoma das formas ornamentais. A ornamentística, conforme descreve
Lukács (1966b), motivada exclusivamente pela natureza geométrica de sua
formação, mesmo imanente, possui conteúdo abstrato, ‘vazio’ e independente.
Apesar dessa ausência” de conteúdo, no entanto, preserva-se na
ornamentística uma capacidade de efeito artístico que, com a evolução da arte,
consegue ser independente da transcendência. Esse caráter especial – apenas
ele garante à alegoria um lugar de destaque na conformação estética.
Aprofundemos essa questão.
Com o esgotamento da magia, os objetos produzidos sob finalidade
mágica perdem o significado transcendente e aparecem como o que são em sua
condição de objetos reais. Para exemplificar: um pedaço de madeira, uma
pedra, ou outros objetos reassumem suas propriedades de coisa físico-química
em-si, abandonam aquela intenção que lhes fora atribuída magicamente.
A situação é mais complicada quando o objeto desse uso transcendente
é em si mesmo mimético. Sobre isso, vale relembrar o debate que o autor
traz sobre a mimese primitiva, visto que esse tipo de mimese se comporta com
uma marcante neutralidade em relação à transcendência que lhe vida. O
melhor exemplo é a magnífica mimese das pinturas rupestres do paleolítico,
pois nascem, como desenvolvido por Lukács (1966b), provavelmente, a serviço
de propósitos mágicos.
Essa é a contradição na qual o problema da alegoria se torna
importante, pois o núcleo dessa contraposição baseia-se na essência da posição
estética da objetividade. Em outros termos, interessa saber como a
discrepância interna entre o “mundo” imanentemente fechado em si mesmo
de cada obra de arte, por um lado, e seu conteúdo transcendente, por outro,
desdobra-se até se transformar em uma contradição estética. Em resumo:
apenas quando pretensão da arte criar para si um mundo próprio,
respeitando as capacidades histórico-materiais de satisfazer tal pretensão,
revela-se o problema da alegoria como verdadeiramente real para a esfera da
estética.
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Esclarecido o ponto de contato entre a alegoria e o estético, para que a
argumentação avance um pouco mais, é necessário aclarar o que o autor
entende por “mundo” de cada obra de arte.
A mundanidade para a reflexão estética é, no entendimento de Lukács
(1966b), precisamente, o desenvolvimento da objetividade conformada até se
tornar um determinado em-si. Para o autor, esse processo precisa criar uma
estrutura na qual um complexo de objetos, em seu modo aparente-sensível,
seja a expressão imediata da essência do que se mostra. Ou seja, em sua
totalidade intensiva e extensiva, o complexo de objetos pode ser apresentado
aos sentidos humano-pessoais de modo que concentre, no imediato da
aparência, o sentido e o significado do conteúdo do objeto de que trata.
Sendo assim, como um retrato de Rembrandt, por exemplo, cria um
“mundo” esteticamente conformado e as pinturas rupestres, cuja fidelidade à
natureza é, em si, exuberante, não conseguem criar esse “mundo”? Essa
mundanidade, problematiza o autor, surge pela consequente realização da
essência estética das categorias, o que não exige que a obra seja de fato
constituída por objetos complexos ligados ou por um único objeto. Ou seja,
como a mundanidade das obras de arte é baseada na estrutura categorial acima
descrita, bem como no fato de que “cada objeto recebe uma forma artística com
a finalidade de que se revele sua própria essência, a essência de suas relações
com o mundo externo, como forma aparente imediata de sua mesmidade
(LUKÁCS, 1967b, p. 429)
3
. A mundanidade da obra de arte exige, com efeito, a
completa imanência do seu significado; “se apenas um detalhe parece se referir
a além desse círculo, esse ‘mundo’ deixa de ser tal e se reduz a uma
multiplicidade desordenada ou mecanicamente acumulada de objetos
heterogêneos” (LUKÁCS, 1967b, p. 430)
4
.
Assim se pode responder porque Rembrandt produz um “mundo”’
esteticamente apropriado ao humano e os caçadores coletores do paleolítico
não. O pintor holandês procura atender a uma missão imanente de seu tempo,
enquanto os caçadores coletores do paleolítico tinham como missão reproduzir
fidedignamente a caça com a pretensão mágica de alimentação garantida
(LUKÁCS, 1967b). Esse exemplo aclara que a cismundanidade na concepção
de mundo, por um lado, e a imanência estética da estrutura da obra, por outro,
“são tendências muito convergentes, cujas direções estão determinadas pela
essência consequentemente antropomorfizadora do reflexo estético”
3
Na tradução em espanhol: “cada objeto recibe forma artística con la finalidad de que revele
su propia esencia, la esencia de sus relaciones con el mundo externo, como forma aparencial
inmediata de su mismidad”.
4
Na tradução em espanhol: “con sólo que un detalle parezca remitir a más allá de ese círculo,
ese «mundo» deja de ser tal, y se reduce a una multiplicidad desordenada o mecánicamente
acumulada de objetos heterogéneos”.
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51
(LUKÁCS, 1967b, p. 438)
5
.
Estando claro qual o problema a ser enfrentado, bem como o que o autor
entende por mundanidade, é possível tratar da seguinte questão: a relação
entre mundanidade, alegoria e a categoria do decorativo.
O decorativo na estética, como entende o filósofo magiar, pertence à
totalidade concreta das determinações da individualidade de cada obra. É essa
categoria que caracteriza a ordem e a vinculação dimensional de todos os
elementos da criação; ela reforça e fixa o “mundo” produzido precisamente no
ser-para-nós (o para-nós convertido no em-si). Ao fixar esse mundo”, o
decorativo mantém a obra na esfera da estética, pois restringe as tendências
que, quando agem sozinhas, podem submeter a natureza da realidade da
criação a uma excessiva tensão. O decorativo, conceitualmente, é mais
abrangente do que a alegoria.
O mais interessante para a atual problemática é que momentos em
que a representação decorativa pretende expressar um conteúdo. Assim,
produz-se o alegórico ou, pelo menos, algo relacionado à alegoria. O decisivo,
todavia, para o destino da arte, como entende Lukács (1967b, p. 434), é o
encontro “entre a missão social dada pela religião à arte e aos elementos
formais do decorativo, nos quais um espaço vazio se manifesta entre a força
evocadora sensível, necessariamente debilitada, e a falta imediata de
conteúdo”
6
.
Para o nosso autor, a coincidência entre a missão social recebida da
religião pela arte e os elementos decorativos fundamenta a eficácia estética
duradoura das obras de arte alegóricas de maior repercussão. O único
elemento que importa, do ponto de vista do debate estético, é o valor próprio
do contexto construído de forma decorativa. Nas palavras do autor: “a questão
de se esse contexto, baseado apenas em si mesmo, é capaz de produzir uma
evocação estética, mesmo que seja de um tipo debilitado, incompleto”
(LUKÁCS, 1967b, p. 434)
7
.
Considerando o decorativo, a justificativa para entender o modo como
a representação reflete o drama humano-social, sintetiza-se no seguinte
paradoxo: a pretensão transcendente religiosa de possuir objetividade, ou seja,
capturar a realidade concreta, ter veredito de verdade. Essa contradição se
traduz no fato de uma formação de caráter antropomórfico que o permite
comprovação factual pretender adquirir natureza de realidade em-si, de ser
5
Na tradução em espanhol: “son tendencias muy convergentes, cuyas direcciones están
determinadas por la esencia consecuentemente antropomorfizadora del reflejo estético”.
6
Na tradução em espanhol: “la misión social dada por la religión al arte y los elementos
formales de lo decorativo en los que se manifiesta un lugar vacío entre la fuerza evocadora
sensible, necesariamente debilitada, y la inmediata falta de contenido”.
7
Na tradução em espanhol: “es capaz de producir una evocación estética, aunque sea de un
tipo debilitado, incompleto
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verificável mesmo que a verificação ocorra no mais além transcendente.
Evidencia-se que o debate está postado entre, de um lado, a
cismundanidade imanente da esfera artística e, do outro, a imagem de mundo
transcendentemente religiosa que, apesar de ser antropomórfica, pretende ter
caráter de verdade.
A pergunta a ser respondida, para que se possa caminhar sobre essa
contradição, é a seguinte: como é o mundo produzido pelo sujeito humano
como pátria terreno-social para seu próprio uso? Lukács (1967b, p. 437)
8
responde que essa pátria pedestre não significa “a felicidade imerecida do
paraíso, recebida como um dom da graça”. Para o autor, “mesmo quando tem
um caráter idílico, quando a pátria perdida aparece como a Idade de Ouro,
[ela] significa uma acusação, um estímulo para lutar e trabalhar, para
reconquistar o que foi perdido para o presente ou para o futuro” (LUKÁCS,
1967b, p. 437)
9
. Por esse motivo, continua o autor, “a confissão mais profunda
dos grandes poetas, desde o coro de Antígona até Górki, é a declaração de que,
de todos os seres que realmente existem, o homem é o mais elevado” (LUKÁCS,
1967b, p. 437)
10
.
Filosoficamente, o que pode ser retirado dessa contradição é como as
obras vão refigurar o caráter objetivo de tal oposição e suas consequências
sobre a concepção de mundo dos homens e mulheres. Não nos esqueçamos de
que o elemento que afere autenticidade à obra é sua inequívoca natureza
cismundana, que parte do sujeito pedestre e a ele retorna. Isso comprova a
convergência entre a cismundanidade na concepção do mundo e a imanência
estética da estrutura da obra. Para o caso artístico, diferentemente do religioso,
a direção da mundanidade bem como da imanência é orientada pela
antropomorfização da reflexão estética.
Com essa contradição aclarada e com a segurança de que a arte apenas
pode cumprir seu papel se for, ao mesmo tempo, cismundana em relação à
imagem de mundo e imanente em referência ao fechamento da obra, já se pode
voltar ao decorativo.
Quando o princípio decorativo ganha predominância, fica ausente,
inevitavelmente, a necessidade objetiva que vida a obra. Para que o
decorativo seja predominante, falta a dinâmica das relações entre os homens e
mulheres, não se a tensão do desenvolvimento social do mundo
artisticamente configurado, entre outros fatores terrenos. Em outras palavras,
8
Na tradução em espanhol: “la felicidad inmerecida del paraíso, recibida como regalo de la
gracia”.
9
Na tradução em espanhol: “cuando la patria perdida aparece como Edad de Oro, significa
una acusación, un estímulo para luchar y trabajar, para reconquistar lo perdido para el
presente o para el futuro”.
10
Na tradução em espanhol: “la confesión más profunda de los grandes poetas, desde el coro
de la Antígona hasta Gorki, es la declaración de que, de todos los seres que verdaderamente
existen, el hombre es el más alto”.
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para suprir a falta da vida concreta na obra, produz-se um sucedâneo que,
mesmo sendo em si estético-decorativo, apenas pode ficar na periferia do fator
autenticamente artístico, isto é, inclina-se para o pseudoestético.
O decorativo é, como escreve Lukács (1967b, p. 442), “sem dúvida,
capaz de produzir um meio homogêneo, mas não pode conferir a verdadeira
força produtora de mundos”
11
. Por esse conjunto de fatores, a alegoria é, para
o debate estético, uma formação muito problemática. Se por um lado, no
alegórico, a produção de um meio homogêneo, por outro, não se cria um
mundo esteticamente conformado, pois essa formação é produto de uma
articulação entre a singularidade privada e a universalidade abstrata. A
alegoria apenas pode lograr eficácia duradoura por meio da decoração sem
conteúdo, ou seja, quando a transcendência original se dissipa sem
desaparecer totalmente, deixando no vácuo dessa dissipação, no melhor dos
casos, o apelo de um vazio totalmente ordenado decorativamente.
Esse é o processo pelo qual a formação alegórica de conteúdo
transcendente atinge artisticamente o objeto mimético, sem, no entanto, ser
capaz de desenvolver a consumação final do objeto com base em sua própria
natureza objetiva. Contraditoriamente, atinge o logro artístico sem conseguir
produzir um mundo que se feche em torno da obra. Para suprir o vazio de
conteúdo, portanto, produz-se um sucedâneo para ocupar esse espaço. Ele se
chama princípio decorativo. Tal sucedâneo, ao ser criado, não permite que a
privaticidade humano-pessoal seja liberada ao ponto de atingir a sua
superação; não permite, por meio da mediação da particularidade, o seu
autodesdobramento na configuração de personagens e relações tipicamente
humanas.
O privado permanece privativo, pois todas as forças modeladoras que
alcançaram uma ordem estética, ou mesmo pseudoestética, por não acessarem
o conteúdo vitalmente humano, não encontram as mediações necessárias para
se confrontar com o mundo concreto. O máximo que se alcança é uma
mediação puramente formal que, por meio de universalidades abstratas,
vincula-se mecanicamente àquela privacidade singular.
Todo esse debate deixa claro que a missão social religioso-teológica
cobrada à arte não pode ter um objeto terreno. A cobrança feita ao complexo
artístico pelo religioso é, com efeito, transcendente e abstrata, além de
intensamente hiperdeterminada. Essa hiperdeterminação é derivada da
fixação além-vida, que, por sua vez, é prometida pela religião aos seus
antropomórficos crentes. A missão social assim cobrada, naturalmente, não
permite o desdobramento e desenvolvimento da arte em sua fecundidade.
A missão social do complexo artístico, vale a pena repetir, é o registro
11
Na tradução em espanhol: “es sin duda capaz de producir un medio homogéneo, pero no
puede dar verdadera fuerza productora de mundo”
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da autoconsciência humana. A luta libertadora da arte para se tornar um
complexo substantivo é, portanto, a pugna por assegurar que a arte situe seu
ponto central entre a determinação geral do conteúdo e a livre mobilidade da
forma. Sem essa mobilidade, o complexo artístico fica preso e, sem a liberdade
de se movimentar, não tem como cumprir sua missão social. Por isso, é tão
importante definir a decisiva distinção entre a alegoria e o símbolo, e mais:
precisar a vinculação dessa diferença em relação à missão social que cabe a
arte.
Especificados os caracteres principais da distinção entre a alegoria e o
símbolo, diferenciando-se a oposição qualitativa dessa distinção, aclarar-se-á
a maneira pela qual a missão social recebida pela arte impõe sua validade.
Afinal, a referência rigidamente prescrita de todos os detalhes a um conteúdo
transcendente, como solicita a religião à arte, “impede tanto o desdobramento
autônomo da objetividade que de receber forma, quanto a adaptação sutil
das formas e dos conteúdos artísticos às necessidades sociais concretas, que se
encontram em permanente alteração” (LUKÁCS, 1967b, p. 447).
O filósofo registra que os efeitos da aguda crise entre a Reforma e a
Contrarreforma abriram as portas para a produção definitiva do realismo
moderno. A aguda crise religiosa, ao menos em seus princípios fundamentais,
cria o caminho para a liberação da arte do âmbito do religioso. Esse processo,
insiste o autor, abre as veredas para o realismo que conhecemos hoje. Não se
pode cair na tentação, contudo, de que o pugilato libertador da arte tenha sido
concluído e que o complexo artístico navega em céu de brigadeiro. Isto é um
engano!
Alegoria no barroco: alguns achados de Walter Benjamin
A luta da arte para ser independente da religião continua um problema
no presente. As necessidades religiosas contemporâneas, porém, são
diferentes das vivenciadas na Antiguidade e no Renascimento. Hoje, somente
uma minoria de artistas importantes apresenta uma conexão religiosa no
sentido tradicional. A missão confiada à arte pelo papa Gregório Magno, para
ficarmos com o exemplo da Idade Média, concede determinada margem de
manobra aos realizadores. Esse espaço de labilidade e de certa elasticidade
encoraja os produtores a converterem suas obras em motivação humano-
social.
O que se convencionou chamar de vanguarda artística, por exemplo,
nasce essencialmente com base nas necessidades religiosas contemporâneas.
Esse estilo, como entende Lukács (1967b, p. 457) “é antes uma expressão
artística de um individualismo anarquista e niilista”
12
. Todavia, “ainda menos
12
Na tradução em espanhol: “El arte de vanguardia es más bien expresión artística de un
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se pode falar, hoje, em sujeição do conteúdo artístico, da finalidade artística,
ao sistema de dogmas de uma determinada igreja” (LUKÁCS, 1967b, p. 457)
13
.
Por isso, é obvio para o autor, que a dita vanguarda artística tem muito pouco
ou nada a ver com a religião no sentido das correntes que atuavam no período
medieval.
Walter Benjamin (1984), em sua análise sobre o barroco, dota o esteta
húngaro dos elementos necessários para tratar da questão da influência da
alegoria na arte contemporânea e consequentemente da vanguarda artística.
Para Lukács, a interpretação do barroco empreendida pelo filósofo alemão vai
além de um contraste com o classicismo. Esse entendimento indica que a
problemática da arte contemporânea, especialmente as denominadas
vanguardas artísticas, não pode ser simplesmente equacionada na esfera do
contraste em relação ao período clássico ou renascentista.
Benjamin não cai na sedução de analisar a tematização seguindo as
correntes ecléticas. Ele opta por aderir ao princípio artístico geral. Com esse
pressuposto em tela, o autor entende que o exaltado estatuto desfrutado no
Renascimento é abalado pelo seguinte processo: “O falso brilho da totalidade
se extingue. Pois o eidos se apaga, o símile se dissolve, o cosmos interior se
resseca.” (BENJAMIN, 1984, p. 198) O resultado desse processo é que, por um
escrúpulo religioso, o cultivo artístico é relegado às “horas vagas”. Disso se
desprende, ainda segundo o filósofo da Escola de Frankfurt, o seguinte: “ao se
representar a primazia das coisas sobre as pessoas, do fragmentário sobre o
total”, a alegoria torna-se o contrário polar do símbolo, por isso mesmo,
contudo, sua igualdade. O autor ainda adverte que qualquer personificação
alegórica personificação do mundo das coisas – obscurece sua missão social.
Ou seja, dar a essas coisas uma forma mais imponente, caracterizando-as
como pessoas” (BENJAMIN, 1984, p. 209).
Leiamos a síntese do filósofo alemão cujos elementos são debatidos pelo
esteta magiar:
Essa circunstância nos conduz às antinomias do alegórico, cuja
discussão dialética é incontornável, se quisermos de fato evocar a
imagem do drama barroco. Cada pessoa, cada coisa, cada relação
pode significar qualquer outra. Essa possibilidade profere contra o
mundo profano um veredito devastador, mas justo: ele é visto como
um mundo no qual o pormenor não tem importância. Mas ao mesmo
tempo se torna claro, sobretudo para os que estão familiarizados
com a exegese alegórica da escrita, que exatamente por apontarem
para outros objetos, esses suportes da significação são investidos de
um poder que os faz aparecerem como incomensuráveis às coisas
profanas, que os eleva a um plano mais alto, e que mesmo os
individualismo anarquista y nihilista”.
13
Na tradução em espanhol: “y aun menos puede hablarse hoy de sometimiento del contenido
artístico, de la finalidad artística, al sistema de dogmas de una iglesia determinada”
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santifica. Na perspectiva alegórica, portanto, o mundo profano é ao
mesmo tempo exaltado e desvalorizado. A dialética da convenção e
da expressão é o correlato formal dessa dialética religiosa do
conteúdo. Pois a alegoria é as duas coisas, convenção e expressão, e
ambas são por natureza antagonísticas. (BENJAMIN, 1984, pp. 196-
7)
Sobre esse debate Lukács (1967b, p. 462)
14
escreve que “Benjamin
chama a atenção para o fato de que a consideração alegórica se baseia, em
última análise, em uma perturbação que decompõe o comportamento
antropomorfizante com o mundo”.
Aqui, devemos relembrar o seguinte: como o reflexo antropomórfico,
para a Grande estética de Lukács, é a base da reflexão estética, a missão de
desfetichizar a realidade apenas pode ocorrer sobre tal base. Do mesmo modo,
pode-se anotar que, como a atmosfera produzida pelo alegórico barroco expõe
o mundo religioso desprezando a singularidade privada (ao mesmo tempo em
que a preserva), produz-se, uma tendência a desfetichização. Isso ocorre
porque um elemento desfetichizado é necessariamente composto de suas
qualidades e de seus detalhes, o que oportuniza que a coisidade apareça
imediatamente como é, ou seja, no mero ser-assim de dada singularidade
privada, portanto, sem fetiche.
Como se explica, então, esse processo de purificação da personalidade
singular privada? Do seguinte modo: quando se aprofunda a relação interna
entre a aparência e a essência, entre o detalhe e o conjunto objetivo, em que se
processa uma articulação entre a totalidade e o detalhe, há a elevação daquela
singularidade privada, que, por meio do movimento depurador da
particularidade, alcança o patamar do típico. Como a desfetichização, na obra,
dá-se por intermédio da superação com conservação da singularidade privada,
conclui-se que se processa o desfetiche. Para que isso ocorra, isto é, para que o
objeto seja racionalmente organizado na relação entre uma totalidade e o
detalhe, não obstante, é preciso que o detalhe possua um caráter sintomático
referenciado à essência, que, por sua natureza, possa revelar a
substancialidade do objeto.
Não se pode esquecer, contudo, de que a completa nulidade do detalhe
anula consequentemente a objetividade concreta plasmada na alegoria. Isso
acarreta, aparentemente, uma aniquilação radical de toda a privacidade
singular. Não nos deixemos, todavia, levar somente pelas aparências. Como
enfatiza Benjamin (1984, p. 256), dessa completa nulidade do detalhe, é obvio
que “a alegoria sai de mãos vazias. O Mal em si, que ela cultivava como um
abismo perene, existe nela, é pura e simplesmente alegoria e significa algo
14
Na tradução em espanhol: “Benjamin llama la atención sobre el hecho de que la
consideración alegórica se basa en última instancia en una perturbación que descompone el
comportamiento antropomorfizador con el mundo”.
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de diferente do que é”. E o que, de fato, é esse Mal? O filósofo alemão responde:
ele é exatamente o não-ser daquilo que ele ostenta ser. Explicando em outros
termos, pela natureza da essência dessa classe de aniquilação, ao mesmo
tempo em que se processa uma nulidade, carrega-se sempre determinada
eternização. Isso quer dizer que coisas e detalhes, quando são intercambiáveis
e articulados, não podem ser superados completamente no ato de superação.
A superação ocorre apenas em seu concreto ser-assim. O ato de superação
refere-se, especificamente, à sua qualidade de se voltar para cada caso singular
privado, repondo no lugar de cada caso dado algo que, pela sua estrutura
interna, é exatamente do mesmo valor.
Como resume o marxista húngaro, o substituído reaparece na
privaticidade singular, agora sob uma forma substituída por outra da mesma
magnitude. Esse tipo de superação da privaticidade é, segundo Lukács (1967b,
p. 463)
15
, o mesmo que sua reprodução total, pois “se mantém assim em toda
concepção ou representação alegórica, e não está em contradição alguma com
a natureza religiosamente fundamentada desses procedimentos”.
Quando a base de interpretação do barroco se ancora nas investigações
benjaminianas, é preciso considerar a seguinte novidade: na medida em que a
iluminação transcendente é executada sem possuir um conteúdo religioso
concreto, as refigurações são carregadas com o próprio Nada. Ou, como disse
Benjamin (1984, p. 207), o não-ser daquilo que ostenta, “pois a alegoria é (...)
o único divertimento, de resto muito intenso, que o melancólico se permite”.
Para este autor, não ilustração melhor para a fragilidade da criatura
humana do que o fato de os viventes estarem também sujeitos a essa imensa
fragilidade. No barroco, como constata o filósofo alemão, o Príncipe é o
paradigma do melancólico:
Nessa herança imponente que a Renascença transmitiu ao Barroco,
e que tinha sido elaborada durante quase dois milênios, a
posteridade dispõe de um comentário mais preciso sobre o drama
barroco que qualquer outro que possa ser oferecido pela poética. Os
pensamentos filosóficos e as convicções políticas, que estão na base
da concepção da história como um drama, ordenam-se
harmoniosamente em torno desse tema. (BENJAMIN, 1984, p. 165)
Para Lukács, as investigações de Benjamin (1984), por terem como base
a diversidade fundamental dos modos do comportamento humano diante da
realidade, tanto na representação alegórica quanto na simbólica, possibilitam
que ele veja na alegoria o estilo específico realmente adequado para a
sensibilidade moderna independente de virem do pensamento ou da
experiência.
15
Na tradução em espanhol: “se mantiene así en toda concepción o representación alegórica,
y no está en contradicción alguna con la naturaleza religiosamente fundada de dichos
procedimientos”.
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O que Lukács retira de seu diálogo com o filósofo frankfurtiano é o fato
de a alegoria começar a perder, progressivamente, sua ligação com a religião
cristã. Na contemporaneidade, embora haja vínculo entre a alegoria e o
cristianismo, o elo não se assemelha ao período medieval. Na Idade Média, a
conexão era determinada com precisão e até mesmo teologicamente. A partir
do período moderno, verifica-se que a alegoria encontra afinidade em dois
perigosos polos: por um lado, associa-se à certa dose de anarquia e, por outro,
aproxima-se à determinada atmosfera fantasiosa. Essa especificidade
alegórica moderna inclina a arte para a decomposição formal, que, por sua
força dissolutiva, fragmenta a objetividade humana. Essa decomposição,
naturalmente, impõe a necessidade de se fortalecer a singularidade privada,
uma vez que o sujeito está, cada vez mais, a mercê de si mesmo.
Um divertimento melancólico: os novos ingredientes da
“vanguarda” artística
Na guerra e na paz, na frente e na retaguarda, como oficial, assim
como médico, entre acumuladores e as excelências, diante de células
de borracha e da prisão, junto de camas e caixões, no triunfo e na
decadência, nunca abandonei o transe de que a realidade não existe.
(BENN, 1970, p. 26)
No que se refere ao alegórico, precisa ser enfatizado com o autor
húngaro, que a aniquilação da realidade imediata, da realidade sensível, é a
essência da alegoria. A velha alegoria, contudo, por ser determinada por uma
transcendência religiosa, baseada sobre o sobrenatural-celestial, tinha a
missão de humilhar a realidade terrena, encaminhando o ser pedestre à
completa nulidade.
Apesar de a arte contemporânea dissolver o alegórico
transcendentemente mítico-religioso, cujo resultante é refigurar o Nada, é
possível encontrar produções que sejam capazes de cumprir com a missão
artística de desfetichizar o manto que encobre o cotidiano. Naturalmente, que
esse encontro é cada vez mais difícil. Como registrado por Lukács (1965), o
caráter da arte garante que sempre existirão ilhas de criações autênticas, o que
reforça que esse artigo não tem interesse de estimar determinados produtos da
arte. O interesse da exposição, com efeito, é apontar as principais tendências
artísticas que representam a expressão do individualismo de natureza
anárquica e niilista.
A chamada arte de vanguarda, por exemplo, concentra em seu modo de
manifestação elementos característicos dessa natureza individualista. De
importância substancial, esses sintomas, contraditoriamente, o podem
escamotear o seguinte fato básico: “as experiências subjacentes à maioria dos
grandes e característicos produtos da arte de vanguarda provêm de
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necessidades religiosas, porque também sua configuração formal é
determinada pelo conteúdo dessas experiências” (LUKÁCS 1967b, p. 457)
16
.
de se considerar que a concepção de mundo que abraça o que se
convencionou chamar arte de vanguarda não constitui nenhuma novidade no
debate filosófico ocidental. Desde Berkeley, sustenta Lukács (1967b), que esse
idealismo fragmentador do sujeito, que o solta ao Nada, domina a forma de
pensar, tornando-se o pensamento oficial do capitalismo imperialista. As
consequências que são inferidas com base nessa corrente epistemológica são o
que constitui a inovação contemporânea. Antes, como registra o autor
húngaro, essa doutrina epistêmica não alcançava grande influência sobre a
reflexão científica, tampouco sobre a artística. Um exemplo de como esse
idealismo subjetivista encontra a arte, negando completamente a realidade ao
dissolver sua unidade material, é a atitude do poeta alemão Gottfried Benn.
Para Lukács (1967b), esse escritor toca diretamente no núcleo da
problemática, pois ao declarar que nunca abandona o “transe de que a
realidade não existe”, aponta para a base ideológica imediata de como a
chamada arte de vanguarda lida com o mundo real. A atitude do poeta deixa
clara a decomposição da vida humana interior em fragmentos heterogêneos.
Quando essa decomposição fragmenta o sujeito humano, fazendo-o em
pedaços e sem conexão entre as partes, o indivíduo privado renuncia
conscientemente à potência de desenvolvimento do seu ser, o que o impulsiona
mesmo que apenas em potência para alcançar um patamar além da mera
singularidade privada. Despedaçado e sem conexão com a universalidade, o
vivente terrestre apenas pode valorizar e desenvolver as forças e as capacidades
parciais da personalidade privada. Tal decomposição, todavia, não existe
objetivamente. Sua existência é, com efeito, apenas imaginária, o real. De
todo modo, essa dialética decompositiva fragmenta o ser social de modo que
ele se sinta conscientemente mesmo que apenas na imaginação separado
e autônomo. Essa fragmentação funciona como a trava que mantém intacta a
preservação das singularidades privadas. Lamentavelmente, esse jogo de
“esquizofrenia” tem amparo em todos os campos da cultura. Esse elogio à
decomposição interna que nega a realidade torna-se, para os interesses
práticos do capitalismo imperialista, um instrumento de extrema utilidade.
Para Lukács, a cínica sinceridade de Benn, mais uma vez, exemplifica
exemplarmente o conforto privativo que o sujeito despedaçado pensa ter ao
valorizar a fragmentação de sua personalidade privada: “Hoje e aqui sem
generalidades nem desejos siderais; esse é um bom fundamento da vida dupla,
e minha própria vida dupla tem sido sempre muito agradável, inclusive cultivei
16
Na tradução em espanhol: “a la mayoría de los grandes y característicos productos del arte
de vanguardia proceden de necesidades religiosas, por lo que también su configuración formal
está determinada por el contenido de dichas vivencias”.
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conscientemente em toda a minha vida” (BENN apud LUKÁCS, 1967d, p.
469)
17
. Como conclui Lukács (1967b, p. 470): “Com tudo isso, o caminho da
alegoria hoje tem uma direção diferente da que era dominada pelas formas
religiosas da vida”
18
. O pensamento, a obra e a atitude de Benn, sintetizam o
“divertimento do melancólico” da arte contemporânea.
O filósofo húngaro relembra como funciona a alegoria na religião e na
arte contemporânea. No complexo religioso domina uma transcendência
universalmente considerada, existente na sua verdade, que produz a
degradação da independência dos objetos cismundanos até que se tornem
meros emblemas de um sentido alegórico. Na arte contemporânea, por sua
fragmentação decompositiva, esse processo de degradação parte
conscientemente e imediatamente do sujeito individual, “o qual coloca
individualmente, autonomamente, essa ‘transcendência vazia’, o Nada como
um cumprimento paradoxal do vazio assim produzido, como glorificação
paradoxal do campo de ruínas alcançado” (LUKÁCS, 1967b, p. 470)
19
.
Como deixam claras as declarações de Benn (1970), a arte se vincula
indissoluvelmente e, ao mesmo tempo, a duas tendências aparentemente
contrapostas. Por um lado, a hostilidade acompanhada da estranheza em
relação ao mundo concreto, morada dos sujeitos humanos, por outro, pretende
a maior adaptação possível, articulando-a, por sua vez, ao desejo de viver bem
nesse mesmo mundo. De modo contrário, nas duas grandes evoluções da arte
uma na Antiguidade e outra que se desenvolve na Idade Média e que tem
como resultado o Renascimento –, os mais profundos motivos artísticos e seus
tratamentos ideológicos estão condicionados aos problemas mais importantes
de cada época. Enquanto na Antiguidade e na Idade dia o
descontentamento com a vida presente produz a disposição para transformar
o mundo, na contemporaneidade produz-se um inconformismo formal,
expositivo-intelectual, mas que é indiferente às questões vitais da prática
humana e que, por isso mesmo, conduz finalmente ao conformismo
melancólico que conforta, cuidadosamente, aquela exposição intelectual sem
conteúdo universalmente humano
20
.
O significado alegórico que nasce nessa base tem como atitude
desprezar a crítica ao mundo concreto. Ao se criticar concretamente as
conexões reais, possibilitando seus desvelamentos, ou seja, o que se esconde
17
Tradução em espanhol: “Hoy y aquí, sin generalidades ni impulsos sidéreos; éste es un buen
fundamento de la doble vida, y mi propia vida doble me ha resultado siempre muy agradable.
No he dejado nunca de cultivarla conscientemente”.
18
Tradução em espanhol: “Con todo esto el camino de la alegoría tiene hoy una dirección
distinta de la que tuvo em tiempos dominados por las formas religiosas de la vida”
19
Tradução em espanhol: “el cual pone individualmente, autónomamente, esa «trascendencia
vacía», la Nada como cumplimiento paradójico del vacío así producido, como glorificación
paradójica del campo de ruinas conseguido”.
20
A vida dupla, de Benn (1972), por exemplo.
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em suas entranhas mais profundas, negar-se-ia a retórica da realidade baseada
na incapacidade de dominar os verdadeiros problemas decisivos. Essa retórica
embasada no individualista niilista é, exatamente, como aponta Lukács, a
marca da arte contemporânea. Como entende Lukács (1967b, p. 471)
21
:
“Tratando-se do cubismo ou do futurismo, do surrealismo ou da arte abstrata,
a destruição dos fenômenos e da objetividade essencial ativa nos mesmos tem
sempre seu lugar, de um lado ou de outro”
22
.
Não como concluir sem fazer referência à natureza especificamente
decorativa da arte contemporânea. Como visto, a arte alegórica procura no
decorativo um sucedâneo para o “mundo” esteticamente conformado, ou seja,
para a mundanidade. Mesmo que o princípio decorativo, em comparação à
objetividade concreta criadora de mundo, seja abstrato, ele tem como função
organizar artisticamente a bidimensionalidade, que na alegoria fica estagnada.
Na alegoria-decorativa, no entanto, de um modo ou de outro e com maior ou
menor intensidade, preservam-se restos de objetividade que foi eliminada.
Essa preservação reflete exatamente a missão social que deu vida àquela
essência decorativo-alegórica.
Para Lukács, quando a arte que se diz de vanguarda se limita à
bidimensionalidade pura, mesmo quando elimina toda aspereza concreta
através do desenho geométrico, ainda assim, a obra acabada não pode ser
considerada um retorno ao antigo ornamento geométrico. Aqui se impõe,
inequivocamente, um princípio decorativo de especificidade moderna. Quanto
mais vigorosamente esse princípio é imposto, continua o esteta magiar, quanto
mais resolutamente ele remove das obras as coisidades concretamente
conformadas, mais claramente se manifesta a natureza do significado desse
princípio decorativo. O resultado disso é que, mais facilmente, o princípio
decorativo moderno consegue se destacar das alegorias e se transformar em
uma entidade vivamente independente.
21
Tradução em espanhol: Trátese del cubismo o del futurismo, del super-realismo o del arte
abstracto, la destrucción de los fenómenos y de la objetividad esencial activa en ellos tiene
siempre lugar, desde un lado o desde otro".
22
Decididamente, para Lukács, tudo isso não esgota a produção estética contemporânea.
Algumas adaptações do realismo tradicional aos novos tempos podem ser encontradas
também na literatura, a exemplo de Joseph Conrad e Roger Martin du Gard, Sinclair Lewis e
Arnold Zweig, entre outras produções. Thomas Mann é, para o húngaro, quem “conseguiu
reconstruir em uma grande entidade total realista todos os elementos da vanguarda que são
realmente reflexos do atual modo de aparecer a essência, libertos das deformações desses
equilibristas experimentais” (LUKÁCS, 1967b, p. 472). Bertolt Brecht seria outro artista que
não poderia ser comparado à estranheza vanguardista. Como pensa o esteta magiar, a intenção
do dramaturgo alemão, “embarca precisamente no caminho oposto ao da chamada vanguarda”
(LUKÁCS, 1967b, p. 472). Essas poucas reações são muito mais ausentes nas artes plásticas
contemporâneas. Apenas em uma investigação histórico-materialista específica será possível
expor os motivos pelos quais o realismo foi quase que quebrado depois de artistas como, por
exemplo, Cézanne e Van Gogh. de se questionar também, “por que talentos tão grandes
como Matisse, ou criadores tão poderosos quanto Picasso, ficaram tão frequentemente presos
em uma experimentação problemática” (LUKÁCS, 1967b, p. 472).
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A vida humana, por sua vez, recebe e abriga a irradiação desse princípio
de modo que, independentemente que venha do cubismo, do dadaísmo, do
futurismo, do surrealismo, ou de alguma corrente aparentada à dita arte de
vanguarda, consegue amparo na opinião cotidiana e no senso comum
acadêmico. Excluindo-se as sempre bem-vindas, honrosas e raras tentativas,
esse amparo consegue se fazer um atraente e confortável bibelô para a
sociedade capitalista que enfrenta, como considera Mészáros (2009), uma
crise estrutural.
A chamada arte de vanguarda, indiferente que seus produtores tenham
ou não consciência disso, por acreditar que atende à demanda do drama
humano com seu esoterismo pedante, acaba por alimentar a publicidade
mercantil, o comércio destrutivo de produtos artísticos e o terrorismo
jornalístico acordado com o capitalismo contemporâneo. O resultado dessa
conjunção de fatores caminha de mãos dadas com o sucesso do princípio
decorativo que, de um lado, possui essência conformista e, de outro, tem
inconformismo irracional. Isso tudo é muito bem demonstrado por meio das
palavras de Benn (1970), escolhidas para epigrafar estas considerações finais.
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MARX, Karl. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e
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José Deribaldo Gomes Santos
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Como citar:
SANTOS, José Deribaldo Gomes. Alegoria e símbolo: a imanência cismundana
refletida artisticamente. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências
Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 44-63, jan./jun. 2020.
Data do envio: 5 fev. 2020
Data do aceite: 17 jun. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.544
Paula Alves Martins de Araújo
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Triunfo do realismo: o que é isso? Sobre uma categoria da
teoria do realismo de Lukács
Paula Alves Martins de Araújo
1
Resumo:
Ao analisar uma obra literária, Lukács a localiza em seu contexto histórico-
social. Em seus estudos sobre Tolstói, por exemplo, ele busca demonstrar
como a obra desse escritor supera certas dificuldades impostas em sua época
para o “grande realismo”, contrariando até certo ponto sua visão de mundo
reacionária. Esse fenômeno é o que Lukács entende como “triunfo do
realismo”. Nosso artigo visa assim discutir essa tese, perguntando-se quais são
as circunstâncias que tornam possível um tour de force realista. Também nos
interessa avaliar o contexto em que Lukács desenvolve essa tese, considerando
suas polêmicas contra o sociologismo vulgar, bem como seu engajamento na
frente popular nos anos 1930.
Palavras-chave: György Lukács; teoria do realismo; triunfo do realismo;
teoria literária marxista.
What is the triumph of realism? On a category of Lukacs' theory
of realism
Abstract:
When analyzing a literary work, Lukacs sets it against its socio-historical
context. In his studies on Tolstoy, for instance, he seeks to demonstrate how
this writer's work surmount some difficulties that were imposed to the "great
realism" at his time, breaking to a certain point the limits of his own
reactionary world view. That’s what Lukacs calls the "triumph of realism". Our
article aims to discuss this thesis, interrogating what are these circumstances
that enable a realist tour de force. It is also our interest to evaluate the context
in which Lukacs develops this thesis, taking account of his polemics against the
vulgar sociologism and his engagement in the popular front during the 1930s.
Keywords: Gyorgy Lukacs; theory of realism; triumph of realism; Marxist
literary theory.
1
Mestre em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail:
paulaama@hotmail.com.
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Paula Alves Martins de Araújo
65
I
Em um de seus textos, László Sziklai observa que, mesmo quando não
parece, nas contribuições de Lukács sobre o grande realismo nunca se trata
apenas do grande realismo (cf. SZIKLAI, 1976, p. 124). Haveria algo a mais. É
de se perguntar, então, do que Lukács de fato trata, para além das questões de
literatura, em seus textos dos anos 1930 e 40 - um período de sua atuação que
lhe valeu, e ainda vale, a acusação de pensador oficial do stalinismo. Pois
justamente a tematização do grande realismo parece contribuir com provas
para esse tipo de acusação. Seu interesse crítico por autores do século XIX,
como Balzac ou Tolstói, que além do mais são apresentados em sucessivas
contribuições como uma herança a ser reivindicada pelo campo socialista (em
detrimento de certas linhas do modernismo literário), é tomado muitas vezes
como mais uma evidência de um marxismo dogmático e anacrônico, nada
diferente do que se espera da boa tradição do stalinismo. Ironicamente,
contudo, se nos fiarmos nas indicações do próprio autor, somos confrontados
com o entendimento contrário, pois, para Lukács, os textos desse período são
justamente um bastião, conquanto discreto, do antisstalinismo.
De fato, é possível encontrar, em textos posteriores, diversas passagens
em que Lukács se distancia explicitamente do stalinismo. Convicto da
necessidade de reformas radicais, ele se empenha na renovação do socialismo,
o que para ele significa, fundamentalmente, uma democratização, em sentido
comunista, de toda a vida social, livrando o socialismo “dos grilhões do método
stalinista” (LUKÁCS, 1970, p. 189). Mas ao revisitar sua trajetória
2
, Lukács não
circunscreve sua oposição ao stalinismo àquele momento em que, após a morte
de Stálin e das resoluções do XX Congresso do Partido Comunista (1956), seu
legado estava sendo revisto e debatido nas fileiras do comunismo
3
, processo
que ficou conhecido como desestalinização. Ele revela ter usado uma
linguagem esópica para driblar a censura já nos textos da década de 30,
entremeando, além disso, citações protocolares de Stálin em seu argumento.
Assim, mesmo quando não endereça de maneira direta a sua crítica, até
porque, como Lukács mesmo reconhece (cf. 1970b, pp. 235-6), em certos
momentos não havia mesmo uma discordância espiritual e moral entre suas
convicções e as posições de Stálin, ele entende que, de um modo ou de outro,
ela sempre esteve presente. Nesse sentido, ele dirá ao final de sua vida “poder
2
Veja-se, nesse sentido, o texto Sozialismus als Phase radikaler kritischer Reformen (1969),
em que Lukács, de modo sintético, faz um balanço do ponto de vista biográfico de sua relação
com Stálin, ponderando suas motivações, muitas vezes eivadas de ilusões, e o acerto (ou não)
de suas escolhas no contexto histórico da época.
3
Também Jo Paulo Netto reforça o aspecto contínuo de sua crítica: “entre a crítica
lukacsiana elíptica dos anos 1930 aos anos 50 e a denúncia aberta do último Lukács, posterior
ao XX Congresso do PCUS, não hiatos: há uma continuidade essencial, dissimulada
somente pela linguagem fabular utilizada na era stalinista” (2019, p. 336).
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tranquilamente afirmar que eu era objetivamente um adversário dos métodos
de Stálin, mesmo quando eu mesmo acreditava ser um defensor de Stálin”
(LUKÁCS, 1970b, p. 240). Para Lukács, portanto, a oposição à linha oficial do
stalinismo avulta em seus textos o nas manobras linguísticas, mas, e
sobretudo, ela fundamenta a elaboração dos princípios metodológicos, numa
“atitude estruturalmente antisstalinista”, como pontua Nicolas Tertulian
(2007, p. 11)
4
.
É nesse sentido que Lukács enquadra sua leitura de Tolstói e Balzac
como um protesto tácito, de maneira indireta, contra a prática stalinista de
avaliar os méritos de uma obra literária a partir da filiação partidária de seu
autor (cf. LUKÁCS, 2018, p. 580). Quando ele, nos anos 30, inscreve Tolstói
na tradição do grande realismo, apresentando-o como uma figura relevante
para o desenvolvimento do realismo socialista, o gesto de polêmica é assim
calculado. Pois, também na interpretação da literatura, a tendência stalinista
“desativava todas mediações” (LUKÁCS , 1970, p. 177), de modo que a crítica
se contentava em estabelecer correspondências entre a “teoria do partido e o
teor das ideias poéticas” (LUKÁCS, 2018, p. 580), forçando uma politização
extremamente simplificadora das artes. Trata-se de uma prática semelhante à
que Lukács identificava no chamado sociologismo vulgar, uma vertente da
sociologia da arte que buscava encontrar nas produções literárias um
equivalente de determinadas estruturas sociais e econômicas, da psicologia de
classe do escritor, a cuja gênese social a obra é então reduzida.
É possível acompanhar, em diversos textos dos anos 1930, o debate que
Lukács trava no cenário soviético, juntamente com Michail Lifschitz, contra
essa linhagem crítica, representada, de acordo com os autores, sobretudo por
Plekhânov
5
. Eles criticavam, por exemplo, a concepção rasteira de
4
O que, diga-se de passagem, não impede que Lukács reconheça eventuais acertos ticos de
Stálin, no calor da hora, mas também depois, como podemos ler, por exemplo, no texto
mencionado na primeira nota, Sozialismus als Phase radikaler kritischer Reformen. Um
balanço muito lúcido dessa relação é o texto de José Paulo Netto, do qual destaco uma outra
passagem: “Com efeito, Lukács, fiel à sua ortodoxia marxista, adotou uma postura de dúplice
crítica: contra o dogmatismo da era stalinista e contra o liberalismo emergente com a sua
denúncia” (2019, p. 310). José Paulo Netto analisa ainda com bastante interesse a
problemática cultural da era stalinista e a oposição de Lukács, em sua atividade crítica, às suas
linhas gerais bem como em questões pontuais.
5
De acordo com Sziklai, essa polêmica contra a sociologia vulgar se inicia em 1936, com um
texto de Lifschitz, Der Leninismus und die Kunstkritik, nas colunas da revista Literaturnaja
Gaseta. antes, na revista Literaturny Kritik, essa vertente havia sido criticada, mas, na
avaliação de Sziklai, “essa polêmica foi em partes demasiadamente abstrata. Sua
argumentação se fundava em bases filosóficas lábeis”, limitações das quais o artigo de
Lifschitz, por sua vez, não compartilharia (1978a, p. 95). Nas notas dos Moskauer Schriften
podemos ler ainda que o ponto de referência da sociologia literária soviética, já que era um de
seus principais representantes, era W. M. Fritsche (LUKÁCS, 1981, p. 159). Se, àquela altura,
a polêmica talvez não tenha tido intencionalmente esse sentido, julgando-a da perspectiva dos
trabalhos de Lukács e Lifschitz, é possível interpretar essa diferenciação em relação à
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engajamento, de acordo com a qual os méritos de uma obra podem ser
avaliados a partir da origem e posicionamento do escritor, tendo em vista que
o estilo coincide ponto por ponto com o “estilo da classe” à qual ele pertence.
O escritor é visto como um porta voz dos interesses de sua classe e se ela é
progressista, a obra também o será e representa assim um estilo progressista.
Se, pelo contrário, ele avalia com uma consciência reacionária o estado das
coisas, sua obra pode de saída ser considerada como algo menor.
Logo se que os campos progressista e reacionário são demarcados por
uma linha clara e rígida, não havendo qualquer ponto cego ou indício de
contradição. Daí até a conclusão de que um autor pequeno burguês jamais
poderia escrever uma obra que não fosse pequeno burguesa, bem como um
conde reacionário como era Tolstói não teria o que dizer para um
trabalhador russo é um pulo. E mesmo que, a certa altura, os críticos dessa
vertente se vejam obrigados a fazer algumas concessões, na avaliação de
Lukács essa guinada estratégica mantém com um tipo de dualismo eclético
em um buraco, eles depositam as concepções políticas reacionárias do autor e,
em outro, uma “misteriosa maestria” (LUKÁCS, 1981, p. 128) – todas as
concepções de base, mantem uma certa visão sobre o progresso
6
que elimina
as manifestações de contradição do desenvolvimento histórico nas sociedades
de classe (cf. LUKÁCS, 1981, p. 70).
Ao recusar esse tipo de análise, Lukács evidentemente não assume o
ponto de vista diametralmente oposto, isto é, de que não haveria qualquer
relação entre uma obra de arte e suas determinações sociais, ou que a visão de
mundo de um autor não se imprime de modo algum na sua obra e seria,
portanto, indiferente. O que Lukács combate em primeira linha é a ideia de que
o sujeito e seu papel na elaboração, por exemplo, de um romance ou ainda sua
visão de mundo possam ser determinados mecanicamente como um produto
imediato de seu ser social. Dentre outras coisas, Lukács pondera que, se a
sociabilidade e o pertencimento a uma classe são um fator fundamental no
desenvolvimento ideológico, elas não representam, para o indivíduo, uma
jaula de ferro, como se ele fosse um produto passivo de sua classe. Tal
posicionamento, e não uma forma qualquer de fatalismo, é o que caracteriza
para Lukács o marxismo. Se este mostra a impossibilidade de que limitações
impostas por uma determinada classe sejam superadas em massa pelos
indivíduos dessa classe, é porque de modo acidental elas podem ser superadas
individualmente (cf. LUKÁCS, 1971, p. 262). Assim, sem negar o caráter
sociologia vulgar como um episódio do esforço de estabelecimento do que seria (do que
poderia ser) uma estética marxista, esforço este central para a trajetória de ambos.
6
Como lembra Sziklai, “Lifschitz diagnostica de modo totalmente correto que o principal
esquema, que serve de modelo para o sociologus vulgaris na análise de todos os processos da
história da cultura, era o colisão entre a burguesia progressista com a nobreza feudal,
madura para o declínio” (SZIKLAI, 1978a, p. 94).
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determinante da classe, Lukács conclui que um indivíduo não “está preso
hermética e solipsisticamente no ser e consciência de sua classe; na realidade,
pelo contrário, ele se defronta frequentemente com toda a sociedade”
(LUKÁCS, 1971, p. 263). Tendo em vista a contraditoriedade do
desenvolvimento social, Lukács entende que as relações entre indivíduo e
classe só podem ser representadas no quadro da “dialética da realidade”.
Assim, a partir do princípio da totalidade
7
, Lukács ressalta o caráter
determinante das relações sociais e econômicas no que diz respeito à
consciência individual e às atividades da vida espiritual, tais como as ciências
ou as obras de artes, ao mesmo tempo em que se contrapõe ao sociologismo
vulgar, bem como ao que ele identifica como “método stalinista”, ao ressaltar
justamente a complexidade dessa relação.
É por considerar que o desenvolvimento social nas sociedades de classe,
em sua realização processual e por vezes dramática, é contraditório
8
que
Lukács descarta a possibilidade de separar e contrapor mecanicamente o lado
bom e o lado ruim de determinada ideologia, extraindo seu sentido de todo
progressista ou de todo reacionário. Ele parte do pressuposto histórico-
filosófico de que, no capitalismo, o progresso se realiza às custas dos
indivíduos, que são submetidos à experiência da alienação de si e dos outros.
Lukács discute esse antagonismo próprio ao capitalismo em diferentes textos
(nesse sentido, são paradigmáticos os comentários sobre Goethe e Hegel). Ele
atravessa, também, os debates contra o sociologismo vulgar nos Escritos de
Moscou, como podemos ver em uma passagem em que Lukács comenta certa
limitação na obra de Ricardo, que também desconsidera de maneira coerente
com os lineamentos de sua teoria a unidade dialética entre indivíduo e
gênero:
Em Ricardo, apenas o progresso do gênero se torna conceito, os
indivíduos aparecem à margem justificadamente, a partir de sua
concepção enquanto nulidades em desaparecimento. Na
realidade, pelo contrário, o progresso do gênero se realiza sobre o
calvário trágico da felicidade e das mais nobres aspirações humanas.
Tão pouco é justificável economicamente protestar contra o
progresso que o capitalismo representa em nome dos indivíduos ou
de grupos humanos, tanto menos a ênfase exclusiva sobre os
momentos de progresso pode expressar o caráter específico dessa
fase do desenvolvimento. (1981, p. 112)
7
Um comentário de Sziklai é bastante esclarecedor quanto a esse ponto: “A sua essência [do
princípio dialético da totalidade] consiste em que sempre se deve considerar, em um
determinado período do desenvolvimento histórico total, as classes e as correlações de força
que surgiram entre elas, e não em relação ao seu estado morto [Zustandshaftigkeit], mas a
suas principais tendências de movimento” (1978, p. 96).
8
Cf. Cotrim (2009, p. 337) para uma apresentação sintética e bastante clara do problema da
contraditoriedade do progresso na sociedade de classes.
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À diferença de Ricardo, Lukács confronta o problema da
contraditoriedade do progresso do ponto de vista do socialismo; à diferença
dos sociologistas vulgares, para Lukács a realização do socialismo não significa
o fim das contradições. É o que ele deixa claro, ao comentar em O romance
histórico as colisões trágicas nos dramas:
A contradição do desenvolvimento social, a intensificação dessas
contradições aa colisão trágica é um fato comum [allgemein] da
vida. Essa contraditoriedade da vida também não cessa com a
superação social do antagonismo de classe através da revolução
socialista vitoriosa. Acreditar que, no socialismo, apenas haveria o
júbilo tedioso da satisfação não problemática, sem lutas ou conflitos
seria uma concepção totalmente rasa e não dialética da vida. (1965,
p. 118)
O desenvolvimento social não é um processo dicotômico e linear. Sendo
assim, a crítica também não pode se contentar em simplesmente afirmar que
tal ideólogo ou que tal escritor é reacionário, pois
tendências do futuro podem ter traços reacionário-utópicos, e a
orientação no passado pode ter como consequência as mais
grandiosas descobertas cientificas, prenhes de futuro… A história da
ciência conhece inúmeros exemplos em que descobertas certas e
importantes foram feitas a partir de premissas falsas (LUKÁCS,
1981, pp. 127-8).
O que Lukács constata a respeito da história da ciência certamente não
se restringe a esse campo de produção do conhecimento; antes, esse exemplo
retoma e especifica uma das “leis fundamentais” da filosofia da história,
enunciada diversas vezes pelos clássicos, como nos lembra Sziklai:
frequentemente, nas sociedades de classe, os homens realizam a própria
história com uma falsa consciência, o que o significa que esses objetivos
embebidos por uma falsa consciência subjetiva não possam conduzir a
resultados objetivamente corretos (cf. SZIKLAI, 1976, p. 130). Pois os homens
atuam sem que tenham total conhecimento de todas as circunstâncias ou das
consequências de sua ação, e isso repercute em tal descompasso entre a
motivação de quem age e o resultado dessa ação ou seu sentido objetivo. Não
por acaso, ao analisar o escopo alcançado pela iniciativa pessoal no contexto
do romance moderno, Lukács identifica a preponderância das relações sociais
em detrimento da intenção do herói, de modo que surge justamente “o
socialmente necessário: os homens agem de acordo com suas inclinações e
paixões individuais, mas o resultado de suas ações é algo totalmente diferente
do que eles intenderam” (1965, p. 179). O esquema do sociologismo vulgar, de
acordo com o qual o caráter progressista da classe se reflete de modo linear
sobre sua ideologia, sinalizando igualmente a grandiosidade das obras de arte
produzidas pelos autores dessa classe, exclui o surgimento da falsa consciência
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no contexto da realização de objetivos sociais progressistas e ignora a
contradição do progresso na sociedade de classes.
Há, ainda, pelo menos um terceiro aspecto na abordagem do
sociologismo vulgar sobre a relação entre a base econômica e o complexo
artístico que contribui, na perspectiva de Lukács, para sua simplificação. Ao
aproximar excessivamente uma esfera da outra, o sociologismo vulgar supõe
que o desenvolvimento das artes ocorre paralelamente ao desenvolvimento
econômico, o que vale o mesmo que dizer que a arte produzida nas sociedades
economicamente mais avançadas é, ela mesma, mais avançada do que aquela
produzida nas sociedades economicamente menos avançadas. Para Lukács,
contudo, essa relação é caracterizada por uma desigualdade
9
. A mesma base
econômica pode dar origem a fenômenos artísticos mais ou menos avançados,
de modo que é possível que um artista em um país economicamente menos
desenvolvido capture de modo mais pregnante traços essenciais de sua época
do que um contemporâneo em um país mais desenvolvido:
o materialismo histórico reconhece também aqui em grande
contraste com o marxismo vulgar – que o desenvolvimento das
ideologias o ocorre paralelamente, de modo mecânico e
necessário, com o avanço econômico. Não é de forma nenhuma
necessário, para a história do comunismo primitivo e das sociedades
de classe, sobre as quais Marx e Engels escreveram, que todo avanço
econômico, social necessariamente traga consigo um avanço da
literatura, da arte, da filosofia, etc.; não é de forma alguma
incontornavelmente necessário que uma sociedade mais avançada
tenha uma literatura, arte, filosofia mais desenvolvida do que uma
sociedade menos avançada (LUKÁCS, 1969, p. 210).
Afinal, dirá Lukács, se de acordo com o materialismo histórico as
ideologias determinam o processo de desenvolvimento de maneira secundária
em relação à base econômica, concluir a partir disso que entre “base e
superestrutura exista uma relação causal simples, na qual a primeira figuraria
apenas como causa e a última apenas como consequência” (LUKÁCS, 1969, p.
207) é um tipo de insuficiência própria do materialismo vulgar, ao qual
escapam as mediações próprias às expressões ideológicas. Assim, enfatizando
o papel desempenhado pela “energia criadora” do sujeito, Lukács conclui que
cada ramo da atividade espiritual possui uma “determinada independência
relativa”
10
:
9
De acordo com Winfried Schröder, a primeira vez que Lukács fala do significado das notas
de Marx sobre a relação desigual entre arte e economia para a superação da sociologia vulgar
foi no artigo sobre Franz Mehring, publicado em 1933. Lukács se perfila a Marx e Engels, ao
identificar e desenvolver esse problema. Ambos teriam repetidas vezes demonstrado o
“desenvolvimento desigual no campo da história das ideologias” (LUKÁCS, 1969, p. 210).
10
E que se coloque o devido peso na palavra “relativa”, que explicita a correlação entre base
econômica e o desenvolvimento ideológico, nos marcos da divisão do trabalho. Numa
passagem mais abaixo desse mesmo texto, Lukács retoma Engels para explicar como é possível
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Cada uma dessas áreas de atividade, cada esfera se desenvolve
através do sujeito criador -, a si, liga-se imediatamente às próprias
criações anteriores, continuidade ao desenvolvimento,
conquanto crítica e polemicamente (1969, p. 209).
E isso vale particularmente para as artes e a literatura, o que tem
implicações na maneira como a ideologia do artista, sua visão de mundo, em
suas oscilações e inconsistências, se imprime nas obras de arte. Sem negar o
caráter desfavorável da formação capitalista para o desenvolvimento das
artes
11
, Lukács reconhece que o artista possui uma margem de manobra maior
diante da realidade do que, por exemplo, um cientista social:
Mas, de certo, a margem de manobra, dentro da qual mesmo a mais
intrépida sinceridade artística não leva a uma ruptura completa e
franca com a própria classe, à necessidade de transição para o
proletariado, é incomparavelmente maior do que nas ciências
sociais. A literatura é, do ponto de vista imediato, a representação
de homens singulares e destinos singulares, que apenas em uma
instância tem contato com as relações sociais da época e não
precisam, necessariamente, demonstrar uma ligação direta com a
oposição burguesia-proletariado. (1971, pp. 266-7)
Para Lukács, em virtude da especificidade das esferas artística e
literária, o posicionamento do autor, consciente ou não, e que traz consigo as
perspectivas de sua classe, não afeta de modo necessário e direto a
representação artística. Também por essa razão é que, referindo-se sobretudo
ao período que antecede a ascensão da burguesia ao poder, ele dirá que
casos em que uma visão de mundo política e socialmente reacionária não pode
impedir o surgimento das maiores obras primas do realismo, e casos em
que justamente o progressismo político de um escritor burguês assume formas
que se colocam no meio do caminho de seu realismo na figuração” (1971, p.
269). Vê-se que Lukács, como viemos dizendo, não separa a visão de mundo
do escritor da realização (esteticamente bem-sucedida ou não) de sua obra; ele
nega, contudo, que haja uma causalidade direta entre as tendências
progressistas ou reacionárias e o valor artístico de uma expressão ideológica,
explicitando por seu turno outras determinações, como as diferentes
exigências dos diferentes campos da atividade ideológica e as possibilidades
que eles abrem, historicamente, para a apreensão concreta da realidade.
II
Quando se trata de avaliar o que é a literatura de fato progressista e qual
o papel nela exercido pelo fator subjetivo, essa concepção do desenvolvimento
que certas esferas da vida espiritual se desenvolvam de maneira relativamente independente
(cf. 1969, p. 209).
11
A esse respeito, cf. Bischof; Araújo (2015, p. 90).
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histórico, que identifica a contraditoriedade no coração da noção de progresso
nas sociedades de classes; que define nos termos de uma desigualdade a
relação entre a base econômica e as formas ideológicas de um período (dentre
as quais figura, vale lembrar, a literatura); que ratifica as leis gerais de
contradição entre ser e consciência rejeita a solução dos paralelos mecânicos.
Para responder, então, que tipo de influência, seja ela positiva ou negativa,
uma determinada visão de mundo exerce sobre uma obra, é preciso, dirá
Lukács, descer às raízes, é preciso determinar a situação histórica concreta, ao
mesmo tempo em que se observa de perto, na própria produção de um
determinado artista, quais são as implicações de seu posicionamento diante da
realidade:
A concretude histórica exige assim, a cada vez, a investigação de
como uma determinada visão de mundo atua sob determinadas
circunstâncias sobre um determinado escritor. Essa investigação
exige então, por um lado, a compreensão correta do
desenvolvimento capitalista e do papel das diferentes visões de
mundo nela; por outro, ela deve se concentrar na correlação
concreta na criação mesma do escritor. (1981, p. 132)
Atendo-se a essa perspectiva, através da análise da situação concreta,
Lukács pode identificar no caso de alguns escritores um fenômeno muito
curioso, que mencionamos por alto. Ele constata que obras em que o
autor figura e assim a questiona na prática justamente o contrário de sua
visão de mundo professada, o que não pressupõe qualquer tipo de
intencionalidade de sua parte. A intenção do autor não é decisiva nesse caso.
Isso é o que Lukács entende por “triunfo do realismo” ou “vitória do realismo”.
Como se sabe, essa é na sua origem uma expressão de Engels
12
, que a usa para
caracterizar um aspecto da obra de Balzac em uma carta a Margaret Harkness.
A avaliação de Lênin sobre Tolstói segue por essa mesma direção; em
diferentes artigos, ele comenta e contextualiza do ponto de vista histórico e
econômico as contradições na visão de mundo de Tolstói, cuja obra contem
12
A carta de Engels, escrita em inglês, sob o ensejo de comentar uma obra de Margaret
Harkness, desapareceu, e o que se conhece dela é um esboço. A partir de uma carta de M.
Harkness supõe-se que Engels a enviou em abril de 1888. De acordo com Jan Myrdal (1976, p.
551), a carta foi divulgada pela primeira vez em 1932 na Linkskurve em tradução alemã a partir
do russo; o original em inglês foi publicado em 1948 na coleção dos escritos estéticos de Marx
e Engels organizada por Michail Lifschitz. Na carta, depois de caracterizar o realismo bem
como o posicionamento político de Balzac, Engels nota sua mordacidade justamente em
relação àqueles com quem o escritor francês por uma questão de classe - simpatizava: os
nobres, e conclui com as seguintes palavras: “que Balzac então tenha sido compelido a agir
contra suas próprias simpatias de classe e preconceitos políticos, que ele tenha visto a
necessidade do declínio de seus queridos nobres e os descreveu como pessoas que não
merecem um destino melhor; e que ele tenha visto os verdadeiros homens do futuro ali,
somente onde naquela época elas poderiam ser encontradas – isso eu considero um dos
maiores triunfos do realismo e um dos traços mais extraordinários do velho Balzac“ (1948, p.
104).
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não “imagens incomparáveis da vida russa”, mas “pertence à literatura
mundial” (LÊNIN, 1977, p. 96).
Não é, contudo, como um recurso a uma autoridade ou por mera
deferência aos clássicos do marxismo que Lukács retoma consistentemente a
noção de “triunfo do realismo”. Ela expressa, num ponto crucial, que é a
relação do escritor, enquanto subjetividade artística, e a realidade, a
autonomia relativa da literatura, contra as exigências da propaganda e do
partido, contra, na expressão acertada de Tertulian, as “injunções ideológicas”:
“se fôssemos enxergar (com Gundolf)
13
na literatura somente a expressão da
individualidade do artista ou (com a sociologia vulgar) somente a expressão da
psicologia de classe e não o reflexo da realidade objetiva” (LUKÁCS, 1964a, p.
224). Ela sintetiza, também, uma possibilidade de abertura à cultura burguesa,
que, ancorada ela mesma nas concepções mais gerais de Lukács sobre o
marxismo e a literatura (como viemos sugerindo), participa do esforço que
caracteriza esse período da produção de Lukács: a elaboração das alternativas
para a arte e a literatura, “em períodos nos quais o fascismo chega ao poder ou
o socialismo é vitorioso“ (SZIKLAI, 1976, p. 124). É a isso que Sziklai se refere,
quando afirma que nos escritos estéticos dos anos 1930, Lukács não estava
simplesmente tematizando o grande realismo, por mais que parecesse ser esse
o seu objetivo. Assim, a tese do “triunfo do realismo” organiza um problema
central de sua teoria, e que ganha particular relevância no contexto da frente
popular
14
.
Tal resolução do Partido Comunista no VII Congresso (1935)
15
, que por
um lado modifica a postura de rejeição diante da democracia burguesa, e, por
outro, apresenta-se como um contraponto ao dogmatismo e ao sectarismo na
União Soviética, pode ser vista como o gatilho político da necessidade de
elaboração de um aparato teórico para interpretar, adequadamente, a obra dos
aliados burgueses. Nesse sentido, podemos ler O romance histórico de Lukács
como uma resposta à produção de romances históricos de sua época. Mas,
como nota Sziklai, o debate sobre a relação entre visão de mundo e método
artístico, na União Soviética, se inicia antes, logo após a fundação da revista
Literaturny Kritik em 1933
16
, contando até 1934, quando se interrompe por
13
Friedrich Gundolf foi um conhecido germanista na República de Weimar. Ele pertencia ao
círculo de George.
14
José Paulo Netto aponta para essa mesma correlação; ele entende que Lukács é um “coerente
ideólogo da política de frente popular avant la lettre” (2017, p. 331), pois ele já havia perdido
as esperanças de que a dominação burguesa iria ser liquidada a curto prazo, o que tem, para
ele, consequências táticas e estratégicas.
15
Sziklai nota que é característico da atividade de Lukács nesse período uma orientação “sem
reserva crítica tanto pelos princípios estratégicos como táticos da Internacional Comunista”
(1990, p. 11).
16
Ainda de acordo com Sziklai, antes mesmo desse debate, Lunatscharski havia criticado a
falsa concepção de que, ao se apropriar do materialismo dialético, o escritor garantiria,
automaticamente, o conteúdo certo de sua obra. Também P. Judin e M. Rosental teriam se
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um tempo, com mais de 30 contribuições. Seja como for, Lukács se empenha
na crítica ao sectarismo, do qual ele mesmo não estivera isento
17
, e ressalta o
significado da grande literatura realista dos culos anteriores. Assim, no
escopo dessa “plataforma antifascista” (SZIKLAI, 1990, p. 8), ele lapida sua
teoria no sentido de apoiar uma literatura partidária, indicando brechas para
a luta ideológica para além da União Soviética, sobretudo no campo literário.
Assim, contra a abordagem sectária que, à maneira do sociologismo
vulgar, estabelece equivalências entre posicionamento político e valor estético,
prejudicando o desenvolvimento da literatura radicalmente democrática e
proletária, Lukács procura mostrar como até mesmo a falsa consciência pode
ceder ao ímpeto da realidade, que se objetiva então na obra artística, rompendo
com o fetichismo e a mistificação (cf. LUKÁCS, 1981, p. 137), desvelando os
momentos de alienação no capitalismo, num adensamento crítico através da
representação literária. Pode-se então falar de “triunfo do realismo” quando a
“realidade vivenciada e apreendida corretamente” se opõe à “visão de mundo
ensinada” (LUKÁCS, 1971, p. 270); quando, na figuração literária, a pujança da
realidade, sua superioridade em relação às concepções subjetivas se manifesta;
quando, portanto, no processo de figuração literária, ser e consciência entram
em contradição.
Para tanto, não é exigido da parte do autor alguma forma de consciência
crítica ou revolucionária. Na verdade, no processo de reflexo literário, é
possível que o reacionarismo se constitua outrossim como um ponto de vista
privilegiado como no caso de Balzac. Mas, mesmo autores que se destacam
pelo caráter progressista de sua visão de mundo, como os democratas
revolucionários paradoxalmente, de acordo com Lukács, poucos desses nos
legaram uma obra propriamente realista (cf. 1981, p. 130) –, mesmo estes
devem lidar com os brotos da ilusão que caracterizam “qualquer visão de
mundo do pensamento pré-marxista” (LUKÁCS, 1981, p. 89). Frente a tais
ilusões historicamente necessárias, poderíamos dizer –, o triunfo do
realismo representa uma “determinada forma de no entanto [eine bestimmte
Form des Trotzdem]” (LUKÁCS, 1981, p. 89), indicando assim a constante
tensão em que elas se encontram com uma figuração propriamente realista da
sociedade, sem que seja possível determinar de antemão seu efeito (positivo,
oposto a equiparação da RAPP entre visão de mundo e método artístico (cf. SZIKLAI, 1978, p.
120).
17
A questão do sectarismo é apresentada clara e sinteticamente por Sziklai: “com a vitória do
fascismo na Alemanha, vem para primeiro plano no modo de pensar de Lukács justamente
aqueles momentos sectários (fascistização do capitalismo, a socialdemocracia como quartel-
mestre do fascismo), que estavam formulados nas Teses de Blum, sem que, na situação
modificada, a ideia da ditadura democrática a pudesse compensar em certa medida. Da falsa
alternativa de Lukács fascismo ou a revolução proletária que o varre – decorre, no entanto,
linearmente que apenas o proletariado – mais exatamente – o proletariado apenas assume a
luta efetiva contra o fascismo, isto é, contra o capitalismo” (1990, p. 13).
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negativo) sobre a obra – embora, como nota Lukács, “essas ilusões se tornam
tão mais vazias e perniciosas para a compreensão da realidade, quanto mais
desenvolvidas as oposições de classe” (1981, p. 123). Faz-se necessário,
portanto, nada menos, nada mais do que um tour de force realista, que a
contrapelo impõe uma ruptura com essa gramática de expectativas do artista,
que é a sua visão de mundo.
A questão que a essa altura se torna forçosa então é: como essa ruptura
pode ocorrer? Como um sujeito que “não necessariamente conhece a realidade
em suas determinações essenciais chega a se converter no meio através do qual
certo saber sobre a realidade consegue se expressar na obra?” (MARANDO,
2014, p. 18). Lukács responde a essa pergunta em diferentes textos dos anos
30 e 40; em alguns, como Marx e o problema da decadência ideológica, ou
ainda certos ensaios dos Moskauer Schriften, ele se detém mais sobre o
assunto. Justapondo essas contribuições, é possível chegar a alguns elementos
que podemos considerar como centrais para a definição de Lukács sobre a
realização do “triunfo do realismo”. Ela envolve tanto aspectos subjetivos como
objetivos, que atuam em codependência.
No nível da possibilidade abstrata, Lukács menciona como
pressupostos subjetivos o talento, isto é, “a capacidade de capturar e
apresentar a realidade em sua complexidade” (1964a, p. 229), e a “honestidade
artística”. Frequentemente, Lukács afirma sobre um determinado escritor que
ele é honesto; assim, ele diz por exemplo que Flaubert e Zola não participam
do desenvolvimento social de sua época, pois são “grandes e honestos demais”
(1971, 205) para isso; também Kleist, que “rejeita a tentativa de aliciamento do
governo”, “arruína-se material e moralmente, mas enquanto uma pessoa
subjetivamente honesta” (LUKÁCS, 1964a, p. 230). Com esse termo de
conotação aparentemente moral, Lukács procura indicar a coerência dos
escritores, que se esforçam por cunhar sua obra de acordo com “a própria
imagem de mundo, sem se preocupar com aprovação ou rejeição” (1971, p.
269). Se a “honestidade artística” envolve um posicionamento ético, ela
pressupõe também certa consequência no processo de figuração.
Diferentemente daqueles que moldam a realidade de acordo com o filtro que
convém à classe dominante para Lukács, esses, que capitularam e se
converteram à apologética, estão perdidos como escritores –, os escritores
honestos possuem “a coragem de figurar o mundo que ele [escritor] viu e tal
como ele o viu” (1964a, p. 229). Nesse sentido, a honestidade é uma condição
importante para o triunfo do realismo, mas ela não passa de uma possibilidade
abstrata (cf. LUKÁCS, 1971, p. 269; 1981, p. 139).
Um passo na direção da concretização dessas qualidades subjetivas é o
“realismo espontâneo”. Ele consiste na preferência que o escritor manifesta na
tessitura de sua obra pelo acúmulo da realidade, em detrimento de sua própria
imagem de mundo (cf. LUKÁCS, 1971, p. 270). O realismo surge então
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espontaneamente
18
. Em relação à honestidade, que Lukács caracteriza como
“subjetivo-formal”, o “realismo espontâneo” representa um “conteúdo social e
ideológico” (1971, p. 270), sem que esteja em questão a apreensão correta da
realidade social ou a capacidade de tirar consequências corretas a partir dessa
apreensão. O “realismo espontâneo” é antes uma “força” que atua na direção
da abertura em relação à realidade, que desperta uma “confiança profunda e
íntima na realidade assim percebida” (1971, p. 270), e então permite que
surja “a intrepidez artística na reprodução do mundo assim visto” (1971, p.
270), que corresponde, assim entendemos, à “honestidade artística”.
O que Lukács identifica em Marx e a decadência ideológica burguesa
como “realismo espontâneo “nos parece semelhante à capacidade de reação
particular do jurista descrita por Engels e comentada por Lukács em Tribuno
popular ou burocrata? Ali, ele destaca a “espontaneidade imanente dessa área
profissional”, pois, no momento de seu surgimento, era possível que um
burocrata “subjetivamente honesto” fosse de encontro aos interesses de sua
classe, ao aprofundar ideologicamente a “espontaneidade de sua área”, “seu
comportamento espontâneo” em relação à ela, tornando-a “com pathos moral
o tema de sua vida” (1971, p. 426). A diferença é que esse conflito, no caso do
burocrata, é antes um acontecimento esporádico, enquanto que, no caso dos
artistas com tendências reacionárias, um tal processo não constitui uma
exceção. A despeito disso, é preciso notar que o momento histórico, também
no caso dos artistas, pode apresentar-se como favorável, ou, pelo contrário, ele
pode minar esse tipo de reação.
Outro paralelo possível é com a tipologia de Goethe sobre os escritores
apresentada por Lukács em Marxismo ou proudhonismo na história da
literatura. Goethe dirá que há escritores que procuram no geral o particular, e
este funciona então como um exemplo do geral, enquanto outros escritores se
ocupam do particular, que desapercebidamente pode conter o geral. Segundo
Lukács, esse último tipo não corrige a realidade a partir de sua visão de mundo,
pelo contrário, ele “reverencia a realidade, sua esperteza e sua sabedoria“
(1981, p. 133), o que paradoxalmente permite que sua visão de mundo,
indiretamente representada, atue de maneira mais produtiva sobre sua obra
(1981, p. 144).
Tanto em um quanto no outro caso, o que é descrito são manifestações
do realismo espontâneo. Em ambos os exemplos, a realidade se impõe sobre
uma apreensão tacanha, e assim a visão de mundo, em sua limitação, é
18
A escolha desse termo, “espontâneo”, é digna de atenção. A crítica de Lukács ao
espontaneísmo, enquanto uma maneira de exaltação da imediaticidade, pode ser encontrada
nos mais diversos contextos, e está no centro da crítica de Lukács ao naturalismo, por exemplo.
Ao especificar essa qualidade do escritor como “realismo espontâneo”, parece-nos que Lukács
sugere que é preciso ultrapassá-la, na medida em que a espontaneidade deve ser saturada
por mediações, através da figuração artística, transformando-se assim em outra coisa.
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questionada por causa de um comportamento espontâneo do sujeito, que o
coloca numa postura de receptiva abertura e assim a realidade pode se
imprimir, de maneira honesta e realista, na obra.
A postura do sujeito diante da realidade pode então contribuir, ou, pelo
contrário, inviabilizar o triunfo do realismo, ao permitir uma relação mais ou
menos profícua com a realidade. Para Lukács, está claro, não interessa em um
primeiro momento se a visão de mundo do autor é progressista, se ele alimenta
utopias ou se se trata de uma figura reacionária. Mas a imagem de mundo de
um autor - enquanto um processamento da realidade, enquanto uma “síntese
das suas experiências elevada a uma certa altura da generalização” (LUKÁCS,
1971, p. 229) pode ela mesma favorecer, ou pelo contrário, inviabilizar tal
representação abrangente, realista da realidade:
Com toda a tortuosidade da relação recíproca entre a possível
falsidade da visão de mundo e a grandeza da figuração realista, uma
visão de mundo equivocada qualquer evidentemente não pode servir
de sustentação para um grande realismo. (LUKÁCS, 1964b, p. 250)
Cabe então à crítica investigar concretamente de que maneira a visão de
mundo, enquanto um ponto de acesso à realidade, atua sobre a obra; se, numa
postura de “reverência à própria realidade”, o escritor se deixa guiar por suas
mãos (o que condiciona o “realismo espontâneo”) ou se ele procura dominar a
figuração, conformando-a não às suas próprias leis de desenvolvimento, mas
corrigindo-a de acordo com suas intenções pessoais. De modo que, por si
mesma, a visão de mundo não nos permite entender nada sobre literatura, mas
a sua “relação concreta com o processo criativo de um determinado escritor” é
um critério para que o triunfo do realismo possa ocorrer:
O ponto é em que medida o aprofundamento ideológico ajuda o
escritor a ver os homens, suas relações, conflitos etc. de maneira
mais correta e abrangente, mais verdadeira do que a mera
observação imediata tornaria possível. Aqui se mostra então um
resultado aparentemente paradoxal: quanto mais indireta a relação
entre a visão de mundo e a criação, mais profundamente apreendida
e pensada deve ser a visão de mundo, para de fato poder frutificar a
criação. Pois nessa relação indireta a visão de mundo do escritor
volta a ser novamente um momento da vida (LUKÁCS, 1981, p. 143).
Assim como Goethe, que vê no confronto com o singular (e não em sua
busca no geral, tal como na alegoria) as maiores possibilidades para a
literatura, Lukács insiste nas vantagens da relação indireta entre a visão de
mundo e a criação artística, em contraposição a uma relação direta,
intencional, característica da literatura de tendência enquanto expressão de
um ideal. Ainda assim, Lukács atribui grande importância ao ódio contra o
capitalismo e sua desumanidade, como no caso de Balzac. Tido por Lukács
como um dos expoentes da crítica romântica ao capitalismo, o ódio de Balzac
atravessa sua obra, como também a sua pessoa. De acordo com Lukács, ele é,
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assim como o reacionarismo, um elemento da sua visão de mundo; sendo
assim, quando Balzac “figura e não quando ele escreve como um panfletista
monarquista”, o ódio contra o capitalismo permite que ele reconheça certos
traços fundamentais da restauração, ele abre para Balzac “a percepção
precisamente desses fenômenos socialmente decisivos”, ele o torna
“clarividente” (LUKÁCS, 1981, p. 74). Para Lukács, não são raros esses casos
em que um ódio estreitamente ligado a tendências reacionárias permite que
um escritor perceba e figure mais adequadamente a realidade do que um
“representante do progresso burguês”. Outro exemplo seria Tolstói, cujo ódio,
mais precisamente o ódio de matiz camponês, é um elemento decisivo em sua
obra.
O ódio é um “componente afetivo” de uma atitude que Lukács valoriza,
e que Maria Marando sintetiza nos termos de “sentir-se parte de um certo
destino comum” (MARANDO, 2014, p. 20). Desse modo, ela ressalta a partir
de Lukács a importância de tais componentes afetivos “para a aproximação à
vivência da genericidade”, que não acontece através de “saberes científicos”,
“senão que pela via afetiva” (2014, p. 20). Nesse sentido é que Lukács
menciona uma carta de Gorki, na qual ele defende uma cultura dos
sentimentos”. Interessa a Lukács a observação de Gorki a respeito da diferença
entre os escritores e os leitores de sua época, na União Soviética. Gorki nota
que os leitores que fazem parte da vanguarda da classe trabalhadora, mesmo
quando não são familiares dos livros de Lênin, tem uma base emocional muito
mais sólida do que os escritores, o que lhes permite se apropriarem “da lógica
das ideias que subjaz as coisas”, pois o “sentimento de mundo” é “uma emoção
que antecede o conhecimento de mundo da lógica intelectual” (GORKI apud
LUKÁCS, 1971, p. 272). Essa cultura afetiva de que eles dão mostras poderia,
por sua vez, ajudar os escritores burgueses, que dependem da “própria força”
para superar as circunstâncias hostis do capitalismo, “a procurar e encontrar
o caminho através da brenha dos preconceitos impeditivos”(LUKÁCS, 1971, p.
272).
Quando Lukács fala do ódio ou do componente afetivo envolvido na
imagem de mundo como uma das condições para o “triunfo do realismo”, pode
parecer que está em jogo uma dimensão muito própria, íntima por assim dizer,
do autor empírico. Mas, como bem notou Marando, o fundamental nessa
atitude é a ponte com um destino comum, que alcança certa expressividade
através do processo de figuração. O ódio é o sentimento que Tolstói
compartilha com “milhões do povo russo, que ‘já odeiam os senhores da vida
presente, mas que ainda não chegaram na luta consciente contra eles, na luta
consequente e que vai até o fim sem qualquer conciliação’” (LÊNIN, 1986, p.
316).
A partir dessa indicação, podemos apreender um elemento do triunfo
do realismo que se torna perceptível sobretudo nesses comentários sobre
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Tolstói, que é o vínculo com um movimento social relevante e progressista. A
obra de Tolstói reflete tanto as virtudes quanto as fraquezas das “revoltas
camponesas depois das reformas de 1861 e antes da revolução de 1905”. A sua
recusa do mundo burguês, que funde o ódio contra a aristocracia a ilusões de
corte reacionário, é da mesma natureza contraditória que o “ódio aos
proprietários de terras aos senhores feudais e seu governo” que moveu a
“massa de milhões de camponeses” à luta revolucionário-democrática”
(LÊNIN, 1977, p. 99). Assim, em virtude de seu teor objetivo, em virtude de sua
“necessidade histórico-mundial”, as ilusões de Tolstói não o impedem,
como são um ponto de apoio para sua grandeza literária, para sua “capacidade
de desvelar e figurar as determinações essenciais do desenvolvimento social”
(1964b, p. 190). Se, em outros momentos, Lukács não atribui claramente um
caráter determinante a esse vínculo, em seu comentário a Tolstói ele é de fato
categórico:
apenas aquelas ilusões do escritor que são fundadas
necessariamente no movimento social, cuja expressão literária é o
escritor, que, enquanto ilusões, frequentemente ilusões trágicas, são
de uma necessidade histórico mundial, não serão um impedimento
insuperável para uma tal figuração objetiva da sociedade (1964b, p.
191).
O vínculo com um movimento social significativo e progressista é o que
torna assim uma ilusão historicamente justificável (cf. LUKÁCS, 1964b, p.
250).
Se nos atentamos bem, podemos ler nessa restrição, no critério da
necessidade histórico-mundial que advém da estreita relação com um
movimento popular, um outro requisito da teoria do realismo e que
desempenha igualmente um papel no “triunfo do realismo”. Na medida em que
expressa literariamente a potência e os limites do movimento camponês russo,
Tolstói traz para o primeiro plano “os grandes problemas da vida, que, em
virtude de seu caráter geral e sua profundeza, podem ser entendidos por todos”
(LUKÁCS, 1964b, p. 256). Essa habilidade em retratar os momentos
significativos da vida popular é o que Lukács entende por “caráter popular”
[Volkstümlichkeit]. Através do caráter popular, através da “figuração múltipla
e integral da vida”, o ponto de vista do escritor, que política e socialmente pode
ser visto como iludido, ganha realidade. Não quer dizer que, na obra acabada,
esse ponto de vista ainda seja funcional. Ali, para Lukács, ele é um corpo
estranho, mas, para o processo de figuração, ele foi indispensável (cf. LUKÁCS,
1971, p. 433).
O que se torna evidente, nessas idas e vindas da relação entre o autor e
a realidade, através do processo de criação, é que a diferença (ora encurtada,
ora ressaltada no comentário de Lukács) entre a obra acabada e a realidade, da
qual aquela é um reflexo artístico, fundamenta afinal a possibilidade do
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“triunfo do realismo”. No processo de criação, a “subjetividade imediata” do
escritor se transforma, de modo que seus afetos – como o ódio – ganham uma
outra amplitude e uma outra dinâmica. Segundo Tertulian
19
, ocorre uma
“superação do estágio de pura singularidade”, o que implicaria,
ao mesmo tempo, uma superação por meio da intensificação de
determinadas características da experiência individual; essa
generalização [Verallgemeinerung] sui generis do vivenciado pode
se objetivar no mundo da obra com diversas reflexões
[Rückstrahlungen] na totalidade intensiva desta última (...), sem
conduzir a uma universalidade abstrata, como seria o caso nas
generalizações científicas (TERTULIAN, 1990, p. 89).
Outrossim, essa superação pressupõe como vimos um ponto de apoio
na realidade. Lukács destaca a potência dos momentos revolucionários, que
tornaram escritores como Balzac ou Tolstói, com seu reacionarismo estreito,
em grandes realistas. Mas, em determinados contextos, a força objetiva da
realidade não é suficiente para vergar a tacanhez obtusa de um modo de ver;
por vezes, o “poder objetivo” da realidade não é “manifesto e forte o bastante”
para transformar a pequenez reacionária em “uma figuração total e objetiva da
realidade” (LUKÁCS, 1964a, p. 230). Esse é o caso de Kleist, cuja honestidade
“é uma das condições subjetivas importantes para o ‘triunfo do realismo’ em
suas obras primas e em partes de sua produção como um todo” (LUKÁCS,
1964a, p. 230). Mas, por causa da Alemanha da época, o “triunfo do realismo”
se restringe a umas poucas obras. Combinada às suas tendências pessoais, a
situação alemã o lança na tragédia: Kleist “é destruído tragicamente pela
miséria da Alemanha, pelos seus próprios instintos tanto reacionários como
decadentes” (LUKÁCS, 1964a, p. 231). É essa opacidade o que caracteriza, para
Lukács, o período que se inicia depois da revolução de 1848: incapazes de
conceberem o mundo de uma maneira acertada, os escritores se veem
confrontados por uma realidade aparentemente esgarçada. Assim, após 1848,
as condições para o triunfo do realismo se tornam cada vez mais difíceis; os
fundamentos a partir dos quais os escritores poderiam superar sua
particularidade, ao oferecerem uma “visão geral sobre toda a vida social da
humanidade” (LUKÁCS, 1971, p. 434) se tornam cada vez mais problemáticos.
Lukács observa que “das contradições entre ponto de partida utópico e
reprodução ampla da realidade surge cada vez menos uma vitória do realismo”,
pois “a utopia, frequentemente com subtendências reacionárias, infiltra-se
cada vez mais na figuração mesma” (1971, p. 434). Ele entende que a razão para
tanto é, justamente, o aprofundamento das relações capitalistas num
contexto pós-revolucionário, poderíamos acrescentar: “quanto mais o
19
Embora em seu comentário Tertulian se volte sobretudo para a estética tardia de Lukács, em
virtude das continuidades entre ela e a dita teoria do realismo, seu comentário pode também
explicá-la com precisão.
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capitalismo permeia todas as relações sociais, tanto menos uma visão
conservadora pode reclamar para si uma universalidade para esclarecer todos
os fenômenos sociais” (LUKÁCS, 1981, p. 139).
Fundamentalmente o problema é o mesmo: o conflito entre a “imagem
de mundo mental” e a “realidade vivenciada”. Mas, nesse período, o escritor
burguês honesto se acuado. Por um lado, “os preconceitos do período da
decadência desviam a atenção das pessoas da percepção dos acontecimentos
realmente importantes da época” (LUKÁCS, 1971, p. 270). Por outro, ao
criticar e recusar o desenvolvimento de sua classe, sem, contudo, romper com
ela, o escritor honesto acaba por assumir o lugar de observador. Esse lugar,
para Lukács, é trágico, pois ele expressa uma recusa, ele expressa o ódio, a
repulsa, o desprezo pelo regime político e social de seu tempo” (LUKÁCS, 1971,
p. 205).
Essa oposição, no entanto, não exime os escritores das deformações de
seu tempo, eles são, afinal “filhos de sua época” (LUKÁCS, 1971, p. 209). Seria
preciso superá-las na figuração, quando, por meio de seu poder objetivo, a
realidade poderia driblá-las. Mas e esse é o desfecho trágico – o observador
se depara com resultados (não com o movimento); de seu canto, onde “eles não
estão em condições de vivenciar conjuntamente na vida a luta real do homem
pela organização plena de sentido de sua vida” (LUKÁCS, 1971, p. 233), o
“realismo espontâneo” – que poderia dissolver os resíduos do fetichismo - não
chega a tomar corpo, pois a experiência da realidade é débil.
Ademais, ainda que o escritor vivencie tais acontecimentos
fundamentais, “os preconceitos atuam no sentido de um aprofundamento
enganoso, no sentido de desviar da investigação das causas reais subjacentes
do acontecimento em questão” (LUKÁCS, 1971, p. 271). A partir dessa
avaliação do estado de coisas, Lukács entende que, nesse contexto, o trabalho
intelectual e moral do escritor se torna fundamental. Como bem resume Karin
Brenner:
Não basta mais captar o caráter da época com “cinismo ricardiano”,
o “olhar literariamente claro” se torna cada vez mais importante. O
grau de consciência estética recebe um peso decisivo em relação à
força figurativa puramente espontânea. (BRENNER, 1990, p. 156)
Isso não significa, para Lukács, que o escritor deva assumir a visão de
mundo do materialismo dialético. Ele deve lutar constantemente para “superar
esses preconceitos na observação e julgamento da realidade mesma” e lutar
“para superá-los na própria vida interior, na sua posição quanto as próprias
experiências interiores” (LUKÁCS, 1971, p. 271). Se a experiência imediata
reforça os fetiches da consciência cotidiana, Lukács entende que é preciso
desmontá-los através do trabalho intelectual e moral.
A situação dos escritores socialistas é em larga medida diferente.
Quando o povo organiza a vida social de acordo com seus interesses
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econômicos e culturais, cessa, de acordo com Lukács, a separação entre arte e
vida (cf. LUKÁCS, 1971, p. 443). Ele se contrapõe, como vimos, às limitações
sectárias de setores da esquerda, mas não deixa de sublinhar o corte de classe
que também desempenha um papel na relação do escritor com a realidade,
relacionando-o com outras dimensões da vida social. Como ele afirma em
Volkstribun oder Bürokrat, “o problema da consciência é qualitativamente
diferente para a classe trabalhadora do que para todas as outras classes da
sociedade capitalista, do que para todas as classes revolucionárias anteriores
da história” (1971, p. 446).
Ao mesmo tempo, é claro para Lukács que a realização dessas
possibilidades que permitiriam um novo florescimento da vida cultural se
ameaçada, dentre outras coisas, pelo burocratismo. Em suas notas
autobiográficas, ele estabelece retrospectivamente o sentido do destaque cada
vez maior do “triunfo do realismo” como um combate à tentativa de regular a
produção ideológica a partir de cima. Essa dimensão da visão de mundo na
produção literária foi colocada, dirá Lukács em Marxismo ou proudhonismo
na literatura, “energicamente na ordem do dia entre nós” (1981, p. 145), isto é,
entre os comunistas na União Soviética. Ele observa, contudo, que “se essa
política do Partido Comunista da URSS deve se tornar frutífera, então é
necessário que os escritores lidem consigo a respeito da complicada correlação
entre visão de mundo e literatura”. Não só os traços de “falsa consciência” não
desapareceram (cf. LUKÁCS, 1971, p. 421), como também, do ponto de vista da
política cultural, a tese do “triunfo do realismo” mantém sua atualidade em
relação aos escritores soviéticos, embora para avaliá-la seja necessário,
segundo Lukács, ter sempre em conta a diferença. Ele entende que certas
barreiras desaparecem no realismo socialista. Afinal, “a perspectiva socialista
gera também para a literatura a possibilidade de enxergar a vida social-
histórica com uma consciência correta” (LUKÁCS, 1971, p. 555). Dessa
possibilidade não se deve, contudo, concluir que “o processo de transposição
de uma consciência correta em um reflexo correto, realista, artístico da
realidade seja a princípio mais direto e mais fácil do que de uma consciência
falsa” (LUKÁCS, 1971, p. 555). Como procuramos mostrar, muito do esforço de
Lukács vai no sentido de demonstrar que essa assunção não passa de um “erro
fatal” (LUKÁCS, 1971, p. 555).
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Como citar:
ARAÚJO, Paula Alves Martins de. Triunfo do realismo: o que é isso? Sobre
uma categoria da teoria do realismo de Lukács. Verinotio – Revista on-line de
Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 64-84, jan./jun.
2020.
Data do envio: 16 mar. 2020
Data do aceite: 2 jun. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.533
Bruno Daniel Bianchi
85
Arte autônoma ou arte política?
Bruno Daniel Bianchi
1
Resumo:
O presente artigo tem por objetivo compreender a discussão entre a alternativa
entre uma arte autônoma e uma arte política/de tendência. A partir do
referencial teórico do marxista húngaro György Lukács, o texto busca criticar
o caráter enrijecido do debate devido à limitação da concepção de sujeito e
sociedade inerente à ideologia burguesa, assim como sua tentativa de produzir
uma filosofia da arte desvinculada das questões histórico-sociais de seu tempo.
Palavras-chave: partidarismo; arte de tendência; autonomia da arte.
Autonomous art or political art?
Abstract:
This article aims to understand the discussion between an autonomous art and
a tendency/political art. Based on the theoretical reference of the Hungarian
Marxist Gyorgy Lukacs, the paper seeks to criticize the stiffened character of
the debate due to the limitation of the conception of subject and society
inherent in bourgeois ideology, as well as its attempt to produce a philosophy
of art detached from the historical-social questions of its time.
Keywords: partisanship; tendency art; autonomy of art.
O debate entre a politização ou não da obra de arte, ainda que presente
pelo menos 150 anos, é bastante recente na história da arte. Ainda que a
obra passe por um processo de autonomização, por exemplo, de instituições
como a religião já no Renascimento, é apenas com o desenvolvimento de
teorias estéticas como as obras de Kant e Schiller que se tem início uma
discussão sobre uma arte livre ou pura (BÜRGER, 2017). Como consequência,
abre-se também a discussão sobre a possibilidade (ou exigência, em alguns
casos) da arte assumir abertamente uma função política. A questão da
existência de uma “contaminação” da arte pela política ou da existência de uma
arte pura, acima dos debates e lutas do cotidiano ainda é um tema recorrente
quando tratamos da relação entre arte e sociedade.
1
Especialista em Gestão Pública pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail:
brunodbianchi@gmail.com.
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jan./jun. 2020. v. 26. n. 1
Bruno Daniel Bianchi
86
Em primeiro lugar, esse debate sobre a politização ou não da arte se
revela como uma discussão mais geral da relação entre forma e conteúdo, na
qual, por um lado, a visão de uma “arte pura” (ou uma arte pela arte) seria uma
exacerbação da forma em detrimento do conteúdo, ou seja, colocaria o
conteúdo em segundo plano. Por outro lado, a “arte política” (ou arte de
tendência) representaria uma inflação do conteúdo, da priorização dos temas
e tópicos de conteúdo político, de agitação e propaganda, sobre os aspectos
mais formais das obras.
Isto se pela interpretação não-dialética da relação entre forma e
conteúdo, pela rígida e inflexível tentativa tanto de autores quanto de críticos
de perceber aquilo que Hegel definiu de uma perspectiva idealista: “o conteúdo
não é senão o mudar da forma em conteúdo, e a forma não é senão o mudar
do conteúdo em forma” (HEGEL, 1995). Não é, contudo, do da alçada deste
texto responder à relação entre forma e conteúdo, sendo aqui somente
necessário apontar como essa priorização de um ou de outro leva,
inevitavelmente, a erros e obstáculos teóricos e práticos.
Mais importante neste momento é ressaltar a polarização entre aqueles
que acreditam na possibilidade de uma “arte pela arte”, autônoma, ou como
colocava Lukács (2010), a arte na torre de marfim, e aqueles que defendiam a
tarefa da arte de tomar posição e intervir diretamente nas lutas sociais uma
arte dirigida por uma tendência política. Historicamente, não faltaram
representantes destas duas perspectivas, inclusive dentro dos próprios
movimentos socialistas, como o caso da União Soviética
2
.
Em aparência, este debate gera um impasse: deve a arte sujeitar-se a
uma direção política (seja ela interna ou externa) ou o artista deve ser um
sujeito desinteressado, distanciado das mazelas sociais de sua época?
Aqui, antes de tudo, devemos deixar claro o que significa a arte de
tendência na sua origem. Sem a intenção de entrar de modo aprofundado no
aspecto histórico da questão, o debate sobre a politização da arte já está
presente na primeira metade do século XIX, tendo, inclusive, participação
ativa do jovem Marx. Em uma época de forte mobilização política (nos anos
anteriores às revoluções de 1848 que tomaram conta da Europa), entra em
debate se o poeta deve tomar partido (a visão, por exemplo de Herwegh) ou se,
como sugeriria Freiligrath, o poeta estaria em uma torre de observação mais
2
Aqui, dois grupos são de relevância: o LEF, que defendia uma arte “operativa”, de intervenção
direta sobre a realidade (através, por exemplo, do agitprop), que buscava unir atividade
artística com a produção em geral, chegando ao ponto de anunciar “abaixo à arte! Viva a
técnica!”, ou seja, anulando a especificidade do reflexo artístico; e o Proletkult, que buscava
principalmente produzir uma “cultura proletária”, através, principalmente, de mudanças
linguísticas e formais. Ambos os movimentos utilitaristas em essência foram influentes
após a Revolução Russa, tendo seu fim decretado com a institucionalização do Realismo
Socialista em 1934.Sobre os movimentos artísticos soviéticos, ver Napolitano (1997) e
Frederico (2018).
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alta que as muralhas do partido
3
. O próprio termo tendência” ganharia
notoriedade por servir de título a um poema de Heinrich Heine.
O que significa o termo “tendência”? Como este surge no contexto
prussiano do século XIX? De início, vale apontar que o termo “tendência”
precede seu uso estético, como feito por Herwegh, Freiligrath, Heine e outros.
Sua origem pode ser encontrada na crítica de Marx à censura prussiana. Aqui,
Marx critica a evidente parcialidade do órgão censor do estado, que defende a
publicação “livre” quando o estado concorda com a tendência do escritor, mas
é “extremamente exigente quando a tendência do autor não é prescrita pela
lei” (LIFSCHITZ, 1933, p. 63).
Portanto, a “tendência”, inicialmente, revelava um teor de censura
reacionária teor que, ao ser transposto para o campo propriamente estético
não é completamente apagado, embora não possua o caráter literal visto no
caso do estado prussiano. Isto porque, como apontou Lukács, tendência é algo
bastante relativo: “uma obra aparece como ‘tendenciosa’ quando possui uma
base classista e é hostil à orientação dominante em termos de classe; a
própria tendência’ não é realmente uma tendência, mas sim somente aquela
do oponente” (LUKÁCS, 1971, p. 25). Em outras palavras: uma arte é
“tendenciosa” se posiciona-se criticamente ao status quo, à ordem
estabelecida, seja ela uma ordem estética ou sócio-política. Se antes a censura
vinha na forma do estado e da lei, agora há uma censura da própria instituição
arte que retira o status de obra de arte de forma arbitrária, seguindo um ideal
de “arte pura”. Não é incomum o valor estético de uma obra entrar em questão
quando uma tendência política explícita na sua representação
especialmente se é uma tendência que ataca de frente a ordem estabelecida.
Não é à toa que, justamente devido a esse posicionamento reacionário
ainda hoje presente, inclusive entre autores “progressistas” houve uma
certa defesa da “tendência” da produção artística. Contrário à visão ideal da
arte como “ausência de tendência”, defendeu-se uma arte politizada,
engajada, inclusive tendenciosa, sem perceber que, ao aceitar participar desse
jogo de palavras do idealismo burguês, não se fez nada além que aceitar a
derrota. Pois para existir um ramo da arte que seja “tendenciosa”, que possua
“tendência”, assume-se a priori a existência de uma “arte pura”, isenta e
apartidária.
Antes, portanto, de cair na armadilha burguesa da “arte pura”,
precisamos compreender melhor o conceito de autonomia da obra de arte que
subjaz o ideal de arte pura ou arte livre. Para entendermos o conceito, é preciso
em primeiro lugar compreendê-lo como produto de um desenvolvimento
histórico-social, e não como um aspecto inerente da atividade em si.
3
Para saber mais sobre o debate entre Herwegh e Freiligrath, ver o texto Tendência ou
partidariedade? (1932), de Lukács, ou a obra A filosofia da arte de Karl Marx, de M. Lifschitz.
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A relação da autonomia da arte historicamente é tanto um tema da
estética propriamente dita quanto da história da arte. Nesta, podemos destacar
o papel sempre presente da determinação social da produção artística,
determinação não no sentido do materialismo vulgar, de uma instância
superior (a sociedade), que determinaria uma instância inferior (a atividade
do sujeito). Neste sentido, podemos exemplificar o papel da pólis na atividade
artística da Grécia Antiga, ou o papel a que ocupou a Igreja durante a Idade
Média, ou a participação dos mecenas durante o período do Renascimento
sendo que nestes últimos dois exemplos, é óbvio o caráter de “encomenda” da
arte.
Ora, no presente, a ideia de uma arte “encomendada” certamente
atribuiria a si olhares de escárnio, visto que a arte seria imposta de fora, por
uma força alheia à própria subjetividade do artista. Entretanto, dificilmente
alguém questionará o valor estético da Pietà de Michelangelo ou A ronda
noturna de Rembrandt, por exemplo, por sua característica de encomenda.
É, portanto, apenas com a consolidação da sociedade capitalista e da
ordem burguesa no século XIX que se institui o ideal de uma arte autônoma,
livre das amarras dos curadores e dos órgãos institucionais como a Igreja e o
estado. Entretanto, isso não significa uma liberdade total das determinações
sociais, mas apenas que os elementos constituintes dessa determinação social
são radicalmente alterados com a consolidação da sociedade capitalista. É esta
complexidade do local que a produção artística ocupa dentro da produção em
geral que permite a rger definir a autonomia da arte como uma “categoria
da sociedade burguesa, que, a um tempo, torna reconhecível e dissimula um
desenvolvimento histórico real” (2017, p. 87).
O autor segue avaliando a relação entre o surgimento da autonomia da
arte e seu desligamento da práxis vital, de sua vinculação imediata ao sagrado.
É de importância fundamental a consideração de Bürger de que, para atingir o
seu novo status na sociedade capitalista, isto é, sua transformação em
mercadoria, não mais submetida à encomenda do mecenas ou da Igreja, a arte
precisa ter atingido um grau de autonomia: tendo como pressuposto a
autonomia que a arte atinge sua condição de heteronomia.
A autonomia, sendo uma categoria pertencente ao todo do completo
ideológico burguês, retém um momento de verdade (o deslocamento da arte
da práxis vital) e um momento de o verdade (a hipóstase de um estado
produzido historicamente como algo da essência da arte). Para Bürger:
A autonomia da arte é uma categoria da sociedade burguesa. Ela
permite descrever a ocorrência histórica do desligamento da arte do
contexto da práxis vital, descrever o fato de que, portanto, uma
sensibilidade o comprometida com a racionalidade de fins pode
se desenvolver junto aos membros das classes que, pelo menos
temporariamente, estavam livres da pressão da luta cotidiana pela
sobrevivência. reside o momento de verdade do discurso da obra
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de arte autônoma. No entanto, o que essa categoria não consegue
abarcar é que esse desligamento da arte do contexto da práxis vital
representa um processo histórico, vale dizer, socialmente
condicionado. E nisso, justamente, consiste a não verdade da
categoria, o momento da deformação, que é próprio de toda
ideologia contanto que se use esse conceito no sentido da crítica
da ideologia do Jovem Marx. A categoria da autonomia não permite
compreender o seu objeto como tendo se tornado histórico. (2017,
p. 109)
Agora, melhor delimitado o caráter idealista da autonomia da arte em
relação às determinações sociais, podemos dizer que a questão da autonomia
diz respeito ao momento subjetivo da produção artística, ou seja, a escolha do
artista do que representar e como representar. Aqui, entra-se em uma série
sem fim de contradições e pressupostos para tentar sustentar o argumento. Por
um lado, o artista deve ter a autonomia para representar o que bem entender.
No entanto, se escolher representar um conteúdo sócio-político, corre o risco
de ser chamado de “tendencioso”. Sua saída é representar esse conteúdo da
forma mais distanciada e imparcial possível, ou seja, sem tomar partido, ou
será acusado de “tendencioso”. Mas o artista deve ser livre para representar o
que bem entender! E assim, os defensores da autonomia subjetiva do artista
impõem restrições às escolhas do artista, correndo atrás do próprio rabo.
Tal defesa da autonomia subjetiva do artista encontra seus próprios
limites pois não supera uma visão mecanicista da relação entre indivíduo e
sociedade. Esta visão não consegue perceber a determinação dialética entre o
fator subjetivo do indivíduo (no nosso caso, do artista) e o fator objetivo do
desenvolvimento social, ou seja, o fato histórico de que os sujeitos determinam
o processo histórico da mesma forma como são determinados por ele.
Percebem o desenvolvimento social (e ideológico) como apartado da atividade
dos sujeitos singulares e, consequentemente, o sujeito isolado da totalidade
histórico-social.
A percepção do sujeito como átomo foi criticada enfaticamente por
Marx e Engels (2003) e, portanto, não cabe aqui retomar os argumentos. É
apenas de especial importância ressaltar que, assim como a autonomia da obra
de arte necessariamente recai numa distorção idealista da produção social da
arte, a autonomia subjetiva do artista demanda a mesma distorção idealista do
processo criativo interior da obra de arte, pois parte do pressuposto (falso) de
que a formação da subjetividade do artista não é fruto do desenvolvimento
social objetivo. Neste sentido, nem a obra, nem o artista se encontram na torre
de marfim, e podemos afirmar com segurança que toda arte é política. Isto, no
entanto, não acrescenta muito ao debate, visto que é terreno comum afirmar
que mesmo a obra que se declara imparcial e isenta está se posicionando
politicamente.
A subjetividade do artista é um elemento de extrema importância para
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a compreensão da obra porque é a partir dela que compreendemos as escolhas
feitas pelo artista do que representar e como representar. Mesmo que a obra
em si não coincida com sua visão de mundo (Balzac, aqui, é o exemplo mais
óbvio), de se considerar a subjetividade do artista na análise da figuração
artística do mundo próprio da obra. Isso porque, diferente de, por exemplo, a
ciência, a produção artística requer o fator subjetivo para sua consumação,
requer uma unidade entre objetividade e subjetividade
4
.
Até aqui, chegamos à conclusão que o rótulo de “tendência” muitas
vezes é utilizado de forma arbitrária para definir aquele tipo de produção
estética que mantém um caráter hostil à ordem estabelecida. Isso significa que
não existe um elemento objetivo da “tendência” da obra de arte? De forma
alguma. Dizemos que uma obra possui “tendência” quando sua figuração
artística da realidade objetiva não se sustenta sobre a realidade mesma, mas
sim sobre as opiniões e desejos do artista, seja ele progressista ou reacionário.
Veja bem: não se trata de, no reflexo artístico, de negar a subjetividade do
artista, seus desejos e opiniões, mas sim de compreender a diferença entre essa
unidade entre objetividade e subjetividade na obra de arte, tal como defendido
por Lukács, e a deformação da realidade na obra de arte como resultado de seu
caráter tendencioso. Isto não significa, no entanto, que uma obra de arte que
tome partido nas lutas de sua época é necessariamente “tendenciosa”, ou que
uma obra que almeje escapar do rótulo de tendência tenha que escapar para o
reino da reportagem imparcial e “objetiva” (como o caso de Upton Sinclar na
obra A selva).
Veja, aqui temos três situações distintas: na primeira, o artista deforma
a realidade na sua figuração artística de acordo com suas opiniões e interesses,
impondo uma primazia da sua subjetividade sobre a objetividade; na segunda
situação, a representação “objetiva e imparcial”, típica da reportagem
5
, anula
a própria representação ao impor uma primazia da objetividade da realidade
sobre a subjetividade anulada do artista, retirando aquilo que de
especificamente estético na obra, ou seja, um privilégio unilateral do conteúdo
sobre a forma (OLDRINI, 2019); e por último, temos uma representação que
compreenda e se utilize da dialética entre o fator subjetivo e o fator objetivo na
obra de arte, uma representação que tenha em unidade subjetividade do artista
4
Aqui, o dizemos que a ciência, por sua tendência à desantropomorfização (ou seja, à
retirada do elemento humano como ideal) exclui um componente subjetivo do pesquisador,
mas sim que sua atividade, se é realmente científica, segue a tendência da análise da realidade
por ela mesma, independente das opiniões do artista.
5
A discussão sobre a Reportagem como substituto da representação, presente durante as
primeiras décadas do século XX, é tema de debate de outro artigo de Lukács de 1932,
Reportagem ou figuração? [Reportage oder Gestaltung?].
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e objetividade do mundo representado
6
.
Aqui, nos encontramos em uma situação bastante complexa. Por um
lado, temos os artistas “apartidários”, que seguem na ilusão de que podem
distanciar-se dos conflitos ou da influência da realidade sobre sua própria
consciência. Por outro lado, temos os escritores “tendenciosos”, picos, por
exemplo, da Segunda Internacional, que ao escolher conscientemente uma
tendência, deformam a realidade, porque aqui “não é uma tendência de
desenvolvimento social em si, tornada apenas consciente pelo autor (no
sentido de Marx), mas um mandamento (subjetivamente concebido) cuja
realidade é exigida a atender” (LUKÁCS, 1971, p. 32). Entretanto, há um
terceiro tipo de autor, aquele que supera justamente esse falso dilema entre
“arte pura” e “arte de tendência”. É o caso, por exemplo, dos grandes realistas
dos séculos XVIII e XIX, como Goethe, Balzac, Tolstói etc. (LUKÁCS, 2013)
São estes que, apesar de suas visões de mundo particulares, conseguem
apreender o movimento do real na sua figuração artística, como a condição do
campesinato e dos servos na Rússia por Tolstói, ou a hipocrisia da aristocracia
francesa por Balzac. Aqui, se confirma também a afirmação de Benjamin
(2017) sobre uma tendência correta, ou seja, a tendência do movimento do real
tal como sugerido por Marx, possui já em si todas as outras qualidades de uma
obra de arte.
Esta figuração é aquilo que Lukács chama de partidariedade ou
partidarismo [Parteilichkeit], ou seja, a “tomada de posição em face do mundo
representado tal como ela toma forma na obra através de meios artísticos”
(LUKÁCS, 1978, p. 209). Segundo o autor, é esta a superação do falso dilema
entre “arte pura” e arte de tendência” por ir além dos limites da falsa
consciência típica da ideologia burguesa pela compreensão correta do
desenvolvimento social. É neste sentido que Engels, em sua famosa carta a
Minna Kautsky em 1885, defende a tendência visto aqui como tendência do
desenvolvimento social, não como a exigência ideal do autor que se justapõe à
realidade:
Eu sou de opinião que a tendência deve surgir com naturalidade das
situações e da ação, sem que seja necessária a sua exposição especial;
e penso que o autor não está obrigado a apresentar ao leitor a futura
solução histórica dos conflitos sociais que descreve. Ademais, nas
nossas condições, o romance dirige-se preferencialmente ao leitor
do ambiente burguês, ou seja, que não pertence diretamente ao
nosso meio e, por esta razão, o romance de tendência socialista
6
Tal relação entre subjetividade e objetividade já está presente na primeira tese de Marx sobre
Feuerbach: “O principal defeito de todo o materialismo existente até agora o de Feuerbach
incluído é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, é apreendido sob a forma
do objeto [Objekt] ou da contemplação; mas não como atividade humana sensível, como
prática, não subjetivamente. Daí decorreu que o lado ativo, em oposição ao materialismo, foi
desenvolvido pelo idealismo mas apenas de modo abstrato, pois naturalmente o idealismo
não conhece a atividade real, sensível, como tal.” (MARX e ENGELS, 2007, p. 537)
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cumpre, a meu juízo, o seu objetivo quando reflete com veracidade
as relações reais, rompe com as ilusões convencionais que existem
sobre estas, fere o otimismo burguês e fomenta vidas acerca da
imutabilidade das bases em que repousa a ordem existente mesmo
que o autor não proponha uma determinada solução ou que sequer
se posicione ostensivamente (MARX e ENGELS, 2012, p. 66).
Aqui, está claro que Engels defende a tomada de partido por parte do
artista. O autor deve encontrar a tendência no desenvolvimento social objetivo,
ou seja, deve conhecer profundamente a realidade em si, os conflitos que
permeiam suas relações, para que consiga romper com as ilusões
convencionais que existem sobre as relações reais, no sentido de Engels. É,
portanto, da especificidade da arte o seu caráter desmistificador, de romper
com a falsa consciência burguesa e com o reflexo cotidiano da realidade, de
revelar o movimento do real no seu aspecto mais humano; o partidarismo é,
portanto, a revelação do reflexo artístico como embate entre reação e progresso
e somente o proletariado de acordo com Lukács – é capaz de romper com a
falsa consciência mistificada da decadência ideológica burguesa.
Em vias de uma conclusão, cabe ainda responder a dois possíveis erros
decorrentes da análise realizada acima. O primeiro diz respeito ao papel da
subjetividade do autor na produção artística. O segundo, em relação à defesa
da autonomia. Nenhum dos problemas pode ser abordado aqui em sua
totalidade, sendo necessário apenas mostrar os possíveis caminhos do
seguimento do debate.
A defesa do partidarismo na arte feita por Lukács, do artista conseguir
descobrir no real as tendências objetivas do movimento histórico, pode
desembocar numa falsa conclusão de que o artista deve realizar uma análise
científica da realidade. Portanto, ele deve se voltar para uma análise fidedigna
e fotográfica da realidade. Nada poderia ser mais oposto à visão lukacsiana de
reflexo artístico. de início, essa concepção se mostra falsa devido à
concepção do ato do trabalho que, segundo Lukács, por permitir a superação
da subjetividade espontânea, por suspender a imediatez da atividade (pelo seu
aspecto teleológico), permite ao sujeito não investigar a realidade objetiva
tal como ela é em si, mas justamente por isso, permite a distinção entre o
essencial e o não-essencial na realidade objetiva, refletida na consciência
humana (LUKÁCS, 1966).
De que forma isso se manifesta no reflexo estético? O mesmo processo
de distinção entre o essencial e o não-essencial se manifesta na atividade
estética do sujeito. É da possibilidade de superar a consciência imediata que o
ser humano consegue ir além da aparência fenomenológica da coisa em direção
à sua essência, o détour do processo de conhecimento, tal como categorizado
por Kosik (1976), ainda que esse détour realizado pelo reflexo artístico seja
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diferente do reflexo científico. A defesa do realismo da obra de arte significa a
capacidade da obra de ir além da simples aparência do fenômeno, capacidade
intimamente relacionado com a subjetividade criadora do artista de
conscientemente analisar a realidade objetiva.
Tal concepção, ainda que não elaborada com a complexidade presente
na grande Estética, já está presente nos primeiros textos de Lukács após sua
“virada marxista”. Esta pode ser encontrada não somente em Tendência ou
partidarismo (1932), mas também em Reportagem ou figuração? (1932) e
Narrar ou descrever? (1937)
7
. No primeiro texto, o autor critica o método
jornalístico que objetiva a reprodução direta e fiel da realidade empírica, com
a intenção de demonstrar que o caso retratado é pico e representativo de uma
parcela maior da realidade, deixando de lado o aspecto subjetivo das
personagens. Essa lacuna é preenchida, segundo Lukács, pela subjetividade
não-retratado do autor, como um comentário moralizante que é supérfluo e
acidental”, sendo prejudicial à própria trama narrativa. na segunda
produção (Narrar ou descrever?), o autor critica a mera observação do
narrador, que se contenta em descrever de maneira fotográfica a realidade
retratada. Torna-se uma realidade morta, cristalizada e fetichizada, indo
contra a função social do reflexo estético, a dissolução do fetichismo das
relações sociais e econômicas sob o capitalismo” (COTRIM, 2016, p. 163).
É neste sentido que Lukács critica a reportagem e o naturalismo como
métodos de representação artística do real. O partidarismo defendido pelo
autor, portanto, não se baseia em uma mera reprodução fotográfica do real,
mas sim na capacidade do artista de configurar a “tendência” objetiva, possível
apenas devido ao ato consciente de selecionar entre o essencial e o não-
essencial. É neste sentido também que Steiner postula: “enquanto o realista
seleciona, o naturalista enumera” (STEINER, 1988, p. 293).
A outra questão mencionada diz respeito à autonomia da arte.
Defender o partidarismo/partidariedade da obra pode ser erroneamente
interpretado como uma crítica à autonomia da produção artística, que a obra
deva estar a serviço de um partido e, portanto, deve ser direcionada ou regida
por fatores externos à própria atividade criativa, como diretrizes ou normas.
De forma alguma. Para além da compreensão não-dialética da relação entre
sujeito e sociedade, como explicitado anteriormente, esta concepção
compreende autonomia apenas como autonomia absoluta, hipostasiada. No
polo oposto, temos, por exemplo, os movimentos vanguardistas e
neovanguardistas que buscam rebaixar a obra de arte ao nível da
cotidianidade, como um happening.
Ambos os extremos – a concepção idealista e descolada da realidade de
7
Uma análise mais completa acerca destes textos pode ser vista na obra Literatura e realismo
em György Lukács, de Ana Cotrim, baseada em sua dissertação de mestrado.
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autonomia e o rebaixamento da obra ao nível da cotidianidade são
repudiáveis na medida em que ignoram a peculiaridade específica da obra de
arte e ou a descolam do contexto histórico de sua produção, ou o reduzem a
uma determinação vulgar e mecânica. Aqui, deve-se entender a autonomia da
obra de arte da mesma forma como os outros complexos sociais: que, em
determinadas condições históricas, ganham uma autonomia relativa em
relação à totalidade social, nunca descolando-se totalmente desta totalidade.
Da mesma forma, defender esta autonomia, para Lukács, representa a
possibilidade da função da obra de arte de desvelar o fetiche da realidade
cotidiana imediata (ou como Kosík coloca, o mundo da pseudoconcreticidade),
contrariando a tendência aos movimentos vanguardistas de identificarem a
obra com essa mesma cotidianidade.
Aqui, torna-se evidente que defender a autonomia da arte não se coloca
em oposição à defesa do partidarismo da obra; pelo contrário, ambas são
essenciais para o sucesso ou não da obra de arte em sua missão
desfetichizadora. Superado o falso debate entre uma arte política e uma arte
livre, “autônoma”, abre-se o caminho para compreender o papel da autonomia
de uma perspectiva materialista e dialética. Somente indo além do falso dilema
entre autonomia ou politização da arte podemos compreender a subsunção da
arte dentro do modo de produção capitalista e suas possibilidades reais de
emancipação.
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95
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Como citar:
BIANCHI, Bruno Daniel. Arte autônoma ou arte política? Verinotio – Revista
on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 85-95,
jan./jun. 2020.
Data do envio: 15 mar. 2020
Data do aceite: 18 maio 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.519
Juarez Torres Duayer
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Lukács e a emigração na URSS (1933-45): realismo e
sorte em tempos de catástrofes
Juarez Torres Duayer
1
Resumo:
Os escritos estéticos de Lukács durante a emigração na URSS constituem uma
súmula de seu posicionamento contra o despotismo stalinista e a ortodoxia
soviética. A despeito das “autocríticas protocolares”, os textos expressam a
crítica interdita pelo dogmatismo e o sectarismo característicos do período e
irão repercutir a preocupação do autor de que a Estética e Para uma ontologia
do ser social, fossem consideradas como sua contribuição à urgência da
construção de um projeto de renovação e renascimento do marxismo.
Palavras-chave: arte; Lukács; estética marxista; realismo; stalinismo.
Lukács and the emigration in USSR (1933-1945: realism
and luck in time of catastrophes
Abstract:
The aesthetic writings of Lukács during emigration in the USSR constitute a
summary of his position against Stalinist despotism and soviet orthodoxy. In
spite of the "protocolic self-criticisms", the texts express the criticism
prohibited by the dogmatism and sectarianism characteristic of the period and
will have repercussions on the author's concern that his works of maturity,
Aesthetics and Ontology of social being, were considered as contributions to
the urgency of building a project for the revival of Marxism.
Keywords: Lukács; art; Marxist aesthetics; realism; Stalinism.
Portanto, todo realismo verdadeiro implica a
ruptura com a fetichização e a mistificação.
György Lukács
É possível considerar os escritos estéticos de Lukács do período da
emigração na URSS – de 1933, ano da ascensão de Hitler a 1945, data do final
da II Guerra Mundial e de seu retorno à Hungria após um exílio de 26 anos -
1
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor
Titular do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:
juarez_duayer@uol.com.br.
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como uma súmula de seu posicionamento em uma disputa levada a cabo
simultaneamente em duas frentes: de um lado contra o sectarismo literário”
da RAPP
2
, de outro, contra o “vanguardismo” e o “modernismo burguês” das
vanguardas estéticas dos anos 1930
3
, naquele que mais tarde ficou conhecido
como o “debate sobre o expressionismo” (LUKÁCS, 1966, p. 8).
Pelas razões que serão expostas mais adiante, ainda que no plano
político em diversas ocasiões durante o exílio soviético suas manifestações se
expressassem através das nem sempre bem compreendidas “autocríticas
protocolares”
4
, não dúvida de que elas enformam a natureza e a dimensão
da interdição imposta pela ortodoxia e o dogmatismo stalinista às artes e
políticas culturais do período
5
. No entanto, se anos mais tarde quase ao final
da vida Lukács dirá que seu posicionamento “já naquela época” era de
“oposição universal à ideologia staliniana, não restrita à estética” (LUKÁCS,
1999, p. 166), foi através do “realismo verdadeiro”
6
nos termos da epígrafe
utilizada neste trabalho que ele se posicionou contra a “manipulação
grosseira”
7
da fetichização e mistificação do período:
Não existe precisamente na arte, para a arte uma tal
possibilidade de manipulação absoluta; não o propósito, a intenção
dos escritores (que podem ser regulados) é o dado determinante,
mas a configuração, que permanece sujeita à “Vitória do realismo”.
(...) [Por meio] da gênese da mimese, a vitória do realismo” perde
qualquer nuança irracionalista: nela irrompe justamente a verdade
da história. (1999, p. 167)
Em que pese, todavia, toda a ordem de dificuldades durante a
emigração na URSS, a produção intelectual de Lukács do período é notável.
Nele o filósofo consolida boa parte de sua produção intelectual e as mudanças
em sua relação com o marxismo. São os anos de colaboração com Michail
Lifschitz no Instituto Marx-Engels em Moscou (1930-4) e de elaboração de sua
concepção de realismo em meio ao “debate sobre o expressionismo”
8
com as
2
A organização stalinista oficial dos escritores revolucionários da URSS.
3
É assim que Lukács no Prefácio de 1965 se refere a estes textos reunidos em Problemas del
realismo (1966); a maior deles foi escrita entre 1934 e 1940 e publicada na revista Literaturnyj
Kritik.
4
Para uma abordagem do problema das “autocríticas” e suas distinções, ver Tertulian (2002).
5
Com relação às políticas culturais do período ver Netto (1979).
6
Para Tertulian, o realismo em Lukács “sempre foi um caractere congênito de toda a arte e
não uma simples questão de escolha entre estilos” (1980, p. 255).
7
Em Para uma ontologia do ser social, após se referir às teorias da II Internacional como uma
“mistura de materialismo mecanicista e voluntarismo subjetivo”, para Lukács, depois da morte
de Lênin, “sob Stálin o marxismo voltou a ser deformado numa mescla inorgânica de
necessidade mecanicista e voluntarismo (manipulação grosseira)” (LUKÁCS, 2013, p. 629;
grifo meu).
8
Embora crítico às posições de Lukács, uma boa aproximação ao debate esem Machado
(1998); para uma defesa da atualidade do realismo para a estética marxista, ver Duayer (2015).
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vanguardas estéticas dos anos 1930 e com o sectarismo das políticas culturais
do Proletkult
9
. De acordo com Oldrini (1996), é o momento da “virada
ontológica” responsável pela alteração radical da relação anterior de Lukács
com o marxismo e da transformação da perspectiva filosófica de História e
consciência de classe
10
. Enfim, e talvez o mais decisivo: das experiências do
período da emigração toma corpo e nasce o empenho lukacsiano no projeto de
renovação e renascimento do marxismo. Para Tertulian (1980, p. 287), após “a
longa noite stalinista”, o filósofo acreditava que as categorias fundamentais do
pensamento marxista deveriam ser submetidas a um reexame radical. Este foi
o sentido da preocupação manifestada mais tarde por Lukács de que suas obras
da maturidade, a Estética e Para uma ontologia do ser social, fossem
consideradas como contribuições pioneiras à construção daquele projeto no
qual trabalhará até o fim da vida.
Não surpreende portanto que após quase três décadas do retorno à
Hungria, no roteiro do esboço autobiográfico que preparou no início de 1971
(Lukács faleceu em 4 de junho) para as entrevistas que concedeu entre março
e maio do mesmo ano a István Eörsi e Erzsébet Vezér
11
(Pensamento vivido),
o autor se refira à emigração soviética como um período de “sorte em tempo
de catástrofes”
12
.
Na edição do esboço preparado por Lukács, os responsáveis pelas
entrevistas de Pensamento Vivido se referem ao tempo da emigração como um
período de “alargamento do campo de conflito” (1999, p. 166); Netto (1983, p.
50) se referiu a ele como “os tempos difíceis” e o húngaro Szabô (2016, p. 135),
de os anos perigosos na União Soviética onde ele [Lukács] viu de perto a
prática despótica stalinista” e lembrou que “não por acaso”, Daniel Bell se
referiu ao filósofo magiar como “o grande sobrevivente da época” (2016, p.
136). É bem provável que o sociólogo estadunidense, autor do best-seller O
fim da ideologia, tenha se reportado em seu comentário a seguinte passagem
dos depoimentos de Lukács: “Infelizmente devo dizer que, na minha opinião,
além de mim não existe nenhum escritor húngaro que tenha escapado da era
9
O Proletkult, movimento russo adepto de uma “cultura proletária”, defendia a ruptura entre
a arte socialista e o passado (a tradição cultural) em defesa de uma literatura operária como a
autêntica literatura revolucionária.
10
Oldrini considera que esta “virada” se deve ao “contato de Lukács com os Manuscritos de
1844 de Marx e os Cadernos filosóficos de Lênin e se “funda nas geniais críticas de Marx (e
Lênin) a Hegel, através dos quais Lukács pela primeira vez as consequências que derivam
dos contorcionismos idealistas hegelianos” (2002, p. 53).
11
Pensamento Vivido (Gelebtes Denken) foi publicado em alemão pela primeira vez em 1980
( em português, cf. LUKÁCS, 1999).
12
Lukács se referiu à “sorte” em três situações: quando recusou um encontro com Radek e
Bukharin em 1930 “se os tivesse encontrado teria sido liquidado”; ao seu afastamento do
movimento húngaro após o “fiasco” das Teses de Blum e, a terceira, à pouca atração exercida
pela casa em que morava pelo pessoal da NKVD, a polícia política do período.
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Stálin (1999, p. 91)”. Nesta última, o filósofo recorda as adversidades durante
os grandes processos 1936 e 1937 “eu passei por uma das maiores campanhas
de prisões do mundo” e sobre o período em que ficou preso por dois meses em
1941 sob a acusação de trotskista
13
- em um momento em que todas as
execuções haviam cessado” -, voltou a dizer que mais uma vez teve “muita
sorte” e que não pôde “deixar de lembrar de Ivan Denísovitch, o herói de
Soljenítsin, que também tinha sempre muita sorte” (1999, p. 99)
14
.
A respeito das relações entre seus escritos estéticos durante o período
da emigração e a uma das duas frentes às quais nos referimos mais acima a
frente estética em defesa do “realismo verdadeiro” contra a “manipulação
grosseira” -, é possível avaliar a importância destes textos para o projeto
lukacsiano de renascimento do marxismo.
A necessidade deste projeto pode ser posta à prova pelo próprio autor
em pelo menos três momentos.
O primeiro, sem as “autocríticas protocolares”, por ocasião do Post-
scriptum de 1957 ao seu Meu caminho para Marx de 1933 quando ao tratar da
“questão da herança” contra as orientações literárias do Proletkult admitiu
que:
Foi necessário reconhecer que a origem do confronto das correntes
progressistas, que enriqueciam a cultura marxista, com a opressão
dogmática de uma burocracia tirânica sobre todo o pensamento
autônomo, deveria ser buscada no próprio Stálin e, portanto,
também na sua pessoa. (LUKÁCS, 1983, p. 90)
15
O segundo em 1971 nas entrevistas de o Pensamento Vivido. Ao se
referir ao período da emigração, Lukács chamou a atenção, nos textos em
defesa do realismo publicados na revista Literatunyj Kritik, em polêmica
aberta contra o Proletkult e a RAPP, para “a emergência no primeiro plano com
intensidade cada vez maior da Vitória do realismo’ de Engels - contra a
regulamentação da ideologia de ‘cima’” (1999, p. 167)
16
.
Por fim, o terceiro momento, diz respeito à autonomia da arte em
relação ao estado à regulamentação ideológica vinda “de cima” - e nos remete
diretamente à participação de Lukács como Comissário do Povo na Comuna
Húngara de 1919 (República dos Conselhos Húngaros).
13
Na consistente apresentação a Literatura y revolución, Isidoro Cruz Bernal comenta que o
Proletkult foi o principal adversário de Trotsky” (2004, p. 11).
14
Referência a Um dia na vida de Ivan Denísovitch.
15
O texto publicado em 1933 na revista moscovita Internationale Literatur, nº 2. corresponde
ao depoimento de Lukács na sérieEscritores sobre Karl Marxpor ocasião de um congresso
internacional de escritores em Moscou.
16
Em carta à romancista Margaret Harkness de abril de 1888, Engels, cita o exemplo de Balzac
que embora “politicamente legitimista” se viu “compelido a agir contra as suas próprias
simpatias de classe e preconceitos políticos” - como um “dos maiores triunfos do realismo”
(1979, p. 70).
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Não é difícil acompanhar nos escritos estéticos e posicionamentos
políticos dos anos da emigração na URSS a repercussão e o modo como Lukács
assimilou as experiências da Comuna Húngara.
Em mais uma notação de o Pensamento vivido, o autor se reporta aos
133 dias de duração da Comuna como o início dos anos de “aprendizagem
forçada”:
Os verdadeiros anos de aprendizagem forçada começaram com a
ditadura e depois da sua queda quando uma parte dos comunistas
se esforçou para conhecer e assimilar o marxismo no sentido
comunista da palavra. (1999, p. 57)
Uma breve remissão à sua participação na formulação política e cultural
da Comuna Húngara nos permite avaliar o significado desta “aprendizagem
forçada”, em especial no âmbito do confronto com as políticas culturais do
stalinismo e, mais tarde, no próprio projeto de renovação do marxismo na
Estética e de Para uma ontologia do ser social.
Na Comuna, Lukács era dirigente do Partido Comunista Húngaro e foi
vice-ministro da Educação Pública (vice-comissário do povo). À época
defendia que a tarefa cultural que competia à Comuna era o
“revolucionamento das almas” através de um programa que considerava “a
política apenas um meio; o fim, a cultura” (apud NETTO, 1983, p. 32).
O programa cultural dos comunistas húngaros expresso em um
documento do Ministério da Educação Pública intitulado Tomada de posição,
fazia distinção apenas “entre boa e literatura (...). Tudo o que tiver
verdadeiro valor literário, venha de onde vier, encontrará apoio do
Comissariado” (apud NETTO, 1983, p. 32). Ao valorizar a “tradição cultural”,
o Ministério patrocinou a representação por grupos de trabalhadores de obras
de Lessing, Ibsen, Bernard Shaw, Molière e, a exemplo de Gustave Courbet
17
na Comuna de Paris (1871), os museus foram franqueados ao povo. Courbet,
para quem a arte “que faz avançar o mundo” não poderia ficar a reboque da
revolução (CLAYSON, 2011, p. 37) fundou e dirigiu com outros artistas a
Federação dos Artistas que defendia a total liberdade da arte em relação ao
estado e o controle de sua produção pelos seus próprios artífices. As ações da
República dos Conselhos mostram que muito provavelmente Lukács tinha
conhecimento das políticas culturais e artísticas da Comuna de Paris.
Chamo a atenção para a presença, já por ocasião da Comuna Húngara
de 1919, do tratamento dado por Lukács à tradição cultural”, a “questão da
herança”. Inspirada nos clássicos do marxismo (Marx e Engels) e atacada como
vimos pelo Proletkult, a “questão da herança” cultural irá se constituir em um
dos pilares do pensamento estético lukacsiano sobre o “modo artístico de
17
Pintor e principal representante da escola realista francesa, Courbet, presidiu na Comuna de
Paris a comissão de preservação do patrimônio cultural e reforma da Beaux-Arts (ROUGERIE,
2011, p. 33).
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figurar o mundo” (Marx, Introdução de 1857), ao lado da liberdade e
autonomia da arte e da recusa a todas as formas de sua instrumentalização.
No que diz respeito às relações da Comuna Húngara com a arte e os
artistas, Lukács escreveu no Jornal Vermelho, em uma formulação muito
próxima à defendida por Courbet, que “O comissariado não quer uma a arte
oficial nem muito menos a ditadura da arte do partido” (apud NETTO, 1983.
p. 33). Se referindo à “experiência de poder” de Lukács do período da Comuna,
Konder (1996, p. 28), mesmo considerando que nos textos dos anos trinta o
autor “caminhava em carvões incandescentes” considera que a despeito de
algumas “posições sectárias”, o Comissário do Povo adotou na direção da
política cultural uma orientação inequivocamente “democrática e pluralista” e
em nenhum momento, sua profunda e sincera preocupação com os autênticos
valores da cultura lhe deixou margem para qualquer vacilação: a prioridade
final da cultura repelia procedimentos voltados para instrumentalizá-la
(KONDER, 1980, p. 38; grifos do autor).
Massacrada a Comuna pelo governo Horty, Lukács é condenado à
morte. Escapa disfarçado de chofer para Viena onde é preso e tem sua
deportação exigida. Com o argumento de que Lukács “como filósofo, é um dos
grandes, que só aparecem uma vez em cada geração”, uma ampla mobilização
de intelectuais europeus (Paul Ernest, Franz Ferdinand Baumgarten, Heinrich
e Thomas Mann, Ernest Bloch, entre outros) impede que seja extraditado
(KONDER, 1980, p. 42). Os números da contrarrevolução húngara
impressionam: 5 mil execuções, 75 mil presos, 100 mil escaparam para o exílio,
entre estes Lukács que permaneceu em Viena até o fim dos anos 1920.
A derrota da Comuna e os “anos de aprendizagem forçada” ocupam
portanto um lugar de destaque nas entrevistas de Pensamento vivido e
repercutiram, como estamos procurando mostrar, nos embates travados
contra a RAPP, o Proletkult e as políticas culturais do stalinismo, em especial
contra a regulamentação da ideologia a partir de “cima”. A passagem que
reproduzimos a seguir é significativa para a caracterização das disputas
durante o “tempo de catástrofes” e de “alargamento do conflito”. Nela Lukács
se reporta aos textos em defesa do realismo que publicou na Literaturnyj
Kritik e fala da importância da revista (anti-Rapp, antimodernista) para a
transformação revolucionário-democrática da literatura russa entre 1934 até a
sua interdição em 1940 por Stálin
18
:
Nós atacamos na revista a ortodoxia naturalista de Stálin. Não se
pode esquecer que naquela época foi publicada a carta de Engels
18
Os textos publicados na Literatunyj Kritik foram editados pela Fondo de Cultura Económica
(México, 1966) a partir da edição original Probleme des Realismus (LUKÁCS, 1955); parte
deles foram selecionados e traduzidos por Carlos Nelson Coutinho (LUKÁCS, 1968). Uma nova
edição com o mesmo título e também com seleção, apresentação e tradução de Carlos Nelson
Coutinho foi lançada pela Expressão Popular em 2010 com a inclusão do importante Narrar
ou descrever?, de Lukács, escrito em 1936 durante a emigração.
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sobre a questão Balzac, e, em contraste extremamente nítido com o
stalinismo, colocamos o problema sem que isso tivesse
consequências sérias - de que a ideologia não é critério para avaliar
a qualidade estética de uma obra e que pode existir uma boa
literatura, apesar de uma ideologia detestável como o monarquismo
de Balzac. Em seguida nós demos à essa ideia sua segunda forma:
uma boa ideologia pode gerar uma má literatura. (1999, p. 102)
A expectativa de Lukács e do grupo de colaboradores da Literatunyj
Kritik “de uma retomada, sem obstáculos burocráticos, da literatura socialista,
da metodologia e da crítica literária marxista”, entretanto, logo se desfez após
a dissolução da RAPP em 1932 (LUKÁCS, 1983, p. 90). Mais tarde ele e outros
integrantes do grupo que se opunha aos adeptos da organização stalinista
oficial dos escritores revolucionários da URSS compreenderam que todas estas
tendências contrárias ao progresso do pensamento tinham sólido apoio
burocrático e “que qualquer ideia que se distanciasse do modelo imposto,
esbarrava numa surda e agressiva resistência” (LUKÁCS, 1983, p. 90).
Após o centenário da Revolução Russa, vale confrontar as políticas
culturais do “tempo de catástrofes” com as experiências da Comuna de Paris e
da Comuna Húngara enquanto referências fundantes contra todas as formas
de cerceamento da expressão artística e de uma defesa enérgica da autonomia
da arte em relação ao estado.
Por essa razão, a rememoração das experiências artísticas e culturais de
ambas as Comunas permanecem como contribuições incontornáveis a um
debate que no campo do marxismo é frequentado, via de regra, pelo
desconhecimento ou por formas equívocas de apreciação da herança inspirada
nos clássicos do marxismo sobre a liberdade, autonomia e independência da
arte em relação ao estado.
Não são poucas as referências que tratam destas relações. A questão da
herança cultural da humanidade na arte e literatura acima referida está, por
exemplo, na admiração de Marx e Engels pelo legado da antiguidade clássica,
do renascimento, do iluminismo, dos grandes escritores realistas na literatura
do século XIX. Particularmente na referência de Engels ao “triunfo do
realismo” e contra o que ele denominou de “literatura de tendência”,
antecipando em décadas as críticas de Lukács à contrafação stalinista do
“realismo socialista”. De igual modo na rejeição de Lênin, Trotsky e Rosa
Luxemburgo à ideia de uma “literatura e cultura proletárias” em favor de uma
“cultura verdadeiramente humana” e de uma arte revolucionária
independente
19
. Também neste mesmo sentido, na forma como Vitor Serge
(1989, p. 97) denunciou os perigos do “utilitarismo literário” quando insistiu
19
Sobre a posição de Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo contra a” cultura proletária” do
stalinismo ver a apresentação de Isidoro Cruz Bernal a Literatura y revolución de Leon
Trotsky (2004).
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na distinção entre arte e política
20
. Distinção esta tanto mais importante, como
lembrou Chasin (1989, p. 12) “quanto mais se adverte que se trata de um
escrito de resistência pró-revolucionária no interior mesmo da revolução”
(CHASIN, 1989).
Não obstante a importância desta herança ainda persistem reedições
contemporâneas de “lamentáveis erros anteriores” que nos fazem lembrar de
perto o período dos “anos difíceis” e do “tempo de catástrofes”, como os da
“época gris” das políticas culturais nos anos sessenta e setenta em Cuba
21
.
Assim sendo, cabe rememorar desde os clássicos do marxismo as
melhores tradições envolvidas nas relações entre emancipação humana, arte e
revolução e lembrar que para os communards de 1871 e 1919, a arte e a
revolução deveriam sim andar juntas, mas em total liberdade em relação ao
estado.
Reivindicar, sim, a enorme herança da Revolução Russa de 1917, mas
sem esquecer com Netto, que “nenhum pensador marxista pode elidir-se de
um exame do stalinismo, um dos resultados do fracasso da Revolução no
Ocidente” (1979, p. 17)
22
.
Para finalizar, lembro que em Lukács “a rememoração do passado
sempre foi um veículo ideal da continuidade histórica” (1968, p. 4) mas, para
tanto,
temos que tomar o passado em um sentido ontológico, não no
sentido teórico-cognoscitivo. Se tomo o passado no sentido da teoria
do conhecimento, o passado está passado. Do ponto de vista
ontológico, o passado nem sempre é passado, mas exerce sua
influência até o presente (LUKÁCS, 1971, p. 41).
Deste modo, o passado é de um lado passado e auto experimentação da
humanidade; de outro nos proporciona um motivo para se adotar uma atitude
determinada ante o presente. Este é o sentido ontológico da rememoração de
Lukács do “tempo de catástrofes” para seu projeto de renascimento do
marxismo. Na esfera estética, frente a todas as formas de fetichização e
mistificação grosseira em nossos “tempos de catástrofes” cabe, ante o presente,
esgrimir a herança e a incontornável atualidade do realismo verdadeiro.
20
Para Serge, “Quando a luta tiver terminado, a divisão da sociedade em classes for abolida,
não haverá mais proletariado. A nova cultura nascente será verdadeiramente humana. Só num
sentido restrito, portanto, é que se pode falar de cultura e literatura proletárias” (1989, p. 97).
21
Os “erros lamentáveis” e a “época gris” estão em Os intelectuais cubanos e a política cultural
da Revolução 1961-1975 de Silvia Miskulin (2009). Sobre a presença da “barbárie stalinista”
no “trágico destino” da literatura cubana (Lezama Lima) e na revolução chinesa ver a
apresentação de Bernal (TROTSKY, 2014, p. 13).
22
No Prefácio de Pensamento vivido Eösi escreveu: “Só uma única vez no outono de 1968, não
muito depois da marcha das tropas do Pacto de Varsóvia sobre Praga, ouvi de sua boca [de
Lukács] a seguinte declaração: ‘Parece que todo o experimento iniciado em 1917 fracassou e
tudo tem de ser começado outra vez em outro lugar.’” (1999, p. 13)
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Como citar:
DUAYER, Juarez Torres. Lukács e a emigração na URSS (1933-45): realismo e
sorte em tempos de catástrofes. Verinotio Revista on-line de Filosofia e
Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 96-105, jan./jun. 2020.
Data do envio: 14 fev. 2020
Data do aceite: 8 maio 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.523
Renata Altenfelder Garcia Gallo
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Origem do reflexo estético, mundanidade e considerações
preliminares sobre a obra de arte na Estética (1963)
de György Lukács
Renata Altenfelder Garcia Gallo
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Resumo:
A partir da descrição das noções de reflexo artístico e de mundanidade na
estética de maturidade de György Lukács, este estudo pretende apresentar
algumas questões preliminares acerca do que vem a ser a obra de arte, suas
particularidades e seus pressupostos na Estética (1963), com o intuito de
ressaltar, por fim, o caráter absolutamente humanista dessa obra lukacsiana.
Palavras-chave: György Lukács; estética; humanismo.
Origin of the aesthetic reflex, worldliness and preliminary
considerations about the work of art in Aesthetics (1963)
by Gyorgy Lukacs
Abstract:
Based on the description of the concepts of reflexo artístico and mundanidade
presented in Gyorgy Lukacs' Aesthetics (1963), this study aims to offer some
preliminary considerations about what is a work of art, its particularities and
assumptions, in order to emphasize the profound humanistic trace of this
work.
Keywords: Gyorgy Lukacs; aesthetics; humanism.
Introdução
Ao longo de seus últimos 15 anos de vida, Lukács centralizou os seus
esforços na redação de duas obras consideradas sínteses de sua trajetória
intelectual: a Estética, que veio a público em 1963 e A ontologia do ser social,
cuja conclusão data, aproximadamente, de 1968. Apesar de ter iniciado a
escrita da Estética um pouco antes de 1956, o autor teve de suspender o projeto
por causa de acontecimentos políticos na Hungria. Devido a tais episódios, no
1
Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
e professora do curso de Letras e Publicidade da PUC-Campinas e do Colégio Técnico de
Campinas/Unicamp. E-mail: renataag@unicamp.br
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inverno de 1956, Lukács seguiu para a Romênia na companhia de políticos que
protagonizaram o outono húngaro de 1956, dentre os quais estava Imre Nagy,
de quem fora ministro da educação. Contudo, em abril de 1957, ao retornar a
Budapeste, o filósofo retomou a redação do texto e, em menos de três anos,
escreveu as mais de 1700 páginas que compõem a obra.
Sobre a sua publicação, afirmou para Tertulian a incrível dificuldade de
obter uma autorização para o envio da obra ao seu editor alemão; bem como
confessou que a publicação da Estética, na Alemanha Federal, ocorreria, à
época, com a condição de que ele deixasse a Hungria. A respeito da recepção
do texto, Tertulian afirma que sua publicação, pela Luchterhand Verlag, em
1963, não provocou: “os grandes ecos que poderiam ser esperados”
(TERTULIAN, 2008, p. 291); o que pode ser igualmente notado até os dias de
hoje, se observarmos a circulação ainda incipiente do pensamento estético do
autor.
Ainda sobre a recepção da Estética, um dos primeiros pensadores a se
pronunciar publicamente sobre a obra foi George Steiner. Em junho de 1964,
publicou, no Times Literary Supplement, uma das primeiras resenhas acerca
do texto, assinalando, categoricamente, a relevância da obra. Ao obter
conhecimento da resenha de Steiner, Lukács lhe endereçou uma carta em que
dizia que as questões suscitadas pela estética permaneciam abertas para o
futuro, asseverando a necessidade de um tempo longo de incubação da obra.
Ao refletir sobre o cenário da recepção das obras lukacsianas,
especialmente no que tange à estética de maturidade, Tertulian afirma que
Lukács se via como “um pensador de uma época de transição”, cujo trabalho
teórico era inevitavelmente marcado por tentativas e incertezas”
(TERTULIAN, 2008, p. 292). Esse momento de transição é compreendido a
partir da perspectiva de uma acentuada crise dos antigos valores – tanto
daqueles concernentes ao Ocidente capitalista como daqueles voltados ao
socialismo a Stálin –, somada à crise de uma insurgência incerta de novos
valores. Tertulian diz que, motivado por essa conjuntura, Lukács entende
como necessário o questionamento aos artistas sobre o modo que refletem o
homem e o mundo. Certamente, este é um dos elementos motivadores da
redação da Estética, o que conduz Tertulian a afirmar que a tônica do
pensamento estético lukacsiano reside na defesa da integridade humana,
partindo de uma imagem muito exigente do que é a substância humana”
(TERTULIAN, 2008, p. 295).
Assim que iniciou o seu projeto estético de maturidade, Lukács
pretendia a redação de uma obra que se organizaria em duas partes. Contudo,
os seus planos originais sofreram modificações, pois a completude do texto só
se realizaria com a redação de um terceiro tomo. Originalmente, a primeira
parte se ocuparia da particularidade do fato estético e, em um segundo
momento, o texto se ateria aos problemas do reflexo estético, tomando por
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objeto a estrutura da obra de arte e a tipologia filosófica do comportamento
estético. Por fim, a terceira parte discutiria a questão da arte como fenômeno
histórico-social. Entretanto, Lukács, octogenário, conseguiu finalizar,
somente, a primeira parte da Estética, publicada, então, em 1963.
Dentre as diversas noções que perpassam a obra, uma delas é a de que
a vivência estética é oriunda de um processo histórico evolutivo, isto é, foi
necessário um longo desenvolvimento humano para que o homem adquirisse
a capacidade de produzir objetos artísticos e a competência de fruí-los. A fim
de entender essa questão, é indispensável uma investigação sobre a origem do
reflexo estético, temática sobre a qual nos debruçaremos no início deste
estudo.
A partir da compreensão desse tipo de reflexo, voltaremos os nossos
esforços para a descrição da noção lukacsiana de mundanidade na esfera
artística. Afinal, se a obra de arte reflete o mundo próprio dos homens e é um
objeto em que as possibilidades e potencialidades concretas do mundo e dos
sujeitos se colocam frente ao receptor com a mais ampla profundidade, a
mundanidade deve ser compreendida como uma característica própria da
esfera estética.
Percorrido o caminho das representações artísticas rumo à
mundanidade e diante do entendimento de que esta é um atributo da esfera
estética, delinearemos, por conseguinte, algumas questões preliminares sobre
o que vem a ser a obra de arte, suas particularidades e seus pressupostos na
Estética (1963). Desta feita, pretendemos endossar o caráter absolutamente
humanista da estética de maturidade de Lukács.
Reflexo estético
A leitura da estética lukacsiana, de antemão, deixa claro para o seu leitor
que as investigações relativas ao fenômeno artístico não podem versar, apenas,
sobre a compreensão de elementos que mais corriqueiramente são descritos
nas estéticas, como a questão da forma artística ou da fenomenologia da
recepção e da criação das obras de arte. Para Lukács, é importante entender,
sobretudo, a gênese do reflexo e as especificidades relativas aos reflexos
estético e científico, de modo que este se torna o tema central da primeira parte
da Estética.
Segundo Lukács, arte e ciência são reflexos próprios do homem e têm
como função possibilitar aos sujeitos conhecer o mundo que os circunda e, por
conseguinte, fazer com que esses indivíduos possam dominá-lo. Nesse sentido,
a estética de maturidade lukacsiana assume como pressuposto que a esfera da
vida cotidiana é o plano de onde parte e o ponto para onde retornam os efeitos
das objetivações humanas, pois é da vida cotidiana que:
provém a necessidade de o homem objetivar-se, ir além de seus
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limites habituais; e é para a vida cotidiana que retornam os produtos
de suas objetivações. Com isso, a vida social dos homens é
permanentemente enriquecida com as aquisições advindas das
conquistas da arte e da ciência (FREDERICO, 2000, p. 303).
Conforme mencionamos, o reflexo artístico e o reflexo científico se
alimentam da realidade cotidiana e refletem-na, o que motiva Lukács a afirmar
que o comportamento cotidiano dos sujeitos é, igualmente, o começo e o fim
de toda ação humana. Para ilustrar essa perspectiva, o autor constrói uma
analogia entre o rio de Heráclito e o plano da vida cotidiana. Nesse sentido, o
cotidiano assume a forma do rio, que se mantém em seu permanente fluxo
onde tudo se movimenta e se transforma -, embora tudo retorne, sempre, ao
seu leito. É assim, também, com o com a esfera do cotidiano, pois dela se
depreendem, em formas superiores de recepção e de reprodução da realidade,
a arte e a ciência; esferas que se diferenciam e que se organizam de acordo com
suas próprias finalidades. Neste movimento, arte e ciência alcançam sua forma
pura, que nasce das necessidades da vida social, para, em consequência de seus
efeitos, isto é, de sua influência na vida dos homens, desembocar, novamente,
na corrente da vida cotidiana.
O reflexo artístico e o científico funcionam como polos de recepção
subjetiva do mundo e como momentos do mesmo processo de
desenvolvimento histórico e social da humanidade, entretanto, distinções
marcantes entre ambos. Dentre elas, podemos destacar que a esfera artística
tem como peculiaridade receber forma no particular e o reflexo científico, por
sua vez, recebe forma através do universal ou do singular. Isto é, a ciência deve
perseguir as determinações gerais do objeto a que se propõe a investigar
enquanto a arte deve se orientar exclusivamente a um objeto particular:
A generalização estética realiza-se, portanto, na intensificação do
traço individual, que assim caracterizado expressa no objeto da arte
sua entificação especial, particular, única e, por isso mesmo,
universal. (COSTA, 2012, p. 81)
O elemento que define a esfera estética como um tipo específico de
reflexo é a capacidade de representação da realidade, de modo que aparência
e essência sejam reveladas, conjuntamente, em sua imediaticidade e de
maneira sensível. Isto é, aparência e essência se manifestam unidas e de forma
harmônica no reflexo artístico, em uma determinada representação sensível.
Essa adequação e coincidência entre essência e aparência não ocorre no reflexo
científico.
Na esfera artística, percebe-se a constituição de um mundo próprio, o
que não se verifica na esfera da ciência, em cuja o conhecimento é entendido
como um processo no qual cada nova descoberta invalida a anterior ou a
supera. No campo da arte, o objeto estético não é invalidado ou ameaçado
quando surgem outras obras, essencialmente, porque são mundos próprios
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que não dependem de outros para existir. Por conseguinte, pode-se afirmar
que a arte reflete uma totalidade intensiva da vida, ou seja, ela é “uma
totalidade fechada que figura de modo concentrado o mundo dos homens num
contexto particular” (FREDERICO, 1997, p. 62). Se a arte reflete a totalidade
intensiva da vida, o mesmo não ocorre com a ciência, que procura refletir a
totalidade extensiva da vida, visto que “o cientista busca refletir o infinito, o
universo em seu conjunto” (FREDERICO, 1997, p. 61).
Ainda sobre as especificidades do reflexo estético e do científico, Lukács
assegura que a individualidade da obra de arte é sempre determinada pela
subjetividade de seu criador, ao passo que as proposições científicas
encontram-se desvinculadas de qualquer momento subjetivo em sua origem,
podendo, apenas, de acordo com Patriota:
cumprir a finalidade que lhe foi destinada socialmente se capta a
realidade em sua legalidade ou essencialidade, depurando-a ao
máximo de condicionamentos subjetivos e formando, através de
conceitos, uma cadeia de determinações generalizadoras
(PATRIOTA, 2010, p. 18).
Por esse motivo, afirma-se que o reflexo científico é marcado por seu
caráter desantropomorfizador, pois a sua finalidade é o conhecimento da
realidade objetiva, levando à consciência seus conteúdos, suas categorias etc.,
ao passo que a arte carrega como marca um caráter antropomorfizador, pois
liga a objetividade à subjetividade, a essência ao fenômeno, aproximando,
assim, os contrários. Nesse sentido, afirma-se que o reflexo artístico atua por
meio de um movimento contrário ao reflexo científico, pois a sua projeção é
marcada por um movimento de dentro para fora. Sendo assim, a arte opera
sobre o sujeito enquanto a ciência age através de leis próprias, de forma que,
no reflexo científico, a realidade objetiva independe da consciência e
transforma em propriedades da consciência humana uma realidade que
independe da consciência do homem. Na arte, contrariamente, é alcançada a
unidade do sujeito individual com o objeto, de modo que nesta esfera o homem
está implicado como objeto e como sujeito, o que corrobora a ideia de que não
há mundo artístico sem um sujeito criador e um fruidor. Esse processo resulta
que a obra de arte, embora seja uma coisa “em-si”, é, a um só passo, um “para-
nós”, pois nela está sempre contido o sujeito criador e o fruidor.
Deve-se ressaltar, portanto, que a autoconsciência do sujeito fruidor
não está dissociada do mundo exterior; o que conduz à afirmação de Lukács de
que as reproduções artísticas da realidade transformam o ser-em-si da
objetividade em um ser-para-nós do mundo, representado na individualidade
de cada totalidade intensiva que é a obra de arte. Essa propriedade estética
amplia, alarga e aprofunda a consciência do homem sobre a natureza, sobre a
sua condição humana, sobre a história e a sociedade. É no domínio da estética
e, através da mediação entre as obras de arte e o sujeito, que o indivíduo pode
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se transformar de homem como um todo em sujeito plenamente humano,
mantendo-se ao nível do gênero de maneira autoconsciente.
A polarização entre autoconsciência (arte) e consciência (ciência) é um
elemento que distingue, também, os dois tipos de reflexo, todavia, é
importante ressaltar que essa polarização é um resultado de um processo
histórico, visto que o reflexo científico e o artístico nascem como que
misturados. É objeto de o materialismo dialético investigar as condições
históricas sob as quais se desenvolveu essa polarização. Nesse sentido, a nossa
discussão se volta ao mapeamento da origem do reflexo estético e à sua relação
com a categoria da mimese artística, aspectos fundamentais para a
compreensão do fenômeno estético em sua relação com o desenvolvimento do
gênero humano.
Lukács afirma que a arte se define pelo processo de imitação, isto é, pela
mimese, cujo papel consiste na “conversão de um reflexo de um fenômeno da
realidade na prática de um sujeito” (LUKÁCS, 1972, p. 7). A validade da
imitação é um elemento universal na vida dos seres dotados de alto grau de
organização, pois a conservação e a transmissão de experiências entre seres de
uma mesma espécie não podem se consumar a não ser pela imitação;
procedimento responsável por fixar os reflexos condicionados. Pensemos, por
exemplo, na conservação das espécies de pássaros – como as andorinhas que
têm de migrar para garantir a sua sobrevivência. Se as espécies mais jovens
não seguirem o modelo de migração das mais experientes, possivelmente
sucumbirão ao frio e às adversidades impostas por parte das estações do ano
que não lhes oferece um ambiente adequado à sobrevivência.
Quanto aos homens mais primitivos, o movimento de captação da
realidade requeria, ao menos, uma aproximação elementar e consciente
voltada para essa mesma realidade. O peculiar caráter subjetivo da seleção
dessa realidade refletida tem que conter, em si, uma tendência à objetividade
autêntica, processo que se realiza por meio da distinção dos conteúdos
essenciais e inessenciais do reflexo. O princípio de seleção desses conteúdos é
orientado pelos interesses vitais do homem, ou seja, quanto mais um conteúdo
remete a tais interesses, maior a sua essencialidade. Sendo assim, se o reflexo
não afetar um momento essencial da vida humana, a finalidade subjetiva do
homem não se realiza o que conduz à afirmação lukacsiana de que a práxis
se impõe como critério de verdade para a captação da realidade a partir da
seleção dos conteúdos do reflexo. No interno deste processo, é importante
destacarmos o papel essencial do trabalho:
pois o progresso e o desenvolvimento do homem são possíveis
pela prática, pelo trabalho, de modo que ambos pressupõem, por sua
vez, um reflexo mais correto e mais rico da realidade (LUKÁCS,
1972, p. 31, tradução nossa).
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Por meio do trabalho, o homem suspende a imediaticidade da vida
cotidiana para tentar investigar a realidade objetiva tal qual ela é. Essa
realidade comporta em si um movimento dialético de essência e aparência, o
que ressalta, ao mesmo tempo, o seu aspecto contraditório e unitário. Sendo
assim, todo o comportamento prático e intelectual dos homens, bem como o
reflexo humano, deve se adequar a essa realidade. Tal argumentação
margem ao debate sobre a prática artística do naturalismo. Se a vida cotidiana
comporta em si um movimento dialético, que se consolida como elemento
básico da vida, o reflexo artístico não pode ignorar esse movimento, tal como
o faz o método naturalista de composição artística. Essa prática tende, segundo
Lukács, a dissolver a contraposição e a diferenciação entre essência e aparência
da realidade, de modo a anulá-las. Nesse sentido, o naturalismo seria uma
tendência tardia na evolução histórica da humanidade, de modo que essa
prática pretende
aproximar-se dos fenômenos aparentes e superficiais da vida
cotidiana e eliminar, de forma mais radical possível, todas as
categorias de mediação que apontam para os fenômenos essenciais
da realidade (LUKÁCS, 1972, p. 22, tradução nossa).
Essa tendência à eliminação dos conteúdos essenciais da vida cotidiana
surge somente, segundo Lukács, quando determinadas classes sociais esboçam
temor em relação à descoberta desses conteúdos. Daí a afirmação do autor a
respeito do aparecimento tardio dessa tendência artística, a qual expressa
desorientação e caminha para o encerramento das perspectivas de
desvelamento dos conteúdos aparentes; aspectos que contribuem à tendência
fetichista do capitalismo.
O empenho de Lukács em compreender as especificidades do reflexo
estético conduz o autor à discussão da relação intrínseca entre arte e magia,
uma vez que a gênese do reflexo artístico só pode acontecer quando a intenção
estética já se apresenta consolidada e arraigada na vida subjetiva dos homens.
Somente a partir deste movimento podem ser percebidos como estéticos os
processos cuja intenção inicial o tinha essa finalidade. Para o filósofo,
algumas distinções são notáveis quando mencionados os termos arte, magia e
religião; apesar dessas esferas partilharem de um princípio comum: o seu
caráter antropomorfizador.
Tais atividades humanas congregam um potencial de conectar a
objetividade à subjetividade, a essência ao fenômeno, aproximando, assim,
polos contrários. Entretanto, distinções que delimitam tais campos. Se, na
esfera estética, a imagem refletida da realidade é percebida e compreendida
como reflexo; às esferas da religião e da magia atribui-se uma realidade
objetiva ao sistema de seus reflexos, de modo que se exige uma
correspondente. No campo artístico, as obras de arte constituem um sistema
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fechado em si, que se refere, sempre, à realidade objetiva. o reflexo de
natureza mágica ou religiosa se refere, sempre, a uma realidade transcendente.
Como mencionado, as formações artísticas são sempre reflexo da
realidade objetiva e sua verdade e seu significado residem, essencialmente, na
capacidade que esses reflexos possuem de captar corretamente a realidade,
reproduzindo-a em sua forma verdadeira, de modo a evocar, no seu receptor,
a imagem da realidade contida em tais reflexos. Essa orientação do reflexo
estético volta-se para a cismundanidade da arte, que, segundo Lukács,
significa, de um modo imediato, que a ão evocadora daquilo que
fora representado se orienta exclusivamente à recepção do sujeito,
ou seja, que com o efeito evocador obtido, a formação mimética
alcançou totalmente a sua finalidade (LUKÁCS, 1972, p. 45,
tradução nossa).
Nesse sentido, a noção de cismundanidade assume como marca o
antropocentrismo, pois evoca um sistema de pensamento que coloca o homem
no centro do mundo, de forma que tudo a ele se refere. Apoiado nessa
concepção, Lukács afirma que a autoconsciência da humanidade é a autêntica
subjetividade portadora da arte. Se as obras de arte refletem de modo fiel os
conteúdos da realidade objetiva, fazendo com que o receptor consiga evocá-
los, o processo de recepção artística passa a funcionar, por conseguinte, como
um movimento de autoconsciência do fruidor, o que revela o caráter
profundamente humanista da estética lukacsiana.
Essa autoconsciência, sobre a qual fizemos menção, só pode existir em
um mundo onde o homem tenha certo domínio do seu mundo interior e
exterior. De acordo com Lukács, o sujeito primitivo não poderia ou não
conseguiria dominar no âmbito teórico ou prático o mundo que o
circundava. Essa configuração fez com que tal sujeito negligenciasse o mundo
exterior para que pudesse empreender um movimento para “dentro”, isto é,
voltado à sua interioridade. Como este caminho não é natural, pois os instintos
do homem o orientam para “fora”, o indivíduo elimina as suas limitações
através de meios artificiais.
Um dos exemplos resgatados pelo filósofo para retratar essa questão são
os rituais dionisíacos. Embalados pelo uso de substâncias alucinógenas, ou
ainda, pelos longos rituais dançantes, seus participantes empreendiam um
caminho rumo à interioridade por meio de vias artificiais, configurando,
assim, uma situação de êxtase. Para Lukács, a mimese e o êxtase são
excludentes, a não ser quando aparecem simultaneamente, o que se verifica no
período mágico. Suas formações miméticas são reflexos de fragmentos da vida
e, não, de sua totalidade, apesar de essas mesmas formações tenderem a
remontar essa totalidade. Nesse sentido, o êxtase proporcionado pelos rituais,
por exemplo, tem como finalidade arrancar e arrebatar o sujeito da
normalidade da vida, impondo a ele uma realidade transcendente que rompe
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com a normalidade e com a continuidade da vida cotidiana, gerando um
comportamento que não se orienta à objetividade, à evocação e à recepção,
elementos essenciais à conduta mimética.
Na vida cotidiana, a vinculação entre o evocador e o mimético tem como
fundamento o desenvolvimento dos sentidos. Lukács ressalta dois aspectos
essenciais sobre a questão. Um deles é a fantasia do movimento, ou seja, em
uma peça de teatro, por exemplo, a imitação de um movimento pelo ator pode
reproduzir evocativamente esse mesmo movimento na fantasia do espectador,
de forma que, quanto mais desenvolvida e elaborada essa fantasia, maior a
possibilidade de os homens se tornarem mais hábeis em suas ações cotidianas
no que tange ao desenvolvimento desse movimento. O segundo aspecto
enfatizado é a divisão do trabalho entre os sentidos, fator que se configura,
igualmente, como um produto do trabalho. Para Lukács, o desenvolvimento
dos sentidos na vida cotidiana é possível a partir da vinculação entre o
evocador e o mimético, elementos fundamentais à esfera estética.
A vivência estética, oriunda de um processo histórico evolutivo, se
configura, “como uma entrega imediata a um complexo unitário de imagens da
realidade, as quais são refletidas sem que haja a ilusão de se estar diante da
própria realidade” (LUKÁCS, 1972, p. 76, tradução nossa). Pensemos, por
exemplo, em uma morte cênica. Nesse sentido, Lukács enfatiza que, na vida
cotidiana, as erupções emocionais dos sujeitos possuem fundamentos
objetivos, ao passo que, nas formações miméticas, não uma realidade que
suceda esses sentimentos na intenção de fundamentá-los. As emoções do
fruidor podem ser suscitadas devido à orientação das imagens refletidas, as
quais conduziram a evocação para uma direção específica. Essas considerações
encaminham a argumentação do filósofo para a seguinte afirmação:
A forma artística surge como meio para expressar um conteúdo
socialmente necessário, de tal modo que se produza um efeito
evocador concreto e universal, que constitui também uma
necessidade social. (LUKÁCS, 1972, p. 101, tradução nossa)
O caminho da mundanidade
Uma das peculiaridades das obras de arte é a criação de mundos
autônomos, isto é, o objeto artístico reflete uma totalidade intensiva da vida,
pois figura, de modo concentrado, o mundo dos homens em determinados
contextos, entretanto um longo caminho do desenvolvimento humano teve de
ser traçado para que adquiríssemos a capacidade de produzir obras de arte.
Seguiremos descrevendo os traços mais essenciais desse desenvolvimento,
segundo Lukács.
Primeiramente, o filósofo tece algumas considerações acerca das
pinturas rupestres produzidas pelos caçadores no período paleolítico. Sobre
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elas, Lukács assinala um traço bastante curioso: apesar de apresentarem em si
um traço amundanal (ausência de mundo), ainda assim apresentam certo
realismo. Entende-se, assim, que essas figuras, normalmente reproduções de
animais, não possuem qualquer ligação com elementos presentes em seu
entorno, visto que são realizadas de modo solto” no espaço em que foram
produzidas. É, precisamente, nesse sentido que Lukács assinala a ausência de
mundo dessas representações, apesar de apontar que elas reúnem um certo
caráter realista. Pode parecer estranho este traço, entretanto ele se apresenta
devido à alta capacidade de observação que esse homem do período Paleolítico
possuía, pois a necessidade da caça, da pesca e da coleta em prol da
sobrevivência fez com que essa habilidade observação fosse potencializada.
Nesse sentido, devemos novamente ressaltar a noção de que tudo surge a partir
da e na vida cotidiana. A habilidade estética dos povos caçadores do Paleolítico,
ao reproduzir imagens individualizadas e típicas de animais surge,
precisamente, de sua necessidade cotidiana de sobreviver.
Lembremos que essas pinturas rupestres tinham como finalidade, por
exemplo, o logro na caça ou na pesca e não um êxito estético. Desse modo,
essas reproduções obedecem a finalidades mágicas, impostas por uma
determinação externa, que, neste caso, é a comunidade. Observando as
condições de nascimento dessas pinturas bem como as suas finalidades, é
altamente compreensível que os homens que produziram tais figuras se
voltassem, somente, para a representação do animal que pretendiam caçar e,
não, para questões estéticas. Sendo assim, não era necessário desenhar uma
paisagem de fundo para abrigar a presa pretendida e incrementar, assim,
aquela pintura, pois as finalidades deste homem o demandavam tal
comportamento, exigiam, somente, a representação do animal para que
impusessem sobre ele um domínio no momento da caça. Lukács sintetiza a
questão:
O paradoxo das obras primas da pintura rupestre paleolítica
consiste que os animais reproduzidos, considerados objetos soltos,
parecem possuir aquela totalidade intensiva das determinações, ou
seja, uma intenção de mundanidade, ao passo que, ao mesmo
tempo, são representados isoladamente, em seu abstrato ser-para-
si, como se a sua existência não interagisse com o espaço que
imediatamente o rodeia, nem, ao menos, com o seu ambiente
natural. Essas figuras estão artisticamente fora de todo o mundo,
e sua configuração é em última instância amundanal (LUKÁCS,
1972, p. 126, tradução nossa).
Pelos motivos apontados por Lukács, a pintura paleolítica carrega em si
uma situação contraditória, haja vista que magia e arte, em sua essência, se
opõem: “aquela visa à consecução de finalidades materiais pela manipulação
de forças transcendentes, essa visa à transformação da subjetividade do
homem pela afirmação de sua terrenalidade” (PATRIOTA, 2010, p. 157). Se a
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pintura rupestre paleolítica ainda obedecia às finalidades da magia,
carregando em sua estrutura uma contradição, a civilização grega será
responsável por fazer com que tal paradoxo desapareça.
No decurso evolutivo da humanidade, a cultura grega representa o
início da civilização, pois constrói, por meio de um processo autoconsciente,
um mundo de acordo com as suas demandas, ampliando o domínio humano
sobre as barreiras naturais, o que lhe confere certa segurança em seu estar no
mundo. Nesse sentido, questões que nos parecem triviais, como a construção
de casas seguras, diminui a hostilidade dos homens para com o mundo que
habitam. Pensemos, desta feita, na construção de telhados e de muros voltados
para a proteção desses sujeitos e para a amenização das ameaças externas ou
naturais.
Se o alheamento entre sujeito e mundo diminui a partir do momento
que o homem amplia o seu domínio em relação ao mundo, consequentemente,
os indivíduos passam a reconhecer o seu entorno como algo que lhes
corresponde, que lhe é familiar, e que pode ampliar, até certa medida, a sua
própria personalidade. Surge, portanto, a concepção de um mundo como lar,
ou melhor, como pátria. Essa nova conformação inaugura um tipo de
representação artística voltado à mundanidade, o que permite uma evolução
artística que desfaz o paradoxo das pinturas do paleolítico: amundanidade
versus realismo. Ao se deparar com um novo contexto histórico filosófico, a
arte teve de resolver, em sentido estético, os problemas apresentados pelas
novas configurações históricas.
A partir do momento em que o homem se viu mais seguro em seu
mundo, pois ampliou o seu domínio prático e intelectual sobre ele, a resposta
artística a essa configuração foi a gênese do espaço pictórico, mais
essencialmente, a necessidade de representação dos objetos unidos
indissoluvelmente ao espaço que os rodeia, configurando, assim, uma
interação vivia entre os objetos representados nas pinturas. Se este novo
homem dominou o espaço que o rodeava; em suas representações pictóricas, a
distribuição das cores, por exemplo, não poderia mais ocorrer de forma
arbitrária, o que configurou uma revolução na sensibilidade humana. Para dar
suporte a essa argumentação, Lukács retoma os resultados do trabalho do
historiador austríaco Franz Wichoff (1853-1909):
A paisagem, com o céu em cima, o mar e os rios, o interior e o
exterior dos edifícios, suas coberturas, as ferramentas, etc., não
eram mais compreensíveis em sua conexão a não ser que fossem
representados por meio de suas cores naturais, o que levava
rapidamente à uma representação plenamente natural das figuras
que se moviam naquele ambiente. (LUKÁCS, 1972, p. 138, tradução
nossa)
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Essa interação entre os objetos presentes nas pinturas e a transição da
cor fisiológica para a cor local são os elementos que marcam, segundo Lukács,
a mundanidade. Foi aberta, assim, a possibilidade de construção de um mundo
próprio e articulado que configura o reflexo artístico. A partir desse novo tipo
de representação, a evocação artística de um mundo fechado pode ocorrer nas
obras de arte. Sobre a questão, Patriota desenvolve afirma:
Em torno da categoria de “mundo próprio aglomeram-se três
determinações básicas. Em primeiro lugar, a conformação de uma
realidade humanamente digna, própria do homem, em plena
conformidade com suas carências e potencialidades, onde ser e
dever ser não apenas se harmonizam, mas se apresentam numa
identidade tica. Na obra de arte não postulados, mas
efetividades. O dever-ser é sempre ser efetivo. Em segundo lugar,
este mundo se põe ao receptor como uma totalidade intensiva,
totalidade que emana de dentro da moldura espaço-temporal da
vida refigurada na obra. Cada obra de arte é vivida como um mundo
em si completo. Em terceiro lugar, trata-se de um mundo próprio no
sentido artístico, isto é, criado a partir de uma gica estética
autárquica. (PATRIOTA, 2010, p. 159)
Essa evolução artística, oriunda de uma alteração da quadratura
histórica e filosófica de certo período da humanidade, é expressa pela
capacidade do homem de articular objetos distintos, criando a imagem de uma
totalidade orgânica e unitária de um todo. No âmbito estético, esse
desenvolvimento encaminha as observações de Lukács para um aspecto basilar
de sua Estética: os conteúdos selecionados pelos artistas para a criação de sua
obra já indicam as possibilidades das realizações formais desse mesmo objeto
artístico. Isso equivale a dizer que forma e conteúdo se condicionam e se
determinam reciprocamente.
Considerações iniciais sobre o objeto estético
Para Lukács, o mundo refletido na da obra de arte comporta em si uma
rica contradição, pois o objeto estético é uma totalidade intensiva, uma
objetividade fechada em si, que independe do sujeito, ao mesmo tempo em que
desnuda conteúdos essenciais relativos à vida humana. Para que essa
contradição pudesse tomar forma, dois elementos recebem destaque: 1) a vida
humana teve que se desenvolver a ponto de se converter em objeto de
representação, isto é, em obra de arte; e 2) o homem pode se tornar um sujeito
estético. No desenrolar deste estudo, expusemos, de acordo com Lukács, como
o desenvolvimento humano se deu no sentido de que o homem pudesse se
tornar um sujeito estético e como a vida humana se tornou objeto de
representação. Desta feita, a contradição que a estrutura da obra de arte
comporta objetividade fechada em si, independente do sujeito, ao mesmo
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tempo em que revela conteúdos essenciais da vida humana expõe um
movimento de identidade absoluta de conteúdos externos e internos, que, a
partir das determinações da forma artística, se convertem em uma unidade.
A conexão e a síntese desses conteúdos internos e externos é, para
Lukács, a expressão imediata de um conteúdo ainda mais profundo: a verdade
da vida, segundo a qual o homem conhece a si próprio à medida que conhece
e domina o mundo que o cerca; espaço onde tem de viver e agir. Essa premissa
da esfera estética impulsiona o sujeito ao autoconhecimento e ao
conhecimento do mundo que o circunda, em um movimento circular. Ao
retomar o conselho do Oráculo de Delfos aos antigos gregos, conhece-te a ti
mesmo”, o marco inicial da longa trajetória da humanidade rumo ao
autoconhecimento, Lukács nos coloca diante de sua compreensão da autêntica
obra de arte, afirmando que ela impulsiona o ser humano a conhecer tudo
aquilo que o rodeia – seus semelhantes, a sociedade em que vive, a natureza, o
seu campo de ação etc. ao mesmo tempo em que o coloca frente à
compreensão dos estratos mais profundos do seu ser. Essa é, certamente, uma
das maiores potencialidades da esfera estética.
A partir dessa reflexão, o filósofo afirma que o mundo particular das
obras de arte não é utópico, objetiva ou subjetivamente falando, pois não
aponta para algo transcendente, para além do homem ou do seu mundo. A arte
compreende, portanto, o mundo próprio dos homens, carregando o seu traço
de mundanidade. Ela é, ainda, um objeto em que as possibilidades e
potencialidades concretas do mundo e do sujeito se colocam frente ao homem
com a mais ampla profundidade. No âmbito estético, até as obras de arte que
apontam ao receptor um mundo do dever o vividas pelo ser como seu mundo
próprio. Nesse sentido, para Lukács, a canção mais idílica ou a natureza morta
mais elementar expressam, em certa medida, um dever-ser que exige do sujeito
da cotidianidade o alcance da unidade e da altura realizadas na obra de arte,
movimento que configura o que o autor adjetiva de o dever de toda vida plena
e autêntica.
Se a obra de arte possibilita ao homem o autoconhecimento e o
conhecimento do mundo, ela compreende, ainda, o papel de objeto portador
da memória da humanidade, pois materializa em si os conteúdos que ampliam,
enriquecem e aprofundam a noção de homem e as relações deste com a
natureza. Fruir um objeto estético é, portanto, um fenômeno que nos coloca
diante dos destinos vividos pela humanidade e dos feitos humanos, de modo
que podemos nos conectar a eles e revivê-los em cada obra de arte,
interiorizando, portanto, os caminhos passados e presentes dos homens,
participando, destarte, da vida da humanidade. A fruição estética, enfim,
preconiza a transformação de um passado espacial e temporal em um
momento presente vivido, despertando, no sujeito fruidor, a consciência de
viver em um mundo do qual ele faz parte e do qual é co-criador.
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É necessário, por conseguinte, enfatizar a questão da essencialidade da
esfera estética em relação à memória, pois “a memória da humanidade não fixa
mais do que o importante e não se sobrecarrega com o supérfluo” (LUKÁCS,
1972, p. 183, tradução nossa). Nesse sentido, os artistas devem selecionar os
conteúdos essenciais para a criação da obra, procedimento que deve se realizar
por meio de um movimento que impulsiona o artista a refletir, no objeto,
situações e personagens típicos. As figuras que correspondem à formação dos
tipos sociais são aquelas que congregam, em seu caráter, as relações que estão
nascendo e as que nasceram na história da humanidade, ou seja, os
personagens ou situações picas sintetizam as tensões sociais latentes de um
período histórico em conexão com aquelas que se materializaram. Essa
compreensão da obra de arte não exige que todos os objetos estéticos tenham
que refletir todo o conjunto de fenômenos de seu contexto de produção. Cada
objeto artístico deve captar, reproduzir e refletir um conglomerado de
situações, de destinos e de caracteres típicos que devem se converter em tema
de representação, configurando, assim, uma universalidade em sentido
intensivo. A comédia humana, de Balzac, é um exemplo que justifica a
afirmação precedente, pois cada um dos livros que compõe essa obra
representa um conjunto de tensões que nem sempre é o objeto de
representação dos outros títulos.
A relação entre a produção estética e a essencialidade suscita uma
compreensão da obra de arte como objeto que reflete a realidade de modo
amplo e rico, corroborando a concepção do escritor e filósofo holandês
François Hemsterhuis (1721-90) de que a alma humana tende, naturalmente,
a se apropriar de um grande número de ideias no menor tempo possível.
Transposto ao objeto estético, esse princípio determinará, para este autor, a
noção de belo. Desta feita, a esfera estética é marcada pela capacidade de
concentração e de intensificação, na obra de arte, dos conteúdos da realidade
que o artista procura refletir. Lukács resgata as ideias de Hemsterhuis e afirma
que o autor seria o precursor de manifestações importantes na esfera estética,
como a divisão do trabalho dos sentidos e a formação de um meio homogêneo,
bem como descreve de que forma ele entendia as finalidades da mimese.
Hemsterhuis compreende duas finalidades para a mimese artística. A
primeira delas é a possibilidade objetiva de reprodução, na arte, dos objetos do
mundo e a segunda consiste na garantia do potencial da arte de superação da
natureza, de modo que não cabe ao objeto estético, somente, refletir a
realidade, mas criar, sobretudo, uma imagem que ultrapasse a natureza em
riqueza de determinações, criando efeitos que não podem ser por ela
produzidos. Tais premissas asseguram a essencialidade das noções de
concentração e de intensificação na esfera estética.
Se, para Lukács, Hemsterhuis entende o efeito da obra como superação
da natureza, Nikolay Gavrilovich Tchernyshevsky (1828-89), filósofo,
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jornalista e escritor russo, trará outra contribuição importante à estética
lukacsiana, a de que todas as reproduções artísticas da realidade - inclusive
aquelas em que o conteúdo imediato é a natureza - têm como ponto mais
significativo o homem. Tchernyshevsky acredita que a obra de arte deve figurar
o metabolismo da sociedade com a natureza, o que conduz à noção lukacsiana
de que cabe à obra levar ao sujeito cotidiano a natureza da objetividade da qual
ele próprio participa. Nesse sentido, Lukács observa que, na Poética
aristotélica, a expressão imitação da natureza não é utilizada, levando-o a
proferir que, para Platão e Aristóteles, o verdadeiro conteúdo da arte não é a
natureza, mas a própria vida dos homens. Assegura-se, assim, o caráter
antropomorfizador da obra de arte. Apesar das importantes contribuições de
Tchernyshevsky, Lukács assinala que suas noções não são mais do que
intuições que desembocam em certo formalismo, pois o autor limita-se a
adivinhar, sem reconhecer nem conhecer claramente a vinculação econômica
da humanidade com a natureza.
A crítica de Lukács dirigida ao filósofo russo tem como ponto central a
importância da vinculação econômica da história da humanidade ao seu
desenvolvimento. Trocando em miúdos, a tônica dessa discussão recai na
importância de se pensar os nexos que a categoria do trabalho – entendida no
sentido marxiano do termo – possui com a esfera estética; o que conduz
Patriota a afirmar que: “Todas as questões que surgem de dentro do mundo da
arte encontram no princípio da humanização do homem pelo trabalho sua
possibilidade efetiva de explicação” (PATRIOTA, 2010, p. 195). Na estética de
maturidade, essa compreensão fundamenta a relação sujeito-objeto, de
modo que o movimento da subjetividade em direção à esfera estética será
elucidado a partir do resgate do processo metabólico do trabalho.
Passando por essa compreensão, Lukács adota a ideia de trabalho
marxiana, compreendendo-o como o momento originário em que o homem
exterioriza a sua subjetividade e aquilo que o é em seu interior. Dessa forma, o
trabalho adquire o status de momento disparador do processo de
interiorização dos indivíduos:
E com o trabalho, também a objetividade natural surge como
determinação originária, pois o trabalho é a ação do sujeito frente a
uma objetividade independente e inderivável. Segue-se daí que, pelo
trabalho, o homem surge como sujeito e a natureza, que existe por
si, como objeto deste sujeito. Em seu movimento concreto, esta
relação sujeito-objeto é o processo de exteriorização do sujeito que
age sobre a objetividade dada, um movimento duplo: a alienação
deste sujeito de si mesmo e o retorno a si dessa alienação idêntico.
(PATRIOTA, 2010, p. 191)
Ao agir no mundo, por meio do trabalho, o homem manifesta ativa e
passivamente a sua generidade, pois busca uma utilidade social para o objeto
por ele produzido. Nesse sentido, Lukács retoma a ideia de Marx, contida nos
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Manuscritos econômico-filosóficos (2004), de que o objeto do trabalho é a
objetivação da vida genérica do homem, pois é, por meio dele, que o sujeito se
duplica intelectualmente em sua consciência, contemplando-se em um mundo
criado por ele próprio. No sentido oposto, o trabalho estranhado retira do
homem o objeto por ele produzido, arrebatando-lhe a sua vida genérica, ou
seja, sua real objetividade genérica. Ainda sobre a noção de trabalho marxiana,
Jesus Ranieri afirma que:
É nesse texto [Manuscritos econômico-filosóficos] que o lugar do
trabalho como forma efetivadora do ser social é realmente exposta e
desenvolvida, algo que, até então, mesmo em Marx, não havia sido
feito. É nele que o conjunto das esferas da existência humana (desde
o lugar da arte, da religião, da filosofia, passando pela conceituação
de liberdade, aas formas concretas e imediatas de realização do
trabalho) aparece como dependente da esfera de produção o
trabalho é mediação entre homem e natureza, e dessa interação
deriva todo o processo de formação humana. (RANIERI, 2004, p.
14)
Ao longo do processo de formação e de evolução da humanidade, o
homem interage com a natureza e a transforma conforme as exigências da vida
em sociedade. A culturização de antigos desertos é um exemplo de tal processo,
que modifica e enriquece o homem e as suas relações com o ambiente e com os
outros homens. A ideia de conformidade ou de adequação acerca da relação
metabólica do homem com a natureza pode ser tomada no sentido de uma
acepção prática, tal qual o exemplo citado, e em uma acepção voltada à
atividade estética, segundo Tertulian. Devemos ter em mente que a estética de
maturidade resgata a ideia de conformidade ao entender que a missão da arte
consiste em “evocar a realidade em sua plena objetividade, mas da perspectiva
única de sua conformidade com as exigências humanas” (TERTULIAN, 2008,
p. 253). A acepção estética que Lukács pretende à ideia de conformidade é
descrita da seguinte maneira por Tertulian:
como uma adequação do mundo (vista sob a forma de “troca
material de substância entre natureza e sociedade”) às exigências do
homem tomado em sua essência humana, como sua conformidade
com os atributos - equilíbrio ou perturbação, bem ou mal – da
personalidade humana em sua integralidade (TERTULIAN, 2008,
p. 253).
As considerações até aqui realizadas nos encaminham à afirmação de
que o movimento da subjetividade em direção à esfera estética será elucidado
por meio da retomada do processo metabólico do trabalho, de forma que os
questionamentos suscitados sobre o mundo da arte devem ser explicados a
partir do princípio do processo de humanização do homem, realizado por meio
do trabalho. Diante dessa perspectiva, a estética de maturidade lukacsiana
ao compreender que o sujeito, ao se relacionar com o entorno, passa a conhecer
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e dominar o mundo ao seu redor, bem como tem sua interioridade enriquecida
resgata a noção marxiana de que: “o conhecimento de si do homem não
ocorre sem o conhecimento do conjunto de suas relações com o mundo”
(TERTULIAN, 2008, p. 253). Dito de outro modo, Lukács assegura o elo e a
correlação entre o ato de objetivação e o desenvolvimento da sensibilidade
humana, o que, transposto à criação artística, conduz à afirmação de que a
conexão estabelecida entre o conhecimento de si e o conhecimento do mundo
está no alicerce do equilíbrio entre objetividade e subjetividade no momento
da criação artística.
A Estética e o seu traço humanista
Como já aferimos ao longo deste estudo, a vivência estética é
proveniente de um longo processo evolutivo da humanidade, isto é, a
capacidade humana de produzir e de fruir objetos artísticos não surgiu “do
nada”, mas de um acúmulo das experiências humanas a partir de sua relação
com a natureza. Neste decurso temporal, o reflexo mágico e o reflexo artístico
foram, gradualmente, se desprendendo, para que, assim, a criação das obras
de arte se tornasse possível.
Ao investigar o fenômeno estético, Lukács afirma que os objetos
artísticos autênticos criam mundos que refletem os conteúdos mais essenciais
da vida humana, que falam sobre os homens e para os homens. Nesse diálogo,
as obras de arte refletem as possibilidades e potencialidades concretas do
mundo e dos homens, de modo que o fruidor pode receber esses conteúdos,
mediados pela forma artística, com ampla profundidade.
Ao asseverar que as obras de arte refletem os conteúdos próprios da vida
humana, Lukács identifica o seu traço de mundanidade. Nesse sentido, o
percurso da evolução humana e dos objetos artísticos rumo à mundanidade
evoca um sistema de pensamento antropocentrista, que coloca o homem no
centro do mundo, de maneira que os mundos criados pelos artistas em suas
obras encontram sempre o homem e sua vida como referência.
Ora, a humanitas ou seja, o estudo apaixonado da natureza
humana do homem – faz parte de toda a essência da literatura e de
toda arte autêntica; daí que toda boa arte e toda boa literatura sejam
humanistas, não ao estudarem apaixonadamente o homem e a
verdadeira essência da sua natureza humana, mas também por
defenderem apaixonadamente a integridade humana do homem
contra todas as tendências que a atacam, a envilecem e a adulteram.
(LUKÁCS apud CARLI, 2012, p. 17)
Não é, entretanto, somente o mundo da obra de arte que congrega essa
perspectiva humanista, mas os efeitos que provém, principalmente, de sua
recepção. De acordo com Lukács, a arte autêntica, isto é, aquela denominada
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realista, possui uma missão desfetichizadora. Vejamos as considerações de
Bastos sobre a questão:
A arte ou é desfetichizadora ou não é arte. A isso Lukács chama
realismo: em sua missão desfetichizadora, a arte representa
situações de opressão, de degradação da humanidade do homem,
mas as personagens representadas podem perceber essas
situações como situações criadas pelos homens, não como próprias
de uma condição humana antistórica, e se assim as percebem,
percebem também as possibilidades de superá-las. (BASTOS, 2016,
p. 48)
Ao assegurar a potência desfetichizadora da arte, Lukács garante, por
conseguinte, a possibilidade de defesa da integridade da humanidade no plano
da vida cotidiana. Tal movimento é possível, pois a relação sujeito-objeto,
oriunda da fruição artística, possibilita ao receptor a percepção “natural” de
alguns aspectos da vida, que, no plano disperso da cotidianidade, ficam
obscurecidos. É nesse sentido que, ao fruir uma obra de arte, o sujeito pode ter
os seus sentidos ampliados e renovados, o que o conduz para uma nova
percepção do mundo objetivo.
Soma-se a isso o caráter profundamente social da obra de arte, visto que
Lukács a compreende como portadora da memória da humanidade, pois ela
reflete os destinos e os feitos dos homens. Ao assumir essa perspectiva, a
vivência estética permite ao fruidor a evocação dessa memória bem como
possibilita a conexão e a vivência do sujeito com os destinos típicos vividos
pela humanidade: esse movimento compreende uma recepção artística na qual
o sujeito incorpora tanto os caminhos passados e presentes da evolução
humana como a consciência dos homens que realizaram essas trajetórias. Ao
sujeito estético, portanto, é ofertada a possibilidade de participação efetiva na
vida da humanidade. Sobre esse movimento, também é necessário ressaltar a
ideia de que a fruição estética possibilita a transformação de um passado
espacial e temporal em um momento presente vivido, despertando, no
receptor, a consciência de viver em um mundo do qual ele faz parte e do qual
é, ainda, co-criador.
A implicação dessa experiência é a recepção e a apropriação pelo sujeito
estético de um mundo com sentidos renovados, pois a sua psique se amplia e
se enriquece a partir da captação desses novos conteúdos. Ao se reconhecer no
mundo dos objetos e ao se sentir parte dele, o sujeito estético pode restabelecer
a sua relação como o mundo objetivo, orientando suas práticas sociais para
transformá-lo. Essa transformação existencial pode ser direcionada, por
conseguinte, para a realização de possibilidades humanas autênticas, mais
significativas, ricas e amplas. A vivência estética evoca, assim, a possibilidade
de um desenvolvimento humano em que o sujeito, sem apagar a sua
singularidade, reivindica para si as tarefas do gênero humano, vivenciando-as
como suas e compreendendo os traços comuns da vida do gênero e de sua
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própria existência. É nesse sentido que afirmamos o traço marcadamente
humanista da estética de maturidade de Lukács.
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Renata Altenfelder Garcia Gallo
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Como citar:
GALLO, Renata Altenfelder Garcia. Origem do reflexo estético, mundanidade
e considerações preliminares sobre a obra de arte na Estética (1963) de György
Lukács. Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das
Ostras, v. 26, n. 1, pp. 106-25, jan./jun. 2020.
Data do envio: 27 fev. 2020
Data do aceite: 8 maio 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.529
Martín Salinas
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Lukács y la renovación del realismo: autonomía y perspectiva en
Pabellón de cáncer, de Soljenítsin
Martín Salinas
1
Resumen:
El artículo analiza la lectura de György Lukács de la segunda novela de
Soljenítsin, Pabellón de los cancerosos. La consideración de los contextos que
enmarcan las críticas del autor húngaro tiene claras implicaciones políticas,
filosóficas y estéticas: el proceso de des formalización, la coexistencia pacífica
y el "renacimiento del marxismo", que Lukács reconoce como una tarea
urgente. Dentro de este marco conceptual, la interpretación de Lukács de la
obra de Soljenítsin expresa la forma en que se articulan las nociones de
autonomía y perspectiva estética.
Palabras clave: realismo; marxismo; autonomía; perspectiva.
Lukacs and the renewal of realism: autonomy and perspective in
Cancer Ward, by Soljenitsin
Abstract:
The article discusses Gyorgy Lukacs's reading of Soljenítsin's second novel,
Cancer Ward. Consideration of the contexts that frame the Hungarian author's
criticism has clear political, philosophical and aesthetic implications: the
process of de-Stalinization, peaceful coexistence, and the “Renaissance of
Marxism”, which Lukacs recognizes as an urgent task. In this conceptual
framework, Lukacs's interpretation of Soljenitsin's work expresses the way in
which the notions of aesthetic autonomy and perspective are articulated.
Keywords: Realism; Marxism; autonomy; perspective.
1
Doctor en Literatura Alemana pela Universidad Buenos Aires, Docente Auxiliar de la catedra
de Literatura Alemana, Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires
(UBA). E-mail: magallanes929@yahoo.com.ar.
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Contextos y premisas
Los ensayos dedicados a la obra de Soljenítsin, “Solschenitzyn: ‘Ein Tag
im Leben des Iwan Denissowitsch’” (1964), y “Solschenizyns Romane” (1969)
constituyen un estadio s en el dilatado desarrollo de la crítica literaria de
Lukács. Escritos luego de La peculiaridad de lo estético (1963), en simultáneo
con el ensayo Demokratisierung heute und morgen (1968; publ. en 1987), y
durante el trabajo con la Ontología del ser social (1964-1971; publ. en 1984),
en ellos se observa no solo un nuevo intento de distinguir la especificidad
ontológica de la esfera estética respecto de las diferentes formas de
objetivación del ser humano (la ciencia y la filosofía) en torno a una obra de
reciente publicación y de gran difusión, sino también el esfuerzo crítico por
especificar los contornos y las perspectivas de la renovación del realismo que
Lukács advierte en la obra temprana de Soljenítsin tras la muerte Stálin. La
articulación de categorías estéticas (la autonomía estética, el poder evocador
de la obra de arte, su carácter antropomorfizador, la función desfetichizadora),
de criterios vinculados a la crítica literaria (la confrontación con la literatura
de ilustración, con el naturalismo, con el realismo socialista del período
estalinista y con la literatura burguesa moderna), y de análisis histórico-
políticos (democratización de la vida cotidiana que implica la renovación del
socialismo) presente en los ensayos manifiesta la particularidad de un
pensamiento ontológico que, lejos de postular principios abstractos que
trascienden el plano de la historia, surge de las objetivaciones del propio
desarrollo histórico, e intenta incidir en su posterior despliegue.
En este marco de producción de la obra de Lukács, los ensayos sobre la
obra del autor ruso pueden leerse como el análisis a partir del cual la
autonomía y la perspectiva estéticas pueden ser señaladas solo como una
posibilidad concreta del desarrollo histórico y no como una utopía impuesta
de manera subjetiva. De acuerdo con la concepción estética del viejo Lukács,
la perspectiva solo puede ser sugerida a partir de la lectura de la realidad
representada en la obra y no desde el relevamiento de las expectativas
subjetivas que los autores puedan incluir en la acción narrativa “desde fuera”.
Es la propia autonomía de la obra de arte, eje estructural del pensamiento
estético de Lukács, la que permite que la perspectiva se vincule, desde “la
prioridad ontológica de la actualidad” (LUKÁCS, 1989, p. 57) con un desarrollo
que, orientado al pasado y al futuro, excede el marco de la coyuntura histórica.
Pero así como la perspectiva a que da lugar la obra excede el marco inmediato
de actualidad histórica, las consideraciones en torno a la autonomía estética
suponen un método de análisis que excede la vinculación directa entre las
obras y los autores empíricos. La autonomía y la perspectiva se presentan, de
esta manera, como categorías centrales de un pensamiento estético
ontológicamente fundado a partir de las cuales tanto el marco estrecho de la
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coyuntura como las convicciones de los autores son superados en el marco de
la obra. En la lectura de las obras iniciales de Soljenítsin, cobran particular
centralidad. Sobre todo si se tiene en cuenta el desarrollo vital del autor ruso:
condenado en 1945 a 8 años en los campos de trabajos forzados y al destierro
perpetuo, se convierte en una figura de renombre internacional a partir de la
publicación de Un a en la vida de Iván Denísovich (escrita en 1959 y
publicada, con la aprobación de Kruschev, en 1962), obra en la que la siempre
táctica crítica literaria del Partido reconoce, en un contexto de incipiente
desestalinización, un llamado a la toma de conciencia de los horrores de los
campos de concentración. El debilitamiento de Kruschev y el posterior golpe
de estado comandado por Brézhnev reintroducen un nuevo cambio de
dirección en la cúpula de la URSS, orientado a una reestalinización. La
inmediata prohibición de la obra, ahora considerada por los críticos del partido
un ataque directo al poder político soviético, convierte a Soljenítsin en una
figura en torno al cual se despliega una disputa política que excede las fronteras
soviéticas, al punto que en 1970, el premio Nobel que se le otorga puede leerse
como una intervención política de occidente.
En los ensayos de Lukács, sin embargo, las convicciones y opiniones
políticas del autor ruso no sirven de soporte para la crítica literaria. La estética
de la autonomía que Lukács construye se traduce en una estética de la obra:
“El parámetro decisivo, a la hora de analizar la ideología de un escritor
determinado, es la imagen del mundo que emerge de la obra misma, y no las
opiniones conscientes y expresas del autor empírico” (VEDDA, 2011, p. 10).
Pero la preeminencia de la obra de arte sobre la ideología del autor constituye
un eje central del pensamiento que Lukács desarrolla ya en su período
moscovita. Allí, y en 1940, publica “Confusión sobre el ‘triunfo del realismo’”,
donde se sostiene que la validez estética de una obra de arte no se encuentra
determinada por la condición de clase, la pertenencia política, o convicción
ideológica: “El ‘triunfo del realismo’ asume formas muy variables en escritores
diversos de épocas diversas, de clases diversas. Tiene un aspecto diferente en
Goethe o Walter Scott, en Balzac o Tolstói” (LUKÁCS, 2011, p. 116). Esta
tendencia a considerar la obra de arte desde su propia legalidad ha llevado,
como indica Lukács, a confusiones teóricas que solo se sostienen,
precisamente, por la pervivencia de prejuicios ideológicos. Así, Georg Steiner,
en su ensayo “Lukács y su pacto con el diablo” (1960), llama la atención acerca
de “la gran paradoja” de la crítica literaria “conservadora” de Lukács:
“Comunista por convicción, materialista dialéctico en virtud de su método
crítico, Lukács sin embargo, ha tenido siempre la mirada puesta en el pasado”
(STEINER, 2003, p. 367). Si bien en la mirada orientada al pasado Steiner
reconoce la convicción con que Lukács defendió sus principios estéticos en el
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contexto de las purgas de Stálin
2
, deja de lado los debates e intercambios que
Lukács mantuvo con autores y autoras alemanes del período, tales como Anna
Seghers, Billi Bredel, o Johannes Becher. En la crítica literaria de Lukács, como
ya se mencionó, la mirada dirigida al pasado también supone una puesta en
perspectiva. En el IV Congreso de escritores alemanes de 1956, del que
participaron Anna Seghers y Johannes Becher, Lukács interviene
precisamente con una ponencia titulada “El problema de la perspectiva”. Allí,
Lukács considera, tal como lo haría en escritos e intervenciones posteriores,
que la perspectiva no representa una realidad propiamente dicha, pero
tampoco una utopía, sino una posibilidad objetiva: “si existiese, no sería
perspectiva para el mundo que configuramos(LUKÁCS, 1968, p. 243). Pero
el carácter objetivo de la posibilidad no implica un fatalismo unilateral, sino el
reconocimiento de “la tendencia en la realidad para la realización de la misma”
(LUKÁCS, 1968, p. 243). Una “perspectiva sólo es verdaderamente auténtica y
real, cuando nace de las tendencias evolutivas de aquellos hombres concretos”
(LUKÁCS, 1968, p. 244) configurados en la obra de arte. En su estética tardía
Lukács vincula la posibilidad de la perspectiva al carácter no utópico de la obra
de arte:
Pues es propio de la esencia del arte el no ser utópico. Para la gran
mayoría de las artes, los géneros artísticos y las obras, es imposible
representar la perspectiva del futuro salvo como dirección de
movimiento, más o menos visible, siempre sólo indicada, del
presente al que dan forma. (LUKÁCS, 1966, p. 216)
Lukács no busca en la obra de Soljenítsin respuestas inmediatas a la
necesaria reforma de la vida cotidiana en los países socialistas. Las múltiples
mediaciones que interceden entre la vida y la obra impiden una conexión
mecánica entre ambos planos. Pero para el crítico, para quien la obra de arte
constituye un factum brutum, la obra se le ofrece como un punto de partida
para hablar “de las cuestiones últimas de la vida (…) pero siempre también en
un tono como si se tratara sólo de imágenes y de libros” (LUKÁCS, 1985, p. 27).
Cuando en la terminología de su Ontología del ser social, Lukács comprende
al ser humano como un ser que responde, “un ser capaz de dar respuesta”
(LUKÁCS, 2004, p. 39), no entiende por ello que la literatura deba dar
respuestas orientadas a la praxis política. La obra de arte no constituye una
entidad que responde por las convicciones del autor empírico. Esto no implica
dejar de lado la instancia previa a las cuestiones políticas que toda obra de arte
contiene. El análisis de la obra de Soljenítsin, del proceso que se pone en
2
“A despecho de las presiones de sus enemigos rusos, Lukács apenas dio cuenta oficiosa de
los altisonantes apaños del ‘’realismo soviético’. Lejos de esto, se volvió siempre hacia el gran
linaje de la poesía y la ficción europeas de los siglos XVIII y XIX, hacia Goethe y Balzac, hacia
Walter Scott y Flaubert, hacia Stendhal y Heine. Cuando escribe de literatura rusa, lo hace de
Pushkin y Tolstói, no de los poetastros del estalinismo” (STEINER, 2003, p. 367).
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marcha en su obra, tarea a la que se aboca entre los 77 y los 82 años, es el
fundamento ontológico de la respuesta crítica que ofrece Lukács.
Continuidad y autonomía
La mención de los distintos planos que componen el complejo de
contextos de los ensayos de Lukács sobre Soljenítsin expresa la pluralidad de
variables que lo enmarcan. La persistencia de las categorías estéticas y
ontológicas no se corresponde con la temporalidad de un análisis que no podía
considerar el desarrollo posterior del autor ruso más que desde la perspectiva
que se abría en sus primeras obras; por otro lado, también el contexto político
ha quedado en gran parte relegado por el desarrollo histórico. Como sostiene
Antonino Infranca en su análisis de Demokratisierung heute und morgen,
“[l]o que colapsó no fue el socialismo real, sino el intento de reformarlo”
(INFRANCA, 2013, p. 97). Pero el valor de documento histórico que adquieren
las consideraciones coyunturales de los ensayos de Lukács no invalida la
pertinencia de la intervención.
El trabajo con las primeras obras de Soljenítsin supone una
intervención crítica en torno al debate que se abre en el marco de un proyecto
orientado a reestructurar el socialismo burocrático. Con la muerte de Stálin y
el período de la “coexistencia pacífica” impulsado por Kruschev, Lukács
advierte también la posibilidad de un “renacimiento del marxismo”. En este
sentido, el contexto de producción de los ensayos se amplía más allá del marco
de la propia obra de Lukács; se trata de una intervención en el seno de la crítica
literaria marxista del período. Una confrontación con la postura que Ernst
Fischer, figura central en la defensa de la obra de Kafka en el ámbito socialista,
de la misma etapa histórica puede servir de parámetro. En su libro Arte y
coexistencia (1966), también Ernst Fischer responde como intelectual al
período de la coexistencia pacífica
3
. El análisis comparativo de La última cinta,
el drama de Beckett de 1958, y la novela corta de Soljenítsin, Un día en la vida
de Iván Denísovich, con que inicia el ensayo resulta sintomático. Desde la
perspectiva de Fischer, la representación de lo que según Hamm, personaje del
drama de Beckett, “[e]s pues un día como cualquier otro” (BECKETT apud
FISCHER, 1968, p. 13), y la narración de un buen día en la vida de Iván
Denísovich en el campo de concentración dan cuenta de la manera en que, en
la literatura de posguerra, la alienación de los individuos ha llegado a un punto
límite: “No solo ha caducado el futuro, sino también la naturaleza” (FISCHER,
1968, p. 20). La lectura de Fischer vincula el drama de Beckett y la novela corta
3
“No sin inconsecuencias, Fischer ha intentado ser un defensor de la tolerancia aun en
períodos de vehemente tensión entre el bloque comunista y los países occidentales; sus
propuestas de fusionar a Brecht y Thomas Mann responden a la convicción de que es necesario
integrar los mundos en discordia, antes que perpetuar el aislamiento” (VEDDA, 2006, p. 161).
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de Soljenítsin en el marco de la literatura universal. La perspectiva que a los
ojos de Fischer se abre parece atenerse a lo que la configuración literaria
presenta como estado de la humanidad: “Así pues, la negatividad es (…) un
ángel negro de anunciación, el cual lleva en sus plegadas alas una posibilidad
aún irresuelta; su horizonte es la otra posibilidad. Nos permite adivinar un
gran ‘quizás’ y nos exhorta a esperar” (FISCHER, 1968, p. 26)
4
.
La lectura y la perspectiva que Lukács presenta en los ensayos sobre el
autor ruso y en otras intervenciones del mismo período apuntan en otra
dirección. En su análisis de Un día en la vida de Iván Denísovich, Lukács
destaca la relación que guarda la novela corta con la novela en términos de una
filosofía de la historia. Según la lectura de Lukács, la novela corta es una forma
que prevalece en períodos de crisis; representa “o bien el preludio de una
conquista de la realidad a través de grandes formas épicas y dramáticas, o (…)
el fin de una época, su retaguardia, su último acento” (LUKÁCS, 1966, p. 1). En
ambos casos, la forma no apunta, como la novela, a representar la totalidad de
los objetos de la vida social, sino un caso singular, pero que solo puede tener
lugar en una etapa específica del desarrollo histórico, por lo que “puede
renunciar a explicarnos la génesis social de los hombres (…) y puede prescindir
de las perspectivas concretas” (LUKÁCS, 1966, p. 2). La representación de la
contradicción temporal que experimentan los condenados en el campo de
concentración sugiere esta falta de perspectiva: “Muchas veces, Schujov
advirtió que los días pasan volando en el campo; pero la condena parece
estancarse, no disminuye” (SOLJENÍTSIN, 1974, p. 70). La espera, aquí, no
alude tanto a una postura contemplativa como a la expectativa que sugiere la
novela corta como antesala posible de una aprehensión de la realidad como
totalidad intensificada.
Por otro lado, el análisis de Lukács de la representación de la naturaleza
en Soljenítsin también difiere de la lectura de Fischer. Lukács observa que en
las novelas cortas de Conrad o Hemingway, que suponen un paso atrás
respecto del realismo de la novela social, “[l]as figuras centrales se enfrentan
al hombre como puro acontecimiento natural” (LUKÁCS, 1966, p. 3), con lo
que “[e]l carácter social de las relaciones humanas queda al fondo y, a menudo,
palidece hasta desaparecer” (LUKÁCS, 1966, p. 12). En el marco de esta
modalidad de representación, se debilita el ser social que enmarca la lucha de
4
La perspectiva que presenta el libro de Fischer supone una radical modificación de los puntos
de vista esgrimidos por el autor austríaco una década atrás, incluso ya distanciado del
estalinismo, bajo cuya órbita giró tras el ascenso del fascismo en Alemania: “El libro fue testigo
de la evolución radical de los puntos de vista de Fischer en un corto período de tiempo. En
1958 había calificado Fin de juego de Samuel Beckett como un ejercicio de “estupidez
macabra”. Ahora lo emparejó con el cuento de Solzhenitsyn, Un a en la vida de Iván
Denísovich, e hizo de las dos piezas el tema del largo discurso sobre la dignidad humana en
sociedades alienadas que introdujo esta colección de ensayos (…). Fischer se defendió de la
acusación de arbitrariedad al unir las dos obras” (McCLAIN, 1977, p. 576).
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los personajes
5
. La preeminencia de las fuerzas naturales, en las obras de los
autores mencionados, relega el marco social en el que se desarrolla la acción
narrativa. La novela corta de Soljenítsin, por el contrario, no implica una
retirada de la configuración realista de la realidad social, sino un paso en
dirección hacia una comprensión literaria de la que la naturaleza no es
excluida, sino absorbida por la segunda naturaleza que conforma el marco
social del campo de concentración:
También en Solschenizyns tiene la totalidad configurada rasgos
naturales. Aestá, simplemente, como hecho bruto, pero siempre
se trata de una “segunda naturaleza, un complejo social. Aunque sus
efectos puedan aparecer completamente naturales, implacables,
crueles, sin sentido, inhumanos, son, sin embargo, consecuencia de
actos humanos, y los hombres se defienden contra esa segunda
naturaleza de una forma completamente diferente que ante la
verdadera naturaleza. (LUKÁCS, 1966, p. 12)
6
El episodio en que se discute la hora en la que el sol está en su cenit, que
el mismo Fischer presenta en su ensayo, se orienta en el sentido que Lukács
analiza. Schujov sostiene que si está en el cenit deben ser las 12 del mediodía,
pero la respuesta del capitán antepone a la percepción de la naturaleza los
dictámenes del partido: “Si el sol está en el cenit, no son las doce, sino las
trece”, pues “ha habido un decreto por el cual el sol pasa por el cenit a la una”
(SOLJENÍTSIN, 1974, p. 71).
La lectura de Fischer, orientada a la expectación contemplativa, de esta
manera, difiere de la expectativa con que Lukács culmina su ensayo sobre la
Un a en la vida de Iván Denísovich. Como un primer tanteo en dirección a
la comprensión realista de la realidad social, la justa validación de la obra
puede medirse en un sentido histórico, que solo puede realizarse en el curso
del desarrollo de la literatura soviética. La perspectiva de la que la novela corta
puede prescindir en su autonomía no excluye la interpretación de la dirección
que puede tomar en términos de la filosofía de la historia. La consideración
que hace de la obra autónoma el eslabón de un proceso de mayor alcance no
implica, sin embargo, que el trayecto posible se realice de un modo unilateral:
hay fuertes obstáculos y frenos para este nuevo desarrollo del
realismo socialista, ante todo la resistencia de los que han
permanecido fieles todavía a las enseñanzas y métodos estalinistas,
5
Resulta llamativa la crítica que, en Pabellón de cáncer, Vera dirige a los personajes de
Hemingway. En su conversación con Oleg Kostoglotov, sostiene “[q]ue los superhombres de
Hemingway eran entes que no habían alcanzado el nivel de hombres; que Hemingway era una
medianía” (SOLZHENITSYN, 1973, p. 604).
6
El narrador de la novela corta destaca el modo en que la naturaleza es considerada solo a
través de la preeminencia de una segunda naturaleza creada por los seres humanos: “Sobre
esta desolada estepa, ulula el viento: caliente, en verano, y helado en invierno. En ella, nunca
se ha cosechado nada, y menos aún entre las cuatro líneas de alambradas. El trigo solamente
crece en la panadería, y la avena echa espigas en el almacén de los productos.” (SOLJENÍTSIN,
1974, pp. 78 ss)
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o al menos obran como tales. Su abierta oposición contra toda
renovación ha sido entretanto contenida por muchos
acontecimientos; pero en la escuela estalinista se ha asimilado una
habilidad táctica, y los obstáculos indirectamente surgidos pueden,
en ciertas circunstancias, hacer más daño a la futura, a menudo
profundamente insegura, innovación que las brutales medidas
administrativas al viejo estilo (LUKÁCS, 1966, p. 17).
Con la caracterización de personajes como Pavel Rusanov, cuyo ingreso
al pabellón de cáncer n. 13 abre la novela, Soljenítsin dará forma a la
personalidad burocrática en la que se encarnan las tácticas estalinistas
orientadas a la manipulación.
La totalidad de las reacciones: Pabellón de cáncer
La comparación que Lukács introduce en su ensayo de Pabellón de
cáncer con La montaña mágica (1924) de Thomas Mann se justifica tanto por
las afinidades formales como por la referencia al desarrollo histórico al que
responden. El análisis parte, una vez s, de la autonomía de las obras para
desplegar las implicancias del proceso del que forman parte: la literatura
mundial. El gran realismo de la novela burguesa surge como tendencia a la
representación de una totalidad de los objetos que permita la representación
sensible de la íntegra vida social moderna. Desde el punto de vista de Lukács,
esta modalidad de representación supone una concepción según la cual todo
objeto tiene una historia humana como fundamento, según el modelo del epos
antiguo. La fractura que introduce el naturalismo a mediados del siglo XIX
expresa un debilitamiento de esta representación sensible de la totalidad, en la
medida en que la configuración de individuos aislados entre y enajenados de
su ambiente responde a una lectura sociológica de la literatura, es decir, a una
comprensión científica de la realidad, cuya objetividad supone la
desantropomorfización de la representación literaria. Sin embargo, el
desarrollo de las formas literarias autónomas no se encuentra desligado de las
condiciones históricas de las que surge; Lukács llama la atención acerca del
modo en que la I Guerra Mundial y la Revolución de Octubre “plantearon
problemas que parecían requerir nuevos medios de composición para un
adecuado reflejo épico” (LUKÁCS, 1970, p. 34).
La montaña mágica, en ese sentido, constituye una renovación del
realismo en la novela por cuanto revalida “la consecuencia épico-creativa más
importante de la totalidad de los objetos, es decir, la totalidad de las reacciones
humanas” (LUKÁCS, 1970, p. 34). El hecho de que fuera concebida como una
novela corta le permite a Lukács reforzar el argumento según el cual la relación
entre novela corta y novela supone una aproximación a la representación de la
totalidad de objetos y de reacciones humanas referidas a ellos que el
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naturalismo había interrumpido. Si la novela corta puede prescindir de la
perspectiva, la novela despliega un arco de reacciones individuales que tienen
como resultado una perspectiva que surge de la interacción de los personajes,
pero que no responde a ninguna puntualmente. La renovación formal decisiva
en este proceso es la conformación de la unidad de lugar como base inmediata
de la composición. Como en Pabellón de cáncer, La montaña mágica
concentra la acción narrativa en un sanatorio que aleja a los personajes de su
ambiente “natural” y los coloca en un contexto nuevo y “artificial” (cf. LUKÁCS,
1970, p. 35). En ese estado de excepción surgen reacciones individuales y
relaciones entre los personajes que no hubieran podido tener lugar en el marco
de la vida cotidiana. La unidad de lugar como fundamento estético se
constituye como condición de una toma de consciencia por parte los
personajes en torno a los problemas de la vida de la que se encuentran
distanciados. La necesidad histórica de la renovación formal de la novela que
se plantea da cuenta de su peculiar autonomía. Ya no se trata, como en el epos
antiguo, de ofrecer respuestas a preguntas que no se han formulado, en el
contexto de una comunidad cerrada (LUKÁCS, 1985, p. 298ss). La
recontextualización de los personajes no supone una comunidad tal; las
relaciones con la realidad que se encuentra más allá de los mites de los
sanatorios expresan el modo en que la totalidad intensiva refiere a la totalidad
extensiva que representa la realidad concreta. El estado de consciencia al que
acceden los personajes en este nuevo contexto apunta más al planteo de nuevos
problemas, no a la postulación de respuestas orientadoras:
[L]a composición consciente del concreto lugar de acción no se
entiende principalmente como un mero escenario de eventos
típicamente individuales, frente a los cuales se debería preservar
(inevitablemente) una cierta casualidad, sino más bien como una
forma de manifestación del ser social, cuyos Qué y Cómo se dirigen
a las preguntas que son decisivas para las personas, o a través de su
existencia, a través de la propia existencia de las personas, estas
preguntas instan a su consciencia a obtener respuestas (LUKÁCS,
1970, p. 40).
La renovación formal que supone la reubicación de los personajes se
encuentra al servicio de la manifestación del ser social que subyace en cada
caso y de las reacciones que produce en un contexto en el que las cuestiones
centrales de la vida de los personajes son puestas en escena de tal modo que
requieren de una respuesta.
Pero Pabellón de cáncer responde a otra línea de desarrollo histórico.
Mientras La montaña mágica renueva la forma de la novela a partir de un
recorrido histórico que concluye en la I Guerra Mundial, Pabellón de cáncer es
una novela que, a los ojos de Lukács, responde al impulso que le imprimiera la
Revolución de Octubre. Esta contraposición entre líneas de desarrollo
histórico no impide que Lukács, atento a la relación desigual entre los
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desarrollos de producción material y de producción artística, advierta aspectos
comunes en un sentido literario. La posibilidad de que en la obra de Soljenítsin
se anuncie un renacimiento del realismo socialista que retome la tendencia del
período heroico de la década de 1920 se encuentra atravesada por la crítica de
la praxis literaria dictada por el Partido durante el estalinismo, a la que Lukács
equipara con el naturalismo. De este modo, la interrupción que el naturalismo
representa en la línea de desarrollo de realismo europeo, y que desde la
perspectiva de Lukács La montaña mágica retoma, posee su equivalente en el
desarrollo de la literatura rusa. El realismo ruso surge en el contexto de la crisis
del realismo burgués; el desarrollo histórico mundial, de esta manera, conecta
desarrollos artísticos aparentemente desvinculados:
En la Escandinavia y en Rusia el desarrollo capitalista se inició
muchos años más tarde que en la Europa Occidental. Por eso la
ideología de estos países entre 1870 y 1890 no tiene todavía un
carácter apologista. Los presupuestos sociales del gran realismo que
habían determinado la evolución de la literatura europea desde
Swift hasta Stendhal, existían todavía en aquellos países, aunque
modificados y en condiciones notablemente alteradas. (LUKÁCS,
1965, p. 175)
En este amplio marco de análisis se realiza la crítica de la literatura de
ilustración del periodo estalinista, en la que Lukács reconoce, “un primitivo
naturalismo combinado con otro primitivo romanticismo revolucionario”
(LUKÁCS, 1966, p. 9). Por un lado, un primitivo naturalismo, en la medida en
que al acentuar la actualidad, la configuración del realismo socialista
deshistoriza al ser humano, configurando un presente absoluto que absorbe el
futuro y que en nada se vincula con su pasado. Por otro, un primitivo
romanticismo revolucionario, por cuanto la configuración de tipos, categoría
central en la teoría estética de Lukács sobre el realismo, se transforma, en el
contexto del realismo socialista, en una entidad aislada de su entorno, que no
se conforma de acuerdo a la interacción con el resto de los personajes, por lo
que se deviene “en una pura categoría política” (LUKÁCS, 1966, p. 9) que surge
de premisas políticas. Frente a una concepción que hace de la literatura una
herramienta política, Lukács destaca la función liberadora de la autonomía
estética:
Para la literatura esta constatación posee una importancia particular
(…) la literatura genuina no existe para elaborar o propagar recetas
concretas para alguna praxis cotidiana; desde luego que tampoco
para hacer, de manera inmediata, de las grandes cuestiones sociales
realmente existentes las supuestas manifestaciones, particulares,
independientes, de la vida, de la persona privada, objeto exclusivo
de su conformación. La gran literatura de todos los tiempos, desde
Homero hasta hoy, se ha “contentado”, en última instancia, con
mostrar cómo un determinado estado de la sociedad, una etapa del
desarrollo, una tendencia del desarrollo en dirección del ser
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humano, del devenir ser humano, actúa sobre la deshumanización,
la alienación del ser humano de sí mismo. (LUKÁCS, 1970, p. 32)
El pasaje retoma la caracterización de la función desfetichizadora del
arte que Lukács desarrolla en La peculiaridad de lo estético, según la cual, al
develar la esencia genérica del ser humano contribuye a socavar la férrea
superficie fetichizada que condiciona las relaciones humanas en la sociedad
moderna, y a “la salvación del papel de los hombres en la historia” (LUKÁCS,
1966, p. 379). Pero también muestra de qué manera, en Lukács, los aspectos
propios del fundamento ontológico de la estética confluyen con la crítica
literaria orientada a una etapa determinada del desarrollo social. La definición
del realismo socialista del período estalinista, que Lukács ha criticado a lo largo
de todo su desarrollo intelectual a través de la lectura en clave del naturalismo
como literatura de ilustración implica la impugnación de toda tentativa de
hacer de la literatura un compendio de normas de acción inmediatas. La
presentación de un orden colectivo que enmarca el desarrollo individual, la
postulación de un héroe positivo que se sacrifica acríticamente por esa
comunidad, la subordinación ante la estructura jerárquica que promueve una
estabilidad aislada del desarrollo histórico, son elementos que definen a una
literatura orientada a la manipulación de la consciencia, no a la realización de
su autonomía genérica. Pero la manera en que la lectura “realiza” la literatura
no depende exclusivamente de los preceptos que emergen de la obra en
cuestión. El reconocimiento de la falsa consciencia sobre la que se construye la
literatura de ilustración supone la presencia de una lectura crítica, que devela
el fundamento estético-ontológico detrás de la falsa apariencia. La crítica de la
literatura supone ir más allá de lo que la apariencia manifiesta en su sentido
superficial. La lectura que no logra instalar una distancia crítica respecto de la
obra de arte puede dar lugar a una interpretación que se atenga de manera
inmediata a la superficie estética; solo en este sentido, la lectura puede hacer
de L’art pour l’art una literatura de ilustración. La tendencia a considerar la
literatura burguesa como una herencia que la construcción del socialismo no
podía dejar de lado mantuvo a Lukács a salvo de esa tendencia, y también en
constante polémica, en la medida en que nunca se trató de una lectura que
detenga su potencial crítico en la superficie de las obras de arte, como sucede
con la lectura de Pabellón de cáncer.
La totalidad de las reacciones que la obra configura gira en torno a las
percepciones referidas al ser social de la sociedad soviética tras la muerte la
Stalin. En ese contexto general, los interrogantes acerca de noción de progreso
y a los destinos de los personajes ocupan un lugar predominante. Este aspecto
se ve reforzado por la peculiaridad del espacio en el que se desarrolla la acción
narrativa: el pabellón de cancerosos no supone, como ocurre en Un día en la
vida de Iván Denísovich o en En el primer círculo, la reclusión forzada; los
personajes se encuentran allí voluntariamente. Así, en el pabellón de cáncer n.
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13 se observa la confrontación de las diferentes situaciones a las que se ven
enfrentados los principales personajes; allí confluyen el abuso de la estadística
de los directivos, la automutilación a la que se someten las profesionales de la
medicina y la consciencia de las empleadas del sanatorio; pero también las
diversas reacciones de los pacientes que apuntan ya, a la defensa de las
jerarquías burocráticas (Rusanov), a la crítica radical del aparato estatal
(Kostoglotov), a la utópica melancolía de períodos previos a la Revolución de
Octubre (Schulubin), o a la justificación de los campos de concentración del
pasado reciente (Ajmadzhan).
La concentración de la acción narrativa en un sanatorio oncológico
también resulta significativa de cara a la comparación con La montaña
mágica. Susan Sontag, en su ensayo La enfermedad y sus metáforas (1977), ha
rastreado las implicancias ideológicas con que la tuberculosis y el cáncer son
tratados por la literatura moderna. Los matices románticos de la tuberculosis
se vinculan, desde la perspectiva de la autora, a una debilidad vital, a la
presencia de una sensibilidad superior, y una predisposición a la tristeza
propia de los personajes melancólicos (SONTAG, 2005, p. 37). El cáncer, por
el contrario, se definiría como una metáfora patológica vinculada a los desvíos,
por exceso, de la correcta línea política, económica y social (cf. SONTAG, 2005,
pp. 73ss). Esta distinción en las lecturas de las enfermedades puede resultar
ilustrativa de las tendencias que Lukács reconoce en las novelas de Thomas
Mann y Soljenítsin. Si en el sanatorio Berghof los personajes se tornan
“interesantes” en la misma medida en que el impulso vital se debilita, y con
ello se ofrece una imagen de la decadencia de la cultura europea, en el pabellón
de cáncer n. 13 se observa la manera en que los personajes intentan sobrellevar
la monstruosidad a la que los somete el cáncer, clave para la comprensión del
período estalinista. Los personajes del pabellón no se ven debilitados por la
tristeza, sino por las deformaciones físicas que los tumores le imprimen. La
enfermedad no se produce, como el sanatorio Berghof, por una disminución
vital que llevaría a la sociedad occidental a la Guerra, sino por una tendencia
desmedida a una concepción de progreso inhumana.
Como transfiguración de los males de heredados del estalinismo, la
producción anárquica de células cancerígenas conlleva una sobreproducción
que aliena al individuo de su propio cuerpo, tomado por el cáncer. Pero la
enajenación que produce la enfermedad no se enfrenta desde una perspectiva
humanista, sino por medio de estrategias vinculadas al ámbito de la guerra:
“No bien se habla de cáncer, las metáforas maestras no provienen de la
economía sino del vocabulario de la guerra: no hay médico, ni paciente atento,
que no sea versado en esta terminología militar” (SONTAG, 2005, p. 66). Así,
el cáncer invade, las células cancerígenas destructivas, colonizan, la defensa
del organismo se realiza a través de un tratamiento que supone un
contraataque: se bombardea al paciente. Y los posibles efectos secundarios
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resultan justificados por el estado de excepción que supone la guerra. Como lo
expresa el director del sanatorio:
También insistía Nizamutdin Bajramovich en deshacerse de los
desahuciados. A ser posible, su fallecimiento debía sobrevenir fuera
de la clínica. Ase podría contar con s camas libres, los pacientes
no serían espectadores de un hecho deprimente y las estadísticas
saldrían beneficiadas, porque no figurarían como enfermos dados de
alta por “defunción”, sino por “empeoramiento” (SOLZHENITSYN,
1973, p. 243)
La manipulación de la realidad posee connotaciones políticas. La guerra
que se evita en el plano de la política exterior a partir de la coexistencia pacífica
recrudece, en la política interna, con el bombardeo nuclear al que son
sometidos los pacientes del pabellón 13:
Y a través del cuadrado desnudo de la piel de su vientre, a través de
las capas intermedias y de los órganos cuyos nombres no conocía su
propio poseedor, a través del tronco del tumor-escuerzo, del
estómago o los intestinos, a través de la sangre de sus arterias o
venas, a través de la linfa y de las células, de la espina dorsal y de
otros huesos menores, y luego a través de las otras capas
intermedias, vasos y piel de la espalda y, por último, a través del
asiento del canapé, de los cuatro centímetros de tarima del suelo, a
través de toda la armadura y el relleno y aún más allá, hasta llegar al
mismo cimiento de piedra o a la tierra, fluían los crueles rayos x, los
espeluznantes vectores de los campos eléctrico y magnético,
inconcebibles para la mente humana, o los más comprensibles
cuantos que, cual proyectiles, agujerean y desgarran todo lo que se
interpone a su paso. (SOLZHENITSYN, 1973, p. 253)
Pero la invasión radiológica con que se avanza por sobre la autonomía
de los individuos no repercute en una mejora de la calidad de vida. La
superación de la coyuntura provee a largo plazo efectos del todo perniciosos:
“El caso era que en las curas con rayos x con grandes dosis de radiaciones, que
diez o quince años atrás obtuvieron resultado satisfactorio, feliz y hasta
brillante, en las zonas irradiadas se presentaban ahora inesperadas
mutilaciones y deformaciones.” (SOLZHENITSYN, 1973, p. 279) En la figura
de la enfermera Ludmila Afanasievna se expresa la memoria que, ante las
disposiciones oficiales del sanatorio, no deja de lado a las víctimas del
progreso. En su fuero interno, era capaz de olvidarse de todos los pacientes que
habían recuperado su vida activa, sin embargo, “recordaría hasta su muerte a
unos cuantos, a unos pocos desdichados que cayeron bajo la rueda”
(SOLZHENITSYN, 1973, p. 282).
En este contexto, los personajes se encuentran, sin vigilancia, en la
necesidad de responder ante las cuestiones fundamentales de la vida. Esta
“estructura dinámica de pregunta y respuesta” (LUKÁCS, 1970, p. 48)
atraviesa la novela y configura, a través de la articulación de cada respuesta,
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una imagen de la totalidad social que excede toda comprensión unilateral. El
rechazo de Lukács de toda tentativa de identificar las propuestas de un Oleg
Kostoglotov o de un Schulubin con las posturas del autor empírico responde a
la modalidad polifónica de la propia obra. De acuerdo con esta estructura, en
la novela no se exponen las respuestas “correctas”, pero las preguntas que
corresponden a los problemas esenciales.
Las diferentes perspectivas que se abren en torno a la noción de
progreso surgen de la misma condición de la enfermedad que los reúne. En el
marco nivelador del ncer, personajes de distintos sectores de la sociedad se
ven obligados a escucharse. Pero las manifestaciones individuales, que aluden
de un modo u otro a una alternativa social, se encuentran atravesados por el
ser social que el estalinismo forjó. En el caso de Pavel Rusanov, cuyo ingreso
al sanatorio abre la novela, se expone la acabada figura del súbdito que, fiel a
las jerarquías que imponen la desigualdad social, justifica el statu quo bajo la
mascarada de la necesidad histórica que conduce al comunismo. En sus
declaraciones se manifiesta la personalidad del burócrata que avala una noción
de progreso que se realiza de espaldas a los individuos. La realidad verdadera
se encuentra condicionada por las autoridades:
La vida que estaba a la vista de todos –la producción, las
conferencias, el periódico de la empresa, las convocatorias del
comité local sindical para los trabajos voluntarios con vistas al
aumento de la productividad, las solicitudes, la cantina, el clubno
era la auténtica, aunque se lo pareciera a los profanos. El curso
verdadero de la vida se decidía sin alboroto, reposadamente, en
tranquilidad de gabinetes y por dos o tres personas que se entendían
a la perfección, o mediante un cordial telefonazo. (SOLZHENITSYN,
1973, pp. 412 ss)
La tranquilidad que alcanza tras la conversación que mantiene con su
Avieta, la hija pedante que ha decidido convertirse en escritora (“Ya dijo Gorki
que cualquiera puede convertirse en escritor”; SOLZHENITSYN, 1973, p. 530)
se vincula con la predisposición acomodaticia que exhibe ante los cambios
históricos. La lectura del estado de situación de la literatura que expone Avieta,
sin embargo, permite rastrear un núcleo de verdad acerca de la etapa de
transición que supone el deshielo:
Otro ejemplo, antes decían que no deben existir conflictos. Ahora
dicen: “Es falsa la teoría de la ausencia de conflictos”. Pero si hubiera
una división de opiniones, si unos se pronunciaran por lo viejo y
otros por lo nuevo, sería obvio que algo habría cambiado. Pero como
todos a una, sin transición, se identifican con lo nuevo, no se advierte
que se haya operado cambio alguno. Sostengo que lo fundamental es
tener tacto y perspicacia para adaptarse a la evolución del tiempo.
(SOLZHENITSYN, 1973, p. 531)
La falta de disidencia de la que habla Avieta expresa una situación social
que no logra despojarse del estalinismo, pero no da cuenta de la totalidad
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alternativa que ofrece el sanatorio. Las intervenciones y cuestionamientos de
Vadim y de Diomka, quienes escuchan las declaraciones que le dirige a su
padre, la incomodan a tal punto que se ve obligada a exhibir los postulados del
Partido: “Decir la verdad al pueblo no significa en modo alguno hablarle de lo
execrable, hacer hincapié en los defectos. Deben resaltarse las cosas positivas
con decisión para que lleguen a ser mejores.” (SOLZHENITSYN, 1973, p. 533)
Lukács advierte cómo las declaraciones de Avieta se avienen con el
romanticismo primitivo que se oculta tras la estética prescriptiva de Zhdánov
(cf. LUKÁCS, 1970, p. 69). “Haz el favor de no mirar para atrás”
(SOLZHENITSYN, 1973, p. 757), le dice su familia a Rusanov cuando es
conducido, otra vez, pero para retirarlo del sanatorio.
Quien dirige su mirada al pasado es la figura de la que Lukács se ocupa
con más detalle en su ensayo, Schulubin. La condena del estalinismo no va
acompañada de un rechazo del socialismo, incluso niega toda posibilidad de
considerar el capitalismo como un marco social adecuado para el desarrollo
humano, pero su mirada se dirige hacia un pasado en el cual las
contradicciones del estalinismo aún no se habían presentado. La postulación
del socialismo ético que expone en su conversación con el incrédulo
Kostoglotov alude a un anticapitalismo romántico que condena las injusticias
desde un plano moral, sin considerar precisamente el ser social que el
desarrollo histórico ha hecho surgir en la sociedad soviética.
Completamente diferente es la situación de Kostoglotov. La perspectiva
que estimula el breve lapso de vida que tiene delante de no tiene correlato
con la realidad: “Le habría gustado abordar algo completamente distinto, algo
puro, inquebrantable. Pero Oleg no tenía idea de dónde existiría tal cosa”
(SOLZHENITSYN, 1973, p. 691); o más adelante: “Ansiaba algo, algo. Pero
ignoraba qué.” (SOLZHENITSYN, 1973, p. 765) Pero su perspectiva se
distingue de la de Rusanov o Schulubin, en la medida en que no posee
recuerdos ni lecturas de una vida digna. Aun así, expresa un mayor grado de
consciencia que el resto de los personajes con los que interactúa, y de quienes
puede aprender. Pero la radicalidad de su crítica al pasado reciente, que abarca
la totalidad de su vida, no lo conduce a una perspectiva democrática del
socialismo, sino a la posición que Lukács denomina plebeya: “Sus
razonamientos con frecuencia son los de un sofista, de hecho insostenibles,
pero siempre surgen de un odio plebeyo genuino a los privilegios sociales.”
(LUKÁCS, 1970, pp. 70ss) El hecho de que Lukács identifique en el carácter
plebeyo de Kostoglotov la figura en la que se expresa con mayor intensidad la
crítica social ilustra el modo en que, según la lectura de la obra de Lukács, el
estalinismo ha incidido en el ser social de la sociedad soviética. La sustitución
de burócrata Rusanov por el plebeyo Kostoglotov que realiza la novela también
apunta en esta dirección. La novela comienza con la llegada del burócrata
Rusanov al pabellón, pero culmina con la salida de Kostoglotov. Si el narrador,
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que recibe y despide a Rusanov en la puerta del sanatorio, acompaña a
Kostoglotov en su salida a la ciudad, es porque, mientras Rusanov retorna a su
hábitat natural, Oleg Kostoglotov no posee hogar alguno. La renuncia final al
deseo de una vida familiar y productiva junto a Vera se funda en la certeza de
la falta de perspectiva que lo ha acompañado en su desarrollo personal y que
se le ha inoculado definitivamente en el sanatorio. Gracias al tratamiento que
lo salva, solo el deseo de toda realización persiste, la posibilidad de realización,
no.
En la visita al zoológico se advierte el modo en que el estalinismo parece
obturar toda alternativa. Entre los carteles, las jaulas, los horarios y los hábitos
de los animales, que le recuerdan los del sanatorio, pero también los de los
campos de concentración, Kostoglotov se detiene frente a una jaula ante la que
se agolpan los visitantes:
En su interior había algo que giraba a velocidad loca alrededor de un
mismo punto. Y resultó ser una ardilla en un aro (…). Dentro de la
jaula había un tronco de árbol con las ramas dispersas en lo alto (…).
Y he aquí que, desdeñando el árbol y sus finas ramas extendidas en
las alturas, la ardilla, incomprensiblemente, estaba en el aro sin ser
obligada por nadie ni seducida por la comida. Atraíala únicamente
la ilusión de falsa actividad y de falso movimiento (…) sin tener
noción de lo cruel y obsesionante que era aquel artefacto (…). El
animal se aplicaba con empeño, mas no conseguía avanzar un solo
peldaño con sus patas delanteras. (SOLZHENITSYN, 1973, pp. 808
ss)
En la frenética inmovilidad de la ardilla, que la lleva a dejar la naturaleza
que allí está, presente y olvidada, se encuentra una de las claves de la crítica
dirigida a una sociedad que, en su ilusión de actividad, no produce ningún
progreso, sino tumores malignos. Pero en el zoológico las reacciones
individuales de Kostoglotov se intensifican, ya que el nuevo espacio, como una
unidad de lugar sustituta de la que representaba el sanatorio, representa una
nueva totalidad que se le ofrece a la mirada: “Todo lo que lo rodeaba le sugería
una interpretación.” (SOLZHENITSYN, 1973, p. 810) Pero en esta nueva
totalidad se produce una reacción inesperada que intensifica las
experimentadas en el sanatorio: entre los animales encerrados no solo
reconoce a las personas con quienes convivió en el pabellón de ncer; los
bigotes, los ojos amarillentos y la naturaleza sanguinaria del tigre encerrado
que activan el odio de Kostoglotov dan cuenta de una totalidad de la que el
mismo Stálin forma parte (cf. 814). La ironía que así se despliega en la obra es
la que realiza la crítica interna de la novela. Si en el zoológico Kostoglotov
reconoce un sistema que contiene al mismo Stalin, la analogía hace de la
sociedad soviética una recaída en la prehistoria de una humanidad. La crítica
de Lukács apunta, según creemos, en este sentido. La referencia constante a la
obra de Tolstói, que a su vez recorre la novela de Soljenítsin, apunta a localizar
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la posición histórica de la novela Pabellón de cáncer. Si el naturalismo
primitivo que representa la literatura de ilustración del período estalinista
interrumpió el desarrollo del realismo que Rusia había comenzado a
desarrollar con autores como Tolstói, la literatura posterior al estalinismo,
desde el punto de vista de Lukács, debiera retomar esa tradición como
fundamento estético sólido. Con la representación de la crítica plebeya de
Kostoglotov, el personaje que representa el grado de desarrollo de consciencia
más elevado, Soljenítsin parece retrotraerse a un estadio incluso previo al del
triunfo del realismo que se advierte en Tolstói. La necesidad de una renovación
democrática del socialismo que Lukács proclama no puede reconocerla en la
novela más que de un modo germinal; fiel a la propia autonomía de la obra, no
intenta imponer su perspectiva desde fuera, pues pensamiento conceptual que
estructura la crítica literaria no puede remplazar el plano preconceptual de la
obra de arte. La referencia al triunfo del realismo que observa en la obra de
Tolstói da cuenta de esta modalidad de lectura, en la medida en que la crítica
de la perfección limitada del posicionamiento plebeyo y campesino que
advierte en novelas como Guerra y paz (1869), o Resurrección (1899) no se
expresa por medio de una reflexión especulativa, sino a través de la
configuración literaria, pues “desde un legítimo punto de vista de la gran
poesía, debe decirse que lo que no existe como composición poética no existe
en absoluto” (LUKÁCS, 1970, pp. 79ss).
Pero una crítica inmanente que la novela ofrece parece sugerir la
necesidad de una renovación en la literatura. En la figura de la empleada de
limpieza del pabellón, Elizabeta Anatolievna se expresa la expectativa
desesperanzada de un sector popular para el cual no hay una representación
literaria acabada. Justamente, se trata de un pasaje que se destaca por su
aparente fugacidad. “Lilia” compara, en una conversación que mantiene con
Kostoglotov luego de haber terminado con sus tareas, las tragedias de las
heroínas del arte decimonónico con su propia tragedia, la de sus parejas
apresadas en campos de trabajos forzados y, en definitiva, las tragedias del
sector que representa. La misma novela parece sugerir, así, la exigencia de una
renovación literaria que supere, sin negar, la tradición cultural que se
considera una herencia válida, ante la vehemencia de un pasado reciente, aún
presente, que no deja de oprimir:
Todas las tragedias literarias me parecen irrisorias (…). A Aida le fue
permitido descender a la tumba con el hombre amado para morir
junto a él. A nosotros ni siquiera nos autorizan tener noticias suyas
(…). Anna Karenina ¿fue, en realidad, desdichada? Sintióse poseída
de amor, defendió su pasión y pagó por ella (…). ¿Qnecesidad
tengo, pues, de releer Anna Karenina? ¿No me sobra con mi propia
existencia? ¿Dónde leer sobre nosotros? ¡Sobre nosotros! ¿Dentro
de cien años quizá? (SOLZHENITSYN, 1973, pp. 777ss)
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Como citar:
SALINAS, Martín. Lukács y la renovación del realismo: autonomía y
perspectiva en el Pabellón de los cancerosos, de Soljenítsin. Verinotio
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1,
pp. 126-44, jan./jun. 2020.
Data do envio: 14 mar. 2020
Data do aceite: 18 maio 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.532
Leandro Candido de Souza
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Siegfried Kracauer e a teoria do romance policial
Leandro Candido de Souza
1
Para Carlos Eduardo Jordão Machado (in memoriam)
Resumo:
A partir de 1922, Siegfried Kracauer escreveu uma série de textos que
comporiam o livro O romance policial: um tratado filosófico, mas que
seriam publicados em 1971, no primeiro volume de seus Escritosstumos. O
presente artigo tem como objetivo reconstituir a teoria do romance policial
formulada por Kracauer, buscando analisar como essa teoria foi
fundamentada e quais eram suas principais definições. Inicialmente, o intuito
é localizar essa teoria dentro do pensamento mais geral do autor,
relacionando-a a sua produção anterior e, principalmente, posterior. Em um
segundo momento, tentaremos dimensionar a interlocução estabelecida entre
Kracauer e autores do chamado marxismo ocidental, como György Lukács,
Walter Benjamin, Theodor Adorno entre outros.
Palavras-chave: Siegfried Kracauer; romance policial; teoria estética;
marxismo ocidental.
Siegfried Kracauer and the detective story theory
Abstract:
Starting in 1922, Siegfried Kracauer wrote a series of texts that would make up
the book The detective novel: a philosophical tract, which would only be
published in 1971, in the first volume of his posthumous Schriften. This paper
aims to reconstruct the detective novel theory formulated by Kracauer, seeking
to analyze the bases of this theory and its key definitions. The initial purpose
is to find this theory's place within the author's more general thinking, relating
it to his previous and, especially, later writings. Next, an attempt is made to
size up the interlocution established between Kracauer and so-called Western
Marxism authors, such as Gyorgy Lukacs, Walter Benjamin, Theodor Adorno
and others
Keywords: Siegfried Kracauer; detective novel; aesthetic theory; Western
Marxism.
1
Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Supervisor
de tutoria EaD (Ciências Sociais) da Universidade Brasil. E-mail: lecanza@yahoo.com.
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I Desamparo transcendental: racionalização e reificação
A teoria dos gêneros literários que abarcam histórias de crimes
publicadas em folhetins, romances policiais e best sellers de suspense
(thrillers) indica-nos um dos muitos objetos constantes na reflexão cultural
marxista. Esboçada pelo jovem Karl Marx nos comentários sobre Os mistérios
de Paris, de Eugène Sue, em A sagrada família, essa linha chega a seu ponto
conclusivo em Delícias do crime, de Ernest Mandel, abrangendo nesse ínterim
boa parte do conceito de “marxismo ocidental”: Walter Benjamin, Antonio
Gramsci, Bertolt Brecht, Ernst Bloch entre outros. Dentro dessa tradição, o
primeiro pensador a formular uma teoria coerente e minuciosa sobre esse
gênero foi Siegfried Kracauer, entre os anos de 1922 e 1925.
Nesses textos, mantidos inéditos até 1971
2
, Kracauer inaugurava, a
partir dos meios consagrados pela filosofia clássica, seu estudo dos fenômenos
considerados marginais da cultura burguesa, o que o levou a reconhecer nos
romances policiais a existência de uma estrutura formal que evidenciaria a
lógica operacional da cultura capitalista desenvolvida. Desse modo, Kracauer
antecipava a ideia de que o esteticamente inautêntico pode revelar algo
autêntico da realidade circundante; neste caso, o espalhamento
contemporâneo da literatura no campo mais geral da cultura e, portanto, das
ideologias.
Houve, porém, uma diferença com relação aos demais autores. Em
Kracauer, a fascinação pelo baixo, superficial ou aparente deflagrou uma
reorganização do pensar que o conduziu à desconstrução dos sistemas
filosóficos tradicionais, o que não vemos ocorrer em todos os citados. Uma
desconstrução que foi alimentada tanto pela crítica kierkegaardiana a Hegel,
quanto pela sociologia alemã nascente e pela teoria geral do romance de
Lukács, apresentada em livro no ano de 1916. Daí vêm os principais elementos
da cosmovisão subjacente a O romance policial: um tratado filosófico: a visão
da modernidade como movimento de perda crescente da vida, de dissociação
entre verdade e existência, devida, acima de tudo, à racionalização.
As origens desse percurso podem ser vistas já na resenha de A teoria do
romance que Kracauer publicou em duas versões diferentes, em setembro e
outubro de 1921. Na ocasião, já lhe interessava a visão da contemporaneidade
como um “processo de desagregação” entre indivíduo e mundo, sujeito e
objetividade, interior e exterior, como prescrito pela obra lukacsiana
(MACHADO, 2007, p. 186). Segundo Kracauer, foi precisamente esse estado
de tensão característico ao mundo burguês, essa “incisão inaudita” entre alma
e forma, que engendrou a especificação formal do romance policial.
2
Exceção feita ao capítulo O saguão de hotel, publicado pela primeira vez em 1963, junto ao
ensaio O ornamento da massa, em coletânea homônima.
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Se na resenha de 1921 vemos, pela primeira vez, a inspiração lukacsiana
do desamparo transcendental do homem moderno em decorrência do
“desaparecimento do sentido do mundo”, em Der Detektiv-Roman essa
condição de “sem-teto transcendental” se associa a Kierkegaard na definição
do mundo romanesco como a infinitude sem margem em uma época de
degradação. Uma inflexão definitiva que será mais bem assinalada por outra
resenha, publicada em 1926, sobre a tradução do Antigo Testamento para o
alemão, por Martin Buber e Franz Rosenzweig (KRACAUER, 2009, pp. 205-
20), na qual Kracauer concluiu que o acesso à verdade a partir do profano
exigia uma alteração nas formas convencionais da escrita. Mudança que
assumirá sua forma definitiva com Os empregados (1930), originando sua
“literatura sociológica” (MACHADO, 2012, p. 164).
Endossando a leitura de Carlos Eduardo Jordão Machado, Francisco
García Chicote sustenta que, após sua resenha da bíblia, “Kracauer desdobra
uma formulação própria da teoria e práxis marxista que tanto se afasta das
posturas mecanicistas herdeiras da II Internacional, como de perspectivas
lukacsianas de História e consciência de classe (CHICOTE, 2012, p. 152).
Kracauer achava que nesse livro os extremos, os opostos e a
transcendentalidade se resolviam convencionalmente na rigidez de um
sistema idealista. Foi essa constatação que fortaleceu seu materialismo próprio
(sua “dialética material”), construída a partir e contra Lukács, a qual buscava
eliminar o sistema de tipo hegeliano identificado no filósofo húngaro. Se o
jovem Lukács havia fascinado Kracauer por seu objetivo de firmar uma “ética
por meio do conceito de forma”, a rigidez e o esquematismo assumidos em
História e consciência de classe desencorajaram o alemão de acompanhar seus
principais desdobramentos.
Em contraposição ao sistema lukacsiano, Kracauer nos ofereceu uma
forma calcada na experiência pessoal (“observação participante” nos
Empregados), o que impôs a abertura e inconclusão expositiva própria ao
ensaio. Como definiu Theodor Adorno, “[n]este olhar colado à coisa, nós
encontramos, no lugar da teoria, o próprio Kracauer” (ADORNO, 2009, p.
270). Essa combinação ensaística entre sociologia, materialismo e forma
literária mostra que o caminho assumido foi, de fato, aquele apontado na
conhecida abertura de O ornamento da massa (1927): “O lugar que uma época
ocupa no processo histórico pode ser determinado de modo muito mais
pertinente a partir da análise de suas discretas manifestações de superfície do
que dos juízos da época sobre si mesma.” (KRACAUER, 2009, p. 91) Desde
então, o recurso à superfície, esboçado pela primeira vez na análise dos
romances policiais, afastou-se de qualquer aspiração à substância “real”,
tornando-se um plano que intenta impugnar a verticalidade da filosofia
idealista. Novamente nas palavras de Adorno:
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A influência de Simmel exercida sobre ele revela mais da atitude
intelectual que de uma afinidade eletiva com o vitalismo
irracionalista. Mais tarde ele encontra a fenomenologia na pessoa de
Max Scheler, bem antes daquela de Husserl. Seu livro A sociologia
como ciência (1922) se esforça notadamente em religar o interesse
materialista e sociológico às reflexões epistemológicas fundadas
sobre o método fenomenológico. (ADORNO, 2009, p. 267)
O que Kracauer extraiu com radicalidade das formulações de Simmel
foi, fundamentalmente, a problemática da “unidade de sentido” que associa a
profanação do objeto enquanto posição na tradição teórica à participação do
indivíduo na construção desse objeto, engendrando sua forma ensaística
própria. Para nosso autor, somente “em uma época em que o sentido se tornou
alienado”, todo e qualquer fenômeno, coisa ou indivíduo se apresenta como
“suscetível de significados infinitos”, fazendo com que sua imagem final seja
resultado “de sua própria essência e da de seu observador” (KRACAUER,
2009, p. 275). Esse é o eixo principal de sua teoria do romance policial: a
eliminação dos indícios de uma vida comunitária referencial, a qual lança as
bases de sua posterior “caracterização fenomenológica das grandes urbes”
(VEDDA, 2013, p. 80).
II Mistérios do marxismo ocidental
Como tentamos demonstrar até aqui, em O ornamento da massa (1927),
Kracauer começou a dar unidade, em um plano horizontal, às investigações
dos fenômenos da vida cotidiana detectados nos escombros da cultura
burguesa. Como o herói romanesco definido pelo jovem Lukács, o pesquisador
se torna, ele também, um indivíduo que busca evidências materiais (no sentido
detetivesco) da negatividade da história, explicando em alguma medida seu
recurso à “fantasmagoria”, a qual também aparece em Bloch, Adorno e
Benjamin, comprovando a fecundidade da interlocução. Assim, a compreensão
da espacialidade do “saguão de hotel” (in O romance policial), aquele “ir-e-vir
de desconhecidos que se tornaram formas vazias porque perderam suas senhas
de identificação e perambulam como inapreensíveis fantasmas” (KRACAUER,
2009, pp. 200-1), aflui para uma segunda definição, muito mais geral em seu
pensamento, a da “distração” (ou “dispersão”) [Zerstreuung].
Posteriormente, sua biografia de Jacques Offenbach, escrita no exílio
parisiense, entre 1934 e 1937, também considerará que os fatos ali retratados
davam “certa atualidade à fantasmagoria do II Império” (KRACAUER, 1946,
p. 12). O início dessa conceituação que leva adiante, por meio da análise da
cultura de massas, a ideia de fantasmas da modernidade desencantada,
antecede em duas cadas a “indústria cultural” de Adorno e Horkheimer.
Kracauer chegou, inclusive, a falar em “fábricas americanas de distração” e
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“espetáculos” que se tornam “foco de interesse estético”. E, ao menos desde
1926, ele acenava para um “culto da distração”, acrescentando: “Como os
saguões de hotéis, [os cineteatros] são locais de culto do prazer, o seu brilho
visa à edificação.” (KRACAUER, 2009, p. 343)
Esse é o substrato do que poderíamos chamar de “teoria literária” de
Kracauer, na qual o gênero detetivesco é encarado como uma “forma
paroxística” que “não aspira a oferecer a reprodução exata do capitalismo
desenvolvido, mas a destacar o caráter intelectualista dessa realidade”
(VEDDA, 2013, p. 80). Sua forma específica exacerba, portanto, a estrutura
social em que se radica, isto é, a liquidação da cultura e a divinização da ratio.
O detetive substitui o sacerdote e o mago de outrora, assim como o saguão de
hotel o faz com o templo sagrado, havendo aqui a confirmação de um
aprendizado que se originou tanto nas histórias policias quanto na psicanálise:
a ideia de que “a substância de uma época se extrai a partir de detalhes
inadvertidos”.
Kracauer aspira a transformar os recursos do jornalismo o
informe, a reportagem – com vistas a convertê-los em instrumentos
estética e ideologicamente revulsivos. (...) Convencido das
limitações do pensamento abstrato, promove como Proust, como
Benjamin um pensamento pródigo em imagens e, antes de tudo,
em metáforas. (VEDDA, 2013, p. 83)
Sua definição de metáfora, estabelecida em “Georg Simmel” (1920-1),
prediz que a analogia “se limita a aproximar certos processos segundo seu
próprio percurso”, ao passo que a metáfora “fornece a explicação de um
fenômeno” ou conduz a uma alegoria que pode nos ajudar a pensar. Em outras
palavras, a última “circunscreve a impressão que o fenômeno produz em nós,
a nossa interpretação, e reproduz na imagem o significado, o conteúdo
substancial do fenômeno” (KRACAUER, 2009, p. 255). De modo semelhante,
em 1928, Kracauer reconheceu em Walter Benjamin uma escrita alegórica e
um olhar melancólico que ocasionavam uma “antítese da generalização
abstrata” própria aos sistemas filosóficos, algo que lhe era muito caro, ao
menos desde suas leituras de Simmel. Sua admiração por Benjamin vinha
sobretudo dessa demonstração de que “as questões grandes são pequenas, e as
pequenas, grandes”; mas também da “apoteose como signo da salvação” e de
sua intenção especulativa de escavar momentos ocultos da história: “De modo
semelhante, Benjamin pode se denominar um agente secreto, no mesmo
sentido em que Kierkegaard se definia como um ‘agente secreto da
Cristandade’.”
De Kierkegaard, Kracauer absorveu a “singularidade da e da
“subjetividade”, as quais demonstram o verdadeiro trauma da imortalidade e
as exigências éticas que dela decorrem. Para o pensamento pós-idealista em
que Kracauer se inspira, a repetição é, ela própria, a prova da dupla
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impossibilidade de (primeiro) se atingir o significado e (segundo) não gerar
nenhum significado novo ao longo desse processo. Eis o cerne da negatividade
tocado por Kracauer, o que se confirma na evocada “ontologia negativa”, nas
páginas de seu tratado sobre o romance policial. Como percebeu Adorno,
Kracauer assumiu essa posição ao tomar Kierkegaard como pensador anti-
Hegel por excelência, numa proximidade que se deveu à necessidade de refletir
sobre “fenômenos apócrifos” que se apresentam como “alegorias histórico-
filosóficas como, por exemplo, o romance policial que é mais que um capricho
literário” (ADORNO, 2009, p. 271). Mais um aspecto de plena concordância
com Benjamin.
Em Casa mobiliada. Principesca. Dez cômodos (Rua de mão única,
1928), Benjamin falou do romance policial como a única apresentação
satisfatória do mobiliário do interior burguês da segunda metade do século
XIX: “A exuberância sem alma do mobiliário se torna conforto verdadeiro
diante do cadáver.” E o fato de Edgar Allan Poe tê-los descrito ainda na
primeira metade daquele culo, não desmente a retroatividade defendida pelo
alemão, uma vez que “os grandes escritores, sem exceção, fazem suas
combinações em um mundo que vem depois deles, como as ruas parisienses
nos poemas de Baudelaire existiram depois de 1900 e também não antes
disso os seres humanos de Dostoiévski” (BENJAMIN, 2012, p. 13).
Esse caráter da casa burguesa, que estremece pelo assassino sem
nome como uma velha lasciva pelo galã, foi penetrado por alguns
autores que, qualificados como “escritores criminais”
[Kriminalschriftsteller] – talvez também porque em seus escritos se
estampa um pouco do pandemônio burguês –, foram privados de
suas devidas honras. Conan Doyle tem aquilo que deve ser atingido
aqui em alguns de seus escritos; em uma grande produção a
escritora A. K. Green o põe em evidência, e com o Fantasma da
ópera, um dos grandes romances sobre o século XIX, Gaston Leroux
promoveu esse gênero à apoteose. (BENJAMIN, 2012, p. 13)
Dois anos depois, em Romances policiais, nas viagens, pensando em
Simmel, Benjamin analisou o ritual de “fazer suas compras no chassi de
bandeirolas coloridas na plataforma da estação”. Para Benjamin, o viajante
que prefere comprar livros nas estações de trens a trazê-los de sua biblioteca
pessoal, embarca em uma experiência tipicamente moderna que é
determinante no sucesso das brochuras policiais, chegando até mesmo a
consignar que “qualquer um conhece o culto ao qual ele [o ritual de compra]
nos convida” (BENJAMIN, 2012, p. 224). Uma situação nova cuja base
material Benjamin indicará com maior precisão anos depois, em Paris do II
Império: a conotação subjetiva dessa transferência do culto à cultura.
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As consequências sociais da mercantilização da literatura
3
fizeram das
bancas de jornal “as bibliotecas do flâneur (BENJAMIN, 1989, p. 35) que,
desse modo, torna-se um “botânico do asfalto”, o qual tem como pré-condição
a urbanidade própria ao mundo pós-Haussmann. Vistas por esse ângulo, as
fisiologias da primeira metade do século XIX anteciparam formalmente essa
nova literatura ao também atenderem ao intuito burguês de “fornecer aos
habitantes dos centros urbanos uma ideia amistosa das outras”. E acabaram
tecendo, a seu modo, uma “fantasmagoria da vida parisiense” (BENJAMIN,
1989, p. 36) que influenciou grandes escritores, incrementando, por exemplo,
as intrigas balzaquianas, ricas “em variações intermediárias entre histórias
de índios e de detetives” (BENJAMIN, 1989, p. 40)
4
.
Para a criminalística [a fotografia] não significa menos que a
invenção da imprensa para a literatura. Pela primeira vez, a
fotografia permite registrar os vestígios duradouros e inequívocos de
um ser humano. O romance policial se forma no momento em que
estava garantida essa conquista – a mais decisiva de todas – sobre o
incógnito do ser humano. Desde então, o se pode pretender um
fim para as tentativas de fixá-lo na ação e na palavra. (BENJAMIN,
1989, p. 45)
As afinidades entre Benjamin e Kracauer até aqui são evidentes: a
assistematicidade, a escrita ensaística particular, o interesse pela cultura de
massa e a experiência que ela instaura, a associação entre cnica, ratio e
modernidade, o apego aos objetos ignorados pela tradição institucionalizada,
a influência das fisiologias e a tentativa de atualizá-las
5
. No caso específico de
Benjamin, o incógnito representado pela multidão massificada ergue-se como
uma ameaça que está no âmago do romance policial: “Em tempos de terror,
quando cada qual tem em si algo do conspirador, o papel do detetive pode
também ser desempenhado. Para tal a flânerie oferece as melhores
perspectivas.” (BENJAMIN, 1989, p. 38) Nos fragmentos daquilo que
3
Em seus Pequenos trechos sobre arte, Benjamin retoma: “Nem todos os livros se leem da
mesma maneira. Romances, por exemplo, existem para serem devorados. Lê-los é uma volúpia
da incorporação. Não é empatia. O leitor não se coloca na posição do herói, mas se incorpora
ao que sucede a este. (...) Ao comer, se for preciso, leia-se o jornal. Mas jamais um romance.
São obrigações que se excluem.” (BENJAMIN, 2012, p. 283)
4
No entanto, a influência mais decisiva na gênese do romance policial provavelmente tenha
sido a de J. F. Cooper, refletida já no título de Os moicanos de Paris de Alexandre Dumas e em
Os mistérios de Paris (1842-3) de Eugène Sue, o qual se refere ao autor de O último dos
moicanos logo na abertura. David Harvey comentou em seu detalhado estudo sobre a Paris do
século XIX: “Antes de Baudelaire ter lançado seu manifesto das artes visuais (e um século antes
de Benjamin tentar decifrar os mitos da modernidade no inacabado projeto das Passagens de
Paris), Balzac havia colocado os mitos da modernidade sob o microscópio e usado a figura
do flâneur para fazê-lo”, acrescentando, linhas abaixo, que o famoso romance de Sue ajudou
a moldar “a imaginação popular em relação ao que a cidade era e poderia se tornar(HARVEY,
2003, pp. 24-5).
5
Benjamin considerou Os empregados de Kracauer uma “contribuição à fisiologia do capital”
(BENJAMIN, 2008).
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poderíamos identificar como os indícios de sua teoria do romance policial, as
narrativas desse gênero são vistas como inteiramente obedientes aos ritmos da
cidade: “Qualquer pista seguida pelo flâneur vai conduzi-lo a um crime. Com
isso se compreende como o romance policial, a despeito de seu sóbrio
calculismo, também colabora na fantasmagoria da vida parisiense.”
(BENJAMIN, 1989, p. 39)
O romance policial, cujo interesse reside numa construção lógica,
que, como tal, a novela criminal não precisa possuir, aparece na
França pela primeira vez com a tradução dos contos de Poe: O
mistério de Marie Rogêt, Os crimes da Rua Morgue, A carta
roubada. Ao traduzir esses modelos, Baudelaire adotou o gênero.
Sua própria obra foi totalmente perpassada pela de Poe; e
Baudelaire sublinha esse fato ao se fazer solidário ao método no qual
se combinam os diversos gêneros a que Poe se dedicou.
(BENJAMIN, 1989, p. 40)
Além de registrar “a perda de vestígios que acompanham o
desaparecimento do ser humano nas massas das cidades grandes”, a obra de
Poe atendia ao postulado baudelairiano de associação entre arte, ciência e
filosofia. Por isso Benjamin chega a firmar pouco adiante: “A análise desse
gênero literário [detetivesco] é a análise da própria obra de Baudelaire,
apesar de ele o ter produzido nenhuma peça desse tipo.” (BENJAMIN, 1989,
p. 40) Esse aparente paradoxo em que se firmam as considerações
benjaminianas destaca uma diferença notável entre os dois poetas: Baudelaire
jamais escreveu um romance policial porque “em função da impulsividade de
seu caráter a identificação com o detetive lhe foi impossível”.
III A teoria do romance policial
A maturidade alcançada pelo pensamento de Kracauer em “O
ornamento da massa” é um desdobramento crítico dessas ideias desenvolvidas
em sua teoria do romance policial, entre 1922 e 1925. O fundo filosófico das
esferas no tratado literário coincide, grosso modo, com a análise do
superficial, segundo a qual o periférico, secundário, baixo ou residual
apresenta, invariavelmente, algo de autêntico em sua inautenticidade. Sua
própria desfortuna teórica seria, assim, sua maior recompensa ao afastá-lo da
vigilância da ratio, permitindo o acesso ao “oculto” da história que se encontra
escondido na superfície dos fenômenos, como na “carta roubada” de Poe
6
.
Era isso que seu tratado demonstrava, como a estrutura formal do
romance policial gerou um gênero estilístico bem definido que exibe “um
mundo próprio com meios estéticos próprios”, no qual a percepção do
6
Essa relação entre a teoria da superfície e a carta roubada no conto de Poe é referida pelo
próprio Kracauer em Os empregados.
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Absoluto “se apresenta como vivência (Erlebnis) intuitiva”. Pode-se dizer que
cada capítulo do tratado de Kracauer é uma demonstração ou localização de
momentos dessa constituição formal que expressam o “aspecto autêntico” de
sua “inautenticidade”. Falando em termos que nos remetem a Kierkegaard, o
homem é tido como um ser de natureza intermediária”, em uma constante
tensão entre as esferas de cima e de baixo, de modo que as inferiores esboçam
uma “imagem deformada” das elevadas: uma “caricatura da substância
perversa” do processo civilizatório, da “ideia de uma sociedade civilizada
completamente racionalizada” (KRACAUER, 2010, pp. 24-5).
Muitas passagens confirmam que, em seus juízos, essa forma reflete
claramente a sociedade dominada pela ratio autônoma, numa mescla entre
segredo superior e perigo atomizado. Assim como o detetive “descobre o
segredo oculto entre os homens, o romance policial revela, através do medium
estético, o mistério da sociedade despojada de realidade e de suas marionetes
carentes de substância” (KRACAUER, 2010, p. 41). Por esse mesmo motivo
Kracauer fala, no segundo capítulo da obra, da psicologia nessa literatura como
comprovação de uma “ontologia negativa” que elimina a subjetividade
7
: “cada
determinação psicológica é, por conseguinte, um obstáculo colocado de
propósito, que a ratio condenada ao triunfo deve superar”.
A totalidade estética do romance policial se constituiria a partir “da
neblina original que envolve o saguão de hotel” (KRACAUER, 2010, p. 73), e
sua fixidez formal segue o imperativo da repetição, confirmando a força motriz
que regula a sociedade civilizada completamente estabelecida. Na medida em
que se afasta da tensão entre as esferas que caracteriza a ética, o anti-herói das
histórias de crime “vaga no espaço vazio entre as figuras na qualidade de
representante da ratio”. Mas, antes de se dirigir a ela, personifica-a: o detetive
não é trágico ou dramático porque ele é vazio de experiência, não está em
tensão. Ele é uma negação do que caracteriza um herói, “como a ratio não
admite um eu, lhe está proibido relacionar-se com o mundo aparente”
(KRACAUER, 2010, p. 75).
Se a ratio é, por excelência, “o pensamento que oscila livremente no
vazio, que se refere a seu vazio profano” (KRACAUER, 2010, p. 81), então
um elemento de impessoalidade aboia dessa estilização de um mundo nascido
e governado pelo cálculo: para que o meio de sua manifestação se viabilize é
necessária a despersonalização do investigador. Desse modo, o que define o
detetive como guia narrativo é sua dedução intelectual. O detetive é o cura ou
monge de um mundo regido pela instrumentalidade, e que Kracauer
reconheceu literariamente no Padre Brown de G. K. Chesterton. O detetive
refuncionaliza o sacerdote porque este último não é mais pertinente ante o
sucesso da ratio. Aqui está a questão ética profunda que envolve a
7
Essa ideia é retomada no último capítulo da obra (cf. KRACAUER, 2010, p. 135).
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secularização das sociedades modernas e essa analogia nas funções sociais dos
tipos em lide.
Ambos “operam por ordem superior e, por conseguinte, devem ser
interpretados como mandatários da comunidade, enviados do espaço pleno de
vida em comum, para completar a obra de união [Verknüpfung] com o
Absoluto” (KRACAUER, 2010, p. 34). O que os une em diferença ao herói
romanesco clássico é que nenhum dos primeiros se mistura com a vida
comum. Kracauer observa, inclusive, como o romance policial recorreu à figura
do religioso para atingir esse objetivo estético, uma vez que não existem
condições mais propícias à exposição da ratio que pela ausência de desejos
própria às relações estabelecidas no plano do não sensível.
O caráter anti-heroico do detetive está precisamente nesse seu
afastamento cínico que Ernst Fischer chamou “desumanização”, e que
Kracauer, mais à frente, nomeará por “metamorfoses do ser ético-existencial
em relações legais” (KRACAUER, 2010, p. 44). Ou seja, as passagens do
sacerdote ao aventureiro e deste ao detetive revelam como o “reino das formas”
é uma “transitória prefiguração do reino autêntico”. É assim que a unidade da
construção estética “faz falar um mundo e infunde sentido aos temas ali
debatidos” (KRACAUER, 2010, pp. 38-9), algo próximo ao que Jorge Luis
Borges reverenciou em Os assassinatos da Rua Morgue: “Poe não queria que
o gênero policial fosse um gênero realista, queria que fosse um gênero
intelectual, um gênero fantástico se vocês preferem, mas um gênero fantástico
da inteligência, não apenas da imaginação.” (BORGES, 1979)
Esse papel duplo de fornecer um contraste estético e assim delimitar a
unidade, também é atribuído à figura do policial e sua corporação. Nesse tipo
de narrativa, a polícia consiste na “autoridade de cujo aparato (...) também
depende o detetive”, mas que se encontra destituída de qualquer
“superioridade” (KRACAUER, 2010, p. 94). A função policial é, pois, garantir
que a vida pública transcorra com sua devida tranquilidade e ordem, enquanto
no detetive “a ratio condicionada tem o efeito de elevar o processo a um fim
em si mesmo” (KRACAUER, 2010, p. 103).
O sistema [filosófico] surge porque o pensamento se separa com
arrogância da realidade e uma vez que este escapou, tem tão poucas
possibilidades de voltar a alcançá-la quanto a polícia estilizada no
romance policial de avançar até o “porquê” que ela sem querer
expulsa do mero processo que a devoraria se ela o estivesse a
cargo da meta desaparecida. (KRACAUER, 2010, p. 105)
Se no círculo formal sob o domínio da racionalidade, a polícia
representa a “ordem”, estando diretamente ligada à legalização e normalização
dos aparatos repressivos de estado, o ilegal “se converte em um evento pontual
que, na pura imanência, enfrenta os fatos derivados do princípio de legalidade
sem ter com eles a mínima relação” (KRACAUER, 2010, p. 107). Esquecendo
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que a civilização burguesa é simultaneamente civilização e rebelião contra a
civilização, o crime e seu autor são tomados como criações autossuficientes que
a ratio deve investigar. Eles não são mais que negação do legal e, em alguma
medida, justificativa para a existência da ação policial. Verdadeiramente, no
romance policial, apenas o ato ilegal outorga motivação e sentido ao fato
presente.
A natureza enigmática do romance policial surge, como vemos, da
anulação da tensão ética, diferenciando-o, enquanto tratamento da temática
do crime, de enredos como os de Sófocles, Shakespeare ou Dostoiévski. O que
os diferencia é que, agora, o crime possui a qualidade exclusiva de fator que
interrompe violentamente o curso das coisas. Assim, o tratado filosófico de
Kracauer define a forma do romance policial como um autêntico gesto da ratio
“que se oculta inicialmente para depois manifestar-se com mais clareza e sem
ambiguidades”. Sua transcendência começa no instante em que “a ratio se
separa do legal, não por indiferença, mas como representante ético”
(KRACAUER, 2010, pp. 118-20). Quando, no combate ao ilegal, o detetive se
volta contra a lei, ele se assume como “portador consciente do éticoe conecta-
se ao âmbito do supralegal: “O supralegal que ele representa só perturba a lei
para dar-lhe um fundamento (...). A ênfase, em todo caso, está colocada na
transferência do social, cuja justificação ética só pode se dar em termos
psicológicos.” (KRACAUER, 2010, p. 124)
Verifica-se uma legitimidade triunfante na ilegalidade do processo cuja
ação fundamental é a elucidação do enigma que, em linhas gerais, confirma a
realidade preservando-a. Eventuais “evoluções esportivas”, ões físicas ou
narrações de proezas corporais têm como única função estética “pôr à prova
este processo teórico de maneira prática e manifesta” sem, jamais, reivindicar
um significado próprio. Por isso o romance policial “se encarrega de que o
processo comece no nada”, na fragilidade misteriosa do cadáver desconhecido,
numa restrição de sua base de lançamento que “corresponde à pretensão
inerente a toda filosofia idealista, a respeito da imanência do começo a partir
do nada” (KRACAUER, 2010, 132). Seu ardil estético se desdobraria dessa
inviabilidade inicial de deduzir os fatos de seus contextos de origem: “Ao
despojar de sentido a ação decisiva e subordinar o acontecimento à
contingência, o romance policial põe em evidência seu ponto de partida a
completa desrealização.” (KRACAUER, 2010, p. 150)
IV Crime e humanismo
Falando quase nos mesmos termos de Kracauer e mencionando seu
tratado na bibliografia, Ernest Mandel sinalizou, mais de sessenta anos depois,
“o caráter abstrato e racional da trama, o crime e o desmascaramento do
assassino” que coroam o romance policial como “auge da racionalidade
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burguesa na literatura”. Sem conflitos e paixões reais, apenas os instintos
elementares, as detective stories tratam unicamente de “homens como
objetos” que são dominados pelo destino e que se disputam intelectualmente,
dando novas provas do “declínio da racionalidade na ideologia e na sociedade
burguesa” (MANDEL, 1988, pp. 43-181).
No romance policial, “não é o poder do que acontece o que corta a
respiração, mas a impenetrabilidade da cadeia causal que condiciona o fato”
(MANDEL, 1998, p. 112). Em outras palavras, sua eficácia está na repetição
constante de sua fórmula e naquilo que Brecht chamou “efeito” [thrill] que
não é mais espiritual, mas puramente nervoso (BRECHT, 1973, p. 343). Isso
faz com que, num segundo momento, “ainda que o detetive persiga os mesmos
objetivos que a polícia”, tudo ocorra “para diferenciá-lo dela e demonstrar sua
autonomia”. E a “desumanização da morte” enquanto cadáver a ser dissecado
no romance policial, torna a causalidade “um quebra-cabeças para ser
montado” (MANDEL, 1988, p. 37), singularizando-o.
Isto é o que diferencia o romance policial da literatura “não-trivial”
que se ocupa do crime. Não é o mistério do ato criminoso (quem
matou quem), mas a trágica ambiguidade da motivação humana e
do destino que se situa no âmago de obras como Der Fall Deruga de
Ricarda Huch ou Crime e castigo de Dostoiévski, sem citar Macbeth
e Édipo Rei. A verdadeira literatura, como a verdadeira arte reflete
a sociedade através do “espelho quebrado” da subjetividade do
autor, repetindo uma fórmula de Trotsky, reiterada por Terry
Eagleton. Na Trivialliteratur esta subjetividade está ausente e a
sociedade está “refletida” apenas para servir, com fins comerciais, a
algumas prováveis necessidades dos leitores. (MANDEL, 1988, p.
51)
Essa diferenciação crucial nos repete como “o verdadeiro tema dos
primeiros romances policiais não é o crime ou o assassinato, mas o enigma”, a
luta de intelectos entre o grande detetive e o criminoso, entre o leitor e o autor:
“É um jogo com dados viciados. A racionalidade burguesa é a racionalidade do
trapaceiro” (MANDEL, 1988, p. 81). Uma atitude anti-humanista que Ernst
Fischer associou tanto a uma capitulação ante a inumanidade “O homem não
é nada. O êxito é tudo” quanto à ideia de um “voo para fora da sociedade”,
que aparece quando o austríaco fala dos milhões de jovens que “procuram
escapar a seus empregos insatisfatórios, às suas vazias ocupações cotidianas,
procuram escapar a um dio profeticamente analisado por Baudelaire,
procuram fugir às obrigações sociais e ideológicas” (FISCHER, 1977, p. 117).
A “perda da realidade”, já existente no romantismo, tornou-se “um
problema central no derradeiro mundo capitalista, altamente industrializado”,
propiciando o desenvolvimento de uma tendência que conduz, sempre
segundo Fischer, ao antirromance francês” de Nathalie Sarraute e Alain
Robbe-Grillet (FISCHER, 1977, pp. 223-5). Tese que será prontamente
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rechaçada por Lucien Goldmann. Enquanto, para o autor de A necessidade da
arte, o interesse está na degradação do gosto das massas provocado pela
industrialização da cultura
8
, Goldmann afirma que a forma assumida pelo
romance nos dois escritores citados não decorre de eles procurarem “a todo o
custo uma forma original, mas porque a própria estrutura de que participam
todos esses elementos mudou de natureza” (GOLDMANN, 1967, p. 174).
Mandel, semelhante a Fischer, considerou o novo romance uma tentativa
radical de estetização do romance policial (MANDEL, 1988, p. 103), hipótese
ignorada por Goldmann.
Mesmo que Fischer compartilhe com Gramsci, Brecht e o Lukács da
Estética, a convicção teórica de que uma arte que diverte é legítima (“O anseio
por uma arte que simplesmente ‘divirtaé legítimo, e ao lado dos inovadores
mais originais, há lugar para grande número de artistas secundários”), jamais
abriu mão de seus juízos negativos nas análises concretas
9
. E, diferentemente
de Goldmann, não chegou a reconhecer que “a transformação qualitativa na
natureza do capitalismo ocidental” provoque “a supressão de toda importância
essencial do indivíduo e da vida individual” (GOLDMANN, 1967, p. 176), como
aparece no novo romance.
Ao desconhecer essa continuidade, porém, Lucien Goldmann criou um
ponto cego em sua sociologia do romance, levando-o ao falso enigma da
“defasagem de quase um século que separa a descoberta do fenômeno da
coisificação [em Marx] do aparecimento do romance sem personagem [novo
romance]” (GOLDMANN, 1967, p. 176). Goldmann ignorou que a
manifestação literária correspondente antecedeu à própria conceituação ou,
verdadeiramente, criou as condições e, em alguma medida, suscitou sua
concretização. Afinal, o próprio Marx foi o primeiro a se referir a ela em seus
apontamentos sobre o romance de Eugène Sue, contidos em A sagrada família
escrito com Engels, em 1844. Dito de outro modo, essa dissolução da
personalidade que surge com as histórias populares de crimes e detetives
10
, das
8
Lembremos a passagem em que o autor diz: “O homem, na sociedade industrial, acha-se
exposto a numerosos e diversos estímulos e sensações. Seu senso estético não é tábula rasa:
foi afetado por toda a massa das mercadorias que, uma vez produzidas, inundam a sua vida
desde a mais tenra infância. Seus critérios de apreciação artística são comumente
preconceituosos.” (FISCHER, 1977, p. 237)
9
Carola Pivetta observa que Lukács se aproximou pela primeira vez do romance policial lato
sensu em Anotações sobre Dostoiévski, continuação jamais publicada de sua Teoria do
romance, algo que Carlos Eduardo Jordão Machado acrescenta: “Ferenc Fehér tenta
compreender a interpretação de Lukács dos romances de Dostoievski como romance policial
[Kriminalroman].” (MACHADO, 2004, p. 14)
10
Sobre a formação desse caldo cultural popular que fomenta a dissolução de alguns elementos
literários como a psicologia das personagens, veja-se, além do já referido escrito de Brecht, as
anotações de Antonio Gramsci recolhidas no Quaderno 21 (XVII) 1934-1935: Problemi della
cultura nazionale italiana 1º Letteratura popolare (GRAMSCI, 1977, pp. 2.107-35).
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quais Kracauer foi um dos primeiros a se ocupar, antecede a existência do
próprio conceito de reificação.
Em palavras finais, o romance policial, enquanto virtualidade formal,
abarca um problema em comum com o novo romance, a atomização própria a
uma sociedade que reduz o indivíduo e, implicitamente, sua biografia e
psicologia ao nível da anedota e do episódio acidental” (GOLDMANN, 1967,
p. 174). Esse fenômeno detectado pioneiramente por Kracauer no romance
policial, torna-se ainda mais interessante quando notamos que, no afã de
explicar essa “supressão de toda importância essencial do indivíduo e da vida
individual no seio das estruturas econômicas e, a partir destas, no conjunto da
vida social”, Goldmann também recorra à “ilusão fantasmagórica”
(GOLDMANN, 1967, pp. 176-9) evocada por Marx
11
.
Semelhante ao esquadrinhado por Kracauer, ao invés da revelação da
verdade, temos a apresentação hiperbólica da negatividade da história, seus
fantasmas. Essa foi a tensão que fundamentou sua teoria do romance policial,
o que, em sua máxima profundidade, significou uma ruptura com a cultura
burguesa e o domínio do idealismo filosófico. A partir de então, até seu exílio
em 1933, os textos de Kracauer vagarão por essa zona desconhecida, provisória
e indefinida, mas sempre reconhecendo a alienação como parte de sua própria
experiência. A fragmentação do sujeito, em termos teológicos e históricos,
defronta-se finalmente com o rompimento do feitiço do progresso, assumindo
uma luta para que os elementos ontológicos em desintegração possam ser
reintegrados por meio de uma prática emancipadora.
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11
A passagem goldmanniana diz exatamente: “É esse fenômeno de abolição, de redução ao
implícito de um setor extremamente importante das consciências individuais, substituído por
uma nova propriedade, de origem puramente social, dos objetos inertes, na medida em que
penetram no mercado para aí serem trocados e, a partir daí, a transferência das funções ativas
dos homens para os objetos, e essa ilusão fantasmagórica (que Marx assimilou à perspectiva
do personagem shakespeariano, para quem saber ler e escrever era uma qualidade natural, e
a beleza o resultado de um mérito) que se designa pela expressão extremamente sugestiva de
fetichismo da mercadoria e, depois, coisificação.” (GOLDMANN, 1967, 179)
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Como citar:
SOUZA, Leandro Candido de. Siegfried Kracauer e a teoria do romance
policial. Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das
Ostras, v. 26, n. 1, pp. 145-60, jan./jun. 2020.
Data do envio: 15 mar. 2020
Data do aceite: 8 maio 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.534
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Dickens, “nuestro amigo en común”: un recorrido por las
aproximaciones marxistas a la obra de Dickens
Jesica Daniela Lenga
1
Resumen:
En el presente artículo consideramos las aproximaciones de la crítica literaria
marxista a la obra de Charles Dickens durante el período 1933-84. Se pretende
dar cuenta del modo en que estos análisis de la obra del novelista inglés
articulan los debates acerca de la definición de una Estética marxista.
Asimismo, se indagará en la funcionalidad de la metodología de la crítica
literaria marxista para elucidar la singularidad de la literatura dickenesiana.
Palabras clave: Estética marxista; relaciones base/superestructura;
literatura victoriana.
Dickens, “our mutual friend”: a journey through Marxist
approaches to Dickens' work
Abstract:
In this article we consider the approaches of Marxist literary criticism to the
work of Charles Dickens during the period 1933-1984. It aims to show how
these analyses of the English novelist's work articulate the debates about the
definition of a Marxist Aesthetics. Also, it will investigate the functionality of
the methodology of Marxist literary criticism to elucidate the singularity of
Dickens' literature.
Keywords: Marxist aesthetics; base-superstructure relationship; Victorian
literature.
1
Mestranda em Literatura Alemã e Literatura Inglesa pela Universidad de Buenos Aires
(UBA). E-mail: jesicalenga@gmail.com.
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The present splendid brotherhood of fiction-writers in England,
whose graphic and eloquent pages have issued to the world more
political and social truths than have been uttered by all the
professional politicians, publicists and moralists put together,
have described every section of the middle class from the "highly
genteel" annuitant and Fundholder who looks upon all sorts of
business as vulgar, to the little shopkeeper and lawyer's clerk.
And how have Dickens and Thackeray, Miss Brontë and Mrs.
Gaskell painted them? As full of presumption, affectation, petty
tyranny and ignorance; and the civilized world has confirmed
their verdict with the damning epigram that it has fixed to this
class that "they are servile to those above, and tyrannical to those
beneath them.
(Marx, The English middle class)
Introducción
En 1865, Henry James es convocado por el periódico The Nation, para
escribir una reseña sobre Our mutual friend, novela que había sido
recientemente publicada por Charles Dickens. La crítica del joven James es
implacable; al comentar algunos de sus episodios sostiene:
Such scenes as this are useful in fixing the limits of Mr. Dickens's
insight. Insight is, perhaps, too strong a word; for we are convinced
that it is one of the chief conditions of his genius not to see beneath
the surface of things. If we might hazard a definition of his literary
character, we should, accordingly, call him the greatest of superficial
novelists. We are aware that this definition confines him to an
inferior rank in the department of letters which he adorns; but we
accept this consequence of our proposition. It were, in our opinion,
an offence against humanity to place Mr. Dickens among the
greatest novelists. For, to repeat what we have already intimated, he
has created nothing but figure. He has added nothing to our
understanding of human character. (JAMES, 1865, p. 787)
En su reseña, James inaugura lo que luego se transformaría en un lugar
común entre las lecturas críticas de Dickens; lo condena por su modo
esquemático de construir personajes que, en lugar de poseer una psicología
desarrollada, conforman “tipos”, también por la resolución precipitada,
caprichosa que adquieren los conflictos en sus relatos. James adjudica esta
superficialidad de las novelas dickenesianas a una supuesta “incompetencia”
del propio Dickens para escribir “literatura auténtica”; “He knows men but no
man” (JAMES, 1865, p. 787)- sentenció James. Desde entonces, el autor de Oliver
Twist quedó relegado a una segunda línea en el canon literario, como autor de
novelas infantiles e historias de navidad. Esta exclusión de Dickens del ámbito
de la discusión académica se vio aún más acentuada a principios del siglo XX
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cuando, tras la consolidación del Círculo de Bloomsbury, el rechazo a la
tradición victoriana se vuelve una actitud generalizada.
Empero, a fines de los años 30, esta situación súbitamente se modifica
y, en un breve lapso se publican numerosos ensayos y artículos que reevalúan
la obra de Dickens. Este “cambio de la marea” puede atribuirse al contexto de
crisis propio de los os 30 (MAZZENO, 2008). La generación de artistas e
intelectuales de esa década era consciente de estar viviendo un proceso de
extinción de la Europa decimonónica y desintegración de la cultura burguesa
al que Christopher Caudwell llamó “The Dying Culture” (CAUDWELL, 1970).
Precisamente, en este período de desconcierto y angustia la crítica
redescubre en la obra de Dickens una oferta de catarsis consolatoria, en sus
novelas Dickens representaba un mundo en el que, como en los cuentos de
hadas, los buenos eran recompensados y los malos castigados; frente a la
incertidumbre de la realidad, los lectores podían encontrarse en la literatura
dickenesiana con la certeza de un final feliz. Esto motiva la aparición de
artículos como Return to Dickens publicado hacia 1940, en el que se alienta al
público a regresar a la lectura de novelas como David Copperfield como tónico
contra la locura desatada por la guerra (MAZENNO, 2008, p. 91). En esta
misma línea, el ensayo Munitions of the Spirit (MANSBRIDGE, 1940) concibe
la literatura dickenesiana como un escudo protector para salvaguardarse de
aquellos que amenazaban con destruir esa English way of life. Empero, este
revival conservador y nacionalista reverdece discusiones del pasado en torno
a la figura de Dickens, su posicionamiento ideológico y el carácter social de sus
novelas, que suscita el interés de una serie de intelectuales marxistas.
El objeto de estudio de este trabajo son, entonces, las aproximaciones
de la crítica literaria marxista a la obra de Dickens durante el período
comprendido entre finales de la década del 30´ y principios de los 80´. Se
indagará en las diversas propuestas teóricas que se articulan en torno a sus
novelas. Partiendo de la premisa de que “Marx y Engels no escribieron jamás
un tratado sistemático sobre cuestiones específicamente literarias” y, por ende,
“las ideas de ambos acerca de la literatura tienen que extraerse de una gran
cantidad de artículos, cartas, y pasajes de obras científicas, correspondientes,
además, a muy diversas etapas de sus vidas” (VEDDA, 2013, p. 8),
analizaremos la interpretación particular que cada uno de los autores
abordados ofrece acerca de los postulados de Marx. La hipótesis de este
trabajo es que Charles Dickens se transforma en el “amigo en común” al que
los críticos literarios marxistas vuelven insistentemente porque, por la época
en que desarrolló su obra, su ambigua posición social, y su compenetración con
la realidad de la Inglaterra de la Revolución Industrial, su obra se convierte en
una vía de acceso sensible a las mismas problemáticas sociales que interesaron
a Marx.
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Cabe destacar que no pretendemos en modo alguno realizar un análisis
exhaustivo que abarque la totalidad de los estudios marxistas sobre Dickens,
sino, más bien, proponer una lectura de los aportes más representativos de la
crítica literaria marxista dickenesiana.
Apartado I. Jackson y Caudwell: la compleja fundación de una
corriente
Para entablar un análisis de los estudios sobre Dickens de Jackson y
Caudwell, resulta insoslayable precisar que ambos parten de una doble
carencia: a la ya mencionada falta de estudios académicos previos sobre la
literatura dickenesiana se le ade el hecho de que, cuando Jackson y Caudwell
comienzan a escribir no existía en Inglaterra ninguna escuela de crítica
marxista en la que pudieran sustentar sus propuestas; más aún, tampoco era
posible hallar en Gran Bretaña demasiados espacios de discusión acerca del
pensamiento de Marx. Por esa causa, ambos se ven compelidos a crear una
tradición, a construir una perspectiva de lectura de izquierda para la literatura
inglesa, contando tan solo con algunos conocimientos rudimentarios de la
teoría marxista. Tanto Jackson como Caudwell fueron autodidactas, sin
ningún tipo de formación académica, que combinaron su interés por la
literatura con su militancia política. En sus escritos se percibe este carácter de
urgencia, la intención de llenar un vacío sin disponer de las herramientas
necesarias para hacerlo (SMITH, 1995). Esta situación generó que en sus
lecturas se produjeran no pocas malinterpretaciones en relación a las ideas de
Marx. Ni Jackson ni Caudwell tuvieron la posibilidad de profundizar sus
conocimientos sobre los fundamentos filosóficos del Capital, no hay evidencia
de que ninguno de ellos haya leído a Hegel, por ejemplo. En consecuencia, su
perspectiva de análisis se vuelve sumamente mecanicista y dogmática. De
hecho, ambos comprenden su acercamiento a la militancia socialista en
términos de una “conversión”. Samuel Hynes escribe en su introducción a
Romance and realism que el marxismo fue para Caudwell y su generación un
subrogante de la religión que vino a satisfacer la “necesidad de una fe” y a llenar
el vacío existencial provocado por la desintegración de sus convicciones
religiosas (1970, p. 6).
Este enfoque moral y espiritual del marxismo se percibe en Charles
Dickens: The progress of a radical (1938), en su estudio, Thomas. A. Jackson
reelabora la trayectoria literaria de Dickens como un peregrinaje religioso en
el que el novelista se iría “convirtiendo” en un defensor de la causa obrera. The
progress of a radical tiene una intencionalidad más política que literaria que
descubrimos a través de dos gestos políticos que el texto realiza: en primer
lugar, se cataloga a Dickens como uno de los autores s importantes de la
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literatura británica y se lo coloca al nivel de dos indiscutibles como Scott o
Thackeray. Luego, Jackson construye “su” Dickens como un autor de clase
baja, cuyo origen sería tan modesto como para haber conocido, compartido y
comprendido las duras condiciones de vida del proletariado. La apreciación de
Jackson es cuanto menos parcial, si bien es cierto que Dickens pertenecía a una
familia pequeño-burguesa y que en su infancia había pasado apuros
económicos, en su adultez, procuró simular esos orígenes y se preocupó por
reafirmar su imagen social de burgués próspero. Resulta difícil, entonces,
coincidir con Jackson en que Dickens fuese “un escritor que se identificó más
con los huérfanos ilegítimos que con la familia victoriana y que propuso que la
clase trabajadora debe liberarse a sí misma” (JACKSON, 1971, p. 15).
No obstante, el texto de Jackson resulta significativo en nuestra
historización de las lecturas de Dickens porque cambia el enfoque desde el cual
su literatura era evaluada: si el análisis de Henry James (también los de
Gissing, Leavis y Chesterton) establecía un juicio de valor sobre los textos a
partir de modelos ideales acerca de lo que la literatura debía ser, Jackson
plantea la necesidad de considerar las condiciones materiales en las que esa
literatura es producida y examina el modo en que esas condiciones repercuten
en los textos.
The progress of a radical es uno de los primeros intentos por leer la
ficción dickenesiana en relación con los procesos históricos, Jackson explica
que las causas que impulsaron el proceso de transformación que sufre la
literatura de Dickens, que paulatinamente se va despojando del tono optimista
para tornarse sombría, desesperanzada, no se encuentran en la biografía del
autor, sino que se relacionan directamente con los cambios en el clima político
del Reino Unido y la mala fortuna de los movimientos radicales. La obra de
Dickens queda así dividida esquemáticamente en tres períodos delimitados no
por rupturas a nivel literario sino, por una supuesta evolución en el vínculo de
Dickens con la realidad social.
Durante una primera etapa que se extendió desde 1836 a 1842 y abarcó
novelas como The pickwick papers, Oliver Twist o Nicholas Nickleby podemos
encontrar una tendencia a lo dico y a lo sentimental. Los relatos de esta
primera fase se caracterizan por su exuberancia cnica y sus argumentos
simples que culminan siempre en un final feliz, en el que la virtud triunfa.
Jackson sostiene que estas novelas son la expresión de un Dickens de
mentalidad pequeño burguesa que, con un optimismo naive, confiaba en la
potencialidad de la burguesía para realizar reformas sociales (JACKSON, 1971,
p. 41). Jackson advierte que la lucha de clases es un fenómeno que pasa
inadvertido en estas obras de juventud: hay ricos y pobres pero esta división
parece ser casual y transitoria; siempre surgen personajes como Mr.
Brownlow, el “hada madrina” que rescata a Oliver Twist de la pobreza y
garantiza su ascenso social.
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El segundo período de la producción dickenesiana se extiende, según
Jackson, desde 1843 hasta 1848, lapso en el que se publicaron desde Martin
Chuzzlewit hasta Christmas Carol. Aquí Dickens se acerca a una estética
realista y sus textos se tornan más analíticos. Jackson sostiene que este viraje
hacia el realismo se produce tras la frustración de las mejoras sociales que la
enmienda conocida como The Great Reform Act había prometido (JACKSON,
1941, p. 53). Dickens se horroriza ante el descubrimiento de que con la
expansión imperialista y la prosperidad financiera no se habían multiplicado
los jefes bondadosos, como Pickwick, capaces de compartir sus ganancias con
sus empleados, sino que, contrariamente, surge una nueva aristocracia
financiera más opresiva aún que la aristocracia feudal.
En la fase final de su trayectoria, momento en el que se escriben Hard
times y Our mutual friend, Jackson encuentra que la actitud crítica de la etapa
anterior da lugar a un pesimismo exacerbado. El humor característico de sus
primeras obras llega ahora solo en momentos aislados, como un alivio frente a
la melancolía predominante. La fecha que marcaría el inicio de esta fase es
significativa: 1848, año en que fracasan todas las revueltas radicales desatadas
en el continente y la reacción conservadora triunfa definitivamente.
Esta periodización se torna problemática cuando Jackson intenta atar
la evolución literaria de Dickens a los avatares del movimiento cartista inglés.
Optimismo y pesimismo del novelista se asociarían con el auge y el declive de
los movimientos obreros con los que Dickens simpatizaría. El análisis de
Jackson se fundamenta, entonces, en teorías del reflejo, su convicción es que
las obras literarias reproducen mecánicamente los hechos de la historia. Él
sostiene que la obra de Dickens es valiosa “porque representa cómo se sentía
la vida de las personas comunes y ordinarias” (JACKSON, 1941, p. 22).
Por detrás de esta concepción de la literatura como espejo, subyace una
de las malinterpretaciones más extendidas y arraigadas entre los marxistas
ortodoxos con respecto al pensamiento estético marxiano que es la que se
produjo en relación al vínculo base/ superestructura. The progress of a
radical se sustenta en la tesis de que la obra de Dickens, como parte de la
superestructura está supeditada a los cambios en la base económica. Esto no
hace más que contradecir las palabras del propio Marx que, en una carta escrita
en 1890 sostiene:
La situación económica es la base, pero los diferentes factores de la
superestructura (…) ejercen también influencia sobre el desarrollo
de las luchas históricas y, en muchos casos determinan su forma de
manera decisiva. Existe una interacción de todos estos factores… De
no ser así, la aplicación de la teoría a un período histórico cualquiera
sería aun más fácil que la resolución de una ecuación simple de
primer grado. (apud VEDDA, 2013, p. 30)
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El error de Jackson es que, al olvidar el carácter dialéctico de las
relaciones entre base/superestructura (posiblemente a causa de su
desconocimiento de la filosofía hegeliana) convierte la obra de Dickens en esa
“ecuación simple de primer grado” que Marx refiere. Tampoco advierte que lo
que estaría determinado en la obra de arte por la base económica no es, según
se destaca en la cita previa, el contenido de la obra, sino su forma. Por ello, The
progress of a radical se concentra exclusivamente en los asuntos de la
literatura de Dickens que testimoniarían su adhesión a la causa obrera.
Podemos considerar que el libro de Jackson es principalmente un esfuerzo por
apropiarse de Dickens y transformarlo en un autor de tendencia marxista
motivado por la necesidad práctica de encontrar un padre, un antecedente
prestigioso para la tradición crítica que procuraba fundar. El problema es que
el libro de Jackson es un terreno poco fértil para sembrar las bases de una
crítica literaria puesto que, a pesar de sus buenas intenciones, al autor le faltan
herramientas para analizar los recursos formales de las obras y por eso su
crítica carece de especificidad literaria.
Esto explica por qué es Christopher Caudwell, y no T. A. Jackson quien
suele ser reconocido como el fundador de la teoría literaria marxista en Gran
Bretaña. En Criticism and ideology, Terry Eagleton otro de los autores de
los que nos ocuparemos en este artículo- sostiene, refiriéndose a Caudwell que:
“there is little, except negatively, to be learnt for him” (EAGLETON, 1984, p.
21). Cuando este joven poeta y novelista se sumerge en las ideas marxistas
hacia 1934 se propone el “esfuerzo monumental” (PAANANEM, 2000, p. 35)
–o la “empresa sin futuro” (EAGLETON,1984, p. 22) – de construir una
estética marxista.
Caudwell procura encontrar una manera de abordar la literatura en
términos marxistas, pero, al mismo tiempo, preservar la idea de que la
literatura es valiosa a nivel individual, y no solo un instrumento para lograr
transformaciones en la realidad (SMITH, 1995). Partiendo del postulado de
Engels según el cual “Libertad es el reconocimiento de la necesidad” (apud
IUDIN; ROSENTHAL, 1959, p. 55), Caudwell postula que una literatura
marxista no debería funcionar como medio propagandístico de la revolución
sino como una fuerza que, al ofrecerle al sujeto una libertad alternativa, lo
vuelve consciente de las condiciones opresivas de la realidad (HYNES, 1970, p.
17).
Dickens se introduce en las reflexiones de Caudwell en Romance and
realism, publicado póstumamente en 1970. En Romance and realism,
Caudwell se propone la tarea de sintetizar la historia de la literatura inglesa,
desde Shakespeare hasta el modernismo en menos de ciento cincuenta páginas
sin perder de vista nunca el nculo entre literatura e historia. Romance and
Realism es entonces una sociología de la literatura inglesa, Caudwell entrelaza
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las innovaciones cnicas y formales en el ámbito literario con las
transformaciones sociales que las habrían impulsado.
Hay un notable esfuerzo en el estudio de Caudwell por escribir una
historia dialéctica que se oponga a las historizaciones burguesas, que habían
reducido la evolución de la literatura a una serie de antagonismos entre
tendencias opuestas: clasicismo y romanticismo, romanticismo y realismo, o
realismo y vanguardias. La tesis de Romance and realism es que las tendencias
artísticas se cruzan, coexisten y se reconcilian dialécticamente incluso dentro
de la obra de un mismo autor- para expresar las fuerzas en pugna en las
relaciones sociales burguesas. La obra de arte es para Caudwell un medio
material en el que el autor y la sociedad se encuentran, es una nueva relación
social. Pero esta especulación teórica no se sostiene en el análisis de las obras
literarias concretas que Caudwell realiza, en el cual se repone la relación de
determinación entre base/ superestructura.
Por eso, su análisis de las novelas de Dickens se concentra
exclusivamente, tal como había hecho Jackson, en el contenido social de los
textos. No obstante, si Jackson convertía a Dickens en un prócer del
radicalismo, para Caudwell su obra nunca toma distancia de la mentalidad
burguesa. El Dickens de Caudwell es un portavoz más de los valores burgueses,
como lo habían sido Defoe, Fielding o Thackeray. Esto no quiere decir,
evidentemente, que los posicionamientos de estos novelistas sean idénticos,
Caudwell sostiene que “cada uno tiene un sabor peculiar, que emana de las
relaciones sociales de su era” (CAUDWELL, 1970, p. 59). En esta cronología
trazada por Caudwell, Dickens encarnaría el apogeo de la moralidad
pequeñoburguesa:
Dickens then is the novelist of developing petty bourgeois society.
From this now ascendant class he draws his gusto, his feeling of
bustling, busy life; from its false values and illusion he draws his
sentimentalities and blindnesses. (CAUDWELL, 1970, p. 70)
La literatura dickenesiana es relevante en la periodización de Caudwell
porque capta el momento en que comienzan a producirse enfrentamientos
hacia el interior de la clase burguesa. Ya a mediados del siglo XIX la unión de
la burguesía para enfrentar a la aristocracia como enemigo común se
desbarata; paulatinamente algunos burgueses -como Scrooges o Grandgrinds
en las novelas de Dickens- sobrepasan al resto y desplazan a la aristocracia
capitalista del siglo XVIII, los menos exitosos conforman la clase oprimida por
los Scrooges, la pequeño-burguesía.
Caudwell señala que, si bien es cierto que, en las novelas de Dickens,
pequeño burgueses y pobres se alían política y emocionalmente, no son las
clases obreras las que protagonizan sus relatos, sino las clases medias bajas y
sus dependientes, todos “sufrientes víctimas de la gran burguesía”. Son los
Oliver Twist y los David Copperfield los héroes de Dickens y no los Charley
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Bates o “Pata enharinada”. El Dickens de Caudwell no puede nunca ser un
radical porque observa al proletariado como un grupo de gente oscura,
distante, que puede ser depositaria de la compasión y la pena pero no mucho
más que eso; la clase obrera carece en sus historias de agencia propia, no los
vemos actuando sino soportando pasivamente sus condiciones de
existencia(CAUDWELL, 1970, p. 69); solo los personajes pequeño burgueses
poseen en la literatura dickenesiana el poder de actuar y transformar su
realidad, si el proletariado soporta, la aristocracia es una clase estática o
decadente. El mundo narrativo está siempre controlado por la burguesía
2
.
El interés de Dickens por los sectores obreros no se debe entonces a que
los considere agentes de una posible revolución, para Caudwell el proletariado
es un arma que Dickens emplea en sus relatos para denunciar las injusticias de
la clase más poderosa, la compasión se transforma en su obra en la vara con la
que el pequeño burgués puede golpear a la nueva gran burguesía capitalista. El
triunfo de las novelas de Dickens, con su humor grotesco y su sentimentalismo
exagerado, que pronto desplaza la refinada y aristocrática literatura de
Thackeray es testimonio, para Caudwell, de ese momento en que su clase
estaba desplazando a la clase de Thackeray.
Así la literatura dickenesiana es en Romance and realism un estadío de
una historia de la literatura concebida como una evolución natural, que
derivaría, finalmente en la desintegración de la cultura burguesa, que se
evidencia en el arte de vanguardias. De esta forma, Caudwell termina
reponiendo, a pesar de su defensa de la militancia política activa, la
interpretación mecanicista del marxismo según la cual, la disolución de la
sociedad de clases se produciría como una consecuencia natural de su misma
dinámica evolutiva, de modo tal que Caudwell termina incurriendo en el
mismo error que le había adjudicado a Dickens: subestimar la potencialidad
de la acción de las clases proletarias.
2
Caudwell se sustenta en ideas del propio Marx sobre los autores burgueses: “What makes
them representatives of the petty bourgeoisie is the fact that in their minds they cannot
transcend the limits which the latter cannot transcend in life, that they are therefore driven
theoretically to the same tasks and the same solutions to which material interest and social
position drive the latter in practice” (apud PRAWER, 1978, p. 182), para llegar a la conclusión
de que Dickens nunca podría trascender en su literatura su condición middle class. Sin
embargo, S.S Prawer sostiene que Marx creía que la gran literatura podía elevarse por sobre la
ideología prevalente y por eso, en algunos casos se vuelve un área de trabajo no alienado, en la
que el autor puede expresarse como ser humano total. El escritor es s independiente que
cualquier otro trabajador y puede elegir libremente con qué clase aliarse (PRAWER, 1978, p.
404).
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Apartado II. George Orwell y Edmund Wilson: lecturas disidentes
Si los autores que nos ocuparon en el apartado anterior suscribían a un
marxismo que podría catalogarse como ortodoxo, el modo en el que George
Orwell y Edmund Williams interpretan el pensamiento de Marx es sumamente
heterodoxo. En el caso de Orwell, su posición entre los intelectuales de
izquierda resulta incluso, incómoda (ANDERSON, 1980). En uno de sus más
célebres ensayos políticos The lion and the unicorn: socialism and the English
genius (1941) critica severamente a la intelectualidad de clase media europea
que, escindida del pueblo, intentaría imponer una revolución “desde arriba”.
Orwell se refiere a la incapacidad del socialismo inglés para resolver los
problemas de los trabajadores y a la vez, sostiene que la promesa marxista de
una revolución del proletariado es “imposible” y “anticuada” (ORWELL, 1982,
p. 33). Por eso, Orwell propone que, dada la situación particular del estado
inglés, cuyas instituciones democráticas tenían ya una extensa tradición, el
marxismo allí debería pugnar por una revolución moderada, deslizando así
una tácita crítica al marxismo soviético del que Orwell fue un conocido
detractor:
It will not be doctrinaire, nor even logical. It will abolish the House
of Lords, but quite probably will not abolish the Monarchy. It will
leave anachronisms and loose ends everywhere, the judge in his
ridiculous horsehair wig and the lion and the unicorn on the soldier’s
cap-buttons. It will not set up any explicit class dictatorship. It will
group itself round the old Labour Party and its mass following will
be in the Trade Unions (...). But it will never lose touch with the
tradition of compromise and the belief in a law that is above the
State. (…) It will show a power of assimilating the past which will
shock foreign observers and sometimes make them doubt whether
any revolution has happened. (ORWELL, 1982, p. 76)
No es este el espacio indicado para discutir la plausibilidad de una
revolución que mantenga vigente las estructuras sociales del capitalismo ni el
contrasentido implícito en el anhelo de un proceso revolucionario que reafirme
el status quo hasta el extremo de pasar desapercibido. Nuestra intención es
ilustrar las contradicciones internas del pensamiento de Orwell, dado que estas
mismas galimatías están presentes en el ensayo que escribe sobre Dickens.
Este texto, al que Orwell llama simplemente “Charles Dickens”, está
incluido en el libro de ensayos sobre literatura Inside the whale. El título del
ensayo que da nombre al libro no es sino una acusación contra autores a los
que el texto se refiere, Orwell postula que el comunismo de poetas como
Auden, Spender o Isherwood no es más que una actitud escapista, una postura
similar a la de Jonás que se refugia cómodamente en el estómago de la ballena,
a salvo de la realidad que lo reclama. “Charles Dickens” cuestiona,
precisamente, si el autor de Great expectations, también fue uno de estos
intelectuales “adentro de la ballena”.
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El ensayo de Orwell no se plantea como un análisis literario ni expresa
una preocupación estética por la obra de Dickens, Orwell no dedica ni una línea
a los procedimientos formales que estructuran las novelas de su par victoriano,
en cambio, el ensayo manifiesta abiertamente su intención de hacer
comparecer a Dickens frente al público lector para establecer un juicio sobre
su posición ideológica: “Where exactly does he stand, socially, morally, and
politically?”- se pregunta Orwell- e inmediatamente responde: “he was not a
‘proletarian’ writer” (ORWELL, 1940, p. 11).
El autor de 1984 coincide con las consideraciones de Caudwell acerca de
la representación de la clase obrera en la literatura dickenesiana, también para
él el centro de interés en los relatos de Dickens se ubica en las clases medias.
Orwell se dedica a estudiar la representación dickenesiana del pueblo
en sus novelas históricas Barnaby Rudge y A tale of Two Cities y no encuentra
la metamorfosis en la configuración de las masas que Jackson destaca en The
progress of a radical¸ en ambas novelas la revolución popular es figurada
como un monstruo despertado por los abusos de los aristócratas que son
castigados por su maldad a nivel individual y no por sus costumbres de clase.
El Dickens orwelliano no progresa, ni se vuelve radical, como el de Jackson, en
sus dos relatos sobre revueltas populares la intención es la misma: hacer
manifiestas las inequidades que desencadenaron las revueltas sociales con
miras de corregirlas justamente, para evitar que la revolución suceda
(ORWELL, 1940, p. 23). Asimismo, Orwell sostiene que todas las críticas que
Dickens dirige a la sociedad apuntan más a lograr transformaciones a nivel
humano que a modificar las estructuras y esta demanda de mejoras
espirituales no son más que la coartada de aquellos que no quieren
comprometer el status quo.
Así, Orwell condena a Dickens por realizar una crítica social que es
exclusivamente moral, por no advertir que es el orden económico lo que no
funciona como sistema. Lo paradójico del enfoque de Orwell es que censura a
Dickens por moralizar la realidad, pero, por medio de esta misma censura es
Orwell quien establece un juicio ético sobre el novelista. En ciertos pasajes, el
autor expresa su disgusto ante el hecho de que Dickens no se ajustara a las
expectativas de un “deber ser del escritor “comprometido”, que Orwell se
forja:
He grown up near enough to poverty to be terrified of it, and in spite
of his generosity of mind, he is not free from the special prejudices
of the shabby-genteel. Dickens also shows less understanding of
criminals than one would expect of him. (ORWELL, 1940, p. 42)
Más adelante, se amonesta moralmente a Dickens por no atacar la
propiedad privada, por apostar a lo individual y no a lo comunitario. El ensayo
de Orwell resulta anacrónico, puesto que parece reclamar a Dickens no haber
sido “lo suficientemente marxista” como para comprender que el burgués
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opresor es parte necesaria en la evolución de un sistema, ni haberse despojado
de la estrechez de miras típica de la pequeña burguesía, sin considerar si las
condiciones estaban dadas para que, a mediados del siglo XIX, en pleno auge
del capitalismo, un autor de origen burgués pudiese transformarse en defensor
consciente de la causa revolucionaria.
Resultaría lícito reevaluar entonces si, independientemente de la
adhesión personal de Orwell al marxismo, su ensayo sobre Dickens puede ser
considerado crítica literaria marxista. Atendiendo a la pregunta disparadora
del texto, Edmund Wilson arribaría a la conclusión de que no. En el ensayo
Marxism and literature, Wilson elucida:
Marx and Engels, unlike some of their followers, never attempted to
furnish social economic formulas by which the validity of Works of
art might be tested (…). It was not characteristic of Marx and Engels
to judge literature, that is, literature of power and distinction, in
terms of its purely political tendencies. (WILSON, 1952, pp. 188-9)
Al reflexionar sobre las tensiones entre ideología y política en el campo
de la teoría literaria, Wilson sostiene que “el marxismo por solo no puede
decirnos nada sobre si una obra de arte es buena o mala” (1952, p. 202), la
calidad de la obra no es para él política
3
. No obstante, eso no significa que la
teoría marxista no tenga nada para aportarle a la crítica literaria, por el
contrario, “lo que este puede hacer es decirnos mucho sobre el origen y
significado social de la obra de arte” (WILSON, 1952, p. 202). La tarea de la
crítica literaria es, para Wilson, situar la obra en su contexto literario,
intelectual y político para explorar sus implicancias sociales.
A diferencia de Jackson o Caudwell, Edmund Wilson recibió una
educación formal de elite y se graduó en la Universidad de Princeton. Su
acercamiento al marxismo se produce en los años 30, a partir del desastre
económico en los Estados Unidos. Durante esta década viaja a la Unión
Soviética y escribe una épica del socialismo, To the Finland station. Ya a partir
de mediados 40´, decepcionado por los abusos del régimen stalinista, Wilson
se distancia del socialismo soviético, y asume una actitud que roza lo elitista en
sus valoraciones estéticas
4
. Empero, tampoco en su período más entusiasta con
las ideas de Marx, Wilson fue un marxista dogmático, sino que su enfoque se
3
Aquí Wilson toma distancia de los métodos de análisis de Jackson, Caudwell e incluso Orwell.
Este último sería tildado por Wilson como un simple “estudiante” del marxismo: " he is often
inconsistent; his confident predictions often turn out untrue; a student of international
socialism, he is at the same time (…) not free from a certain provincialism; and one frequently
finds him quite unintelligent about matters that are better understood by less interesting and
able critics” (Reseña publicada en New Yorker, 25 mayo 1946).
4
Wilson se vale de la antigua categoría de “gusto” para establecer una valoración jerárquica de
los textos literarios que es emocional y subjetiva. Deplora el declive de la “apreciación” en favor
del análisis puramente técnico o sociológico de los textos literarios. (WELLEK, 1978, p. 109)
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nutre de las más diversas fuentes. René Wellek objeta este eclecticismo en el
artículo que escribe sobre Wilson:
I have tried to show that Wilson cannot be simply lacking a coherent
point of view. He early adopted Taine's determinism and when he
was converted to Marxism assimilated the Marxist approach,
deprived of its dialectic, to a general historical view of literature and
literary study. Marxism became a variety of genetic explanation
alongside psychoanalysis. Judicial criticism, the decision of what is
good and what is bad in art, remained reserved to a judgment of taste
independent of history Marxism. (WELLEK, 1978, p. 118)
En la cita previa, Wellek alude a una de las mayores innovaciones de la
propuesta crítica de Wilson: incorporar a la teoría literaria marxista el
psicoanálisis y las ideas freudianas que habían sido rechazadas por el
marxismo vulgar como el fruto de una ideología burguesa e individualista. La
fusión entre marxismo y psicoanálisis es la herramienta fundamental que
Wilson emplea para elaborar su interpretación de la literatura dickenesiana.
The two Scrooges (1941) es un estudio debidamente influyente entre los
estudios dickenesianos porque tomó justamente uno de los personajes más
entrañables para el público con la intención de subvertir la imagen establecida
de Dickens como el autor “navideño”, el defensor de los buenos sentimientos
y la compasión middle class. Wilson considera que es necesario rescatar el
costado más oscuro y siniestro de las novelas de Dickens que la crítica solía
desatender:
The meaning of Dicken´s work has been obscured by that element
of the conventional which Dickens himself never quite outgrew. It is
necessary to see him as a man in order to appreciate him as an artist-
to exorcise the spell which has bewitched him into a stupid piece of
household furniture to give him the proper rank as the poet (…) who
saw clearest through the covering and the curtains. (WILSON, 1941,
p. 9)
El despliegue de lecturas de Wilson es apabullante: él recorre toda la
obra de “el mejor escritor dramático que Inglaterra tuvo desde Shakespeare”
(WILSON, 1941, p. 6) con el objeto de develar el contenido de violencia y
angustia que había sido silenciado, velado. El Dickens de Wilson es el que
escribe sobre el mundo de los rebeldes (Tale of two cities), los criminales
(Martin Chuzzlewit), los ahorcamientos (Barnaby Rudge), el de las
instituciones opresivas como Newgate (Great expectations) o Bedlam (Old
curiosity shop).
Todos estos hechos violentos aparecerían en los relatos dickenesianos
como un síntoma. Hay un episodio biográfico que se vuelve central, postula
Wilson, para comprender el desarrollo posterior de la obra de Dickens y es el
colapso económico de la familia, cuando el padre, John Dickens, es enviado a
la cárcel por deudas (episodio que aparecería representado en Little Dorrit)
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Charles se ve obligado a abandonar la escuela y es enviado, como David
Copperfield, a trabajar en un almacén. Este evento, sumamente humillante
para él, se convertiría en un trauma que signaría su vida y su obra (cf. WILSON,
1941, p. 5).
De acuerdo a la interpretación freudiana de Wilson, los dos Scrooges: el
misántropo, ávido de dinero, que odia la navidad y el regenerado y afectuoso
benefactor del final del relato, son en realidad la encarnación de la
personalidad dual y contradictoria del propio Dickens, escindido entre su
imagen pública de respetable hombre de clase media, y su atormentada
interioridad. La abrupta interrupción de la inocencia infantil, ocasionada por
el proceder cruel de las instituciones sociales, genera una secuela que pueden
rastrearse en la obra de Dickens: la constante identificación con las figuras del
rebelde y el criminal.
El Dickens rebelde aparece en Barnaby Rudge, superficialmente
Dickens parece amonestar a los rebeldes que encabezaron los Gordon Riots
por su brutalidad y fanatismo, pero, implícitamente, el Dickens de Wilson se
identificaría con ellos. No es casual que el clímax de la novela se produzca
cuando los amotinados incendian la prisión de Newgate, Wilson encuentra
aquí un afán de satisfacción personal del autor que vengaría simbólicamente
el encarcelamiento del padre.
The two Scrooges sostiene que todas las novelas dickenesianas
comparten una misma aspiración social: mostrar a la clase dominante,
separada del pueblo, cómo son, piensan y hablan las personas a las que
gobiernan (WILSON, 1941, p. 68). Si bien Wilson considera que la capacidad
de análisis político de Dickens era limitada, aun así, postula que fue “el más
antivictoriano de los victorianos” (WILSON, 1941, p. 3). Es posible encontrar
al Dickens rebelde en su crítica contra las instituciones, cuyos representantes
son siempre estúpidos o crueles o ambas cosas a la vez. A través de personajes
como Murdstone, Dickens se opone a la hipocresía de la sociedad victoriana
que recubre con una pátina de rigurosidad moral los vicios de la explotación
cruel y la avaricia de su sistema económico. The two Scrooges, discute entonces
con el ensayo de Orwell: en primer lugar, se afirma que Dickens, lejos de
moralizar, desdeñaba la falsa circunspección burguesa. Pero, además, la
censura de Orwell al comedimiento de Dickens se percibe como injusta, se
mencionan aquí varias oportunidades en las que Dickens tuvo que moderar
opiniones y suprimir desenlaces por temor a que pudiesen contrariar a un
público del cual no podía prescindir (cf. WILSON, 1941, p. 107).
Pero Dickens no es solo el rebelde, también se identificó con el criminal.
Wilson menciona varios episodios biográficos que probarían la dureza y
crueldad de la que Dickens era capaz: su conducta con su esposa después del
divorcio, su despotismo para con sus hijas; el Dickens de Wilson se asemeja
más a sus propios villanos carismáticos, como Quilp, que a la bondadosa (y
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según Wilson, kitsch) Pequeña Nell. Son estos malvados que, aunque
perversos, fascinan al público, los que salvan a la literatura de Dickens, lo más
rico de su obra. El autor de The two Scrooges se refiere a las dificultades de
Dickens, sobre todo en sus primeras novelas, para representar personajes
complejos, que en lugar de parecer figuras planas, tengan las contradicciones
propias de los seres humanos reales: “The only complexity of which Dickens is
capable is to make one of his noxious characters become wholesome, one of his
clowns turn out to be a serious person.” (WILSON, 1941, p. 65) Empero,
Wilson también sostiene que las contradicciones melodramáticas, el constante
paso del sentimentalismo al humor, son otra de las consecuencias de la
inestabilidad emocional del autor. Esto quiere decir que, las abruptas
transformaciones de los personajes se producen en su obra no porque Dickens
no sepa cómo representar los procesos psicológicos, tal como afirmaba James,
sino que estarían expresando los cambios de humor del propio autor.
Wilson encuentra una motivación psicológica para cada una de las
supuestas “debilidades” formales de la literatura dickenesiana, la
inverosimilitud de sus historias, en las que todo conflicto halla una solución
mágica, se justifica en la necesidad del Dickens niño de evadirse de una
realidad de pobreza y descontento, hay una móvil de clase en la predilección
de Dickens (y su público) por la literatura escapista. Como el propio Dickens
había manifestado en una carta: “the so happy and yet so unhappy existence
which seeks its realities in unrealities, and finds its dangerous comfort in a
perpetual escape from the disappointment of heart around it” (apud WILSON,
1941, p. 66). Asimismo, el histrionismo de Dickens, el carácter teatral de sus
obras y su propia necesidad de estar constantemente “actuando” un personaje
público -Dickens incluso se dedicaría a representar sus novelas en lecturas
públicas-se explica también en esta necesidad de Dickens de evadirse de sus
condiciones de existencia, de “ser otro”.
Empero, uno de los aspectos más interesantes de The two Scrooges es
que Wilson nunca olvida que no fueron solo factores psicológicos los que
condicionaron las novelas de Dickens. Su exhibicionismo no se debió
exclusivamente a sus carencias emocionales, sino también a que él debía
satisfacer las demandas de un público del cual dependía económicamente. El
Dickens de Wilson es también un emblema de las dificultades del escritor en
el capitalismo, Wilson observa el modo en el que el sistema de mercados y la
profesionalización de la labor del escritor repercuten en la literatura
dickenesiana: forzado a atender a las ventas, Dickens elimina personajes que
no consiguen la aprobación del público y extiende las líneas narrativas que
impactan en la audiencia. Incluso, tras su escandaloso divorcio, elige
transformar a su amante en personaje para alimentar el morbo de los lectores.
En este paralelismo que traza Wilson entre obra y vida, Dickens no puede
cancelar sus largas giras, a pesar de las advertencias de sus médicos y así
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sucumbe a su propia avidez por acumular dinero – secuela traumática de una
infancia llena de carencias- tal como le había sucedido a sus alter- ego
ficcionales, Quilp o Jaspers.
En Two Scroooges, la crítica literaria marxista se entiende ya no como
un examen de la corrección ideológica en los contenidos de la literatura de
Dickens, sino como una reflexión acerca de las condiciones sociales y materiales
que la llevaron a ser como fue. Por eso, Wilson puede afirmar que fue el mejor
de sus tiempos, a pesar de no haber escrito como James.
Apartado III. Lukács y Adorno: Dickens leído por la academia
alemana
En el presente apartado analizaremos el pensamiento de los únicos dos
autores no anglosajones incluidos en el corpus de este artículo. György Lukács
y Theodor Wiesengrund Adorno se forman ambos en la academia alemana y
comienzan a desarrollar su obra en ese mismo ámbito. Eso supone una
fundamental diferencia, el dominio de la teoría marxiana y sus fuentes teóricas
de estos dos filósofos fue mucho mayor que el que podían tener autodidactas
como Jackson o Caudwell e incluso más riguroso que el de los críticos
culturales anglosajones, Raymond Williams y Terry Eagleton. Tanto Lukács
como Adorno esclarecen las categorías marxianas vinculadas al arte y la
literatura, pero además logran sistematizarlas en una teoría y así dotan al
marxismo de una estética propia.
Gracias a su cabal conocimiento de la dialéctica hegeliana, Lukács
discierne que relaciones de base/ superestructura deben ser entendidas
dialécticamente, como de recíproca dependencia (cf. LUKÁCS, 2013, p. 257).
Es común encontrar el error, incluso en publicaciones académicas, de
catalogar a Lukács como un marxista ortodoxo, defensor del Realismo
Socialista y la teoría del arte como reflejo/espejo de la realidad. No obstante,
nada hay más desacertado, Lukács considera la producción literaria como
mímesis, pero no en tanto reproducción de la realidad inmediata. Cada novela
es una operación crítica que establece una relación de contraste con el mundo
externo en tanto totalidad. Por consiguiente, la teoría lukacsiana se opone a la
estética naturalista que imita detalles ornamentales de la realidad, y considera
que lo que la novela refleja es la totalidad de las relaciones sociales: lenguaje,
costumbres, usos e instituciones, para mostrar un estadio de desarrollo de esa
sociedad: “la novela intenta descubrir y construir configuradoramente la
oculta totalidad de la vida” (LUKÁCS, 1985, p. 327).
El singular vínculo entre la literatura y la realidad es reevaluado en La
novela histórica (1936-7); es en este texto que Lukács aborda la obra de
Dickens. La novela histórica se escribe en un punto de inflexión en el
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pensamiento lukacsiano, si hasta ese entonces Lukács había adoptado una
actitud de no conciliación con el mundo burgués, la inminencia de la guerra y
la avanzada fascista generan un reposicionamiento; la cultura burguesa deja
de ser catalogada como “falsa conciencia” (Historia y conciencia de clase,
1923), Lukács pretende aquí rescatar el pasado liberal y democrático de la
burguesía frente al empoderamiento de diferentes movimientos del fascismo
europeo. A propósito, Miguel Vedda sostiene que: “De lo que se trata [La
novela histórica], pues, es de recuperar las tradiciones burguesas progresistas
a fin de volverlas aprovechables para el socialismo, en lugar de considerar a
aquellas como mero preludio del totalitarismo hitleriano.” (2013, p. 214) Este
gesto de rescatar del pasado aquello que es útil para el presente es para Lukács
la característica fundamental del período fundacional de la novela histórica,
encabezado por Walter Scott.
Lukács reivindica el carácter popular y democrático de las novelas de
Scott, si bien el novelista escocés no fue el primero en emplear la historia como
material literario, a diferencia de sus predecesores, los románticos, Scott no
escribe relatos sobre grandes héroes e individuos extraordinarios, su gran
innovación fue relatar los episodios históricos a través de la representación de
sus repercusiones en las vidas de personajes ficcionales, que pertenecen
siempre a sectores medios y que, asimismo, son personas “medias”, seres
prosaicos con los cuales el amplio público lector al que pretendía llegar podía
identificarse. Más allá de su intención de escribir en un lenguaje comprensible
para un público que no estuviese solo integrado por un pequeño grupo
aristocrático de lectores, Lukács encomia a Scott por haber creado obras
enraizadas en las experiencias de la vida de las masas, que eran, en esta etapa
del pensamiento lukacsiano, el foco de interés (cf. VEDDA, 2013, p. 217).
Esto deja entrever mucho sobre la concepción de Lukács sobre las
relaciones literatura/ ideología, él pondera a Scott a pesar de su tendencia
conservadora. La tarea de la crítica literaria marxista no es evaluar el
pensamiento político del autor sino analizar la ideología que la obra expresa,
puesto que esta, es capaz de expresar saberes que el sujeto empírico que las ha
creado desconoce (MARANDO, 2014). Este fenómeno es explicado en
Prolegómenos a una estética marxista:
La sensibilidad del talento observador hace nacer figuras y
situaciones cuya propia gica interna rebasa los prejuicios de la
personalidad inmediata, y que entran en conflicto con ésta. (…) La
vida propia de las figuras artísticas y la lógica interna de las
situaciones han sido registradas como características del arte
auténtico. En esa vida propia se manifiesta la conexión social
percibida; el artista la capta espontáneamente. (LUKÁCS, 1965, p.
212)
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De este modo, Lukács demuestra que son vanos los debates planteados
por Jackson, Caudwell y Orwell, si Dickens fue o no un radical resulta
indiferente, su obra podría serlo aun a pesar suyo.
Dickens es incluido en La novela histórica en el marco del capítulo
titulado “La crisis del realismo burgués”. Los hechos acaecidos en toda Europa
en 1848 clausuran la era progresista de la clase burguesa, e inauguran un
período reaccionario y apologético. Como ya se ha afirmado anteriormente en
este trabajo, tras las frustradas rebeliones de 1848 la unión entre burguesía y
pueblo se quiebra, y, en consecuencia, también el enlace entre artistas y vida
popular se deshace, muchos autores antes humanistas, como Carlyle,
comienzan a percibir a las masas como una amenaza que se cierne sobre las
instituciones “civilizadas”. Estas transformaciones, según el enfoque
lukacsiano, repercuten en la forma de las novelas históricas. Ante la
decepcionante evolución de la burguesía y el aborrecimiento al capitalismo
imperialista y financiero, ciertos intelectuales se repliegan en el aislamiento.
La novela histórica se vuelve entonces un género escapista, sus creadores
intentan evadirse hacia el pasado o el exotismo para olvidar un presente
alienado, que infunde temor (cf. LUKÁCS, 1966, p. 231).
Sin embargo, Dickens es apartado de esta tendencia decadentista que
comenzaba a avizorarse, Lukács lo emparenta con el linaje de Scott y sostiene
que es “en sus rasgos esenciales, autor clásico de novela y solo en la periferia
se ve contagiado de tendencias decadentes” (LUKÁCS, 1966, p. 301). No hay
exotismo en la obra de Dickens, sus novelas preservan el realismo de la etapa
inaugural del género, Dickens plasma poéticamente relaciones sociales y
estructuras de poder tal como lo había hecho Scott. Es decir, que las constantes
contradicciones presentes en la literatura dickensiana no encontrarían su
origen en procesos psicológicos del autor -como proponía Wilson-, sino que
serían el resultado de las contradicciones de su época.
Dickens también coincide con Scott en su predilección por la medianía,
Oliver Twist, Pip o Nicholas Nickleby no se distinguen ni por su inteligencia ni
por su talento ni por su belleza. Mediante sus fábulas, Dickens pretendería
hallar un terreno neutral en el que pudieran establecerse relaciones entre las
fuerzas sociales opuestas, sus héroes son por eso “mediadores”, que pueden
vincularse con integrantes de ambos extremos de la sociedad.
Lukács analiza las dos novelas dickenesianas dedicadas a la
representación de episodios históricos: Barnaby Rudge y Tale of two cities;
en ambos casos se abordan los conflictos sociales que desencadenaron
procesos revolucionarios y se evidencia el rechazo ante los crueles métodos de
la explotación feudal. Dickens demuestra ser plenamente consciente acerca de
la imposibilidad de sostener una sociedad tan injusta como la que se
representaba en sus novelas, sin embargo, las inequidades y abusos son
interpretados como un problema moral. Así, Dickens transforma lo social en
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ético cuando disimula el vínculo entre los problemas vitales de los
protagonistas y los conflictos sociales de era en las que les tocó vivir. La
revolución queda relegada entonces a ser mero trasfondo, un escenario
propicio para revelar cualidades y miserias humanas. Lukács sostiene que en
la literatura dickenesiana la historia “se privatiza” y así, se malogra su
potencial como crítica social
5
(cf. LUKÁCS, 1966, p. 301).
El autor de La novela histórica, coincide con Orwell en cuanto a la
índole moral de la crítica dickenesiana, empero, no incurre en el error de juzgar
también él moralmente al propio Dickens, Lukács ya no considera que Dickens
hubiera fallado a nivel personal al no comprometerse con la causa radical, en
cambio, relaciona el pensamiento del novelista inglés con un entorno
intelectual y social que explica las causas que lo habrían llevado a refugiarse en
lo privado en lugar de intervenir en la praxis.
La relación de György Lukács y Theodor Adorno es, cuanto menos,
conflictiva. Impulsado por uno de sus primeros mentores, Siegfried Kracauer,
Adorno lee Historia y conciencia de clase, texto que ejercería una influencia
significativa en su propia producción teórica (JEFFRIES, 2018, p. 56). Serían
las precisiones lukacsianas en torno a conceptos como “falsa conciencia” o
“reificación” las que suscitarían en Adorno un desencanto con respecto a las
posibilidades utópicas de la acción política del proletariado. A propósito de
esto, Jeffries sostiene que este particular enfoque en la cosificación de las
relaciones humanas “hizo virar al marxismo del optimismo agitador
del Manifiesto comunista a la resignación melancólica que se filtra a través de
la Escuela de Frankfurt” (JEFFRIES, 2018, p. 57). En su lectura de Historia y
conciencia de clase, Adorno invierte el valor que Lukács les otorgaba a las
masas. Si, justamente, Lukács consideraba, ya al escribir este texto, que la
revolución no podía depender de la acción de una elite intelectual elevada por
sobre el pueblo, sino que debía encontrar en las masas su actor principal,
Adorno desestimaría las posibilidades de acción de las masas
6
.
Ante la imposibilidad de intervenir activamente en la política, Adorno
se concentra en el desarrollo filosófico y procura comprender los mecanismos
que posibilitaron la dominación cultural de la burguesía capitalista. En la
Dialéctica de la Ilustracn Adorno y Horkheimer sostienen que la Ilustración
convirtió mediante su política de universalización de la realidad, a la verdad en
sinónimo de la no contradicción. Es así como la burguesía ilustrada logró la
5
Hay que considerar que esto no sucede del mismo modo en todas sus novelas. Lukács admite
que las novelas históricas de Dickens son las más débiles en su análisis social. Al escribir sobre
el mundo contemporáneo la realidad misma llevaría a Dickens “que tiene los ojos abiertos” a
detectar la raíz social de los problemas, según argumenta Lukács. Lo cual no deja de remedar
la crítica a un Dickens que detecta con sus sentidos los problemas de su entorno, pero carece
de la capacidad de reflexión necesaria para realizar abstracciones.
6
Por esta actitud pesimista, Lukács afirmaría que Adorno y los miembros de la Escuela de
Frankfurt querían habitar en un “Gran hotel abismo” (JAY, 1989, p. 103).
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liquidación de lo individual y heterogéneo y forjó un culto de masas. En esta
cultura de masas, el arte es simplemente una reproducción cnica que se
vuelve mercancía y promueve la aceptación pasiva de lo existente. Adorno y
Horkheimer denunciarán que la industria cultural es la más refinada forma de
dominación al servicio de la opresión (cf. JAY, 1989, p. 116).
Para combatir estas expresiones culturales mercantilizadas, que solo
son funcionales al mantenimiento del status quo, Adorno respalda una forma
de arte autónoma, que no concilie con la industria cultural. La idea que subyace
en su propuesta es que, si la obra de arte es sencillamente decodificable, si no
presenta ningún desafío a su público, es un producto de consumo, de carácter
positivo, que sostiene el orden social. El arte “auténtico”, en cambio, posee un
carácter enigmático, no entrega ninguna respuesta lógica a una pregunta
lógica; no debe ser pensado para las masas. La concepción de arte adorniana
podría ser por eso catalogada como elitista, exclusivista (MITIDERI, 2017, p.
110).
No obstante, esto no significa que Adorno- ni ningún otro miembro del
Instituto de Investigación Social- suscribiera a la teoría estética del “arte por el
arte”, Adorno postula que toda obra de arte posee un carácter doble: es
simultáneamente una entidad autónoma y un hecho social. El arte es libre,
pero esa libertad se sitúa en un contexto social, cada obra se carga “el
inconsciente de la historia de su tiempo”, pero ese contenido histórico es
irreductible al concepto, dado que el arte auténtico no se somete a la razón
instrumental. De este modo, el arte adorniano posee una fundamental función
social que no radica en su “mensaje comprometido” sino precisamente en su
autonomía (MITIDERI, 2017, p. 112). Toda obra que se halle estructurada en
su propia ley inmanente, que ejerza su libertad frente al intento de dominio de
la razón totalizante y la industria cultural se transforma en un acto de
denuncia, que critica a la sociedad con su mera existencia, gracias a su
negatividad. En su Teoría estética Adorno sostiene que:
No hay nada puro, completamente elaborado de acuerdo a su ley
inmanente, que no critique implícitamente, que no denuncie la
humillación de una situación que tiende a la sociedad de
intercambio total: en ella todo es solo para otro. Lo asocial del arte
es la negación determinada de la sociedad determinada. (ADORNO,
2011, p. 298)
Solo porque y no a pesar de que el arte imagina un mundo otro, a
contrapelo de la realidad, es que puede, paradójicamente, ofrecer una
alternativa crítica. Así, el arte autónomo es el que cuenta con un mayor poder
contestatario y revolucionario, y no aquel que proclama contenidos radicales,
pero sometiéndose a la lógica de dominación burguesa. Respecto a la
naturaleza de este contenido de verdad que posee la obra de arte (cf. ADORNO,
2011, p. 14).
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Es decir que, los antagonismos de la realidad aparecen en la obra de
arte, pero en la inmanencia de su forma, el contenido social de un texto
literario, debe buscarse en sus estructuras formales y no en su mensaje
manifiesto.
Esta premisa de análisis es respetada rigurosamente por Adorno ya
desde sus escritos de juventud, tales como la “Conferencia sobre La tienda de
antigüedades de Dickens” publicada por primera vez en 1931 e incluida,
posteriormente en Notas sobre literatura (1958). En este ensayo, Adorno se
aboca a uno de los textos más atípicos entre la producción de Dickens, que
escapa a la categoría de “novela realista” con la que suele catalogarse
indiscriminadamente a toda su obra. Adorno lee a The old curiosity shop en
tanto alegoría en la cual, su protagonista, la ingenua y pura Pequeña Nell es la
“víctima de los poderes míticos del destino burgués y al mismo tiempo el pálido
rayo de luz que fugazmente ilumina el mundo burgués” (ADORNO, 2009, p.
497). Perseguida por el malvado prestamista Quilp, encarnación del capitalista
burgués ávido de lucro, la Pequeña Nell escapa junto con su abuelo de la tienda
de antigüedades que habían perdido en manos de Quilp y que funciona en este
sistema alegórico como representación del capitalismo. Sin embargo, la niña
sucumbe durante su intento de evadirse del “mundo de los objetos” y se
convierte, dentro la interpretación adorniana, en el chivo expiatorio de la
pasión por el juego, las ansias de acumular fortuna de su abuelo, y el afán de
dominio de Quilp. El Dickens de Adorno es como el de Wilson una figura que
toma distancia del estereotipo de “autor de cuentos de hadas con final feliz”
con el que se lo identificaba; es un artista melancólico y desesperanzado que
denuncia que la pobreza, la desesperación y la muerte, son fruto del mundo
burgués (ADORNO, 2009, p. 495). En The old curiosity shop, se manifiestan
al mismo tiempo la esperanza de escapar de dicho mundo burgués y el
desaliento porque el precio que se paga por ello es la muerte. El viaje de la
Pequeña Nell y su abuelo pueden ser interpretados como peregrinaje mítico,
como un pasaje del infierno al paraíso, o un retorno a la infancia, empero el
desenlace de la novela, termina demostrando que no existe una escapatoria al
sistema, la idea de que actuamos libremente, en el mundo capitalista, es una
ilusión.
La forma de la alegoría cumple, según afirma Adorno, un papel
protagónico en la construcción de este significado, dado que en los textos
alegóricos cada símbolo no se despliega libremente sino en función de lo
simbolizado. “En la alegoría todo está prescripto de antemano” (2009, p. 500)-
sostiene Adorno, ni siquiera el demonismo de Quilp es tan sádico como parece,
puesto que él también cumple un rol preasignado por el sistema.
Sin embargo, el carácter mítico del viaje de la Pequeña Nell contrasta
con el escenario en el cual se desarrolla, la ciudad industrial que enferma a sus
habitantes. Adorno advierte que The old curiosity shop es una novela no
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armónica, repleta de disonancias, en la que confluyen y se contraponen dos
tiempos: el tiempo arcaico del que provienen sus personajes y el tiempo
contemporáneo al que pertenecen sus conflictos.
Pero, además, el filósofo crítico alemán encuentra que la negatividad
está presente en la estructura de la novela, dado que, si bien su temática se
relaciona con el mundo burgués, Dickens opta por representarla desde la
perspectiva de una concepción de mundo diferente, a través de una forma
preburguesa, como es la alegoría. Los males del capitalismo son narrados en
The old curiosity shop bajo una mirada extrañada, que no comprende ni los
acontecimientos de la trama ni la ideología que motiva las conductas de
algunos de los personajes. Adorno sostiene que “La forma preburguesa de las
novelas de Dickens se convierte en un medio de disolución de precisamente el
mundo burgués que representan” (ADORNO, 2009, p. 496), Dickens explota
en esta historia el poder del anacronismo. La imposición de una perspectiva
ajena al sistema representado funciona como un medio para desnaturalizarlo
y cuestionarlo (HOLLINGTON, 2009, p. 2).
Para construir su interpretación de lo alegórico en la novela de Dickens
Adorno acude al concepto de ruina benjaminiano, la alegoría es en The old
curiosity shop una ruina, una presencia del pasado que interpela al presente
7
.
De hecho, Adorno se refiere a la existencia de una “extraña presencia
fantasmal” en la novela (ADORNO, 2009, p. 496), aludiendo a la pervivencia
de una estética barroca que se inmiscuye en la historia decimonónica. Si, tal
como ya se ha señalado anteriormente, durante cadas la literatura
dickenesiana había sido descalificada por su tendencia a lo exagerado e
hiperbólico, en el ensayo de Adorno esta propensión se atribuye a una
adopción voluntaria de las formas barrocas. Asimismo, el método descriptivo
con el que Dickens elabora sus personas a través de un único rasgo que los
defina, a través de esencias, tal como sucede en el drama barroco, constituye
para él una ruptura con los cimientos que sustentan la cultura burguesa: el
individuo y su psicología.
De acuerdo a la interpretación adorniana, Dickens disuelve en The old
curiosity shop la categoría del sujeto, que se transforma en objeto para aludir
a una de las categorías con las que la teoría marxista analiza el fenómeno del
capitalismo: la reificación. Personas y objetos se confunden constantemente
en la novela (HOLLINGTON, 2009, p. 1). Por un lado, los personajes están
cosificados: cuando Quilp se apropia de la tienda de antigüedades cree que con
ella se adueña también de la propia Nell y su abuelo, como si fueran una de las
mercancías del almacén, Nell, incluso, es luego confundida con una de las
muñecas de cera del museo de la señora Jarley. Por el otro lado, Dickens
7
Toda la interpretación adorniana de la novela de Dickens se sustenta en la caracterización de
la alegoría desarrollada por Benjamin en El origen del drama barroco alemán (1925).
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trabaja con objetos que tienen mente y voluntad propia y ejercen una malicia
secreta contra las personas (HOLLINGTON, 2009, p. 4). Esta hostilidad entre
“el mundo de las cosas” y los personajes explica por qué la huida de la Pequeña
Nell, el acto políticamente revolucionario de la historia, fracasa:
Dickens solo dio una fugaz y disimulada indicación de por qué Nell
tiene que morir igualmente. En la fuga, Nell se marcha irreconciliada
con sus cosas: no es capaz de llevarse consigo nada del espacio
burgués, dicho sea en términos modernos, su éxito no lo debe a la
transición dialéctica sino a la fuga, la cual no tiene ningún poder
sobre el mundo del que ella huye y sigue siendo esclava de ese
mundo. (ADORNO, 2009, p. 503)
La lectura de Adorno dice mucho más sobre Adorno que sobre Dickens.
A pesar de su pesimismo, no hay en este ensayo temprano una defensa de la
evasión o un afán de refugiarse en “el gran hotel abismo”; inversamente, Nell
es condenada por su incapacidad de llevarse cosas de la tienda. Adorno
advierte aquí, ya a principios de la década del 30´ una señal de los peligros del
rechazo absoluto del mundo material y concreto en pos de lo irracional. El
ensayo de Adorno se opone simultáneamente al sistema capitalista de la
burguesía ilustrada en el que personas y objetos son indistintos, y al
irracionalismo fascista, que desemboca en el sacrificio de víctimas inocentes.
Hacia el final del ensayo, el Dickens de Adorno se torna menos sombrío,
y deposita ciertas esperanzas de salvación en la conciliación dialéctica entre el
mundo material y lo humano: Dickens nos recuerda que las dos viejas monedas
gastadas de un penique de la Pequeña Nell pueden resultar valiosas a ojos de
los ángeles. Esto es, es posible resignificar y subvertir el sentido de los objetos
en la cultura burguesa. El Dickens de Adorno es revolucionario porque opera
precisamente de esa manera, toma una forma burguesa, y la subvierte,
introduciendo en ella la presencia negativa de la alegoría barroca.
Apartado IV. Raymond Williams y Terry Eagleton: la perspectiva de
la crítica cultural
La última sección de este artículo está dedicada al análisis de las lecturas
críticas de Dickens realizadas por dos autores que pertenecieron a una nueva
generación del marxismo británico. Raymond Williams y Terry Eagleton
pertenecieron al movimiento político conocido como New Left que surge en
las décadas del 60´y 7impulsado en parte por la publicación en el Reino
Unido de una serie de traducciones de obras fundamentales en la bibliografía
marxista europea. Williams y Eagleton acceden a la lectura de Lukács, Brecht,
Benjamin y Adorno, entre otros y esto los diferencia rotundamente de la
primera generación de marxistas anglosajones.
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Ya en su primera obra relevante, Culture and society (1958) Raymond
Williams encuadra a su particular enfoque del marxismo como “materialismo
cultural” y se enlaza con la tradición de crítica cultural de William Morris y
Mathew Arnold, pero, lo novedoso de su propuesta, es el intento de introducir
en el pensamiento marxista la centralidad de la conciencia y la subjetividad
(ANDERSON, 1980, p. 162). Partiendo de la convicción lukacsiana de que en
el vínculo arte/sociedad no hay un término que prevalezca sobre otro, en
Marxism and literature (1977), obra en la que se sistematizan sus reflexiones
sobre el vínculo entre estos términos, Williams se propone construir una teoría
literaria marxista que no se sustente en la oposición base/ superestructura.
Ambas categorías se relacionan, para él, solidaria y no jerárquicamente. Para
este crítico cultural el empeño insistente por parte de la teoría estética marxista
en dividir las categorías base y superestructura como áreas separadas resulta
incluso irónico puesto que uno de los principales focos a los que apunta la
crítica de Marx es a la separación entre sujeto y objeto, entre actividad de la
conciencia y la producción material, propia del mundo burgués (cf.
WILLIAMS, 2019, p. 74).
Las teorías de la literatura como mímesis resultan inaceptables en
términos de Williams porque ocultan el hecho de que toda obra de arte es, ante
todo, un proceso material, un trabajo: “Al proyectar y alienar este proceso
material en un “reflejo”, el carácter material y social de la actividad artística-
de aquel trabajo artístico que es a la vez “material” e “imaginativo”- fue
suprimido” (WILLIAMS, 2019, p. 129). El arte no escapa a otras formas de
producción de la sociedad capitalista ni está separado de otros procesos
sociales. Para contraponerse a la estética burguesa, Williams procura
desacralizar la percepción del arte y la cultura. En Culture and society,
descarta la definición estrecha de las teorías decimonónicas que comprendían
a la cultura como recorte de unas pocas actividades intelectuales y la define
como “a whole way of life” (WILLIAMS, 1960, p. XIII). Luego, a lo largo de
todo su recorrido intelectual procuraría desarmar la concepción de cultura
como núcleo cerrado y petrificado, propiedad de una elite y reconocería que
existen otras formas de cultura, además de las que una sociedad reconoce
como legitima y valiosa, disintiendo, de este modo, con la postura elitista de
Adorno. Esta discrepancia se extiende al concepto de “cultura de masas” que
para el galés tiene una connotación peyorativa.
La teoría de que la cultura de una era pueda ser una construcción del
poder impuesta a una masa de sujetos indiferenciados que la aceptan y se
apropian de ella pasivamente es rechazada por el autor de Marxism and
literature. En este estudio, Williams importa el término gramsciano de
hegemonía para reemplazar el concepto estático de “cultura dominante” por
uno más dinámico que exprese el carácter procesual y cambiante de la cultura.
Este concepto supone la existencia de una dirección ideológica y moral de la
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sociedad, empero, a diferencia de la noción de “cultura dominante”, no implica
una imposición coercitiva, ni pretende ser totalizante. La cultura hegemónica
puede ser renovada, recreada, defendida, modificada y también desafiada por
elementos externos. De esta forma, este término gramsciano le permite
advertir a Williams que existen en todo sistema cultural elementos marginales,
emergentes y hasta contrahegemónicos. La crítica literaria, puede por eso,
detectar el proceso de transformación de lo hegemónico y reconocer las
contribuciones alternativas y de oposición a una hegemonía especifica que se
encuentran alojadas en un texto (WILLIAMS, 2019, p. 144). Williams afirma
en Marxism and literature que: “Ningún modo de producción y, por lo tanto,
ningún orden social dominante y por tanto ninguna cultura dominante
verdaderamente incluye o agota toda práctica humana, toda energía humana
y toda intención humana.” (WILLIAMS, 2019, p. 166) De ello se desprende
que, en toda producción cultural, se generan interrelaciones dinámicas entre
elementos provenientes de diferentes sectores sociales y etapas históricas
distintas.
En el capítulo consagrado al autor de Oliver Twist en The English novel:
from Dickens to Lawrence (1970) Williams explica que, aunque la obra de
Dickens pertenezca a la cultura popular, eso no significa que fuese ajena a la
alta cultura, porque ya antes de que él comenzara a escribir, muchos otros
autores de los que él se había nutrido, como Thackeray o Trollope, habían dado
a conocer las formas de vida de la cultura minoritaria, sus gustos y costumbres,
al gran público. Para componer sus novelas, Dickens toma elementos de esta
alta cultura y los mezcla con recursos, líneas temáticas y frases humorísticas
de la cultura popular. Son estos recursos, sostiene Williams, los que generaron
incomodidad en la crítica literaria, acostumbrada a evaluar toda obra con los
parámetros del canon hegemónico (cf. WILLIAMS, 1997, p. 34). Williams
tampoco considera aceptables lecturas como la de Adorno, que intentan
encontrar qué hay de “rescatable” o compatible con los parámetros de la gran
tradición en la literatura dickenesiana para “redimirla”, aun a costo de
arrinconar y silenciar elementos que constituyen su identidad. Desde su
perspectiva, leer una novela de Dickens con el molde de una alegoría barroca,
tratando de observar solo aquello que la distancia de la “literatura de masas”,
es no solo una interpretación forzada, sino una traición (WILLIAMS, 1997, p.
35).
Si las obras literarias son procesos sociales -y no productos- la tarea del
crítico es encontrar cómo intervienen esos procesos en el sistema social,
Williams se ocupa de analizar no ya qué reflejan las novelas de Dickens, sino
qué rol ocupan estas en una sociedad convulsionada que atravesaba
transformaciones radicales. The English novel propone que hacia 1840 emerge
una nueva generación de novelistas, que son catalogados como “novelistas
urbanos”. Estos novelistas fueron los responsables de encarnar y dar forma a
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experiencias novedosas y diferentes, pero comunes a todos los habitantes de
las ciudades; en sus obras incorporaron gestos, relaciones y sentimientos
recién descubiertos de modo tal que definieron a la sociedad más que reflejarla.
Dentro de este grupo, Dickens se destaca como aquel que elabora con su obra
una respuesta popular a las nuevas condiciones de vida (WILLIAMS, 1997, p.
10). El Dickens de Williams detecta antes que nadie que la Revolución
Industrial genera una cultura popular urbana, muy diferente a la cultura
tradicional, ya desgastada.
Más de una década antes, en Culture and society, Williams ya se había
dedicado a investigar la literatura dickenesiana, empero, en este libro escrito
cuando Williams aún no había sistematizado su teoría crítica, el análisis de las
obras se encuentra más atado a los contenidos. Aquí, ya se vislumbran algunas
de las problemáticas que Williams desarrollaría luego en The English novel. Se
advierte, por ejemplo, que Dickens no apuesta, tal como pensaba Jackson, por
la reforma social, sino que su interés se deposita en la reforma de la naturaleza
humana. En esta obra temprana, Williams ve como una deficiencia que
Dickens se oponga al industrialismo como forma de vida, sin conocer en
profundidad este fenómeno ni poder teorizar sobre él. Cuando Williams afirma
que Hard Times es más un síntoma de la sociedad industrial que un
entendimiento” (WILLIAMS, 1960, p. 96) está anticipando, sin asignarle un
nombre teórico, conceptos que aparecerían más adelante en su obra, aunque
con una valoración diferente. Si el primer Dickens de Williams se comporta
con “la actitud adolescente que culpa al mundo adulto y lo rechaza”
(WILLIAMS, 1960, p. 94). El Dickens de The English novel busca intervenir
activamente en la sociedad y, para lograrlo, desarrolla un método novedoso
que hace visibles relaciones que pasan desapercibidas en la vida diaria.
Las novelas Dickenesianas vuelve perceptible la experiencia de la
ciudad, ese ámbito donde los personajes caminan con paso apresurado, las
conversaciones son esporádicas y parece haber una completa ausencia de
conexiones concretas entre hombres y mujeres. Sin embargo, la tarea a la que
Dickens se aboca es a evidenciar que, bajo esta superficie, existen vínculos
humanos, lazos profundos que generan compromisos, solo que se encuentran
oscurecidos por el ruido y la suciedad de este orden social que los impugna.
Las nubes negras que cubren el cielo, la niebla, y las sombras que
impiden la visión son imágenes recurrentes en la literatura de Dickens que,
para Williams, estarían expresando las condiciones de vida en una sociedad
indiferente y antinatural (WILLIAMS, 1997, p. 38). No obstante, en cada
historia escrita por Dickens surge una “mano benigna que limpia el aire oscuro
de la ciudad” para que los seres humanos puedan verse entre sí. De este modo,
su crítica social no sería una mera queja adolescente, sino que contribuiría en
la reconstrucción de los lazos humanos en una sociedad deshumanizada.
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Mientras que, anteriormente Williams se había referido a las novelas
dickenesianas como “síntomas”, ya en la década del 70´, al escribir The English
novel, encuentra un término para definir a estos elementos emergentes: las
“estructuras de sentimientos”, que serían luego definidas en Marxism and
literature como estructuras sociales aún no articuladas que se encuentran en
estado embrionario, como sentimientos indefinidos (WILLIAMS, 2019, p.
169)
8
.
Esto es precisamente lo que hace Dickens, su mérito es haber
configurado en el lenguaje el sentimiento de temor de la sociedad de la primera
era industrial ante el poder creciente de las máquinas, que son por eso
representadas en sus novelas como monstruos que devoran a los seres
humanos. El carácter moral que adquieren sus relatos es, según sostiene
Williams, un modo de dejar de lado lo social, Dickens percibe cómo las
transformaciones que trajo el capitalismo inciden en la moral de los individuos
y vuelve explícita la necesidad social de preservar la bondad y generosidad
humanas (WILLIAMS, 1997, p. 61).
Determinar, basándose en esta indagación moral, que Dickens era un
conservador, o recriminarle no haber exigido ciertas reformas políticas denota
no haber entendido el propósito que este autor perseguía con sus relatos, que
no fue, en modo alguno, ocuparse de problemas coyunturales sino más bien
prevenir el aislamiento amenazador que los sujetos comenzaban a
experimentar en las grandes ciudades. El Dickens de Williams comparte con
Marx un idéntico sentimiento acerca de la condición humana: la absoluta
exclusión es más grave que la exclusión económica o política que puede
resolverse a partir de reformas parciales (WILLIAMS, 1997, p. 59). En The
English novel se tilda de “estúpida” la manera en la que Orwell trata a Dickens
de “veleta” por su escasa participación política (WILLIAMS, 1997, p. 58).
Aun así, el Dickens de Williams conserva un mayor optimismo que el
de Wilson o Adorno, Williams nos recuerda que, en sus relatos, la bondad
surge de manera milagrosa en los ámbitos más sórdidos. La literatura
dickenesiana no solo afirma su convicción acerca de la existencia de un espíritu
humano que no puede ser doblegado por el sistema, sino que trabaja para crear
este espíritu. Con Dickens la literatura “alcanza su cumbre más altaporque
8
Ya el propio Marx había detectado esta capacidad de Dickens y los novelistas de su
generación para elucidar las condiciones políticas de la realidad, tal como se percibe en el
epígrafe que encabeza este trabajo. Según S. S. Prawer, ya en sus primeros años en Londres
Marx descubre que, dado que la vida estaba tomando las formas de la “mala literatura”,
conceptos literarios como la parodia se vuelven claves para comprender la realidad y por eso,
poetas y novelistas del siglo XIX, con sus técnicas caricaturescas y satíricas habían sido más
aptos para describir a la burguesía dominante, de lo que él mismo había sido (PRAWER, 1978,
p. 196).
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propone una visión integral del hombre, pero además dramatiza valores
posibles de convertirse en acción (WILLIAMS, 1997, p. 66).
Raymond Williams no es el único de los miembros de la New Left que
estudia la obra de Charles Dickens, también lo hizo Terry Eagleton, quien supo
ser discípulo en Cambridge del autor de Culture and society. Pero Eagleton no
siempre coincidiría con las definiciones de su maestro, y, especialmente en sus
primeros escritos, plantearía numerosos disensos con la obra de Williams.
No obstante, al analizar la obra de Eagleton debe tenerse en cuenta que,
a lo largo de su trayectoria, sus posiciones e influencias son reevaluadas
constantemente. Eagleton considera por primera vez la literatura dickenesiana
en Criticism and ideology (1976), un libro escrito bajo el influjo del
pensamiento althusseriano. Esto se percibe en el carácter rupturista del
discurso de Eagleton, que refuta las propuestas de los críticos marxistas que
escribieron antes que él, encontrando siempre resabios y “contaminaciones”
de la ideología burguesa en sus ideas. Por esa razón, manifiesta que la misión
de la crítica literaria marxista es destruir la mistificación de la cultura
dominante, revelando sus contradicciones que están determinadas por
contradicciones en la base material (EAGLETON, 1984, p. 18). En esta etapa,
Eagleton considera, como Althusser, que no hay manera de conciliar con la
cultura burguesa, la única manera de escapar de la “falsa conciencia” es
ponerse por fuera de la totalidad represiva para crear nuevos valores que
impulsen la revolución (WADE, 1991, p. 40).
Con esta premisa de lectura, Eagleton explora, en el cuarto capítulo de
Criticism and ideology, la obra de algunos de los autores más canónicos de la
literatura inglesa, desde Mathew Arnold hasta James Joyce. En primer lugar,
Eagleton propone que la literatura dickenesiana se nutre de dos fuentes
ideológicas: la filosofía utilitarista y el Romanticismo humanista de Ruskin y
Carlyle. Dickens recurre a las ideas de una generación que hizo una crítica
idealista de la sociedad burguesa y a la vez consagró derecho del capital. Estos
intelectuales habrían, según propone Eagleton, colaborado con las
pretensiones de la burguesía de ocupar la posición hegemónica, antes de la
burocracia y, asimismo, de integrar socialmente a la clase que explota. Para
ello, la burguesía necesitó una estética capaz de llegar a las masas y aquí,
sostiene Eagleton, cobrarían importancia autores como Dickens que, a través
de una ideología middle class, mostraban a la clase obrera sus aspiraciones
(EAGLETON, 1984, p. 78); personajes como David Copperfield, que, con su
esfuerzo personal, ascienden socialmente, fueron funcionales a ese empeño.
Sin embargo, Eagleton encuentra que existe una diferencia
fundamental entre la generación de novelistas victorianos a la que Dickens
perteneció y la de sus predecesores románticos: su origen pequeño- burgués.
Esta posición ambigua en la estructura sociales permitió que autores como
Eliot, Dickens o Hardy pudiesen abarcar un rango más rico de experiencias y
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estar más abiertos a las contradicciones de la sociedad burguesa. Todos ellos
formaron parte, aunque conflictivamente, de la ideología hegemónica de su
época.
La ambigüedad ideológica de estos autores de la pequeño-burguesía se
discierne en las contradicciones de la literatura realista que escriben. Eagleton
sostiene que:
For realism, as we have seen (…) produces in one of its currents a
“democratic” ideology- one progressively responsive to suppressed
social experience and humbly quotidian destinies. Yet its aesthetic
ideology of “type” and “totality” (and we should be in no doubt as to
the ideological character of such notions) insists on the integration
of these elements into a unitary world view. (EAGLETON, 1984, p.
126)
La pretensión de totalidad de la novela realista constituye, por lo tanto,
un interés por apropiase de lo disímil e incorporarlo, la literatura realista hace
de las contradicciones una parte de sí para neutralizarlas. Por eso, la ideología
de los textos del realismo reside, según dice Eagleton, en sus mutaciones
formales que indican sus intentos por subordinar otras formas del discurso.
Esto sucede en las novelas de Dickens que, lejos de ser formas “puras”, mezclan
constantemente tipologías literarias que parten desde el gótico y la fábula
moral hasta el relato de problema social. Finalmente, las novelas de Dickens
son para el autor de Criticism and ideology “símbolos de una unidad
contradictoria” (EAGLETON, 1984, p.128).
El Dickens de Eagleton escribe siempre desde la perspectiva de un niño
y ese colocarse en la mirada infantil implica una serie de complejas relaciones
con el mundo adulto:
Dicken´s fictions thus reveals a contradiction between the social
reality mediated by childhood innocence, and the transcendental
moral values which that innocence embodies. It is a contradiction
intrinsic to petty bourgeois consciousness, which needs to embrace
conventional bourgeois ethics undermining awareness of the harsh
social realities they suppress. (EAGLETON, 1984, p. 128)
Hay momentos, escenas y personajes que, no obstante, permiten que
esta conciencia acallada se inmiscuya en su texto. Daniel Quilp, por ejemplo,
simboliza el afán de venganza latente que la novela inflige a la propia historia
sentimental y decorosa narrada en The old curiosity shop.
Uno de los rasgos más salientes de la literatura dickenesiana es, para
Eagleton, su renuncia a cumplir con el ideal formal de totalidad orgánica, la
inconsistencia se revela en ella como un significado histórico (EAGLETON,
1984, p. 129). Criticism and ideology divide a la obra de Dickens en dos
períodos que se corresponden con dos fases diferentes del capitalismo. En el
primero de ellos, que se extiende desde The Pickwick papers hasta Bleak
house, los procedimientos literarios que tenderían a armonizar las disonancias
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son rechazados, surgen estructuras mixtas y significados disyuntivos. Esta
etapa, de novelas anárquicas, descentradas, fragmentarias representa para
Eagleton una fase más temprana y desorganizada del capitalismo. Ya en el
segundo período, el posterior a Bleak house, Dickens se ve forzado a usar como
único mecanismo de unificación las instituciones sociales que eran el principal
destinatario de sus críticas. Paradójicamente, explica Eagleton, los mismos
sistemas de conflicto y contradicción son los que proveen un principio de
coherencia simbólica en los relatos. Es decir, que, la unidad estética que la
literatura dickenesiana adquiere en esta segunda fase, no estaría anunciando
una reunificación de la sociedad, sino que la no relación de las personas se
torna sistemática. Novelas como Hard times u Our mutual friend codifican un
estadío del capitalismo más avanzado, es el capitalismo financiero con su
burocracia centralizada, y sus aparatos ideológicos cada vez s monolíticos.
Así, el recorrido literario de Dickens sería un correlato del desarrollo del
sistema capitalista en el que estuvo inserto y del que no pudo extraerse (cf.
EAGLETON, 1984, p. 129).
Para Eagleton, el niño funciona como la imagen perfecta para describir
a Dickens y a su posición como autor pequeño burgués, incapaz de comprender
la lógica del orden que lo oprime, tampoco se encuentra en condiciones de
enmendar esa situación
9
.
Conclusión
El seguimiento de las lecturas que los críticos literarios del marxismo
hicieron sobre Dickens nos ha permitido comprobar que existen tensiones y
problemáticas dentro de la estética marxista que permanecen irresueltas. El
vínculo entre las categorías de base/superestructura, el concepto de
determinación, o el rol de la literatura como producción social son algunas de
las cuestiones que surgen entre los escritos de Marx y Engels, pero, ante la falta
de sistematización de sus reflexiones literarias, aún siguen generando debates
entre los intelectuales de izquierda.
La literatura de Dickens, el “amigo en común” de pensadores con
orígenes e ideas tan diversas como Jackson, Wilson, Adorno o Williams se
transformó desde ya hace casi un siglo, al mismo tiempo en campo de batalla
y botín de guerra disputado por ideologías encontradas. Si bien no es posible
determinar, a partir de los escritos de los autores que nos ocuparon, si Dickens
fue un autor radical que tuvo simpatía por las causas del proletariado o un
9
Eagleton ampliaría su análisis sobre las novelas de Dickens en The English novel: an
introduction (2005). Sin embargo, este libro funciona principalmente como un manual
introductorio para el estudiante de literatura inglesa y no ofrece transformaciones con
respecto a las tesis desarrolladas en este trabajo.
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pequeño-burgués conservador preocupado por evitar las revoluciones; si en
sus novelas la forma de producción de la escritura se reformula y se vuelve
apresurada, instantánea, para adaptarse a los modos de producción del
capitalismo urbano o si toman formas barrocas para criticar el presente; si
Dickens triunfa al captar sentimientos emergentes o si es tan inexperto como
un niño al momento de interpretar la realidad; aun así la crítica literaria
marxista tiene el mérito de haber desbaratado la imagen de Dickens como el
escritor infantil de historias navideñas, el sensiblero o el creador de fábulas
con moralejas edificantes, para reivindicarlo como un autor que indagó en las
preocupaciones políticas, sociales, morales y económicas de sus
contemporáneos y creó una poética original que permite que, aún en la
actualidad, los lectores puedan acceder al conocimiento de ansiedades y
temores que aquejaron a aquellos que vivieron en una era de grandes
transformaciones.
La crítica marxista se ha revelado como un terreno fértil para
interpretar la obra de Dickens; su particular metodología, que se sustenta en
la vinculación de las obras con su contexto sociohistórico, ha logrado explicar
y justificar las singularidades formales de la literatura dickenesiana como una
reacción estética a la realidad de sus tiempos.
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Como citar:
LENGA, Jesica Daniela. Dickens, “nuestro amigo en común”: un recorrido por
las aproximaciones marxistas a la obra de Dickens. Verinotio Revista on-line
de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 161-93,
jan./jun. 2020.
Data do envio: 15 mar. 2020
Data do aceite: 18 maio 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.542
Ana Laura dos Reis Corrêa
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Sátira e alienação na construção do narrador não confiável
em Goethe e Machado de Assis
Ana Laura dos Reis Corrêa
1
Resumo:
A partir da leitura de Os sofrimentos do jovem Werther, com base nos artigos
de György Lukács e Miguel Vedda sobre esse romance de Goethe, e
considerando o conjunto da obra de maturidade de Machado de Assis, quando
o narrador assume a condução da narrativa guiando-a no ritmo frívolo e
volúvel do capricho de classe, pretende-se investigar, neste texto, de que
maneira a composição satírica de um narrador não confiável estabelece
conexões entre esses dois escritores que deram forma sensível à alienação de
uma “consciência infeliz”.
Palavras-chave: sátira; alienação; narrador não confiável; Goethe; Machado
de Assis.
Satire and alienation in the construction of the unreliable
narrator in Goethe and Machado de Assis
Abstract:
From the reading of The sufferings of young Werther, and based on the
articles by Gyorgy Lukacs and Miguel Vedda about this novel by Goethe, as
well as considering the whole of Machado de Assis' maturity work, when the
narrator takes over the narrative and guides it in the frivolous and voluble
rhythm of his class interests, this study seeks to investigate how the satirical
composition of an unreliable narrator establishes connections between these
two writers who have given an aesthetic form to the alienation of an "unhappy
conscience".
Keywords: satire; alienation; unreliable narrator; Goethe; Machado de Assis.
No texto crítico Os sofrimentos do jovem Werther, escrito em 1936
sobre o romance de Goethe, György Lukács (2013), contrariando a recepção
dominante desta obra pela historiografia burguesa, associa o sucesso
internacional de Werther, em 1774, à momentânea hegemonia do Iluminismo
1
Doutora em Literatura e professora do Programa de Pós-graduação em Literatura Brasileira
da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: analauradosreiscorrea@gmail.com.
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alemão em relação à persistente liderança de França e Inglaterra nesse terreno
da arte e da filosofia. Lukács afirma que o provável espanto do leitor frente à
associação entre Werther e o Iluminismo deriva de uma “lenda literária” que
interpôs uma espécie de “muralha da China entre o Iluminismo e o classicismo
alemão” (2013, p. 1).
Miguel Vedda (2015), em O jovem Goethe e a literatura sentimental: Os
sofrimentos do jovem Werther como anatomia da consciência infeliz, também
inicia sua análise desse romance do jovem Goethe sublinhando a atmosfera
lendária que envolveu esta obra, que, ao “alcançar uma popularidade quase
mítica” (2015, p. 61), foi sendo “saqueada” de sua complexidade para ser lida
de forma cada vez mais simplificada e estereotipada. A dimensão lendária se
condensou ainda mais pelas crescentes sugestões de aproximação entre ficção
e realidade, entre a vida do personagem-narrador e a biografia do autor.
Dos pressupostos iniciais das duas análises de Werther, expostos
sumariamente, pode-se inferir que o ambiente lendário em que a obra foi
inserida cristalizou (VEDDA, 2015) o efeito crítico em uma espécie de defeito
crítico, que ocultou dimensões essenciais do romance e o afastou de seu núcleo
central e mais potente: a verdadeira tragédia não se restringe ao suicídio por
amor ou por idealismo do espírito livre de artista em confronto com a
sociedade mesquinha e pragmática, mas diz respeito, antes, à condição
alienada do intelectual na modernidade. Tal alienação, expressa especialmente
por um ressentimento intelectual, por uma “consciência infeliz”, por uma
nostalgia (lendária?) pela vida simples e natural, é descristalizada por Goethe,
em Werther, por meio de alguns elementos formais, entre eles a composição
satírica de um narrador não confiável.
No Brasil do século XIX, em condições diferentes das que circundam o
cenário da literatura alemã do século XVIII, Machado de Assis (1839-1908),
um escritor da periferia capitalista, em um momento de viravolta que
produzirá um salto significativo em sua produção literária em direção a uma
maturidade estética ainda inédita na literatura brasileira, também recorrerá à
formulação satírica de um narrador nada confiável para a composição de
romances e contos que alcançaram a complexidade da vida social brasileira em
seu andamento frente ao contexto global do desenvolvimento capitalista.
Sobre a obra madura de Machado de Assis, após a publicação de
Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1881, também se formou uma nuvem
de lendas literárias, cuja densidade não está ligada à aura mítica da
popularidade de Werther, uma vez que a obra machadiana, evidentemente,
jamais alcançou a universalidade do fenômeno goethiano. A realidade
brasileira compartilhava, como a Alemanha, das dores do desenvolvimento das
nações modernas, “sem compartilhar de seus prazeres, de suas satisfações
parciais” (MARX, 2010, p. 153); mais ainda, na escala periférica e perversa da
escravidão, o presente da vida social no Brasil se constituía como o passado
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mais remoto das nações modernas, e as possibilidades de haver no país alguma
liderança no campo do pensamento abstrato era algo obviamente impossível.
Nossa Alfklärung esteve ligada ao processo de independência, apoiado no
discurso ilustrado, porém, o pensamento esclarecido esteve imensamente
distante das lutas políticas reais pelo desenvolvimento e, restrito às apertadas
fronteiras da incipiente elite local, transformou-se em “Perversão da
Alfklärung”, como sintetiza Antonio Candido (2002): a fórmula ilustrada,
reduzida a rótulo de prestígio de classe, não inviabilizava qualquer
possibilidade de horizonte de emancipação popular, quanto reafirmava, pelas
mãos da classe dominante local, a permanência do estatuto colonial e
escravocrata, em meio à importação de formulações ilustradas, e a
dependência, em meio à jovem independência.
Em sua obra de maturidade, Machado dá forma artística a essa matéria
social intensamente contraditória, mas o teor corrosivo de seus romances foi
envolto por uma série de interpretações críticas que, em grande medida,
atuaram no sentido de amenizar as contradições e brechas das estruturas
sociais cristalizadas que seus romances puseram a mostra. Transformado em
um escritor metafisico e diletante, interessado em filosofia, arte e religiões, ou
em um cético e irônico comentador dos costumes urbanos, de costas para
problemas sociais concretos, como a escravidão, Machado foi também muitas
vezes confundido com seus mais importantes narradores em primeira pessoa.
Brás Cubas, Bento Santiago, Conselheiro Aires, personagens que encarnavam
precisamente, como nenhum outro aentão, o modo de ser da débil burguesia
local, foram encarados como portadores da visão de mundo de Machado; nada
mais lendário, do ponto de vista literário e histórico, e nada mais difundido
entre o senso comum. Tais desvios críticos do ponto fulcral da obra
machadiana evitaram de todas as formas a exposição do caráter lendário da
própria superfície da vida da classe dominante local, que, no dizer de Oswald
de Andrade, tinha uma vida excelente, mas corrida em pista inexistente.
A obra de Machado começa a ser percebida em sua dinâmica efetiva,
somente em 1960, quando a crítica feminista estadunidense Helen Caldwell
(2002) faz ecoar em seu livro O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um
estudo de Dom Casmurro algumas poucas vozes que, na crítica
contemporânea à Machado, já haviam manifestado alguma desconfiança
quanto ao narrador Casmurro. A partir da relação com Shakespeare, que figura
em D. Casmurro (1899) de maneira ostensiva na cena em que o narrador vai
ao teatro assistir Otelo, Caldwell chama a atenção do leitor para o caráter
parcial e suspeito de Bento Santiago, que imputa à sua esposa Capitu a culpa
por seu destino infeliz, determinado pela simples desconfiança do narrador de
que tivesse sido traído por ela e seu melhor amigo, Escobar. A culpa de Capitu
é definida sem vacilação alguma por Bento, com base em apenas um olhar da
mulher no momento do enterro de Escobar. A partir daí, o narrador passa a
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reconhecer imensa semelhança entre seu filho Ezequiel e o amigo morto, e,
sem enfrentar a sua própria dúvida, decide sentenciar esposa e filho ao exílio
na Europa, como forma de manter a violência de sua atitude peremptória sob
os mantos das convenções sociais do sagrado matrimônio.
A razão do livro escrito por D. Casmurro é, segundo o narrador, “unir as
duas pontas da vida”, justificar sua melancolia, seu ensimesmamento em uma
casa que é a réplica de sua casa da infância, o que acaba por demonstrar a sua
incapacidade de agir, anunciada pela inércia na infância e na juventude de
Bentinho, sempre à sombra do caráter ativo da menina Capitu. Preso na cópia
do passado suas memórias –, como na cópia da casa materna, Bento Santiago
narra sua transformação em Casmurro, escritor diletante, rico e solitário. A
compaixão que reclama, apoiado nas convenções mais ocas e rígidas, o que lhe
angariou retorno de muitos leitores adestrados nessas mesmas convenções
cristalizadas, é o reflexo de seu mundo vazio e alienado. Como representante
da classe dominante brasileira, Bento Santiago, que sempre viveu de renda,
busca, pela escrita do livro, alcançar o seu verdadeiro objetivo: retorcer e
violentar a realidade segundo a sua vontade minúscula e servil, porém
impositiva e despótica: ser a cópia, sem contradição, de um projeto de vida,
que, embora perdurante, não tem futuro vivo, uma condenação a ser casmurro
que arrasta consigo, e violenta, tudo o que um dia poderia ter sido relação
social viva e humana com Capitu, Escobar, Ezequiel. Essa dimensão local está
articulada a uma causa mais profunda reproduzida pela primeira, como a
réplica da casa original: a condição alienante da vida pequeno-burguesa, que
se impõe como a única vida possível, ainda que seja uma vida casmurra. Bento
Santiago é um personagem escritor, ele narra suas próprias memórias, mas é
incapaz de reconstituí-las como representação viva das forças humanas; assim,
a narrativa das memórias assume a aparência da natureza morta do fetiche:
reprodução unilateral, estática e determinista de um quadro social sem vida,
que esconde, por trás das categorias reificadas (mercadoria, dinheiro, preço
etc.) que determinam a vida cotidiana dos homens, a sua verdadeira essência,
isto é, a de relações sociais entre os homens” (LUKÁCS, 2010, p. 19). Se for
possível essa articulação entre a situação ficcional específica de D. Casmurro,
em sua dimensão local, e o processo histórico mais geral e concreto de
alienação, perceberemos que Bento Santiago é um narrador não confiável não
apenas porque deforma de maneira interessada os fatos narrados, mas porque
sua narrativa de memórias não pode efetivamente recordar o vivido, pois faz
dele algo ainda mais perdido.
O leitor atento de Memórias póstumas de Brás Cubas, escrito quase
duas décadas antes, contando com a evolução da crítica machadiana que foi
pontuando o caráter não confiável do narrador, não pode deixar de reconhecer
em D. Casmurro, por um lado, essa feição de cópia, uma visão de mundo que
se impõe mesmo em desacordo com a realidade, com os acontecimentos e com
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a variedade que eles trazem consigo, mas, por outro lado, percebe que essa vida
fantasmática reflete uma condição social e histórica concreta: a da alienação.
Memórias póstumas de Brás Cubas marca uma viravolta na obra de
Machado, concentrada sobretudo na composição do narrador – cujo ponto de
vista paternalista para com os de baixo, nos primeiros romances, passar a ser
o de cima. Schwarz demonstrou que essa mudança do ponto de vista de classe
não se resume “na troca da crítica (moderada) pela apologética, ou do ângulo
dos oprimidos pelo dos opressores”, mas é parte “do novo dispositivo formal”,
no qual
o narrador plantado no alto do sistema local de desigualdades (...) é
uma consciência abrangente, que incita à leitura a contrapelo e à
formação de uma superconsciência contrária do narrador]
(SCHWARZ, 2004, p. 25).
Se considerarmos o caráter satírico que organiza essa estrutura, haveria
alguma conexão possível entre o narrador não confiável de Memórias
póstumas e o de Os sofrimentos do jovem Werther?
Não se trata de pensar essa conexão no sentido de uma influência
imediata. Sabe-se que Machado conhecia a obra de Goethe. Não apenas Os
sofrimentos do jovem Werther, mas também o Fausto e Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister faziam parte da biblioteca de Machado, que,
segundo Pimentel (1974), começou a estudar a língua alemã em 1883, aos 44
anos. As referências a Goethe, no entanto, estão presentes em poemas, contos
e romances, anteriores e posteriores a 1883. São muitos os trabalhos de
pesquisa em torno da influência fáustica na obra machadiana, especialmente
quanto à dimensão luciferina do riso em Machado. A presença do diabo
aparece em 1863 no poema O casamento do diabo, cujo subtítulo sugestivo é
Imitação do Alemão. O diabo também frequenta os contos machadianos, como
o seu A igreja do diabo, de 1883, cujo segundo capítulo remete à cena “Prólogo
no céu” da obra de Goethe. No romance Quincas Borba (1891), o capitalista
Rubião tem em casa um par de estatuetas: Fausto e Mefistófeles. No conto O
espelho, de 1882, o narrador apresenta a teoria das duas almas, uma interior e
outra exterior, mas em Esaú e Ja, de 1904, uma referência direta a Goethe
no capítulo “Duas almas”, em que o narrador cita Goethe diretamente: “Ai,
duas almas no meu seio moram!”.
Quanto ao Werther, o romance A mão e a luva (1874) e o conto A
mulher pálida (1881) apresentam protagonistas que correspondem ao
estereótipo do jovem apaixonado, exagerado e depressivo. No romance,
Estevão ama Guiomar, mas não é correspondido e acaba sendo rejeitado pela
amada que se casa com o pragmático Luís Alves. Estevão, entretanto, apesar
de pensar em morrer ou em fugir da cidade, acaba brasileiramente por evitar
uma e outra saída, pois, diz o narrador, a “frouxidão do ânimo negou-lhe essa
última ambição”. No conto, o personagem ximo é uma espécie satírica de
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Werther brasileiro, que, rejeitado por sua amada, uma linda morena, que
lhe dará atenção quando Máximo ganha uma herança de um padrinho, nega o
amor interessado da morena e o de qualquer outra mulher de carne osso, para
sair à procura da mulher mais pálida do mundo, que, desafortunada e
satiricamente, virá a seu encontro na figura da própria morte.
Sem desconsiderar essas e outras relações entre a obra de Machado e a
de Goethe, nos interessa aqui pensar especialmente, embora brevemente, na
conexão mais estrutural da forma de composição do narrador não confiável em
Memórias stumas e D. Casmurro e em Os sofrimentos do jovem Werther.
Antes de chegar às conexões, é preciso considerar uma diferença importante
entre os dois narradores. Werther é jovem, e, de acordo com Lukács (2013),
exerce uma rebeldia que expressa a insolúvel contradição entre o
desenvolvimento da personalidade e a sociedade burguesa(2013, p. 11). Bento
Santiago é um homem melancólico e solitário, que rememora, cômoda e
interessadamente, sua história, ao final da vida. Brás Cubas, por sua vez, não
é apenas um narrador velho, é bem mais que isso, é um defunto autor, o à
vontade e acomodado em sua vida pós-túmulo, quanto o foi na infância,
juventude e velhice, jamais teve paixões extremas que ameaçassem sua paixão
inabalável por si mesmo.
Apesar dessa diferença importante, que se relaciona a muitas outras que
não poderemos abordar agora (pequena burguesia alemã e Brasil escravocrata,
por exemplo), esses narradores velhos são volúveis e não confiáveis como o
jovem Werther. Segundo Vedda (2015), o que caracteriza Werther como um
narrador não confiável é, entre outras coisas, sua incapacidade de expressar
artisticamente os fortes sentimentos e devaneios que lhe povoam o peito.
Bento Santiago demonstra semelhante impossibilidade ao tentar compor um
poema no capítulo “Um Soneto”, em que ele escreve dois versos, mas não
consegue de maneira alguma seguir adiante e conclui melancolicamente:
“nada me consola daquele soneto que não fiz” (MACHADO DE ASSIS, 2015, p.
95). De acordo com Vedda (2015), a incapacidade de Werther está ligada a sua
obsessão por cristalizar esteticamente a vida, promovendo uma relação o
imediata entre arte e vida que impedia o distanciamento necessário para a
criação artística, assim, diz Vedda: “a contrapelo dos propósitos do autor, o
público leu o Werther nos mesmos termos em que o protagonista do romance
lia Homero ou Ossian: com aquela identificação desprovida de distância crítica
que caracteriza o diletante” (VEDDA, 2015, p. 66, tradução minha).
As declarações de Werther a respeito da vida no campo, acomodada e
simples, também não são dignas de confiança, uma vez que, salienta Vedda,
“nada está mais distante dessa existência familiar singela e sedentária que o
regime de vida de Werther, marcado sempre pela solidão e fuga(VEDDA,
2015, p. 68). Os narradores machadianos em primeira pessoa dos romances da
maturidade também são expressões de uma extrema incoerência entre o
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declarado e o feito: Brás Cubas “exibe o figurino de gentleman moderno, para
desmerecê-lo em seguida, e voltar a adotá-lo, configurando uma
inconsequência que o curso do romance vai normalizar” (SCHWARZ, 2000, p.
15).
Werther, conforme afirma Vedda, faz um uso totalmente pessoal das
palavras de Cristo, mudando-lhes o sentido original em favor de sua percepção
de mundo isolada, que, idealista, não faz caso das bases concretas sobre as
quais se fundam os fatos. Werther consegue ver aproximação entre sua vida
diletante e a de personagens simples, um criado, uma moça suicida e um
escrevente louco, mas, em realidade, ao contrário de Werther, trata-se de
“seres ingênuos, que, por causa de sua condição social ou mental, estão
incapacitados de refletir sobre si mesmos” (cf. VEDDA, 2015, p. 79).
Em Machado, um dos momentos em que fica mais evidente o caráter
volúvel do narrador é o conhecido episódio do Almocreve, em Memórias
póstumas. Nesse capítulo, um simples almocreve, um condutor de bestas de
carga, livra Brás Cubas de ser arrastado por um jumento no qual acabara de
montar. Sabendo que o almocreve havia salvado sua vida ou evitado um
desastre iminente, Brás Cubas pensa em recompensá-lo:
E era verdade; se o jumento corre por ali fora, contundia-me
deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça
partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, lá se me ia a
ciência em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo;
eu sentia-o no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve!
enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de
consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-
lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal
fosse o preço da minha vida, — essa era inestimável; mas porque era
uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. Está
dito, dou-lhe as três moedas. (MACHADO DE ASSIS, 1955, p. 103)
Ao retornar do susto imediato, porém, Brás Cubas volta a raciocinar a
partir de seu lugar de classe o de proprietário e rentista, alguém que, como
ele mesmo afirma, nunca comprou o pão com o suor do seu próprio rosto”. Ao
perceber a felicidade ingênua do almocreve ante a possibilidade da
recompensa e ao examinar lhe a roupa e classificar o homem que salvou sua
vida como “um pobre-diabo, que jamais vira uma moeda de ouro”, o narrador
muda totalmente de ideia e de atitude, baixa progressivamente o valor da
recompensa – de três moedas de ouro para duas, depois uma, até chegar a um
cruzado de prata. Recompensa que, segundo Brás Cubas, excedeu em muito o
que o almocreve na verdade merecia uns vinténs de cobre esquecidos no
bolso de seu colete -, pois, afinal, reflete o narrador, o trabalhador não agiu
pela recompensa ou pela virtude, mas apenas “cedeu a um impulso natural [de
servir], cedeu aos hábitos do ofício”; ou foi um simples instrumento da
Providência Divina, que também parece estar a serviço de Brás Cubas. O ato
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do almocreve é rapidamente aprisionado na moldura econômica caprichosa de
Brás Cubas. A crescente desvalorização do ato do almocreve na cotação da
consciência de classe do narrador – moeda de ouro, cruzado de prata e vintém
de cobre deseja anular o próprio almocreve, cujo mérito, como conclui
Cubas, “era positivamente nenhum”. No entanto, para o leitor capaz de tomar
a distância crítica necessária do narrador, a composição da estrutura narrativa
engendrada pelo autor deixa visível o avesso da situação narrada pelo próprio
Brás Cubas: o decréscimo da estatura do narrador, que diminui na mesma
proporção da oferta destinada ao almocreve, até chegar ao núcleo de sua
perspectiva mesquinha e avarenta: chamei-me pródigo, lancei o cruzado à
conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?) tive
remorsos” (MACHADO DE ASSIS, 1955, p. 104). O valor das palavras
“pródigo” e “remorsos” oscila entre generoso e gastador, entre arrependimento
pelo mal feito ao outro ou em causa própria, reforçando o quanto esse narrador
pouco confiável distorce os fatos segundo seus preconceitos de classe.
Diante desses elementos, a conexão entre esses narradores de Goethe e
Machado, que aparece na estrutura dos textos, é, antes de tudo, a
impossibilidade deles de perceber e interpretar os fatos para além de seus
próprios limites. É sintomático que Werther encarnasse “o modo de sentir e
pensar da juventude burguesa e pequeno-burguesa do período” (VEDDA,
2015, p. 61) e que Brás Cubas e Bento Santiago configurassem a posição de
classe alienada da elite culta local.
A composição desses narradores como não confiáveis se conecta pelo
fato de que seus criadores, Goethe e Machado, foram capazes de dar forma
estética a essa consciência infeliz, seja pela sátira sutil da sensibilidade alemã
(VEDDA, 2015, p. 62) que se refugia da alienação reinante numa nostalgia
falaz; seja pela sátira aberta à desfaçatez da elite culta brasileira, cuja vida
cristalizada busca de todas as formas violentar a realidade em nome de seus
caprichos, mesmo que o saldo do seu inventário final seja o de uma infelicidade
acomodada, como a de Bento Santiago que acaba seus dias como Casmurro,
solitário, escrevendo memórias para atar duas pontas da vida que não se
encontram, ou como a do defunto autor, Brás Cubas, que encerra sua narrativa
vendo, como superávit, as negativas a que sua existência se resume – “Não tive
filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”
(MACHADO DE ASSIS, 1955, p. 158).
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(2013), inédita. In: LUKÁCS, György. Goethe and His Age. Translator Robert
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VEDDA, Miguel. El Goethe temprano y la literatura sentimental. Los
sufrimientos del joven Werther como anatomía de la conciencia infeliz. In:
______. Leer a Goethe. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Quadrata, 2015.
Como citar:
CORRÊA, Ana Laura dos Reis. Sátira e alienação na construção do narrador
não confiável em Goethe e Machado de Assis. Verinotio Revista on-line de
Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 194-202,
jan./jun. 2020.
Data do envio: 15 mar. 2020
Data do aceite: 6 maio 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.531
Tomás Sufotinsky
203
La configuración de la realidad en dos
momentos de la obra de Paul Zech
Tomás Sufotinsky
1
Resumen:
Es posible revisar algunos conceptos de la estética marxista, principalmente
vinculados con propuestas teóricas de György Lukács y de Theodor Adorno en
dos textos históricamente distantes de la obra del autor alemán Paul Zech
(1881, Briesen, Prusia 1946, Buenos Aires): Das schwarze Revier (1913) y
“Buenos Aires” (1935). En el transcurso de los veintidós años que separan un
texto del otro, se pueden observar variaciones sobre los procedimientos de
reflexión de la realidad y de la configuración formal de la obra en este autor
vinculado a la ideología marxista.
Palabras clave: Paul Zech; Realismo; Lukács; Adorno.
The configuration of reality in two moments of Paul Zechs work
Abstract:
It is possible to revisit some concepts of Marxist aesthetics –mainly associated
to the theoretical proposals of Gyorgy Lukacs and Theodor Adorno– in two
productions by the German author Paul Zech (1881, Briesen, Prusia 1946,
Buenos Aires): Das schwarze Revier (1913) and 'Buenos Aires' (1935).
Throughout the period of twenty-two years between the first and the second
piece, it is possible to appreciate changes over the procedures of reflection of
reality and formal configuration within the work of this author linked to
Marxist ideology.
Keywords: Paul Zech; Realism; Lukacs; Adorno.
En la obra de Paul Zech (1881, Briesen, Prusia – 1946, Buenos Aires) es
posible observar una serie de conceptos de la estética marxista que nos
permiten, por un lado, ensayar su aplicabilidad en el transcurso histórico y el
traslado de un mismo autor a contextos en extremo diversos y, por otro,
introducir el estudio de su obra a un horizonte teórico que, creemos, es más
que propicio y favorable para su abordaje.
1
Poeta, licenciado em Letras pela Facultad de Humanidades y Artes da Universidad Nacional
de Rosario. E-mail: tomas.sufotinsky@gmail.com.
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Podríamos dividir la obra de Zech en tres grandes momentos: el
primero, caracterizado por sus traslados dentro de Alemania con motivo de
diversos estudios y ocupaciones laborales, que repercutirían en su prolífica
obra temprana (finalmente se instalaría en Berlín en 1912); esta primera etapa
abarcaría desde los últimos años del siglo XIX hasta fines de la década de 1910.
En el segundo momento, correspondiente a la tercera década del siglo y
primeros años de la cuarta, hay una producción no tan difundida como la de la
primera etapa; momentos de precariedad económica y conflictos legales y,
sobre todo, políticos que lo llevan a, en 1933, exiliarse en Argentina, donde
comenzaría la tercera y última etapa de su obra, que culminaría con su muerte
en Buenos Aires en 1946. Este último periodo está marcado por sus intentos
de subsistencia por medio de ayudas económicas de allegados y becas de las
instituciones ligadas a los sectores antifascistas de la colectividad alemana.
Durante estos años hay una gran producción publicada fragmentariamente en
medios gráficos alemanes que se imprimían fuera de Alemania para evitar la
censura (Die Sammlung, por ejemplo, fue publicada en Ámsterdam), medios
de la colectividad alemana en Argentina (Argentinisches Tageblat) y Chile
(Deutsche Blätter). En este momento, Zech se ocupa, entre otros temas, de
retratar y criticar los sucesos contemporáneos en la patria dejada y de dar una
imagen de una tierra hasta entonces ignota a la que llegó apresuradamente y
sin mucha premeditación
2
.
Nuestra intención es aquí la de tomar dos textos de su obra distantes
entre sí, primero un volumen de poemas publicados hacia 1913 en Berlín en los
que se dedica a retratar la vida de los obreros en las minas de carbón, Das
schwarze Revier (El negro distrito), y luego un ensayo en el que vuelca las
primeras impresiones que tuvo de su llegada a Buenos Aires en 1933.
Pretendemos revisar estos dos puntuales momentos de su obra buscando en
ellos la posibilidad de leer categorías de la teoría literaria ligada la estética
marxista, como son la representación de la complejidad del entramado social
superficial en vinculación a lo subyacente con lo que se interdeterminan (en
contra de un esencialismo unívoco que desdeña las relaciones dialécticas
apariencia-esencia) y la representación de personajes tipo. A sabiendas de que
esto significa en algún punto un forzamiento de la teoría planteada
principalmente– por Lukács, pues no sólo se sale del corpus específico
planteado por él, sino que diverge incluso genéricamente de su concentración
en la novela, pensamos que estas categorías pueden resultar operativas y útiles
para estudiar la obra de Zech. Asimismo, creemos que la cualidad de
fragmentarios de estos textos –sobre todo del ensayo que trataremos, “Buenos
2
Cabe destacar que la gran mayoría de los escritores e intelectuales exiliados de la Alemania
del III Reich buscaron asilo en Estados Unidos o en los países neutrales de Europa. El caso de
Zech en Argentina constituye una rareza en este sentido; el colega y compatriota más cercano
puede decirse que fue el caso más famoso de Stefan Zweig en Brasil.
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Aires”— y la propia búsqueda de una forma en la que encauzarse pueden
permitirnos vincularlos también a las propuestas en torno a la forma del
ensayo y su cualidad de fragmentario y no totalizante planteadas por Adorno
en “El ensayo como forma” (publicado en Notas de literatura).
En 1913 Zech publica en Berlín un volumen de 13 poemas llamado El
negro distrito. Allí presenta a la manera del Dinggedicht (poema-objeto) y –a
pesar de no rehuir al uso de recursos poéticos— con un tono eminentemente
realista, una imagen de la vida de los mineros de la industria carbonera.
3
Héctor Piccoli define el Dinggedicht como
la aprehensión contemplativa de un objeto. Este “objeto” puede ser
incluso un ser vivo –animal o planta– o una obra de arte. Más que
“describir” o “representar” el objeto, el poema lo presenta, por
medio del ajustado despliegue de recursos formales, con una
patencia tal, que nos parece estar viéndolo y/u oyéndolo, es decir
captándolo por vía de la percepción sensorial directa (PICCOLI,
2010, 9-10).
Rilke, asimismo, tal vez uno de los mayores exponentes de este tipo de
poema en la lírica alemana, plantea la autonomía del objeto en el poema –lo
que él llama objetividad de la intromisión de un Yo que lo interprete
(OVERATH, 1987). Partiendo de la observación de la pintura de Cézanne, en
la que por la cohesión cromática se sustentaría la autonomía u objetividad de
la pintura (que prescinde ya de la línea), en el poema, esta autonomía del
objeto estaría dada, como plantea Piccoli, por “el ajustado despliegue de
recursos formales”. La preocupación aquí es por la emergencia del poema
como artefacto, una “cosa” independiente, una obra cuya factura lo hace
ingresar como si fuera un objeto al mundo: revelación de aquello que se
presenta ante los sentidos. Pero esta idea no debiéramos entenderla como una
evasión del autor en términos ideológicos y un mero “esencialismo” de la obra.
El autor elige aquello del mundo a presentar en el poema (o tal vez mejor sea
decir aquello que el poema presente o que se presente en/por medio del
poema) y el poema-objeto aflora ahí gracias a su ajustado despliegue de
recursos formales, viviendo en sí, si se trata, como nosotros creemos en el caso
se Zech, de un autor realista, “la insobornable y humilde honradez estética”
con la que la obra se compromete con los asuntos humanos (LUKÁCS, 1968,
p. 226). Es decir, en la objetividad planteada por el Dinggedicht de Zech, como
veremos –así como lo plantea Rilke–, hay un Yo que, si bien está desaparecido
o escindido, no niega sin embargo su tendencia, como se pretenderá que
suceda con posterioridad, por ejemplo, con la fotografía de la Neue
3
Zech ha sido muy esquivo respecto a sus datos biográficos llegando incluso a falsearlos, por
lo cual los datos que se tienen sobre esta etapa de su vida no son del todo confiables. Sin
embargo se sabe de su incursión como trabajador en las minas de carbón, muy probablemente
en la zona industrial del Ruhr, aunque dice haber trabajado también en minas de Bélgica y
Francia, lo cual no consta que haya sucedido realmente.
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Sachlichkeit (Nuevo Objetivismo), a la que podrían hacérsele las mismas
acusaciones que Lukács hace al naturalismo. De acuerdo con la teoría
lukacsiana, el verdadero arte realista es aquel que, independientemente de las
ideas políticas del autor, refleja una imagen fiel a la realidad en cuanto a que,
de manera dialéctica, logra interpretar los vínculos entre la apariencia
superficial y la esencia en su campo histórico, y que siempre esta realidad
reflejada está fuertemente vinculada con los aspectos éticamente progresistas
del autor (LUKÁCS, 1968).
Sostenemos que en las imágenes presentadas por Zech en estos poemas
se construye, a partir de la forma poética que adoptan, de su expresión formal
y sus recursos retóricos, una textura en la que la esencia del ámbito
representado se expresa en la superficial apariencia del objeto mostrado por el
poema (o bien, del objeto-poema) y, a su vez, esa apariencia, en su
desenvolverse poéticamente, revela la esencialidad de la que desprende.
El minero
El ancho pecho alzado por la disnea,
así conduce férreas estacas golpe a golpe
a través de la roca, hasta que del salto de bloques
inunda el túnel el polvo que borbotea.
En los fogonazos cintilantes de la luz del foso
reluce cual metálico el desnudo cuerpo;
gotas de sudor bajan, como perlas cayendo
desde los poros bien abiertos del rostro.
Tararea el minero, al compás del martillo
y al juego del picudo hierro, una tonta canción
y sólo cesa, como por súbito susto sobrecogido,
cuando, en la perforada galería, a lo lejos
retumban detonaciones como truenos,
y cesa y deja tres veces girar el farol.
4
El poema presentado en forma de soneto
5
, con la arquitectura rítmica y
estrófica que le dan cohesión, el juego de contrastes: el trabajo ligado a lo
pétreo, férreo y polvoriento versus la perla del sudor del minero (cuya brillante
4
Las traducciones de los poemas de este libro de Zech son nuestras.
5
Estos sonetos de Zech, poeta que supo manejar con maestría las formas clásicas, presentan
sin embargo una serie de operaciones realizadas sobre sus estructuras métricas y rítmicas que,
sin desdeñar la tradición sonetística de la lírica alemana, introduce en ella variaciones que,
creemos, aportan a la expresividad poética del libro que conforman. Es necesario considerar
también que estos poemas se insertan, indudablemente, en el período expresionista de Zech,
corriente para la cual el recurso a las formas tradicionales a la vez que la puesta en tensión de
las formas clásicas fue una de sus características principales, en su vertiente lírica al menos.
Por lo demás, no constituye éste un aspecto sobre el que corresponda explayarse aquí.
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blancura podríamos adivinar brillando contra el tizne del hollín y el carbón),
la banalidad de la canción tarareada en contraposición a la siniestra
detonación que a lo lejos amenaza con la opresión de la montaña que puede
derrumbarse sobre el minero en cualquier momento; todo esto constituye la
expresión de una esencia subyacente que se manifiesta en la imagen
presentada por el poema y que va a tomar densidad en su vínculo con los demás
poemas del libro:
Bajada
De rudas púas dentado el roblizo portal
se sale reticente de los tirantes de hierro.
Pesadas taconean, sobre adoquines negros,
muchas botas claveteadas un terrible compás.
Se aprieta espantada, como un rebaño,
la cuadrilla en la luz helada de las lámparas,
tropieza somnolienta en alabeadas rampas
hasta que con sofoco la acoge en el atrio el vaho.
La carga desplegada el capataz inspecciona
y mecánicamente lee –y con voz de mando–
los nombres anotados, de la lista.
Luego, sobre tableados, raudal de vapor rechina
y, de diez en diez en jaulas, hacinados,
hacia el pozo, la soga los arroja.
La concepción presentada sobre el Dinggedicht nos permite pensar en
una dialéctica de forma y contenido en la que la realización material en la
materia versal, es decir, la realidad reflejada en el poema, cobra vida como
objeto-poema y, a la vez, la pura puesta en práctica de las técnicas, los recursos
a la tradición poética adquieren sentido a partir del contenido que sustentan.
6
Así aparece el poema como artefacto presentador o representador de una
realidad determinada. Podemos proponer que Zech busca presentar en el
entramado constituido por estos poemas las relaciones humanas del sistema
productivo en cierta esfera de la productividad paradigmática de principios de
6
Por motivos de extensión tratamos aquí sólo cuestiones generales acerca de estas técnicas
formales que utilizan los poemas, pero si nos adentráramos en los poemas en su lengua
original, podríamos hacer un análisis de los recursos rítmicos y fonéticos con cuyo “ajustado
despliegue” Zech “presenta el objeto. Sólo por mencionar un ejemplo, en los últimos dos
tercetos de “El minero” (Der Hauer), el juego del Stabreim (rima aliterante de principio de
palabra) y el impulso rítmico hacia el ritmo trocaico sustentan el “compás del martillo” y el
tarareo del minero, y ritman la escena que se desarrolla en el túnel de la mina: Der Hauer
summt ein dummes Lied zum Takt / des Hammers und zum Spiel der spitzen Eisen / und
stockt nur, wie von jähem Schreck gepackt, // wenn hinten weit im abgeteuften Stollen /
Sprengschüsse dumpf wie Donnerschläge rollen, / und stockt und lässt die Lampe dreimal
kreisen.
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siglo en Europa, exponiendo los vínculos de opresión y de explotación que allí
se dan.
El agitador
Cabeza a cabeza: sobre tejuelas, albas fases lunares.
Acecha la porfía como homicidio en todas las caras.
Un extraño hirsuto de frente estrecha tiene la primera
palabra
y pone el brazo cual honda de David contra gigantes.
Mas su voz: de tubo de órgano tierna introducción,
prueba primero el fervor de los reunidos en la sala.
Luego, como coral luterano, truenan aludes de palabras
monte abajo, para tensar del todo la excitación.
Y este estremecimiento, al que nada inhibe y nada subyuga,
asola la defensa tensa de las caras
hasta que un desangrar seso a seso inunda como locura.
Y, encendida de rabia, estridente en deseos de huelga,
se va en siseo la convulsión de las lámparas
y, tres veces ardiendo hacia la noche, empuja la revuelta.
El héroe, o el personaje tipo de la realidad reflejada en el libro, el
minero, inserto en su contexto de trabajo, sometido a las precarias condiciones
del trabajo en la mina. Luego, el minero en el contexto de trabajo junto sus
pares, presentados como un “rebaño” entrando a la mina ante la mirada
vigilante del capataz. Por último, trajimos aquí el poema del agitador a la
huelga, que introduce la dimensión sindical en la que el proletariado en unión
con sus pares intenta pugnar por sus derechos y sus condiciones de trabajo.
Asimismo, en el libro aparecen también los burgueses propietarios, el esquirol,
las familias de los obreros y el espacio urbano que habitan. Cada uno de estos
elementos –que por motivos de extensión no podríamos traer uno por uno
aquí– son presentados por medio de este artefacto poema-objeto cuya
constitución, en la que forma y contenido se vinculan dialécticamente para
reflejar un fragmento determinado y elegido de una realidad, va construyendo
un tejido social, elemento constitutivo a elemento constitutivo, mostrando los
tipos y la complejidad del contexto, penetrando en la apariencia para, a cada
momento, hacer brillar la esencia de esa realidad en cada objeto-poema
presentado.
Lukács (1968) plantea que:
El tipo se caracteriza por el hecho de que en él concurren todos los
rasgos predominantes de aquella unidad dinámica en la cual la
auténtica Literatura refleja la vida, de que estas contradicciones, las
más importantes contradicciones sociales, morales y espirituales de
una época se conjugan en una unidad vital. (…) En la representación
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del tipo en el arte pico se unen lo concreto y lo legal, lo eternamente
humano y lo históricamente determinado, lo individual y lo
socialmente general. (pp. 220-1)
Decir, por lo tanto, que los personajes de los poemas de Das schwarze
Revier se condicen estrictamente con este concepto de tipo sería sin dudas
arriesgado, pues, si bien podría aplicarse aquello de “lo eternamente humano
y lo históricamente determinado”, considerándolo en términos de los vínculos
productivos en un contexto particularmente industrializado como es el de la
Alemania de los años previos a la I Guerra Mundial, parecieran ser estos
personajes s bien planos con respecto a la parte de la definición que se
refiere a las “contradicciones sociales, morales y espirituales de una época”. No
hay en ellos, por lo que podemos ver en los poemas citados, grandes
contradicciones en los personajes, se trata más bien de caracteres
estereotípicos. Sin embargo, el valor que encontramos en estos poemas a este
respecto es el de la textura, el del tejido social que en su vinculación a lo largo
del libro van constituyendo como un reflejo particular de una realidad
determinada.
Unos 20 años después, Zech llegaba a la Argentina y mostraba, en un
texto genéricamente distinto –además de autobiográfico–, un personaje más
cargado con las contradicciones que su propia situación personal le aportaban:
Quien, en momentos de desasosiego, se vea obligado a reflexionar
con absoluta claridad sobre su destino futuro, tras haber reconocido
finalmente que ya no puede respirar el aire de su entorno, quizá
recuerde, cuando ya no encuentra otra salida que la de apartarse
violentamente de esta vida, algún parentesco en el mundo. Y cuando
esta imagen ya un tanto difuminada reaparece de golpe con toda
frescura y tiene el contorno de una certeza inmediata, la fuerza del
recuerdo se extiende un poco más. Y uno intenta descifrar lo vivo
detrás de la apariencia y conocer el sentido más profundo del vínculo
de parentesco. (1997, p. 19)
Este texto ensayístico está dividido en tres partes, la primera comienza
con la imagen de desasosiego e incertidumbre ante la inminencia del viaje del
fragmento recién citado y se explaya en las ideas previas que tiene sobre el país
al que ha de llegar y las imágenes idílicas con las que se lo imagina:
a un par de jornadas de aquno ya puede establecerse junto a la
fuente primitiva de todo lo que nutre, de todo lo que fluye y lo que
crece. Donde la tierra aún tiene muchísimo espacio para todo
excedente de seres humanos y de la obra de sus manos productoras
(1997, p. 20) [las cursivas son nuestras].
Es el lugar en el que está todo aún por hacerse y desde el que los granos,
los animales, la materia prima parten
Hacia un mundo que hace mucho que ya no tiene ese viento, ese
bosque, esos campos de pastoreo y las fuerzas extraídas de ese
paisaje nutritivo. Y que por eso debe desmoronarse, sobre mismo,
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bajo las manifestaciones críticas de una confusión desorientada
(1997, p. 21) [las cursivas son nuestras].
En la visión romantizada de Argentina de un autor alemán que muy en
contra de su voluntad debe abandonar su tierra –romantización que entra en
crisis en la segunda y tercera parte de este textoexiste también una imagen
del sistema productivo mundial y de la división internacional del trabajo de los
comienzos de siglo que reflejan una globalización incipiente y una visión
desencantada y decadente de la crisis de una Europa que sucumbe ante el
fascismo. Frente a esta Europa, con cierta inocencia y aun con cierto orgullo o
sensación de superioridad hegemónica, se le figura una imagen de la Argentina
como una tierra helénica y sin determinación histórica, como un lugar en el
que todo lo que viene causando lo que Zech siente como un fin del mundo, no
ha tenido lugar y en donde se va a jugar el futuro del mundo:
Donde a los que ingresan por casualidad, a los que aún no se han
asimilado, de ningún modo se les pregunta (…): “¿De dónde vienes?
¿Quién eres?”; pero donde se pretende saber con toda claridad: “¿A
dónde vas? ¿Qué sabes hacer?” (…) Una ciudad donde con seguridad
todavía no existe mucho de lo que en Europa ya superamos hace
tiempo. Pero donde puede decidirse tarde o temprano lo último y tal
vez determinante, lo definitivo para el mundo. (1997, p. 20)
Todo el punto de vista autobiográfico de este ensayo es el vehículo de la
propia forma que va tanteando, la forma con la que evalúa y pone en
consideración una visión determinada del mundo y una lectura del momento
histórico. En términos de Adorno:
La referencia a la experiencia (…) es la referencia a la historia entera;
la mera experiencia individual, con la que la conciencia arranca y
empieza como con lo que más próximo le es, ya está mediada por la
experiencia comprehensiva de la humanidad histórica... (1962, p.
20)
La experiencia propia, narrada y reflexionada y el ordenamiento por
momentos caprichoso de las ideas y las impresiones reflejan –en la superficie
de su expresión– el desencanto que cunde en un mundo en crisis y al borde de
una guerra y que se constituye en algo así como su tónica.
De esta forma, podríamos proponer que un escritor intelectual de
izquierda se aparece aquí como carácter tipo de la sociedad europea del siglo
XX, que reflexiona sobre el contexto de su exilio, una clase de emigración cuya
especificidad radica en los motivos políticos de la huida
7
:
Así se erigía, en estas consideraciones previas, la ciudad ante él, ante
7
Arnold Spitta define que “El exiliado ha sido obligado a la fuga (o emigración) a causa de su
propio accionar político o bien sus visiones políticas. Él es el refugiado político en sentido
estricto. El emigrante, en cambio, debió abandonar su terruño por causas que fueron
independientes a su posición o actividad política (por ejemplo, persecución racial).” (la
traducción es nuestra) (1978, pp. 8-9).
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el hombre que sólo era uno entre muchos semejantes cuando un día
se le quitó no sólo el sentimiento de terruño y la patria, sino además
el suelo que lo nutría y la libertad personal en todas sus
manifestaciones. (1997, p. 21)
La segunda y la tercera parte del ensayo se ocupan ya de sus primeras
impresiones sobre la Argentina. Primero de aspectos urbanísticos de la ciudad
de Buenos Aires, la publicidad radial y la colectividad alemana, y luego de
aspectos artísticos de la cultura local, principalmente de la literatura y del
teatro.
En la primera de estas partes, pareciera ser que las impresiones que
recibe Zech sobre esta tierra son tantas y tan intensas que el tono se vuelve más
vertiginoso, más cáustico y el estilo parece recordar al de su propio
expresionismo s temprano (el de los poemas a los que nos referimos más
arriba, pero también a otros poemas de los primeros años en los que retrata
escenas del ámbito portuario), pues pareciera ser que tal es la impresión que
esta ciudad le genera:
Y ante la verja, en medio de la trajinada acera, una vieja figura
humana llena de costras, repleta de harapos y mugre: una mujer de
ochenta años, durmiendo con una bolsa de mendigar debajo de la
cabeza.
Y, además, el olor del mar, el murmullo en el viento y las poderosas
masas de agua en el semicírculo del horizonte. Con barcos que
entran y vuelven a partir. Con el chirrido de las cadenas de las anclas
y de las grúas correderas. Con un muelle negro por el hormiguero
humano… (1997, p. 23)
El prejuicio idílico de una tierra helénica de la modernidad –valga lo
paradójico de la expresión– se choca con las contradicciones del subdesarrollo:
Y así como en todas las partes del territorio sudamericano las calles
son sólo el letrero de las fuerzas en actividad, oscilando inquietas por
las gradaciones de la tensión económica y los estratos sociales, y
también el indicador vibrante de aquello que uno quisiera parecer
pero que aún no ha llegado a ser realmente, a menudo muy bien
encaminado hacia allí, pero constantemente separado por la
irrupción inesperada de malas coyunturas y devaluación monetaria,
revoluciones e intranquilidad en las provincias, así también aquí, en
el amontonamiento de casas de una planta, de construcción
morohispana, a menudo muy primitivas y semiarruinadas, junto a
rascacielos de 38 pisos, obras en construcción baldías durante años
y ruinas de un inquilinato demolido, alineados en una sola calle
como la configuración viva de la apariencia: rica y pobre, proletaria
y ultracapitalista, archiconservadora y aventurera al borde de la
especulación más osada. (1997, p. 22)
En esta etapa de su obra, Zech parece más afectado por los aspectos
contradictorios de la sociedad. De la publicación de Das schwarze Revier al
ensayo Buenos Aires (1935) pasaron 22 años y no solamente es distinto el
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contexto de escritura sino también –y fundamentalmente– la posición en la
que el autor se ubica frente a éste. En 1913 parecía tratarse de un Zech más
preocupado por retratar el mundo de los oprimidos; esto era acorde a su
posicionamiento político, su pertenencia (o al menos acercamiento, pues no
hay datos exactos al respecto de su afiliación) al SPD (Sozialdemokratische
Partei Deutschlands, Partido Socialdemócrata Alemán) y posteriormente al
USPD (Unabhängige Sozialdemokratische Partei Deutschlands, Partido
Socialdemócrata Alemán Independiente –que se asocia con la Liga
Espartaquista) y las perspectivas de una revolución socialista. Podríamos
proponer que se trataba entonces de una poesía de carácter más militante.
Mientras que en esta otra etapa, luego de haber sido derrotada la revolución
en Alemania, luego de la experiencia de la República de Weimar, las
dificultades económicas y el exilio, se abre a un autor veinte años más maduro
un mundo absolutamente nuevo al que llega un poco a regañadientes y donde
la necesidad literaria es otra. Entonces, tanteando
8
aquí la forma del ensayo
intenta dar cauce a esta serie arrobadora de impresiones novedosas e
inesperadas, donde lo contradictorio, lo fragmentario y lo discontinuo se
vuelve la expresión formal del discurso. Adorno (1962) plantea sobre la forma
del ensayo que su fragmentariedad es comparable a la del romanticismo, a la
“concepción romántica del fragmento, como formación incompleta que
procede al infinito a través de su autorreflexión” (p. 27). Esta idea es de suma
importancia para la estética marxista: lo fragmentario como exponente de lo
total, y “que la totalidad brille por un momento en un rasgo parcial escogido o
alcanzado, pero sin afirmar que la totalidad misma esté presente” (p. 28), que
lo fragmentario que se muestra como superficial sea la arena en la que lo
esencial y subyacente se debate, y que haga emerger eso esencial y subyacente
para que se vuelva apariencia de otra esencia. Benjamin, asimismo, se refiere
al montaje de los harapos o de los desechos de la historia:
Esto es, levantar las grandes construcciones con los elementos
constructivos más pequeños, confeccionados con un perfil neto y
cortante. Descubrir entonces en el análisis del pequeño momento
singular, el cristal del acontecer total. Así pues, romper con el
naturalismo histórico vulgar. Captar la construcción de la historia en
cuanto tal. En estructura de comentario Desechos de la historia.
(2005, p. 463)
Como si fuera por entre las coyunturas de los fragmentos, en lo
fragmentario (en la sucesión de imágenes de la enumeración, en la
concatenación de ideas o en el montaje de los desechos) se filtra la esencia de
una modernidad iridiscente, multívoca y polifónica, y en lo contradictorio del
entretejido social expresado como superficie, como apariencia, se ven
8
Adorno dice al respecto de la manera en que el ensayo procede que “no lo hace
programáticamente, sino como caracterización de la intención tanteadora” (1962, p. 28);
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reflejadas las fuerzas subyacentes de la realidad que constituyen su esencia.
Así, prolifera también Zech en momentos por la vía de la enumeración:
Rostros de marfil oliva y ébano. Inmigrantes con todos sus trastos,
charlatanes y timadores. Mercachifles cargados de artículos para
fumadores, caramelos
9
, naranjas y tortas de maíz rellenas con
carne. Griterío ensordecedor de los vendedores de diarios, niños:
andrajosos, sucios, la negra gorra de plato llevada don descaro sobre
la oreja y el eterno cigarrillo entre los dientes. Ejércitos de
lustrabotas, tranvías taxis, colectivos y un niño perdido, el mismo
que llora siempre y en todas partes. Una magnífica vista, este trozo
de puerto, las calles paralelas, rozadas por el follaje sereno de
invierno, acariciadas por un aire templado, absolutamente limpio.
(1997, p. 24)
En la última parte del ensayo, Zech se ocupa principalmente del ámbito
literario y teatral local. Incurre en una diatriba en contra de una cultura para
la cual el modelo es el francés y que es propiedad de una clase alta; menciona
algunos diarios y publicaciones como Sur, que “Lamentablemente aparece casi
a puertas cerradas, como placer privado de una rica dama con ambiciones
literarias, que se siente más en casa en París y Roma y Londres que en Buenos
Aires” (1997, p. 28).
Más allá de su cáustica descripción de la escena local, resultan
interesantes en esta parte ciertos elementos que nos construyen el contexto
histórico. En cuanto a Alemania, se nos figura un estado particular de la
globalización y de la división internacional del trabajo en un momento en que
los movimientos migratorios marcaban una productividad específica, pues:
Alemania jamás ha sido para esta gente latinoamericana un
concepto político relevante. Más bien ha sido un objeto de
intercambio mercantil y de mano de obra especializada barata y
voluntariosa. (1997, p. 26)
Asimismo, la amenaza del fascismo parece la confirmación de un estado
globalizado del mundo en el que ni el exilio termina de poner distancia ante
aquello de lo que se huye. Zech refiere a una puesta en escena de la obra de
teatro Razas, del antifascista Ferdinand Bruckner (seudónimo del dramaturgo
Theodor Tagger), en la cual irrumpieron representantes del sector fascista de
la colectividad para protestar
contra el “ultraje de los emblemas alemanes (léase la canción de
Hosrt-Wessel), la difamación del Führer y la denigración del pueblo
alemán”, lo cual condujo finalmente al cierre temporario del teatro.
Después de este “asalto al teatro” y de esa “batalla teatral”, hay que
poner absolutamente en duda que estos descarados escándalos,
inspirados, puestos en escena y financiados por la conducción local
del partido nacionalsocialista alemán, resulten absolutamente útiles
al prestigio del pueblo alemán. (…) Y una vez más es necesario
9
Las cursivas están indicando que Zech usa esta palabra española.
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concluir una consideración que tenía que ver con asuntos totalmente
distintos del mundo en torno a la esvástica, constatando que, incluso
separados por el océano, cerca de la selva, bajo un sol tropical
abrasador, en una ciudad donde los últimos vástagos indígenas se
mezclan con las razas blancas de Europa, uno no puede librarse de
ese escalofriante lastre (1997, pp. 30-1).
El mundo ahora reflejado se llena de los conflictos y contradicciones que
le dan una densidad particular al texto. Y en el texto se entretejen las
fragmentarias impresiones y las ideas, debatiéndose en la arena de la expresión
que tantea buscando la connivencia dialéctica en la que la superficie del texto
pone en marcha la esencia subyacente de un mundo nuevo que todavía
pugnaba por adquirir, para Zech, una expresión.
Esperemos valgan, entonces, estas ideas aquí propuestas para
introducir la obra de un autor n poco estudiado en nuestra lengua al
horizonte teórico de la estética marxista. Consideramos que su obra puede ser
de gran provecho para el estudio de la literatura alemana en el contexto del
exilio en Latinoamérica y que, a su vez, una perspectiva marxista es más que
propicia (y creemos que novedosa) para su análisis, a la vez que esperamos que
la obra de Zech pueda aportar al estudio de la estética marxista.
Referencias bibliográficas
ADORNO, Theodor. Notas de literatura. Barcelona: Ariel, 1962.
BENJAMIN, Walter. El libro de los pasajes. Madri: Akal, 2005.
LUKÁCS, György. Sociología de la literatura. Barcelona: Ediciones Península,
1968.
OVERATH, Angenlika. Das andere Blau: Zur Poetik einer Farbe in modernen
Gedicht. Stuttgart: J. B. Metzler, 1987.
PICCOLI, Héctor. Prólogo. In: ZECH, Paul. Yo soy una vez Yo y una vez Tú:
Antología poética. Rosario, Argentina: Editorial Serapis, 2010.
SPITTA, Arnold. Paul Zech im damerikanischen Exil 1933-1946. Berlim:
Colloquium Verlag, 1978.
ZECH, Paul. Das schwarze Revier. Berlim: A.R.Meyer Vlg., 1913.
______. La Argentina de un poeta alemán en el exilio 1933-1946. Buenos
Aires: Facultad de Filosofía y Letras UBA, 1997.
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Como citar:
SUFOTINSKY, Tomás. La configuración de la realidad en dos momentos de la
obra de Paul Zech. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências
Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 203-15, jan./jun. 2020.
Data do envio: 14 mar. 2020
Data do aceite: 4 maio 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.530
María Belén Castano
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El pensamiento utópico en Christa Wolf
María Belén Castano
1
Resumen:
La propuesta se detiene en analizar el eco del pensamiento utópico de Ernst
Bloch presente en los ensayos de Christa Wolf Der Schatten eines Traumes.
Karoline von Günderrode -ein Entwurf (1978) y Nun ja! Das nächste Leben
geht aber heute an. Ein Brief über die Bettine (1979). Asimismo, se
profundizará la caracterización del romanticismo de Wolf como revolucionario
utópico, que implica una crítica a la modernidad y a la civilización capitalista
y que está ligado al feminismo.
Palabras clave: utopía; Christa Wolf; Bloch; romanticismo.
The utopian component in Christa Wolf
Abstract:
This paper will analyze the echo of the utopian thought of Ernst Bloch present
in the Christa Wolf’s essays Der Schatten eines Traumes. Karoline von
Günderrode -ein Entwurf (1978) and Nun ja! Das nächste Leben geht aber
heute an. Ein Brief über die Bettine (1979). Likewise, we will focus in the
characterization of Wolf's romanticism as utopian revolutionary, which
implies a critique of Modernity and capitalist civilization and that is linked to
feminism.
Keywords: Utopia; Christa Wolf; Bloch; Romanticism.
Introducción
Sayre y Löwy (1995, p. 104) caracterizan a Wolf como una escritora
romántica ya sea por su fuerte interés por los escritores alemanes románticos
sino también por su cosmovisión romántica Weltanschauung, que implica una
crítica a la modernidad y a la civilización capitalista tecnológica que surge en
el siglo dieciocho, inspirada en aquellos valores pre-modernos. Este aspecto
que aparece en sus escritos tempranos, se vuelve central en Kein Ort. Nirgends
y en los ensayos sobre Karoline von nderrode y Bettine von Arnim, ya que
1
Doutoranda em Literatura Alemã pela Universidad de Buenos Aires/Conicet. E-mail:
belcastano@gmail.com.
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estas autoras románticas consideradas al margen del canon literario se
pronunciaron en contra de las normas del patriarcado.
La propuesta se detiene en analizar el eco del pensamiento utópico de
Ernst Bloch presente en los ensayos sobre Bettine Brentano y Karoline von
Günderrode Der Schatten eines Traumes. Karoline von nderrode -ein
Entwurf (1978) y Nun ja! Das nächste Leben geht aber heute an. Ein Brief über
die Bettine (1979). Asimismo, se profundizará la caracterización del
romanticismo de Wolf como revolucionario utópico y ligado al feminismo.
Si bien las reflexiones sobre el feminismo no son un tema representativo
de la obra de Ernst Bloch nos ocuparemos de destacar la actualidad que tienen
las consideraciones presentes en el ensayo Kampft uns neue Weib, Programm
der Frauenbewegung presente en Das Prinzip Hoffnung (1954-9) en relación
al elemento utópico con el que caracteriza los sueños de una nueva mujer que
habían comenzado a surgir hacia principios de 1900 y cómo ellos se vinculan
con lo expresado por las autoras románticas outsiders elegidas por Wolf.
Ernst Bloch fue profesor de filosofía en la Universidad de Leipzig desde
1949 a 1957, donde Christa Wolf realizó sus estudios y su influencia en la obra
de la autora de Der geteilte Himmel ha sido poco indagada.
1. El aspecto romántico revolucionario de Ernst Bloch y su
caracterización de las utopías del movimiento feminista
Löwy (2007, p. 14) señala que Bloch define a sus primeros escritos y en
particular al Thomas Münzer como románticos revolucionarios y considera
que esto se aplica al conjunto de su obra. Aclara que por “romanticismo” no
entiende solamente una escuela literaria de comienzos del siglo XIX, sino una
vasta corriente cultural de protesta, en nombre de ciertos valores sociales o
culturales del pasado, contra la civilización capitalista moderna en tanto
sistema de racionalidad cuantificadora y de desencantamiento del mundo
(2007, pp. 14ss). En oposición al romanticismo conservador o reaccionario que
aspira a la restauración de los privilegios y jerarquías del antiguo régimen, el
romanticismo revolucionario integra las conquistas de 1789 y en lugar de
plantear “un retorno a lo anterior, se funda en un rodeo por el pasado
comunitario (2007, p. 15). Löwy indica que Bloch siempre permaneció fiel a
sus intuiciones juveniles y no renegó jamás del romanticismo revolucionario
de sus primeros escritos y que es posible encontrar en Das Prinzip Hoffnung
frecuentes referencias a Geist der Utopie, en particular a la idea de utopía como
conciencia anticipadora, como figura de “pre-apariencia” (2007, pp. 15; 16).
Ureña Pastor (1986, pp. 242ss) analiza el sesgo utópico con el que Bloch
caracteriza al hombre y explora su deseo de zambullirse en las utopías
abstractas del pasado para captar los sueños de una vida mejor vividos por el
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hombre occidental de antaño. También, destaca la relevancia de la actitud de
protesta que revelan las utopías abstractas al orden establecido y que
manifiestan una tensión que implica una ruptura hacia un mundo distinto del
presente (1986, pp. 242ss). Son cinco los grupos de las utopías del pasado que
Bloch investiga en su análisis histórico que se enfoca en las ilusiones de la
salud, de una sociedad sin miseria y en los milagros de la técnica: las utopías
médicas [die ärtzlichen Utopien]; las utopías sociales [Sozialutopien]; las
utopías técnicas [technische Utopien]; las utopías arquitectónicas
[architektonische Utopien] y las utopías geográficas [geographische Utopien].
En su estudio, Bloch se detiene también en las utopías contemporáneas a su
época: el movimiento juvenil [Jugendbewegung]; el movimiento feminista
[Frauenbewegung] y el movimiento judío, conocido con el nombre de
sionismo (1986, p. 271). Con respecto a las mujeres, Bloch rastrea el origen del
movimiento feminista a fines del siglo XIX a partir de la utopía forjada por ese
grupo basada en las ansias de reivindicación de la mujer, recluida en la casa,
con la obligación de servir y agradar, reducida a la pasividad, que sueña con
una mujer nueva, libre de toda enajenación y discriminación (BLOCH, 2006,
p. 163).
La mujer está abajo: desde hace tiempo está organizada para ello. La
mujer está siempre a mano, siempre presta a ser utilizada; es la más
débil y siempre está atada a la casa. En la vida de la mujer se hallan
estrechamente unidos el servir y la obligación de agradar, porque el
hecho de agradar hace también estar al servicio. La joven tenía que
ser sustentada por el matrimonio, y así tenía que permanecer a la
espera, tenía que aguardar al marido. (BLOCH, 2006, p. 163)
El planteo de Bloch incluye un reconocimiento de los avances que se
emprenden a principios del siglo XX, por parte de mujeres, cuyos sueños -de
no ser oprimidas- considera sugestivos y actuales (BLOCH, 2006, p. 163). Sin
embargo, critica las limitaciones de dichas conquistas en la sociedad
capitalista, al considerar que el capital, al darle un lugar a las profesiones de la
mujer, había estado interesado en eliminar todo lo que sonara a libertad y a
verdadera emancipación socialista:
la joven burguesa se hizo responsable de ganarse el sustento, pero
ello la hizo independiente solo en apariencia. En lugar del derecho
al amor libremente escogido, en lugar de la vida libre, lo que vino fue
la monotonía de la oficina y, además, en la mayoría de los casos, en
una posición subordinada (BLOCH, 2006, p. 164).
Más aún, Bloch subraya cómo la inserción laboral de la mujer se había
articulado en puestos mal pagos, para una subalternidad voluntaria, al compás
de una objetivación capitalista que había premiado una innegable sobriedad
de la mujer (BLOCH, 2006, p. 167). Y sostiene que “el movimiento feminista
es suficiente para crear una utopía parcial, tal como la ha creado ya en las
utopías generales precedentes” y considera que “este elemento propuesto y
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esperado llevará también en la sociedad sin clases a la deliberación y a la
acción, como un problema propio heredado” (BLOCH, 2006, p. 171).
Asímismo, plantea Bloch que solo en una sociedad socialista, libre de
explotación económica y social, podrá la mujer desarrollar las posibilidades
latentes de su femeneidad:
La emancipación femenina de especie concreta apunta, en cambio,
a ejemplos auténticos desde la perspectiva utópico esencial. (…) Y
ello tanto más seguramente cuanto que en una sociedad sin clases
desaparecen las múltiples y alienadas categorías de mercancía y de
dominación que, sobre todo en el capitalismo, han contribuido a
moderlar los tipos de mujer aparecidos hasta ahora. (BLOCH, 2006,
p. 172)
Bloch considera que lo utópico en la mujer, allí dónde aparece
previamente como valioso [vorerscheint] “muestra un aspecto de profundidad
humana central y consoladora (BLOCH, 2006, p. 173).
2. Las huellas de la utopía de Bloch en Bettine Brentano y Karoline
von Günderrode
Algunos antecedentes que rastrean la influencia de Bloch en la obra de
Wolf, se pueden encontrar en el estudio de Huyssen (1979), que plantea el
componente utópico presente en su novela más conocida Nachdenken über
Christa T. (1968). Para Huyssen, es posible advertir que la protagonista,
Christa T., encarna la esperanza superadora de la alienación en la sociedad
socialista: “La esperanza de que surja la utopía como un medio para eliminar
la alienación”
2
(HUYSSEN, 1979, p. 83).
Consideramos que las figuras femeninas del romanticismo alemán que
Wolf pone a la luz, Bettine von Arnim y Karoline nderrode, se identifican
con una intención utópica que encuentra coincidencias con el estudio de Bloch
mencionado. La utopía de estas figuras, muy poco usual para la época, está
ligada a el sueño de un mundo en el que las mujeres dejen de estar excluidas,
oprimidas y relegadas al espacio doméstico y en el que su voz y su escritura
puedan ser consideras. Wolf reflexiona también sobre el vínculo entre la poesía
y la utopía que se desprende de las epístolas de estas autoras.
En los años 70 se asiste a un redescubrimiento del romanticismo entre
los escritores de la RDA y es en esta época que Wolf se concentra
principalmente en trabajar dos temas: el período del romanticismo temprano
en Alemania y el lugar que las mujeres habían tenido o dejado de tener en la
sociedad desde entonces (MCPHERSON, 1988, p. XVIII). El centro de su
interés lo ocuparon las figuras de Bettine Brentano y Karoline von Günderrode
2
La traducción es mía.
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(1780-1806), hija mayor huerfána de una familia aristocrática que tuvo que
vivir en un convento de mujeres y que formó lazos con distintos miembros del
círculo de los Románticos de Heidelberg a principios del siglo XIX; entre ellos
con Bettine Brentano (1785 -1859), hermana del poeta Clemens y s adelante
esposa del poeta Achim von Arnim. De Bettine en particular Wolf declara
admirar su modo directo de decir las cosas, su coraje que mostró en la vida en
general y su activismo político feminista en Berlín. La amistad entre las dos
mujeres fue documentada en la novela epistolar Die Günderrode publicada en
1839 por Bettine Brentano. Wolf rescata la protesta de Anna Seghers en el
intercambio epistolar que tuvo en 1938-9 con Lukács, al señalar que
Günderrode había sido excluída del canon literario por él considerado junto
con otras figuras outsiders de los inicios del siglo XIX como Büchner, Kleist y
Hölderin. En la carta del 28 de junio de 1938, Seghers le recuerda a Lukács que
Goethe se había pronunciado muy desvaforablemente a propósito de una
generación de escritores con su confrontación categórica en la que asocia el
clacisismo con lo saludable y el romanticismo con la enfermedad (LUKÁCS,
1971, p. 345) y menciona la manera fría con la que acogió a Kleist y a muchos
otros. Vedda encuentra similitudes entre la preferencia de la autora de Das
siebte Kreuz por autores envueltos en los conflictos de la época, que habían
manifestado agitación y consternación por su época, en oposición al concepto
de obra orgánica y cerrada como expresión de acomodamiento del statu quo
(2010, p. 127). Y sostiene que la capacidad de Wolf, de representar una realidad
desgarrada se corresponde con una representación del ser humano entero que
“no implica ver al hombre como entidad armónica; a contrapelo de la literatura
y la estética del clasicismo alemán, Wolf concibe al hombre como una entidad
múltiple y paradójica”, con la convicción de que “la misión de la literatura es
poner de manifiesto esa diversidad conflictiva, sin recubrir las contradicciones
bajo una ‘bella apariencia’ estética” (VEDDA, 2010, p. 127).
El ensayo Der Schatten eines Traumes. Karoline von Günderrode -ein
Entwurf, sobre Karoline Von Günderrode, fue publicado en 1978. Nos interesa
resaltar cómo el mismo da cuenta de una denuncia implícita al patriarcado,
inusual para la época.
Kuhn (1988, pp. 149ss) sostiene que en dicho estudio Wolf caracteriza a
los personajes cómo víctimas de una transición histórica y señala que en este
ensayo es posible identificar el concepto de Ungleichzeitigket de Ernst Bloch.
McPherson (1988, p. xix) sostiene que en la lectura de Wolf, tal como
indica el título del poema de Günderrode que es también el de este trabajo, se
arraiga en la visión de que la vida de Günderrode estaba ubicadas en los
márgenes de la sociedad, una vida en la sombra de un sueño.
Se destaca el hecho que este ensayo plantea una serie de lamentos por
parte de Günderrode ligados a su género: al no haber nacido hombre, señala la
dificultad de querer escribir siendo mujer. Su autorrealización a través de la
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escritura la tuvo que hacer utilizando el pseudónimo masculino “Tian” con el
que publicó poesía, obras y prosa y, como era costumbre en aquella época,
escribió muchas cartas. Wolf hace alusión a la incongruencia de la época [die
Unstimmgkeit der Zeit] que experimenta Günderrode a los veintiún años y
sostiene que había sido marcada por un dilema insoluble, con una vida corta,
pobre en acontecimientos pero rica en conmociones interiores (WOLF, 1990,
p. 511). Al quitarse la vida, deja una obra corta en gran parte ignorada que es
redescubierta un siglo después, ya que la novela de Bettine Brentano La
Günderrode (1840) no había logrado mantener vivo su recuerdo.
Wolf sostiene que no es casual que sean justamente las mujeres las que
cuestionen y retraten los males de la época, ya que al no tener trabajos ni
independencia económica no tenían nada que perder al decir lo que pensaban;
ella encuentra una curiosa contradicción: el surgimiento de un pensamiento
libre y utópico al que denomina la “religión de lo inestable” [Schwebereligion]
en un contexto de total dependencia del género (WOLF, 1990, p. 542). Esta
religión se basa, para Wolf en la no admisión de una educación acabada, que
permita a cada uno descubrirse a mismo. Esto se refiere a la sed de
conocimiento y a la búsqueda de la autenticidad, algo que permea, a su vez,
toda la obra de Wolf.
Wolf pone a la luz aquí las dificultades que atraviesa nderrode por
ser mujer, por haber nacido en el seno de una familia aristocrática
empobrecida cuyo padre había muerto prematuramente y cuya madre, por la
que ella no se sabe amada, es incapaz de ofrecerle un hogar a sus hijos;
Karoline ayuda a su hermana a huir de la casa materna y a otra la cuida muy
joven en su lecho de muerte.
La autora subraya la escapatoria que encuentra Günderrode en el
trabajo intelectual. Al mismo tiempo, introduce la denuncia sobre la falta de
lugar para las mujeres de dicha época en áreas como la política, la producción
y el comercio y cómo eso generaba en ellas un sentimiento de inferioridad y la
experimentación de una pérdida de la realidad.
Se advierte cómo el ensayo hace hincapié en la desdicha del género
masculino durante el proceso de industrialización temprana, que lleva a los
hombres a la renuncia de mismos y a la división de mismos; y ello, para
Wolf, había afectado su capacidad de amar y los había obligado a rechazar a las
mujeres más libres (WOLF, 1990, p. 549). Al mismo tiempo, Wolf considera
que en dicha coincidencia histórica las mujeres empiezan a escribir y a mostrar
su verdadera forma de ser (WOLF, 1990, p. 549). Sostiene que en el
romanticismo muchas callan y se convierten en amas de casa virtuosas y
algunas, muy pocas, comienzan a escribir: es allí cuando marca el comienzo de
la literatura femenina. Asimismo, sostiene que este tipo de mujeres van a
convertirse en las grandes ciudades en las fundadoras de los salones y ve en el
tono de sus confesiones, en sus intereses y opiniones un intento, tal vez
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inconsciente, de introducir elementos femeninos en la cultura estructurada
sobre el patriarcado (WOLF, 1990, p. 541).
Wolf identifica una visión revolucionaria en estas primeras intelectuales
femeninas y analiza la manera particular en la que viven los inicios de la era
industrial, de la división del trabajo y de la alabanza a la ratio entendida, para
ellas como violación de la naturaleza.
Resulta sugestiva la reflexión en la que Wolf sostiene que la poesía tiene
algo en común con la esencia de la utopía, al decir que tiende a la búsqueda
impaciente y espontánea del absoluto (WOLF, 1990, p. 570). Sin embargo,
considera que la mayoría de las personas no puede soportar que se exprese en
voz alta el malestar ante la insuficiencia y las limitaciones de la vida a las que
han de resignarse (WOLF, 1990, p. 570). Wolf hace hincapié en el carácter de
outsider de nderrode que termina con su vida y que no puede adaptarse al
mundo de las convenciones, de una sociedad que pretende medirlo todo en
cantidad, con la radical división del trabajo; en ese contexto hostil pone a los
poetas en el lugar de víctimas de los demás y de mismos (WOLF, 1990, p.
571).
El ensayo sobre Bettine
3
von Arnim Nun ja! Das nächste Leben geht
aber heute an. Ein Brief über die Bettine (1979), fue publicado un año después
que el de nderrode. Reúne detalles biográficos de su vida y constituye un
documento valioso de denuncia del patriarcado de la época.
Wolf explora en detalle la trayectoria de vida e intelectual de esta figura.
El texto adquiere el formato de una carta en la que la autora presenta detalles
sobre su vida a un interlocutor denominado D. Menciona su deseo de abordar
temas similares a los que Bettine von Arnim trata en su novela epistolar Die
Günderrode y destaca que la distancia histórica le brinda una ventaja de
perspectiva. Sostiene que las cartas sobre las que Bettine había basado su libro
en 1839 habían sido escritas en 1804 y 1806: el encuentro con Karoline
Günderrode se da en la época en la que Bettine aún no tenía veinte años, en la
casa de su abuela, la famosa escritora Sophia La Roche (WOLF, 1990, p. 572).
Karoline era cinco años menor que Bettine y en seguida se apegó a ella, la
visitaba a diario en su cuarto en el convento de Frankfurt am Main, le leía en
voz al alta, anotaba sus poemas, planeaba viajes y compartía muchas
cuestiones con ella. Wolf menciona que Bettine se sentía sola en el ambiente
rico de los Brentano y su hermano Clemens se la presenta a Achim von Arnim
como una joven ingeniosa, que no sabe que lo es y que se siente infeliz con su
familia.
3
Cabe destacar que Wolf replica la variabilidad del nombre Bettine a veces escrito con “a” y
otras con “e”.
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Con respecto a las denuncias del patriarcado, en primer lugar Wolf
cuenta que la familia le reprocha a la joven Bettine por estudiar hebreo en lugar
de cultivar las virtudes domésticas que un esposo podría apreciar.
En segundo lugar, Wolf destaca las diferencias entre Bettine y
Günderrode. La primera se prometía a misma no ser infeliz y aceptaba la
vida que le tocaba. Günderrode se sentía condicionada por los códigos
burgueses de vida y se sometía a los códigos burgueses del arte en la poesía.
En tercer lugar, Wolf presenta una reflexión sobre la forma de este
ensayo que considera particular para la época y representativa de una voluntad
por parte de las mujeres de resistencia a la dominación de un cierto tipo de
forma de canon: un canon a las que ambas se sometieron al mismo tiempo,
standard para su trabajo. En este estudio, Wolf profundiza la correspondencia
entre Bettine y Günderrode, de la que destaca el carácter poético, el lenguaje
ditirámbico, el tono muchas veces efusivo, la intemperancia. También
considera que la forma que adopta este texto es un híbrido: algo que, como
mencionamos antes, se vincula con la resistencia a la dominación al canon de
la época. Wolf sostiene que especialmente para nderrode tratar de estar
cerca del canon establecido para la época era necesario para poder ser
considera una poeta significativa (WOLF, 1990, p. 601). La autora de
Nachdenken über Christa T. describe el particular nculo de amor que las une,
marcado por la admiración de Bettine por la filosofía femenina de Günderrode
y (WOLF, 1990, p. 603), cuyo camino es opuesto al de la autoaniquilación de
la cultura masculina agresiva. En cuarto lugar, Wolf sostiene que el de
Günderrode y Bettine se trata de un vínculo muy particular, cuyo ejemplo en
la literatura es quizás el único, un vínculo que es alternativo al masculino.
3. El interés de Wolf por el romanticismo
En la entrevista con Frauke Meyer Goasau, que fue publicada por
primera vez en Berlín Oriental en Alternative (1982), Wolf detalla algunas
cuestiones que nos permiten profundizar nuestra reflexión sobre el carácter
utópico y el romanticismo revolucionario de los ensayos analizados. Wolf
admite que, más allá del interés personal por las biografías de estas autoras, lo
que a ella le interesaba más a la hora de ocuparse del romanticismo era indagar
cuándo había comenzado la feroz división entre los individuos y la sociedad.
Es por ello que se pregunta hasta qué punto la división del trabajo cobró un
protagonismo tal que la literatura había sido expulsada de la sociedad y su
comprensión dejó de ser esencial para entender la realidad. Al mismo tiempo,
considera que en esta misma época el elemento femenino también había sido
expulsado de la sociedad, aunque esto había comenzado mucho antes. La
autora observa que en esta etapa de incipiente sociedad industrial, tanto
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mujeres como intelectuales habían tenido cada vez menos influencia en los
procesos determinantes de las vidas de la esfera social y que la severidad de
esta transformación habría llevado a ambos a un lugar de outsider (WOLF,
1990, p. 880).
Wolf declara que no se había interesado tanto por el concepto de
Romanticismo como movimiento y no considera a nderrode como un
personaje romántico en sentido estricto (WOLF, 1990, p. 880). Lo que a ella le
interesa explorar es la incapacidad de algunos autores de esta generación para
cooperar con su tiempo, con su talento, con la literatura y con su vida personal;
quienes en rminos burgueses pero también para la teoría literaria marxista
fracasan [scheitern] ((WOLF, 1990, p. 881). Wolf confiesa que gracias a
Seghers había conocido por primera vez el nombre Günderrode y luego había
comenzado su investigación sobre ella. Lo que más le interesa a Wolf de los
románticos es la experiencia de vida que transmiten, su vida en grupos, en los
márgenes de la sociedad: aquellas figuras literarias centrales que, estaban en
los bordes de la sociedad burguesa. Asimismo, se interesa por el modo en el
que las mujeres del romanticismo inician ese proceso, al ser las que más tenían
la necesidad de expresarse a través de los márgenes. Con este nuevo interés de
Wolf por el romanticismo, a diferencia de lo que había estudiado sobre
literatura alemana, descubre el componente de los románticos de experimento
social protagonizado por un pequeño grupo de personas progresistas.
Conclusiones
Nos propusimos indagar elaboración ficcional que realiza Wolf de las
trayectorias de vida de las poetas del romanticismo temprano con el fin de, por
un lado, dar cuenta de su vínculo con el aspecto revolucionario utópico del
movimiento romántico que exploran Sayre y Löwy (1995), afín a una crítica a
la modernidad y a la civilización capitalista que nos permite evidenciar la
potencia de los reclamos del feminismo que los ensayos de Wolf sobre
Günderrode y Bettine Brentano traslucen. Por otro lado, exploramos la
relación que estos ensayos tienen con las imágenes utópicas de emancipación
femenina que Bloch propone en Das Prinzip Hoffnung. Al indagar el proceso
histórico de los sueños de liberación del movimiento feminista a fines del siglo
XIX, Bloch plantea que solo en una sociedad socialista, libre de explotación
económica y social, podrá la mujer desarrollar las posibilidades latentes de su
feminidad (BLOCH, 2006, p. 172).
Para Bloch “el mundo se encuentra pleno de disposiciones, tendencias
y latencias que apuntan a algo, y ese algo es la realización de la intención
utópica: un mundo liberado de sufrimientos indignos, de angustia, de
alienación” (LÖWY, 2007, p. 16). En este sentido, es que identificamos en
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estos ensayos de Wolf la intención utópica que radica en el abordaje de las
trayectorias de vida de estas mujeres del romanticismo, que considera en los
márgenes de la sociedad de su época y que anhelan un mundo libre de
alienación y con igualdad de oportunidades entre los géneros. Esto se
relaciona, también, con la reflexión, antes mencionada, que realiza Wolf sobre
la escritura, y las primeras mujeres de la época, como Günderrode, que
empiezan a escribir y que marcan el vínculo entre la poesía y la utopía.
Wolf considera que los románticos forman parte de una de las
generaciones que habían sentido que la potencia de sus intensas inquietudes,
deseos, pasiones que fluían en sus conversaciones y círculos literarios no podía
traducirse en acción. Advierte que esto es difícil en las sociedades industriales
orientadas hacia la eficiencia y la producción masiva y que esto se convierte en
un fenómeno marginal. Wolf destaca que son las mujeres justamente las que
inician ese proceso, al ser las que más tenían la necesidad de expresarse a
través de los márgenes, en contra de los modos totalitarios y restrictivos de la
sociedad. En segundo lugar, el foco de Wolf en estas autoras se puede
interpretar como una defensa de la postura de Seghers que retoma estas
figuras poniéndolas por encima de los clásicos en su debate epistolar con
Lukács. Al recuperar la voz de estas mujeres, al mismo tiempo, Wolf realiza
una crítica implícita al patriarcado, fundamentada en el desplazamiento del
canon literario de estas figuras femeninas y pone en un lugar central a estas
mujeres como precursoras de la literatura femenina. En tercer lugar, Wolf a
través de estos ensayos da cuenta de las dificultades de las mujeres que se
reunían en los grupos de Heidelberg y denuncia la compleja situación de
Karoline von nderrode y de Bettine Brentano. La primera obligada a vivir
en un convento sin ninguna posibilidad de tener independencia sobre su vida,
al no estar casada no podía tener ningún rol en la vida pública ni tener una
profesión para vivir. En cambio sostiene que Bettine Brentano había padecido
la situación opuesta: después de casarse con el poeta Achim von Arnim tuvo
siete hijos, y se sintió oprimida por los cuidados domésticos y familiares; luego
de la muerte de su marido se convirtió en activista de los derechos de la mujer.
La publicación de las obras de Günderrode, aunque sea con un pseudónimo
fue, para Wolf, el único triunfo que ella había podido tener, ya que la escritura,
le había podido permitir trascender la banalidad de las restricciones de su
tiempo, (WOLF, 1990, p. 888).
La intención de explorar el nculo entre el carácter romántico
revolucionario que presentan Wolf y Bloch a la hora de esbozar escenarios
utópicos -en los que la mujer no sea considerada un objeto- va de la mano del
anhelo, que ambos comparten de una emancipación del género humano, en
una sociedad libre de explotación y humillaciones.
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1990c.
______. Die Dimension des Autors. Essays und Aufsätze Reden und
Gespräche 1959-1985 Band 1 [1987]. Darmstadt: Sammlung Luchterhand,
1990c.
Como citar:
CASTANO, María Belén. El pensamiento utópico en Christa Wolf. Verinotio –
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1,
pp. 216-27, jan./jun. 2020.
Data do envio: 14 mar. 2020
Data do aceite: 6 maio 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.551
György Lukács
228
A Estética de Hegel: introdução
1
György Lukács
A Estética de Hegel significa, no campo da filosofia da arte, o ápice do
pensamento burguês, das tradições burguesas progressistas. Os conhecidos
aspectos positivos do pensamento hegeliano e seu modo de escrever se
manifestam com mais clareza neste trabalho; a universalidade de seu
conhecimento, seu profundo e fino senso pelas peculiaridades e contradições
do desenvolvimento histórico, a conexão dialética dos problemas históricos
com as questões teóricas e sistemáticas das legalidades objetivas universais:
todos esses traços positivos da filosofia hegeliana aparecem mais claros em sua
estética. Os clássicos do marxismo mantinham particularmente grande apreço
por esse trabalho. Quando Engels instruiu Konrad Schmidt, nos anos 90 do
século passado [XIX], a lidar com Hegel de maneira particularmente
cuidadosa, ele naturalmente recomendou em primeira linha a leitura da
“lógica”. Mas acrescentou: "Eu posso recomendar a estética para relaxar.
Quando penetrar um pouco nela, ficará surpreso." (MARX; ENGELS, 1979, p.
204)
1
Trad. Ronaldo Vielmi Fortes, revisão ortográfico-gramatical de Vânia Noeli Ferreira de
Assunção. Existem duas versões do texto de Lukács: a escrita em 1951 (LUKÁCS, 1954) e a
edição que compõe o prefácio à obra de Hegel, qual seja, Einführenden Essay von Georg
Lukács (in: HEGEL, 1955). Entre ambas existem poucas, mas significativas modificações, que
poderão ser verificadas particularmente pela supressão, em algumas passagens, das
referências diretas a Stálin. A retirada de parte das citações protocolares” é feita de modo
consciente pelo autor e destaca de maneira clara sua posição política naquele momento.
Conforme esclarece Lukács no Prefácio à edição italiana, escrito em 1957 (cuja tradução foi
feita com base na edição de 1955), no passado, um autor marxista, para poder, em geral,
publicar suas obras e exercer uma influência, via-se mais de uma vez obrigado a firmar
compromissos. (...) Esses compromissos se centravam em torno da pessoa e dos trabalhos de
Stálin” (LUKÁCS, 1957, p. 10). No entanto, como poderá ser verificado, nem todas as citações
protocolares foram retiradas do texto. A esse respeito, o próprio autor se justifica: “se não
suprimimos todas as citações de meus velhos trabalhos coisa que não seria muito difícil –,
isso se deve, por um lado, a que aquele ambiente histórico é uma das condições pelas quais
nasceram esses trabalhos e eu não desejo ‘modernizá-los’. Por outro, a discussão acerca da
obra e a posição histórica de Stálin não está ainda concluída, por se tratar de problemas
fundamentais e de método, nem sequer se iniciou de modo científico” (LUKÁCS, 1957, p. 11).
Vale destacar que, apesar dessa justificativa, na Introdução à publicação da Estética de Hegel,
parte dessas chamadas passagens protocolares” foi suprimida. Para que o leitor possa ter o
conhecimento do fato, indicamos esses momentos em notas de rodapé.
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György Lukács
229
I
O vínculo orgânico das concepções históricas com as teórico-
sistemáticas se constituiu pela primeira vez, também no campo da estética e
na história da filosofia burguesa, na filosofia clássica alemã. É claro que esta
concepção também teve seus precursores, como Vico, que, no entanto, o teve
nenhum efeito sobre seus contemporâneos diretos, cuja influência no século
XVIII foi, por assim dizer, "subterrânea": não evidências de que Hegel
conhecia Vico.
As tentativas de criar uma história da literatura e da arte que
precederam a filosofia clássica eram de natureza principalmente empírica, e se
de vez em quando era feita uma tentativa de lhes dar uma base filosófica, a
concepção demasiadamente abstrata, "atemporal", "supra-histórica" dessas
ideias impedia que se tornassem propícias ao registro concreto das legalidades
da arte e da história, assim como impedia que fossem aplicadas à estética. O
problema em si, o vínculo entre concepção estética e conhecimento histórico,
surgiu das questões cotidianas da literatura e da arte. A luta de classes da
burguesia tornou necessário defender teoricamente a literatura e a arte
emergentes não apenas contra as tradições da arte feudal, mas também contra
a teoria e a prática que a teoria da arte classicista e a prática da monarquia
absoluta haviam desenvolvido. Essas discussões começaram na virada dos
séculos XVII e XVIII (Querelle des anciens et des modernes). Por volta de
meados do século XVIII, essa luta assumiu uma forma mais nítida. Os maiores
representantes teóricos da burguesia revolucionária, Lessing e Diderot, já
haviam dado à nova arte uma base ampla e profunda. Como resultado de toda
essa impostação, a ideologia burguesa revolucionária se manifestou no
desenvolvimento estético dos princípios da arte burguesa como uma defesa da
arte autêntica contra a pseudoarte, como uma proclamação de princípios
"eternos" da estética contra todas as aberrações e interpretações errôneas
(relação de Lessing com Aristóteles). É aqui que entram em cena os mesmos
princípios ideológicos que, na economia clássica, anunciam a ordem de
produção capitalista como o único modo de produção sensato e em
conformidade às leis.
Certamente, no curso do Iluminismo, a fim de alcançar uma justificativa
teórica para a nova arte, surgem outros pontos de vista históricos sobre a
concepção da literatura e da arte. Rousseau adverte muito claramente para a
natureza problemática e contraditória da cultura baseada na propriedade
privada, e especialmente da arte; e Herder tenta fornecer uma representação
histórica coerente de toda a cultura humana e, nela, da literatura e arte. As
tentativas amplas e significativas no campo da estética, no entanto, não
levaram à apreensão sistemática da história e de sua legalidade. O pessimismo
cultural de Rousseau às vezes levava à subestimação de toda arte, e Herder era
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György Lukács
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incapaz de combinar seus esclarecimentos históricos espontâneos-
materialistas com a concepção materialista de arte. Na época do Iluminismo,
a questão da relação entre história e teoria apenas levava à colocação de
questões significativas, mas não à solução metodológico-filosófica.
Isso ocorreu na filosofia alemã clássica. Em suas Teses ad Feuerbach,
Marx descreve exatamente o momento metodológico a partir do qual essa
inflexão ocorreu. Ele enfatiza que todas as antigas filosofias materialistas têm
a deficiência de apenas considerar o mundo por meio do aspecto
contemplativo, e não por seu lado prático, ou seja, elas negligenciam o lado
subjetivo da atividade humana: "daí o lado ativo, em oposição ao materialismo,
[ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo que, naturalmente, não
conhece a atividade sensível, real, como tal" (MARX, 2007, p. 533).
A elaboração filosófica desse "lado ativo", também no campo da estética,
constitui uma das conquistas mais importantes da filosofia alemã clássica. O
principal trabalho estético de Kant (Crítica do juízo) representa, portanto, uma
inflexão na história da estética. A análise filosófica da atividade do sujeito
estético é colocada no centro do método e do sistema, tanto no comportamento
estético produtivo quanto no receptivo. No entanto, Kant é apenas o iniciador
desse desenvolvimento e não seu realizador, como afirmam os historiadores
burgueses da estética. Sobretudo porque ele é um idealista subjetivo, sua nova
problemática se refere apenas ao indivíduo isolado, produtor ou receptivo e,
desse modo, o papel histórico e social da arte desaparece quase completamente
em sua estética. Nesse sentido, a estética de Kant é um passo atrás em relação
à de Herder, uma vez que o momento do progresso se relaciona puramente a
questões metodológicas abstratas. (Somente a apreensão dessa situação torna
compreensível o contraste entre Kant e Herder, aspecto que a história
burguesa da estética nunca pode entender.)
Mesmo dentro desses limites, contudo, a estética de Kant contém
apenas os primeiros indícios do novo método. Kant, o idealista subjetivo,
interpreta o princípio da atividade de tal maneira que nega a teoria estética do
reflexo. Segue-se, por um lado, que ele só pode determinar o objeto estético de
maneira puramente formalista, o que significa que, de acordo com sua teoria,
as questões de conteúdo estão fora do campo da estética real. Por outro lado,
como Kant é um pensador sério e, como Lênin apontou, oscila entre
materialismo e idealismo, os problemas estéticos de conteúdo também surgem
necessariamente, mas ele é incapaz de resolvê-los usando os conceitos básicos
de seu sistema e, portanto, muitas vezes só pode incorporá-los ao seu sistema
estético com a ajuda de procedimentos sofísticos.
Apesar de todas essas contradições, o impacto do novo todo que Kant
usou em sua estética foi extraordinariamente grande. Seu primeiro grande
seguidor, Schiller, tentou reconciliar o elemento de conteúdo, a determinação
filosófica concreta do objeto estético, com a filosofia idealista, dando um passo
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mais além de Kant. Essas tentativas teriam de ser, é claro, também de natureza
puramente contraditória, pois, ainda que Schiller tenha ido além do conteúdo
da concepção de Kant, ele se esforçou vigorosamente para desenvolver o
idealismo objetivo, mas, ainda assim, em sua teoria do conhecimento se
apegou ao idealismo subjetivo de Kant. Em oposição à visão burguesa, que
simplesmente o classifica como aluno deste, Schiller deve ser visto como um
fenômeno de transição entre o idealismo subjetivo e o objetivo. O caráter de
transição da filosofia de Schiller se manifesta acima de tudo no fato de que ele
vai muito além da natureza não histórica da estética de Kant. O novo método,
a análise da atividade do sujeito estético, torna-se expressamente um problema
histórico. Em um de seus estudos mais importantes (Sobre poesia ingênua e
sentimental), ele coloca pela primeira vez a questão da oposição entre a nova
e a antiga arte do ponto de vista filosófico, tentando demonstrar o direito à vida
da nova arte de maneira filosófica. Porém, em Schiller isso ainda é realizado,
em grande parte, no marco das categorias do idealismo subjetivo, com base
nas mudanças estruturais feitas no sujeito estético. No entanto, para além de
suas limitações gnosiológicas, Schiller tem bastante sensibilidade histórica
para, pelo menos, suscitar a conexão dessas categorias subjetivas com
mudanças históricas e sociais.
O efeito da estética de Kant nos escritos teóricos de Goethe é de outra
natureza. Goethe sempre teve uma inclinação ao materialismo espontâneo, e
em sua estética nunca rejeitou completamente a teoria materialista do reflexo.
Ao mesmo tempo, também é um dialético espontâneo, motivo pelo qual critica
mais de uma vez a teoria mecânica do reflexo (veja seu estudo sobre as obras
estéticas de Diderot) e, principalmente com base em sua própria prática,
transfere para o campo da teoria estética a diferença histórica entre a arte
moderna e a antiga (O colecionador e os seus parentes etc.).
De uma maneira completamente diferente, a iniciativa metodológica de
Kant é mais desenvolvida pelo romantismo, desde o início assumindo uma
direção reacionária. Até o jovem Friedrich Schlegel, que, sob a influência de
Schiller, levantou a questão do contraste estético filosófico entre a literatura
antiga e a moderna, introduziu alguns traços marcantes da decadência nas
características da literatura moderna. Os críticos, tradutores etc. do
romantismo, ao mesmo tempo, ampliaram extraordinariamente os horizontes
da literatura mundial e da arte. Foram eles que renovaram Dante e a literatura
medieval, trouxeram a público os grandes tesouros da literatura espanhola,
foram os tradutores pioneiros da literatura indiana. Sobre essa base, o jovem
Schelling escreveu sua primeira estética resumida (1805), em que tratou
filosoficamente as questões históricas. Com Schelling, a transição para o
idealismo objetivo foi concluída e, por conseguinte, efetuou-se a tentativa de
expor filosoficamente a dialética como a força que move a realidade objetiva.
No primeiro período do idealismo objetivo, em Schelling se encontrava
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232
também certa oscilação entre idealismo e materialismo. Desse modo, em sua
estética, o reflexo da realidade objetiva desempenhava um novo papel. Tudo
isso aconteceu de uma forma completamente mistificada: para Schelling, a
retomada da teoria do reflexo significava a renovação da teoria platônica das
ideias. Nessa estética, há a tendência de derivar as questões mais importantes
do desenvolvimento histórico da arte a partir da dialética objetiva da realidade.
Na implementação real, no entanto além de alguns comentários e análises
engenhosos –, a dialética de Schelling se move essencialmente entre analogias
abstratas e a imersão em um misticismo irracional. Esse elemento irracional é
ainda mais acentuado pelo fato de que Schelling é capaz de imaginar a
transição do pensamento mecânico para o dialético de maneira intuitiva,
apenas através da chamada "intuição intelectual".
O pensador mais importante do romantismo no campo da "estética" é
Solger. Com ele, o movimento dialético das contradições é muito mais vivo do
que Schelling, mas ele não consegue concentrar o movimento das contradições
em uma síntese dialética e, portanto, sua estética desemboca em um
misticismo relativista.
II
A estética de Hegel é um compêndio crítico enciclopédico de todas essas
tendências. O desenvolvimento precedente havia reunido tanto material sobre
a história da arte e a teoria da arte que tornou possível a Hegel dar uma síntese
histórica abrangente e filosófica do desenvolvimento da arte. Esse
desenvolvimento, no entanto, abrange a história e o sistema de emergência,
decadência e mudança das categorias estéticas na história real da humanidade
e no sistema completo das categorias filosóficas.
Esse tratamento enciclopédico de problemas estéticos naturalmente
amadureceu lentamente, apenas passo a passo, mesmo em Hegel. Embora
tenha se envolvido com literatura e arte desde tenra idade, a estética como
ciência independente tem um papel relativamente tardio em seu pensamento.
Em seus escritos de juventude de Berna e Frankfurt (até o ano de 1800),
Hegel trata o problema da arte exclusivamente nos contextos históricos ou
sociofilosóficos. Hegel era republicano em sua juventude e, embora se
opusesse às concepções jacobinas, ainda se reconhecia como um defensor
entusiasta da Revolução Francesa. Como tal, ele ficou entusiasmado com a arte
antiga, cuja conexão interna com as condições de vida democráticas das
repúblicas da cidade antiga enfatizava com frequência e determinação. Sob a
influência de Georg Forster líder da Revolta de Mainz Jacobina que morreu
como exilado em Paris –, rejeitou, em nome da Antiguidade – cuja renovação
ele esperava que fosse empreendida pela Revolução –, a arte do cristianismo
e, com ela, toda a arte moderna da maneira mais veemente.
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233
Após o fim da Revolução Francesa, em Frankfurt, ocorreu uma inflexão
na filosofia de Hegel: ele fez o ajuste de contas com as aspirações
revolucionárias de sua juventude, pelas quais ele esperava a renovação da
antiga cultura democrática em conformidade com a ideologia da Revolução
Francesa.
Em conexão com essa inflexão, Hegel estudou os clássicos da economia
(Steuart, Adam Smith) e a vida econômica inglesa com grande intensidade. No
curso de seus estudos, certas contradições da sociedade capitalista e, ao mesmo
tempo, a necessidade social do capitalismo gradualmente se tornaram mais
claras. Essa compreensão o levou a dissipar suas ilusões da juventude, que o
haviam enganado, de poder usar a revolução para restaurar a cultura antiga. A
primeira consequência que essa concepção histórica lhe traz é a percepção de
que a Antiguidade não é u ideal a ser renovado não pode ser considerada a
medida de todas as culturas –, mas é apenas a cultura de um tempo que
finalmente desapareceu, um tempo definitivamente extinto. Como resultado
da mesma percepção, Hegel passou a conceber o desenvolvimento da Idade
Média e dos tempos modernos não mais como um puro declínio, e não mais
como uma ruína, mas como o caminho real do desenvolvimento social, cujo
conhecimento da lei é o dever da filosofia, da estética. Segundo Hegel, esse
desenvolvimento levou à sociedade capitalista. A cultura e a arte que
caracterizam o caminho que conduz até esse ponto são necessárias. Como
resultado dessa percepção, a atitude de Hegel em relação ao cristianismo e,
portanto, à cultura e arte medievais mudou radicalmente. Obviamente, não
podemos acompanhar passo a passo o desenvolvimento de Hegel; limitar-nos-
emos aos pontos de inflexão mais importantes. Em seu período de Iena, cuja
maior obra conclusiva é Fenomenologia do espírito (1807), Hegel trata a arte
como parte do desenvolvimento religioso, como a transição da mera religião
natural para a religião "revelada", para o cristianismo. Mesmo essa divisão nos
mostra que, apesar da mudança em seu ponto de vista histórico-filosófico,
Hegel ainda considerava apenas a arte grega antiga arte real: embora a tratasse
como um período ultrapassado e desatualizado do desenvolvimento do
"espírito". Pode não ser supérfluo ao leitor de hoje notar que o tratamento da
arte como parte do desenvolvimento religioso está relacionado ao atraso da
filosofia alemã naquele período. (Lembremos que, mesmo 40 anos depois, o
materialismo de Feuerbach as mudanças na consciência religiosa como as
principais características do desenvolvimento histórico. Por outro lado, deve-
se levar em conta que, embora a filosofia de Hegel esteja cheia de elementos
místicos devido ao seu idealismo, ele ainda assim frequentemente coloca
questões concernentes à consciência religiosa de um modo muito mais social e
histórico que Feuerbach.)
Como observamos, essa concepção da Fenomenologia do espírito
preserva grande parte da concepção juvenil de Hegel, segundo a qual apenas a
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arte da Antiguidade pode ser vista como arte autêntica. Os capítulos estéticos
da Fenomenologia contêm muitas análises inteligentes e profundas sobre a
escultura grega, os épicos homéricos, a Antígona de Sófocles, a comédia grega.
Essas análises também são de grande importância porque, na análise estética
das maiores obras de arte, Hegel relaciona a origem dos gêneros, sua sucessão,
seu desaparecimento etc. ao desenvolvimento da sociedade grega. A comédia
antiga aparece nele como o gênero das repúblicas gregas em desintegração.
Dessa maneira, a obra juvenil de Hegel lança as bases para a dialética histórica
das categorias estéticas. Nesse período de Hegel, o processo de dissolução da
arte grega antiga significou o fim do desenvolvimento da arte. A comédia
antiga não é seguida por um novo gênero, mas a arte é substituída pela
categoria da "situação jurídica" como expressão apropriada para esse nível de
desenvolvimento do "espírito". Para Hegel, o domínio de Roma, que entra no
lugar da hegemonia grega, também significa a substituição da arte pela lei. O
trabalho de Hegel, portanto, não lida com os problemas estéticos da Idade
Média e dos tempos modernos. (No entanto, Hegel analisa a obra-prima de
Diderot em detalhes: O sobrinho de Rameau; essa análise detalhada, no
entanto, trata exclusivamente de questões de moralidade social, e Diderot
figura aqui como representante do Iluminismo que prepara a Revolução
Francesa; sobre o fato de ter sido Diderot, em sua obra, um grande artista
nenhuma palavra foi dita.)
Encontramos a mesma concepção na primeira edição da Enciclopédia
(1817). A única diferença é que, nesta obra, o "espírito absoluto" na
terminologia de Hegel aparece pela primeira vez. A estética ocupa o primeiro
capítulo sob o título: "Religião da arte", seguido pelo tratamento da religião e
da filosofia; a esse respeito, aparece aqui o sistema de divisão triádico, que
mais tarde se desenvolveu plenamente no sistema hegeliano. O tratamento da
arte em si ainda corresponde totalmente ao espírito da Fenomenologia. Aqui,
também, apenas a arte grega antiga obtém uma caracterização séria.
Este modo de tratamento mudou apenas na segunda edição da
Enciclopédia (1827), a saber, tornou-se mais radical. O próprio título muda, a
palavra "arte" permanece. Essa mudança de título é o reflexo de uma mudança
fundamental no conteúdo e na metodologia. Aqui encontramos a periodização
básica da estética hegeliana: a distinção e análise dos períodos da arte
simbólica (oriental), clássica e romântica (medieval e moderna).
Hoje não podemos seguir em suas fases específicas o processo em que a
forma metodológica definitiva da estética hegeliana surgiu. E não podemos
fazê-lo porque a maioria dos manuscritos que Hotho, o estudante de Hegel,
tinha disponível no momento da primeira impressão deve ser considerada
definitivamente perdida. Hegel realizou dois cursos de estética em Heidelberg
(1817 e 1819) e quatro em Berlim (1820-1, 1823, 1826 e 1828-9). Hotho teve
acesso a muitos cadernos de ouvintes desses cursos, principalmente dos anos
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235
de 1823 e 1826, bem como às próprias anotações de Hegel. Por meio desses
registros, Hotho observa que os mais antigos foram escritos em Heidelberg em
1817, e Hegel os reformulou completamente em 1820. Nos últimos anos, Hotho
acredita que não houve mudanças fundamentais, apenas acréscimos. A partir
disso, pode-se dizer que, na construção da estética hegeliana, a inflexão efetiva
ocorre no ano de Heidelberg e nos primeiros anos de Berlim, por volta de 1820.
Os alunos de Hegel, no entanto, que prepararam seus trabalhos para
impressão, foram muito descuidados com o seu legado e, portanto, a maior
parte desses registros foi perdida.
O próprio Hotho não se importava minimamente com as origens da
estética hegeliana. Apenas uma coisa era importante para ele: montar um livro
perfeitamente legível e uniforme das palestras de Hegel. Isso ele conseguiu. No
entanto, os documentos mais importantes sobre a origem da estética hegeliana
foram perdidos. Georg Lasson, que começou a publicar uma nova edição da
estética pouco tempo, conseguiu, com bastante esforço, detectar o texto
original de Hegel nos suplementos de Hotho; ele também apontou algumas
diferenças no ordenamento entre as palestras de 1823 e 1826; tudo isso se
refere apenas à primeira parte da estética. Dessa forma, a fase decisiva de
desenvolvimento da estética hegeliana permanece uma questão em aberto.
A partir deste breve esboço, pode-se ver que a reorganização da estética
hegeliana está principalmente relacionada ao método e à realização da
periodização; esta cria os fundamentos histórico-sistemáticos da estica. Seria
muito superficial pensar que a incorporação do desenvolvimento artístico
moderno na estética depende exclusivamente da época em que Hegel dominou
todo o material concreto dessa arte. Obviamente, ele adquiriu passo a passo
seu conhecimento diversificado e extenso. Já em Iena, onde mantinha contato
estreito com Goethe, Schiller, Schelling e alguns românticos, ele teve muitas
oportunidades para se familiarizar com obras notáveis de arte moderna.
(Vimos que, por exemplo, na Fenomenologia Hegel examinou
minuciosamente o trabalho de Diderot, que acabara de aparecer, pouco antes,
na tradução de Goethe.) Em 1805, quando Hegel negocia com Voss o notável
poeta e tradutor de Homero sobre sua nomeação em Heidelberg, ele se
declarou pronto para realizar palestras estéticas. E, em sua Propedêutica
filosófica (1809-11), examinou dois estilos artísticos fundamentais, o antigo e
o moderno; caracterizou o primeiro como estilo plástico e objetivo, o segundo
como estilo romântico e subjetivo. No entanto, é significativo o fato de suas
análises subsequentes tratarem apenas do estilo antigo. Devemos considerar
tudo isso em relação ao fato de que, na estética de Hegel, a Antiguidade é
considerada o período autêntico e próprio da arte. Na seção introdutória sobre
arte romântica, ele olha para a Antiguidade e diz: "Algo mais belo não pode
haver nem haverá mais." (HEGEL, 2001, p. 251)
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236
III
É, portanto, evidente que a construção e reconstrução da estética
hegeliana se concentra na questão de como conceber histórica e dialeticamente
o passado e o desenvolvimento artístico anteriores e posteriores à Antiguidade.
Isso é, no desenvolvimento da arte, Hegel quer concretizar o caráter e o valor
estético histórico e dialético daqueles períodos que, em sua opinião, não
correspondem ao conceito puramente estético da arte, em que a arte não
possui a forma fenomênica apropriada para o grau de desenvolvimento dado
do "espírito", em que o desenvolvimento do "espírito" ainda não atingiu ou
superou o grau de desenvolvimento filosófico do estético, cujo caráter
fundamental, portanto, contradiz a essência da estética. A elaboração
aprofundada dessas contradições dialéticas peculiares que caracterizam esses
períodos é um dos grandes méritos da estética hegeliana. Em oposição ao
romantismo, que reverenciava acriticamente, anti-historicamente, a arte da
Idade dia e, mais tarde, a arte oriental, ele contrapôs abstratamente essas
artes às grandes obras artísticas da Antiguidade e do Renascimento, para pô-
las, distorcendo os princípios básicos da estética, muito acima dessas; assim,
Hegel elabora a linha do desenvolvimento histórico que fornece o fundamento,
ou pelo menos o ponto de partida, para a correta avaliação histórica e estética
dos fenômenos específicos em quase todas as questões do desenvolvimento
artístico. A profundidade e a generosidade dessa visão histórica são
particularmente evidentes na arte contemporânea, em cujo tratamento, por
um lado, Hegel comprova de maneira aguda o quão desfavorável é a sociedade
capitalista para o desenvolvimento da arte e, por outro, mostra uma profunda
sensibilidade em relação à importância artística das grandes figuras desse
período – especialmente de Goethe.
Em Hegel, o tratamento da história da arte está em estreita relação com
a elaboração das categorias estéticas. Como idealista objetivo, Hegel luta
vigorosamente – contra Kant e contra os empiristas – pelo reconhecimento da
verdade objetiva e absoluta das categorias estéticas. Como dialético, no
entanto, Hegel vincula essa essência absoluta das categorias ao caráter
histórico, relativo, de sua aparência concreta; ele tenta em todos os lugares
investigar a conexão dialética entre o absoluto e o relativo, especificamente em
relação ao curso do processo de desenvolvimento histórico. Do ideal estético
até a teoria dos gêneros específicos de arte, a estética de Hegel tenta a todo
momento trazer à tona esse entrelaçamento indissolúvel e dialético do
absoluto e do relativo.
Essa relação entre as categorias sistemáticas e históricas da estética não
é, de maneira alguma, na estética hegeliana, a contemplação de afirmações
abstratas por meio de "exemplos" históricos como em seus sucessores, que
fizeram todas as perguntas de maneira muito mais abstrata –, mas significam
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237
para ele a estreita conexão com a estrutura dialética de todas as questões
fundamentais da estética como um todo. Aos olhos de Hegel, o conjunto da
estética é apenas uma seção do grande desenvolvimento histórico do mundo,
da natureza ao "espírito absoluto". Nesse desenvolvimento, a estética ocupa
um estádio mais baixo de manifestação do "espírito absoluto", o grau de
intuição. O estágio imediatamente sucessivo é o da representação: religião; o
estágio mais alto é o do conceito: a filosofia.
Nessa estrutura histórica e dialética de todo o seu sistema, e nele a da
estética, Hegel chega a formulações completamente novas nas inúmeras
questões fundamentais da estética. (Trataremos posteriormente das
consequências distorcidas que o idealismo de Hegel apresenta em sua dialética
estética e principalmente para seu sistema estético.) Acima de tudo, a estética
hegeliana suplanta o idealismo subjetivo de Kant, seu falso dualismo, que
contrapõe ao conteúdo supostamente externo à estética e completamente
alheio às suas categorias uma forma sempre concebida abstrata e
subjetivisticamente, ainda que caracterizada esteticamente. A estética de
Hegel sempre parte do conteúdo, e da análise histórica e dialética concreta
desse conteúdo ele deriva as categorias estéticas fundamentais: a beleza, o
ideal, as formas artísticas concretas específicas, os gêneros de arte. No sentido
do idealismo objetivo hegeliano, entretanto, esse conteúdo não surge
puramente da atividade individual do sujeito da estética, da atividade do
artista ou do receptor estético. Pelo contrário, o indivíduo recebe esse conteúdo
da realidade social e histórica objetiva que existe independentemente dele,
como o conteúdo concreto do respectivo estágio de desenvolvimento.
Dessa maneira, Hegel não apaga o papel ativo do sujeito estético, mas
essa atividade pode ser exercida nas circunstâncias concretas descritas. O
conteúdo discutido aqui é a respectiva situação de desenvolvimento da
sociedade e da história (situação do mundo), que o sujeito estético ativo
considera e elaborada do ponto de vista da intuição. Para a atividade do sujeito
estético, segue-se a necessidade, a tarefa de reproduzir artisticamente este e
somente este conteúdo, de expressá-lo e apropriá-lo por meios próprios à arte.
Mediante o qual esses meios peculiares (formas) da arte afloram sem exceção,
na estética hegeliana, desse mesmo conteúdo. A estética hegeliana baseia-se
na dialética, na interação dialética de conteúdo e forma, e especificamente
na estética ainda mais decisivamente do que na lógica – sobre a prioridade do
conteúdo.
Para Hegel, no entanto, a concretização histórica do conteúdo nunca
significa um relativismo histórico. Pelo contrário, segundo a estética de Hegel,
essa concretização do conteúdo pode levar à determinação dos critérios
estéticos. Acima de tudo, para a avaliação estética de obras de arte específicas,
em que o critério da grande obra de arte consiste na extensão em que expressa
toda a riqueza inesgotável do respectivo conteúdo de maneira abrangente,
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profunda e lúcida (isto é, não puramente com a ajuda das reflexões do
entendimento). O conteúdo também fornece uma medida da extensão em que
os artistas se expressam em formas vivas ou não vivas (formalistas, epigonais)
em cada gênero artístico; isto é, a medida para a escolha certa ou errada do
gênero também é o respectivo conteúdo histórico. As formas dos gêneros
artísticos não são arbitrárias. Pelo contrário, elas emergem a partir da
definição concreta da respectiva situação social e histórica (situação do
mundo). Seu caráter, sua peculiaridade são determinados pela capacidade de
expressar as características essenciais de uma determinada fase sócio-
histórica. Por isso vários gêneros surgem em determinados estágios de
desenvolvimento da história, e mudam radicalmente de caráter (o épico se
torna romance), podem desaparecer completamente e reaparecer no curso da
história com certas modificações. No entanto, uma vez que, na visão de Hegel,
esse desenvolvimento é objetivamente necessário e relativo a leis, seu
reconhecimento não leva a um relativismo, mas, ao contrário, à objetividade
dialética e concreta das categorias estéticas. Em suma, ele elaborou os critérios
com os quais podemos avaliar períodos inteiros de estilos de desenvolvimento
da arte. Hegel não acredita que todas as fases do desenvolvimento da arte
sejam capazes de criar algo de igual valor, que, como afirma o relativismo
burguês decadente, a necessidade histórica para o surgimento de certos estilos
em certos períodos possa apagar as diferenças estéticas de valor e classificação
existentes entre os períodos e estilos específicos. Pelo contrário, ele acha que é
próprio da essência da arte que um conteúdo em particular seja mais adequado
para a expressão artística do que outro, que certos estágios do
desenvolvimento humano não são ainda ou já não são mais adequados para a
criação artística.
A situação particular que Hegel atribui à arte grega clássica assume um
significado estético geral e, além disso, um significado filosófico universal.
Assim, toda a estética se torna a revelação em larga escala dos princípios
humanísticos: a expressão do homem multilateralmente desenvolvido, não
distorcido, ainda não fragmentado pela desfavorável divisão do trabalho;
expressão do homem harmonioso, na qual as características físicas e mentais,
os traços individuais e sociais formam um todo orgânico inseparável. Aos olhos
de Hegel, formar esses homens é a grande tarefa objetiva da arte.
Naturalmente, esse ideal da humanidade cria o critério absoluto para avaliar
todo estilo artístico, todo tipo de arte ou obra individual.
Segundo Hegel, essa essência humanística da arte determina as
categorias estéticas. O jovem Marx enfatiza que Hegel a autocriação do
homem como um processo (...), que ele concebe a essência do trabalho e o
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homem objetivo, o verdadeiro porque real, como resultado de seu próprio
trabalho
2
.
A visão social da filosofia hegeliana baseada nessa concepção se reflete
em toda a sua estética. podemos entender a rejeição da beleza natural, a
visão de que a beleza como categoria é inseparável da atividade social humana,
nessa concepção geral. (O caráter idealista dessa concepção naturalmente
também decorre das distorções do problema que são evidentes nela.)
Assim, a estética hegeliana é a primeira – e a última – síntese científica,
teórica e histórica abrangente da filosofia da arte a que a filosofia burguesa
poderia chegar.
Certamente, esse sistema grandioso tem de apresentar todas as
deficiências e limitações do pensamento burguês. O idealismo objetivo de
Hegel foi suficiente para descobrir e superar os erros do idealismo subjetivo de
Kant; Hegel, como mestre consciente da dialética objetiva, pôde ir além do
genial e espontâneo dialético Goethe. Como pensador progressivo que liberou
todo o ser social para reconduzi-lo a seu processo, a seu desenvolvimento,
Hegel lutou com sucesso contra as tendências reacionárias do romantismo, foi
bem-sucedido sobre Schelling e Solger. Tudo isso, no entanto, só pôde ser feito
dentro dos limites do idealismo objetivo. Todos os erros, deficiências,
distorções, rigidez, construções abstratas, violações da realidade que os
clássicos do marxismo
3
descobriram e criticaram incansavelmente na dialética
idealista de Hegel também estão em sua estética. Esta estética – assim como a
lógica de Hegel constitui um documento fundamental para a história do
desenvolvimento do método dialético. A estética contém, por assim dizer,
problemas fecundos em cada uma de suas colocações e, em certos casos, até
soluções corretas. No entanto, para que possam ser usados de modo profícuo,
também precisamos transformá-los de maneira materialista; as soluções
corretas de Hegel devem ser invertidas da cabeça para os pés.
Essa inversão materialista da dialética idealista hegeliana é o problema
geral de toda a filosofia de Hegel, da qual a filosofia da arte é apenas uma parte.
Como resultado, a reelaboração materialista da estética é em grande parte uma
função da transformação geral, lógica, gnosiológica etc. dos problemas
dialéticos realizados no espírito do materialismo. Os clássicos do marxismo
4
fizeram isso, fundamentalmente. Um prefácio como este, é claro, não pode
propor a tarefa de tratar tudo isso, ainda que brevemente. Temos de nos limitar
a destacar aquelas questões mais importantes que têm um efeito profundo nas
2
[NT] Embora não apareça entre aspas no texto original, este trecho consiste na citação de
uma passagem dos Manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 1982, p. 292, trad. nossa; ed.
bras.: MARX, 2014, p. 123).
3
[NT] Na edição de 1951 encontra-se: “Marx, Engels, Lênin e Stálin”, aqui substituídos por
“clássicos do marxismo”.
4
[NT] Na edição de 1951: “... Marx, Engels, Lênin e Stálin...”.
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questões estéticas cruciais que são as principais fontes dos erros e distorções
idealistas particulares da estética hegeliana.
A primeira dessas questões é o problema do reflexo. O idealismo
hegeliano é um idealismo objetivo que afirma reconhecer a realidade objetiva
independente da consciência humana e expressá-la de forma racional,
coerente e dialética. Para isso, o método científico exclusivo e consistente é a
teoria dialética do reflexo, que reconhece plenamente a realidade objetiva, que
existe independentemente de nós, sua dialética objetiva e a dialética subjetiva
que ocorre em nossa consciência como o reflexo mais aproximado do processo
objetivo-dialético. O conceito de objetividade de Hegel é, no entanto, idealista,
ou seja, em essência, de natureza espiritual ou consciente. O conceito básico
da dialética idealista hegeliana é, portanto, completamente contraditório, um
anel de ferro de madeira, como costumam dizer os húngaros: é a consciência,
mas não a consciência do sujeito, do homem; Hegel, a fim de poder dar-lhe um
portador, tem de elaborar o espírito, o espírito do mundo, como um princípio
de natureza espiritual, semelhante à consciência, mas que, ao mesmo tempo,
existe independentemente de toda consciência humana subjetiva, e é até
mesmo o produtor ou criador desta consciência humana. A consequência de
tal mistificação é que a filosofia hegeliana, que pretende apreender a realidade
objetiva em sua essência real, perde-se em um misticismo religioso.
Assim, enquanto a dialética materialista é capaz de determinar a relação
do mundo objetivo em si com a consciência subjetiva de maneira precisa e
científica, com o auxílio gnosiológico da teoria do reflexo, a dialética idealista
hegeliana deve se refugiar na teoria mística do sujeito-objeto idêntico.
Segundo Hegel, a consciência subjetiva do homem é o produto de um processo,
cuja força motora é precisamente o espírito do mundo, cuja revelação
consciente é a consciência que surgiu historicamente no homem. O processo
de conhecimento não vai na direção da aproximação progressiva da realidade
objetiva que existe independentemente da nossa consciência, mas na direção
da união perfeita de sujeito e objeto, para o surgimento do sujeito-objeto
idêntico. A objetividade da realidade objetiva não é, portanto, uma
propriedade necessária da realidade objetiva, mas apenas a forma fenomênica
do fato de que o espírito do mundo ainda não alcançou completamente a si
mesmo, o fato de que o sujeito-objeto ainda não foi realizado. O conhecimento
perfeito seria, se a filosofia de Hegel fosse levada às últimas consequências, a
dissolução de toda objetividade, a fusão completa de toda objetividade no
sujeito-objeto idêntico: portanto, um misticismo completo.
É claro que essa consequência extrema contradiz totalmente a direção
progressiva do método dialético, que constituía a arma poderosa do
conhecimento mais completo da realidade objetiva. A contradição
indissolúvel, que Engels enfatizou particularmente como uma contradição do
sistema hegeliano e de seu método, está intimamente relacionada a essa
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questão. É claro que Hegel também era um pensador sério demais, e seu
conhecimento enciclopédico da realidade era grande e extenso demais, para
coroar sua filosofia com um absurdo místico, com a retirada de qualquer
objetividade na esfera do sujeito. O fato de ele não ter feito isso foi apenas um
desvio das consequências gnosiológicas finais de seu sistema. E essa
contradição entre sistema e método pode ser sentida em todas as suas análises.
Portanto, não é possível que, como alguns imaginam, com a inversão
materialista da filosofia hegeliana simplesmente adotemos as considerações
concretas de Hegel e apenas substituamos o materialismo pelo idealismo, que
se poderia substituir o sujeito-objeto idêntico pela teoria do reflexo
5
. Pelo
contrário, temos de ver claramente que essa contradição fundamental da
dialética idealista hegeliana, a contradição entre sistema e método, influencia
profundamente todas as análises concretas de Hegel. Devemos ler suas
discussões específicas com as maiores críticas, mesmo onde e quando Hegel
capta certas conexões concretas profunda e corretamente, porque a
contradição fundamental de sistema e todo também penetra nelas. A
exigência da inversão materialista e do exame crítico da dialética idealista deve
se estender ao exame de cada problema singular, de todos os detalhes
singulares da estética. Ao analisar a lógica hegeliana, Lênin deu aos marxistas
um modelo metodológico de como essa inversão materialista deveria ser
realizada. Em relação ao todo e aos detalhes da estética, esta tarefa ainda está
por realizar.
Da contradição fundamental da dialética idealista segue-se que Hegel
não está em condições de determinar, de maneira concreta e consequente, o
lugar da estética nas ciências filosóficas. Não há dificuldade metodológica
intransponível para a dialética materialista; para ela, o reflexo estético é um
caso especial de reflexo em geral. A tarefa da estética marxista é reconhecer
com precisão as categorias da estética, formulá-las e determinar
cientificamente seu lugar na teoria geral do reflexo. Os artigos de Stálin sobre
linguística realizaram também para esta questão importantes trabalhos
metodológicos preparatórios.
O problema é bem diferente para a dialética idealista hegeliana. Em sua
polêmica contra Kant, Hegel faz corretamente o acerto de contas com os
princípios formais do idealismo subjetivo e agnósticos na estética. Ele também
tem razão – também em relação a Kant – quando se opõe fortemente à rígida
divisão de forma e conteúdo, àquela concepção kantiana que afirmava que os
elementos da estética podem ser encontrados na forma. A lógica hegeliana
estabeleceu uma interação, uma mudança constante recíproca de conteúdo e
forma entre si. Este é um grande passo adiante em relação a Kant; no entanto,
a lógica idealista hegeliana foi incapaz de determinar consequentemente a
5
[NT] Na edição de 1951: “etc.”.
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prioridade do elemento de conteúdo. Hegel foi mais longe em sua estética,
especialmente em suas discussões concretas, do que nas determinações
abstratas da lógica: muitas vezes observou com muita clareza que o conteúdo
concreto determina a forma estética concreta e usou esse conhecimento em
suas análises. Na história da estética esta foi uma conquista ainda maior, pois
Hegel sempre apreendeu o conteúdo historicamente, como o conteúdo
necessário de um determinado período histórico ou fase de desenvolvimento.
De fato, Hegel ofereceu mais do que uma exposição na qual o caráter social
dessa historicidade aparece mais ou menos concreta e claramente, de forma
que podemos encontrar em inúmeras análises da estética hegeliana a dialética
concreta do conteúdo social e da forma estética. Este é, sem dúvida, um
elemento avançado e prospectivo do todo dialético de Hegel, aberto ao
futuro.
Dessa maneira, o ponto central da estética hegeliana não é a forma, mas
o conteúdo. Essa afirmação metodológica está intimamente relacionada ao
esforço de Hegel de apagar a natureza dupla do conhecimento da verdade e do
mundo artisticamente representado, que é a maior debilidade, o lado mais
reacionário de qualquer estética formal, em primeira linha a de Kant. Kant se
esforçou intensamente para evitar essas consequências extremas em sua
estética e em colocá-la em uma conexão orgânica com outras áreas da atividade
humana (a moral), mas a direção básica de seu método o impediu de executar
com sucesso essa tendência. E, apesar da abordagem completamente diferente
de Kant, os neokantianos, baseados nele, desenvolveram ainda mais o
isolamento da estética, chegando até mesmo à fundação do princípio l’art pour
l’art. Como vimos, a estética de conteúdo de Hegel rompe radicalmente essa
visão. A esse respeito, Hegel se encontra em acordo com os representantes do
Iluminismo, que se recusaram absolutamente a admitir que fosse possível
construir uma contraposição excludente entre verdade e beleza. E, pelo fato de
concretizar historicamente, até mesmo socialmente, o conteúdo declarado
como primário, Hegel continuou a estética do Iluminismo nesse ponto,
enriquecendo-a com pontos de vista da dialética histórica.
Nem o Iluminismo nem Hegel foram, no entanto, capazes de resolver
consequentemente a questão da relação entre verdade e beleza. Somente a
dialética materialista do reflexo é capaz disso. Na filosofia do Iluminismo, a
relação entre verdade e beleza e sua unidade última era geralmente
apresentada como se a estética e o belo fossem apenas uma forma primitiva e
subordinada, apenas um estágio preliminar do conhecimento científico e
filosófico da verdade. Com isso, no entanto, a estética e todo o campo da arte,
não importa como os grandes pensadores do Iluminismo buscaram o oposto,
perdem sua independência, seu valor particular.
A filosofia pré-marxista não de resolver essa questão. Vimos os dois
falsos extremos que necessariamente surgem aqui: um é a independência da
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estética sob a base formal subjetivista kantiana; o segundo é a dissolução da
estética na teoria do conhecimento geral, como uma fase necessária, mas
apenas preparatória, do conhecimento filosófico.
Hegel faz grandes esforços para suplantar essa contradição. O fato de se
concentrar no conteúdo histórico significa certo passo adiante nesse sentido.
Aqui, ele se beneficiou da conquista de sua metodologia geral, de sua lógica,
pois ela cria uma conexão dialética entre fenômeno e essência que supera a
justaposição rígida de ambos, característica de toda filosofia metafísica e,
portanto, também do materialismo antigo. Hegel viu a peculiaridade da
estética no fato de que o ser aparece adequadamente no próprio fenômeno, que
no estético essa conexão não é dada conceitualmente, mas é imediatamente
dada aos nossos sentidos, que através do fenômeno, para usar sua expressão,
a essência transparece. Hegel percebeu elementos muito importantes das
características particulares da estética. Aprofundá-los consequentemente,
revelando-os como características particulares do reflexo estético, só seria
possível usando o método materialista-dialético do reflexo.
Vimos, no entanto, que Hegel substituiu o lugar do reflexo pelo processo
dialético idealisticamente mistificado que, na sua opinião, deve desembocar no
sujeito-objeto idêntico. Obviamente, ele incorporou em seu sistema essa
afirmação, rica em intuições corretas, que fez sobre as características
peculiares da estética. Nesse caso, a estética se torna uma fase de
desenvolvimento no processo de busca e localização do sujeito-objeto idêntico.
Na filosofia hegeliana, essa localização de si mesmo já ocorre no plano em que
o nível mais alto de consciência, de acordo com a terminologia hegeliana, o
nível do espírito absoluto, é alcançado. Hegel distingue três estágios no âmbito
do espírito absoluto: arte, religião e filosofia. Ele as toma como as fases
históricas do desenvolvimento do espírito e as relaciona com as fases da
estrutura de sua lógica, ou seja, com a intuição, a ideia e o conceito, segundo
as quais a estética significa a aparência do espírito absoluto no plano da
intuição, a religião na ideia, a filosofia no conceito. (Já falamos da contradição
entre o método hegeliano e seu sistema, que conduz sua filosofia a
consequências extremas.)
Hegel pretendeu relacionar essa construção lógica com a estrutura
histórica de seu sistema, de modo a vincular cada período de manifestação do
espírito a certos períodos históricos, para que o desenvolvimento do espírito,
da intuição ao conceito, fosse um processo filosófico e histórico. Para Hegel, o
período da arte grega significa a forma fenomênica do espírito no nível da
intuição, de acordo com o qual a arte representa a forma adequada da fase
correspondente de desenvolvimento do espírito. As coisas ocorrem do mesmo
modo entre a ideia e a religião cristã na Idade Média, assim como entre o
conceito e a filosofia no tempo de Hegel. Essa construção engenhosa, mas
extremamente artificial, deu origem ao problema insolúvel da filosofia
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hegeliana, pois é preciso explicar a existência e o caráter da arte antes e depois
do real "período estético" (o grego). Hegel caracterizou, assim, a arte oriental
como aquela em que o espírito ainda não atingiu o nível da intuição, e a arte
medieval e moderna como tal, como aquelas em que já se superou a intuição.
Em análises específicas, fez excelentes contribuições para os problemas
sociais, portanto os problemas de conteúdo e forma, tanto da arte oriental
quanto especialmente da arte moderna. No entanto, a excelência das análises
específicas não pode cancelar o caráter artificial e a contraditoriedade que todo
esse sistema contém.
Aqui posso destacar dois momentos principais. Um é que Hegel às
vezes é forçado a chegar à conclusão de que o espírito já ultrapassou a arte e
que esta perdeu seu significado filosófico. Ou, se levarmos consequentemente
este pensamento até o fim: o período da arte acabou. Felizmente para a estética
hegeliana, Hegel não implementou consequentemente esse ponto de vista nas
observações dos fenômenos concretos e em sua avaliação estética. O segundo
ponto ao qual devemos prestar atenção aqui é o fato de que Hegel não
conseguiu justificar filosoficamente a independência da estética. De fato, se
observarmos o desenvolvimento do espírito no sentido hegeliano, a arte é
apenas um estágio de preparação para o conhecimento adequado da realidade,
do conhecimento filosófico, do surgimento do sujeito-objeto idêntico. Aqui
também a estética não pode suplantar a contradição que já apareceu em
Leibniz, a saber, que a arte é um estágio preparatório do conhecimento, uma
forma fenomênica inadequada e não uma maneira independente de refletir
corretamente a realidade, ou seja, que é uma forma imperfeita do
conhecimento. Isso não pode ser reconciliado com a óbvia relativa
independência do mundo da arte no círculo das atividades humanas. E, ainda
que Hegel tenha ultrapassado seus predecessores na determinação da estética,
das diversas categorias estéticas, e na análise dos fenômenos, não pôde
suplantar a contradição que era insolúvel para eles nessa questão crucial.
A partir dessas contradições fundamentais se seguem todos os detalhes
rigidamente construídos da estética hegeliana e não pensados de maneira
consequente. Com a ajuda de seu grande conhecimento e extraordinários dotes
de observação, Hegel pôde ver mais claramente a necessidade da mudança
histórica de todos os fenômenos estéticos do que todos os seus antecessores. É
claro que outros também observaram essa mudança histórica antes dele. Com
exceção de um Vico e alguns pensadores posteriores a Kant, as mudanças
foram observadas apenas empiricamente e nenhuma tentativa foi feita para
trazê-las para uma conexão filosófica orgânica com a legalidade do
desenvolvimento histórico. Um dos maiores méritos da estética hegeliana é a
tentativa de historicizar as categorias fundamentais da estética. Por um lado,
Hegel reconhece que todo estilo – por trás do qual a estrutura da forma deriva
de seu conteúdo social é histórico por sua essência, e não por mera
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exterioridade. Hegel é, portanto, capaz de fornecer análises profundas e, em
muitos aspectos, corretas dos problemas estruturais e de conteúdo
fundamentais dos estilos grego, romano, oriental, medieval etc. Por outro lado,
ele também reconhece que os gêneros de arte não são simples abstrações de
natureza empírica, nem mesmo diferenciações intelectuais de qualquer ideia
platônica, mas que o processo histórico os produz como expressões mais
adequadas de qualquer atitude diante da vida que surgiu de situações sociais e
históricas concretas. Daí resulta que, embora seja possível, mesmo
teoricamente necessário, criar um sistema de diferentes artes e gêneros de arte,
tais artes e gêneros não apenas aparecem diversamente nos diferentes
períodos, mas também cada período possui um gênero ou gêneros artísticos,
tipos ou gêneros de arte dominante correspondentes à sua posição histórica.
Hegel chega ao ponto de ver e determinar as mudanças qualitativas na história
que foram determinadas historicamente dentro dos gêneros de arte, que de
tempos em tempos atingem um tal grau que passa, em essência, a constituir
um novo gênero de arte.
Nesse sentido, Hegel foi o primeiro a reconhecer as novas propriedades
de gênero do romance moderno, sua conexão com as peculiaridades da
sociedade burguesa; por outro lado, ele também reconheceu que esse novo
gênero de arte nada mais é, por sua essência, do que a renovação do antigo
épico sob as circunstâncias fundamentalmente alteradas da sociedade
burguesa. Com uma profundidade semelhante, Hegel analisa a unidade
fundamental e a diversidade qualitativa do drama da Grécia Antiga e de
Shakespeare. Mediante tais afirmações, a estética hegeliana lança de fato as
bases para uma estética científica que é simultânea e inseparavelmente teórica
e histórica.
Devido às contradições de método e sistema discutidas acima, todavia,
Hegel não está em condições de implementar de maneira consequente essa
ideia genial, de vesti-la de uma forma conceitual que corresponda aos fatos da
história da arte; muitas vezes, é forçado a fabricar, devido às bases de seu
sistema, construções eventualmente vazias e rígidas. Assim, por exemplo,
Hegel retrata a arte oriental como o período autêntico da arquitetura, o que
resulta em uma subestimação teórica do desenvolvimento da arquitetura dos
gregos até os dias atuais. Quando ele, em continuidade, a escultura como a
forma dominante da arte grega, a pintura e a música como formas dominantes
da arte romântica (sob "romântica", ele considera o desenvolvimento artístico
da Idade Média e dos tempos modernos), expressa um pensamento profundo
e verdadeiro, que se tornou extraordinariamente fecundo para a estética
posterior, mas que, pelo modo como é realizado em sua estética, está cheio de
construções esquemáticas e enganosas. Assim, a afirmação segundo a qual o
período da sátira é o período da literatura romana tardia contém elementos de
uma observação correta. Porém, ele também exagerou essa ideia, cedendo aos
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requisitos arquitetônicos da construção de seu sistema e, portanto,
negligenciou completamente as grandes realizações da sátira moderna etc.
Por fim, um problema da arte deve ser destacado: a relação entre arte e
a natureza, a questão da chamada beleza natural. Tanto o materialismo
mecânico quanto o idealismo subjetivo são incapazes de resolver esta questão,
porque contrastam rigidamente a natureza, completamente independente dos
homens, e a atividade artística subjetiva do homem como sendo mutuamente
excludentes. Isso cria dificuldades intransponíveis. Se os estetas acreditam que
a natureza é esteticamente superior à sua reprodução artística humana
(Diderot) em todas as circunstâncias, ou pensam que na arte o belo é
exclusivamente o produto do sujeito, da consciência (Kant), em ambos os
casos, os problemas dessa conexão permanecem insolúveis. Na estética
hegeliana existe a ideia bastante clara de que a natureza, que figura como
objeto da estética e na qual a beleza natural pode aparecer, é um campo de
interação entre sociedade e natureza. No entanto, devido à sua atitude
idealista, Hegel é incapaz de pensar dialeticamente até as últimas
consequências este pensamento fecundo, muitas vezes retorna ao desprezo
pela natureza, próprio do idealismo, e esse importante problema permanece
sem solução, apesar de algumas intuições geniais. Somente o marxismo está
em condições de resolver esta questão. Ao reconhecer o metabolismo da
sociedade com a natureza e concretizá-la economicamente, Marx tira todo esse
campo de problemas da esfera das meras intuições e possibilita seu tratamento
científico também para a estética. Essa questão recebeu uma solução definitiva
nos artigos de Stálin sobre linguística, com a ajuda da afirmação de que a
superestrutura (incluindo a arte) não está diretamente ligada à produção e,
portanto, à natureza, mas é mediada exclusivamente pela base, pelas relações
de produção. Aqui, o princípio científico recebe uma expressão clara, com a
ajuda da qual esse problema básico da estética, de frequente reaparição desde
o princípio de sua existência, pode ser resolvido cientificamente.
IV
Apenas Marx e Engels poderiam realizar a inversão materialista da
estética. Os discípulos de Hegel, na medida em que eram idealistas, apenas
exageraram os erros de seu sistema, conduziram seu idealismo objetivo de
volta a um idealismo subjetivo, ou diluíram e engrossaram as contradições
entre seu método e seu sistema. E mesmo quando Feuerbach criticou Hegel,
com frequência de maneira correta, ele o fez do ponto de vista gnosiológico do
antigo materialismo mecânico e, portanto, foi incapaz de fazer progressos reais
e concretos para realmente resolver as contradições. O que Engels acusou na
filosofia de Feuerbach, particularmente em sua filosofia da religião e em sua
ética, também é totalmente válido para as críticas de Feuerbach à estética
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hegeliana e principalmente para suas tentativas de desenvolver ainda mais a
estética hegeliana.
Se reconhecermos, dessa maneira, que a dissolução do hegelianismo
seja a dos discípulos e críticos idealistas de Hegel ou a de seus oponentes do
materialismo mecânico foi incapaz de superar os erros fundamentais da
estética hegeliana, isso não significa que a dissolução do hegelianismo nesse
campo tenha sido um movimento completamente sem importância. Pelo
contrário, nas décadas de 1830 e 1840, as críticas à estética hegeliana e a
exploração de seus elementos mais fecundos na Alemanha e, sobretudo,
entre os democratas revolucionários russos, como Belinsky, Tchernyshevsky e
Dobroljubow – desempenharam um papel importante.
Na Alemanha, o maior poeta desse período, [Heinrich] Heine, estava
muito preocupado com as críticas, a nova valoração e o desenvolvimento da
estética hegeliana. Para Heine, a questão mais importante era ir além da
concepção de Hegel, segundo a qual o desenvolvimento da arte do mundo
inteiro havia terminado no presente, havia chegado precisamente ao fim.
Heine chama o período que Hegel considera o último e o culminar do
desenvolvimento da arte de o "período da arte", ou seja, o período de Goethe;
e compreende o desenvolvimento histórico no sentido de que o "período da
arte" chegou ao fim como consequência de eventos históricos, especialmente o
desenvolvimento revolucionário desencadeado pela Revolução de Julho;
todavia, a seus olhos, isso o significa o fim do desenvolvimento da arte, mas,
pelo contrário, era o início de um novo período, o período da arte
revolucionária. (Ao mesmo tempo que Heine, Belinsky adotou uma visão
semelhante do desenvolvimento da literatura russa, vendo em Púshkin o final
de um período e Gogol como o alvorecer do novo período, de um novo realismo
crítico. Belinsky supera Heine na clareza da percepção ao pôr o realismo
sociocrítico no centro da estética desse período, coisa que Heine viu menos
claramente devido ao atraso das condições alemãs.)
Na Alemanha, a crítica de esquerda à estética hegeliana atingiu seu auge
no trabalho de Bruno Bauer; naquele momento, Bauer estava em estreito
vínculo de amizade e, em parte, de cooperação com o jovem Marx, que ainda
era, na época, um idealista na filosofia. O jovem Bruno Bauer, como o
representante mais extremo da ala esquerda do hegelianismo na época,
esforçou-se por descobrir os aspectos progressistas da filosofia hegeliana. No
entanto, ele os concebeu, incorretamente, como autêntica filosofia de Hegel,
oculta, silenciada e "esotérica", sem ver nas páginas reacionárias de Hegel mais
que mera adaptação externa às condições da época (pouco depois, em 1843,
Marx assumiu uma posição firme contra essa concepção hegeliana). Bruno
Bauer via Hegel como ateu, como inimigo do cristianismo, como admirador e
propagandista da Revolução Francesa. No campo da estética, ele usou as duras
declarações de Hegel contra o romantismo reacionário de sua época e editou
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uma brochura com uma série de declarações de Hegel nessa direção. O jovem
Marx apoiou o trabalho de Bauer nessa área na época. Infelizmente, seus
próprios trabalhos estéticos (Sobre a arte religiosa, Sobre o romantismo,
1841-2) permaneceram meros projetos; inúmeros comentários e observações
que ele escreveu sobre livros de estética e arte cristã mostram o quão
seriamente ele considerou esses planos.
Os democratas revolucionários russos começaram sua luta pela
renovação da estética em um nível significativamente mais alto que o de Heine,
para não mencionar o de Bauer. Aqui não é possível elaborar em detalhes a
direção positiva de sua filosofia e seus limites diante do parco desenvolvimento
do movimento revolucionário de seu período. precisamos enfatizar que eles
percorreram o caminho que leva do idealismo ao materialismo e, no que diz
respeito à concepção filosófica do materialismo, às consequências
revolucionárias e à aproximação da dialética, foram muito mais além de
Feuerbach. Certamente, esse ir além se manifesta de maneira muito mais
decisiva e concreta nas exposições estéticas individuais desses grandes
pensadores do que em sua teoria do conhecimento e na elaboração dos
princípios gerais da estética. Nesse último campo, eles estão naturalmente
mais próximos do materialismo antigo, como todos os pensadores anteriores
a Marx.
Essa abordagem da dialética materialista no campo da análise estética
concreta é ainda mais evidente. Nesse âmbito, o que Engels afirmou sobre
Diderot se aplica em maior grau. Nesse sentido, os democratas revolucionários
criticaram a estética hegeliana e, especialmente, seus discípulos, que caíram
no liberalismo de direita e no idealismo subjetivo. (Crítica de Tchernyshevsky
a Vischer.) No entanto, a percepção dialética deles é mais bem demonstrada
ao levantar problemas literários concretos e ao respondê-los. A importante
nova periodização de Belinsky foi mencionada. Os democratas
revolucionários russos foram os primeiros a elaborar os princípios
fundamentais do realismo crítico e, assim, foram os primeiros a estabelecer os
fundamentos teóricos para a avaliação correta da literatura e da arte nos
séculos XVIII e XIX; essa é a grande importância teórica deles. Ao fazer isso,
eles não apenas foram muito além de Hegel, que mal viu esse problema, mas
também foram além de Feuerbach, que, devido a suas críticas abstratas a
Hegel, foi incapaz de levar em conta os novos problemas da época e formulá-
los teoricamente.
Certamente, esses democratas revolucionários eram apenas a ala
esquerda dos pensadores que estavam, imediata ou mediatamente, sob a
influência teórica de Hegel. A maioria dos estetas que tinham uma afiliação
filosófica com Hegel e queriam desenvolver seus ensinamentos em um sentido
idealista estava no campo do liberalismo. (F. Th. Vischer, Rosenkranz, Ruge,
Rötscher, Hotho etc.) Enquanto na Alemanha antes de 1848 a preparação
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ideológica da revolução burguesa era a questão central, esses filósofos
representavam embora em muitas questões eles mais retrocederam a
estética hegeliana do que a fizeram evoluir – uma direção relativamente
progressiva. Eles tentaram embora de maneira liberal, incerta e
deslumbrada – expor filosoficamente as novas características especiais da arte
burguesa moderna e formulá-las como novas categorias estéticas. (A estética
do feio em Ruge, Rosenkranz etc.)
Depois que a burguesia traiu sua própria revolução burguesa em 1848,
porém, os traços reacionários da estética dos hegelianos se desenvolveram
completamente. A dialética do desenvolvimento histórico afundou no
positivismo raso, o fundamento gnosiológico da estética retornou de Hegel a
Kant, ao idealismo subjetivo e até aquém: na direção do misticismo
irracionalista. Esse desenvolvimento é visto com mais clareza no mais famoso
representante dessa direção, Vischer, que iniciou sua carreira como hegeliano
dos assim chamados ortodoxos e, no último estágio de seu desenvolvimento,
tornou-se o precursor da estética moderna e irracionalista da vivência.
A filosofia após 1848 é caracterizada pelo fato de Hegel ser
completamente relegado a segundo plano, tratado, para usar as palavras de
Marx, "como um cão morto". Kant e Schopenhauer governam na filosofia e,
consequentemente, também na estética. O movimento posterior de renovação
de Hegel, primeiro na Inglaterra, na Itália etc. e mais tarde, no período
imperialista, na Alemanha, era decididamente reacionário. Basta referir
estetas conhecidos como Taine e principalmente Benedetto Croce, que foram
extremamente influenciados por Hegel. O hegelianismo do período
imperialista expressa essas tendências reacionárias de maneira ainda mais
clara. Glockner, que foi quem mais lidou com a estética nessa direção,
pretendendo rebaixar a estética hegeliana ao nível mais reacionário do
irracionalista Vischer, tornou-se um adorador de Bismarck.
V
Apenas por meio da crítica e da inversão materialistas o núcleo vivo e
fecundo da estética hegeliana pode ser preservado e, assim, tudo o que é
progressivo para a ciência da estética pode ser usado para desenvolvimento
posterior. Marx e Engels passaram a vida inteira lidando com os problemas da
literatura e da arte, mas nunca tiveram tempo de resumir sistematicamente
suas concepções ou escrever uma crítica abrangente da estética hegeliana.
(Sabe-se que Marx queria escrever um livro sobre Balzac, mas este permaneceu
apenas um plano e sequer foi fixado na forma de notas.) No entanto, os
princípios básicos da inversão materialista foram deixados muito claros para
nós na forma de expressões que Marx e Engels fizeram a propósito de questões
concretas específicas.
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Marx e Engels, é claro, realizaram as críticas à estética hegeliana em
conexão com a crítica de toda a filosofia hegeliana. Mesmo nas críticas à
Fenomenologia do espírito, o jovem Marx lidou com os erros dúplices
fundamentais de Hegel: com "idealismo acrítico" e "positivismo acrítico". Nas
mesmas investigações, como vimos, Marx enfatizou o mérito de Hegel que
no trabalho humano a base da autocriação do homem, seu devir homem. Ao
mesmo tempo, porém, ele viu claramente, e criticou profundamente, os limites
idealistas dessa concepção e as distorções decorrentes dela. Ele escreveu: "O
único trabalho que Hegel conhece e reconhece é o trabalho espiritual abstrato."
(MARX; ENGELS, 1982, p. 405, trad. nossa; ed. bras.: MARX, 2004, p. 124)
Como resultado, toda conexão, mesmo que Hegel a perceba corretamente de
modo genial, aparece nele de cabeça para baixo. Hegel se esforça de maneira
mais enérgica do que qualquer esteta anterior para fundamentar
filosoficamente a objetividade das categorias estéticas. Sua teoria da
prioridade do conteúdo, no entanto, permanece como autorreflexo do espírito
absoluto e não constitui de fato o reflexo da realidade objetiva, independente
da nossa consciência, na consciência do homem que se transforma
historicamente. Dessa maneira, Hegel distorce à condição de uma mera
aparência tanto a objetividade real quanto o processo histórico. Marx escreveu:
"Como o espírito absoluto chega à consciência do filósofo apenas post festum,
como espírito do mundo criador, sua fabricação da história existe na
consciência, na opinião e na representação do filósofo, apenas na imaginação
especulativa." (MARX; ENGELS, 1962, p. 90, trad. nossa; ed. bras: MARX,
2003, p. 103). Somente a dialética materialista, que não faz – como Hegel – o
trabalho abstrato do espírito, mas o trabalho real sob a base do devir homem e
do desenvolvimento do homem, é capaz de formular científica e corretamente
a realidade também nas questões estéticas. Somente nessa filosofia é possível
apreender corretamente a objetividade social da respectiva condição do
mundo, o papel da atividade social humana na origem e no desenvolvimento
da arte, sem que a relação do homem com a natureza seja rígida e
incorretamente separada de sua atividade social. Sobretudo, a visão marxista
do trabalho pode fornecer uma solução materialista para as dificuldades
intransponíveis que Hegel apresenta mais de uma vez em conexão com suas
intuições geniais. Isso é possível porque a concepção marxista do trabalho
inclui tanto o metabolismo da sociedade com a natureza ou seja, a conexão
das categorias de trabalho com suas precondições naturais – como a mudança
dessas precondições em relação ao desenvolvimento social do trabalho.
O fato de Marx ver a arte dialeticamente como um reflexo da realidade
objetiva resolve todos os pseudoproblemas e mistificações com base no
idealismo hegeliano. A relação das categorias estéticas com a realidade
histórica, a dialética do absoluto e do relativo que entra em jogo aqui, torna-se
realmente concreta e viva em Marx, rejeitando toda a rigidez e construção
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idealistas. Damos apenas um exemplo: a concepção dialética da arte ou gênero
de arte predominante em cada período. Vimos que Hegel chegou a um beco
sem saída em relação a essa questão mais de uma vez, por haver atribuído
rígida e artificialmente um fenômeno a algum período histórico e, assim,
violentou as riquezas do mundo histórico; por exemplo, quando considera a
arquitetura a forma pica da arte oriental, ou quando apresenta o romance
como a forma de arte dominante do período burguês moderno. Seu sistema o
obriga a figurar os gêneros dominantes de arte exclusivamente no período que
os produziu, no que os torna dominantes. Isso também se aplica quando Hegel
no romance o paralelo moderno ao épico antigo, o produto da épica
cavaleiresca medieval. Marx e Engels, por sua vez, também veem quão
concreta e socialmente necessários aparecem nos diferentes tempos os
precursores imperfeitos do romance, mas também que, devido à mesma
necessidade social, não podem chegar ao pleno desdobramento do gênero
artístico. Assim, Engels escreve sobre os romances da Antiguidade tardia, nos
quais o amor idílico só poderia ocorrer na periferia da sociedade oficial, cujos
heróis eram exclusivamente escravos, que, portanto, não podiam participar da
vida dos cidadãos livres, da vida social. Por um lado, Engels mostra que, na
periferia da sociedade antiga, os germes do romance brotam de seus sinais de
desintegração, mas, por outro lado, ele também reconhece que apenas seus
germes podem surgir aí. Tais afirmações, possibilitadas pelo materialismo
dialético, vão além da rigidez idealista da teoria histórica da arte de Hegel. Ao
fazê-lo, Engels refuta antecipadamente as modernas teorias vulgar-
sociológicas dos gêneros, que colocam essas abordagens de maneira abstrata e
formalista no mesmo nível das formas fenomênicas clássicas desse gênero de
arte e, portanto, levam ao relativismo histórico. A teoria social e histórica do
marxismo, no entanto, concretiza a relação da arte com sua base social e suas
mudanças. Enquanto Hegel podia falar a esse respeito por meio de uma
intuição parcial, por vezes genial, das conexões corretas, Marx e Engels
podem explicar isso mediante uma teoria cientificamente fundamentada.
A concepção idealista da história de Hegel não é apenas mais pobre,
mais abstrata e mais rígida que a realidade – mesmo nos casos em que ele intui
relações reais –, mas também muitas vezes conduz a uma distorção da
realidade, e essa distorção quase sempre acontece em uma direção reacionária.
Aqui nos limitaremos a um exemplo mais simples possível. Hegel via na
possibilidade de ação livre dos homens, como existia especialmente na
Antiguidade, um fenômeno social favorável à arte. Como resultado do exagero
idealista desse pensamento, ele "heróis" semelhantes em figuras tardias
como Götz von Berlichingen ou Franz von Sickingen, e isso o leva a elogiar o
jovem Goethe por sua feliz escolha do tema. Marx também acredita que a
escolha do tema em Goethe estava correta e o defendeu contra o alegado apoio
rígido e abstrato de Lassalle ao progresso. No entanto, em Götz von
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György Lukács
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Berlichingen, ele naturalmente não viu um "herói", mas um "tipo miserável",
representante de uma classe condenada, a cavalaria. Os julgamentos de Hegel
e Lassalle são de igual modo idealisticamente unilaterais e rígidos, embora a
visão histórica de Hegel esteja muito acima da de Lassalle. Contudo, a
determinação complexa do desenvolvimento histórico é compreendida pelo
dialético materialista Marx; para ele não dúvida de que Götz von
Berlichingen se tornou precisamente, na importante situação histórica, um
representante típico de sua classe por causa de sua natureza baixa, e Goethe –
embora, claro, ele não tivesse clareza sobre o contexto histórico o
representou de modo genial.
A dialética idealista é impotente diante de tais contextos. Como em
Hegel o desenvolvimento da arte é impulsionado pela dialética interna do
movimento do "espírito", é natural que nele os grandes artistas tenham de
expressar de modo necessário, imediata e adequadamente, o sentido desse
desenvolvimento. A dialética materialista de Marx e Engels na arte uma
forma particular de reflexo da realidade objetiva. Esse reflexo, como vimos em
Goethe, pode, portanto, seguir de outras maneiras, alcançar objetivos
diferentes, mais distantes e mais elevados do que aqueles que estavam
presentes diretamente na imaginação do artista. Pensemos na excelente
determinação de Engels sobre a arte de Balzac:
Que Balzac fora forçado a agir contra suas próprias simpatias de
classe e preconceitos políticos, que viu a necessidade de ruína de
seus nobres amados e os retratou como homens que não merecem
um destino melhor; e que vira os homens reais do futuro no único
lugar em que podiam se encontrar naquela época: considero esse um
dos maiores triunfos do realismo e uma das maiores características
do velho Balzac. (MARX; ENGELS, 1967, p. 44)
Somente a dialética materialista pode penetrar tão profundamente na
apreensão da realidade no tratamento da arte, da grande arte. É capaz de fazê-
lo porque a teoria de Marx da luta de classes é, ao mesmo tempo, a teoria
dialética do desenvolvimento contraditório da humanidade. Embora o método
de Hegel coloque corretamente a contradição no centro de todas as análises
filosóficas, embora seu gênio às vezes consiga enxergar corretamente as
conexões reais do desenvolvimento, ele foi incapaz de apreender a dialética
correta. Como resultado, mais de um dos maiores e mais importantes
problemas concernentes ao desenvolvimento da arte permaneceu insolúvel
para ele. Vamos nos limitar, também aqui, a apenas um exemplo. A análise da
pintura holandesa do século XVII na estética de Hegel é justamente valorizada
por muitos, principalmente por Plekhânov, como uma explicação social e
historicamente correta de importantes e novas peculiaridades de estilo. É
característico dos limites da estética hegeliana, contudo, que ele só seja capaz
de entender e apreciar esteticamente os pintores que expressaram direta e sem
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György Lukács
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problemas aquele poderoso impulso econômico, político e cultural no seio da
burguesia. As mesmas relações sociais, no entanto, produziram, como figura
trágica, o maior pintor da Holanda, Rembrandt; e foram precisamente essas
circunstâncias sociais que formaram a base do caráter trágico de sua pintura.
A dialética idealista hegeliana não era capaz – e nem poderia sê-lo – de
entender isso.
Essa reorganização metodológica e de conteúdo socioeconômico de
todos os problemas concretos da estética hegeliana também é evidente quando
Marx concorda mais ou menos com a pergunta e com a avaliação histórica de
Hegel. A arte da Antiguidade, especialmente a épica de Homero, também é
para Marx, para usar suas próprias palavras: "norma e padrão inatingível"
(MARX; ENGELS, 1976, p. 45, trad. nossa; ed. bras.: MARX, 2011, p. 63). No
entanto, somente porque Marx e Engels descobriram as leis da sociedade
gentílica e sua dissolução é que a arte grega, como expressão da "infância
normal" (MARX; ENGELS, 1976, p. 45) no desenvolvimento da humanidade,
vem a ocupar o seu devido lugar histórico real. Marx e Engels também veem
que esse período é definitivamente uma coisa do passado. No entanto, isso o
resulta em um pessimismo em relação à arte do presente e do futuro, como em
Hegel. Resulta ainda menos na imitação formalista e acadêmica vazia da arte
antiga, como aconteceu com a maioria dos discípulos idealistas de Hegel, e
tanto menos que a arte deve ser vista como um desvio dessas normas, como foi
feito na teoria estética e na prática artística da burguesia em declínio. A
perspectiva socialista do desenvolvimento da humanidade, a percepção de que
a luta de classes deve inevitavelmente levar à ditadura do proletariado ilumina
de modo correto pela primeira vez as perspectivas do passado, o presente e o
futuro do desenvolvimento da arte.
A avaliação correta da grande arte antiga, da Antiguidade, de
Shakespeare etc. está intimamente relacionada à avaliação correta do presente.
Vimos que Hegel examinou profundamente os problemas da arte burguesa
moderna. Marx enfatizou esse traço problemático ainda mais vigorosamente e
deu-lhe uma interpretação historicamente materialista: "Por exemplo, a
produção capitalista é hostil a certos ramos da produção intelectual, como arte
e poesia." (MARX; ENGELS, 1965, p. 257)
Em Hegel, no entanto, a única consequência dessa percepção, do
reconhecimento dessa problemática, é que o "espírito" ultrapassou o nível
da estética, de modo que qualquer florescimento real da arte se tornou
definitivamente impossível. Marx, por outro lado, viu claramente que a
derrocada do capitalismo deveria dar um novo impulso poderoso a toda a
cultura humana, e nela à arte. Essa nova perspectiva socialista do futuro
também forneceu uma nova luz ao período da arte burguesa. Marx concordou,
no geral, com a avaliação de Hegel sobre Cervantes, Shakespeare e Goethe,
mas, ao mesmo tempo, centrou-se vigorosamente no realismo sociocrítico do
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período burguês, em particular Fielding, Balzac e a arte dos realistas russos,
cuja orientação sequer existia para a estética de Hegel.
Do ponto de vista teórico, também muito mais a ser dito aqui além
da avaliação correta de alguns destacados artistas. O significado real da
concepção de Marx é o reconhecimento da importância revolucionária da arte
progressista no decurso contraditório da sociedade capitalista. A concepção de
Hegel da arte desse período poderia necessariamente ser resignada, ser
apenas a glorificação de tais tendências resignadas, como ocorre na arte do
velho Goethe. Se Marx e Engels enfatizaram vigorosamente a importância dos
grandes realistas dos séculos XVIII e XIX, se viram o grande realismo de
Shakespeare como um exemplo atual de como a revolução popular deveria ser
artisticamente configurada, é porque por trás dessa intuição estava a questão
teórica de como se poderia superar, com a ajuda da dialética materialista, a
concepção hegeliana do "fim da história", que também forma a base da estética
de Hegel.
Tal crítica, no entanto, também inclui a ultrapassagem materialista da
teoria hegeliana dos gêneros, a ruptura de seus estreitos limites idealistas. Em
Hegel, por exemplo, o herói típico da tragédia é um homem que defende a
velha ordem social contra os princípios da nova sociedade que avança. Marx e
Engels não negam a existência de um tal tipo trágico, mas em sua discussão
com Lassalle eles apontam que também há um novo tipo de herói trágico, isto
é, a tragédia da ilusão heroica socialmente necessária entre os revolucionários
do passado: a tragédia de Thomas Münzer, a tragédia do início dos
revolucionários (cf. LUKÁCS, 2016). Em Hegel, como já apontamos, a sátira é
exclusivamente a forma de arte da Antiguidade decadente. Marx e Engels
mostram que a crítica satírica das contradições, mentiras e hipocrisia na
sociedade capitalista de Diderot, Balzac, Heine e Shchedrin é
extraordinariamente característica da literatura burguesa moderna etc. Aqui
também podemos ver que uma questão concreta da avaliação e do gênero
necessariamente decorre da visão idealista, a respectiva concepção dialético-
materialista do desenvolvimento social: a reelaboração materialista da estética
hegeliana não pode, portanto, limitar-se à crítica materialista de alguns
princípios básicos, mas deve se estender a todas as análises concretas de Hegel,
que se referem a certos estilos, gêneros ou artistas.
Mais do que caracterizar, os traços principais da inversão materialista
da estética idealista hegeliana só podiam ser aqui apontados. Uma introdução
necessariamente tão breve pode não ser adequada para uma caracterização
efetiva. Isso exigiria um estudo tão fundamental quanto a crítica de Lênin à
lógica hegeliana. Lamentavelmente, estudos de tal natureza ainda não são
numerosos na teoria marxista-leninista. Embora Lênin tenha criado a base
metodológica para isso, embora Engels tenha afirmado claramente como
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Hegel não deve ser criticado se quisermos que o núcleo fecundo oculto nele
seja útil para o futuro. Ele escreve para Conrad Schmidt:
Sob nenhuma circunstância você deve ler Hegel como o Sr. Barth
leu, a saber, para descobrir os paralogismos e truques preguiçosos
que serviram de alavanca para a construção. Isso é puro trabalho de
garoto da escola. É muito mais importante descobrir o que de
certo e genial sob a forma incorreta e do contexto artificial. Assim,
as transições de uma categoria ou de uma oposição para a próxima
são quase sempre arbitrárias (...). Permanecer muito nisso é uma
perda de tempo. (ENGELS, 1979, p. 204)
Essas indicações negativas de Engels e positivas de Lênin podem ajudar
muito a estudar a estética de Hegel no espírito marxista correto.
VI
O fato de a literatura marxista sobre estética, especialmente aquela que
lida com a relação de Marx com a estética hegeliana, ser tão pobre não é de
forma alguma um acaso. As tradições no período da II Internacional foram as
mais prejudiciais nesse campo. Para os teóricos da II Internacional, Hegel era
de fato um "cão morto". Até um marxista tão importante, esteticamente
educado e profundamente versado na literatura como Franz Mehring na
estética de Kant o trabalho teórico fundamental deste campo embora
ocasionalmente faça um elogio sem sentido sobre o conhecimento universal de
Hegel. Plekhânov tratou a estética de Hegel de maneira mais profunda e
detalhada. No entanto, também suas análises não tocam nas questões
fundamentais da crítica materialista em relação à estética hegeliana e sua
aplicação; ele não trata das consequências metodológicas e teóricas concretas
desses princípios. O que Lênin comentou criticamente sobre ele sem deixar
de reconhecer-lhe os méritos –, a saber, que ele lidou detalhadamente com
muitas questões da filosofia hegeliana, mas não abordou os problemas
cruciais, aplica-se perfeitamente à atitude de Plekhânov em relação à estética
hegeliana.
Somente as críticas agudas que Lênin e Stálin fizeram a respeito de toda
a teoria da II Internacional, a respeito da ingenuidade com a qual aplicou os
princípios do marxismo ao período do imperialismo durante as guerras
mundiais e a revolução proletária, tornaram possível que o marxismo se
desenvolvesse ainda mais no campo da estética. A partir desse grande
complexo de temas é claro que podemos apenas tocar aquelas questões
específicas que estão intimamente ligadas à estética hegeliana.
A primeira questão é a concepção dialética do reflexo da realidade
objetiva. Lênin explicou que, embora a dialética fosse o foco principal no
tempo de Marx, quando o materialismo dialético foi fundado e desenvolvido,
no período do imperialismo, a ênfase teve de ser mudada para o lado
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materialista da teoria e do método. Em suas críticas devastadoras ao idealismo
reacionário do período imperialista, Lênin elaborou a teoria do reflexo e a
elevou a um nível superior. Somente era possível dar o golpe fatal na filosofia
idealista se, ao mesmo tempo, a diferença entre a teoria do reflexo do antigo
materialismo mecânico e a do materialismo dialético fosse trabalhada com
clareza. Lênin levantou essa questão principalmente no campo da teoria do
conhecimento e da lógica. No entanto, suas afirmações fundamentais também
são de importância decisiva para o desenvolvimento futuro da estética no
sentido materialista. Lênin, particularmente no contexto das críticas à lógica,
destaca claramente que as formas abstratas relativamente mais constantes da
lógica que foram repetidas por milênios, como as formas do silogismo em
particular, são tipos abstratos de reflexo da realidade. A aplicação desta
afirmação de Lênin às formas de arte relativamente constantes, por exemplo,
as formas de gênero, confere à teoria estética sua base materialista real.
No campo da estética, Lênin aplicou essa visão à análise de fenômenos
concretos. Assim, nos estudos fundamentais escritos sobre Tolstói, ele assume
o mesmo ponto de vista de princípio de Engels em relação a Balzac mesmo
sem ter conhecido a análise de Engels que citamos (esses escritos
apareceram após a morte de Lênin); mas, como analisa um escritor que viveu
em condições mais desenvolvidas da luta de classes, ele torna mais concreta
essa aplicação engelsiana do marxismo e a desenvolve ainda mais.
A segunda questão importante para que precisamos chamar a atenção é
o papel da atividade do sujeito. Como vimos, o materialismo antigo
negligenciou essa questão; o idealismo subjetivo a considerou, mas, devido ao
formalismo que acompanha tal idealismo, o papel social efetivo do indivíduo é
excluído do conceito de atividade, e com ele, todo conteúdo social da arte. Não
é por acaso que Kant combina o conceito de belo com o desinteresse. Embora
o idealismo objetivo de Hegel coloque o conteúdo social e histórico da arte no
centro de suas discussões, ele se detém na exposição objetiva do conteúdo; a
atividade se limita quase exclusivamente ao processo artístico; e o papel
socialmente ativo da obra de arte, o papel social da arte se apaga ou, no melhor
dos casos, fica muito aquém da realidade. Como vimos, Marx e Engels também
reconhecem e criticam os limites idealistas da dialética hegeliana a esse
respeito. A análise de Engels da poesia de tendência estabelece as bases para
a unidade orgânica inseparável do talento artístico e da atividade social.
Lênin, no entanto, vai muito além das determinações de Engels sobre
essa questão e, ao desenvolver ainda mais o marxismo, ele também empresta
a ele sua base científica efetiva. Em sua polêmica contra o objetivista burguês
Struve, o jovem Lênin define com precisão o partidarismo social de toda
revelação filosófica correta de um materialista: “Por outro lado, o
materialismo, por assim dizer, inclui o elemento do partido em que é obrigado,
direta e abertamente, a avaliar todos os eventos, a assumir o ponto de vista de
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um determinado grupo social." (LÊNIN, 1961, p. 414) Ao mesmo tempo,
porém, o ponto de vista abrangente de Lênin não permite tirar dessa tomada
de posição subjetiva, aberta e determinada consequências subjetivistas. Na
mesma polêmica, Lênin também aponta que o objetivismo burguês é vago,
abstrato e imperfeito, inclusive em sua busca pela objetividade. Portanto,
quando o materialismo dialético exige o partidarismo, está ao mesmo tempo
apresentando como incondicionalmente necessário o mais perfeito e objetivo
reflexo: “Dessa maneira, o materialista é, por um lado, mais consequente que
o objetivista e realiza seu objetivismo de maneira mais profunda e contínua.
Não se contenta com a referência à necessidade do processo, mas esclarece
qual formação socioeconômica dá conteúdo a esse processo, qual classe
determina essa necessidade.” (LÊNIN, 1961, p. 414) Lênin não se refere
diretamente à estética nessa polêmica, mas é indubitavelmente certo que essa
determinação teórica fundamental torna possível criticar e resolver todas as
questões da estética, a estética hegeliana no sentido do materialismo dialético.
VII
Stálin
6
concretizou esses ensinamentos de Lênin para os grandes
problemas de nosso tempo. Aqui, podemos apenas enfatizar alguns pontos de
vista teóricos fundamentais, cujo conhecimento é essencial se queremos
estudar e criticar a estética hegeliana correta e com sucesso, no espírito do
marxismo-leninismo, e tornar seu núcleo racional útil para o futuro. Acima de
tudo, devem ser enfatizadas as discussões fundamentais de Stálin sobre a luta
do novo contra o antigo como legalidade principal de qualquer
desenvolvimento dialético. É particularmente importante ressaltar que,
segundo essa concepção
7
, o novo, o que está em desenvolvimento, é mais
importante que o antigo, o moribundo, mesmo que seja mais fraco no
momento, ainda menos desenvolvido que o velho. Com a ajuda desse princípio,
o desenvolvimento da arte, a luta das teorias estéticas pode ser integrada
organicamente em todo o desenvolvimento social, a mudança pode ser vista
não apenas onde enormes diferenças qualitativas se tornaram aparentes (o
drama antigo e shakespeariano em Hegel), mas também em todas as partes da
vida cotidiana da literatura e da arte. Dessa maneira, o desenvolvimento do
estilo, dos gêneros de arte, perde completamente seu caráter estático, por
assim dizer, um caráter puramente comparativo, semelhante a um museu, e se
apresenta como fenômeno contraditório e combativo da sociedade humana.
Isso porque não se observa esse desenvolvimento no passado, como Hegel,
mas como um processo chamado a realizar o futuro da arte. Esses princípios
6
[NT] Na edição de 1951: “... continuou e...”.
7
[NT] Na edição de 1951: “... que, segundo Stálin, o novo...”.
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fundamentais haviam sido claramente desenvolvidos por Marx e Engels,
mas as exposições de Stálin sobre a luta do antigo e do novo concretizaram e
também formaram a teoria estética do marxismo-leninismo.
Os trabalhos de Stálin sobre a questão da linguística também são de
grande importância
8
. Aqui ele determina a literatura e a arte no espírito do
marxismo, com uma inegável clareza, como uma superestrutura e,
cientificamente, determina seu lugar na totalidade da atividade humana.
Todavia, Stálin não se satisfaz em estabelecer apenas a conexão correta, mas
concretiza essa determinação com energia extraordinária. Do ponto de vista
do avanço científico da teoria estética, é de suma importância que Stálin
vincule de maneira inseparável o reflexo da realidade objetiva ao caráter ativo
da superestrutura, em virtude do fato de que é parte de sua natureza ajudar,
respectivamente, a garantir a nova base e a derrubar o antigo. Por meio dessa
atividade, o momento em que conseguimos acompanhar toda a história
moderna da estética recebe sua mais alta formulação científica. nos
referimos a importantes exposições de Lênin que necessariamente vinculam a
questão da objetividade ao problema do partidarismo. Esse desenvolvimento
adicional do marxismo recebe uma expressão ainda mais ampla em Stálin. Ele
infere todas as consequências da conexão entre reflexo e atividade e essa
atividade como o caráter superestrutural da superestrutura, que no nosso caso
significa: o critério do caráter de arte pela arte
9
. "A superestrutura precisa
abandonar seu papel servil, a superestrutura precisa passar da posição de
defesa ativa de sua base para a posição de uma atitude indiferente a ela, para a
posição de uma atitude indiferente em relação às classes, para que perca sua
peculiaridade e deixe de ser superestrutura." (STÁLIN, 1950)
A segunda afirmação fundamental dos trabalhos
10
linguísticos de Stálin,
que são de importância crucial para todas as questões da arte, é de que a
superestrutura está conectada à produção mesma apenas pela mediação da
base, apenas mediada pelas relações de produção.
8
[NT] na edição de 1951: “... de importância histórica”.
9
[NT] Lukács se vale nesse momento de uma estratégia muito comum em seus textos da época
da repressão stalinista: atribui a Stálin ideias que lhe são próprias. Como o próprio autor revela
no referido Prefácio da edição italiana: “Aproveito a edição italiana para revelar abertamente
os expedientes diplomáticos que utilizei nessa questão. O último ensaio desse volume trata do
escrito de Stálin sobre a linguística. O leitor atento perceberá sem dificuldade que minha
conferência refuta diretamente ou corrige, ao menos, de um modo substancial as
afirmações de Stálin em dois pontos importantes. Segundo Stálin, a superestrutura serve
sempre a uma base determinada e apenas a ela: minhas considerações tendem a demonstrar
que uma superestrutura pode também atacar a base existente, e até pode endereçar-se a
desagregá-la ou destruí-la. Em segundo lugar, Stálin sustenta que ao desaparecer a base tem
de desaparecer também a superestrutura inteira: eu, pelo contrário, pretendo demonstrar que
esse destino não afeta em absoluto a toda a superestrutura.” (LUKÁCS, 1957, p. 10) Em outras
palavras, ele interpreta Stálin de um modo intencional e bem peculiar no intuito de expor suas
próprias ideias, burlando assim a censura dos órgãos oficiais do Partido.
10
[NT] edição de 1951: “artigos”.
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A superestrutura não está ligada diretamente à produção, à
atividade produtiva do homem. Ela está ligada à produção
indiretamente, por meio da economia, por meio da base. Eis porque
a superestrutura não reflete as mudanças no nível de
desenvolvimento das forças produtivas imediata e diretamente, mas
as reflete uma vez que sejam verificadas as transformações no
âmbito da base, quando as transformações ocorridas na produção
tenham encontrado o seu reflexo nas mudanças no sentido da base.
(STÁLIN, 1950)
A estética marxista ainda não extraiu todas as consequências dessa
importante formulação. No entanto, é claro que os problemas estéticos, muito
discutidos e nunca resolvidos antes do advento do marxismo, podem ser
resolvidos de maneira unívoca e científica com base em tais formulações.
Assim, por exemplo, uma questão como a da beleza natural pode receber
uma solução científica séria sob a base de tal afirmação
11
. Ela penetra
profundamente em todos os problemas estéticos: o como toda a representação
artística, a relação do artista com a natureza, com o conteúdo, com o tema, com
o mundo do objeto a ser representado podem agora ser entendidos
corretamente. É claro que os grandes artistas e os grandes escritores sempre
representaram instintivamente a realidade de acordo com o contexto; o
humanismo dos grandes escritores e grandes artistas se expressa nessa
instintiva e correta tomada de posição. A explicação científica da literatura e
da arte, da estética e da crítica, no entanto, foram desvirtuadas desse
desenvolvimento real; eles foram incapazes de explicar cientificamente os
princípios da arte que foram colocados em prática. Essa formulação do
marxismo-leninismo
12
permite, assim, a interpretação científica correta da
prática artística passada e futura da humanidade.
Por fim, temos de aludir brevemente a outro tema, o problema do
realismo socialista. É claro que mesmo a verificação mais superficial dessa
questão está fora dos limites de uma introdução. Só é necessário apontar
brevemente as relações metodológicas dessa questão, pois somente a prática e
a teoria do socialismo podem dar uma base realmente científica à estrutura
histórica da estética questão cuja sistematização constitui um dos maiores
méritos da estética de Hegel; pois a simples existência do realismo socialista
não apenas uma nova perspectiva ao desenvolvimento da arte, mas
também, inseparavelmente, à história real da arte (estilos, gêneros etc.)
uma base metodológica para a elaboração científica das tradições
progressistas.
mencionamos como Marx e Engels criticaram a afirmação de Hegel
sobre as possibilidades artísticas do presente e como isso afetou sua afirmação
11
[NT] edição de 1951: “... só com base nessa formulação de Stálin”.
12
[NT] Na edição de 1951: “... de Stálin...”.
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sobre toda a concepção da história, sobre a periodização da arte, sobre a
elaboração do significado histórico e estético do realismo. Mas, a partir da
situação histórica em que Marx e Engels escreveram suas obras, segue-se
necessariamente que a arte do socialismo futuro poderia estar viva neles
apenas como uma perspectiva geral de desenvolvimento da arte. Muitas de
suas explicações mostram claramente que eles viram com clareza a
necessidade desse desenvolvimento. No entanto, como ela ainda não podia ser
um problema atual em sua época, fica evidente que não poderia ter um impacto
concreto em sua compreensão da arte. Nos tempos de Lênin, o movimento
revolucionário dos trabalhadores havia progredido tanto que o fundador
literário do realismo socialista, seu primeiro clássico, apareceu na pessoa de
Maxim Gorki. Lênin estava ciente da importância de Gorki desde o primeiro
momento e, em sua teoria geral, também inferiu as consequências da novidade
da situação. Na época da ditadura do proletariado, Lênin também demonstrou
praticamente sua clareza teórica quando se opôs fortemente às tendências
sectárias falsas na nova arte proletária (Proletkult) e levantou muito
claramente a questão das tradições progressistas, sua importância para o
desenvolvimento da arte socialista. E, no entanto, um nível mais alto de
desenvolvimento socialista teve de ocorrer para que o realismo socialista como
a nova forma de arte, no novo período, se tornasse um problema central
concreto e positivo da literatura e da arte. Essa questão foi levantada no
período após a morte de Lênin
13
e continuou a estender suas lições a todo o
campo da atividade artística. Isso deu à análise teórica e histórica da estética
um novo ponto de vista, com a ajuda do qual podemos avaliar corretamente as
tradições progressistas tanto na arte como na teoria da arte e na estética. No
nosso caso, isso se refere à crítica da estética hegeliana, à explicitação do núcleo
fértil que ela contém.
Dessa maneira, os clássicos do marxismo
14
lançaram as bases principais
para a crítica materialista da estética hegeliana, possibilitando assimilá-la
como um legado a ser visto criticamente e permitiram que seja aproveitada em
nosso trabalho. Tão brevemente como caracterizamos o trabalho de Marx e
Engels nesse campo, por mais esquivas que tenham sido nossas explicações
sobre como seus seguidores
15
desenvolveram ainda mais a estética do
marxismo, ainda esperamos que o leitor tenha recebido esses pontos de vista,
com cuja ajuda a estética hegeliana pode ser usada como um legado a ser
processado criticamente em nosso trabalho teórico. No entanto, considero
13
[NT] Na edição de 1951: “Stálin levantou essa questão e os representantes da teoria da arte
soviética...”.
14
[NT] Na edição de 1951: “... Marx, Engels, Lênin e Stálin”.
15
[NT] Na edição de 1951: “... como Lênin e Stálin”.
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necessário enfatizar mais uma vez que em relação a essa questão não se deve
adotar o ponto de vista que consiste em afirmar que, como Hegel é idealista,
nada que ele afirme pode estar certo, nem que Hegel esteja realmente certo em
todas as questões essenciais e apenas o sinal idealista deve ser trocado por um
materialista. A esse respeito, gostaria de salientar o que Engels escreveu sobre
o método crítico correto e como não se deve criticar a estética hegeliana. Os
clássicos do marxismo
16
nos mostraram o método da crítica correta, que faz a
crítica concreta, ao mesmo tempo e de modo inseparável um do outro, das
distorções teóricas e históricas que a filosofia idealista necessariamente
implica, e ao mesmo tempo permite extrair em cada caso, com a ajuda do
mesmo método, as intuições corretas, muitas vezes geniais, da verdade que
tanto enriquecem a estética de Hegel.
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2003.
16
[NT] Na edição de 1951: “... Marx, Engels, Lênin e Stálin”.
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jan./jun. 2020. v. 26. n. 1
György Lukács
262
______. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo:
Boitempo, 2004.
______. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
______. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, K.; ENGELS, F. Werke, Band 26-1 - Theorien über den Mehrwert -
Erster Teil. Berlim: Dietz Verlag, 1965.
______. Werke, Band 38 - Briefe von Friedrich Engels, Januar 1891 -
Dezember 1892. Berlim: Dietz Verlag, 1979.
STÁLIN, J. Sobre o marxismo na linguística. Problemas - Revista Mensal de
Cultura Política n. 28, jul. 1950.
Como citar:
LUKÁCS, György. A Estética de Hegel: introdução. Trad. Ronaldo Vielmi
Fortes. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das
Ostras, v. 26, n. 1, pp. 228-62, jan./jun. 2020.
Data do envio: 24 mar. 2020
Data do aceite: 8 maio 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.481
Manuel Alejandro Bonilla
263
La otra teoría de la reflexión de Lênin: la formulación de una
segunda teoría leninista del reflejo en el
Resumen de la Ciencia de la lógica
Manuel Alejandro Bonilla
1
Resumen:
Este artículo analiza la teoría del reflejo desarrollada por nin en su
confrontación con la filosofía hegeliana en los comentarios que escribió a La
ciencia de la lógica en 1915. En estos comentarios, Lênin presenta la reflexión
en el contexto de una relación reflexiva adaptativa entre el movimiento del
conocimiento y el movimiento de realidad; La dinámica del conocimiento
sigue el movimiento de la realidad y la influencia. Para Lênin de estos
comentarios, la reflexión es un momento (mental) en el proceso de
objetivación humana que transforma la realidad y origina al ser humano.
Palabras llave: dialéctica; ontología; Marxismo; lógica; gnoseología
The other theory of reflection of Lênin: the formulation of a
second leninist theory of reflection in the commentaries to
The science of logic
Abstract:
This article discusses the “theory of reflection” developed by Lenin in his
confrontation with the Hegelian philosophy in the commentaries he wrote to
the Science of logic in 1915. In these commentaries Lenin presents the
reflection in the context of an adaptive reflective relationship between the
movement of the knowledge and the movement of reality; the dynamics of
knowledge follows the movement of reality and influences it. For the Lenin of
the commentaries, the reflection is a (mental) moment of the process of human
objectification that transforms reality and creates the human being.
Keywords: dialectics; ontology; Marxism; logic; gnoseology.
1. Introducción
La difusión de la teoría del reflejo en los debates de la filosofía
contemporánea se ha atribuido tradicionalmente a Lênin, y en particular con
1
Doutor em Filosofia pela Universidad Nacional de La Prata, Argentina e professor de filosofia
da Universidad Luís Vargas Torres, Equador. E-mail: mabonillab5@gmail.com.
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la discusión que se originara a partir de la defensa que él hizo de aquella teoría
en su libro Materialismo y empiriocriticismo (ANDERSON, 1992, p. 79).
Cuando Lênin postuló su teoría sobre las peculiaridades gnoseológicas y
ontológicas del reflejo en el libro mencionado, no se situaba sin embargo a
mismo en la posición de estar diciendo algo sustancialmente nuevo dentro del
marxismo. Nociones de una teoría materialista sobre el reflejo se encuentran
ya presentes en las obras de Marx (HAUG, 1994, p. 7). El pensador y
revolucionario alemán hizo uso de vocablos dentro del campo conceptual del
reflejo: espejo (MARX, 1957, p. 378), reflejo (MARX, 1957, p. 390), reflejar
(MARX, 1961, p. 618) —sin alcanzar una aproximación sistemática
(ZIMMERMANN, 1974, p. 187)—, con la intención de discutir la relación que
tienen las ideas de los individuos con la realidad natural y social. Como se ha
podido notar (MILLER, 1971, p. 29), Marx aprobaba la tendencia del
materialismo ilustrado a rescatar la pasividad del sujeto frente a la naturaleza,
y el vínculo inseparable establecido entre el conocimiento y la realidad
material objetiva (MARX, 1968, p. 5). La reivindicación materialista de los
factores de la producción social frente a lo que él entendía como
desvirtuaciones del idealismo, le condujo desde temprano a recurrir a términos
dentro del campo léxico del reflejo para hablar de la importancia de la realidad
económico-social. Este uso del término fue posible porque, en el esquema del
reflejo dos elementos asumen una clase de relación estructural en la que uno
de los términos lleva a un plano diferente caracteres esenciales del primero,
sin llegar a superponerse, y se establece de forma reconocible la prioridad del
primer elemento respecto del segundo. Según este esquema, Marx situó como
término primero de la relación a la realidad social material, y como término
segundo a las distintas formas de conciencia social —o en palabras de Haug,
estableció la actividad material social por un lado, y la actividad intelectual
social por el otro (HAUG, 1973, p. 560)—; vinculadas ambas en una
interdependencia dinámica atravesada por la historia.
En vista de la pertinencia del concepto reflejo en los trabajos de Marx, y
del mismo modo en los escritos individuales del Engels tardío (KOSING, 1968,
pp. 28-9), Lênin usó del término reflejo para poner en evidencia el papel
central que una teoría del reflejo tiene para la comprensión de la relación entre
lo ideal y la realidad social.
Aunque Lênin tiene breves textos anteriores a Materialismo y
empiriocriticismo en los que, de manera pida y coyuntural, se ocupó de
cuestiones que podemos relacionar con la teoría del reflejo —esto es, el estudio
de la relación reflexiva que se establece entre la actividad intelectual y la
actividad material—, como por ejemplo, los artículos “Cuales son los amigos
del pueblo y cómo aquellos luchan con los socialdemócratas” [1894] (LÊNIN,
1960), y “Dos tácticas de la social democracia en la revolución democrática”
[1905] (LÊNIN, 1962b); en estos escritos mencionados el problema del reflejo
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es encarado dentro de la cuestión más general del entendimiento teórico de la
movilidad social con el fin de intervenir tácticamente en ella y lograr así la
revolución; el reflejo no es por tanto un tema principal. El primer texto donde
la cuestión del reflejo es abordada comprensivamente y a fondo es en el
mencionado Materialismo e empiriocriticismo [1908] (LÊNIN, 1962a).
Concretamente el libro se halla situado en los debates teóricos que tenían lugar
en la Rusia de inicios del siglo XX entorno de la naturaleza del conocimiento
espontáneo y del conocimiento científico –de manera que buena parte de él es
una crítica a las concepciones positivistas de Ernts Mach y sus seguidores
rusos-, dedicando sus más de 300 páginas a argumentaciones polémicas que
buscan probar la existencia de un mundo material objetivo con independencia
del conocimiento humano. En el transcurso de esta argumentación polémica,
que tenía igualmente su trasfondo político en la rusia prerrevolucionaria de la
época, termina Lênin en la justificación de la primacía de la praxis sobre el
pensamiento abstracto y argumenta sobre la necesidad de una teoría vinculada
a la praxis revolucionaria. Se llega a afirmar que las ideas tienen un estatuto
“secundario” respecto de lo real, y que se encuentran condicionadas por él. En
este sentido Lênin afirma que a la filosofía del marxismo le caracteriza
“reconocer la teoría como copia aproximada de la realidad objetiva” (LÊNIN,
1962a, p. 265)
2
. En posición contraria al idealismo epistemológico positivista
representado por Mach y sus seguidores rusos como Bogdanov, Lênin sostiene
que la filosofía materialista del marxismo afirma el conocimiento veraz de la
realidad mediante un reflejo objetivo de lo que existe independientemente de
la conciencia, y comprueba la verdad interviniendo objetivamente en aquél.
Este formulario esquema con respecto de la relación entre las ideas y la
realidad material, que considera a lo que Marx llamaba la “formas de
conciencia social” (MARX; ENGELS, 1959, p. 26) como reflejo del mundo
objetivo independiente de la conciencia, pasó a ser conocida en la URSS y en
el mundo occidental coma la teoría del reflejo de Lênin. Una interpretación
que se consolidó a partir de la canonización, favorecida por el mismo Stálin, de
Materialismo e empiriocriticismo como uno de los textos sicos del
marxismo-leninismo (STÁLIN, 1976, p. 847), y la inclusión además de la teoría
del reflejo leniniana allí planteada como uno de los pilares del Diamat soviético
(TIUKHTIN, 1962). Al ser conocido Materialismo y empiriocriticismo
internacionalmente con ocasión de su inclusión en las obras completas de
Lênin, se estableció una asociación entre la teoría del reflejo allí presente y lo
que conforma la aportación específicamente leniniana a la tradición filosófica
del marxismo.
La consolidación de esta idea como locus communis a lo largo del siglo
XX, no coincidió, sin embargo, con la recepción positiva del texto.
2
En los textos de Lênin citados, la traducción es nuestra.
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Comenzando con las reservas con las que fue recibida la publicación del libro
en Alemania en 1927 (KORSCH, 1975, p. 111), ha sido prácticamente unánime
la crítica por parte de los representantes del marxismo occidental a los
presupuestos epistemológicos presentes en la teoría del reflejo leniniana, que,
se consideró, conducía a una simplista definición del conocimiento como
“fotocopia” mecánica de la realidad exterior (ADORNO, 1966, p. 205;
HABERMAS, 1971, p. 396; SCHMID, 1974, p. 31; HORKHEIMER, 1978, pp.
171-88). La interpretación de Boer, que en un artículo reciente colocaba
Materialismo y empiriocriticismo como ejemplo de la dialéctica “vulgar” y
“mecanicista” con respecto de la relación sujeto y objeto (BOER, 2015, p. 58),
pone en evidencia lo que sigue siendo dictamen corriente entre los
intelectuales occidentales vinculados al marxismo, y en el panorama filosófico
contemporáneo.
En la vasta producción literaria de nin existe, sin embargo, una obra
que confronta la dialéctica mecanicista de Materialismo y empiriocriticismo,
y que, en lo que hace al caso presente, incluye una reformulación sustancial de
la teoría del reflejo. Nos referimos al breve Resumen a la Ciencia de la gica
[1929] (LÊNIN, 1976b). Este texto es el resultado de las investigaciones
históricas y filosóficas a las cuales Lênin se dedicó en el transcurso de su exilio
en Suiza después de iniciada la I Guerra Mundial. Aprovechando el tiempo
libre que le permitía su exilio en el país helvético, a partir del mes de
septiembre de 1914, Lênin pa un considerable número de horas en la
biblioteca pública de Berna estudiando diversos libros filosóficos e históricos,
a los cuales anotó, citó y comentó, en varios cuadernillos que fueron luego
recogidos y editados en un tomo de las obras completas bajo el nombre de
Cuadernos filosóficos [1933]. Parte de este material bibliográfico recogido
corresponde a un estudio específico dedicado a la hegeliana Ciencia de la
lógica [1812-6] (HEGEL, 1986). En este texto Lênin establece una valoración
renovada de la obra y figura del pensador alemán -que ha sido un
“redescubrimiento de Hegel”, así como de una restitución de la importancia y
la influencia tenida por aquél en la historia intelectual del marxismo
(ANDERSON, 1992, p. 302).
Una típica página del Resumen de la Ciencia de la gica consiste
principalmente en extractos en alemán de parágrafos de Ciencia de lógica,
resúmenes, comentarios y marginalia con reflexiones de diversa naturaleza. A
pesar de ser éste el resultado de un trabajo realizado en el año 1915, la primera
publicación es de 1929, en Ruso, como volumen IX de la colección Miscelánea
de Lênin; después el texto es publicado, junto con otros escritos vinculados a
las mismas investigaciones de aquellos años tales como el Resumen a las
Lecciones de historia de filosofía, las anotaciones a las Lecciones de la filosofía
de la historia, y el pequeño ensayo Sobre la cuestión de la dialéctica, en el tomo
XLII de la edición rusa de las Obras completas [1933].
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Con la discreta difusión que siguió a la publicación del Resumen de la
Ciencia de la lógica en lenguas europeas como el alemán [1932], francés
[1938], o el inglés [1958], los comentarios argumentados por Lênin pasaron a
ser objeto de análisis y discusión por parte de algunos reconocidos
intelectuales en el ámbito del marxismo occidental o afines a aquél (BLOCH,
1962; COLLETTI, 1958; DUNAYEVSKAYA, 1980; 1989; 1991; LEFEBVRE,
1957; 1967; 1969; LUKÁCS, 1948; SÁNCHEZ-VÁZQUEZ, 1980). Kevin
Anderson ha realizado una investigación sobre las particularidades históricas
de esta recepción y la relativamente reducida difusión alcanzada por la obra
(ANDERSON, 1992, 1995a; 1995b). A pesar de los autores aludidos, la labor de
Anderson y un pequeño número de comentarios en años recientes (BOER,
2015; KOUVÉLAKIS, 2007; MICHAEL-MATSAS, 2007; COOMBS, 2015), el
Resumen de la Ciencia de la lógica tiene todavía un limitado papel en el
enjuiciamiento del legado filosófico del pensador ruso y en la crítica a la
filosofía hegeliana. En consecuencia, la argumentación presente en el
Resumen de la Ciencia de la lógica ha sido descuidada al discutir la teoría del
reflejo. En lo que sigue se argumenta, sin embargo, que la particular teoría del
reflejo que Lênin desarrolló como resultado de su contacto con la Ciencia de la
lógica de Hegel en su exilio suizo de 1915 se trata efectivamente de una
argumentación con caracteres sistemáticos y distintivos, original en relación al
resto de su producción, y que tiene su papel al momento de juzgar la naturaleza
de la contribución de Lênin al marxismo y a la discusión filosófica sobre la
teoría del reflejo.
2. Hacia la reformulación de la teoría del reflejo
Un postulado substancial que guía a las argumentaciones de Lênin
cuando comenta en sus notas a Hegel, es la correspondencia que existe entre
el proceso histórico social y el proceso del pensamiento. Se ha puesto de
manifiesto que La ciencia de la lógica, como expresión analítica del complejo
sistema hegeliano, presenta en forma estática el movimiento de los conceptos
y de las relaciones entre ellos que han devenido históricamente. A diferencia
de, por ejemplo, la Fenomenología del Espíritu [1807], que busca seguir el
movimiento inmanente del desarrollo de las figuras de la conciencia en el
marco general del despliegue del Espíritu, la Ciencia de la lógica muestra el
“resultado” del movimiento y encuadra a los conceptos en un sistema cerrado,
de modo que la movilidad fenomenológica-histórica de las ideas, que no es allí
el foco de atención, se halla inferida. Lênin se muestra consciente de que en la
Ciencia de la lógica se encuentra asumido el movimiento, particularmente en
dos sentidos complementarios: 1) las relaciones conceptuales presentadas
analíticamente en la lógica hegeliana son indicativo de la movilidad del
pensamiento, a la vez que son expresión de la dinámica propia de lo real; 2) en
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este movimiento del pensamiento y de lo real hay un proceso dinámico de
mutua influencia y correspondencia, que se concretiza a lo largo de la historia
humana. Por el carácter “materialista” del comentario y la argumentación de
Lênin, al discutir este movimiento de correspondencia entre el pensamiento y
la naturaleza natural y social, el momento preponderante es el movimiento de
la realidad. Sentada esta prioridad, y la correspondencia en el movimiento,
Lênin se considera autorizado a “transmitir” el devenir de los conceptos hacia
la naturaleza intrínseca de las cosas. Así por ejemplo, al discutir una expresión
de la multilateralidad de los conceptos hegelianos, afirma taxativamente que
no solo las ideas, sino “cada cosa concreta, cada algo concreto, permanece en
multifacéticas y a menudo contradictorias relaciones con todo lo demás, ergo,
es ella misma y lo otro” (LÊNIN, 1976b, p. 138). De hecho, en un proceso
característico de inversión materialista de Hegel, esta dinámica inherente a lo
real material es puesta como la verdadera base de la movilidad del
pensamiento. El conocimiento resulta, para el Lênin comentador de la Ciencia
de la lógica, del movimiento puesto en marcha por la interrelación que
acontece entre el devenir del pensar y el proceso histórico de lo material social.
En el movimiento el pensamiento se acerca a lo real, en un proceso de
“aproximación” en el que va captando cada vez con mayor precisión las
determinaciones efectivas de los objetos. Se va produciendo así lo que puede
entenderse como un juego de correspondencias: el pensamiento revela el
movimiento de los conceptos, en tanto que se encuentra reflejando la
“multilateralidad del proceso material y su unidad” (LÊNIN, 1976b, p. 110). Es
característico de esta inversión leniniana al pensamiento de Hegel, el intento
de reconducir la dialéctica supuesta en las interrelaciones de los conceptos
lógicos a presupuestos materiales. La dialéctica, en sentido estricto, aparece
nada más que como “la reflexión correcta [mental] del eterno desarrollo del
mundo” (LÊNIN, 1976b, p. 110).
La labor de traducción desde las categorías conceptuales descritas en la
Ciencia de la lógica hacia la configuración de la vida material, es posible y es
sustentada según Lênin por la teoría materialista del reflejo; la cual pone como
el elemento preponderante de la relación a lo real material, y considera a las
relaciones reflexivas entre pensamiento y mundo según aquella
preponderancia. Dialéctica y reflejo según este esquema muestran una mutua
conexión: la teoría del reflejo es en principio una teoría respecto de la
dialéctica, es decir, sobre la naturaleza y especificidad de la reflexión que, por
medio de conceptos dinámicos, abiertos e interdependientes, el pensamiento
lleva a cabo sobre la dinámica inherente de las cosas.
Partiendo del conocimiento como movimiento aproximativo que
emprende la conciencia hacia un mundo objetivo -y que da lugar, según nin,
a la dialéctica de los conceptos descrita por Hegel en sus obras-, el pensador
ruso asume a la dialéctica como una propiedad del conocimiento humano
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general. Idea que además se encuentra en el pequeño ensayo de la misma
época “Sobre la cuestión de la dialéctica” [1915] (LÊNIN, 1976c). De acuerdo
con Lênin, en toda captación realizada por el pensamiento de algo objetivo, se
descubre los gérmenes que dan lugar a la movilidad dialéctica.
Específicamente cree encontrar una comprobación de este axioma en los
postulados y en el proceder propios de las ciencias naturales, pobladas siempre
de teorías que hablan de modulaciones, transiciones y conexiones recíprocas
de opuestos al intentar descubrir las determinaciones del mundo natural. A
este respecto la concepción de Lênin, es semejante s al Marx de El capital
que al Engels de Dialéctica de la naturaleza, pues entiende la dialéctica como
la reflexión mental y siempre aproximativa del movimiento real, de manera
que los conceptos dialecticos no acontecen en el pensamiento fuera del
movimiento objetivo al que reflejan, y tampoco son atribuibles directamente a
las cosas.
La especificidad del nuevo contacto de Lênin realiza con la filosofía
hegeliana se muestra en este uso conceptual de la teoría del reflejo para
interpretar el texto hegeliano. Al leer y comentar los pasajes de Hegel en los
cuales encontraba la dialéctica, Lênin traduce la dialéctica como un proceso de
reflexión mental que parte de un movimiento real en la que propio sujeto está
involucrado. En sus anotaciones a la Ciencia de la lógica llegó a caracterizar la
dialéctica en un esquema que mantenía la interdependencia continua entre los
dos términos de la reflexión –lo real y lo material-, al mismo tiempo que
reivindicaba la prioridad del movimiento del primer término respecto del
segundo. Lênin entendió el procedimiento de vincular los abstractos conceptos
hegelianos con la realidad exterior objetiva como otro ejemplo de la inversión
realizada por Marx a la filosofía hegeliana; así habla entusiásticamente de “la
universal, unilateral y vital conexión de todo con todo, y la reflexión de esta
conexión en humanos conceptos –esto es poner, materialistamente, a Hegel de
cabeza-" (LÊNIN, 1976b, p. 146).
La noción de reflejo así entendida lleva a suponer la esencialidad de la
dialéctica como resultado de la “conexión” del pensamiento con el movimiento
material, de manera que se entiende la dialéctica específicamente con relación
a tal conexión, sin ser ya posible el utilizarla para calificarla independiente de
ninguno de los dos términos. Esta característica es el resultado de comentar
las categorías hegelianas con base en una teoría del reflejo que traduce a las
determinaciones ideales “en clave material”, y es una particularidad del
Resumen a la Ciencia de la lógica como expresión del contacto con la filosofía
hegeliana que Lênin lleva a cabo en su exilio suizo de 1915. Es relevante en
relación a esto el mencionar que el breve ensayo Sobre la cuestión de la
dialéctica contiene una noción parecida de dialéctica, al definirla no como
propiedad metafísica del universo, sino como un “viviente, multilateral
conocimiento, con un número infinito de matices en cada acercamiento y
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aproximación a la realidad” (LÊNIN, 1976c, p. 360). En el mismo texto
mencionado llega Lênin a enunciar un juicio que podría considerarse incluso
como una reconvención al mecanicismo presente en Materialismo y
empiriocriticismo, al afirmar que la falta de aplicación del antes mencionado
concepto de dialéctica a una teoría del reflejo es el infortunio fundamental de
todo materialismo metafísico, que se muestra incapaz de hacer justicia a la
multilateralidad del conocimiento (LÊNIN, 1976c, p. 360).
El reflejo del proceso de lo real conduce a la formación de categorías
mentales con características específicas, que, de acuerdo con Lênin, se pueden
desentrañar al interpretar (dialécticamente) los conceptos presentados en la
Ciencia de la lógica.
Un hecho recalcado en varias ocasiones en los comentarios de Lênin, y
al cual asigna un papel principal, es la naturaleza reflexiva de las categorías. Al
analizar la presentación que hace Hegel de la noción de Esencia, como idea que
establece semejanza consigo misma y que se pone a misma en un
movimiento auto-referente, anota Lênin que “la semejanza (que se muestra a
misma), es la reflexión de la Esencia en sí” (LÊNIN, 1976b, p. 133); juicio con
el cual se termina definiendo a la semejanza del concepto consigo mismo no
como algo estático que conduciría al conocido axioma lógico de A=A, sino
como algo movible que se encuentra sometido al proceso de auto-referencia
que envuelve a todos los conceptos y los dispone al cambio. Al comentar el
texto hegeliano Lênin asume una perspectiva fundamentalmente diferente a la
de Hegel para explicar tal fenómeno. Si, como ha apuntado Gadamer entre
otros, el pensamiento mismo es para Hegel movimiento, y toda categoría al
formar parte del movimiento del pensar se encuentra a misma
desenvolviéndose en un proceso abierto de enriquecimiento de sus
determinaciones (GADAMER, 1961, p. 173); para Lênin, en cambio, la
reflexividad del concepto es el resultado directo de la dialéctica, es decir, del
proceso por el cual el pensamiento humano refleja el movimiento de las
determinaciones reales sirviéndose de categorías lógicas. Todas las leyes de la
lógica hegeliana son, de acuerdo con Lênin, resultado de un proceso por el cual
se hacen “reflexiones de lo objetivo en la subjetiva conciencia del hombre”
(LÊNIN, 1976b, p. 184).
El esquema procesual del reflejo, que justifica según Lênin el aplicar las
determinaciones de los conceptos de la Ciencia de la lógica al entramado de lo
real-social con el pensamiento, tiene consecuencias relevantes para el
entendimiento de la historia. Los hechos y acontecimientos son considerados
desde la perspectiva del devenir, y el devenir mismo se concibe como un
proceso de despliegue inmanente de determinaciones por parte de instancias
que se colocan en relaciones reflexivas consigo mismas y con las otras. Lênin
ve inmerso en este proceso a toda instancia de la realidad material en tanto
que es parte de una relación variable con el pensamiento: el devenir de las
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determinaciones de las cosas y de los conceptos se reflejan mutuamente. La
historia política, la ciencia, las instituciones sociales, todos aquellos espacios
de expresión objetiva de lo humano, siguen un proceso que tiene su correlato
abstracto y abstraído en el pensamiento. De allí que Lênin llegue a afirmar que
una continuación (materialista) de las dialécticas planteadas por Hegel y Marx
consistiría en la elaboración dialéctica de las manifestaciones de lo humano,
de la ciencia y de la técnica (LÊNIN, 1976b, p. 147), es decir, tal continuación
consistiría en un estudio histórico que explique la relación procesual reflexiva
que acontece entre los fenómenos dados y las teorías que el hombre aplica para
comprenderlos y usarlos.
Es relevante recalcar que no se trata en ese sentido de que la conciencia
se limite a observar simplemente el movimiento de la historia. Un aspecto
general de la teoría del reflejo es que, aunque asume la prioridad del primer
elemento respecto del segundo con el cual entra en relación, permite todavía
mantener la interdependencia dinámica entre ambos. En principio, la
característica principal del reflejo no es la idea de la copia o de la imitación,
sino el establecimiento de una estructura por medio de la cual un término de
la relación lleva a otro nivel a determinaciones esenciales del primero; esto es,
señala primeramente una estructura reflexiva, que puede tener muchas formas
de concretización, y que da ocasión para distintas formas en que los términos
entren en la relación de referencia. En el caso de la teoría del reflejo sostenida
por Lênin en sus comentarios a Hegel, la prioridad del movimiento material-
social es acompañada no solo de una correspondencia en el movimiento del
pensamiento, sino de una mutua influencia. El conciso axioma: “la conciencia
del hombre no solo que refleja el mundo objetivo, sino que lo crea” (LÊNIN,
1976b, p. 212) es una expresión de este paradigma.
La mención a la relación sujeto-objeto, entendida como la conexión
entre el movimiento del pensamiento y el movimiento de lo real, asume un
esquema particular sobre el paso de lo abstracto a la concreto y de lo concreto
a lo abstracto. Lênin pone en evidencia que en el conocimiento se encuentran
ambos tipos de procesos. Así, en el Resumen a las Lecciones a la ciencia de la
historia de la misma época, anota que Hegel en ocasiones inicia el movimiento
conceptual desde “lo abstracto a lo concreto: ser (abstracto) existencia
(concreta) – el ser para sí, o en el sentido inverso: la noción subjetiva – objeto
la verdad” (LÊNIN, 1976a, p. 314). Esto es así porque de acuerdo con la
interpretación de Lênin, el pensamiento ordinariamente inicia con
impresiones indeterminadas sobre las cosas que nos dejan nociones
abstractas, a las cuales se aplica el estudio y la reflexión, para llegar a conceptos
concretizados, los cuales a su vez nos vuelven a conducir a nociones generales.
En tanto que el pensamiento es movimiento que refleja el movimiento objetivo,
ambas orientaciones en el proceso del conocimiento son válidas. Lênin aclara
que, en último término, “los momentos de la cognición se mueven en la
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dirección del sujeto al objeto; siendo probados en la práctica y arribando a la
verdad a través de ensayos” (LÊNIN, 1976a, p. 316). Es decir, son las
necesidades de la acción práctica las que determinan el movimiento del
proceso de lo abstracto y lo concreto y viceversa, al necesitar el sujeto
cognoscente “reflejar” de una u otra manera las determinaciones reales que se
presentan como objeto de su acción.
En el marco de esta argumentación, Lênin presenta una revaluación de
la noción de abstracción, que la dispone en una luz mucho más favorable que
aquella de Materialismo y empiriocriticismo. “El pensamiento que procede
desde lo concreto a lo abstracto —afirma—, probado que es correcto, no se aleja
de la verdad, sino que llega más cerca de ella.” (LÊNIN, 1976b, p. 171) Y esto es
así porque la abstracción de los procesos de la realidad es una de las
características del proceder científico, el cual se orienta como ningún otro tipo
de conocimiento al reflejo objetivo de los procesos. El proceder abstracto de la
ciencia, que encuentra leyes y principios generales en la naturaleza y en lo
social, es reflejo lido en cuanto que se aplica -y necesita aplicarse- a
determinaciones verdaderas, esto es, en cuanto que, bajo la estructura del
reflejo, conserva a la realidad exterior como el momento predominante a partir
del cual se realiza la abstracción. La abstracción en estos casos requiere la
comprensión verídica de determinaciones objetivas con el fin de influir e
intervenir en la realidad: una abstracción que fallara en captar la configuración
efectiva de realidad, condenaría al fracaso a la acción involucrada. Lênin
afirma que el camino que conduce “desde la percepción viva hasta el
pensamiento abstracto, y desde allí hacia la práctica, es el camino dialéctico al
conocimiento de la verdad” (LÊNIN, 1976b, p. 147). Un juicio que muestra su
reivindicación de la actividad abstraedora de la subjetividad en el acto del
conocimiento, siempre y cuando su punto de partida sean las determinaciones
existentes en lo real; una condición que su esquema del reflejo garantiza.
El entendimiento general que implican los comentarios de Lênin al
problema del conocimiento, en tanto que aproximación dinámica del sujeto
hacia al objeto, muestra que la dialéctica, en tanto interrelación entre el
movimiento del pensamiento y el movimiento del mundo exterior, no significa
la mera imitación por parte del pensamiento. Según el pensador ruso la lógica
es la ciencia del conocimiento; pero el conocimiento, lejos de ser una reflexión
inmediata, simple y completa de la naturaleza exterior, es en cambio “el
proceso de una serie de abstracciones; la formación y el desenvolvimiento de
los conceptos, las leyes etc… que embrazan condicional y aproximativamente
la naturaleza en movimiento y desarrollo” (LÊNIN, 1976b, p. 182). Tal
“abrazamiento” de lo real exterior consta de tres instancias: la naturaleza, el
conocimiento humano, y la reflexión de la naturaleza en la cognición humana
(LÊNIN, 1976b, p. 182). La última es la que da lugar a conceptos, leyes y
categorías entregadas al conocimiento del cambio a la realidad. Según Lênin el
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reflejo aplicado a lo objetivo solo puede ser la aproximación a la exterioridad
que es totalidad y movimiento; el pensamiento, que va de lo concreto a la
abstracto o regresa de lo abstracto a lo concreto, forma parte del acercamiento
a lo real, limitado respecto de la totalidad, pero siempre perfeccionable.
Otro postulado leniniano es que la noción de subjetividad, en tanto
actividad que es referida en un objeto exterior, presupone la existencia de una
“otredad” independiente del pensamiento (LÊNIN, 1976b, p. 212). Al tratar
sobre la objetividad que recibe el reflejo del conocimiento, Lênin distingue dos
instancias específicas: “el proceso natural exterior (mecánico y químico), y la
actividad material humana” (LÊNIN, 1976b, p. 188). El conocimiento es
verdadero (objetivo) cuando el movimiento del pensar corresponde con
aquellos dos procesos. La objetividad del conocimiento, basada como vemos
en el “reflejo dinámico” del movimiento de lo real, apunta a lo que para Lênin
es el fundamento de la interdependencia entre el sujeto y el objeto: la prioridad
del trabajo. Si por un lado la naturaleza y la actividad material son objetos de
la subjetividad; por el otro la naturaleza es el objeto tanto de la actividad ideal
como de la material; la actividad humana, abarcando ambas dimensiones de
lo ideal y de lo material, se encuentra en una relación fundamental con la
naturaleza. Al analizar el fundamento que sostiene tal forma de relación, dice
Lênin que la noción del hombre presupone el impulso de la realización de sí
mismo, una forma de exteriorización hacia la otredad, la naturaleza, por la que
aquél se “da a mismo la objetividad en el mundo objetivo… y se realiza
(completa) a sí mismo” (LÊNIN, 1976b, p. 212).
Pasaje que es de relevancia capital para entender la especificidad de la
argumentación leniniana sobre el reflejo desarrollada en la nueva
confrontación con Hegel. Para Lênin la actividad ideal y material son el
resultado de la orientación del hombre hacia la naturaleza exterior con el fin
de crear una nueva realidad (objetiva) humana. Este proceso de creación
ocurre mediante el trabajo. Es el trabajo el que finalmente explica la conexión
entre el movimiento del conocimiento y el de la realidad, pues es necesario un
conocimiento verdadero (objetivo) para intervenir adecuadamente en la
naturaleza y transformarla según las necesidades y potencialidades humanas.
Lênin afirma que la inclusión de la noción de vida en la Ciencia de la gica
tiene sentido “desde el punto de vista del reflejo del mundo objetivo en la
conciencia humana, y de la puesta a prueba de esta conciencia a través de la
práctica” (LÊNIN, 1976b, p. 202). Con lo que establece un esquema desde el
principio mediado el reflejo: la vida presenta al hombre la necesidad del
trabajo, y el trabajo requiere el reflejo objetivo para funcionar. En tanto que el
trabajo es un proceso por el cual se va creando un mundo humano de acuerdo
con fines y proyectos idealmente trazados, y es al mismo tiempo un proceso
por el que el hombre se va objetivando (completando) en el mundo que crea,
el reflejo mental que ocurre en el conocimiento se manifiesta como
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instrumento activo de creación y transformación, continuamente
retroalimentado por el resultado de la praxis. De allí la afirmación axiomática,
expresión de su entendimiento del reflejo en tanto momento activo del proceso
de la praxis, de que la conciencia del hombre no solamente que “refleja el
mundo objetivo, sino que lo crea” (LÊNIN, 1976b, p. 212). La teoría del reflejo
se manifiesta así, como una parte de una teoría general sobre proceso de auto
objetivación de lo humano en la historia, y reivindica el rol activo de la
conciencia en aquél.
3. Conclusión
Al interpretar las determinaciones de los conceptos presentes en la
lógica hegeliana, Lênin establece una argumentación por la cual encuentra en
los procesos objetivos (ya sea de la naturaleza, o de la actividad humana) las
mismas cualidades que distinguen a los conceptos dialécticos hegelianos. Esto
le lleva a ver una convergencia entre el movimiento del pensamiento y el
movimiento de los procesos objetivos. Mediante el esquema del reflejo Lênin
comprueba la existencia de aquella correspondencia en el propio devenir en la
historia, y a la vez que salvaguarda, en contraposición con Hegel, la prioridad
ontológica del movimiento de lo objetivo frente a la subjetividad. La teoría del
reflejo desarrollada en los comentarios que conforman el Resumen a la Ciencia
de la lógica arriba a una comprensión compleja de la relación sujeto-objeto, la
cual supera el mecanicismo materialista de Materialismo y empiriocriticismo,
al poner en primer plano la existencia de una dinámica interdependencia entre
el movimiento del pensamiento y el movimiento de los procesos sociales y
naturales. Según Lênin la interdependencia de ambos movimientos se
encuentra justificada por la necesidad que tiene el ser humano de dirigirse
hacia el mundo objetivo exterior y comprenderlo efectivamente en sus
cambios. Al ser una instancia enmarcada en el complejo proceso de
transformación de la realidad exterior, el reflejo que hace el pensamiento del
mundo exterior es considerado no solamente como imagen pasiva de lo
material, sino como un elemento que influye activamente en el objeto. Se llega
a una afirmación del papel activo de la conciencia, al señalar que la
correspondencia que sucede entre el movimiento del pensamiento y el
movimiento de lo real interviene siempre en el proceso de creación y
trasformación del mundo humano, y es efectivizada por aquél. Todas estas
cualidades permiten hablar de la emergencia de una sui generis teoría del
reflejo en los estudios dedicados por Lênin a la lógica hegeliana durante su
estancia en Suiza el año 1915, y que terminan en el texto de el Resumen a la
Ciencia de la lógica; y esta teoría amerita ser traída a discusión siempre que se
estudie la contribución de Lênin a este importante problema de epistemología
y ontología marxistas como es del reflejo.
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Como citar:
BONILLA, Manuel Alejandro. La otra teoría de la reflexión de Lênin: la
formulación de una segunda teoría leninista del reflejo en el Resumen de la
Ciencia de la gica. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências
Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 263-77, jan./jun. 2020.
Data do envio: 5 ago. 2019
Data do aceite: 16 mar. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.472
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Roberto Schwarz e György Lukács: uma aproximação dialética
Henrique Coelho
1
Resumo:
O texto visa a mostrar, a partir das análises do Roberto Schwarz e György
Lukács, como a análise de lastro marxista autêntico é divergente da leitura
meramente sociológica, procurando superar a dualidade “esteticismo x
sociologismo”, dois reducionismos antidialéticos. Em outros termos, trata-se
de expor, dentro de nossos limites, como o autor brasileiro, ao buscar a inflexão
realista de algumas obras, não deixa de debater problemas da especificidade
estética, portanto, sem que a vida social explique absolutamente a arte, mas ao
mesmo tempo, seja seu substrato indispensável. Para tanto, faremos uma
primeira reflexão sobre o decurso em que György Lukács, referência
importante para Schwarz, deslinda a arte através, primeiramente, de posições
idealistas e, logo após, a partir da emergência e redescoberta gradual da
ontologia marxiana e da valorização do realismo crítico.
Palavras-chave: dialética; forma estética; objetividade social; Lukács;
Schwarz.
Roberto Schwarz and Gyorgy Lukacs: a dialectic approach
Abstract:
The text aims to show, from the analyzes of Roberto Schwarz and Gyorgy
Lukacs, how the analysis of authentic Marxist ballast is divergent from the
merely sociological reading, seeking to overcome the duality "aestheticism x
sociologism", two anti-dialectical reductions. In other words, it is a matter of
exposing, within our limits, how the Brazilian author in seeking the realistic
inflection of some works does not stop debating problems of aesthetic
specificity, therefore, without the social life explaining art absolutely, but at the
same time, is its indispensable substrate. To do so, we will make a first
reflection on the Lukacsian course (Gyorgy Lukacs) where the Marxist author,
an important reference for Schwarz, breaks the art through, firstly, Idealist
positions and then afterwards emergence and gradual rediscovery of Marxian
ontology and appreciation of critical realism.
Keywords: dialectic; aesthetic form; social objectivity; Lukács; Schwarz.
1
Sociólogo (UFMG), doutorando em Estudos Organizacionais, Trabalho e Sociedade,
Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). E-mail: rickcoelholda@hotmail.com. Revisão ortográfico-gramatical de Vânia Noeli
Ferreira de Assunção.
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I
O tema da autonomia da arte deve ser colocado e travejado pela querela
acerca de sua inflexão absoluta ou sua inflexão relativa. Nesse sentido,
seguindo a dicção e o decurso teórico lukacsiano, podemos observar esta dupla
natureza de teorias. Em primeiro momento, a que apreendeu a arte de maneira
absoluta e hermética mesmo que não se empenhe, necessariamente, nas
inflexões causais do gênio” ou do desinteresse” (SILVA, 2008) –, como
também, mais adiante, em sua maturação teórica marxista, a inflexão que
captura as determinações reflexivas entre a arte e as demais esferas da vida
social. No último caso – referente à autonomia relativa –, não fica suspensa a
especificidade da arte, quer dizer, sua lógica específica enquanto práxis e esfera
social, mas impressa a demarcação ontológica da totalidade e da articulação
(interrelação peculiar às entificações sociais), lineamento marxiano de
primeira ordem filosófica.
Acerca do jovem Lukács, Arlenice Almeida da Silva diz que:
Se para os antigos a reflexão sobre a arte estava fundada, grosso
modo, na pesquisa do bem e da verdade, em Lukács a estética é
pensada nos quadros teóricos da modernidade, isto é, a partir de
questões formais referentes à constituição interna da própria obra
de arte, e na autonomia que a obra reivindica para si. Nestes estudos,
em sua maioria fragmentados e redigidos na forma de ensaios,
Lukács estabelece um diálogo não só com o cerne do idealismo
alemão e com o romantismo (Kant, Fichte, Schelling, F. Schlegel,
Novalis, Hegel), mas também com a fenomenologia de Husserl e o
existencialismo de Kierkegaard, sem falar da presença latente de
Nietzsche. (SILVA, 2008, p. 1)
Ou seja, tem-se uma primeira posição lukacsiana que não toma uma
bem equacionada posição marxista. O travessão idealista (seja influenciado
pelas filosofias da vida, seja, logo depois, influenciado por Hegel) dura, com
grande acentuação, até os marcos de seu último livro travejado pela lente
hegeliana, História e consciência de classe (1923). É possível, ainda, ver certa
influência mais à frente, no que tange ao suposto vínculo lógico Hegel-Marx,
como em Introdução a uma estética marxista (1957) e na própria Estética
(1963), porém, aqui o materialismo já está mais demarcado (CHASIN, 2009).
Na fase anterior, de tino idealista, depreende-se da arte um “automovimento”
(referência ao seu hermetismo enquanto objeto e práxis), seja como faculdade
estética a priori, seja como essência metafísica autoposta.
Neste momento, para o autor, há, como emblema da “modernidade”
(expressão que será menos usada quando o marxismo passa a predominar em
sua teoria; expressão pica das filosofias da subjetividade), uma “ruptura”
(SILVA, 2008) desagregadora e fundamental entre indivíduo/arte e mundo.
Por mundo, pelo viés anticapitalista romântico (“modernidade”) adstrito à
época, entende-se a referência às entificações cotidianas reificadas, o
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Henrique Coelho
280
esvaziamento das relações humanas e a dominação “coisal” (dos objetos dos
homens sobre os homens). Nesta contextura, a arte apareceria como forma
universal posta pela faculdade estética da individualidade, momento
concernente à sua elevação-suspensão (fugaz), destaca-se, em total
rompimento e incomunicabilidade com a vida cotidiana reificada. Assim,
nestas condições de análise da obra de arte, afirma Arlenice Almeida da Silva
(2006), uma ruptura insuperável entre indivíduo e mundo. Segundo nos
explica a autora, também não se trata, para o jovem Lukács, de analisar a
questão estética a partir do psicologismo, isto é, das qualidades intrínsecas à
subjetividade do autor. Parte-se, antes de tudo, da própria obra de arte
entificada, objetivada, “puro artefato”, manifestação (SILVA, 2008).
Para Hegel, a modernidade também impedia uma integração entre
individualidade e sociedade. Isso, no entanto, era apreendido de forma
positiva, uma vez que a perda dessa totalidade e a integração interioridade-
objetividade se dava ao passo que 1) a totalidade estava garantida pela
realização do Espírito no estado; 2) o Espírito já se encontra na consciência de
si mesmo, quer dizer, em seu paroxismo na própria subjetividade, denegando
a necessidade de um ação do sujeito na vida exterior (COTRIM, 2009). Não se
fazia demandante, dessa forma, a integração ética exemplar à Antiguidade,
onde a individualidade grega se perfazia integrada à comunidade, isto é,
inexistência de antagonismo entre subjetividade e estrutura social, integração
ética que possibilitava a realização plena da plasmação estética, uma vez que a
forma artística refletia a forma social em sua integração e totalidade indivíduo-
sociedade (COTRIM, 2009). No caso da “modernidade”, termo típico das
reflexões do “anticapitalismo romântico”, apresenta-se uma perda da
totalidade dada a desintegração entre individualidade e sociedade, cisão que
separa uma subjetividade elevada, um espírito alcandorado, mas em perdição,
uma vez que a estrutura social apresenta-se como deletéria, decrépita e
corrompida para ação dessa alma. Para o jovem Lukács, em termos dessa
mesma concepção, não haveria, como em Hegel, uma instituição para
assegurar a totalidade perdida (estado). A própria subjetividade se encontraria
em conflito irresoluto com a objetividade social, reino do inautêntico. Destarte,
se para Hegel o lirismo é uma positividade, uma vez que é uma subjetividade
refletindo o “espírito consciente de si mesmo” na ambiência da própria
subjetividade fechada em si absolutamente, o jovem Lukács ve o lirismo
(como se dará no romance) como uma “irmandade da solidão”, isto é,
subjetividades que comunicam sua falta de sentido no mundo (COTRIM,
2009).
A arte, para este jovem Lukács, atua, neste momento, como apanágio de
um mundo em que subjetividade e objetividade estão rompidas, propondo-se
à busca de uma totalidade perdida. A arte, entretanto, remontando à nuança
pessimista, pode ser uma falsa panaceia, já que alça o mundo sem sentido,
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aborda a perda da totalidade, sem, contudo, poder dar uma resolução objetiva
ao problema, quer dizer, posta-se como uma lírica do impossível que denota as
“fragmentariedades do mundo” (LUKÁCS apud COTRIM, 2009). No mundo
em que a vida empírica está apartada da essencialidade, configuração objetiva
da “modernidade”, a epopeia tem de dar lugar ao romance, de modo tal que o
romance aparece como uma atitude estética desesperada e de fracasso em
busca da essência e totalidade perdida, dada a cisão pungente entre
individualidade e objetividade (COTRIM, 2009).
Segundo este jovem Lukács, eivado pelo idealismo (do subjetivo,
primeiramente, ao objetivo, por fim), o herói do romance (assim como o
artista) segue em uma “busca infeliz”, porquanto em sua alma, em sua
interioridade, poderia mover-se para a essência, contudo, essa essência mesma
se escapa, é inalcançável, configurando a busca do indivíduo problemático
(COTRIM, 2009), da alma inquieta, diante da assustadora pletora do
inautêntico que está objetivada na exterioridade moderna, isto é, um
insurgente – fracassadocontra a mendacidade e perfidez da efetividade. Ao
passo que evidencia a problemática do mundo, é dação de tom e corolário da
sua própria problemática, já que, diante da puerilidade e ardil da
exterioridade, resta-lhe o autoisolamento da “busca infeliz”. Trata-se de uma
desintegração pujante da ética, da integração entre individualidade e
comunidade que plasmariam uma totalidade em harmonia, em plenitude
canora. O tom pessimista está posto em sua nuança clara, já que o herói dá-se
como fracassado, como quem procura e não acha, o ser ausente de
comunidade, uma vez que é perene e instada a “inessencialidade” insuperável
da vida. No prumo dessa busca, atinge um mero “vislumbre”, como parca
aproximação da totalidade e integração, pseudorrealização, que cativo de
seu solipsismo forçado, dada a hostilidade do mundo moderno. Permanece no
romance, segundo o jovem húngaro, a “intenção ética”, uma espécie de
evocação da comunidade perdida, acompanhada de certo desolamento e
insubordinação.
O imanentismo da obra de arte deságua na incomunicabilidade tanto
com o autor quanto com o receptor, ainda que o produtor, ao ser seu portador
e via, esteja em estado de “suspensão fugaz” em relação à vida cotidiana. A arte
não serve, portanto, para o jovem Lukács, para reconciliar indivíduo e mundo,
não tem esse poder. Vejamos, desta forma, que há para ele uma divisão
rigorosa entre subjetividade e objetividade, tendo na segunda (a objetividade
enquanto “modernidade”) o reino da perdição e embrutecimento contra o qual
as personalidades se defrontam. Neste instante, a dialética materialista entre
objetividade e subjetividade não é sequer suspeitada, assim como as
determinações reflexivas entre as esferas sociais.
Para o jovem Lukács, portanto, uma dissonância na produção
estética, já que entre indivíduo e mundo um terreno do incomunicável: arte
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que fica à deriva, torna-se um “mal-entendido”, no sentido e diapasão de seu
hermetismo contra o mundo. Nesse sentido, segundo Silva (2008), para o
jovem húngaro, a forma estética produz “signos inadequados”, ou seja, sem
relação com os possíveis impulsos advindos da realidade vivida. Assim, “A
dissonância é a compreensão da realidade na perspectiva do non sense
afirmado na forma” (SILVA, 2008, p. 4). Quanto ao problema histórico,
vejamos a resolução dada:
A obra de arte manifesta esse caráter paradoxal, é ao mesmo tempo
temporal e atemporal, uma duplicidade que é o resultado de uma
produção circunscrita e enraizada em um tempo e a um espaço, mas
portadora de validez e efeitos universais. Ela possui ao mesmo
tempo um caráter histórico e artístico, mas também há algo de
irracional em sua manifestação, um “mal-entendido que lhe é
constituinte; a arte fala e constitui-se, em suma, a partir de uma
distância, de um “Hiatus” [Abstand]. A obra é temporal segundo sua
gênese e atemporal pelo efeito que produz no sujeito receptor; um
efeito independente do transcorrer do tempo. (SILVA, 2008, p. 4)
Ademais:
A relação entre historicidade e atemporalidade na obra de arte é o
tema que marcará toda a produção do jovem Lukács, bem como boa
parte de seus escritos de maturidade, e é, por outro lado, o que
singulariza sua reflexão diante da estética dita, grosso modo,
romântica. Para Lukács, Schelling percebeu com profundidade,
mais do que todos os românticos, que “toda obra é a eternização de
um momento histórico determinado” “que a obra sai do tempo e
para ele retorna”: “ela arranca um instante do fluxo temporal, lhe
conferindo a perenidade do tempo (SILVA, 2008, p. 220). Mas,
enquanto os românticos ainda permanecem ligados a uma teoria
platônica da arte, Lukács procura tirar outras consequências do
procedimento formal da obra, de sua incontornável materialidade.
Não só toda obra suscita um mundo novo, abrindo um campo vasto
de possibilidades, como ativa um campo de negatividade, o “mal-
entendido” na relação do eu com o mundo. (SILVA, 2008, p. 5)
A “face de Janus” da arte seria sua ambiguidade, nascer dentro de um
tempo histórico, mas não ser sua expressão, mas uma forma que se afirma na
sua materialidade e imanência, distante, travejada pela “opacidade”, que não
explicita a realidade vivida; daí o caráter paradoxal dessa práxis social (SILVA,
2008). Nesse sentido, a obra não é singularismo, expressão psicologizada e
psicologizante do produtor, do artista em-si-mesmado, nem mesmo é reflexo
mecânico da objetividade, mas o único “escape” da vida cotidiana dilacerada
pela reificação da “modernidade”, restando ao artista o solipsismo, arte como
“mal-entendido” e deslocamento da realidade.
É preciso assentar, porém, que o trato hegeliano é posterior a 1910,
quando a inflexão ao autor alemão e, por isso, ao idealismo objetivo, começam
a despontar. Tal destino se completará em A teoria do romance (1915-6),
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marco objetivado da transição entre o idealismo subjetivo ao idealismo
objetivo, como o próprio autor húngaro infere. Prevalecerá aqui uma
concepção sujeito-objeto de tipo hegeliano, preservando também suas
categorias estéticas, embora Lukács também se diferencie do autor alemão
clássico, como vimos (COTRIM, 2009).
Como admite Silva, até A alma e as formas (1911) a síntese de um
estruturalismo com traços fenomenológicos husserlianos (também, do
existencialismo de Kierkegaard e do tragicismo de Nietzsche), além de uma
influência do kantismo na tônica da execução de uma “teoria do
conhecimento”, portanto, da querela central acerca do entendimento. Em A
alma e as formas,
o que possibilita o surgimento de uma nova lírica é o isolamento, o
afastamento da “cultura espiritual” de sua época, provocado pela
reação diante de “um tempo que não é favorável à poesia”; é a
impossibilidade de uma “cultura pública”, de “uma alma e uma voz
nacionais”, no sentido antigo, ou seja, a solidão do “homem
arrancado de todos os laços sociais”, mas que o cessa de desejar
alguma forma de pertencimento (SILVA, 2009, p. 100).
Nesse sentido, concebidas exterioridade e interioridade como
transpassadas pela distância e incomunicabilidade, é que nascerá a nova lírica.
Nesse tempo de uma “busca infeliz”, o salto para a interioridade aparece como
destino inerente e pejorativo, distanciamento da vida. O novo lirismo, do início
do século XX, que “dissimula seus tons confessionais”, ou seja, interioridade
como retorno a um âmago angustiado e, fundamentalmente, sem “comunhão
com o leitor”, sem desejo de exteriorização da vida (SILVA, 2009). Esse lirismo
moderno, longe de angariar posição como cântico coletivo (como lirismo
antigo que poderia ser uma expressão simbólica nacional), é solitário enigma
possibilitado pela “cultura da época”, o esvaziamento dos laços sociais. O novo
lirismo é a forma significativa de almas significativas abaladas. Assim, não
mais “uma experiência vivida a ser cantada” (SILVA, 2009). A nova poesia
lírica é, assim, integração entre “silêncio e narrativa”, o murmúrio da
individualidade desolada posto em forma artística (SILVA, 2009). Em outras
palavras, “denúncia da realidade aniquilada”, ainda que de maneira oblíqua e
não direta.
II
Em contraste com o desenvolvido até aqui, em Meu caminho para Marx
(1933), vemos a autoconstatação definidora de um engate teórico que revela a
preza pela “leitura imanente” (CHASIN, 2009) da obra de Karl Marx,
modificando o padrão de investigação de György Lukács. Se a matriz idealista
(existencialista, fenomenológica, kantiana-hegeliana etc.) prevaleceu nas
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visadas passadas, será na segunda metade da década de XX a incipiente
jornada ao Marx como fulcro teórico principal, inclusive, para a nova
apreensão do estético. Matriz que precisa ser baliza e parametração para todo
pensador, segundo este Lukács de 1933, que tenha como escopo a elucidação
radical do complexo categórico da realidade efetiva. Marx, em seu composto
filosófico e científico, aparecerá como “pedra de toque”, momento de crivo
avançado sobre a representação da realidade. É nesse sentido que Lukács
escreve sobre a necessidade da explicitação de cada pensador em relação ao
conteúdo social da obra marxiana, quer dizer, afirmação de “seu lugar nela e
seu próprio posicionamento em relação a ela”, uma vez que tal obra anatomiza
os próprios conflitos da história humana. Não obstante a seriedade de cada
intelectual, para Lukács, tornam-se consequentes a seriedade e profundidade
teóricas que se posicionam frente às lutas histórico-sociais, tendo por
caminho, por conseguinte, o tracejamento ontológico-científico de Karl Marx,
rompante intelectivo, obra imanentemente colada ao desvelamento profundo
da sociabilidade (do conjunto dos complexos sociais, entre eles, a arte) e de
suas contradições.
A relação com Marx é a verdadeira pedra de toque para todo
intelectual que leva a sério a elucidação da sua própria concepção de
mundo, o desenvolvimento social, em particular a situação atual, o
seu próprio lugar nela e o seu próprio posicionamento em relação a
ela. A seriedade, o escrúpulo e a profundidade com que ele se dedica
a esta problemática nos indica em que medida ele quer, consciente
ou inconscientemente, esquivar-se de um claro posicionamento com
relação às lutas da história atual. Os esboços biográficos que tratam
da relação com Marx, da luta espiritual com o marxismo, dão-nos,
por vezes, um quadro que, enquanto contribuição à história da luta
social dos intelectuais no período imperialista, possui um interesse
geral, mesmo quando, como no meu caso, a biografia em si não
tenha nenhuma pretensão de interessar ao público. (LUKÁCS, 1983,
p. 1)
Segundo o autor, revendo criticamente sua posição de classe
[Standpunkt] anterior:
A tese neokantiana da “imanência da consciência” ajustava-se
perfeitamente à minha posição de classe na época; não a submetia a
qualquer exame crítico, mas a aceitava passivamente como ponto de
partida de toda e qualquer colocação do problema gnosiológico.
(LUKÁCS, 1983, p. 1)
A propositura de Lukács, bastante modificada e com autocrítica
retrospectiva, traz outro ponto importante para entendermos a
fundamentação marxiana por vezes deturpada nas várias formas do marxismo
vulgar. A ausente distinção entre os materialismos dialético e não dialético é a
síntese confusa que substanciou (não só, mas também) a gama teórica
formante da irrealização revolucionária do século XX: teoria marxista levada à
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vulgarização ideológica positivista e/ou economicista, fundamentação
falseada, que não atina para a realidade do ser-em-si, dando as costas ao
materialismo humanista enquanto lineamento ontológico fundamental de
Marx. Sem isto, o entendimento da determinação recíproca entre a esfera da
subjetividade e a da objetividade (aqui, um corte fundamental com o Lukács
anterior), a totalidade e a articulação das esferas sociais, fica impedido,
imputando um esquema formalista como centro gravitacional da
processualidade social. Nesse sentido, trata-se da complexa recuperação do
humanismo do materialismo marxista (e de suas outras componentes
ontológicas), isto é, a práxis social como peça fundamental da virada marxiana,
em oposição ao “destronamento do homem” ocasionado pelo materialismo
mecanicista/empirista/intuitivo, reposicionado sob o manto pseudomarxiano,
em especial, pelo positivismo marxista dos fins do século XIX (II
Internacional).
Adiante, no mesmo texto, o autor também nos trará outro apontamento
de profunda discussão teórica. Lukács questiona, dessa vez, o idealismo
subjetivo (que lhe serviu de base no tempo passado), indo ao ponto nodal da
discussão:
Na verdade, mantinha uma constante suspeita frente ao extremado
idealismo subjetivo (tanto o da escola neokantiana de Marburgo
quanto o da teoria de Mach), uma vez que o conseguia
compreender como era que o problema da realidade podia ser
definido, considerando-a simplesmente uma categoria imanente da
consciência. (LUKÁCS, (1983, p. 1)
Lukács trará, ainda na forma da autocrítica, o tropeço do ecletismo
como solução para uma radicalidade teórica. Sua mudança para a Alemanha,
no início década de 1910, período de ganho de proximidade com o idealismo
subjetivo – influência de origem alemã de autores como Max Weber e Simmel
–, conduziram-no a um entendimento da sociabilidade atravessado pela
filosofia irracionalista (que ocorria desde a década passada, mas agora,
misturada às posições hegelianas apresentadas por Ernst Bloch), trepidando o
conhecimento da totalidade objetiva social de Karl Marx em um sociologismo
sem concretude material. Durante largo tempo, Marx foi, para o jovem Lukács,
simples novelo científico que tangencia e alvorece os problemas da esfera
cultural como momento preponderante e fundante da ordem social, deixando
a esfera econômica marginalizada enquanto objeto da ciência sociológica. Por
fim, é dessa forma que o autor húngaro marxista assola seu irracionalismo e
idealismo anterior que lhe compuseram uma “sociologia da literatura”:
Mas, embora isso não me tenha conduzido a conclusões
materialistas, acabou levando-me muito mais a uma aproximação
com aquelas escolas filosóficas que queriam resolver este problema
de forma irracionalista e relativista e, até muitas vezes, mística
(Windelband-Rickert, Simmel, Dilthey). A influência de Simmel, de
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quem fui discípulo direto, deu-me ainda a possibilidade de “inserir”
numa tal concepção de mundo tudo o que havia assimilado de Marx
nesse período. A filosofia do dinheiro de Simmel e os escritos sobre
o protestantismo de Max Weber foram os meus modelos para uma
“sociologia da literatura”, na qual os elementos derivados de Marx
estavam mais uma vez presentes, mas tão diluídos e empalidecidos
que eram quase irreconhecíveis. Seguindo o exemplo de Simmel, eu,
de um lado, separava o quanto possível a “sociologia” do
fundamento econômico, concebido de modo bastante abstrato, e, de
outro lado, via na análise “sociológica” apenas o estágio inicial da
verdadeira e real pesquisa científica no campo da estética (História
da evolução do drama moderno, 1909; Metodologia da história
literária, 1910, ambas em húngaro). Os meus ensaios publicados
entre 1907 e 1911 oscilavam entre este método e um subjetivismo
místico. (LUKÁCS, 1983, p. 2)
Vemos, no Lukács marxista da década de 1930, o resultado tácito da
superação do ordenamento teórico tragicista e idealista anterior. Trata-se,
como muito se destaca em Narrar ou descrever?, de averiguar os componentes
da obra de arte tendo em conta sua comunicabilidade com o solo social, sua
tarefa mais ou menos desveladora das “texturas sociais” e, portanto,
ascendência da arte realista. A arte como “mal-entendido”, para o Lukács em
maturação marxista, só pode ser entendida como debilidade, de modo tal que
nenhum virtuosismo técnico (hermetismo/formalismo) pode sozinho perfazer
uma grande arte.
O tratamento autenticamente marxista da arte não a indica, dessa vez,
como “busca infeliz” de uma essência metafisicamente tomada e igualmente
perdida. O estatuto da grande arte aparece ligado à sua função, forma e
método, reflexo de um desvelamento crítico da urdidura social. A reviravolta
se vale, antes de tudo, da premissa de que os nexos e relações da sociabilidade
sejam inteligíveis e representáveis (em um conjunto variável de objetivações).
Dessa forma, não se trata nem de uma “busca infeliz” recheada de metafísica,
nem, ao certo, de uma descrição paisagística-naturalista da realidade, um
“realismo ingênuo” sem acepção da dialética movente dos fatos, isto é, uma
congregação inóspita de casualidades e acontecimentos acidentais.
Cheguemos mais a fundo ao quadro e aspecto debilitantes do
naturalismo que o autor denuncia no seminal texto Narrar ou descrever?, em
que se tornaclara, também, sua nova apreciação da arte e do realismo crítico
como arte autêntica. Sobretudo, no naturalismo, a conexão social dos fatos é
vigorosamente obscurecida por este método, de modo que os fatores sociais
aparecem de maneira abstraída, isolada e sequencial, isto é, ao modo de uma
figuração arbitrária. A dialética entre os cenários humanos e suas ações
pode ser alvorecida quando os objetos sociais e as relações sociais são
apresentados com o tônus humanista particular e adequado, que revela
propriamente a vida humana como ação circunstanciada por outras
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objetivações históricas, e não como encadeamento de “coisas mortas”. Isto é,
dialeticamente, não se resolve a objetivação da arte como um “inventário”
descritivo (que homogeneíza e faz tudo equivaler), por mais nuança e talento
técnicos imprimidos, quanto antes, subsumindo a descrição à narração de
realidades efetivas, onde o drama é substanciado pela reciprocidade das ações
humanas, e a sociabilidade aparece, por excelência, como “mundo
humanamente configurado”. Em suma:
O contraste entre o participar e observar não é casual, pois deriva da
posição de princípio assumida pelo escritor em face da vida, em face
dos grandes problemas da sociedade, e não do mero emprego de um
diverso método de representar determinado conteúdo ou parte de
conteúdo. (LUKÁCS, 1965, p. 50)
No Lukács maduro e marxista, não se trata tanto da hipóstase e
hipertrofia da subjetividade, como se tem abastadamente marcado no seu
idealismo primeiro, nem mesmo tem-se a tônica de um materialismo
mecanicista no qual a arte é reflexo sem meandros, fotográfico, da realidade
objetiva. De um lado, no reflexo fotográfico, tem-se uma acepção que revela
apenas a aparência/imediatidade, ao passo que no idealismo tem-se a negação
da essência na realidade objetiva, o que implica a multiplicidade da
“impossibilidade” na averiguação do conteúdo essencial da realidade efetiva
(COTRIM, 2009). No próprio Lukács juvenil, vemos a distância apreensiva e
existencial entre subjetividade e objetividade, portanto, a tônica do idealismo
sobredito. Pesavam, ainda, sobre o jovem húngaro as admitidas influências do
existencialismo de Kierkegaard desde a primeira década do século, assim como
do anticapitalismo romântico de Sorel, com “seu antiestatismo radical”
(COTRIM, 2009), para não falarmos do próprio Simmel, outra grande
influência da mesma década supracitada, como da subsequente. Lukács
expressará, de forma cintilante e clara, sobre uma “kierkegaardização da
dialética histórica de Hegel”, porém com um traço próprio de insubordinação
romântica, esperança acabrunhada, uma “intenção ética” subjetivista. Para o
Lukács maduro e árduo na defesa do realismo como instauração da grande
arte, a figuração da objetividade como consciência dos problemas universais,
histórico-sociais, é fundamental, ainda que isso não se opere por feitio
mecânico, mas de maneira antropomórfica e criativa, tendo, porém, a própria
obra de arte como fulcro determinativo, congruente ou não a obra com a
posição do autor (COTRIM, 2009).
Definitivamente, neste Lukács em maturação no suor da recuperação
da instauração ontológica marxiana, temos a acepção realista da arte como
aquela que se põe de maneira desveladora e desfetichizadora. Isso quer dizer:
arte que se objetiva não como torneio subjetivista, nem plasma fotográfico,
mas apreensão da imediatidade e concreticidade da realidade, sem prender-se
à aparência/imediatidade, nem sinonimizar realidade a esta (COTRIM, 2009).
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Essência e aparência são polos da mesma realidade efetiva que se determinam,
a primeira é plataforma da edificação da segunda, que pode mesmo ser uma
apresentação invertida da primeira. Sabe-se, assumidamente pelo próprio
autor, que uma guinada marxista e ontológica” em seu pensamento
quando, a partir de 1930-1, no Instituto Marx-Engels, em Moscou, tem contato
com os Manuscritos econômico-filosóficos de Marx, com os Cadernos
filosóficos de Lênin e com as cartas entre Marx e Engels debatendo arte e
literatura. A primazia da objetividade enforma a renovação de seu pensamento
filosófico e científico, dando azo à correção da influência idealista-hegeliana da
relação sujeito-objeto. Além disso, circunscreve a esse próprio movimento
recuperativo marxiano a distinção paulatina dos lineamentos filosóficos
fundamentais de Marx, como exemplo nuclear, a diferenciação entre alienação
e objetivação (COTRIM, 2009), embora o gradiente estético tenha mais
relevância que o filosófico na década recuperativa de 1930.
Aprofundando na revitalização lukacsiana dos termos filosóficos
próprios do autor de Trier, pode-se inclusive tecer uma ligação entre as suas
posições política e estética maturadas (COTRIM, 2009). Se em Teoria do
romance ele ensejou uma passagem ao idealismo objetivo de Hegel, ainda com
a inflexão do subjetivismo como aporte, a faceta hegeliana só encontrará toda
sua expressão em História e consciência de classe, em que o proletariado
encorpará o sujeito-objeto idêntico, em seu movimento de reconciliação
consigo mesmo. Ademais, nesse texto, o próprio Lukács desconsiderará as
instâncias ontológicas do ser inorgânico e do ser orgânico, eixo fundamental
para o entendimento da práxis social em seu sentido modelar, do trabalho
como práxis social fundante e das questões materiais donde a reprodução
ampliada funda a base. A superação da lente hegeliana” (LUKÁCS, 1983) e a
inserção na obra marxiana mesma tem grande marco nas Teses de Blum, nas
quais o autor repreende qualquer posição idealista sectarista de ultraesquerda,
avançando pela primazia do concreto e de seu conjunto determinativo, para a
resolução tático-estratégica da posição socialista (COTRIM, 2009). Se, nesse
caso, o bastião tático impôs-se favorável à consecução da ampla frente
democrática contra o fascismo, posição que Lukács, posteriormente, nem dirá
de tanto valor histórico, terá bastante relevância, por outro lado, seu apreço
materialista pela cadeia determinativa do real, configuração diversificada,
encadeada e prioritária do concreto. Segundo o próprio húngaro, o grande
ganho de Teses é o giro, a passagem de Lukács ao verdadeiro norte
materialista, em que o humanismo não plaina desimpedido e absoluto nos ares
do idealismo, mas faz contas com a realidade efetivamente existente
(COTRIM, 2009).
As posições lukacsianas estéticas da década de 1930, em feitio análogo,
considerarão, além da voraz crítica ao romantismo-vanguardismo subjetivista
(irracionalismo) e ao naturalismo (“realismo ingênuo”), uma crítica ao
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“realismo soviético”. Trata-se de forma estética propagandística em que o
trabalhador e a revolução despistam e desdenham a configuração real da
sociabilidade, apresentando-se não como figuração do concreto, como
demanda e enfatiza Lukács sobre a grande obra realista (COTRIM, 2009), mas
como projeção subjetiva da volição individual dos autores ou grupos
intencionados (“arte de tendência”), engatados na objetivação de uma arte
inóspita e pejorativamente didática, distante do delineamento das questões do
concreto mundo edificado, mantendo-se, pois, na barca idealista e
abstrativante.
Faz-se necessário, ainda, expressar que a volumosa e monumental
qualidade da atividade estética lukacsiana crava bases na teoria marxiana.
Mesmo que de modo disperso, sem incorrer na exegese, na anatomia de
exaustão, a práxis social artística é circunscrita por Marx em análises de tino
materialista não adstringido, isto é, abarcando sua especificidade e autonomia
relativa, como sua relação reflexiva com os demais complexos sociais. Em
Marx, a defesa do realismo também toma aporte, em contraste com a arte
propagandista e didatista, rebotalho artístico que se expressa, por exemplo, na
discussão que Engels e Max fazem, por carta, sobre o Sickingen com seu autor,
Lassalle. Na esfera da criação artística, não basta a posição intencionada do
autor (“arte de tendência”). A plasmação da arte consigna um objeto social que
deve ser analisado na sua substância figurativa própria em relação com a
história (COTRIM, 2009). Destarte, a criação literária pretensamente
emancipatória, por exemplo, pode reforçar arrimos e alicerces da decadência
ideológica burguesa (COTRIM, 2009). Consoante ao que Lukács dissertou
sobre o “realismo soviético”, a literatura advinda de um autor posicionado
anticapitalisticamente pode ferir de morte todo espírito humanista na
realização da grande arte (realista). Contrafação da ideação revolucionária e
realista que consigna a miséria de uma arte abstrativante rebaixada a
depoimento moralista, invólucro de ideias sem trama figurativa, hipóstase
subjetivista da sintomática dos estranhamentos sociais do capital e correlatos.
Arte que pretende humanismo sem ater-se ao núcleo da concreticidade como
trama, ação e tipicidade (COTRIM, 2009), e que, portanto, vira mero estertor,
isto é, pulsão solipsista, quando muito, elaborada com alguma lavra técnica.
Assim, a posição realista defendida por Lukács, a partir de 1930, como
consignação da grande arte, deita bases em Marx e Engels e, dessa forma,
também a captação do feitio ideológico do objeto social artístico em sua
peculiaridade desveladora ou obnubiladora da dialética social. Doravante,
marca-se que a senda nuclear do realismo é condensar as forças motrizes
articuladas que geram a reificação da vida (e, inclusive, a derrogação
tendencial da grande arte) por meio da representativa relação orgânica entre
ação e tipicidade (COTRIM, 2009). Com isso, refere-se a uma trama figurada
em que os destinos individuais evidenciam a essência ou concreticidade das
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lutas histórico-sociais, a processualidade social. O refinamento da captação da
especificidade do artístico, pelo autor magiar, ganha elementos na década de
1930 (majoritariamente, em sua estada em Moscou, mas, também, entre 1931-
3, em Berlim), donde se pode apreciar a descoberta do apanágio
antropomórfico (termo utilizado nas últimas décadas de sua vida) da arte, de
sua plena vivacidade ao demonstrar o concreto por meio da vida orgânica
entificada na imediatidade, e também o acabamento ou fechamento da obra de
arte que desfetichiza uma totalidade intensiva (COTRIM, 2009), assim, sem
precisar se abrir a constantes aperfeiçoamentos e acréscimos. Por outro lado,
até a metade da década de 1930, Lukács mantém a postura do vínculo lógico
Marx-Hegel (manterá, em grande monta, até sua obra madura Estética,
segundo Chasin), assim como sua apreensão do lineamento ontológico da
práxis social não é completa, o que acarreta, no diapasão gradativo em captar
a centralidade da ação e da tipicidade, questões que lhe vão sendo cada vez
mais caras na segunda metade da década de 1930 (COTRIM, 2009).
III
Roberto Schwarz (2000), em Um mestre na periferia do capitalismo,
reconhece, a partir das pegadas machadianas, o valor e o peso da historicidade
no fazer estético. Nesse sentido, trata-se, em outros termos, de superar um
certo contato tacanho e rebaixado com a cultura e a história, qual seja, aquele
“pitoresco e patriotista”, em que a história aparece mais como plano singular
irrepetível, imagem exótica e inconfundível, do que como complexo social
observado e narrado: contextura efetiva na/da totalidade da história humana.
Com larga astúcia, Veríssimo referia-se ao talento universalista de
Machado como tônica que reposicionava o nacional na generidade humana
(SCHWARZ, 2000), dando-lhe figuração concreta de sociabilidade típica do
capital periférico. Nesse intuito, as marcas de uma imaginação idealista e
romântica estariam dispensadas da dialética machadiana, vez que o perfazer
figurativo instaura, sobretudo, as marcas preponderantes da realidade, de um
escritor “imbuído de seu tempo e país”. A astúcia machadiana (largamente
valorizada por Schwarz), sua inflexão realista na consignação da ação e do
típico brasileiros, denota imponência tanto ao demonstrar a preponderância
do conteúdo social quanto ao negativar a fórmula do descritivismo naturalista.
Em outras linhas, a resolução metodológica do romance e a dimensão técnica
servem como deslinde de rigor em que fica “apurado um jogo de pontos de
vista produzido pelo funcionamento mesmo da sociedade brasileira”
(SCHWARZ, 2000, p. 9).
Trata-se, outrossim, de dramatizar o país por meio de um complexo
literário no qual a particularidade não desemboca em particularismo, quanto
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antes, demonstra na peculiaridade brasileira uma singularidade atrelada aos
elementos universais da configuração global do capitalismo, isto é:
Ao transpor para o estilo as relações sociais que observava, ou seja,
ao interiorizar o país e o tempo, Machado compunha uma expressão
da sociedade real, sociedade horrendamente dividida, em situação
muito particular, em parte inconfessável, nos antípodas da pátria
romântica. O homem de seu tempo e de seu país deixava de ser um
ideal e fazia figura de um problema. (SCHWARZ, 2000, p. 9)
Se há em Machado lucidez social”, há também, segundo o crítico
brasileiro, “insolência e despistamento” (SCHWARZ, 2000). Quanto a isso
cabe dizer, peremptoriamente, que o autor realista toma a vida social como
solo indispensável, ao mesmo tempo em que edifica no campo da peculiaridade
estética seu viés, sua marca, sua técnica, que até hoje “obnubila leitores” e nos
permite depreciar qualquer “sociologismo”. Machado encontra nas personas
(das classes) dominantes o fulcro, a fonte que pode, por meio de uma voz
legitimada e arcaica, expor, pela narrativa, o esqueleto do conservadorismo
brasileiro, fazer sangrar com vivacidade o efeito das presas afiadas de uma
classe dominante congenitamente decadente; presas, estas, tão bem inseridas
e efetivadas que a “obnubilação dos leitores”, técnica machadiana, é aspecto
probatório da força das ideologias dominantes: o leitor mediano trata os
protagonistas narradores com plena compaixão, quando não reconhecimento.
A dedicatória de Brás Cubas, “ao verme que primeiro roeu as frias
carnes do meu cadáver” nos faz saborear a insolência do estilo. Insolência esta
que “compromete” obrigatória e intencionalmente o texto como forma, isto é,
delineamento estético que, para Schwarz, é essencial para colorir e
esquadrinhar o conteúdo social. O comportamento típico da classe dominante
“à brasileira”, terra de uma burguesia nada heroica, isto é, composição de estilo
que aglutina na própria forma e na própria trama mandonismo,
arbitrariedade, imponência, falsa sabedoria. Unidade de fatores estéticos que
se fundem em um segredo: alinhavar a natureza da tenaz e desigual
estrutura social brasileira.
Com vigor e posição, Cordeiro e Siffert (2016), em Origem do realismo
na teoria estética marxista do entreguerras, presentificam, também, as
questões que nos têm sido bastante pertinentes. Na medida em que uma
“identidade da não-identidade”, temos um contorno bastante candente da
nossa questão. Isto quer dizer que mesmo na representação realista pode-se
entrever multifacetado composto figurativo. Em suma, trata-se da variedade
estética plasmadora (no campo da própria arte) da “diferença específica da
coisa específica”, como posto na dicção marxiana. Faz-se valer, entretanto,
pelo critério substancial da “identidade da não-identidade”, que a obra realista
autêntica em sua variedade figurativa aglutina em uma linha de força:
desvelar a “síntese de múltiplas determinações” do tecido social.
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Assim, embora desenvolvido como linguagem e mantendo uma
inegável especificidade estética, o realismo pode ser visto como um
conjunto de técnicas que sempre possui sua razão de ser, em última
instância, na realidade histórico-social, que lhe é prévia, mas que o
realismo assimila formalmente e ajuda a compreender. Com isso,
estimula-se a emancipação da consciência humana mediante o crivo
crítico, algo crucial para a superação dos entraves da própria
realidade. (CORDEIRO; SIFFERT, 2016, p. 23)
Um entrave Lukács-Schwarz deve ser apontado como nota que nos
desvencilhe de uma harmonia integral entre os autores, sem que possamos, no
entanto, entrar nos detalhes da questão. Trata-se, de modo sumário, da
apreensão das vanguardas. A feição antirrealista dessas tendências faz coro na
apreensão estética lukacsiana, porém, segundo o próprio húngaro, não se trata
unilateralmente de uma divisa técnica, que assim sendo “obscurecem-se as
questões mais essenciais que dizem respeito à verdadeira forma” (LUKÁCS,
1969, p. 32). Colocada a questão no crivo isolado da cnica, obnubilam-se as
formas de transição, assim como se tergiversa o verdadeiro “princípio” da
oposição. A utilização da técnica, por si só, não garante o juízo da obra, o que
levaria a uma análise de superfície. Assim como nos detivemos sobre o caso da
técnica descritiva integrada ou não ao diapasão da narrativa, trata-se de
entender, para o autor marxista húngaro, se a técnica agrega-se ao novelo do
objeto artístico para desvelar criticamente a forma social, ou se é empregada
como “realidade última”. Revela-se pertinente, por conseguinte, como cada
autor comunica a realidade no objeto artístico, doravante, o juízo da obra
perpassa o conjunto mimético elaborado independentemente da posição
pessoal do autor. Em outras palavras, a decorrência da forma estética tem
estreita relação com a inquirição “o que é o homem?”, aportando o
enraizamento da figuração na realidade efetiva, na obstinação da reflexão
artística autêntica do concreto historicamente determinado. Para Lukács,
porém:
Completamente oposto é o objetivo intencional pelo qual os
comandantes da vanguarda literária determinam a essência humana
de seus personagens. Podemos dizer, em suma, que eles não
consideram mais do que “ohomem, o indivíduo que existe desde
sempre, essencialmente solitário, desligado de todas as relações e, a
fortiori, social, ontologicamente independente. (LUKÁCS, 1969, p.
37)
Em Schwarz, por sua vez, o desagrado (quando existente) com as
vanguardas não toma um tom belicoso. É possível constatar, por vezes, até
certo apreço do autor em relação ao modernismo brasileiro, algo que pode se
explicitar, por exemplo, na medida em que o autor considera Oswald de
Andrade mais do que um inovador, ou um replicador daquilo patente na
vanguarda internacional. Em Oswald de Andrade, vale, segundo o marxista
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brasileiro, averiguar a matéria tratada: sua aglutinação geral entre Brasil
capitalista e pré-capitalista, ao modo estético de sua poesia, granjeia méritos.
Em poemas como Postes da Light, o acotovelamento entre o brasil-presente e
o brasil-passado se sintetiza no bonde e nas carroças, nos advogados do bonde
e no carroceiro, o oxímoro reluzente da modernização conservadora e
subordinada que transpassa algum realismo (SCHWARZ, 1987). Fica
manifesto, em outro texto do esteta, certo incômodo com a rivalidade edificada
entre as experiências de vanguarda e os socialistas. O próprio autor admite que
a problemática insigne transcende o stalinismo, pois o precede, antes de tudo.
Em que medida se deveria, de outra forma, conturbar de maneira mais
acordada o levante anticapitalista das vanguardas e da arte socialista? É algo
que Schwarz não responde de pronto, embora nos diga com certo ar de espanto
(algo que não se repete em Lukács): "socialismo e vanguardismo viam como
caducas as formas do mundo burguês e quiseram apressar seu fim”; e
arremata: “Por isso mesmo espanta que não tenha sido maior a sua associação
e, sobretudo, que no interior da esquerda tenha havido tanta hostilidade ao
espírito experimental a ponto de se formar um desencontro histórico."
(SCHWARZ, 1987, p. 87) Em A Santa Joana dos Matadouros, o próprio autor
brasileiro, a respeito da referida obra de Brecht, certifica que o teor generalista
de certos enredos brechtianos tem uma função "preciosa" na arte que se
pretende revolucionária, "o que pareceu formalismo a Lukács" (SCHWARZ,
1987, p. 89).
Duas questões, contudo, ficam bem delineadas para os dois autores: a)
a prioridade ontológica do real, portanto, a negação de uma “imanência da
consciência” kantiana, como remetido pelo próprio Lukács em Meu caminho
para Marx, já abordado; b) a averiguação do escrutínio artístico em seu
terreno próprio que, mesmo em reciprocidade com os momentos da realidade
efetiva, não pode ser tomado como predicado ou derivativo simplório. Em alto
relevo, acaba-se, em uma tacada, erigindo as vigas fortes da apreensão
dialética e da valorização do realismo crítico: a recusa da empulhação de uma
arte hipostasiada, juntamente ao solapar das noções de “gênio” e
sobrevalorização da subjetividade. Ademais, ficam canceladas as estreitas
visões sociologistas, nas quais o curso estético pode ser explicado por simples
analogias com complexos sociais que lhes são distintos, desativando o papel
concreto das mediações e determinações reflexivas ao modo rigoroso
concebido/apreendido pela ontologia marxiana.
Entre a fatura artística e a complexa ordem de questões que exerce
sobre ela seu poder de configuração (questões que derivam da
realidade concreta), existe um campo de mediações cuja lógica é
incorporada e estilizada na obra de arte. Tais mediações são
sintetizadas e se manifestam na forma, que, aqui, portanto, não é
entendida como resultado arbitrário da criação individual ou
subjetiva, nem como técnica de experimentação, mas como um
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substrato objetivo que é indissociável do conteúdo que precede e
condiciona o trabalho artístico e a fatura artística propriamente dita.
(CORDEIRO; SIFFERT, 2016, p. 23)
Concerne salientar, seguindo a mesma linha, que a formalização
estética, ao condensar o conteúdo social e, por isso, afirmar a precedência da
realidade efetiva, remonta também ao realismo e à apreensão dialética como
uma posição do autor objetivada na obra de arte. Por essa via, podemos
retornar ao Narrar ou descrever?, de György Lukács, em que o autor húngaro,
maturando sua teoria, afirma que a posição naturalista é antes de tudo uma
posição política, qual seja, aquela que ativa pressupostos conservadores,
fazendo papel anti-humanista ao produzir uma síntese confusa entre dialética
da natureza e dialética do ser social, instâncias ontológicas dotadas de
peculiaridades (ainda que isso não cancele a interrelação entre as duas formas
de ser). Em outro viés, do qual não poderemos aqui tratar com o cuidado
devido, trata-se de se precaver das posições irracionalistas, que desaguaram
no vigorar do pós-1848 (marco da divisa entre as lutas proletárias e burguesas)
em ideologias reacionárias de tipo “nostalgista”, pessimista e/ou solipsista,
com as quais Lukács se imiscuiu em sua juventude. Em termos lukacsianos,
rebaixamento do reflexo social à posição reacionária, “inconformismo
conformado”, ou mesmo emolduração de um atrativo e perigoso
anticapitalismo romântico.
Voltemos, agora, ao encalço de Schwarz para dar mais claridade e
análise, por meio de suas próprias referências, ao que nos parece demonstrar
uma posição plenamente atinente ao Lukács maduro, vislumbrando sua
admitida influência de Marx e Lukács, explicitada em Um mestre na periferia
do capitalismo. Notadamente, trata-se de remeter ao solo social como
substrato indispensável da arte sem, contudo, dá-la por simples e mecânico
epifenômeno (superação da dicotomia antidialética esteticismo versus
sociologismo). Em Pressupostos, salvo engano, de Dialética da malandragem
e em A poesia envenenada de Dom Casmurro há, desde o mais incipiente dos
textos, a persistência na relação entre forma artística e processualidade social.
Vejamos.
Pelo que remete Schwarz (1987), na análise marxista mais do que um
“método”. Se por método entende-se a via de chegada, o trajeto a ser
percorrido para o conhecimento, não se pode admitir que o “método marxista”
seja um modelo subjetivista extrínseco à sociabilidade. O método (marxiano)
é, antes de tudo, um enfrentamento da própria realidade, e não uma armação
discursiva, uma arquitetação mental a imputar procedimentos protocolares de
análise (CHASIN, 2009). Schwarz afirma que no texto de Antonio Candido,
Dialética da malandragem, que abarca Memórias de um sargento de milícias
(de Manuel Antônio de Almeida), a análise marxista é, ainda que não nomeada,
a inspiração central.
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Roberto Schwarz afirma que a consonância entre o aspecto formal e a
localização da obra é o tino de Candido, dando a entender que esta análise
dialética configura concomitantemente uma anatomia acerca dos “altos e
baixos” (a técnica de construção da narrativa), mas também a correta
assimilação da historicidade concreta esteticamente representada, em que os
complexos sociais estão objetivados de maneira particular. É por isso também,
em determinada medida, o sucesso do livro (de Manuel Antônio de Almeida),
que haveria com efetividade, no escrutínio das classes médias brasileiras,
uma representação levada às raias do simbólico da nossa situação de classe.
um “programa dialético”, portanto, e não um conjunto de “rituais”
formalísticos a ser seguido.
O que concerne bastante seriedade ao texto Dialética da malandragem,
de Candido, com toda concordância de Schwarz (1987), é justamente a análise
da trama centrada na “ação”, como já notávamos na dicção de György Lukács.
Não se trata, portanto, de uma descrição fotográfica da “paisagem brasileira”,
quer dizer, de uma síntese confusa entre dialética da natureza e dialética do ser
social. O processo realista constatado na obra literária em questão (Memórias)
busca afirmar a práxis social como fulcro significativo, em que as teleologias
individuais, ou seja, a forma de representar o mundo, associar, refletir e
planejar a ação, demonstrem determinado pertencimento social, seu vínculo
inexorável com a posição ocupada na reprodução da sociabilidade (ainda que
seja um vínculo meandrado, não direto).
Assim, como marca György Lukács em Narrar ou descrever:
Esta constatação é necessária a fim de colocarmos concretamente o
nosso problema. Tal como ocorre nos demais campos da vida, na
literatura não nos deparamos com “fenômenos puros”. Engels
recorda que o “puro” feudalismo existiu na constituição do
efêmero reino de Jerusalém. No entanto, é evidente que o
feudalismo constitui uma realidade histórica e pode, logicamente,
ser objeto de uma indagação. Ora, é certo que não existe qualquer
escritor que renuncie completamente a descrever. E também seria
pouco lícito afirmar que os grandes representantes do realismo
posterior a 1848, Flaubert e Zola, tenham renunciado de todo a
narrar. O que nos importa são os princípios da estrutura da
composição e não o fantasma de um “narrar” ou “descrever” que
constituam um “fenômeno puro”. O que nos importa é saber como e
por que a descrição que originalmente era um entre os muitos
meios empregados na criação artística (e, por certo, um meio
subalterno) chegou a se tornar o princípio fundamental da
composição. Pois, deste modo, o caráter e a função da descrição na
composição épica chegaram a sofrer uma mudança radical.
(LUKÁCS, 1965, p. 50)
Vejamos como Schwarz se utiliza, de outro modo, das mesmas tintas:
Entretanto, não se trata de opor estético a social. Pelo contrário, pois
a forma é considerada como síntese profunda do movimento
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histórico, em oposição à relativa superficialidade da reprodução
documentária. Neste sentido, note-se que a ênfase no valor
mimético da composição, em detrimento do valor de retrato das
partes, chama uma consideração mais complexa também do real,
que não pode estar visado em seus eventos brutos. Uma composição
só é imitação se for de algo organizado... o que aliás indica, seja dito
de passagem, que a leitura estética tem mais afinidade com a
intepretação social abrangente do que as leituras presas à
autenticidade do pormenor. Leitura estética e globalização histórica
são parentes. (SCHWARZ, 1987, p. 135)
O que Schwarz (reforçando a análise de Candido) descreve como uma
“intuição profunda do movimento da sociedade brasileira” é justamente a
capacidade realista de Memórias, na medida em que supera e aglutina o
aspecto documental (já que, segundo Schwarz, seria imperdoável se
predominasse o aspecto documental-naturalista, a exclusão das classes
dirigentes e da classe dominada), tendo no “malandro” a condensação da
dinâmica social típica. Avançando: a composição artística inovadora do livro
permite justamente a representação da particularidade da sociedade de classes
brasileira – “representação crítica”, nas palavras de Candido –, pois consegue,
por meio do recorte, figurar as ações e “dinâmicas profundas” de uma situação
de classes não exatamente clássica (decadência genética da concreticidade
brasileira também bastante valorizada na figuração do real em Machado de
Assis), e que por isso transita, na “circulação dos personagens”, entre a ordem
e a desordem (SCHWARZ, 1987).
Vejamos como Lukács comenta o problema da representação e a
semelhança das posições:
O espírito pequeno-burguês pode ser intimamente superado por
uma verdadeira compreensão dos grandes conflitos e das crises do
desenvolvimento social. O pequeno-burguês jamais compreende
estes conflitos, mesmo quando é implicado por eles, mesmo se neles
mergulha com paixão. Para a atividade do escritor, isto significa – se
recordarmos que a tarefa central da literatura, como a definimos
anteriormente, é a figuração do homem real que ele deve distinguir
o verdadeiro do falso, o objetivo do subjetivo, o importante do não
importante, o grande do pequeno, o humano do inumano, o trágico
do ridículo. (LUKÁCS, 1968, p.99)
A redução estrutural do romance é, portanto, a intensificação dos traços
da realidade social não por meio de uma totalizante descrição documental, mas
uma utilização da técnica descritiva subordinada ao aspecto narrativo, à
concentração significativa no sentido das ações, dos planos, das interrelações
entre os personagens, da conformação das particularidades subjetivas em
consonância com uma configuração social específica; algo que se pode ver em
Schwarz e Lukács. Ou seja, pode-se, por meio de uma composição que retira
de campo as duas classes essenciais da sociedade (Memórias) e apresenta a
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classe de transição em primeiro plano, entrever o ser-precisamente-assim da
morfologia social destacada. Trata-se, sobretudo, de marcar a origem dos
parasitismos, a mescla entre o mais antigo, o mais arcaico, e do novo, por meio
de uma modernização conservadora, localização realista e dialética da
particularidade na universalidade. A inspeção do “privilégio, da herança, do
prestígio” (SCHWARZ, 1987), da reiteração do antigo como caudatário do
novo, ou do novo como caudatário do antigo, não se sabe.
O problema não para por aí, como já advertíamos. A dialética da ordem
e da desordem cria a inteligibilidade da obra, é o recurso de intensificação ou
recuo (os “altos e baixos”) donde surge a integração da criação estética com a
condensação (estética) do conteúdo social. Mas, perceba-se, é uma
peculiaridade do ficcional, jamais uma transposição documental direta do real
ao representativo (SCHWARZ, 1987), mas uma forma antropomórfica de
criação literária, em que ação e tipicidade, sensitividade e sagacidade do autor
se imprimem (ou seja, a utilização da classe de transição como trama
desveladora por Manuel de Almeida). Nessa estilização, os aspectos
“folclóricos” são utilizados; a rigor, a malandragem como símbolo, que transita
do particular ao desvelo do universal, expondo essa espécie de forma de
sobrevivência a malandragem em que se aglutinam dois pontos
fundamentais: a (falsa) suspensão da tensão de classes e o embrutecimento da
subjetividade que é vilipendiada pelo modus operandi da individualidade
pequeno-burguesa da periferia do capitalismo (SCHWARZ, 1987).
Em A poesia envenenada de Dom Casmurro (1991), de Schwarz, por sua
vez e por correspondência, é preciso analisar a consonância entre o arcabouço
técnico dos “passos obscuros”, das “ênfases desconcertantes” (a “insolência
estilística e formal” de Machado de Assis, alertada) e a forma realista que
deslinda uma das elites “mais queridas” pela “ideologia brasileira”
(SCHWARZ, 1991). Para o autor, é tão clara a vinculação entre obra e
sociedade, ainda que não seja direta, que a figura de Bento Santiago, percebida
criticamente depois de 60 anos pela crítica literária americana, é tomada de
maneira condescendente pela “leitura brasileira”, quando não personagem que
inspira compaixão.
A ênfase, o falso psicologismo, a cnica de condução dos fatos por
Casmurro, explicitam a capacidade de Machado de Assis de fazer o leitor
trilhar o âmago da amargura de Bentinho. Nesse trajeto, o destino final é
comprovação suposta do calculismo e da dissimulação da menina Capitu. É
por isso que Schwarz (1991) afirma que a colocação técnica, para o leitor
ingênuo em assimilação e sensitividade social, incorre em uma armadilha
prontamente demonstradora do caráter de classe das subjetividades
receptoras, nada mais, como em Marx, que a ideologia dominante de uma
época como ideologia da classe dominante.
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O que parece descrever a situação de classe da recepção é que, para
Roberto Schwarz, a pena machadiana, em sua arrumação técnica da
condensação realista, também dá todo suporte para a desconfiança acerca de
Bentinho. A personagem desenha e redesenha seu caráter de classe dominante
nos traços particulares da personalidade e na reação quanto ao fato fulcral da
trama. Como alfineta:
Aliás, como recusar simpatia a um cavalheiro distinto e sentimental,
admiravelmente bem-falante, um pouco desajeitado em questões
práticas, sobretudo de dinheiro, sempre perdido em recordações da
infância, da casa onde cresceu, do quintal, do poço, dos brinquedos
e pregões antigos, venerador lacrimoso da mãe, além de obcecado
pela primeira namorada? (SCHWARZ, 1991, p. 86)
A adesão ao ponto de vista questionado é cruel e recorrente. Capitu vira
quase alegoria do perverso, do assentimental, da manipulação, de modo que o
questionamento de Bentinho visa a descobrir, de maneira retrospectiva, e esta
sim manipulatória, se na Capitu amorosa existia a Capitu adúltera
(SCHWARZ, 1991). Se a técnica de deixar Bentinho conduzir-se ao ridículo não
funciona, mesmo em sua insidiosa interpretação enciumada e lacunar,
classista e patriarcal, possuidora e paternalista, é porque a “convulsão da
sociedade patriarcal em crise” ainda é representação enigmática de um modo
de ser arcaico e arraigado (SCHWARZ, 1991).
O ponto nevrálgico aqui, desta forma, é o conflito de classes entre uma
classe dominante de atributos decadentes e a tenacidade da “energia”
espantosa de Capitu. O horizonte antropomorfizado que se abre é o horizonte
social da objetividade em que cada ação particular não se revigora de
singularismo/particularismo, mas de condensação dos elementos mais
universais da dominação de classe, diga-se de passagem, travejados pelo liame
colonial. Nesse sentido, de maneira magistral e pioneira, o ato, a vontade, a
direção da personagem não aparecem como consciência de si pura, como
transvaloração subjetiva, mas como determinação social, ou subjetividade
como conformação ontologicamente articulada às configurações objetivas da
sociabilidade.
Ao adotar um narrador unilateral, fazendo dele o eixo da forma
literária, Machado se inscrevia entre os romancistas inovadores,
além de convergir com os espíritos adiantados da Europa, que
sabiam que toda representação comporta um elemento de vontade
ou interesse, o dado oculto a examinar, o indício da crise da
civilização burguesa. (SCHWARZ, 1991, p. 87)
O requinte e a sofisticação de Bento Santiago, na apresentação conflitiva
de sua narração, demonstram uma sagaz contradição que se compõe ao mesmo
tempo da sagacidade técnica e da condensação realista para representar o
“indício da crise da civilização burguesa”. Por um lado, o rapaz é cheio de
“credenciais”, é esposo e bom partido, bom filho e herdeiro, “arrimo da
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parentela”, proprietário e católico, no mesmo instante que se mostra
sentimentalmente desabrigado de humanismo (“indício da crise da civilização
burguesa”) quando supõe que sua honra o que significa remeter à “honra”?
– foi destroçada e que o peso disso valeria a extinção de uma vida.
A mesma ratoeira expositiva se repete na frase seguinte, agora com
apoio bíblico. Bento lembra o bom conselho de Jesus, filho de
Sirach, que manda não ceder ao ciúme para que a mulher "não se
meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Ainda aqui a
disposição para a incerteza serve de manto ao direito do mais forte,
à incriminação sem espaço para resposta: tudo se resume em saber
se a infidelidade de Capitu subtraída portanto a eventuais
objeções — foi efeito das constantes desconfianças do marido, ou se
estava lá, na menina, "como a fruta dentro da casca". (SCHWARZ,
1991, p. 89)
Vejamos que a inflexão religiosa-moral cristã aparece como traço
protagonista dessa classe dominante. De maneira correspondente, abrolha na
narrativa a imagem da mulher perfeita, dócil e controlada, em contraste com a
mulher corrompida pela malícia, pela autonomia, por um erro inato. Toda
inadequação do comportamento de Capitu, as lágrimas poucas jorradas, a
imagem de semelhança do filho e de Escobar, são pretextos, vias, contextos em
que o travessão mandonista, impositivo e opressivo da classe dominante
decadente dará o ar da graça. Não é por acaso que a precipitação conclusiva do
narrador, em vez de o ridicularizar, comove sem espanto e contradição.
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Como citar:
COELHO, Henrique. Roberto Schwarz e György Lukács: uma aproximação
dialética. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio
das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 278-300, jan./jun. 2020.
Data do envio: 1 jun. 2019
Data do aceite: 14 set. 2019
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.469
Douglas Rafael Dias Martins
301
Os Manuscritos de 1844 de Karl Marx e a retomada da economia
política no pensamento pós-hegeliano
Douglas Rafael Dias Martins
1
Resumo:
O presente artigo visa à análise e caracterização das rupturas e continuidades
presentes nos manuscritos produzidos em Paris por Karl Marx no ano de 1844
a partir das relações com a economia política, com o pensamento pós-
hegeliano e Hegel. Nesse sentido, os cadernos intitulados Manuscritos
econômico-filosóficos foram produzidos a partir das preocupações filosóficas
da tradição dos novos hegelianos que se formou após a morte de Hegel e se
estendeu até meados da metade do século XIX –, e ocupam uma posição
privilegiada no desenvolvimento do pensamento de Marx pois permitem
apreender o movimento dos diálogos e práticas que o autor estabelecia. Ainda,
ao retomar os estudos da economia política junto a uma interpretação da
dialética hegeliana, Marx realiza um movimento de, ao mesmo tempo,
aproximar-se e afastar-se de Hegel, bem como aproximar-se e afastar-se dos
jovens hegelianos. A partir de uma análise crítica e da reconstituição do
cenário de produção dos manuscritos, buscamos deixar apontada a
importância da reaproximação crítica da economia política com a dialética
hegeliana para a importância do destaque e prevalência do pensamento de
Marx em meio a estes pós-hegelianos.
Palavras-chave: Karl Marx; economia política; pós-hegelianos; dialética
Karl Marx’s 1844 Manuscripts and the return of the political
economy in post-Hegelian thought
Abstract:
This article aims to analyze and characterize the ruptures and continuities
present in the manuscripts produced in Paris by Karl Marx in the year 1844
from the relations with political economy, with post-Hegelian and Hegel
thought. In this sense, the notebooks entitled Economic-philosophical
manuscripts were produced from the philosophical concerns of the tradition
of new Hegelians that was formed after Hegel's death – and extended until the
middle of the 19th century –, and occupy a privileged position in the
development of Marx's thought because they allow to apprehend the
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista
(Unesp). E-mail: douglas__martins@hotmail.com.
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Douglas Rafael Dias Martins
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movement of dialogues and practices that the author established. Still, after he
resumes the studies of political economy with an interpretation of the Hegelian
dialectic, Marx makes a movement, at the same time, to approach and distance
himself from Hegel, as well as to approach and distance himself from the young
Hegelians. Based on a critical analysis and the reconstitution of the manuscript
production scenario, we seek to point out the importance of the critical
rapprochement between political economy and Hegelian dialectic for the
importance of the prominence and prevalence of Marx's thought among these
post-Hegelians.
Keywords: Karl Marx; political economy; post-Hegelians; dialectic.
Introdução
Buscaremos analisar a evolução do pensamento de Karl Marx a partir
das rupturas e continuidades que este sofreu e promoveu a partir das relações
e debates com os intelectuais alemães pós-hegelianos, os socialistas franceses,
a economia política e o próprio Hegel. Para tanto, consideramos que alguns
textos ganham evidência por sua posição histórica, política e epistemológica
privilegiada, de modo que os intitulados Manuscritos econômico-filosóficos é
um conjunto desses escritos e apresenta os primeiros traços que prepararão a
ruptura dialética de Marx com os pós-hegelianos dos anos seguintes. Também
buscaremos apontar, além da importância para o pensamento de Karl Marx,
os manuscritos produzidos no ano de 1844 em Paris como uma tentativa não
levada à cabo por não terem sido publicados – de retomada e consolidação da
economia política junto ao pensamento pós-hegeliano (que havia sido
esquecida pelos herdeiros diretos, os chamados velhos hegelianos) antes da
dissolução de seu domínio intelectual na Alemanha na metade do século XIX.
Nesses marcos, destaca-se que a virada dos anos de 1843 e 1844 em Karl
Marx deve ser analisada com cuidado. Após a metade do ano de 1843 o jovem
passa por mudanças bastante amplas: desde o casamento com a noiva Jenny,
a fundação de uma revista – os Anais Franco-Alemães [Deutsch-französische
Jarhbücher] –, até a mudança com a família para Paris e os primeiros contatos
com organizações proletárias. Nesse período, ao todo, surgem pelo menos seis
escritos
2
do autor, ao passo que nem todos foram publicados e acabaram
servindo como material de estudos e pesquisa. O cuidado, então, se deve à
caracterização dos distintos momentos da vida e do pensamento de Marx, de
2
São eles: Crítica da filosofia do direito de Hegel; Sobre A questão judaica; Crítica da filosofia
do direito de Hegel Introdução; os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844; Glosas
críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”. De um prussiano; e por
fim, A sagrada família.
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modo que, ainda que a produção desses escritos se deu em um período
bastante curto, também serviu para que ele percorresse um longo caminho
filosófico e político. Assim, entre junho de 1843 e novembro de 1844, as
concepções e posicionamentos do autor mudam e se aprofundam,
principalmente, na direção do comunismo e dos estudos sociais.
Ainda nas primeiras décadas do século XIX a Alemanha era uma região
atrasada do ponto de vista socioeconômico, guardando muitos resquícios da
produção social fundamentada em guildas e no trabalho artesanal, assim como
nas relações de servidão. Da mesma maneira, ainda não havia se constituído
como nação, mantendo-se como uma série de pequenos reinos que se
relacionavam e uniam através de interesses em comum com outros reinos
maiores, que por sua vez, visavam a satisfazer principalmente as classes da
nobreza, do clero e dos proprietários fundiários. Apesar desse atraso
socioeconômico, que contrastava com seu desenvolvimento filosófico-
científico, algumas grandes cidades alemãs continham elementos
razoavelmente avançados, como grandes manufaturas e fábricas isoladas, de
modo que o processo de proletarização dos servos, artesãos e camponeses
(principalmente) havia apenas começado. Contudo, ainda que esses elementos
servissem para iniciar a introdução da consciência proletária nas massas
trabalhadoras e nos intelectuais da Alemanha, as condições sociais
conservadoras ainda o permitiam que estes grupos estivessem na vanguarda
de suas áreas de atuação política. Assim, a recém-nascida e ainda pouco
numerosa classe trabalhadora alemã, bem como os pensadores e intelectuais
que refletiam sobre as condições das camadas populares, não foram capazes
de produzir mudanças radicais nas relações econômicas e políticas daquela
região na virada e nas primeiras décadas do século XIX.
Assim, os intelectuais pós-hegelianos de maneira geral buscaram
refletir por uma via filosófica sobre as condições da cultura alemã, mas,
especialmente seus herdeiros diretos os chamados velhos hegelianos não
deram a mesma atenção que o próprio Hegel dedicara ao tema da economia
política em seu tempo
3
. Será, no entanto, pelas mãos e atuação dos jovens
hegelianos que o tema da economia política será gradualmente retomado como
uma questão de interesse do pensamento hegeliano ainda que se ressalte a
existência de uma anotação do “velho” Gans
4
sobre o tema. Somente a partir
da cada de 1840 que algumas questões da economia política passarão a
3
Como esclarece Norbert Waszek, em O estatuto da economia política na filosofia prática de
Hegel.
4
Waszek aponta que na segunda edição da Filosofia do direito publicada em 1833, Eduard
Gans, discípulo direto de Hegel, “velho hegeliano” e professor de Marx, escreveu: “Neste livro,
nada que poderia se reportar ao estado é, portanto, deixado de lado. As questões políticas são
tratadas de modo detalhado e, mesmo a ciência da economia política encontrou o lugar e o
tratamento que lhe convém, na sociedade civil.” (WASZEK, 2011, p. 56)
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exercer alguma influência sobre os intelectuais neo-hegelianos como por
exemplo Moses Hess, Friedrich Engels e Karl Marx. Partindo da compreensão
de que a economia política começava a ser consolidada no pensamento
filosófico alemão a partir da introdução tardia das relações de produção
capitalistas, e considerando que o próprio Hegel havia se detido mais do que
seus herdeiros para o mesmo tema, buscaremos ter como objeto e fio condutor
a compreensão do pensamento de Marx a partir das aproximações e
distanciamentos com Hegel, os pós-hegelianos, os socialistas “utópicos” e os
economistas políticos no referido texto.
Sobre os cadernos de estudos e os Manuscritos de Paris
Os manuscritos escritos em Paris por Karl Marx foram publicados,
parcialmente, em 1927, e apenas cinco anos depois foram publicados
integralmente sob o título de Manuscritos econômico-filosóficos. A descoberta
dos cadernos que serviram de estudos e os manuscritos que Marx escreveu
5
,
com a pretensão de publicar, foram extremamente importantes não somente
do ponto de vista do fornecimento de novos materiais para a compreensão da
evolução do pensamento marxiano, como também aconteceu em um período
chave do desenvolvimento da história do proletariado e das lutas de classes no
século XX. O ano de 1927
6
, inclusive, com a publicação desses primeiros
fragmentos dos manuscritos, influenciou, junto às obras de Karl Korsch,
György Lukács, Isaak Ilitch Rubin e Evgeni Pachukanis
7
, a ascensão de outras
tendências filosóficas no interior do pensamento marxista e que terão em
comum a busca por revalorizar as relações do pensamento tardio de Marx e
Engels com as novas descobertas de obras de juventude não publicadas
assim como suas ligações com os jovens hegelianos, Ludwig Feuerbach e o
5
Cabe fazer uma pequena distinção: os cadernos de anotações, publicados no Brasil como
Cadernos de Paris (MARX, 2015, pp. 179-233), se tratam das notas de estudos que visavam
fundamentar os manuscritos que seriam publicados, e não o foram, mas que seriam
encontrados e publicados no culo XX como Manuscritos econômico-filosóficos (MARX,
2010a).
6
A partir de 1924 marcaria, ainda, um giro fundamental nas políticas programáticas da
Internacional Comunista que tinha força de direção significativa sobre as massas de
trabalhadores de diversos países do mundo –, culminando nas décadas seguintes, em última
instância, com a identificação das interpretações teóricas com a concepção do “terceiro
período” e do “socialismo em um só país”. Assim, principalmente após a supressão dos
conselhos de trabalhadores, a perseguição e morte de uma série de dirigentes, militantes e
intelectuais revolucionários bolcheviques (ou que aderiram ao processo revolucionário), surge
a noção de um “marxismo ocidental” que não possui uma unidade teórica ou prática, mas
que foi usada inicialmente por Korsch e posteriormente reproduzida por Merleau-Ponty
como oposição a um marxismo vulgar” defendido como “doutrina oficial” no interior da
Internacional Comunista.
7
Respectivamente Marxismo e filosofia, História e consciência de classe, A teoria marxista
do valor e Teoria geral do direito e marxismo.
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pensamento de G. W. F. Hegel e as questões colocadas por aquele período
histórico.
Nos Manuscritos econômico-filosóficos, o grau de importância da
retomada do tema e das questões da economia política
8
, para além do que foi
brevemente dito, também vão marcar segundo Mandel o início da evolução
de um “comunismo filosófico” para um “comunismo sociológico, isto é,
fundado na análise da evolução das sociedades e de sua lógica” (MANDEL,
1968, p. 32). Um dos pontos principais dessa influência, sem dúvida, foram as
experiências que o próprio Marx reivindicou para seus estudos como
“resultados (...) de uma análise inteiramente empírica, baseada em cuidadoso
estudo crítico da economia política”, que embora muito menos profundas e
críticas do que o jovem autor gostaria, já eram bastante importantes do ponto
de vista da constatação do nível de organização política que o proletariado
francês e imigrante estava adquirindo. Nos Manuscritos, vemos o jovem autor
se fundamentar, do ponto de vista da economia política, principalmente em
Adam Smith, mas também em fragmentos e questões pontuais de David
Ricardo, Jean-Baptiste Say, James Mill, Thomas Malthus, Sismonde de
Sismondi, Pierre-Joseph Proudhon, entre outros (MARX, 2010a, p. 20).
Serão baseados ainda nesses manuscritos, como nos informa Jones na
biografia do autor, que nos últimos meses de 1844 Marx teve um papel ativo
na revista Vorwärts! experiência esta que o permitiu conhecer e se
aproximar da Liga dos Justos (o germe da futura Liga dos Comunistas) –, e
chegou inclusive a ministrar palestras sobre economia política para os
trabalhadores
9
. Este fato possui importância pois ajuda a esclarecer e refletir
sobre a importância que o jovem autor considerava na exposição e apreensão
8
Em que Marx anuncia conscientemente sua intenção de aproximar a questão da dialética
com uma noção crítica da economia política: “Farei, por conseguinte e sucessivamente, em
diversas brochuras independentes, a crítica do direito, da moral, da política etc., e por último,
num trabalho específico, a conexão do todo, a relação entre as distintas partes, demarcando a
crítica da elaboração especulativa deste mesmo material. Assim, será encontrado o
fundamento, no presente escrito, da conexão entre a economia nacional e o estado, o direito,
a moral, a vida civil etc., na medida em que a economia nacional mesma, ex professo, trata
destes objetos. (...) Considerei o capítulo final do presente texto, a exposição da dialética e da
filosofia hegelianas em geral, extremamente necessário, posto que semelhante trabalho jamais
foi realizado, e nem sequer chegou a ter sua necessidade reconhecida pelos teólogos críticos
do nosso tempo.” (MARX, 2010a, pp. 19-20)
9
Onde é interessante notar que, como ainda apresentaremos, essas palestras sobre economia
política promovidas para os trabalhadores representam bem as influências filosóficas e
políticas das posições de Marx nesse momento de 1844: “De agosto até o final de 1844, Karl
teve papel ativo na Vorwärts!, fazendo palestras para artesãos e definindo a linha editorial da
Liga. Ele escreveu para Feuerbach dizendo que ‘os artesãos alemães em Paris, isto é, aqueles
que são comunistas, algumas centenas’, têm assistido a palestras, duas vezes por semana,
sobre A essência do cristianismo, ‘durante todo este verão’. Karl e outros do periódico,
especialmente Georg Weber, davam palestras sobre economia política, tendo como base o
ensaio crítico de Engels sobre o assunto, o texto de Hess sobre dinheiro e os manuscritos do
próprio Karl.” (JONES, 2017, p. 187)
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de sua filosofia e análises políticas e socioeconômicas para os indivíduos que
consideravam essenciais na constituição como sujeito ou classe social, bem
como a importância que seu pensamento posterior irá adquirir para
compreender a totalidade da sociedade capitalista. Essa consideração,
inclusive, é de grande importância para o próprio Karl, que como
analisaremos, busca partir dos elementos mais sensíveis e imediatos aos
trabalhadores em suas análises e críticas da economia política perceptível
não apenas nos Manuscritos econômico-filosóficos como também em sua obra
de maior fôlego e maturidade, O capital (JONES, 2017, p. 187).
Para além do Prefácio dos Manuscritos parisienses situado no terceiro
caderno, Marx reforça sua influência filosófica junto às críticas neo-hegelianas
de Feuerbach e sua posição “humanista e naturalista” (MARX, 2010a, p. 20),
que parte da sensibilidade como início do processo de apreensão racional da
realidade e um novo sentido para o conceito de alienação: Hegel, segundo a
crítica feuerbachiana, teria cometido um erro ao iniciar sua lógica com o ser e
o nada, bem como, teria considerado o processo de exteriorização da essência
do ser, a alienação e o mundo natural e sensível, como mero momento de
mediação da reconciliação com o espírito absoluto. Mergulhado na crítica de
Feuerbach, Marx, então, repreende Hegel por seu aspecto “místico” que,
segundo ele, não teria dado suficiente atenção para o caráter negativo da vida
sensível como finito, alertando para a possibilidade de a filosofia especulativa
hegeliana ser apropriada como o último refúgio das ideias conservadoras
daquele tempo.
Refletindo sobre a questão dos salários, Marx avança em seus escritos,
em relação à literatura anterior, ao concebê-los a partir de um processo de
disputa, um “confronto hostil entre capitalista e trabalhador” (MARX, 2010a,
p. 23). Apesar de seus equívocos que serão tratados logo à frente –, trata-se
de um passo importante a noção mais geral de que os salários não representam
o produto justo da atividade de trabalho do indivíduo trabalhador, mas sim
que eles pressupõem relações de produção entre indivíduos e grupos sociais
com interesses opostos e contraditórios. O salário, assim, passará a
caracterizar a manifestação, a mediação universal, da essência alienada da
atividade de trabalho na sociedade moderna. Contudo, como se nota através
das notas de leitura que foram produzidas para a elaboração dos Manuscritos
econômicos e filosóficos, e partindo de Adam Smith, a “taxa natural do salário”
para Marx assim como a renda e o lucro –, será determinada de um modo
bastante eclético, através “do costume e do monopólio e, em última instância,
da concorrência; não derivam da natureza da terra, do capital e do trabalho”
Por fim, ainda reafirma: Os custos de produção são eles mesmos
determinados pela concorrência e não pela produção.” (MARX, 2015, p. 191)
Essa concepção equivocada de Marx, que levava em consideração
principalmente as noções ainda rudimentares sobre Ricardo e Malthus e três
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momentos do desenvolvimento do ciclo econômico, somente mudaria cerca de
10 anos depois segundo Mandel. Apesar de nunca ter aderido explícita e
completamente às mesmas, a teoria ricardiana e malthusiana dos salários
ajudou Marx e Engels a formular sua própria noção, que nos escritos
marxianos já tem suas primeiras evidências nos Manuscritos econômico-
filosóficos através da concepção de que existia uma “tendência dos salários
de cair para um mínimo vital fisiológico e aí se manter” (MANDEL, 1968, p.
145). Para o jovem Marx, ainda, uma vez constatado esse fenômeno, que era
inclusive defendido pelos teóricos da economia política, se tornava explícito
que os trabalhadores eram tomados apenas como simples fatores de produção,
ou melhor, seres brutalizados e portadores apenas de carências fisiológicas
voltadas para a mera existência e reprodução biofísicas.
Nesses marcos, e com todos seus limites, essa primeira teoria dos
salários do jovem Marx compreenderá que os “aumentos de salários não
podem intervir senão provisoriamente e estão condenados a ser
impiedosamente apagados pela lógica do sistema” (MANDEL, 1968, p. 34).
Sua teoria, então, se caracterizará pela “pauperização relativa” dos salários, em
que o aumento da produtividade frente a qualquer situação de rápida baixa de
valor de uma mercadoria, será compensada em uma fração cada vez menor da
jornada de trabalho – o colocando em uma posição oposta à de Smith, que por
sua vez defende que a classe trabalhadora deterá uma massa cada vez maior da
riqueza social. É aqui que, para o autor, a economia política reforçava seu
caráter de uma ciência positiva, que se assumindo como “ciência da riqueza”
omitia que somente a produzia baseada na concentração da mesma e, por isso,
em uma distribuição da pobreza. Desse modo, a massa de trabalhadores que
participava diretamente da produção dessa riqueza, na visão de Marx, não
estava apenas alheia e marginalizada dos produtos e excedentes dessa mesma
riqueza social, como também a objetivação de sua atividade genérica se torna
um meio apenas para garantir sua sobrevivência individual. Ainda irá escrever
nos seus cadernos de estudos que se a produção de riqueza “é o objetivo da
vida, a economia política atende-o muito mal, porque, para ela, consumir e
produzir não são o destino do operário” (MARX, 2015, p. 196).
Notamos aqui que, diferentemente de Hegel que via na possibilidade de
recuperação de um certo caráter formador do trabalho, o período histórico e
os primeiros estudos da economia política já permitiram que Marx percebesse
as condições brutalizadas que os trabalhadores modernos eram constituídos.
Assim, o jovem denunciava os teóricos da economia política, para quem os
indivíduos que deveriam ser considerados e tomados como efetivos eram os
sujeitos econômicos racionais o bourgeois e não o citoyen, como escreveu
em Sobre a questão judaica (MARX, 2010b, p. 41). Apesar dessa compreensão,
a crítica marxiana não tinha as questões econômicas hegelianas como alvo,
mas sim a defesa do sistema de crédito levado à cabo pelos socialistas
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utópicos
10
e, em especial, Proudhon: desde esse período Marx era capaz de
perceber que as contradições da economia política pressupunham a base e o
desenvolvimento do sistema bancário como um de seus meios de reprodução,
e por isso, o próprio sistema de créditos e a generalização do dinheiro se
manifestavam como soluções aparentes e ilusórias (MARX, 2015, p. 205).
Também será através da questão dos salários que se conectará outro
tema em um dos últimos capítulos do terceiro manuscrito: a questão do
dinheiro. Em relação a este, em seus cadernos de leitura de 1844 Marx faz
alguns comentários sobre James Mill e concorda com um aspecto da
concepção do mesmo: o que caracteriza o dinheiro não é sua alienação da
propriedade, mas sim da atividade humana do trabalho –, ou seja, uma vez
que a riqueza é produzida a partir do trabalho social ela necessita de uma forma
específica de representação da mesma e que seja externa ao mesmo trabalho.
O dinheiro, então, originalmente, seria uma exteriorização da atividade de
trabalho que mediava a quantidade de riqueza contida em cada produto da
mesma; contudo, com a alienação do trabalho, essa determinação se inverte, e
é a quantidade de trabalho que passa a mediar a exteriorização do dinheiro no
processo de produção de riqueza. Escreverá em seus cadernos preparatórios:
Não é o dinheiro que se suprime no homem no interior do sistema
creditício; é o próprio homem que se converte em dinheiro ou,
noutra expressão, é o dinheiro que se encarna no homem. A
individualidade humana, a moral humana, transformam-se,
simultaneamente, em artigo de comércio e na existência material do
dinheiro. Em lugar do dinheiro, do papel, é a minha existência
pessoal, a minha carne e o meu sangue, a minha virtude social e a
minha reputação social que se tornam a matéria e o corpo do espírito
do dinheiro. O crédito calcula o valor monetário não em dinheiro,
mas em carne e coração humanos. (MARX, 2015, p. 206)
Segundo o jovem nos Manuscritos econômico-filosóficos, todavia, as
relações dos indivíduos com o dinheiro não se manifestavam como um
fenômeno de alienação como os demais como o da religião retratado por
Feuerbach, por exemplo. Agora, como dirá Bensaïd, o dinheiro aparecerá
“principalmente como um culto arcaico”, como “fetichismo”, em que este
“mexe as cordas do mundo”, assim como “domina e tiraniza a humanidade (...)
10
Marx dá de exemplo em seus cadernos de estudos os herdeiros de Saint-Simon, que
consideravam o desenvolvimento do dinheiro, das letras de câmbio, a substituição do dinheiro
por papeis, o sistema de crédito e bancário, como o início da abolição da separação entre
sujeito e objeto, capital e trabalho, propriedade privada e dinheiro, dinheiro e o ser humano,
como a abolição da separação entre o ser humano e ele mesmo. Dessa forma, irá concluir o
autor: “Eles têm, por isto, como um ideal um sistema bancário organizado, mas esta supressão
da alienação, este retorno do homem a si mesmo e aos outros homens, o passa de ilusão.
Trata-se de uma autoalienação, uma desumanização tanto mais infame e tanto mais extrema
na medida em que seu elemento não é mais a mercadoria, o metal, o papel, mas a existência
moral, a existência social, o íntimo do coração humano sob a aparência da confiança do
homem no homem, é a suprema desconfiança e a alienação total.” (MARX, 2015, p. 204)
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enquanto forma abstrata da riqueza” (2013, pp. 52-4). Desse modo, o dinheiro
reduz todo o movimento do ser à sua abstração e a um ser quantitativo,
reduzindo as carências do ser humano apenas àquelas fisiológicas agora
medidas quantitativamente e realizadas apenas pela posse do dinheiro. Ainda
segundo Daniel Bensaïd, posteriormente Marx e Freud serão responsáveis por
transformar o sentido do conceito de “fetichismo”, deixando de ser um
conceito etnológico (e racista
11
) e passando a assumir um conteúdo social e
psicologicamente críticos, respectivamente.
No segundo capítulo do primeiro manuscrito, denominado “Lucro do
capital” (Profit des Kapitals), Karl Marx confronta o conceito de capital de
Adam Smith enquanto “trabalho armazenado”. Em Smith esta ideia de
trabalho acumulado e capital estava relacionada diretamente à noção de
geração de riqueza de uma nação à generalização das relações de produção
capitalistas e do trabalho assalariado como produtor de riqueza. Para Marx,
por sua vez, os teóricos da economia política escondiam que, de fato, o capital
se tratava da “propriedade privada dos produtos do trabalho alheio” (MARX,
2010a, p. 39). Ainda diferente daquele conceito de capital como valor que se
valoriza de seu pensamento posterior, é importante destacar que para Marx já
irá aparecer um processo de abstração que domina a atividade de trabalho e de
produção da sociedade. Nessa perspectiva, a economia política enquanto
ciência, vai aparecer como uma “guerra de conquista” (MARX, 2010a, p. 37)
dos interesses econômicos na sociedade burguesa, sendo ela mesma voltada
para a posse e concentração da riqueza em uma classe social particular e não
para a distribuição e produção da felicidade dos seres humanos.
Mesmo com essas questões, definitivamente um dos pontos que tornam
as concepções econômicas do jovem Marx bastante frágeis é a sua falta de
noção sobre os fenômenos do valor e do mais-valor que ele até admite logo
no início de seus cadernos de estudos
12
. Esta debilidade levará o autor a tratar
11
Sobre a origem do termo “fetichismo”, explica Daniel Bensaïd: “Inspirado no português
(feitiço fabricado, artificial), a introdução do termo ‘fetichismo’ no vocabulário do
conhecimento social é geralmente atribuído a Balthazar Bekker, autor, em 1691, do Mundo
encantado, no qual desenvolve uma análise comparada das velhas religiões pagãs e das
religiões dos ‘selvagens’; e também, sobretudo, ao livro de Charles de Brosses, Do culto dos
deuses fetiches, aparecido em 1760. O termo evoca, neste caso, uma religião simbolicamente
pobre. Para de Brosses, presidente da Assembleia de Dijon, todos os povos podem progredir
da mesma maneira, mas encontramos nos negros africanos o culto de certos objetos materiais,
chamados fetiches que ‘eu chamaria de fetichismo’. Este fetichismo é, na sua opinião, o sinal
de um arcaísmo em relação a uma linha de progresso que consiste em passar dos objetos
sensíveis aos conhecimentos abstratos’. Com Marx (que leu de Brosses em 1842) e com Freud,
o fetichismo não designa mais um culto primitivo, mas fenômenos sociais ou psíquicos
contemporâneos, quer se trate da submissão ao fetichismo da mercadoria, que se trate da
perversão sexual que consiste em tomar uma parte pelo todo. Ele deixa de ser um conceito
etnológico para se tornar um conceito crítico.” (BENSAÏD, 2013, p. 52)
12
Escreve: “Riqueza. Aqui se supõe o conceito de valor, conceito que, entretanto, não está
ainda analisado.” (MARX, 2015, p. 186)
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de maneira análoga – como os economistas vulgares – o “valor” como “preço”,
assim como confundir a própria relação de “valor” com “excedente de valor” e
perder a perspectiva da relação entre o conceito e a produção e acumulação de
riqueza. Em parte, a explicação para esse fato pode ser dada: a) pelo fato do
jovem ter escolhido ir para a França, onde o desenvolvimento da economia
levou à produção de mercadorias de luxo e as relações de produção picas do
período manufatureiro, sem a constituição de fábricas e com relativo alto grau
de especialização dos artesãos (o que também pode ajudar a compreender a
preferência teórica por Smith e não Ricardo
13
); b) bem como a de resquícios
idealistas em sua concepção filosófica, na qual a sociedade é tomada como
produto da relação sujeito-objeto, mas, ainda, a superação da essência social
contraditória, depende da realização do sujeito.
Apesar de avançar consideravelmente em relação aos pensadores pós-
hegelianos, essa falta de noção sobre o valor também comprometia uma
análise crítica da economia política, porque nesse, e em outros sentidos, a
compreensão marxiana ainda nem mesmo ultrapassava as teorias dos
economistas clássicos, vulgares ou mesmo dos socialistas utópicos – deixando
evidente que ainda não havia distinguido e apreendido o que havia de racional
entre as diferentes tendências da economia política, especialmente o
pensamento de Ricardo. Dessa maneira, como iremos novamente constatar
através de suas anotações de leitura, ao invés do autor expressar a concepção
de que o excedente produzido era fundamentado na contradição entre a
produção e a troca, ele irá acompanhar a concepção de Proudhon, para quem
existe um “tributo” pago ao proprietário privado, ao mesmo tempo que
também afirmará que “os salários constituem um desconto que a terra e o
capital permitem ao trabalhador, uma concessão feita pelo produto do
trabalho ao trabalhador” (MARX, 2015, p. 189).
A questão da alienação e sua relação com a economia política
A partir do último capítulo do primeiro manuscrito é que o jovem Karl
Marx vai revelar o núcleo na sua análise da economia política, permitindo que
se perceba qual noção ocupa o lugar dos conceitos de valor e do excedente de
valor: a divisão do trabalho, que leva ao trabalho assalariado, e por sua vez,
consolida historicamente o fenômeno da alienação [Entfremdung]. O
fenômeno da alienação, de interpretação hegeliana, no geral, é tomado no
interior do processo de experimentação da consciência de si mesma, que se
percebe a partir de um outro, colocando-o como objeto e estabelecendo uma
13
O que também deve ser levado em consideração em relação aos estudos de Marx sobre
Ricardo no ano de 1844 é, que além de ter aparentemente abordado as questões econômicas
colocadas pelo mesmo de maneira fragmentária, ele também utilizou uma edição da obra
ricardiana comentada por Say.
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relação sujeito-objeto. Pela necessidade da identidade entre essência do sujeito
e do objeto para o processo cognoscente, o trabalho será a atividade
propriamente humana que será capaz de mediar o reconhecimento entre a
objetivação do sujeito e a subjetividade do objeto. Hegel postulará a
necessidade desses momentos, de uma primeira negação e de uma negação
desta, enquanto a experimentação racional da consciência de si mesma,
visando o percurso da constituição da consciência do senso-comum enquanto
consciência-de-si, ou seja, sujeito do processo de conhecimento científico.
O conceito de alienação, assim, não era uma elaboração do próprio
Marx, mas sim havia sido desenvolvido em diferentes sentidos por Hegel,
Schelling
14
e Feuerbach, de modo que este último o havia influenciado mais
diretamente nos últimos meses através de A essência do cristianismo – sendo
também importante lembrar que além do acesso às obras de Hegel, o velho
Schelling foi professor do jovem autor em Berlim e por isso é provável que
tenha tido contato com suas ideias filosóficas. Contudo, com os manuscritos
econômico-filosóficos marxianos, pela primeira vez a alienação adquire um
conteúdo socioeconômico aprofundado(MANDEL, 1968, pp. 30-1), estando
enraizada em sua concepção feuerbachiana que privilegiava e partia da
sensibilidade, mas, ao mesmo tempo, adquirindo um conteúdo inédito.
É importante notar que, para Marx, o conceito de alienação vai estar
ligado à externalização da essência do ser, que por sua vez, na sociedade
capitalista, estará diretamente relacionado à atividade de trabalho dos
14
Em relação a Schelling e sua função no contexto histórico, esclarece Benedicto Sampaio e
Celso Frederico: “Pelo mesmo motivo a insegurança dialética desse núcleo conceitual da
realidade –, a monarquia prussiana acabou por retirar o seu apoio semioficial ao pensamento
de Hegel. Em 1841 o rei convidou Schelling para preencher a cátedra de Hegel em Berlim, vaga
desde a sua morte, Schelling, nesse período, entendia a história como epifania, como
manifestação relevadora de Deus, e este como o fundamento da realidade. Desse modo, o
estado racional passou a ser substituído, no plano teórico, pelo estado teológico de investidura
divina. Com sua autoridade e prestígio, o velho Schelling deveria opor-se à influência crescente
dos jovens hegelianos. Significativamente, ele defendia vários anos um conceito de
realidade que denominava ‘empírico-superior’, que consistia na recusa de toda e qualquer
fundamentação racional que escapasse à experiência religiosa da revelação: ‘fica sempre, no
fundo, o irregular, o não sujeito a normas (...) (que é) nas coisas, a base inapreensível da
realidade (...) algo que não é possível reduzir ao entendimento’. Para o velho Schelling, o real
não podia ser reduzido ao desenvolvimento racional, e isso, com certeza, reassegurava a
confiança da monarquia conservadora na fidelidade permanente dos súditos. Os cursos de
Schelling foram frequentados por Engels e Kierkegaard, como a representarem as duas
vertentes dissidentes do pensamento de Hegel: a da crítica ateia à teologização da razão e da
realidade, e a da crítica religiosa contra a sujeição de Deus à razão e, por conseguinte, contra a
racionalização da chamada realidade primeira. O pensamento filosófico da época iria,
portanto, cindir-se em torno da questão da natureza, do substrato autopropulsor, da realidade
na filosofia de Hegel. As divergências se centralizariam nas teorias a respeito de Deus e do
estado. Foi justamente nos termos dessa discussão que Marx se baseou, na busca da autonomia
doutrinária, sua proposta de um desdobramento racional ativo do futuro, contraditoriamente,
por meio de uma filosofia crítica, a de Feuerbach, que se dispunha antes à contemplação
passiva do mundo do que à sua modificação ativa.” (SAMPAIO; FREDERICO, 2009, pp. 22-3)
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trabalhadores modernos. Nesse sentido, a essência desses indivíduos se
objetiva nos produtos e mercadorias através da atividade de trabalho que a
concepção marxiana avança sobre a de Feuerbach e a entende como a atividade
genérica do ser humano, se aproximando de Hegel –, fazendo do próprio
objeto uma parte da essência humana e, portanto, algo no qual o conjunto dos
trabalhadores deveriam se reconhecer. Contudo, não é o que o jovem Karl
Marx está presenciando ao analisar as relações sociais capitalistas, pelo
contrário: com a alienação na relação sujeito-objeto da produção industrial
capitalista, a sociedade passa a ser enriquecida ao ser povoada e mediada com
produtos da atividade de trabalho alienado, mas, contraditoriamente, os
trabalhadores se tornam cada vez mais espiritualmente embrutecidos e
miseráveis ao serem dominados pelo sistema de assalariamento. Eis que a
alienação de influência feuerbachiana, então, vai se tratar de uma separação,
cisão, entre a essência e o sujeito, entre o trabalho como autoprodução humana
e o trabalho como meio de manutenção da existência física dos indivíduos.
No capítulo “Trabalho alienado” [Die entfremdete Arbeit] Marx começa
afirmando que até ali havia admitido os pressupostos da economia política,
reivindicando agora o fato de que seus teóricos simplesmente partem da
propriedade privada, mas não explicam seu processo de surgimento
15
,
desenvolvimento e consolidação, ou melhor, não explicam o porquê suas
concepções econômicas são expressões de um desenvolvimento histórico
necessário. Será a partir dessa reivindicação, então, que será possível
apreender o estatuto da economia política nos manuscritos produzidos em
Paris em paralelo com a separação entre a essência e o sujeito: a economia
política apenas toma [fassen] o processo social baseado na propriedade
privada mas não o compreende [begreifen], e portanto, a economia política é
tomada como uma ciência positiva e descritiva que carece do momento
dialético
16
, não compreendendo que quanto mais a sociedade capitalista
enriquece, na mesma proporção, mais o trabalhador se torna deformado e
brutalizado.
A partir da crítica de que a economia política apenas concebeu os
aspectos acidentais e não o movimento real e necessário das formas de
propriedade, o jovem Marx vai ampliar essa noção ao se contrapor à noção de
15
Questão que já apareceu no artigo de Friedrich Engels publicado nos Anais Franco-Alemães
e intitulado Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie (Esboço para uma crítica da
economia política).
16
No sentido que concebe Hegel no §81 da Enciclopédia das ciências filosóficas: “A dialética,
ao contrário [da reflexão], é esse ultrapassar imanente, em que a unilateralidade, a limitação
das determinações do entendimento é exposta como ela é, isto é, como sua negação. Todo o
finito é isto; suprassumir-se a si mesmo. O dialético constitui pois a alma motriz do progredir
científico; e é o único princípio pelo qual entram no conteúdo da ciência a conexão e a
necessidade imanentes, assim como, no dialético em geral, reside a verdadeira elevação – não
exterior – sobre o finito.” (HEGEL, 2012, p. 163, acréscimo nosso)
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generalização de “um estado primitivo imaginário” tendo em mente
diretamente Adam Smith e parte significativa da tradição filosófica
iluminista
17
. Nesses marcos, o autor vai chegar a tangenciar sua própria
concepção materialista posterior e o conceito de “relações de produção”, ao
afirmar que “a economia política oculta o estranhamento na essência do
trabalho porque não considera a relação imediata entre o trabalhador e a
produção” (MARX, 2010a, p. 80) (grifo nosso), até concluir que “se portanto
perguntamos: qual a relação essencial do trabalho, então perguntamos pela
relação do trabalhador com a produção(MARX, 2010a, p. 82). Sobre o avanço
até esse limite, o jovem também chega a tentar explicar as relações de produção
entre o proletariado e os capitalistas, escreve:
Através do trabalho alienado o homem engendra, portanto, não
apenas sua relação com o objeto e o ato de produção enquanto
homem que lhe são estranhos e inimigos; ele engendra também a
relação na qual outros homens estão para a sua produção e o seu
produto, e relação na qual ele está para com estes outros homens.
Assim como ele [engendra] a sua própria produção para a sua
desefetivação, para o seu castigo, assim como [engendra] o seu
próprio produto para a perda, um produto não pertencente a ele, ele
engendra também o domínio de quem não produz sobre a produção
e sobre o produto. Tal como estranha de si a sua própria atividade,
ele apropria para o alheio [Fremde] a atividade o própria deste.
Consideramos até agora a relação apenas sob o aspecto do
trabalhador. Considerá-la-emos, mais tarde, também sob o aspecto
do não trabalhador. Através do trabalho alienado, exteriorizado, o
trabalhador engendra, portanto, a relação de alguém alheio ao
trabalho – do homem situado fora dele – com este trabalho. A
relação do trabalhador com o trabalho engendra a relação do
capitalista (ou como se queira nomear o senhor do trabalho) com o
trabalho. (MARX, 2010a, p. 87)
17
Como boa parte das concepções do direito natural, que entendem o surgimento da
propriedade de maneira imaginária”. Como por exemplo, vemos a concepção romântica de
Rousseau: “Da cultura de terras resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade,
uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois, para dar a cada um o que é seu, é
preciso que cada um possua alguma coisa; além disso, começando os homens a alongar suas
vistas até o futuro e tendo todos a noção de possuírem algum bem passível de perda, nenhum
deixou de temer a represália dos danos que poderia causar a outrem. Essa origem mostra-se
ainda mais natural, por ser impossível conceber a ideia da propriedade nascendo de algo que
não a mão-de-obra, pois não se compreende como, para apropriar-se de coisas que não
produziu, o homem nisso conseguiu pôr mais do que seu trabalho.” (ROUSSEAU, 1983, p. 266)
Ainda, também poderia destacar parte dos liberais contratualistas, como John Locke, para
quem a propriedade privada é um produto do trabalho: “De tudo isso, é evidente que, embora
a natureza tudo nos ofereça em comum, o homem, sendo o senhor de si próprio e proprietário
de sua pessoa e das ações ou do trabalho que executa, teria ainda em si mesmo a base da
propriedade (...). Assim o trabalho, no começo, proporcionou o direito à propriedade sempre
que qualquer pessoa achou conveniente empregá-lo sobre o que era comum, que constituiu
durante muito tempo a maior parte e ainda é hoje mais do que os homens podem utilizar.
(LOCKE, 1978, pp. 51-2)
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em relação ao conceito de alienação, este é central para compreender
a noção de sujeito sensível humanista de Karl Marx e sua relação com a
produção social, que nesse momento ainda estava ligado à concepção
feuerbachiana. Feuerbach, por sua vez, também era tributário dos princípios
filosóficos da antropologia hegeliana
18
, onde o ser humano forma a si mesmo
percepção esta que havia sido relacionada e analisada segundo as questões
da economia política e do trabalho por Hegel, mas não por Feuerbach. Assim,
como ressaltamos, nesse momento a noção de trabalho marxiana não
passará pelas relações com o valor como serão apresentadas em O capital, mas
sim será fundamentada na noção de divisão social do trabalho de influência
smithiana, que o leva a confundir e entender essa divisão como essencialmente
pejorativa e deletéria à atividade de trabalho e ao trabalhador.
Desse modo, apesar de suas debilidades, a retomada e o desdobramento
do conceito feuerbachiano de alienação pelo jovem Marx foi importante: a)
porque “a crítica da alienação religiosa se aprofunda tornando-se crítica da
alienação social” (BENSAÏD, 2013, p. 50), ou seja, a crítica social passa a
entender a autoprodução da consciência do sujeito como uma produção
conjunta à própria sociedade; b) assim como, e buscamos deixar isso bem
claro, a retomada e reaproximação das questões da economia política com a
dialética hegeliana, que inaugura a abertura para a análise das questões sobre
em que medida é possível analisar o modo de produzir de uma sociedade e
encontrar as causas de seu desenvolvimento lógico e histórico, bem como suas
formas de manifestação de consciência de si, jurídica, política, estética e
artística etc.
O fenômeno da alienação para Marx em 1844, dessa maneira, implica
em um movimento duplo para o sujeito: por um lado ele é um “estranhamento”
[Entäusserung], e por isso implica em uma exteriorização, uma despossessão,
que produz riqueza; por outro ele também é uma “alienação” [Entfremdung] e
portanto um alhear-se, onde ao invés de efetivar através de se realizar pelo
reconhecimento e negação do outro, ele se desefetiva na medida em que o
18
Essa antropologia hegeliana, nos Manuscritos econômico-filosóficos, aparece
principalmente como autoatividade, que ao se tornar abstrata, perde seu caráter formador
[Bildung] e reconciliador do ser humano consigo mesmo: “A grandeza da Fenomenologia
hegeliana e de seu resultado final a dialética, a negatividade enquanto princípio motor e
gerador é que Hegel toma, por um lado, a autoprodução do homem como um processo, a
objetivação como desobjetivação, como exteriorização [despossessão] [Entäusserung] e
suprassunção dessa exteriorização; é que compreende a essência do trabalho e concebe o
homem objetivo, verdadeiro, porque homem efetivo, como o resultado de seu próprio
trabalho. O comportamento efetivo, ativo do homem para consigo mesmo na condição de ser
genérico, ou o acionamento de seu [ser genérico] enquanto um ser genérico efetivo, isto é, na
condição ser humano, somente é possível porque ele efetivamente expõe todas as suas forças
genéricas – o que é possível apenas mediante a ação conjunta dos homens, somente enquanto
resultado da história –, comportando-se diante delas como frente a objetos, o que, por sua vez,
só em princípio é possível na forma da alienação.” (MARX, 2010a, p. 123, acréscimo nosso)
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outro não é apreendido como um produto de sua vontade. Nessa concepção, o
mérito se encontra na distinção e relação da unidade do fenômeno, o sujeito,
com as determinações materiais das relações sociais do trabalho enquanto
atividade efetiva de produção de riqueza e atividade abstrata do ser humano.
Com a exteriorização e a objetivação através da atividade de trabalho abstrato,
assalariado, típica das relações capitalistas, o mundo exterior se torna cada vez
mais povoado de objetos autônomos e independentes (mercadorias e riqueza)
da vontade e das carências humanas. Nessa linha, o ser humano se desumaniza
à medida em que se efetiva no mundo. Diz o autor:
Nós partimos de um fato nacional-econômico, presente. O
trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,
quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O
trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais
mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta
em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O
trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e
ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que
produz, de fato, mercadorias em geral. Este fato nada mais exprime,
senão: o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta
como um ser estranho, como um poder independente do produtor.
O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se
coisa, é a objetivação do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua
objetivação. Esta efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-
econômico como desefetivação do trabalhador, a objetivação como
perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como alienação,
como estranhamento. (...) A objetivação tanto aparece como perda
do objeto que o trabalhador é despojado dos objetos mais
necessários não somente à vida, mas também dos objetos do
trabalho. Sim, o trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o
trabalhador pode se apossar com os maiores esforços e com as
mais extraordinárias interrupções. A apropriação do objeto tanto
aparece como alienação que, quanto mais objetos o trabalhador
produz, tanto menos pode possuir tanto mais fica sob o domínio do
seu produto, do capital. (...) A despossessão [Entäusserung] do
trabalhador em seu produto tem o significado o somente de que
seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa, mas, bem
além disso, [que se torna uma existência] que existe fora dele,
independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência
autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe
defronta hostil e estranha. (MARX, 2010a, pp. 80-1)
A partir dessa exposição, Karl Marx chega a um dos pontos altos dos
Manuscritos, apresentando (e retomando) uma série de questões que
buscavam servir de instrumento e armas contra as tendências filosóficas e
políticas que atuavam no período desde os jovens hegelianos (Max Stirner
principalmente), os economistas políticos vulgares, passando pelos herdeiros
dos socialistas utópicos e, em menor peso, por Proudhon. Se entre os debates
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com os jovens hegelianos a crítica aos “socialistas altruístas” dos “Livres de
Berlim” havia sido significativamente bem-sucedida, com a produção dos
Manuscritos econômico-filosóficos, ainda que não publicados, Marx passa a
conseguir fundamentar de maneira incipiente, mas já assentada as
questões da economia política em relação à vida produtiva, como aquela que é
capaz de representar a estrutura da vida genérica, da essência humana. Ou em
outros termos, ainda não utilizados nos manuscritos, para o autor em 1844 as
relações de produção sociais guardam as formas e os padrões de reprodução
social, escreve:
Pois primeiramente o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva
mesma aparece ao homem apenas como um meio para a satisfação
de uma carência, a necessidade de manutenção da existência física.
A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora
de vida. No modo da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de
uma species, seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o
caráter genérico do homem. A vida mesma aparece só como meio de
vida. (...) O trabalho alienado inverte a relação a tal ponto que o
homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua
atividade vital, da sua essência, apenas um meio para sua existência.
(MARX, 2010a, pp. 84-5)
Na concepção de Marx influenciado pela dialética da dominação e
servidão da Fenomenologia do Espírito de Hegel, mas ressaltando e
delimitando, ao mesmo tempo, a generalidade, as particularidades e
singularidades das modernas lutas de reconhecimento das sociedades
europeias ocidentais como historicamente específicas e relativas à ascensão e
consolidação do conjunto da sociedade capitalista, será com o fenômeno da
alienação que se produzirá o processo de abstração da atividade do trabalho
humano, onde o ser humano não mais realiza a negação ao se colocar como
objeto de si mesmo, pois agora este é despossuído através da apropriação dos
meios de trabalho e do produto de sua atividade de trabalho que se tornam
riqueza privada acumulada. A realização do conjunto social da atividade de
trabalho alienado e da autonomia econômica da sociedade burguesa, desse
modo, para Marx, estaria em contradição com a realização de uma
sociabilidade fundamentada e que visa a liberdade e a justiça.
Mesmo tendo muitos pontos e concepções econômicas atrasadas em
relação à escola clássica, os economistas vulgares e os socialistas utópicos,
portanto, o jovem autor consegue, por outro lado, produzir um importante
salto qualitativo ao concluir que a classe trabalhadora moderna, o
proletariado, não tem meios para se defrontar consigo mesmo ao encarar o
mundo moderno povoado de produtos do trabalho humano. A questão central
para Marx, então, era a de humanizar o proletariado, o tornar sujeito, através
de uma abolição da atividade de trabalho alienado e da propriedade privada.
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Para o jovem em 1844, a elaboração filosófica tomada desde Feuerbach
e dirigida politicamente por Hess, representava uma denúncia radical não
somente do sistema filosófico de G. W. F. Hegel, como também da essência da
sociedade capitalista e seus teóricos da economia política, uma vez que esta
possuía sua sociabilidade alienada por também ser produzida a partir de uma
atividade alienada. Mesmo com limites e sem apreender alguns elementos
econômicos fundamentais, o jovem Marx, baseado em uma interpretação da
figura de dominação e servidão hegeliana, foi capaz de perceber algumas
determinações das relações de produção capitalistas e defender uma via
emancipatória baseada em uma revolução da classe trabalhadora moderna e
na superação do trabalho alienado. Diferenciando-se de Hegel ainda que a
aproximação da economia política e a busca por superar uma “concepção
dicotômica do ser” (NOVELLI, 1998, p. 297) o tivesse o aproximado do mesmo
–, Marx pensava do interior da figura da servidão e dominação e denunciava a
impossibilidade do reconhecimento recíproco
19
da consciência servil enquanto
verdade da consciência senhorial como solução específica para a sociedade
capitalista.
Para a interpretação marxiana, Hegel havia apreendido a lógica das
lutas de reconhecimento das sociedades ocidentais desde a polis grega até as
constituições das nações modernas, mas não conheceu profundamente a
particularidade histórica da essência contraditória da sociedade civil burguesa
e se equivocou em seu diagnóstico. Marx interpretará, então, a filosofia
hegeliana como uma mera expressão abstrata e gica do movimento da
história, reforçando a posição da superação da dicotomia entre ser e pensar,
entre prática do pensamento e pensamento da prática, como fundamento para
19
Segundo a interpretação de Henrique C. Lima Vaz da dialética da dominação e servidão de
Hegel: “A articulação dos silogismos ou da dialética do Senhorio e da Servidão do ponto de
vista do Escravo irá reabrir o caminho para o reconhecimento efetivo e recíproco que se mostra
inviável a partir da consciência ociosa do Senhor. Hegel às formas de mediação que unem
dialeticamente a consciência servil ao Senhor e ao mundo a denominação geral de ‘ação de
formar-se’ [das Formieren] ou cultura. O mundo trabalhado é, com efeito, mediador para o
Escravo na sua relação com o Senhor mas aqui o trabalho, sob a forma social do serviço, irá
formar a consciência servil, pela retenção do desejo, para uma relação verdadeiramente
humana com o mundo. Irá, pois fazê-la retornar a si mesma como consciência-de-si. Tendo
experimentado o temor e o tremor diante do Senhor absoluto a Morte e conservado, assim,
o seu ser, a consciência servil entra agora para a escola da sabedoria. (...) O temor diante da
morte, a disciplina do serviço em face do Senhor e a atividade laboriosa exercida sobre o
mundo o, assim, para a consciência servil o caminho da negação seja do ser-reconhecido
unilateral do Senhor que tem agora o seu efetivo ser-para-si num outro, seja do seu próprio
não-reconhecimento que é suprimido pela cultura. Esta faz passar o simples ser do Escravo
(conservado no temor da morte e no serviço do Senhor) para o ser-para-si independente que
se constitui pelo agir transformador do mundo. A dialética do Senhorio e da Servidão faz, desta
sorte, surgir a figura da liberdade da consciência-de-si como verdade da certeza que ela tem
de si mesma: uma verdade que passa do sujeito ao mundo pela atividade da cultura. (...) Esse
saber deve apresentar-se como fundamento para a exigência histórica de uma sociedade do
reconhecimento universal.” (VAZ, 1981, pp. 22-3)
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a ação política desalienada e humanizadora. Nesses marcos, o jovem autor
buscará, então, distinguir quatro aspectos do fenômeno de alienação da
atividade de trabalho que desumanizam e deformam o ser humano, em
particular o proletariado.
1) o primeiro é na “exteriorização” da essência do trabalhador e sua
relação com os produtos de sua atividade de trabalho, que faz de sua existência
mero predicado da produção de mercadorias:
A exteriorização [Entäusserung] do trabalhador em seu produto
tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um
objeto, uma existência externa, mas, bem além disso, [que se torna
uma existência] que existe fora dele, independente dele e estranha a
ele, tornando-se uma potência autônoma diante dele, que a vida que
ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha. (...) Quanto
mais, portanto, o trabalhador se apropria do mundo externo, da
natureza sensível, por meio de seu trabalho, tanto mais ele se priva
dos meios de vida segundo um duplo sentido: primeiro, que sempre
mais o mundo exterior sensível deixa de ser um objeto pertencente
ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho; segundo, que [o
mundo exterior sensível] cessa, cada vez mais, de ser meio de vida
no sentido imediato, meio para a subsistência física do trabalhador.
Segundo este duplo sentido, o trabalhador se torna, portanto, um
servo do seu objeto. (MARX, 2010a, p. 81)
2) o segundo momento, manifesta-se “dentro da própria atividade
produtiva”, no próprio ato da produção, como “trabalho obrigatório”, forçado
e de autossacrifício:
Mas a alienação não se mostra somente no resultado, mas também,
e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade
produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio ao
produto da sua atividade se no ato mesmo da produção ele não se
alienasse a si mesmo? Na alienação do objeto do trabalho resume-se
somente a alienação, a exteriorização [despossessão] na atividade do
trabalho mesmo. Em que consiste, então, a exteriorização do
trabalho? Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é,
não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu
trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que
não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas
mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador se
sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora
do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando
não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O se trabalho não
é, portanto, voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O
trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente
um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza
[Fremdheit] evidencia-se aqui [de forma] o pura que, tão logo
inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como
de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se
exterioriza, é um trabalho de autossacrifício, de mortificação.
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Finalmente, a externalidade do trabalho aparece para o trabalhador
como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como
se [o trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não
pertencesse a si mesmo, mas a um outro. (MARX, 2010a, pp. 82-3,
acréscimo nosso)
3) O terceiro momento da alienação do trabalho, segundo o jovem Marx,
vai aparecer na alienação-de-si, de seu ser genérico, de sua essência, e
consequentemente, da própria natureza:
A energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida
pessoal pois o que é vida senão atividade como uma atividade
voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertence a ele. A
alienação-de-si, tal qual acima a alienação da coisa. Temos agora
ainda uma terceira determinação do trabalho alienado a extrair das
duas vistas até aqui. O homem é um ser genérico, não somente
quando prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio
quanto do restante das coisas, o seu objeto, mas também e isto é
somente uma outra expressão da mesma coisa quando se relaciona
consigo mesmo como [com] o gênero vivo, presente, quando se
relaciona consigo mesmo como [com] um ser universal, [e] por isso
livre. A vida genérica, tanto no homem quanto no animal, consiste
fisicamente, em primeiro lugar, nisto: que o homem (tal qual o
animal) vive da natureza inorgânica, e quanto mais universal o
homem [é] do que o animal, tanto mais universal é o domínio da
natureza inorgânica da qual ele vive. Assim como plantas, animais,
pedras, ar, luz etc., formam teoricamente uma parte da consciência
humana, em parte como objetos da ciência natural, em parte como
objetos da arte – sua natureza inorgânica, meios de vida espirituais,
que ele tem de preparar prioritariamente para a fruição e para a
digestão –, formam também praticamente uma parte da vida
humana e da atividade humana. (MARX, 2010a, pp. 83-4)
4) Por fim, o último momento é a alienação do ser humano pelo próprio
ser humano, ou seja, o próprio gênero e essência humana tornam apenas um
meio para garantir a existência dos indivíduos:
O engendramento prático de um mundo objetivo, a elaboração da
natureza inorgânica é a prova do homem enquanto um ser genérico
consciente, isto é, um ser que se relaciona com o nero enquanto
sua própria essência ou [se relaciona] consigo enquanto ser
genérico. (...) O animal forma apenas segundo a medida e a carência
da species à qual pertence, enquanto o homem sabe produzir
segundo a medida de qualquer species, e sabe considerar, por toda a
parte, a medida inerente ao objeto; o homem também forma, por
isso, segundo as leis da beleza. Precisamente por isso, na elaboração
do mundo objetivo [é que] o homem se confirma, primeiro lugar e
efetivamente, como ser genérico. Esta produção é a sua vida
genérica operativa. Através dela a natureza aparece como a sua obra
e a sua efetividade. O objeto do trabalho é portanto a objetivação da
vida genérica do homem: quando o homem se duplica o apenas
na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente],
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contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele.
Consequentemente, quando arranca do homem o objeto de sua
produção, o trabalho alienado arranca-lhe sua vida genérica, sua
efetiva objetividade genérica e transforma a sua vantagem com
relação ao animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu corpo
inorgânico, a natureza. Igualmente, quando o trabalho alienado
reduz a autoatividade, a atividade livre, a um meio, ele faz da vida
genérica do homem um meio de sua existência física. A consciência
que o homem tem do seu gênero se transforma, portanto, mediante
a alienação, de forma que a vida genérica se torna para ele um meio.
(...) uma consequência imediata disto, de o homem estar estranhado
do produto do seu trabalho, de sua atividade vital e de seu ser
genérico é a alienação do homem pelo [próprio] homem. Quando o
homem está frente a si mesmo, defronta-se com ele o outro homem.
O que é produto da relação do homem com seu trabalho, produto de
seu trabalho e consigo mesmo, vale como relação do homem com
outro homem, como o trabalho e o objeto do trabalho de outro
homem. Em geral, a questão de que o homem está alienado do seu
ser genérico quer dizer que um homem está alienado do outro, assim
como cada um deles [está alienado] da essência humana. O
estranhamento do homem, em geral toda a relação na qual o homem
está diante de si mesmo, é primeiramente efetivado, se expressa, na
relação em que o homem está para com o outro homem. Na relação
do trabalho alienado cada homem considera, portanto, o outro
segundo o critério e a relação na qual ele mesmo se encontra como
trabalhador. (MARX, 2010a, pp. 85-6)
Dessa maneira, no mesmo capítulo, o jovem Marx ainda vai concluir que
o trabalho alienado e a propriedade privada, com força de necessidade lógica,
se engendrarão historicamente de forma mútua. Eis aqui, então, uma noção
ainda germinal do autor, mas que já apreende o núcleo do surgimento e
consolidação histórica da propriedade privada: será através da apropriação e
acumulação privada dos meios de produção, produtos e do excedente
produtivo, bem como da própria atividade de trabalho alienado, que a
propriedade privada será consolidada. Desse modo, a atividade de trabalho
alienado avançará ao ponto de ser compreendida como um processo histórico
de expropriação dos instrumentos da atividade de trabalho e que adquire uma
forma social permanente, ou melhor, adquire a particularidade das relações de
produção entre sujeitos sociais específicos, ao mesmo tempo que põe uma
forma de riqueza e a sociabilidade abstrata efetivas (MARX, 2010a, p. 87).
A crítica da dialética hegeliana de Karl Marx em 1844
O capítulo em que Marx trata diretamente da dialética hegeliana,
denominado “Crítica da dialética e da filosofia hegelianas em geral”, do ponto
de vista filosófico, é central para a análise e conhecimento dos debates
presentes nos Manuscritos econômico-filosóficos produzidos em 1844. Nele,
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ficam evidentes as primeiras críticas e os primeiros nuances da tentativa do
autor de romper com os princípios assumidos e nos quais também estavam
limitados o movimento jovem hegeliano. Contudo, apesar das críticas
acertadas, o próprio Karl permanecia fundamentado e dependente da filosofia
de Hegel, estabelecendo uma relação contraditória em relação ao mestre e aos
herdeiros jovem hegelianos em que, ainda que não superasse completamente
o mestre, ao retomar o tema da economia política pôde se tornar aquele que
estava mais próximo de uma “filosofia do trabalho” no sentido desenvolvido
por Hegel. Nesse ponto, inclusive, é preciso destacar que embora relação entre
Hegel e Marx seja complexa, ela também se caracteriza por uma
complementariedade, de modo que entre eles “não há continuísmo, sim
continuidade” que “não se reduzem numa identidade ou diferença absolutas”
(NOVELLI, 1998, p. 315).
Desse modo, o próprio jovem autor considera um balanço filosófico e
político como fundamental para os jovens hegelianos: afinal, qual a posição
ontológica que assumiam, ou melhor, “o que fazer diante da dialética
hegeliana?” (MARX, 2010a, p. 115). Essa pergunta não era meramente
retórica, ainda que sua crítica à mera reprodução dos princípios e da
linguagem de Hegel respingasse nas suas próprias concepções filosóficas de
1844. Nesse momento, o jovem ainda assumia uma linguagem neo-hegeliana
tomada principalmente de Ludwig Feuerbach, e entendia a crítica deste
elaborada desde as Teses provisórias para a reforma da filosofia de 1842, bem
como em Princípios da filosofia do futuro de 1843, como a fundamentação
filosófica do ateísmo, que era, por sua vez, o primeiro passo do caminho para
aquilo que Marx entendia por comunismo concepção que mudaria
definitivamente a partir de A ideologia alemã.
Após 1845, não apenas a realização do proletariado enquanto sujeito
será modificada, como a totalidade da relação sujeito-objeto e que Marx
começará a apresentar o germe desse rompimento nos Manuscritos
econômico-filosóficos quando critica a posição dos jovens hegelianos como um
todo por suas relações apáticas com a dialética de Hegel. Apesar disso, o
próprio jovem Karl Marx também possuía uma relação ambígua com a
dialética hegeliana, que, contraditoriamente, o levou a desenvolver uma
concepção cada vez mais negativa sobre os fundamentos filosóficos da crítica
da economia política à medida que buscava se afastar da própria herança de
Hegel. Contudo, nos manuscritos filosóficos e econômicos de 1844 a
característica do sujeito marxiano é a de reconciliação do “ser genérico” com
sua essência da crítica ontológica de Feuerbach, uma concepção que se
distanciava daquela que será responsável por uma nova teoria crítica e
revolucionária da sociedade capitalista posterior (MARX, 2010a, p. 117).
Essa posição de Marx em relação a Hegel, então, pode ser demonstrada
não apenas nos apontamentos que o jovem autor faz nesse capítulo a respeito
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do mestre, como também pelo desenvolvimento de um pensamento próprio “a
partir das categorias hegelianas e [que] permanece no interior delas”
(NOVELLI, 1998, p. 315, acréscimo nosso), onde ficam marcadas a
aproximação do jovem autor da economia política de Adam Smith e a
retomada da concepção hegeliana de trabalho como atividade de autoprodução
do ser humano. Nesses marcos, apesar da compreensão do núcleo do sistema
filosófico de Hegel em que se destaca a compreensão da dialética, da
“negatividade enquanto princípio motor e gerador” –, a interpretação
marxiana de Hegel apontava que existia uma unilateralidade por considerar
criticamente apenas o “lado positivo do trabalho, não seu [lado] negativo”
(MARX, 2010a, pp. 123; 124).
Com essa crítica de que Hegel havia conhecido apenas o lado positivo
do trabalho, Marx a dirigia para a própria metafísica do espírito do mestre, que
ao conceber os sujeitos imediatos apenas como mediações do espírito, fazia do
sujeito real do trabalho esse espírito e não o ser sensível e concreto. Ao
considerar apenas esse lado positivo do trabalho e desconsiderar seu lado
negativo, a concepção marxiana interpretava que Hegel havia chegado às
portas do materialismo, mas, ao fim e a cabo, cedido aos encantos do
idealismo: a solução encontrada para resolver a essência contraditória da
sociedade burguesa viria a partir de uma esfera ideal, superior, da astúcia da
razão, do trabalho do espírito e do estado. De maneira original, Marx será o
primeiro a colocar a pedra de toque de uma crítica da “metafísica” da sociedade
civil burguesa e rejeitar a solução da luta pelo reconhecimento através de um
estado ideal como produto da produção social alienada.
Desse modo, em 1844, a partir das diferentes concepções de alienação,
Marx não via a possibilidade de superação da alienação do ser para-si através
do reconhecimento do trabalhador com as mediações produzidas pela
sociedade capitalista, senão apenas pela organização revolucionária do
proletariado que confrontaria seu outro, a burguesia como sujeito social;
enquanto Hegel, ao contrário, não via na organização e atividade
revolucionária as condições para estabelecer o ethos social, mas sim na
possibilidade do reconhecimento mútuo entre a consciência servil e senhoril
através de uma “pedagogia do trabalho” que produziria conscientemente o
estado como uma esfera superior e universal que, por sua vez, se reconheceria
como produto do trabalho social e garantiria o interesse comum da
comunidade ética. Na mesma medida, a sociedade constituída pelo trabalho
social humanizado também se reconheceria como produtora do conjunto de
leis e da ordem vigente.
Ao interpretar que a concepção de trabalho de Hegel somente era viável
na forma de alienação, ou seja, que relegava a realização da essência das
relações sociais para uma esfera externa, Marx buscará aprofundar e
radicalizar tais questões agora com a vantagem histórica de ter acesso às
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críticas dos socialistas utópicos para a escola clássica de economia política e
em oposição aos seus pensadores vulgares estes últimos, apologistas do
capitalismo e que buscavam criminalizar e desmoralizar as nascentes
organizações e reivindicações dos trabalhadores. Ainda que não tivesse
completa clareza das distintas tendências da economia política e suas relações
com as classes sociais, o comunismo de Karl Marx em 1844 poderia ser
considerado como uma espécie de socialismo utópico alemão” que adotava
um ponto de vista e soluções que variavam entre os posicionamentos da
pequena-burguesia arruinada, dos intelectuais socialistas e do nascente
proletariado anterior às revoluções de 1848. Para o jovem, estas frações de
classes sociais deveriam se aliar politicamente ao perceber que o capitalismo
jogava um contingente cada vez maior de trabalhadores na miséria do
assalariamento, e assim buscarem se reconciliar com seu “ser genérico”, o
sujeito humanista, como forma de superação não apenas da atividade de
trabalho alienado, mas também da propriedade privada dos meios de
produção.
Este comunismo de 1844, de princípio filosófico e de início da crítica à
economia política como uma ciência de enriquecimento e pauperização da
sociedade civil burguesa, se trata de um “momento revolucionário” (LÖWY,
2002, p. 145) em que as forças humanas se reconciliariam consigo mesmas
através de processos históricos de socialização dos produtos e do excedente da
produção social. Para tanto, o fenômeno da despossessão [Entäusserung], que
na concepção marxiana Hegel havia tomado como uma mera mediação do
trabalho do espírito, se tratava na verdade de uma apropriação material
privada dos meios de produção, produtos e excedente, que poderia ser
superada pela “negação da negação”; ou seja, pela negação desse estado de
despossessão privada que era tomado como uma primeira negação, do
trabalho alienado, efetivando agora a “realização do ser humano” enquanto
“sujeito real”. Nos artigos de agosto de 1844, publicados na Vorwärts!, no
entanto, é notório que a concepção de comunismo de Marx agora pressupõe,
além do proletariado como elemento ativo e capaz de se organizar como classe
social, um processo revolucionário de caráter político e social que transforme
todo o modo de se produzir a vida.
A posição marxiana de 1844 também é evidenciada, por exemplo, pela
sua visão ainda romântica sobre as associações de trabalhadores, que ainda
não ganhou a conotação revolucionária e o germe do desenvolvimento
histórico de novas relações de produção fundamentadas nos princípios e ideais
socialistas. Nos Manuscritos econômico-filosóficos, a noção de associação
para Marx vai aparecer, assim, de maneira programática, mas apenas aplicável
à forma de propriedade fundiária e às atividades de trabalho na terra, que
reconciliariam a relação desalienada e racional entre o ser humano e a
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natureza
20
. Aqui, novamente a escolha de mudança para a França, e suas
condições socioeconômicas, eram decisivas para as elaborações do jovem
autor, de maneira que as manufaturas e as corporações de ofícios que
organizavam os trabalhadores e artesãos franceses eram referenciais
avançados em relação a Alemanha, mas atrasados em relação a Inglaterra.
Em relação à dialética no pensamento do jovem Karl Marx, a crítica
negativa, sua importância se mostra, além do combate e ruptura em relação ao
movimento jovem hegeliano, também para o combate e superação das
tendências econômicas que se consolidavam após a década de 1830
notadamente os economistas clássicos, vulgares e os socialistas utópicos.
Nesse sentido, a análise dialética permitirá a apreensão das mediações dos
processos econômicos em meio aos fenômenos sociais, apreendendo suas
particularidades ao mesmo tempo em que evidencia seus aspectos
universalizantes – permitindo apreender a essência dos mesmos, e não serem
tomados como entes metafísicos, unilaterais e que se fundam fechados em si
mesmos. Ao contrário, será o aprimoramento da análise negativa da realidade
socioeconômica surgida a partir de 1844 que permitirá a Marx elaborar e
correlacionar os conceitos de “forças produtivas”, “relações de produção”,
“ideologia”, “modo de produção” e “modo de reprodução” entre 1845-7, e por
sua vez, consolidar a ruptura em relação aos jovens hegelianos, Feuerbach e às
análises e saídas propostas desde Hegel (RUBIN, 2014, pp. 457-8).
Ainda nesses marcos, será a dialética que fornecerá as bases para a
posterior constituição da teoria crítica da sociedade capitalista marxiana como
uma superação da economia clássica, da economia vulgar e do socialismo
utópico. A partir da consolidação de sua nova filosofia materialista, Marx e
Engels começarão a desenvolver os instrumentos teóricos que permitem
conhecer o núcleo racional da estrutura de produção e reprodução da
sociedade capitalista, desde seus aspectos socioeconômicos quanto das
estruturas sociais – jurídicas, políticas, econômicas, estéticas, epistemológicas
etc. como da manifestação das relações abstratas de exploração e dominação
entre as classes sociais dominantes e dominadas. Paralelamente, os jovens
autores não elaboraram apenas mais uma concepção filosófica e científica para
analisar a realidade, mas também passaram a fundamentar teoricamente e
ajudar a transformar as próprias relações entre as organizações de
20
Escreve Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos: “A associação, aplicada à terra e ao
solo, partilha a vantagem da grande posse fundiária do ponto de vista político-econômico, e
realiza primeiramente a tendência originária da divisão, a saber, a igualdade, assim como ela
também coloca a ligação afetiva do homem como a terra de um modo racional e não mais
[mediado] pela servidão, pela dominação e por uma tola mística da propriedade, quando a
terra deixa de ser um objeto de regateio e se torna novamente, mediante o trabalho livre e a
livre fruição, uma propriedade verdadeira e pessoal do homem. Uma grande vantagem da
divisão é que a sua massa se arruína na propriedade de um outro modo que na indústria, uma
massa que não pode mais decidir-se pela servidão.” (MARX, 2010a, p. 76)
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trabalhadores e consequentemente a própria relação dos trabalhadores entre
si –, fazendo com que o conceito de comunismo desde os manuscritos
começasse a ser forjado pela práxis desse proletariado moderno.
Em relação a Hegel, nos manuscritos de 1844 Marx adota uma linha
expositiva que apresenta sua leitura sobre a filosofia hegeliana – em particular
seu princípio antropológico de autoprodução do ser humano, que, para a
interpretação marxiana, possuía como mérito a apreensão da atividade de
trabalho como objetivação da essência do “ser genérico” e que fundamentava
as relações sociais capitalistas. Será, então, no capítulo sobre a dialética
hegeliana que o jovem autor explicitará sua discordância em relação ao aspecto
idealista do conceito de trabalho formador de Hegel, utilizando-se da crítica
dos primeiros socialistas ao processo revolucionário francês ao postular que,
no momento da negação em relação ao produto da atividade de trabalho, o
trabalhador não possui os meios para superar sua condição dependente e
apreender a objetividade das relações sociais, e por isso sua atividade de
trabalho é alienada pois serve para produzir riqueza, mas não para a sanar suas
próprias carências.
Em 1844 a interpretação feuerbachiana sobre a filosofia de Hegel
influenciava Marx, de modo que, para essa interpretação, o ser humano apenas
efetivava e confirmava sua essência em sua forma alienada que o jovem
caracterizava e apontava como “a raiz do falso positivismo de Hegel” (MARX,
2010a, p. 130) –, e portanto, não se tratava da “confirmação da verdadeira
essência”, do verdadeiro ser humano, mas sim daquele alienado pela atividade
de trabalho capitalista. A solução apresentada por Marx para a realização do
verdadeiro sujeito, ou melhor, da humanização do ser humano em sua forma
alienada pelo trabalho alienado, poderia vir através de um outro momento
que recuperasse e reestruturasse “a universalidade da realidade concreta como
conceito” (NOVELLI, 1998, p. 301), ou seja, a negação da negação, que por sua
vez realizaria o sujeito real e colocaria as condições da sociedade comunista.
Como ressaltado, o conceito de comunismo marxiano em 1844 passou por
uma série de mudanças, contudo mostrava, por um lado, a força da ascensão
das organizações e métodos de luta dos trabalhadores modernos, bem como
por outro, o avanço teórico que os primeiros contatos com a economia política
permitiram ao jovem no interior do pensamento pós-hegeliano.
Uma vez que existia a compreensão de que para Hegel deveria ser
considerada apenas a existência efetiva de uma coisa ou fenômeno enquanto
objeto de um saber, mas ao mesmo tempo ele tomava o abstrato como efetivo,
o jovem autor também via nesse aspecto da filosofia hegeliana o último
subterfúgio da velha metafísica e do “homem religioso” (MARX, 2010a, p. 132)
– e portanto, o próprio conteúdo que poderia justificar o aspecto conservador
da filosofia hegeliana. Ademais, a crítica do jovem Marx acerca da abstração
do “ser” apenas como objeto do pensamento e não como existência sensível
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seguia a trilha da crítica feuerbachiana, debruçando-se sobre os momentos
positivos da dialética hegeliana no interior da alienação e apontando como o
mestre não havia compreendido a especificidade do trabalho alienado,
negativo, na sociedade capitalista. Na dialética especulativa, para Marx, assim,
a verdadeira vida é tomada como a abstração, alienação, de modo que o sujeito
se manifesta como um resultado meramente metafísico ou místico como
tomava emprestado de Feuerbach.
A consequência dessa concepção por parte de Hegel, segundo Marx, era
de que a natureza, o ser humano e a sociedade civil burguesa aparecem como
meros predicados de um Deus, um Espírito Absoluto e um estado de forma
que estes sim podem ser considerados como o ser real. Dessa concepção formal
e abstrata da atividade de autoprodução do ser humano, o ser real seria
considerado apenas como a consciência, a negação, sem conteúdo e como uma
expressão meramente abstrata – ou seja, a atividade de autoprodução se
tornaria uma simples abstração, negatividade absoluta, que se cristalizaria e se
conceberia como autônoma, fundamentadora e formadora de si mesma
enquanto atividade. Apesar de chegar aos limites da dialética sujeito-objeto e
da antropologia filosófica hegelianas pela sua crítica de viés feuerbachiano,
bem como perceber que o núcleo racional da dialética especulativa
possibilitava apreender como os conceitos determinados se constituem
enquanto formas do pensamento fixas universais e portanto como
consequência gica e necessária da alienação geral humana –, Marx ainda não
ultrapassa tais limites nos Manuscritos econômico-filosóficos. Escreve:
O positivo, que Hegel aqui conseguiu – na sua lógica especulativa
, é que os conceitos determinados, as formas de pensamento
universais fixas, em sua autonomia diante da natureza e do espírito,
são um resultado necessário da alienação universal da essência
humana, portanto também do pensar humano, e que Hegel os
apresentou e reuniu, por isso, como momentos do processo de
abstração. Por exemplo, o ser suprassumido é essência, a essência
suprassumida, conceito, o conceito suprassumido... ideia absoluta.
Mas o que é então a ideia absoluta? Ela se suprassume novamente a
si mesma, se não quer voltar a passar de novo por todo o ato de
abstração e contentar-se, assim, em ser uma totalidade de
abstrações ou a abstração que a si se apreende. Mas a abstração que
se apreende como abstração sabe-se como nada; ela tem de
renunciar à abstração, e chega assim junto a um ser que é
precisamente o seu contrário, junto à natureza. Toda a lógica é,
portanto, a prova de que o pensar abstrato por si nada é, de que a
ideia absoluta por si nada é, de que somente a natureza é algo.
(MARX, 2010a, p. 134)
Ao retomar a crítica de Feuerbach iniciada em 1839 à dialética de Hegel,
Marx reafirmava a revalorização e o reestabelecimento da tentativa de
elaboração de uma visão orgânica e onde a esfera da natureza se fundamentava
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sobre si mesma – também típica de uma época em que a filosofia e as ciências
da natureza eram impulsionadas pelas consequências das revoluções
industriais. Agora, ao aproximar tal noção de inspiração feuerbachiana das
questões da economia política, o autor pôde começar a assentar as bases de
uma compreensão racional entre o “metabolismo do trabalho humano e a
natureza, onde o início do desenvolvimento de sua crítica do “duplo caráter do
trabalho” na sociedade capitalista atingi seu auge em O capital, quando
escreve que “todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do
homem no sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual ou
trabalho humano abstrato gera o valor da mercadoria”. Nesse sentido,
acrescentará Marx, “todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de
trabalho do homem sob forma especificamente adequada a um fim, e nessa
qualidade de trabalho concreto útil produz valores de uso” (MARX, 1983, p.
53).
Considerações finais
Como se nota, encontra-se nos Manuscritos econômico-filosóficos de
Karl Marx – e nas posições de 1844 como um todo – um importante momento
no desenvolvimento do pensamento filosófico e científico do autor, uma vez
que, ainda que não apresente sua noção posterior acabada, já evidencia alguns
elementos que fundamentarão sua nova concepção materialista junto a
Friedrich Engels. Além disso, a importância desses manuscritos também se
mostra em relação aos debates e ruptura com os jovens hegelianos, a posição
a Feuerbach e Hegel, bem como ao papel e função do encontro com as questões
da economia política nesse processo. No mais, também se destacam as noções
e interpretações que serão abandonadas, bem como outras que serão
aprimoradas, durante o início do caminho que será percorrido na elaboração
da crítica da economia política que será consolidada mais de duas décadas
depois em O capital.
Vemos, então, o quão importante foi a concepção e crítica do trabalho
pelo jovem Marx, apesar destas estarem baseadas na divisão social do trabalho
de Adam Smith e na dialética da dominação e servidão de Hegel. A partir de A
ideologia alemã, em meados de 1845-6, no entanto, ele anuncia seu abandono
dessa relação sujeito-objeto e reelaborará o conceito de alienação, aderindo a
uma nova filosofia materialista junto a Engels e fundando a análise filosófica-
científica da sociedade a partir das relações entre as “forças produtivas” e as
“relações de produção”. Isso não significaria, porém, o abandono completo da
crítica ao conceito de trabalho, pelo contrário, pois com o encontro das
questões do valor, Marx poderá amadurecer e fundamentar sobre as mesmas
o fenômeno do “fetichismo da mercadoria” apresentando-o filosoficamente
como característico das relações de produção capitalistas.
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O ano de 1844 marcará, por tudo isso, na trajetória filosófica, política e
pessoal de Karl Marx, o começo de um ponto de virada essencial para a
constituição, junto a Friedrich Engels, de sua filosofia materialista e
revolucionária. Como também buscamos indicar, a ascensão de um
pensamento próprio e sua importância pode ser demonstrada a partir da
superação teórica e prática em relação aos jovens hegelianos desde Bruno
Bauer, Max Stirner, e com mais ênfase o próprio Ludwig Feuerbach e Moses
Hess (que agora passariam a “seguir” Marx) –, bem como de seu contraste com
a posterior dissolução histórica do pós-hegelianismo pela falta de
compreensão do núcleo racional da sociedade capitalista por seus intelectuais,
permitindo que se tenham também uma melhor compreensão da importância
e posição ocupadas na produção dos manuscritos de 1844 para o pensamento
de Marx e no desenvolvimento da tradição pós-hegeliana.
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Como citar:
MARTINS, Douglas Rafael Dias. Os Manuscritos de 1844 de Karl Marx e a
retomada da economia política no pensamento pós-hegeliano. Verinotio
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1,
pp. 301-29, jan./jun. 2020.
Data do envio: 15 maio 2020
Data do aceite: 8 jun. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.485
Vitor Bartoletti Sartori
330
Os juristas nas Teorias do mais-valor de Karl Marx:
produtividade e desenvolvimento capitalista diante da concepção
marxiana de socialismo
Vitor Bartoletti Sartori
1
Resumo:
Pretendemos mostrar, a partir daquilo que J. Chasin chamou de análise
imanente, o modo pelo qual Karl Marx, em seu Teorias do mais-valor,
analisou o trabalho produtivo ao ter em conta o desenvolvimento da burguesia
e o surgimento de camadas intermediárias entre o proletariado, a burguesia e
o processo imediato de produção. Em um primeiro momento, com Smith e a
crítica diante da sociabilidade feudal, haveria um elogio do trabalho produtivo
e uma crítica à improdutividade do trabalho de comerciantes, juristas,
funcionários públicos, entre outros. Depois, porém, a classe burguesa teria
adotado a mesma postura que criticara na nobreza. E, assim, desenvolve-se
uma concepção apologética no que toca ao sentido da categoria trabalho
produtivo. Os juristas, antes olhados com desconfiança, vêm a ser vistos de
modo acrítico em um processo em que, ao mesmo tempo, tem-se um
capitalismo senil e possibilidades abertas à superação deste.
Palavras-chave: Marx; Teorias do mais-valor; direito; trabalho produtivo;
juristas.
The jurists and in Karl Marx´s Theories of surplus value:
productivity and capitalist development and the Marxian concept
of socialism
Abstract:
We intend to show, with resource to what J. Chasin called immanent analysis,
the way in which Karl Marx, in his Theories of surplus value, analyzed the
productive work having the development of the bourgeoisie in account as long
as intermediary social categories emerge between proletariat and the
bourgeoisie. First, with Smith and a critique of feudal sociability, there was
certain attachment to work and to the critique the unproductiveness of the
work of merchants, lawyers, public contracts, among others. But then the
bourgeois class adopted the same stance which it had criticized in the nobility.
1
Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e
professor da do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). E-mail: vitorbsartori@gmail.com. Revisão ortográfico-gramatical de Vânia
Noeli Ferreira de Assunção.
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And so its worldview develops in a apologetical way. The jurists, previously
viewed with suspicion, are seen in an uncritical way. The process in which that
occurs is that of a senile capitalism, with possibilities brought.
Keywords: Marx; Law; Theories of surplus value; productive work; jurists.
Introdução
No presente artigo, procuraremos analisar um aspecto importante da
obra de Karl Marx no que toca ao direito. Trata-se da relação entre a posição
do jurista e a concepção marxiana de trabalho produtivo. Para tanto,
passaremos por um texto pouco analisado na área de estudos de marxismo e
direito, as Teorias do mais-valor. Tal abordagem se justifica diante do enfoque
quase exclusivo da tradição brasileira de crítica marxista ao direito no livro I
de O capital. Na esteira da análise de Pachukanis (1988) e, no Brasil, de Márcio
Naves (2000; 2014), tem-se enfatizado a relação existente entre forma jurídica
e forma mercantil. Isto se dá, principalmente, tendo em conta o primeiro e o
segundo capítulos de O capital. De nossa parte, acreditamos que, mesmo tal
abordagem possuindo inúmeros méritos (cf. SARTORI, 2015), que não podem
ser negados, de se analisar o corpus da obra marxiana quando se pensa
no campo de estudos crítica marxista ao direito tendo em conta toda a
extensão do tratamento marxiano ao direito.
para que mencionemos alguns exemplos de relevo: o papel ativo do
direito no capital portador de juros é algo de grande importância a ser
compreendido (cf. CASALINO, 2015; SARTORI, 2019a); também é essencial
analisar o estatuto dúbio da regulamentação fabril em Marx (cf. SARTORI,
2019b); outros temas, como a posição de Marx quanto à teoria do direito (cf.
SARTORI, 2018a; 2017b) ou à noção justiça (SARTORI, 2017a), também são
essenciais na formação de um pensamento marxista sobre a esfera jurídica.
Não se pode, de modo algum, reduzir a crítica marxiana ao direito à relação
entre forma jurídica e forma mercantil
2
.
Poderíamos citar aqui outros exemplos
3
. Nosso ponto, porém, não é
esgotar o assunto. Antes, é: supondo o que deveria ser óbvio – que Marx tem a
2 Não é isso que Pachukanis faz, embora, deva-se frisar que os leitores destes dois autores, não
raro, tragam consigo tal leitura da obra marxiana, a qual, de nossa parte, acreditamos limitada.
3 Só para que mencionemos três outros exemplos: é importante ter em conta os primeiros
momentos da formação do pensamento de Marx no que toca ao direito. De 1837 a 1842,
consideráveis questões a serem levantadas e estudadas com calma no que diz respeito à
compreensão marxiana do direito (cf. PEREIRA LEITE, 2018). A relação entre gênero
humano, democracia e direitos humanos na Crítica à Filosofia do direito de Hegel é um
aspecto bastante central no entendimento da formação do pensamento marxiano (cf. PALU,
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contribuir muito para o desenvolvimento da tradição marxista –, vale uma
análise exaustiva de seu pensamento sobre o direito. Nesse sentido, pode ser
importante analisar a posição que ocupam os juristas na teoria de Marx; e um
primeiro passo neste sentido pode ser dado com a análise das Teorias do mais-
valor.
A partir daquilo que J. Chasin chamou de análise imanente
4
,
intentamos explicitar as determinações do mencionado texto marxiano no que
tange à posição dos juristas na sociedade capitalista e em meio ao contraditório
desenvolvimento do modo de produção capitalista. Com isso, pretendemos
contribuir no estudo do pensamento de Marx. Mesmo que tal autor seja um
pensador do século XIX, diversas questões colocadas por ele ainda nos
perseguem. E, assim, há uma atualidade bastante grande de sua obra (cf.
HARVEY, 2014). Para uma análise crítica do direito mesmo que se venha a
discordar do autor de O capital e do marxismo como um todo –, o
conhecimento da posição marxiana é central. Caso se concorde com o autor,
forneceremos subsídios para um conhecimento mais aprofundado; para
aqueles que dele discordam, o cuidado na análise da obra de Marx é sempre
bem-vindo; afinal, críticas superficiais não o propriamente críticas, mas algo
que, na melhor das hipóteses, traz certa ingenuidade.
Trabalho produtivo e o desenvolvimento do modo de produção
capitalista
No geral, a noção de trabalho produtivo tem um significado bastante
preciso no pensamento de Marx (cf. COTRIM, 2013). Não se trata de algo que
tenha um sentido o mais amplo possível; antes, tal abrangência equivocada do
termo chegaria a um ponto em que, com aquilo que Marx chamou de
concepção apologética, diz-se que “por fim, também o boi é um trabalhador
produtivo” (MARX, 1980, p. 245). Se é verdade que, em um sentido mais geral
e menos cuidadoso, pode-se falar do trabalho produtivo na produção de
valores de uso
5
, um sentido específico, que Marx sempre remete em suas
2019). Por fim, vale mencionar a posição de Marx quanto ao direito penal, o encarceramento
e o estatuto do crime (cf. MEDRADO, 2018).
4 Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto – a formação
ideal – em sua consistência autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o
conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e
suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta
que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses,
iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo
investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de
entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por
isso, de existir” (CHASIN, 2009, p. 26).
5 Como diz Marx: “trabalho produtivo é uma qualificação que, de início, absolutamente nada
tem a ver com o conteúdo característico do trabalho, com sua utilidade particular ou com o
valor de uso peculiar em que ele se apresenta” (MARX, 1980, p. 395).
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análises do modo de produção capitalista: trata-se do trabalho subordinado ao
capital e, em verdade, essencial à reprodução da relação-capital. Marx traz o
trabalho produtivo como uma categoria típica do modo de produção
capitalista, em que o essencial é a valorização do valor e, portanto, a extração
do mais-valor. Nesta situação, diz Marx que “a produtividade no sentido
capitalista baseia-se na produtividade relativa; então, o trabalhador não
repõe um valor precedente, mas também cria um novo”; complementa, ainda:
“materializa em seu produto mais tempo de trabalho que o materializado no
produto que o mantém vivo como trabalhador. Dessa espécie de trabalho
assalariado produtivo depende a existência do capital” (MARX, 1980, p. 133).
Fica claro: o trabalho produtivo é a outra face do capital, é o trabalho produtor
de mais-valor
6
.
Trabalho produtivo no sentido da produção capitalista é o trabalho
assalariado que, na troca pela parte variável do capital (a parte do
capital despendida em salário), além de reproduzir essa parte do
capital (ou o valor da própria força de trabalho), ainda produz mais-
valia para o capitalista. Só por esse meio, mercadoria ou dinheiro se
converte em capital, se produz como capital. é produtivo o
trabalho assalariado que produz capital. (Isso equivale a dizer que o
trabalho assalariado reproduz, aumentada, a soma de valor nele
empregada ou que restitui mais trabalho do que recebe na forma de
salário. Por conseguinte, é produtiva a força de trabalho que
produz valor maior que o próprio.) (MARX, 1980, p. 132)
O trabalho produtivo liga-se, portanto, à produção do mais-valor, e não
à sua realização ou ao intrincado processo pelo qual o valor produzido para
além do valor da mercadoria força de trabalho entra, a partir da circulação, no
sociometabolismo do capital (cf. COTRIM, 2013).
Dito isto, vale mencionar que, segundo Marx, no momento em que a
burguesia elogia o trabalho produtivo, ela vem mesmo a lhe atribuir “virtudes
sobrenaturais”, como teria acontecido, de acordo com a Crítica ao Programa
de Gotha, em John Locke
7
. Ou seja, Marxo é propriamente alguém que faz
a apologia do trabalho produtivo; antes, relaciona-o ao momento ascendente
6 Aponta Marx que “a força de trabalho do trabalhador produtivo é, para ele mesmo,
mercadoria. O mesmo se estende ao trabalhador improdutivo. Mas, o trabalhador produtivo
produz mercadoria para o comprador de força de trabalho. Para este, o trabalhador
improdutivo produz mero valor de uso e não mercadoria; valor de uso imaginário ou real. O
trabalhador improdutivo, e isto o caracteriza, não produz mercadoria para seu comprador; ao
contrário, deste recebe mercadorias” (MARX, 1980, p. 139).
7 Diz Marx na Crítica ao Programa de Gotha, e contra Locke e Lassalle: “os burgueses têm
excelentes razões para atribuir ao trabalho essa força sobrenatural de criação; pois
precisamente do condicionamento natural do trabalho segue-se que o homem que não possui
outra propriedade senão sua força de trabalho torna-se necessariamente, em todas as
condições sociais e culturais, um escravo daqueles que se apropriaram das condições objetivas
do trabalho. Ele só pode trabalhar com sua permissão, portanto, pode viver com sua
permissão” (MARX, 2012, p. 24).
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da burguesia e à consolidação da relação-capital e, com ela, do assalariamento.
O elogio do trabalho produtivo, quando aparece no autor de O capital, dá-se
em termos bastante relativos: confunde-se com a constatação do caráter
progressista da burguesia em determinado momento historicamente limitado
e situado do modo de produção capitalista, o primeiro da história a buscar a
produção pela produção, como reconhecem importantes economistas políticos
como David Ricardo (cf. MARX, 1980). De acordo com o autor de O capital, os
defensores desta forma de trabalho são, sobretudo, os grandes pensadores da
economia política, como Smith e Ricardo (cf. SARTORI, 2018b). Este último,
seria, no limite, cínico, mas expressaria o cinismo da própria realidade
capitalista, sem falsificá-la
8
. A defesa do trabalho produtivo, assim, é uma face
da consolidação do modo de produção capitalista. Este, em seu momento
ascendente, coloca-se contra a nobreza e sua improdutividade, ligada à
burocracia estatal e à propriedade fundiária. Diz Marx sobre tal contexto:
Eis aí a linguagem da burguesia ainda revolucionária, que até então
não subjugara a sociedade toda, o estado etc. Essas ocupações
transcendentes, veneráveis, a de soberano, juiz, militar, sacerdote
etc., junto com todos os velhos grupos ideológicos que geram, os
eruditos magistrados e padres, equiparam-se, no plano econômico,
à turba de seus próprios lacaios e bobos, sustentados por eles e pela
riqueza ociosa, aristocracia fundiária e os capitalistas desocupados.
São meros servidores da sociedade, como os outros são seus
servidores. Vivem da atividade de outras pessoas, e portanto têm de
ser reduzidos à quantidade imprescindível. Estado, Igreja etc. têm
justificativa como organizações para superintender ou gerir os
interesses comuns da burguesia produtiva; e seu custo, por
pertencer às despesas acessórias da produção, tem de ser reduzido
ao mínimo indispensável. Essa ideia tem interesse histórico e está
em contradição aguda seja com o modo de ver dos antigos, para os
quais o trabalho produtivo de coisas materiais traz o labéu da
escravatura e é considerado apenas pedestal para o cidadão ocioso,
seja com a concepção inerente à monarquia absoluta ou
constitucional aristocrática surgida nos fins da era medieval,
concepção expressa com toda candidez por Montesquieu, ele mesmo
dela cativo, nesta frase (VII, cap. IV, Esprit des lois): "Se os ricos não
8 Desde a Miséria da filosofia Marx ataca o utopismo proudhoniano, ao destacar o cinismo de
Ricardo; o último traria uma abordagem burguesa e científica, ao passo que o primeiro, não:
“a teoria dos valores de Ricardo é a interpretação científica da vida econômica atual; a teoria
dos valores do Sr. Proudhon é a interpretação utópica da teoria de Ricardo. Ricardo verifica a
verdade da sua fórmula derivando-a de todas as relações econômicas. E assim explica todos os
fenômenos, inclusive aqueles que, à primeira vista, parecem contradizê-la, como a renda, a
acumulação de capitais e a relação entre salários e lucros; e é isto, precisamente, que faz da
sua doutrina um sistema científico. O Sr. Proudhon, que redescobriu esta fórmula de Ricardo
através de hipóteses inteiramente arbitrárias, vê-se compelido, ulteriormente, a procurar fatos
econômicos isolados, que violenta e falsifica. Para fazê-los passar por exemplos, aplicações
existentes, realizações iniciais da sua ideia regeneradora (MARX, 1989, p. 54).
Posteriormente, principalmente nas Teorias do mais-valor (1980), Marx criticará a teoria do
valor de Ricardo e de Smith.
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gastarem muito, os pobres morrerão de fome”. (MARX, 1980, p.
283)
Depois de determinado momento do desenvolvimento do modo de
produção capitalista, a burguesia subjuga a sociedade toda e o estado,
colocando-os como subordinados aos seus interesses (cf. MARX, 1997;
SARTORI, 2012). No entanto, a ascensão desta classe esteve ligada à crítica à
burocracia absolutista, em que as figuras como a do sacerdote, do soberano e
do jurista são proeminentes. Padres e magistrados foram grandes alvos da
classe burguesa, que os enxergava como parasitas, tal qual eram os lacaios e os
bobos. E, assim, como servidores da sociedade, tanto os religiosos quanto os
juristas apareciam como partes parasitárias da sociedade, sustentadas pela
atividade de outras pessoas. Deveriam, portanto, ser reduzidas o máximo
possível. Ou seja, de acordo com Marx, no momento ascendente da classe
burguesa, claramente uma crítica ao trabalho que não é produtivo. Seria
preciso reduzir o trabalho improdutivo como aquele dos padres e dos
magistrados a despesas acessórias à produção, e subordinadas às
necessidades desta última. E Marx não se cansa de destacar a limitação
histórica desta concepção, em oposição tanto à Antiguidade quanto à época de
Montesquieu. Ou seja, tal posição é típica da classe burguesa, marcando seu
momento progressista e não podendo ser tomada como parâmetro para o
proletariado, mesmo que sua crise seja um importante indicador do
anacronismo da dominação do capital.
Segundo a própria burguesia, portanto, o desenvolvimento capitalista
deveria se dar com um enfoque na esfera produtiva, tendo-se a subordinação
do trabalho improdutivo ao produtivo. O incremento do trabalho assalariado
e da produção da grande indústria, assim, andavam juntos. Deste modo, o
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho se colocava como o
resultado da produção centrada na crítica às atividades improdutivas, como
aquelas do clero e dos juristas. Estes últimos deveriam ser meros servidores da
sociedade, sendo reduzidos ao mínimo necessário.
Tratar-se-ia dos falsos custos. Com a produção burguesa, de início e
contra a nobreza, são padres, juristas e outros duramente criticados. Porém,
depois de determinado momento, diz Marx nas Teorias do mais-valor, a faceta
desta classe social começa a mudar substancialmente.
A economia política no período clássico, do mesmo modo que a
própria burguesia no período inicial de autoafirmação, porta-se de
maneira severa e crítica com a maquinaria governamental etc. Mais
tarde percebe e como a prática também evidencia pela
experiência apreende que brota de sua própria organização a
necessidade da combinação social de todas essas classes, em parte
por completo improdutivas. Até onde aqueles "trabalhadores
improdutivos" não criam meios de fruição e, por isso, comprá-los
dependa totalmente do modo como o agente da produção quer
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despender o salário ou o lucro, e até onde, ao contrário, são
necessários ou se façam necessários em virtude de doenças (caso dos
médicos) ou de fraquezas espirituais (caso dos padres) ou de
conflitos entre os interesses privados e os nacionais (caso dos
administradores públicos, juristas, policiais, soldados), o vistos
por A. Smith, pelo próprio capitalista industrial e pela classe
trabalhadora, como falsos custos de produção, que importa reduzir
o mais possível, ao mínimo necessário e na base da mais baixa
remuneração dos serviços. A sociedade burguesa passa a produzir,
em sua própria forma, tudo que combatera na forma feudal ou
absolutista. Tarefa principal dos sicofantas dessa sociedade,
sobretudo os dos "níveis mais altos” é, portanto, em primeiro lugar,
restaurar no plano teórico o segmento meramente parasitário desses
"trabalhadores improdutivos" ou ainda justificar as exigências
exageradas da fração para ela indispensável. Proclamou-se, na
realidade, a dependência das classes ideológicas etc. para com os
capitalistas. (MARX, 1980, p. 154)
A crítica severa da burguesia quanto à maquinaria estatal acompanha a
elaboração teórica da burguesia ascendente, a economia política clássica
(principalmente com Smith e Ricardo). A classe burguesa pretende-se, em um
primeiro momento, como uma grande defensora do trabalho produtivo,
opondo-se impiedosamente à nobreza e à burocracia estatal; no entanto, de
acordo com Marx, tem-se que o próprio modo de produção capitalista tem uma
dependência intrínseca quanto a classes parcial ou completamente
improdutivas. Marx trata extensamente desta questão no livro III de O capital,
em que passa também por diversas figuras concretas do capital (cf. SARTORI,
2019c). No entanto, nas Teorias do mais-valor, o autor também destaca esta
intrincada relação entre trabalho produtivo e improdutivo no modo de
produção capitalista. Como aponta Marx:
A exploração do trabalho custa trabalho. O trabalho executado pelo
capitalista industrial, na medida em que seja apenas exigido pela
oposição entre capital e trabalho, entra no custo de seus
contramestres (os suboficiais da indústria) e está computado na
categoria de salário, como os custos que causam os feitores de
escravos e suas chibatas se incluem nos custos de produção do
senhor. Esses custos, como a maior parte das despesas comerciais,
pertencem aos falsos custos da produção capitalista. Quando se trata
da taxa geral de lucro, não se considera o trabalho dos capitalistas
com a concorrência recíproca e com a tentativa de se lograrem uns
aos outros; tampouco, a maior ou menor habilidade, o nível dos
custos com que um capitalista industrial, em confronto com outro,
sabe extrair de seus trabalhadores maior soma de mais-valia com os
menores gastos e realizar, no processo de circulação, esse trabalho
excedente extraído. Essa matéria pertence à análise da concorrência
entre os capitais. O domínio dessa análise é a luta e o trabalho dos
capitalistas para se apoderarem do maior montante possível de
trabalho excedente e se restringe apenas à repartição do trabalho
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excedente pelos diferentes capitalistas, e nada tem que ver com a
origem nem com a amplitude geral do trabalho excedente. (MARX,
1980, p. 1.399)
Os custos para que seja possível a exploração do trabalho são inerentes
ao modo de produção capitalista. O trabalho daqueles que se subordinam
imediatamente ao capital comercial, financeiro ou portador de juros, segundo
Marx, não é produtivo (cf. COTRIM, 2013); mas este trabalho é essencial para
a reprodução diuturna da sociedade capitalista. Haveria, inclusive, uma
tendência ao aumento deste tipo de trabalho (improdutivo) (cf. SARTORI,
2019c). Sobre o assunto, percebe-se, pois: não o ideal da classe burguesa,
ligado ao elogio do trabalho produtivo, seria contraditório. A própria
sociabilidade engendrada a partir disto também seria marcada em seu âmago
por uma natureza contraditória. E, assim, no livro III de O capital, Marx chega
a dizer:
O modo de produção capitalista cai em nova contradição. Sua
missão histórica é o desenvolvimento, inescrupuloso, impulsionado
em progressão geométrica, da produtividade do trabalho humano.
Ele se torna infiel a essa missão assim que, como aqui, se contrapõe
ao desenvolvimento da produtividade, refreando-o. Com isso,
comprova novamente que se torna senil e que, cada vez mais,
sobrevive a si mesmo. (MARX, 1986, p. 197)
Com o desenvolvimento capitalista, uma contradição gigantesca: o
modo de produção cuja missão era desenvolver a produtividade do trabalho
coloca-se contra esta. Por mais que, com a divisão do trabalho, na grande
indústria, forme-se o trabalhador coletivo e as forças produtivas sejam
desenvolvidas, isto não se de modo indefinido. Em verdade, com o tempo,
sequer o central, no que toca à reprodução da sociabilidade capitalista, vem a
ser a produção industrial e a burguesia produtiva; antes, tem-se a luta entre
diversas camadas da classe burguesa (burguesia comercial, financeira etc., por
exemplo) pela apropriação do valor produzido; e isso tudo sem que o central
seja a produção da riqueza mediante o aumento da produtividade do trabalho
(cf. SARTORI, 2019c). Ou seja, esta classe deixa de se portar de modo crítico
quanto à improdutividade de certas atividades. Ela deixa de se comportar
criticamente diante do existente e desenvolve aquilo que Marx chamou de
concepção apologética do trabalho produtivo (1980). E, em tal concepção, não
se deixa de lado a noção de trabalho produtivo, mas ela se mostra de modo tão
amplo que deixa de ser critério para qualquer concepção minimamente crítica:
“por fim, também o boi é um trabalhador produtivo” (MARX, 1980, p. 245).
Segundo Marx, neste ponto, a sociedade burguesa passa a reproduzir aquilo
que havia criticado veementemente no feudalismo e na nobreza.
Os elementos intermediários, como comerciantes, banqueiros e as
classes ideológicas, para que se use a dicção de Marx (1980) e os falsos custos
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são vistos como produtivos pela burguesia representante de um modo de
produção senil, que sobrevive a si mesmo (cf. SARTORI, 2019c). A
produtividade da atividade, mais precisamente, do trabalho, passa a ser vista
como aquilo que é necessário não ao incremento de riqueza social
9
e das forças
produtivas, mas à reprodução do sistema capitalista. Daí, um caráter
essencialmente apologético da concepção, segundo Marx. Se, em verdade, “só
o trabalho que produz capital é produtivo” (MARX, 1980, p. 136)
10
, para a
concepção apologética, qualquer trabalho minimamente relacionado à
reprodução indireta do capital passa a ser visto como produtivo. Se antes os
médicos, os padres, os administradores públicos, os juristas e os policiais
mesmo que necessários eram vistos como falsos custos, depois de
determinado momento, passam a ser vistos, sem uma análise minuciosa
11
,
como trabalhadores produtivos. Independentemente das nuanças que
envolvem tais trabalhos, como os do jurista, de se destacar que, segundo
Marx, uma mudança substancial da burguesia quanto a este trabalho
improdutivo: antes, este deveria ser reduzido ao mínimo necessário; depois,
são reabilitados e se procura, no plano teórico e prático, uma aliança
retrógrada com tais camadas.
Trata-se, assim, da dependência de tais classes, que Marx chama de
ideológicas, diante dos capitalistas. Isto teria sido estabelecido com o
desenvolvimento capitalista. Tais classes aparecem como essenciais à
reprodução de uma sociabilidade calcada na valorização do valor. E, portanto,
tem-se também a dependência dos capitalistas diante de tais classes. A classe
burguesa, antes comprometida com o incremento da produtividade do
trabalho, passa a figurar como uma defensora das camadas sociais que criticou
em sua fase ascendente e que conformam, em verdade, falsos custos. Os
“sicofantas desta sociedade”, assim, não tardariam a enxergar nos juristas não
tanto uma camada a ser reduzida ao menor número possível, mas um estrato
9 Sobre os meandros da questão da riqueza em Marx, cf. Sartori (2018b).
10 “Só o trabalho que produz capital é produtivo. Mercadoria ou dinheiro tornam-se, porém,
capital, por se trocarem diretamente por força de trabalho e se trocarem apenas para serem
substituídos por mais trabalho do que neles se contém. É que, para o capitalista como tal, o
valor de uso da força de trabalho não consiste em seu valor de uso efetivo, na utilidade do
trabalho concreto particular o de fiar, tecer etc. Tampouco lhe interessa o valor de uso do
produto em si desse trabalho, sendo o produto para ele mercadoria (isto é, antes da primeira
metamorfose) e não artigo de consumo. O que lhe interessa na mercadoria é ter ela valor de
troca superior ao que por ela pagou, e assim, para ele, o valor de uso do trabalho consiste em
lhe restituir quantidade de tempo de trabalho maior do que a que pagou na forma de salário.
Nessa categoria de trabalhadores produtivos figuram naturalmente os que, seja como for,
contribuem para produzir a mercadoria, desde o verdadeiro trabalhador manual até o gerente,
o engenheiro (distintos do capitalista).” (MARX, 1980, p. 136)
11 Mencionamos a necessidade de tal análise porque a questão do trabalho produtivo envolve
a configuração das classes sociais em determinada sociedade, e não o conteúdo imediato de
determinado trabalho (cf. COTRIM, 2013).
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social de grande respeitabilidade. O desenvolvimento do modo de produção
capitalista, assim, traz uma mudança substancial na posição da classe
burguesa antes progressista e ligada ao incremento das forças produtivas; no
que diz respeito à mudança de tom diante dos juristas, isto é bastante claro e
precisa ser destacado ao se analisar de modo cuidadoso a posição de Marx
quanto ao direito.
Decadência ideológica, trabalho produtivo e juristas
De acordo com Marx, o momento ascendente da classe burguesa é
aquele em que suas demandas, contra a estrutura feudal, caminham lado a lado
com as das classes trabalhadoras. A situação é aquela de uma crítica
intransigente aos antigos dirigentes e às classes ideológicas que os
acompanhavam. Magistrados e padres não são poupados. No entanto, a
situação modifica-se:
Contudo, a burguesia alcança o domínio, apoderando-se ela mesma
do estado ou estabelecendo compromisso com os antigos dirigentes:
reconhece os profissionais ideológicos como carne de sua carne e os
transforma em funcionários e apropria-os; não é mais como
representante do trabalho produtivo que os confronta; os
verdadeiros trabalhadores produtivos erguem-se contra ela e dizem
que ela vive da atividade de outras pessoas; está bastante educada
para não se deixar absorver de todo pela produção, mas para querer
um consumo "refinado"; mais e mais os trabalhos intelectuais se
realizam a seu serviço, põem-se a serviço da produção capitalista:
como resultado imediato dessas ocorrências, as coisas mudam, a
burguesia procura, no “plano econômico", legitimar, de seu próprio
ponto de vista, o que criticara e combatera antes. Nessa linha, seus
porta-vozes e forjadores de consciências perfumadas o os Garniers
etc. Acrescente-se aí que esses economistas, por sua vez, sacerdotes,
professores etc., empenham-se em demonstrar sua utilidade
"produtiva", em justificar seu salário "no domínio econômico".
(MARX, 1980, p. 284)
As classes ideológicas, antes criticadas, tornam-se carne da carne da
classe burguesa; com isto, a concepção de trabalho produtivo torna-se
“expandida”, abrangendo, dentre outros, juristas e religiosos. Deste modo,
uma mudança: se antes o trabalho produtivo aparecia no campo da produção
da grande indústria e, portanto, englobava essencialmente, embora não só, o
trabalho do moderno proletariado, agora tem-se um afastamento desta classe
social. A burguesia aproxima-se dos funcionários da maquinaria estatal
herdada do estado absolutista havendo uma íntima relação com os juristas
neste processo e se afasta dos verdadeiros trabalhadores produtivos, aqueles
de cuja força de trabalho é extraído o mais-valor. Não se tem somente uma
concepção apologética de trabalho produtivo sendo desenvolvida, portanto; tal
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concepção depende, de um lado, da aliança com os antigos dirigentes antes
criticados e, doutro lado, do antagonismo quanto aos assalariados produtores
de mais-valor. Tem-se, assim, a explicitação da oposição entre burguesia e
proletariado.
O processo pelo qual os juristas são reabilitados é aquele em que as
ocupações “transcendentes e veneráveis” passam a ser vistas de modo acrítico
e o proletariado passa a ser visto enquanto uma classe social antagônica à
moderna burguesia. Com tal processo, no plano ideológico, tem-se que “no
lugar da pesquisa desinteressada entrou a espadacharia mercenária, no lugar
da pesquisa científica imparcial entrou a consciência e a intenção da
apologética” (MARX, 1996a, pp. 135-6). Trata-se daquilo que György Lukács
(2015) chamou de decadência ideológica.
Nesse momento, aqueles que são os verdadeiros trabalhadores
produtivos se voltariam contra a própria burguesia. Em um primeiro
momento, inclusive, isto se daria com argumentos muito similares àqueles que
a classe burguesa usou contra os padres, os magistrados e outros: tais camadas
vivem da atividade de outras pessoas. Assim, em um primeiro momento, na
lida com as contradições sociais, também no que toca às “formas ideológicas,
sob as quais os homens adquirem consciência desses conflitos” (MARX, 2009,
p. 46), o proletariado moderno se coloca no terreno da burguesia, aquele da
defesa do trabalho produtivo. Uma arma forjada pela própria burguesia, uma
concepção centrada no trabalho produtivo, até certo ponto, começa a voltar-se
contra ela, tal qual ocorreu com as liberdades civis e políticas
12
. Ou seja, por
mais que, segundo Marx, a noção de trabalho produtivo não possa ser tomada
como parâmetro em uma crítica radical ao modo de produção capitalista, ela,
com os seus meandros, foi o ponto de partida da classe trabalhadora para tal
crítica. No momento de decadência ideológica da burguesia, as armas que
forjou colocam-se contra ela mesma, por mais que não possam levar até o fim
a crítica à classe burguesa
13
.
Enquanto a crítica passa ao lado da classe trabalhadora, a tentativa de
legitimação do existente coloca-se no campo da burguesia. E, assim, a noção
de trabalho produtivo, em vez de ser abandonada pela burguesia, passa a
adquirir contornos que Marx chamou de apologéticos.
12 Diz Marx no 18 brumário de Luís Bonaparte: “e não se trata aqui de mera forma de falar,
de moda, de tática de partido. A burguesia tinha a noção correta de que todas as armas que ela
havia forjado contra o feudalismo começavam a ser apontadas contra ela própria, que todos os
recursos de formação que ela havia produzido se rebelavam contra a sua própria civilização,
que todos os deuses que ela havia criado apostataram dela. Ela compreendeu que todas as
assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos progressistas atacavam e ameaçavam a sua
dominação classista a um só tempo na base social e no topo político, ou seja, que haviam se
tornado ‘socialistas’” (MARX, 2011, p. 80).
13 Contra as limitações desta centralidade do trabalho produtivo, cf. Marx (2012) e Sartori
(2018b).
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A relação entre lucro, renda e o sistema de dependentes (antes criticado
pela classe burguesa) colocar-se-ia, sempre de acordo com Marx, da seguinte
maneira neste momento:
Se trabalhadores produtivos são os pagos pelo capital, e
improdutivos os pagos pela renda, é óbvio que a classe produtiva
está para a improdutiva assim como o capital está para a renda.
Todavia, o crescimento proporcional de ambas as classes não
dependerá somente da relação existente entre a massa dos capitais
e a massa das rendas. Dependerá da proporção em que a renda
(lucro) crescente se transforma em capital ou é despendida como
renda. Embora muito parcimoniosa a origem, a burguesia, com a
produtividade crescente do capital, isto é, dos trabalhadores, passa
a imitar o sistema feudal de dependentes. De acordo com o último
relatório sobre as fábricas (1861 ou 1862), o total das pessoas
empregadas nas fábricas propriamente ditas no Reino Unido
(inclusive gerentes) era apenas de 775.534, enquanto o número de
empregadas domésticas só na Inglaterra ascendia a um milhão. Que
belo arranjo este que faz uma operária suar 12 horas na fábrica, para
que o patrão ponha a seu serviço pessoal, com parte do que não lhe
pagou do trabalho, a irmã dela como criada, e o irmão como criado
de quarto, e o primo, como soldado ou guarda. (MARX, 1980, p. 180)
Em seu momento ascendente, a burguesia no plano teórico, com
David Ricardo à frente criticou vivamente a renda da terra e, portanto, a
classe que vivia desta. A crítica ao trabalho improdutivo trazia consigo não
uma posição contrária à maquinaria estatal e àqueles que a orbitavam, como
os juristas e o clero; tinha-se também uma condenação potente do modo de
vida da nobreza, com seus servos e seus dependentes. No entanto, com o tempo
com o desenvolvimento e explicitação das contradições do modo de
produção capitalista –, a própria burguesia começa a ver como muito
respeitáveis as “ocupações transcendentes” e passa a imitar o sistema feudal
de dependentes. Estes últimos, por sua vez, têm seus trabalhos pagos pela
renda e, assim, o modo de vida burguês passa a naturalizar o trabalho
improdutivo como algo essencial.
O incremento na produtividade dos trabalhadores faz que, de um lado,
com o assalariamento do trabalho de supervisão, a burguesia deixe de exercer
uma função direta na própria produção (cf. SARTORI, 2019c) e, doutro lado,
ela possa começar a imitar a nobreza no que toca à contratação de
dependentes, como empregadas domésticas, por exemplo. Ou seja, uma
separação entre a propriedade e a função no plano econômico: a função da
burguesia na produção passa a ser exercida por assalariados, como os gerentes
e supervisores, por exemplo. Tem-se também no plano doméstico uma
subordinação classista, havendo, mesmo na época de Marx, mais dependentes
do que operários fabris. O “arranjo” seria aquele em que se extrai mais-valor
de uma operária durante 12 horas para que, no plano privado e pessoal, o
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burguês possa empregar sua irmã e irmão como criados e seu primo como
guarda ou soldado; tudo isso com o mais-valor produzido por esta mesma
operária. A questão, de certo modo, é essencial ao tema tratado neste artigo.
Em primeiro lugar, há de se notar que as tendências apontadas por
Marx não são aquelas que transformam a sociedade, sem mais, em uma grande
fábrica; tal como destacado no livro III de O capital (cf. SARTORI, 2019c), aqui
se tem Marx apontando certo crescimento daquilo que hoje é chamado de
“setor de serviços” (embora não seja esta a expressão que o autor utiliza) em
meio às tendências do próprio capitalismo, e não como um desvio de rota
contingente. Outra questão importante é: com o desenvolvimento do modo de
produção capitalista, uma separação entre função e propriedade em um
duplo sentido: no plano “público”, o burguês traz um assalariado para realizar
o trabalho de supervisão da produção que se dá em sua propriedade; no plano
“privado”, não é mais a família burguesa (geralmente, pela estrutura patriarcal
da sociedade capitalista, a mulher) a realizar o cuidado da propriedade privada
de uma casa, do lar. Antes, tem-se assalariados improdutivos que, de modo
análogo ao que ocorria com a nobreza, realizam o trabalho doméstico em um
regime de dependência, que, inclusive, é pago com o mais-valor extraído dos
trabalhadores propriamente produtivos. E, é bom destacar: de acordo com
Marx, no caso, não se trata de qualquer resquício feudal. Tal imitação por parte
da burguesia faz parte do próprio processo em que esta classe desenvolve uma
concepção apologética e deixa de ser real e efetivamente uma classe social
capaz de uma postura crítica diante da realidade social. O próprio modo de
vida burguês, assim, passa a efetivar-se em uma simbiose com aquilo que a
burguesia enquanto classe criticou em sua fase ascendente: o regime de
dependência, o ganho decorrente da simples propriedade (antes, com a renda
da terra, agora com a propriedade dos meios de produção dissociada da função
de supervisão), o trabalho improdutivo colocado na maquinaria estatal e
naqueles que ela orbitam, como os magistrados, os juristas, os padres etc. A
respeitabilidade transcendente dos juristas passa a ser acompanhada de Deus,
família e propriedade.
Aumento dos intermediários, melhor nível de cultura e trabalhador
coletivo: a possibilidade de superação do modo de produção
capitalista a partir das contradições do próprio capitalismo
A questão, assim, passa pelo caráter “senil” da produção burguesa, para
que se use a dicção do livro III de O capital. Ele se apresenta também na
medida em que camadas antes criticadas pela classe burguesa são reabilitadas.
Padres, juristas, assim, passam a fazer parte essencial do modo de vida e da
ideologia burgueses. No entanto, outra face deste processo: o crescimento
do trabalho improdutivo é o resultado também do aumento da produtividade
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do trabalho, e de diversos liames novos que acompanham tal incremento. E,
portanto, Marx não concebe tal cenário de modo romântico, com certa
nostalgia quanto à posição que a burguesia uma vez teria adotado (também em
relação ao jurista). Antes, tem-se o oposto: da natureza senil da produção
capitalista se desenvolveriam potencialidades inerentes à divisão do trabalho
que emerge sob a vigência da grande indústria na produção capitalista, que
é acompanhada pelo anacronismo do domínio burguês.
Um lado destacado é o aumento de intermediários submetidos à
produção capitalista. Há, porém, vários tipos de intermediários se colocando
diante do processo imediato de produção. De acordo com Marx, estes
diferentes tipos aumentam substancial e tendencialmente, tendo-se o
crescimento dos comerciantes e daqueles que lidam de modo muito mais
mediado com a produção:
como os trabalhadores improdutivos políticos. Podia-se admitir que,
excetuados a horda de criados, os soldados, marinheiros, policiais,
funcionários subalternos etc., concubinas, palhaços, malabaristas –
esses trabalhadores improdutivos no conjunto teriam melhor nível
de cultura que os anteriores trabalhadores improdutivos, e
sobretudo que o número de artistas, músicos, advogados, médicos,
homens de letras, professores, inventores etc., mal pagos, teria
também aumentado. No seio da própria classe produtiva acresceram
os intermediários comerciais, e em particular os empregados na
construção de quinas, nas ferrovias, na mineração e escavação;
além disso os trabalhadores que na agricultura se dedicam a criar
gado, produzem materiais químicos, minerais para adubos etc.
(MARX, 1980, p. 199).
Marx critica fortemente a “horda de criados”, que passa a ser vista de
forma acrítica pela burguesia no modo de produção capitalista. O tom de Marx
diante deste tipo de intermediário é bastante negativo e, assim, parece que eles
expressam simplesmente o caráter senil de um modo de produção marcado
pela decadência ideológica da classe burguesa. No entanto, o autor admite que,
mesmo que com suas individualidades subsumidas ao capital (cf. SARTORI,
2018c), também uma parcela de trabalhadores improdutivos que pode ter
um melhor nível de cultura, como é o caso dos professores e dos advogados,
entre outros. E, assim, a crítica de Marx a este grupo de ocupações não é tão
ríspida quanto aquela que tece ao grupo anterior. O autor de O capital aponta
também, em meio a este processo, o crescimento de intermediários na
produção, que acabam por desenvolver “potências intelectuais da produção”
14
14 O processo é dúplice: “as potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um
lado, desaparecem por muitos outros lados. O que os trabalhadores parciais perdem
concentra-se defronte a eles no capital. É um produto da divisão manufatureira do trabalho
opor-lhes as potências intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia
e como poder que os domina. Esse processo de cisão começa na cooperação simples, em que o
capitalista representa diante dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo
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(MARX, 2013, p. 541), o que é trazido mais diretamente no último grupo
apontado, mas que também se relaciona indiretamente com o grupo
intermediário, em que estão os advogados e os professores. Estes últimos,
assim, têm uma posição bastante dúbia: não são uma “horda de criados”, mas
também não têm uma função direta no processo produtivo.
Ocupam uma posição no sistema produtivo e na divisão do trabalho
capitalista, sendo preciso para o nosso tema e para aqueles que pretendem
um estudo marxista do direito ter em conta o lugar dos juristas na
organização da produção, na divisão social do trabalho.
Assim, tem-se um processo dúplice: a subsunção das
individualidades, e das classes ideológicas, ao desenvolvimento do capital. No
entanto, isto se dá com o desenvolvimento de condições que, segundo Marx,
tornam anacrônica a própria dominação burguesa. A unilateralidade marca o
modo de produção capitalista sob este aspecto; “por exemplo, a produção
capitalista é hostil a certos setores de produção intelectual, como a arte e a
poesia” (MARX, 1980, p. 267). Porém, o fato de o trabalho intelectual e o
general intellect (cf. SARTORI, 2019c) relacionar-se intimamente com a
conformação daquilo que Marx chamou de trabalhador coletivo faz que a
ciência passe a ter um papel cada vez maior no desenvolvimento da
produtividade do trabalho. E isto é importante para o que tratamos aqui,
que a ciência desenvolve-se em correlação direta com a atividade produtiva,
como é o caso do último grupo de intermediários tratados por Marx; mas
também tem um impulso essencial advindo de camadas com maior grau
cultural e ligadas somente de modo mediado ao processo imediato de
produção. Músicos, médicos, inventores, advogados, professores, assim,
realizam um trabalho intelectual que, ao mesmo tempo, está subordinado à
produção capitalista, mas tem certa autonomia relativa em relação ao processo
imediato de produção. A posição de tais camadas, tão importantes para a
compreensão da história do século XIX (cf. HOBSBAWM, 2002; 2007), assim,
precisa ser analisada com bastante cuidado, caso se queira realizar um estudo
sério sobre a questão do direito que envolve a compreensão da posição dos
juristas – em Marx.
E, é preciso que se diga: tal questão, ao que saibamos, foi pouquíssimo
estudada pelos marxistas, sendo somente aludida por poucos autores, como
György Lukács (2013).
A ligação de tais camadas à produção é bastante importante no
desenvolvimento do processo global de produção capitalista, tratado, em suas
determinações gerais, por Marx no livro III de O capital. Os inventores, por
social de trabalho. Ele se desenvolve na manufatura, que mutila o trabalhador, fazendo dele
um trabalhador parcial, e se consuma na grande indústria, que separa do trabalho a ciência
como potência autônoma de produção e a obriga a servir ao capital” (MARX, 2013, p. 541).
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exemplo, são essenciais ao próprio incremento das forças produtivas e seu
papel no avanço das ciências é claro. A relação dos professores e da educação
formal, escolar, técnica ou universitária com a formação de uma força de
trabalho mais adequada às necessidades da produção capitalista também é,
mesmo que com nuanças, evidente (cf. SARTORI, 2018d). A posição dos
juristas, porém, é muito menos destacada por Marx, embora, em toda a sua
obra, tenha-se um tom bastante crítico quanto a estes e quanto ao papel do
direito e da visão de mundo jurídica (cf. SARTORI, 2018a). Ou seja, a partir
das Teorias do mais-valor, tem-se que um estudo do direito na obra marxiana
deveria passar pela compreensão da peculiaridade da posição social do jurista
diante da divisão do trabalho. Seria necessário ter em conta, de um lado, a
subordinação das classes ideológicas – no caso, dos juristas, em suas diversas
figuras aos capitalistas e, doutro, a autonomia relativa destas classes diante
do processo imediato de produção.
Há, portanto, muitos aspectos a serem estudados na obra de Marx que
não vêm a ser centrais na maior tradição de estudos marxistas sobre o direito,
aquela que tem como maior expoente Márcio Naves, de orientação
pachukaniana e althusseriana. Aqui não poderemos ir além destas indicações
no que diz respeito a este assunto. No entanto, no que tange ao nosso tema,
devem-se destacar aspectos que não se ligam tanto à posição dos juristas na
divisão do trabalho capitalista, mas à posição de outras camadas, que estão
relacionadas mais diretamente às contradições da produção capitalista, e que
trazem não só elementos de senilidade neste modo de produção, mas também
potencialidades. Ao se ter em conta o que diz Marx nas Teorias do mais-valor,
isto se daria, primeiramente, porque a função do capitalista no
desenvolvimento da produtividade passa a ser cada vez mais distante e
contingente: no que diz respeito às condições de trabalho, tem-se
trabalhadores assalariados realizando o trabalho de supervisão (trabalho este
que, via de regra, exige uma formação mais alongada, que pode ser realizada,
também, em escolas e universidades); no que toca ao desenvolvimento
científico, ele fica a cargo mais diretamente das classes ideológicas, mesmo que
improdutivas, como é o caso de um professor universitário ou de um
pesquisador (ou grupo de pesquisadores) de uma universidade pública. A
proeminência do capitalista no sistema capitalista de produção, assim, deve-
se à sua simples propriedade, e não a qualquer função que exercer na
produção. As funções antes exercidas pela classe burguesa passam a ser
exercidas por outras pessoas, cuja formação e função são possíveis devido
ao processo que mencionamos.
No livro III de O capital aparecem exemplos do que dizemos (cf.
SARTORI, 2019c). Segundo Marx, dentro do próprio capitalismo começam a
aparecer fábricas cooperativas, que expressam tanto a senilidade da produção
burguesa quanto o fato de que esta forma produtiva traz em potência embora
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não em ato a sua própria supressão. As bricas cooperativas decorrem da
formação de um trabalhador coletivo que, sem o controle direto da classe
burguesa, produz social e coletivamente, mesmo que nos limites da produção
capitalista. Justamente da relação dos trabalhadores produtivos com as
potências intelectuais da produção e com o general intellect tem-se o
desenvolvimento das “fábricas cooperativas dos trabalhadores” que, segundo
Marx, “são, dentro da antiga forma, a primeira ruptura da forma antiga,
embora naturalmente, em sua organização real, por toda parte reproduzam e
tenham de reproduzir todos os defeitos do sistema existente” (MARX, 1986, p.
335)
15
. Ou seja, o mesmo processo que gera o caráter acrítico da burguesia
quanto ao trabalho improdutivo traz também, como possibilidade, a
autogestão da produção, a auto-organização dos trabalhadores produtivos.
Mesmo que, na forma das bricas cooperativas, não se tenha uma supressão
do capitalismo, seria possível uma primeira ruptura, com todas as contradições
que daí decorrem, caso não se tenha uma mudança no próprio modo de
produção. Aqui, porém, não podemos tratar deste complexo tema (cf.
SARTORI, 2019c); somente vale destacar o caráter transicional desta forma
social: o trabalho produtivo está, pelo que dissemos, subordinado ao capital.
No entanto, neste caso, isto se dá sem que o capitalista vá exercer uma função
no processo imediato de produção; tem-se uma situação em que “a antítese
entre capital e trabalho dentro das mesmas está abolida”, mas Marx acrescenta
uma importante ressalva: “ainda que inicialmente apenas na forma em que os
trabalhadores, como associação, sejam seus próprios capitalistas, isto é,
apliquem os meios de produção para valorizar seu próprio trabalho” (MARX,
1986, p. 335).
Mesmo que não se supere a forma capitalista de produção ligada ao
processo de valoração do trabalho e do valor –, provam-se dois aspectos
essenciais, que passam pela imbricação entre trabalho intelectual e manual: 1)
a função que a classe burguesa exercia deixa de ser necessária à própria
produção social; 2) a autogestão da produção passa a ser uma possibilidade
real. E, assim, ao mesmo tempo em que, com a reconciliação com camadas
antes criticadas pela burguesia, tem-se um capitalismo senil e a decadência
ideológica, a possibilidade objetiva de superação do modo de produção
capitalista, mesmo que isto seja, nesta situação, dramático (cf. SARTORI,
2019c).
Agora, portanto, podemos destacar: tal processo traz consigo a
indissolubilidade entre trabalho intelectual, classes ideológicas e produção. Tal
ligação se torna mais íntima e pode colocar-se, no exemplo das bricas
cooperativas de trabalhadores, como uma primeira ruptura da forma antiga.
15 Para os meandros da questão das cooperativas, bem como das sociedades por ações, cf.
Sartori (2019c).
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Ou seja, no que diz respeito ao tema de nosso artigo, o processo que Marx trata
nas Teorias do mais-valor é aquele em que s potências intelectuais da
produção são desenvolvidas de modo proeminente. Mas isto envolve um
processo dúplice, em que tal modo de produção se torna senil ao mesmo tempo
em que surgem possibilidades objetivas antes indisponíveis. A classe burguesa
adquire uma posição acrítica quanto a padres, juristas e ao regime de
dependência, antes criticados por ela. Tem-se uma concepção apologética de
trabalho produtivo. Ao mesmo tempo, a autogestão é, mesmo que de modo
limitado, uma realidade. Uma sociabilidade calcada na valorização do valor e,
portanto, no trabalho produtivo traz consigo tais contradições.
No que é importante que nos posicionemos mais claramente quanto ao
modo pelo qual Marx traz à tona, nas Teorias do mais-valor, a defesa burguesa
da produtividade de sua atividade:
A defesa da classe burguesa do trabalho produtivo, de certo modo,
mesmo na fase ascendente desta classe social, tinha curto alcance. O seu
enfoque unilateral na esfera produtiva, compreendida sob os ditames do
capital, fez que a subordinação de todas as atividades à lei do valor fosse o
essencial. Com isso, a ciência poderia se tornar uma força produtiva de
modo contingente, ou seja, enquanto estivesse subordinada à extração do
mais-valor. No entanto, segundo Marx, o desenvolvimento científico não tem
como se subordinar simplesmente à lei do valor.
Diz o autor nas Teorias do mais-valor: “o produto do trabalho
intelectual a ciência está sempre muito abaixo do valor”. E continua: “é que
o tempo de trabalho necessário para reproduzi-la não guarda em absoluto
proporção alguma com o tempo de trabalho requerido pela produção original.
Um colegial, por exemplo, pode aprender em uma hora o teorema do binômio”
(MARX, 1980, p. 339). Ou seja, as forças produtivas, as capacidades humanas
desenvolvidas, na figura da ciência, no solo do modo de produção capitalista
ultrapassam em muito as relações de produção burguesas. O efetivo
desenvolvimento das forças produtivas e a aplicação destas na produção
passam a ser, até certo ponto, incompatíveis; as capacidades humanas trazidas
com o desenvolvimento científico não se realizam na produção capitalista por
não poderem mais se conformar à medida do valor. E, assim, uma tensão
bastante grande: de um lado, a subordinação das potências intelectuais da
produção à unilateralidade da lei do valor, doutro, a possibilidade de liberar
tais potências intelectuais da “prisão” em que estão colocadas pelas relações de
produção capitalistas. Tais tendências estão igualmente presentes nas
contradições da produção capitalista.
Trata-se de uma tensão entre uma produção calcada na valorização do
valor e capacidades humanas que não são mais adequadas a esta medida. Não
se trata, pois, da inefetividade da lei do valor em condições capitalistas de
produção, como quer Negri (2016). O aumento dos intermediários significa,
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assim, que se tem a contraditória socialização da produção que se dá no
capitalismo. Longe de a proeminência de ocupações como professores,
advogados, inventores etc. significar que a análise de Marx está ultrapassada,
pelo que indicamos, tem-se o oposto: o próprio autor de O capital analisou tal
questão, mesmo que este tema não seja o principal de sua obra.
Conclusão: universalização do trabalho produtivo como
socialismo?
Pelo que dissemos, nada passa mais longe de Marx que a defesa da
universalização do trabalho produtivo. Antes, esta forma de atividade seria
inerente ao modo de produção capitalista, sendo o trabalho produtivo aquele
que produz valor e, portanto, reproduz o capital. O autor de O capital, assim,
se é um crítico do modo de produção capitalista, igualmente é um crítico do
trabalho produtivo. Este último se liga a uma forma social em que “a riqueza
das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como
uma ‘imensa coleção de mercadorias’ e a mercadoria individual como sua
forma elementar” (MARX, 1996a, p. 165). Marx, por seu turno, critica a
sociabilidade que tem como mediação universal a mercadoria; ele defende uma
concepção de riqueza em que a medida não é o tempo de trabalho socialmente
necessário, mas o tempo livre. A atividade humana, assim, desenvolver-se-ia,
“junto com a remoção dos antagonismos sociais entre patrões e empregados
etc., assume, como trabalho realmente social e por fim como base do tempo
disponível, caráter de todo diverso”, ou seja, não se trataria mais de trabalho
produtivo, subordinado ao capital e produtor de mais-valor, e isto significaria
uma atividade “mais livre, e que o tempo de trabalho de um ser humano, que
é ao mesmo tempo um ser com tempo disponível, terá de possuir qualidade
superior ao do trabalho da besta de carga” (MARX, 1980, p. 1.306). Nesta
condição, diz o autor nas Teorias do mais-valor: “o tempo livre, o tempo
disponível, é a própria riqueza – quer para fruir o produto, quer para a
atividade livre”, completando: “atividade que não é determinada como o
trabalho pela coerção de um objetivo externo que é mister atingir e cuja
realização é necessidade natural ou dever social, como se queira” (MARX,
1980, p. 1.306).
Tempo livre como medida de riqueza, e não tempo de trabalho
socialmente necessário; atividade livre, portanto, e não trabalho produtivo.
Esta é a posição de Marx.
O processo para que isso fosse possível, no entanto, tem vários
meandros, que vimos acima: 1) o desenvolvimento das forças produtivas
pode ser trazido no capitalismo com a valorização do trabalho produtivo e, com
ele, da produtividade do trabalho; 2) tal missão foi cumprida pelo sistema
capitalista e pela classe burguesa, mas este sistema social começou a entrar em
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contradição consigo mesmo, reabilitando classes contra as quais a burguesia
havia se posicionado anteriormente e, assim, trazendo uma concepção
apologética de trabalho produtivo; 3) tal questão representaria a senilidade do
modo de produção capitalista, o anacronismo do domínio da burguesia como
classe; mas também traria à tona possibilidades inimagináveis anteriormente
e decorrentes do próprio desenvolvimento das contradições deste modo de
produção; com isso, 4) a indissociabilidade entre produção material e
intelectual se coloca, tanto trazendo a subordinação das classes ideológicas aos
capitalistas quanto ao abrir espaço a formas de trabalho que prescindem do
controle burguês e utilizam-se da ciência como potência produtiva, como é o
caso das fábricas cooperativas, mas também de outras figuras que se
apresentam como formas transicionais de produção (c. SARTORI, 2019c); 5) a
ciência, no entanto, traria consigo capacidades humanas que não podem ter
como medida o processo de valorização do valor, de modo que há uma tensão
entre a subordinação das potências intelectuais, e do general intellect em sua
relação com o trabalhador coletivo, ao processo imediato de produção
capitalista, por um lado; por outro, tem-se a possibilidade de, com a autogestão
da produção e com a superação do modo de produção capitalista, ultrapassar
a produção subordinada ao processo de valorização do trabalho e, portanto, do
valor.
Marx, portanto, não possui uma apologia do trabalho produtivo, mas
mostra como a concepção apologética de trabalho produtivo é tanto um
sintoma do anacronismo da dominação burguesa quanto uma abertura para
que as classes produtivas comecem a se organizar contra o sistema capitalista
de produção. Isto seria essencial, embora não suficiente, para a derrocada do
domínio do capital. O ponto de partida da crítica marxiana, assim, passa pela
questão do trabalho produtivo, mas ruma à supressão de todas as classes
sociais (inclusive aquela que, por excelência, aparece no polo oposto da
relação-capital, o proletariado moderno) e do próprio trabalho produtivo. Se
Marx mostra as contradições na posição burguesa quanto ao trabalho
produtivo, passando pela análise da posição dos juristas, por exemplo, isto se
dá em meio à compreensão das contradições do próprio sistema capitalista de
produção. A abertura para um aprofundamento nos estudos da relação entre
Marx e o direito está presente neste ponto, que envolve um tipo de análise que
ainda não foi realizada pela crítica marxista ao direito no Brasil, e que pode ser
bastante importante para a marxologia e para aqueles interessados no
marxismo ou no debate honesto com este.
Tais elementos também são essenciais para que se compreenda a obra
marxiana. No que diz respeito ao direito, eles são trazidos à tona negativa e
positivamente: negativamente porque tal processo que descrevemos tem na
proeminência dos juristas um sintoma de que a classe burguesa já não traz
mais consigo um ímpeto progressista. Positivamente, na medida em que a
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compreensão da posição dos diversos intermediários que surgem no processo
global de produção capitalista, inclusive da posição dos juristas, vem a ser algo
essencial no entendimento do funcionamento das contradições do próprio
modo de produção capitalista. Isto se dá ao passo que a senilidade do
capitalismo envolve certa proeminência e respeitabilidade do jurista (e de
outras camadas) e à medida que, dos meandros da dialética entre trabalho
produtivo e improdutivo, poderia surgir uma forma de sociabilidade que não
se baseia mais no tempo de trabalho socialmente necessário. Antes, haveria
uma forma social de riqueza que se assenta não no trabalho produtivo, mas no
tempo e na atividade livres. Pelo que dissemos, no que toca ao nosso tema, é
disso que se trata o socialismo.
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Como citar:
SARTORI, Vitor. Os juristas nas Teorias do mais-valor de Karl Marx:
produtividade e desenvolvimento capitalista diante da concepção marxiana de
socialismo. Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio
das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 330-52, jan./jun. 2020.
Data do envio: 23 set. 2019
Data do aceite: 10 jun. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.524
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A particularidade da constituição do capitalismo alemão em Marx:
algumas passagens dos anos 1840
Vladmir Luis da Silva
1
Resumo:
Ao longo de sua obra, Karl Marx sempre manifestou preocupação com a
particularidade do capitalismo em cada país. Nosso principal objetivo neste
artigo é o de discutir algumas passagens da teorização marxiana acerca da
constituição do capitalismo na Alemanha. Pretendemos fazer isso por meio da
leitura imanente de alguns textos de Marx.
Palavras-chave: miséria alemã; emancipação política; emancipação
humana; revolução de tipo europeu.
The particularity of the constitution of German capitalism in
Marx: some passages from the 1840s
Abstract:
Throughout his work, Karl Marx has always expressed concern about the
particularity of capitalism in each country. Our main objective in this article is
to discuss some passages of Marx’s treatment of the constitution of capitalism
in Germany. We intend to do this by means of the immanent reading of some
of Marx’s texts.
Keywords: German poverty; political emancipation; human emancipation;
revolution in the European fashion.
Nas discussões que trazemos agora à baila, Karl Marx mostra-se fiel a
uma intenção manifesta em suas primeiras críticas à filosofia de Hegel, a
saber, a de captar a “lógica específica do objeto específico”. Trata-se, no caso
presente, de um esforço constante na obra marxiana, a de apreender os modos
particulares de constituição e desenvolvimento do capitalismo. Ao contrário
do tratamento generalizante que marca grande parte das produções
supostamente inspiradas em sua obra, Marx tinha em mente que “a ‘sociedade
atual’ é a sociedade capitalista, que, em todos os países civilizados, existe mais
1
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). E-mail:
vladmirluis@yahoo.com.br. Revisão ortográfico-gramatical de Vânia Noeli Ferreira de
Assunção.
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ou menos livre dos elementos medievais, mais ou menos modificada pelo
desenvolvimento histórico particular de cada país, mais ou menos
desenvolvida” (MARX, 2012, p. 42). Nosso intuito aqui é o de discutir alguns
momentos (todos situados na década de 1840) do tratamento marxiano
referente à particularidade da constituição do capitalismo alemão, sem a
menor pretensão de oferecer uma análise exaustiva sobre o tema.
I
Os textos que escolhemos para nossa análise são a Introdução à Crítica
da filosofia do direito de Hegel (1843-4), Sobre A questão judaica (1843-4), A
ideologia alemã (1845-6) e alguns artigos da Nova Gazeta Renana (de fins dos
anos 1840). Com exceção desses últimos, os materiais selecionados foram
compostos por Marx (e também por Engels) com vistas à crítica da especulação
de talhe hegeliano e neo-hegeliano. Trata-se, diga-se de passagem, de um
movimento duplo, instaurador do pensamento próprio de Marx nas esferas da
filosofia e da política
2
. No exercício mesmo da crítica filosófica à especulação,
Marx traz já de saída a apreciação igualmente crítica do complexo da política.
Nos escritos da Nova Gazeta Renana, por sua vez, temos a continuação desta
última crítica, mas agora com relativa autonomia em relação ao solo originário
do acerto de contas com a filosofia especulativa. Esta contextualização
acelerada tem em vista apenas explicitar a razão de nosso tema não constituir
o centro das preocupações de Marx nos escritos em questão, especialmente nos
primeiros. O problema da constituição particular do capitalismo alemão,
apesar de ser o momento basilar do tipo de teorização empreendida por Marx,
aparece de modo tímido nos textos iniciais e apenas ganha maior densidade à
medida que o autor foca nas lutas políticas, o que é feito em particular nos
últimos artigos do período em questão. A miséria alemã é o momento
preponderante na determinação de diversas problemáticas tratadas por Marx.
Daí a necessidade de nos dedicarmos a questões aparentemente estranhas ao
tema anunciado.
O primeiro escrito que selecionamos com vistas à discussão de nosso
objeto é a Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843-4). Em
um país onde a crítica da religião foi realizada, Marx considera essa última
“a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou
ainda ou voltou a se perder”. No entanto, como não entende o homem
enquanto ser abstrato, mas sim como o “mundo do homem, o estado, a
sociedade”, apreende-os, na condição de “mundo invertido”, como produtores
2
Seguimos aqui a posição de J. Chasin, autor segundo o qual a práxis teórica propriamente
marxiana é instaurada com a realização de três críticas ontológicas, a partir de meados de
1843, tendo por objeto a filosofia especulativa, a política e a economia (cf. CHASIN, 1995, pp.
345-89).
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da religião, uma “consciência invertida do mundo”. Portanto, o filósofo alemão
capta a inversão no seio das ideias religiosas como produto de um mundo que
está, em si mesmo, invertido, e não como obra de uma consciência autônoma.
Assim, ao enfatizar a miséria religiosa como expressão de uma miséria real,
Marx, ainda nas primeiras páginas de sua introdução, transita para a conclusão
lógica dessa apreensão: sendo a crítica da religião “o germe da crítica do vale
de grimas” e uma tarefa completada em solo alemão, trata-se de
“estabelecer a verdade deste mundo”, transformando “a crítica da religião em
crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política”.
A realização desse empreendimento na Alemanha, não obstante,
implica lidar com uma cópia, a filosofia do estado e do direito. A referência é o
mote para a exposição do atraso reinante no quadro alemão da época. Para
Marx, tratar do status quo alemão é, de qualquer forma, um anacronismo, pois
a negação da situação alemã “é já um fato poeirento no quarto de arrumações
histórico das nações modernas”. Isto é, o filósofo alemão refere-se ao atraso,
em termos da cronologia revolucionária francesa, de um país cuja única
semelhança com os mais modernos é ter participado de todas as suas
restaurações. Na guerra que Marx propõe a essa situação, que pelo seu passado
repetente já foi elucidada pelo vizinho francês, a crítica deve ser a cabeça da
paixão, uma arma cujos sentimento e tarefa devem ser a indignação e a
denúncia. Mas a luta encarniçada proposta contra as condições sociais
petrificadas” na Alemanha não carece de interesse para as nações modernas.
Na avaliação de Marx, seria instrutivo para estas verem algo que em seu
passado o ancien régime desempenhou papel trágico converter-se em
comédia contemporânea. Esse seria o efeito de uma vitória sobre o caráter
limitado dos poderes políticos alemães: proporcionaria a oportunidade de uma
alegre despedida em relação ao passado.
A sequência do texto é contundente na reafirmação do anacronismo
alemão. Nas considerações do autor emerge o fato de que tratar da moderna
realidade social e política”, esfera dos “problemas humanos autênticos”,
implica a visualização do atraso do status quo alemão. Esse é o sentido do
exemplo arrolado: se na França e na Inglaterra o problema se coloca em termos
de economia política ou o domínio da sociedade sobre a riqueza, na
Alemanha apresenta-se deste modo: economia nacional ou o domínio da
propriedade privada sobre a nacionalidade”. Dessa forma, a evidenciação da
modernidade de uns e do atraso de outro é constituída pelo andamento de uma
das questões mais fundamentais da sociedade, a saber, a problemática da
superação da própria sociabilidade do capital (nos polos modernos) e a de sua
vigência plena (no atrasado).
Marx chega ao âmbito de incidência da crítica que nome à introdução
em causa ao atinar para um campo em que os alemães finalmente demonstram
interesse pelos problemas contemporâneos, o do pensamento. Adicionando
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uma faceta nova ao exposto, o autor declara que “Somos [os alemães] os
contemporâneos filosóficos da época atual, sem sermos os seus
contemporâneos históricos”. Tendo em vista que a situação alemã está abaixo
de toda a crítica”, Marx atina aqui para o único ponto em que, na “pré-história”
alemã, parece ser possível atingir os problemas da época atual, a crítica das
oeuvres posthumes” de sua história ideal, “a filosofia”. É deste raciocínio que
advém a conclusão que aponta os termos em que os problemas se colocam em
cada país: “O que para as nações avançadas constitui uma ruptura prática em
relação às modernas condições políticas é, na Alemanha, onde tais condições
ainda não existem, virtualmente um corte Crítico em relação à sua reflexão
filosófica.” (MARX, 2005, p. 150)
Pautado na consciência dessas condicionantes, Marx assinala o teor
irrestrito do futuro almejado. Não se deve parar no limite da “facção política
prática abolir a filosofia sem a realizar –, nem tampouco da “facção
teóricaoriginada na filosofia realizar a filosofia sem a abolir”. O horizonte
é clarificado pela especificação da natureza dupla do problema: se, por um
lado, a filosofia especulativa do direito é uma sublimação ideal própria da
realidade alemã, por outro, o fato de não tomar em conta o “homem real”
decorre da abstração que o próprio estado moderno realiza em relação a este
mesmo homem. A advertência das correspondências entre o status quo
político alemão e a consumação do ancien régime, e entre a ciência política
alemã e a imperfeição própria do estado moderno, eleva a crítica proposta por
Marx aos níveis exigidos pela realidade: declarada inimiga da forma de
consciência política alemã, sua crítica se orienta “em tarefas que só podem ser
resolvidas por um meio: a atividade prática”. Em outros termos, Marx expõe
os delineamentos de uma “revolução” que eleva a Alemanha “não só ao nível
oficial das nações modernas, mas ao nível humano, que será o futuro imediato
das referidas nações” (MARX, 2005, p. 151).
A propositura da passagem de uma realidade de “caráter unilateral e
atrofiado” ao futuro imediato das nações modernas leva, imediatamente, o
autor a sumariar suas possibilidades. Do lado positivo, elenca a crítica da
religião, que dá força à doutrina de acordo com a qual o homem é o ser
supremo para o homem, e a “emancipação teórica” representada pela Reforma,
processo que transformou a luta externa entre leigo e padre em conflito entre
o leigo e sua própria “natureza sacerdotal”. Mas é no tocante às dificuldades
para a realização da “revolução radicalque encontramos o problema que nos
interessa mais de perto: o hiato entre as necessidades teóricas e práticas do
povo alemão (cf. MARX, 2005, p. 152, § 5º). Isto é, a profunda diferença entre
um país que passou por uma “emancipação teórica” e os que passaram pela
“emancipação política”. Esse é o tom do lamento marxiano:
a Alemanha não atravessou os estágios intermediários da
emancipação política ao mesmo tempo em que os povos modernos.
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Não atingiu ainda na prática os estágios que ultrapassou na teoria.
Como poderia a Alemanha, em salto mortale, superar não as
próprias barreiras mas também as das nações modernas, isto é, as
barreiras que na realidade tem de experimentar e atingir como uma
emancipação das suas próprias barreiras reais? (MARX, 2005, p.
152).
A situação particular da Alemanha a coloca, no entanto, em uma
condição curiosa quanto à relação entre “emancipação política” e “revolução
radical”. Sem tomar parte nas “satisfações parciais” proporcionadas pelo
desenvolvimento das nações modernas, participa em grande medida das
“dores” envolvidas nesse mesmo desenvolvimento. Assim, é compelida a
experimentar uma combinação sem igual do antigo e do moderno, descrita por
Marx da seguinte maneira:
Se examinarmos agora os governos alemães, veremos que, devido às
condições da época, a situação da Alemanha, o ponto de vista da
cultura alemã e, por último, seu próprio instinto afortunado, tudo os
impele a combinar as deficiências civilizadas do mundo político
moderno (de cujas vantagens não desfrutamos) com as deficiências
bárbaras do ancien régime (de que fruímos na quantidade devida);
assim, a Alemanha tem de participar cada vez mais, se não na
sensatez, pelo menos na insensatez dos sistemas políticos que
ultrapassam o seu status quo. (MARX, 2005, p. 153)
A partir dessa visualização da Alemanha enquanto “deficiência da atual
política constituída em sistema”, Marx assinala sua incapacidade de “demolir
as barreiras alemãs específicas sem demolir as barreiras gerais da política
atual”. Isto é, seu objetivo deve ser o da “revolução radical, a emancipação
humana universal”, e não a “revolução parcial, meramente política, que deixa
de os pilares do edifício” (MARX, 2005, pp. 153-4)
3
. A coincidência entre “a
revolução de um povo e a emancipação de uma classe particular”, condição
essencial da emancipação política, carece dos dois lados de uma mesma
moeda, quais sejam, que um estamento seja reconhecido como libertador por
excelência e que outro se revele como o estamento da opressão (cf. MARX,
2005, p. 154). Quanto a isso, vejamos o diagnóstico de Marx:
na Alemanha, todas as classes carecem da lógica, do rigor, da
coragem e da intransigência que delas fariam o representante
negativo da sociedade. Mais: falta ainda em todos os estamentos a
grandeza de alma que, por um momento apenas, os identificaria com
a alma popular, a genialidade que instiga a força material ao poder
político, a audácia revolucionária que arremessa ao adversário a
frase provocadora: nada sou e serei tudo. A essência da moralidade
e da honra alemãs, tanto nas classes como nos indivíduos, é um
egoísmo modesto que ostenta, e permite que os outros exibam, a sua
própria mesquinhez. A relação entre as diferentes esferas da
sociedade alemã não é, portanto, dramática, mas épica. Cada uma
3
Como fica claro em Sobre A questão judaica, ao falar dos pilares do edifício político Marx
refere-se aos pressupostos do estado moderno, a religião, a propriedade privada etc.
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destas esferas começa por saber de si e por estabelecer-se ao lado
das outras o a partir do momento em que é oprimida, mas desde
o momento em que as condições da época, sem qualquer ação de sua
parte, originam uma nova esfera que ela por sua vez pode oprimir
(MARX, 2005, p. 154).
Sendo esse o tipo de relacionamento estabelecido entre as classes, em
vez do quadro necessário à emancipação política, tem-se uma situação na qual
“os príncipes encontram-se em conflito com o monarca, a burocracia com a
nobreza, a burguesia com todos eles, enquanto o proletariado está
principiando a luta com a burguesia” (MARX, 2005, p. 155). Após findar a
exposição dessa impossibilidade com uma comparação com o caso francês,
Marx aponta para a “possibilidade positiva” da emancipação:
Na formação de uma classe que tenha cadeias radicais, de uma
classe na sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil,
de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, de
uma esfera que possua caráter universal porque os seus sofrimentos
são universais e que não exige uma reparação particular porque o
mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral,
que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título
humano; de uma esfera que não se oponha a consequências
particulares, mas se oponha totalmente aos pressupostos do sistema
político alemão; por fim, de uma esfera que não pode emancipar-se
a si mesma nem se emancipar de todas as outras esferas da
sociedade sem emancipá-las todas – o que é, em suma, a perda total
da humanidade, portanto, pode redimir-se a si mesma por uma
redenção total do homem. A dissolução da sociedade, como classe
particular, é o proletariado. (MARX, 2005, pp. 155-6)
A revelação do agente da revolução radical, no entanto, apenas se
completa quando Marx especifica uma conjunção necessária: se o proletariado
é o coração da revolução, a filosofia é sua cabeça. Durante a luta, ambos passam
por um processo de mútua superação e realização.
II
Em Sobre A questão judaica (1843-4), Marx resvala em nosso problema
ao contrapor-se à posição de Bruno Bauer acerca do problema exposto no
título do texto: a afirmação da incompatibilidade entre estado político e
religião. Na perspectiva de Bauer, a permanecerem as diferenças religiosas
entre judeu e estado cristão, o primeiro será incapaz de receber a emancipação,
e o segundo, de outorgá-la. De acordo com Marx, Bauer pensa ver o problema
de modo universal, independente das condições especificamente alemãs
(carência de emancipação política e o caráter cristão do estado). Bauer quer
uma solução baseada na questão geral das relações entre religião e estado e
sugere uma superação religiosa total, que deixaria para a ciência a tarefa de
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dirimir as possíveis divergências entre os indivíduos. Ou seja, sua proposta é
uma supressão dúplice, cujos arrimos são as suposições de que: para ser
emancipado como cidadão, o judeu deve abdicar do judaísmo e o homem em
geral da religião e, por outro lado, a “superação política” da religião equivale à
“superação de toda religião” (cf. MARX, 2010, pp. 33-6).
Para Marx, Bauer não coloca a questão em termos adequados. Deve-se
indagar pelo tipo de emancipação proposta e pelas condições que ela requer.
Em cada tipo de estado a questão judaica assume uma significação distinta. Na
Alemanha, dada a ausência de “estado político”, a questão assume conotação
meramente teológica, já na França, um país de “estado constitucional”, é uma
questão de constitucionalismo, de parcialidade da emancipação política”.
Somente nos estados livres da América do Norte é que a questão judaica
assume sua “forma secular”, pois o “estado político existe em sua forma
plenamente desenvolvida”, o qual se porta diante da religião do modo mais
apropriado, isto é, politicamente”. No entanto, Marx mostra que esta
emancipação política da religião não a exclui da vida dos indivíduos nos
estados políticos, apenas emancipa o estado da “religião do estado”, banindo
a religião para o âmbito privado. Para o autor, se essa emancipação política
em relação à religião” não é radical e isenta de contradições, isto se deve ao
fato de a própria “emancipação política” o ser ainda “o modo efetuado,
isento de contradições, da emancipação humana” (MARX, 2010, pp. 37-8).
Para os indivíduos que formam o estado, a libertação em relação à
religião se de modo mediado, pois permanecem sujeitos às cadeias
religiosas e somente por meio do estado é que se libertam, ou seja, de “maneira
abstrata e limitada”. Da mesma maneira que a abolição política da
propriedade privada não a abole, mas permite que essa faça valer sua natureza
especial, possibilitando à riqueza, à cultura e à ocupação atuarem a seu modo,
a “elevação política do homem acima da religião partilha das limitações e
vantagens da ascensão política em geral. Traçando o resultado geral da
emancipação política, Marx assevera que:
O estado político pleno constitui, por sua essência, a vida do gênero
humano em oposição à sua vida material. Todos os pressupostos
dessa vida egoísta continuam subsistindo fora da esfera estatal na
sociedade burguesa, só que como qualidades da sociedade burguesa.
Onde o estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o
homem leva uma vida dupla não mentalmente, na consciência,
mas também na realidade, na vida concreta; ele leva uma vida
celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual
ele se considera um ente comunitário, e a vida na sociedade
burguesa, na qual ele atua como pessoa particular, encara as demais
pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de meio e se
torna um joguete na mão de poderes estranhos a ele. (MARX, 2010,
p. 40)
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Dada a gravidade do que expõe, o filósofo alemão se apressa em fazer
certas advertências. Em primeiro lugar, trata-se de esclarecer, acerca da
emancipação política, que “não chega a ser a forma definitiva da emancipação
humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana
dentro da ordem mundial vigente até aqui” (MARX, 2010, p. 41). Já a segunda
observação dá conta de que a dualidade na qual se dissolve o homem, a saber,
no homem religioso e no cidadão, não se refere a uma debilidade ou defeito da
cidadania, mas constitui a verdade da emancipação política
4
.
Diante dessas distinções, as quais estabelecem o “estado completo
como aquele em que a religião é um de seus “pressupostos” e o “estado
incompleto (estado cristão) enquanto figura que tem na religião seu
fundamento o primeiro em decorrência da imperfeição congênita da
emancipação política, e o segundo, da deficiência acarretada por sua
existência particular–, Marx constata a contradição constituída pelo estado
germânico-cristão. Nesse, não só as formas de estado, mas a própria religião é
degradada a mera aparência. Ao professar uma religião, o estado impede, além
de sua própria secularização, a realização efetiva da religião, visto que o
“estágio de desenvolvimento do espírito humano”, que essa expressa em forma
não-secular, não se destaca ou seculariza. Os membros do estado cristão não
alcançam aquela condição de religiosos pelo dualismo constituído pelo
contraste entre a vida genérica e a vida individual, resultado da emancipação
política. Em suma, se à democracia política, resultado de um dado grau de
desenvolvimento do espírito humano, corresponde a religião como consciência
ideal de seus membros, no estado cristão temos uma religião não realizada,
pois, ao não se desligar dos fins terrenos, não adquire seu sentido mais
teológico
5
.
4
De acordo com o autor, a configuração dupla é verificável mesmo nos casos mais radicais:
“nos períodos, em que o estado político é gerado por meio da violência como estado político a
partir da sociedade burguesa, em que a autolibertação humana procura realizar-se sob a forma
da autolibertação política, o estado pode e deve avançar a a abolição da religião, até a
destruição da religião; porém, somente na medida em que avance até a abolição da
propriedade privada, até o maximum, até o confisco, a taxação progressiva, em que avance até
a abolição da vida, até a guilhotina. Nos momentos em que está particularmente
autoconfiante, a vida política procura esmagar seu pressuposto, a sociedade burguesa e seus
elementos, e constituir-se como a vida real e sem contradição do gênero humano. No entanto,
ela só consegue fazer isso caindo em contradição violenta com suas próprias precondições de
vida, ou seja, declarando a revolução como permanente, e, em consequência disso, o drama
político termina tão necessariamente com a restauração da religião, da propriedade privada,
de todos os elementos da sociedade burguesa, quanto a guerra termina com a paz” (MARX,
2010, p. 42).
5
Nesse sentido, Marx declara que, “na democracia plenamente realizada, a própria consciência
religiosa e teológica se considera tanto mais religiosa, tanto mais teológica, quanto mais
aparenta ser destituída de relevância política, de propósitos terrenos, quanto mais aparenta
ser um assunto do espírito avesso ao mundo, expressão da mentalidade estreita, produto da
arbitrariedade e da fantasia, quanto mais for uma vida realmente transcendente” (MARX,
2010, p. 45).
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Dessa forma, ao esmiuçar a categoria da emancipação política, uma
meia solução em relação à emancipação humana”, Marx desfaz a ligação
baueriana entre a reivindicação da cidadania e a abolição da religião. Por essa
razão, a parte dos direitos humanos constituída pelos direitos políticos
(portanto, os direitos do cidadão), que Bauer declara impossíveis de obtenção
por parte do judeu, é entendia por Marx, sem mais, como compatíveis com a
religiosidade (cf. MARX, 2010, p. 47). Quanto à parte dos direitos humanos
atinente aos direitos do homem (igualdade, liberdade, segurança e
propriedade), distintos dos do cidadão pelo fato de se referirem ao “homem
egoísta”, dissociado do homem e da comunidade”, Marx, analisando as
constituições da França e dos estados norte-americanos da Pensilvânia e de
New Hampshire, afirma: “muito longe de conceberem o homem como um ente
genérico, esses direitos deixam transparecer a vida do gênero, a sociedade,
antes como uma moldura exterior ao indivíduo, como limitação de sua
autonomia original” (MARX, 2010, p. 50). Dessa forma, é rechaçado o
argumento baueriano da incompatibilidade entre a essência desagregadora do
judeu e os direitos humanos, haja vista que estes últimos não se pautam na
união dos indivíduos uns com os outros. Marx observa, ainda, que mesmo a
esfera da cidadania é declarada pelos emancipadores políticos como mera
garantia dos direitos do homem egoísta, isto é, dos direitos do homem. Em
seus termos, até mesmo nos momentos do seu entusiasmo juvenil levado ao
extremo pela pressão das circunstâncias, a vida política se declara como um
simples meio, cujo fim é a vida da sociedade burguesa” (MARX, 2010, p. 51).
Essa inversão, de acordo com o autor, advém da própria emancipação política
que, ao unificar o espírito político disperso na sociabilidade feudal e depurá-lo
“da sua mistura da vida burguesa”, não consagra o “idealismo do estado”,
mas também realiza plenamente o “materialismo da sociedade burguesa”.
Mais à frente, especifica:
A revolução política decompõe a vida burguesa em seus
componentes sem revolucionar esses mesmos componentes nem
submetê-los à crítica. Ela encara a sociedade burguesa, o mundo das
necessidades, do trabalho, dos interesses privados, do direito
privado, como o fundamento de sua subsistência, como um
pressuposto sem qualquer fundamentação adicional, e, em
consequência, como sua base natural. Por fim, o homem na
qualidade de membro da sociedade burguesa é o que vale como o
homem propriamente dito, como o homme em distinção ao citoyen,
porque ele é o homem que está mais próximo de sua existência
sensível individual, ao passo que o homem político constitui apenas
o homem abstraído, artificial, o homem como pessoa alegórica,
moral. (MARX, 2010, p. 53)
A apoteose da denúncia dos limites da emancipação política e da vida
política por ela configurada é atingida com a exposição de uma emancipação
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que eleva a um patamar verdadeiramente humano-social, portanto, um passo
metapolítico, ou seja, a emancipação humana:
a emancipação humana estará plenamente realizada quando o
homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e
se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua
vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações
individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas
forces propres [forças próprias] como forças sociais e, em
consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma
da força política (MARX, 2010, p. 54).
Ao passar ao tratamento da possibilidade da liberdade para cristãos e
judeus, isto é, ao tratar da superação das cadeias religiosas, Marx intenta
romper a “formulação teológica da questão”, na qual Bauer propunha uma
dupla tarefa aos judeus: romper não só com o judaísmo, mas também com seu
desenvolvimento, o cristianismo. Dessa forma, trata-se, para Marx, de
encontrar o “elemento social específico” cuja dissolução leve à dissipação da
religião judaica. O diagnóstico é veloz e contundente: “qual é o fundamento
secular do judaísmo? A necessidade prática, o interesse próprio”. Diante da
nova formulação da questão, a solução torna-se clara: “a emancipação em
relação ao negócio e ao dinheiro, portanto, em relação ao judaísmo prático,
real, seria a autoemancipação de nossa época” (MARX, 2010, pp. 55-6).
A proposta marxiana, ao contrário da baueriana, busca não a superação
do problema por meio da dissolução de suas manifestações religiosas, mas sim
a partir de suas razões materiais de existência. Após ter esclarecido que a
contraposição entre homem religioso e cidadão não passa de uma das
manifestações da separação entre vida genérica e vida individual-sensível,
divórcio característico da emancipação política, Marx insiste no passo
definitivo para além daquele dualismo, a emancipação humana. Trata-se,
agora, de fazer o que a emancipação política não havia feito, a saber, a crítica
das premissas da sociedade civil. Esse é o sentido das seguintes
considerações:
Uma organização da sociedade que superasse os pressupostos do
negócio, portanto, a possibilidade do negócio, teria inviabilizado o
judeu. Sua consciência religiosa se dissiparia como uma névoa
insossa na atmosfera da vida real da sociedade. Em contrapartida,
quando o judeu reconhece que essa sua essência prática é nula e
coopera para sua superação, está cooperando, a partir de seu
desenvolvimento até o presente, para a emancipação humana pura
e simples e se voltando contra a suprema expressão prática da
autoalienação humana. (MARX, 2010, p. 56)
O patamar superior dessa resolução torna-se evidente em relação à
velha emancipação “à maneira judaica”, isto é, ao modo como os judeus
haviam obtido sua emancipação, através da apropriação do dinheiro e da
conversão deste em potência universal. A superioridade daquela solução frente
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a esta fica clara quando Marx assinala que “a emancipação social do judeu
equivale à emancipação da sociedade em relação ao judaísmo” (MARX, 2010,
p. 60). Em síntese, significa o fim de uma dada sociedade, pois, se a
sociabilidade burguesa é aquela na qual se dá a realização da essência real do
judeu, somente a superação do judaísmo prático, a supressão do conflito entre
a existência individual-sensível e a existência genérica do homem, roubará ao
judaísmo sua base subjetiva, a necessidade prática.
Quanto à nossa questão de fundo, Marx vislumbra com nitidez qual a
dimensão e a natureza da incompletude alemã. Reconhecendo o primado da
sociedade civil sobre as formas de estado, o autor apreende, em contraste com
os casos dos estados norte-americanos e francês, uma obra irrealizada, um
estado cristão, prova da ausência da emancipação política na Alemanha. Em
outros termos, a distinção marxiana entre os estados modernos e o quadro de
atraso alemão tem seu prisma na prática da emancipação política, a qual
sinaliza patamares mais elevados de civilização.
Frise-se aqui que a razão da irrealização alemã não é localizada por
Marx na impotência meramente volitiva dos segmentos sociais que poderiam
encarnar o novo, mas em uma processualidade histórica e objetiva, a qual não
engendrou os elementos possibilitadores de uma atuação política consequente
no sentido da constituição de uma sociabilidade estruturada pelo capitalismo
verdadeiro.
III
Em A ideologia alemã (1845-6) encontramos uma reafirmação, desta
vez mais esmiuçada, das posições esboçadas nos dois textos vistos
anteriormente. Desta forma, Marx e Engels asseveram que sua concepção
consiste
em desenvolver o processo real de produção a partir da produção
material da vida imediata e em conceber a forma de intercâmbio
conectada a esse modo de produção e por ele engendrada, quer
dizer, a sociedade civil em seus diferentes estágios, como o
fundamento de toda a história, tanto a apresentando em sua ação
como estado como explicando a partir dela o conjunto das diferentes
criações teóricas e formas da consciência – religião, filosofia, moral
etc. etc. e em seguir o seu processo de nascimento a partir dessas
criações, o que então torna possível, naturalmente, que a coisa seja
apresentada em sua totalidade (assim como a ação recíproca entre
esses diferentes momentos) (MARX; ENGELS, 2007, p. 42).
Temos, portanto, a reafirmação da sociedade civil enquanto esfera
determinante dos demais âmbitos da existência societária, única compreensão
capaz de articular a captura conceitual da “totalidade”. A esse registro o falta
a percepção de sua própria novidade, pois somos lembrados, na sequência, de
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que “toda concepção histórica existente até então ou tem deixado
completamente desconsiderada essa base real da história, ou a tem
considerado apenas como algo acessório, fora de toda e qualquer conexão com
o fluxo histórico” (MARX; ENGELS, 2007, p. 43).
no prólogo desse manuscrito, os autores nos apresentam seus
antagonistas jovens-hegelianos como defensores de uma “batalha com as
sombras da realidade”, isto é, como pensadores que creem no domínio das
representações humanas sobre os próprios homens e, portanto, na luta contra
tais representações como a condição de sua liberdade. Diante desse tipo de
adversário, a tarefa consiste em mostrar que suas proposições não passam de
balidos filosóficos das representações dos burgueses alemães e, ainda, que suas
bravatas constituem o reflexo da “miséria da real situação alemã” (MARX;
ENGELS, 2007, p. 523). Trata-se, em suma, de empreitada consequente com
os resultados atingidos até então, haja vista que o afamado “acerto de contas”
com suas posições anteriores, atinentes ao primado da consciência sobre o ser,
é nucleado pela percepção de que as manifestações ideais encontram sua razão
de ser na base material da existência humana, conquista teórica que seria
reafirmada nas quarta e oitava teses Ad Feuerbach (cf. MARX; ENGELS, 2007,
p. 534).
Para falar em termos mais precisos, este é um dos momentos centrais
da apreensão da determinação social do pensamento” (CHASIN). Se os
jovens-hegelianos jamais se questionaram “sobre a conexão entre a filosofia
alemã e a realidade alemã, sobre a conexão de sua crítica com seu próprio meio
material” (MARX; ENGELS, 2007, p. 84), Marx e Engels, ao afirmarem o
vínculo entre “a estrutura social e política e a produção”, concluem que
os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias
e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como o
condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças
produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às
suas formações mais desenvolvidas (MARX; ENGELS, 2007, p. 94).
Isto é, os autores atinam aqui para a determinação da consciência pelo
ser, ou ainda, apreendem a consciência, antes entendida como demiurgo do
real, enquanto “expressão consciente” das relações e atividades humanas. Em
consequência de essa consciência ser produto de indivíduos condicionados por
um determinado desenvolvimento de sua própria história, segue a advertência:
Se a expressão consciente das relações efetivas desses indivíduos é
ilusória, se em suas representações põem a sua realidade de cabeça
para baixo, isto é consequência de seu modo limitado de atividade
material e das suas relações sociais limitadas que daí derivam.
(MARX; ENGELS, 2007, p. 93)
Em oposição à filosofia especulativa alemã, a qual Marx e Engels
acusam de colocar as questões e relações reais de ponta-cabeça, os autores
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expõem os pressupostos da existência humana, apontando três aspectos da
história: a produção da vida material por parte dos homens, a produção de
novas necessidades no interior desse mesmo processo e, por fim, a procriação
(família). A consideração desses aspectos leva Marx e Engels a assinalarem que
a produção da vida se como relação dupla: natural (dos homens com a
natureza) e social (dos homens entre si). É na apreciação desse último
momento, no entanto, que os filósofos alemães apontam a raiz da inversão
praticada pela filosofia especulativa, pois, em consequência de o grau de
desenvolvimento das forças produtivas em cada momento condicionar o
estado social ou a forma de cooperação, os autores colocam a necessidade de a
“história da humanidade (...) ser estudada e elaborada sempre em conexão
com a história da indústria e das trocas”. Na esteira dessa apreciação,
observam, porém, que
na Alemanha é impossível escrever tal história, pois aos alemães
faltam o apenas a capacidade de concepção e o material, como
também a “certeza sensível”, e do outro lado do Reno não se pode
obter experiência alguma sobre essas coisas, pois ali o ocorre
mais nenhuma história (MARX; ENGELS, 2007, p. 34).
Os autores apontam na realidade alemã, ainda de modo genérico, a
ausência de um fator fundamental à apreciação da história efetiva da
humanidade, as formas até então mais avançadas de existência humana. Trata-
se, em seus termos, de uma “falta de desenvolvimento histórico”, ou ainda, de
um “desenvolvimento histórico trivial”, ao qual correspondem as “trivialidades
glorificadas e ineficazes” da filosofia especulativa. Como fica claro, estamos
diante da “importância da fraseologia para a Alemanha”. Daí o caráter local de
sua refutação, isto é, daí esta não trazer “resultados novos para a massa de
homens mais do que a luta da civilização contra a barbárie” (MARX; ENGELS,
2007, pp. 29-30). Em outro momento do texto, os filósofos colocam a questão
de modo ainda mais claro para a captação do ponto que mais nos interessa.
Atinando para a origem das qualidades ou paixões humanas que, segundo
Marx e Engels, constitui ponto intocado pela tematização de Max Stirner, os
autores apontam para suas condicionantes materiais: em sua concepção, a
paixão
não reside na consciência, mas no Ser; não no pensar, mas na vida;
ela reside no desenvolvimento empírico e na manifestação vital do
indivíduo, que, por sua vez, depende das condições do mundo.
Quando as circunstâncias sob as quais vive esse indivíduo lhe
permitem o desenvolvimento [uni]lateral de uma quali[dad]e às
custas de todas as demais, [se] elas lhe proporcionam material e
tempo para desenvolver só Uma qualidade, então esse indivíduo
logra apenas um desenvolvimento unilateral, aleijado. Não
pregação moral que ajude. E o modo como se desenvolve essa
qualidade preferencialmente favorecida depende, por sua vez, de um
lado, do material de formação que lhe é oferecido, de outro lado do
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grau e do modo como as demais qualidades permanecem reprimidas
(MARX; ENGELS, 2007, p. 257).
Na sequência, expõem um exemplo extremamente provocativo a
Stirner, que toca de relance em nossa problemática básica, pois delineia com
clareza a unilateralidade de uma qualidade (no caso, o pensar) em sua relação
com a unilateralidade ou estreiteza do entorno:
no caso de um mestre-escola ou escritor berlinense localista, cuja
atividade se restringe, de um lado, ao árduo trabalho e, do outro, ao
prazer de pensar, cujo mundo vai de Moabit a Köpenick e é
demarcado com pranchas de madeira atrás do Portão de Hamburgo,
cujas relações com esse mundo foram reduzidas ao mínimo por uma
condição de vida miserável – se se tratar de tal indivíduo, não há (...)
como evitar que, caso ele tenha alguma necessidade de pensar, que
esse pensar se torne o abstrato quanto tal indivíduo e sua vida
mesma, que esse pensar se torne um poder fixo confrontado com
esse indivíduo totalmente incapaz de oferecer resistência, um poder
cujo exercício oferece ao indivíduo uma possibilidade de salvação
momentânea de seu “mundo mau”, um prazer momentâneo
(MARX; ENGELS, 2007, pp. 257-8).
O arremate dessa assertiva é claro e inconteste:
O que torna possível ao indivíduo, sob condições favoráveis, livrar-
se de sua tacanhice localista (...) é (...) o fato de os indivíduos, (...) na
sua realidade empírica e determinados pelas suas necessidades
empíricas, terem chegado ao ponto de produzir um intercâmbio
mundial. (MARX; ENGELS, 2007, p. 258)
Sendo assim, uma vez percebido o laço condicionante entre formações
ideais e configurações societárias, Marx e Engels empreendem a crítica a seus
antagonistas a partir das condições sociais de suas representações e, em
virtude disso, de “um ponto de vista situado fora da Alemanha”, a fim de não
se verem enredados nos limites de “uma situação social miserável(MARX;
ENGELS, 2007, pp. 86; 529).
De acordo com a nova posição instaurada, segundo a qual “todas as
colisões na história têm sua origem na contradição entre as forças produtivas
e a forma de intercâmbio”, a Alemanha ocupa um patamar de caráter bastante
particular no tocante às contradições entre ideal e real. Ao referirem ao
momento de configuração das condições de autoafirmação exacerbada da
consciência, ou seja, quando da separação entre trabalho material e espiritual,
os autores observam que a referida contradição entre “relações sociais” e
“forças de produção” pode assumir também a forma de uma contradição entre
a consciência nacional de um país “e a práxis de outras nações, quer dizer,
entre a consciência nacional e a consciência universal de uma nação (tal como,
agora, na Alemanha)” (MARX; ENGELS, 2007, pp. 36; 61). Trata-se, portanto,
de uma oposição ainda incipiente das forças sociais modernas no âmbito
nacional alemão, quadro cujos combates ideais constituem na verdade
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reverberações de vizinhos com configuração mais avançada. É o que se pode
depreender do seguinte apontamento, feito em outro momento do texto em
discussão:
Aliás, não é necessário que essa contradição [entre forças produtivas
e a forma de intercâmbio], para gerar colisões num país, tenha de
chegar ao seu extremo nesse mesmo país. A concorrência com países
industrialmente mais desenvolvidos, provocada pela expansão do
intercâmbio internacional, é o bastante para engendrar uma
contradição similar também nos países com indústria menos
desenvolvida (por exemplo, o proletariado latente na Alemanha,
revelado devido à concorrência da indústria inglesa). (MARX;
ENGELS, 2007, pp. 61-2 – acréscimos meus)
Outro momento de constatação de atraso é quando os autores tratam da
conquista do estado por parte da burguesia. De modo geral, a elevação desta
de estamento” à qualidade de classe” leva à dupla necessidade de uma
organização política em âmbito nacional e de “dar a seu interesse dio uma
forma geral”. Nos termos de Marx e Engels, “a emancipação da propriedade
privada em relação à comunidade” conduz o estado à condição de existência
particular ao lado e fora da sociedade civil”, de modo que esse estado constitui
efetivamente a forma necessária ao agente dominante na sociedade civil.
Observando as possibilidades de manifestação dessa questão no cenário
contemporâneo, os autores chegam ao ponto no qual a situação alemã
apresenta o núcleo de suas mazelas:
A autonomia do estado tem lugar atualmente apenas naqueles
países onde os estamentos não se desenvolveram completamente até
se tornarem classes, onde os estamentos eliminados nos países
mais avançados ainda exercem algum papel e onde existe uma
mistura; daí que, nestes países, nenhuma parcela da população pode
chegar à dominação sobre as outras. (MARX; ENGELS, 2007, p. 75)
Em vez de instrumento privilegiado da dominação burguesa, o estado
se estrutura como momento com autonomia exacerbada. Para não dar margem
a dúvidas, a conclusão do raciocínio conta de que esse caso, no qual os
agentes não foram elevados de modo completo à condição de classe e no qual
os personagens mais antigos permanecem misturados aos mais modernos, “é
especialmente o caso da Alemanha”. Em contraste com essa formação social
permeada por atrasos, temos a afirmação de que “o exemplo mais acabado do
estado moderno é a América do Norte” (MARX; ENGELS, 2007, p. 75). Quanto
a este exemplo, contrastante com o cenário miserável da Alemanha, convém
expor com mais detalhes o que dizem os autores, pois observam nele vantagens
mesmo em relação aos atores mais modernos do cenário europeu. Marx e
Engels descrevem duas formas de desenvolvimento: na primeira, que ocorre
de modo natural e lento, “as fases e [os diversos] interesses jamais são
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plenamente ultrapassados, mas apenas subordinados ao interesse vencedor, e
arrastam-se ao lado deste durante séculos”. Nessa modalidade,
um interesse anterior, cuja forma de intercâmbio peculiar já foi
suplantada por outra forma correspondente a um interesse ulterior,
mantém-se ainda por longo tempo de posse de um poder tradicional
na sociedade aparente e autônoma em relação aos indivíduos
(estado, direito), um poder que, em última instância, se pode
quebrar por uma revolução.
Quanto à segunda, os termos são bastante distintos:
Ao contrário, em países que, tal como a América do Norte, partem
desde o início de um período histórico avançado, esse
desenvolvimento ocorre muito rapidamente. Tais países o m
quaisquer outros pressupostos naturais além dos indivíduos, que lá
se instalaram movidos pelas formas de intercâmbio dos velhos
países, que não correspondiam às suas necessidades. Eles
começam, portanto, com os indivíduos mais avançados dos velhos
países e, por isso, com a forma de intercâmbio mais desenvolvida
correspondente a esses indivíduos, antes mesmo que essa forma de
intercâmbio tenha podido impor-se nos países velhos. (MARX;
ENGELS, 2007, p. 69)
Mais à frente, acrescentam, referindo-se às colônias de um modo geral
e também aos casos de conquista
6
, que se em sua pátria essa forma ainda
estava repleta de interesses e relações de épocas anteriores, aqui ela pode e
deve implantar-se totalmente e sem obstáculos, nem que seja para assegurar
um poder estável aos conquistadores” (MARX; ENGELS, 2007, p. 69). Trata-
se, desse modo, de uma forma de desenvolvimento que, por pautar-se pelo que
de mais atual no velho mundo, encontra-se livre das forças e influências
feudais.
O momento de tematização mais densa da problemática que nos ocupa
é aquele no qual os autores se ocupam do liberalismo alemão, ocasião na qual
empreendem uma história da burguesia alemã. Apontando na Crítica da razão
prática de Kant o reflexo da Alemanha de fins do século XVIII, Marx e Engels
contrapõem o poderio demonstrado pelas burguesias francesa e inglesa a
primeira ao realizar uma revolução sem igual na história, e a segunda quando,
tendo sua emancipação política já consolidada, expande seu poder econômico
e político à impotência de sua vizinha alemã, expressa na “boa vontade”
kantiana. Essa corresponde, nos termos dos autores, “ao abatimento e miséria
dos burgueses alemães, cujos interesses mesquinhos nunca foram capazes de
evoluir para interesses nacionais e coletivos de uma classe”. Essa formação
deficiente constitui a razão da exploração dos alemães por parte das burguesias
de outros países. No entanto, o mais importante e ressaltado pelos autores é o
6
O autor especifica, porém, que se deve excluir dessa consideração os casos em que as colônias
constituem “simples bases militares ou centros comerciais”.
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“caráter inteiramente pequeno-burguês” assumido pelo desenvolvimento
alemão a partir da reforma. A velha nobreza feudal que sobreviveu às guerras
camponesas dividia-se em “príncipes de minúsculos estados imperiais, (...)
proprietários de terra menores” e os Junkers do interior, que levavam uma
vida da qual o mais modesto squire inglês ou gentilhomme de province francês
teria se envergonhado” (MARX; ENGELS, 2007, p. 193). Quanto à agricultura,
ponto nevrálgico do desenvolvimento capitalista, pontuam que
foi praticada de tal maneira que não representava nem um
parcelamento nem um grande cultivo e que, apesar das persistentes
servidão e corveia, nunca chegou a empurrar os agricultores para a
emancipação, tanto porque esse tipo de prática não permitiu o
surgimento de uma classe ativamente revolucionária, como também
porque ela não era acompanhada de uma burguesia revolucionária
que correspondesse a tal classe camponesa (MARX; ENGELS, 2007,
p. 193).
Para reafirmar a debilidade da burguesia nesse processo, Marx e Engels
recordam o atraso industrial alemão em relação ao caso inglês e a inferioridade
do país perante a “pequena Holanda”. Frente à fragmentação de interesses na
Alemanha, os autores lançam uma questão que nos remete à raiz da
“representação pequeno-burguesa alemã da onipotência do estado” (MARX;
ENGELS, 2007, p. 346) identificada, por exemplo, nas concepções de Stirner
–: “De onde viria a concentração política num país ao qual faltam todas as
condições econômicas para ela?” Como vimos, diante da fraqueza e dispersão
características da sociabilidade que lhe subjaz, a figura estatal emergirá em
uma forma mais apartada da sociedade civil, ou, nos termos mais precisos dos
autores,
a esfera específica à qual cabia a administração do interesse público
por meio da divisão do trabalho obteve uma independência anormal,
que ainda foi aprofundada na burocracia moderna. Desse modo, o
estado se constituiu como um poder aparentemente autônomo e
manteve até hoje na Alemanha essa posição, que em outros países
foi apenas passageira uma fase de transição (MARX; ENGELS,
2007, p. 194)
7
.
A essa figura desproporcional em relação a seus congêneres modernos
corresponde, além de uma “consciência burocrática” inaudita e das ilusões
correntes na Alemanha sobre o estado, a “aparente independência que os
teóricos (...) têm em relação aos burgueses” (MARX; ENGELS, 2007, p. 194).
Apesar de a eclosão da Revolução de Julho impor de “fora para dentro”
as formas políticas mais afeitas à burguesia em terras alemãs, o quadro de
7
A respeito dessa relação entre fragilidade da tessitura social e emergência do estado, devemos
observar que, para Marx e Engels, a “expressão idealista dos limites econômicos existentes não
é apenas puramente teórica, mas também existe na consciência prática, quer dizer, a
consciência que se emancipa e está em contradição com o modo de produção existente o
forma apenas religiões e filosofias, mas também estados” (MARX; ENGELS, 2007, p. 36).
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370
“estamentos passados e classes ainda não nascidas” não se altera
substancialmente. Sem o nível de desenvolvimento correspondente a essas
formas quando de sua emergência em suas quadras de origem, os burgueses
alemães só as aceitaram “como ideias abstratas, como princípios válidos em e
para si, como desejos piedosos e fraseologias, autodeterminações kantianas da
vontade e do homem tal como estes devem ser” (MARX; ENGELS, 2007, p.
195). Resulta daí um comportamento moral e desinteressado em relação ao
liberalismo.
O capítulo final desta análise chega quando os autores observam que, a
partir de 1840, a burguesia alemã passa finalmente a comportar-se como
classe, momento em que seus interesses vão se aglutinando em função do
mercado mundial. Passaram a ser “nacionalistas e liberais e exigiram tarifas
protecionistas e constituições”. A conclusão não deixa dúvidas quanto ao
caráter retardatário da conversão: “Portanto, agora eles se encontram quase
no ponto em que estavam os burgueses franceses em 1789.” Assim, tendo em
vista que a “participação ativa no movimento burguês” por parte da Alemanha
“foi meramente ideal” e que essa nação “desempenhou apenas um papel
passivo” na “grande revolução provocada na sociedade pela concorrência”
(MARX; ENGELS, 2007, pp. 123; 195; 360), a sociabilidade alemã como um
todo traz em si a marca do atraso, inscrita em suas entificações ideais e
práticas.
É este também o caso do último adversário combatido na obra, os
autodenominados “socialistas verdadeiros”, proponentes de uma sorte de
mediação necessária entre o comunismo e as concepções dominantes”. Ao
abstraírem as condições e necessidades próprias da literatura comunista
francesa e inglesa, esses autores promoveriam uma mimese de mesmo tipo
daquela realizada pelos defensores do liberalismo alemão. O arranjo
desprovido de base é finalizado, de acordo com Marx e Engels, mediante o
amálgama daquela literatura com os pressupostos filosóficos alemães (cf.
MARX; ENGELS, 2007, p. 437).
Como transparece no texto, não se trata de manifestação literária de
cunho arbitrário, mas sim de produto necessário de “uma situação social
miserável”. Em um “país o atolado como a Alemanha”, o “socialismo
verdadeiro” é uma “tendência inevitável”. Atinando para o fulcro central da
questão, assinalam que “a falta de lutas partidárias reais, apaixonadas e
práticas na Alemanha fez que, em seu início, o movimento social fosse um
movimento meramente literário” (MARX; ENGELS, 2007, pp. 438-9). Em
outro momento, acrescendo ao registro a diferença de patamar entre as
entificações inglesa e francesa, de um lado, e a alemã, de outro, os autores
declaram:
Os alemães ainda não dispunham de relações de classe
constituídas, como os ingleses e franceses. Em consequência disso,
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os comunistas alemães podiam obter a base de seu sistema a
partir das relações do estamento do qual provinham. Em
consequência, é perfeitamente natural que o único sistema
comunista alemão hoje existente tenha sido uma reprodução das
ideias francesas no interior da cosmovisão limitada pelas acanhadas
relações manufatureiras. (MARX; ENGELS, 2007, pp. 444-5)
Como último apontamento em relação à A ideologia alemã, podemos
constatar ainda que na raiz do combate a essa concepção de socialismo reside
a mesma problemática apontada até aqui, pois, diante da dubiedade das
postulações dos socialistas verdadeiros no tocante à propriedade privada,
Marx e Engels acentuam que
num país como a Alemanha, em que durante séculos as fraseologias
filosóficas tiveram um certo poder e em que a ausência das nítidas
oposições de classe presentes em outros países empresta de
qualquer modo menos nitidez e resolução à consciência comunista,
é necessário contrapor-se a todas as fraseologias que possam
enfraquecer e diluir ainda mais a consciência da oposição real entre
o comunismo e a ordem mundial vigente (MARX; ENGELS, 2007,
p. 452).
IV
Se nos primeiros textos que selecionamos para exame temos um quadro
geral da trajetória alemã para o capitalismo, na Nova Gazeta Renana (editada
entre 1 de junho de 1848 e 19 de maio de 1849) Marx oferece um
acompanhamento jornalístico das lutas políticas que constituem um dos
capítulos desse processo
8
. Ao longo de diversos artigos, o autor traça os
descaminhos da Revolução de Março, acompanhando o vacilante partido da
burguesia. Este, como Marx denuncia no segundo número do periódico (2
jun. 1848), atinge, agindo cautelosamente no decorrer da pós-revolução,
posição intermediária entre o partido democrático e os absolutistas, ora
progressista contra o absolutismo, ora reacionário contra a democracia.
Um dos alvos centrais da análise marxiana nesse jornal é a atuação de
Camphausen, cujo ministério
9
teve sua origem impulsionada pela insurreição
de março em Berlim, mas que manteve a posição segundo a qual teria se
formado depois e o por meioda revolução (cf. MARX, 2010, p. 84). O
autor chama a atenção para o caráter conciliador do ministério Camphausen
em uma série de episódios: elaboração da “teoria ententista”; defesa do retorno
8
A edição brasileira dos artigos de Marx contidos na Nova Gazeta Renana conta com uma
apresentação instigante e uma tradução primorosa, ambas de autoria de Lívia Cotrim. O leitor
de fôlego mais amplo pode consultar também a tese doutoral desta cientista política, dedicada
aos mesmos artigos marxianos (cf. COTRIM, 2007).
9
O ministério Camphausen (29 mar. 1848 a 20 jun. 1848) foi formado após a insurreição de
março em Berlim, com os chefes da oposição da Dieta Unificada (cf. MARX, 1993, p. 45; 2010,
p. 112).
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372
do príncipe da Prússia
10
; manutenção da “velha legislação prussiana sobre
crimes políticos” e dos “antigos tribunais”; concessão de tempo para que a
“antiga burocracia” e o “antigo exército” se recuperassem após a revolução de
março; manutenção de todos os chefes do antigo regime”; permissão à
camarilha militar reacionária para conduzir a guerra na Posnânia e a direção,
por ele próprio, da guerra na Dinamarca (cf. MARX, 1993, pp. 45-9).
Dentre esses episódios, vale a pena destacar, devido ao seu valor
elucidativo de uma atuação prática, a caracterização marxiana da “teoria
ententista” de Camphausen. Tratava-se de negar a revolução mediante um
entendimento entre a Assembleia Nacional Prussiana, por isso chamada por
Marx de “Assembleia Ententista”, e a Coroa sobre a elaboração de uma
constituição. Na concepção de seu autor, prontamente refutada por Marx em
artigo constante do terceiro número da NGR (3 jun. 1848), com a “teoria
ententista” ambicionava-se a elaboração de uma ordem constitucional
estritamente sobre o “terreno do direito”. Sobre a significação dessa posição,
que une o “novo” e o “velho”, Marx é contundente:
O “terreno do direito” significava simplesmente que a revolução não
havia conquistado seu terreno e que a velha sociedade não havia
perdido o seu, que a revolução de março não fora mais do que um
“evento”, que havia dado “impulso” ao “entendimento” entre o trono
e a burguesia, de muito preparado no interior do velho estado
prussiano, cuja necessidade a própria Coroa havia expresso em
elevadíssimas isenções precedentes, mas que antes de março não
julgara “urgente”. Em uma palavra, o “terreno do direitosignificava
que a burguesia, depois de março, queria negociar com a Coroa no
mesmo que antes de março, como se não tivesse havido nenhuma
revolução, e a Dieta Unificada tivesse alcançado seu objetivo sem a
revolução. O “terreno do direito” significava que o título jurídico do
povo, a revolução, não existia no contrat social entre o governo e a
burguesia. A burguesia deduzia suas reivindicações da velha
legislação prussiana, a fim de que o povo o deduzisse
reivindicação nenhuma da nova revolução prussiana. (MARX,
1993, p. 67)
Ao refutar a manobra preteridora do caminho revolucionário, Marx
afirma sua posição democrata determinada pela época e suas condições de
luta –, declarando estar, desde o início, no campo revolucionário. Vale lembrar
que esse também foi escolhido pelo governo no decorrer dos embates, haja
vista que, ao colocar-se no “terreno contrarrevolucionário”
11
, abandonou
10
Este notório inimigo da população berlinense, tendo fugido para a Inglaterra por medo do
povo, teve seu retorno defendido pelo Ministério no início de maio, ato que mereceu artigo
carregado de ironia por parte de Marx (cf. 2010, pp. 102-3).
11
A Assembleia Nacional Prussiana (de Berlim, ou ainda, Assembleia Ententista) reuniu-se de
maio a dezembro de 1848, visando à formulação de uma constituição pela via do entendimento
com a Coroa, tendo sido dissolvida ao mesmo tempo em que era outorgada a Constituição de
5 de dezembro pelo rei da Prússia. A exposição ministerial que acompanhou sua dissolução a
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aquela hipocrisia jurídica, “pois também o terreno contrarrevolucionário é
revolucionário” (MARX, 1993, p. 43).
Ligado, ainda que a contragosto, à revolução de março, o ministério
Camphausen possuía uma ambiguidade inerente, expressa por uma aparente
aliança da burguesia com o povo. Ao se aliar às forças da velha sociedade,
restringindo sua própria ação a uma resistência passiva contra a revolução”,
o ministério Camphausen fortificou-as, permitindo, assim, a ascensão da
contrarrevolução. Desse modo, esgotou sua necessidade histórica, podendo
dar adeus à cena pública sem o mínimo pesar do movimento burguês
12
, pois,
no interior deste, ajudou a amadurecer a intenção de “passar, do período de
traição passiva ao povo em favor da Coroa, ao período de subjugação ativa do
povo sob seu domínio em compromisso com a Coroa” (MARX, 1993, pp. 68-
9). Configura-se, desse modo, uma transição ministerial que sinaliza uma
guinada favorável ao escancaramento de uma aliança reacionária contra as
forças populares. Nesse sentido, Marx se esforça em apontar o caráter do
“ministério de ação” chefiado por Hansemann, figura presente no ministério
anterior, inclusive na mesma posição de outrora, a de ministro das Finanças.
Assim como o ministério de Camphausen tinha atrás de si a revolução
de março, o de Hansemann tinha como seus bastidores “a revolução de junho”.
Tratando-se aqui, como antes, de um evento externo (francês) impulsionando
os acontecimentos alemães, cabe ressaltar que o seu sentido não é, como o
anterior, revolucionário, mas equivalente ao momento histórico vivido pela
burguesia francesa em meados de 1848. Discute-se, em resumo, o período em
que a burguesia na França, satisfeita com os resultados obtidos com sua
revolução, passa à defesa do grau de avanços atingido. Caminhando na mesma
direção, mas não com a mesma desenvoltura, a burguesia alemã opta por
escancarar seu desprezo pelo apoio popular: “A burguesia prussiana explorou
contra o povo a vitória sangrenta da burguesia de Paris sobre o proletariado
parisiense” (MARX, 1993, p. 72).
O programa de Hansemann visava a um fortalecimento do poder estatal
contra dois inimigos: de um lado, “a anarquia”, ou seja, “a classe trabalhadora
e todas as frações da burguesia que não aderiram ao programa do sr.
Hansemann”, de outro, “a reação, ou seja, (...) a Coroa e os interesses feudais,
na medida em que tentassem se impor contra o bolso e ‘as condições mais
essenciais’, isto é, as mais modestas pretensões políticas da burguesia”
(MARX, 1993, pp. 76-7). Caracteriza-se, assim, como um ministério
encarregado do fortalecimento do poder burguês, visando à garantia da
acusava de desrespeitar o decreto real de 8 de novembro, o qual ordenava sua transferência de
Berlim para Brandemburgo (cf. MARX, 1993, p. 44).
12
A queda do ministério Camphausen foi avaliada por Marx em artigo de mesmo nome,
publicado no nº 23 da Nova Gazeta Renana, de 23/06/1848.
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374
satisfação de suas necessidades, ainda que particularmente vacilante, como
veremos.
No que tange ao alcance prático da perspectiva de ameaça do “poder
estatal fortalecido” contra a “anarquia”, tudo foi arquitetado e levado a cabo
mediante o reforço das velhas instituições do feudalismo. Daí Marx salientar
que: “Sob o ministério de ação ‘fortaleceram-se’ por conseguinte a velha
polícia prussiana, o judiciário, a burocracia, o exército porque Hansemann
acreditava que, estando estes a soldo, também estavam a serviço da burguesia.
Bastando isso, eles se fortaleceram’” (MARX, 1993, pp. 78-9). Obviamente,
uma conduta norteada por tal orientação repressora e conciliadora não poderia
ter outro resultado que a repulsa daqueles que antes constituíam a força
propulsora da revolução:
Aos olhos do proletariado e da democracia urbana, esse ministério
e a Assembleia Ententista, cuja maioria era representada no
ministério, e a burguesia prussiana, cuja maioria formava a maioria
na Assembleia Ententista, o representava nada além do que o
velho estado policial e burocrático modernizado. Rancor juntara-se
contra a burguesia porque era a burguesia que governava e na
guarda cívica havia-se tornado parte integrante da polícia. (MARX,
1993, p. 79)
Para Marx, o fato de ter sido apenas no interesse da burguesia que o
ministério de ação empreendeu o fortalecimento e a incitação à ação da polícia
prussiana não derivava de suas ações, mas sim de suas propostas de leis
orgânicas. Nos termos do autor:
Nos projetos apresentados pelo ministério Hansemann sobre o
ordenamento comunal, as cortes de jurados, as leis sobre a guarda
cívica, é sempre a propriedade que é, sob uma ou outra forma, a
fronteira entre o país legal e o país ilegal. Em todos esses projetos
de lei, as mais servis concessões o feitas ao poder régio, porque
deste lado o ministério burguês acreditava possuir um aliado do
capital inócuo, mas em compensação o domínio do capital sobre o
trabalho se afirma tanto mais rudemente. (MARX, 1993, p. 80)
Se suas propostas e ões contra a “anarquia” resultaram na ruptura
com os setores que em outro momento constituíram força essencial no
processo da revolução burguesa, aquilo que fez em relação à “reação” não teve
efeitos menos devastadores para a configuração das relações necessárias ao
planejamento e consecução de um desenvolvimento mais desembaraçado do
historicamente velho. Marx assim o refere:
O ministério de ação teve a infelicidade de que todos seus ataques
econômicos contra o partido feudal figuravam sob a égide do
empréstimo forçado, e de que suas tentativas de reforma em geral
apareciam, aos olhos do povo, como simples expedientes financeiros
para encher os cofres do “poder estatal” fortalecido. Hansemann
colheu assim o ódio de um partido, sem obter o reconhecimento do
outro. (MARX, 1993, p. 81)
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Neste diapasão está a iniciativa de aumentar o imposto sobre o açúcar
de beterraba e a aguardente. Com ela, o ministério Hansemann realizou a
façanha de desagradar um círculo de interesses tão amplo quanto possível,
englobando proprietários fundiários industriais das velhas províncias
prussianas, destiladores burgueses da província renana e parte da classe
operária. Sua gravidade é devidamente aquilatada, no entanto, quando se
constata, com Marx, que essa é a única ação do ministério de ação contra os
feudais que efetivamente chegou à ação, o único projeto de lei nessa direção
que efetivamente se tornou lei” (MARX, 1993, p. 82). Ainda nessa direção, o
curso dispersivo em causa não foi desviado nem mesmo pela mais ambiciosa
proposta do ministério Hansemann, a de suprimir as isenções do imposto
fundiário, pois foi “paralisada pelos membros radicais da Assembleia
Ententista”. Atinando para o significado geral do fortalecimento do poder
estatal contra a “reação”, Marx assevera que:
toda a sua cruzada contra a feudalidade se esgotou num aumento de
impostos, igualmente odioso para todas as classes, e toda sua
perspicácia financeira abortou num empréstimo forçado. Duas
medidas que, por fim, só forneceram subsídios à campanha da
contrarrevolução contra a própria burguesia (MARX, 1993, p. 83).
Tendo afastado e colocado “contra si na mesma medida o proletariado
urbano, a democracia burguesa e os feudais”, o ministério Auerswald-
Hansemann, nisso apoiado pela Assembleia Ententista, havia de provocar
ainda a ira da classe camponesa, já suficientemente oprimida pelo feudalismo.
Sobre sua inépcia em perceber e aproveitar a energia camponesa no processo
de fortalecimento da burguesia, são instrutivos, dentre outros episódios, o
projeto de von Patow, referente à supressão dos encargos feudais mediante
indenização por parte dos camponeses (cf. MARX, 2010, pp. 121-2), mas
também o projeto de lei do ministro da Agricultura Gierke, cujo intuito era
suprimir os encargos sem valor e manter os demais, resumidos na corveia (cf.
MARX, 2010, pp. 177-81). De acordo com Marx, nessas ocasiões evidenciou-se
uma incapacidade de consolidar na lei o que o movimento camponês havia
conquistado na prática, isto em função de essas iniciativas serem perpassadas
pelo “desejo burguês mais impotente de suprimir os privilégios feudais” e pelo
“medo burguês de atacar de modo revolucionário qualquer tipo de
propriedade” (MARX, 1993, p. 84).
Esse era o contexto da queda do ministério Hansemann em 21 de
setembro de 1848: a constituição de um cenário de isolamento por meio da
ilusão de que a Coroa estava a seu lado, defendendo-o contra tudo e todos,
quando, na verdade, o resultado prático de seu vacilo era o fortalecimento da
contrarrevolução. Além disso, Marx chama ainda a atenção para os acordos
envolvendo os agentes da reação no plano internacional: “o plano estratégico
acertado com a Rússia e a Áustria exigia, à frente do gabinete, um general
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nomeado pela camarilha, por fora da Assembleia Ententista” (MARX, 1993, p.
88). Após o curto período do ministério Pfuel, abreviado pela queda de Viena
nas mãos da reação (cf. MARX, 2010, pp. 259-61), encontrava-se no conde von
Brandenburg o “bigode” e o “sabre” necessários ao golpe final
13
. Sob o seu
ministério, “a Assembleia Ententista foi ignominiosamente dispersada,
escarnecida, ridicularizada, humilhada, perseguida e, no momento decisivo, o
povo ficou indiferente (MARX, 1993, p. 89). Essa sinuosa trajetória da
burguesia alemã é sintetizada por Marx da seguinte maneira:
A dor da burguesia prussiana, depois do novembro austríaco, foi o
acerto de contas pela dor do povo prussiano depois do junho
francês. Em sua mesquinhez míope, os filisteus alemães
confundiram a si mesmos com a burguesia francesa. o haviam
derrubado trono nenhum, não haviam eliminado a sociedade feudal,
muito menos seus últimos vestígios, não tinham que manter
nenhuma sociedade criada por eles próprios. Depois de junho como
depois de fevereiro, como desde o início do século XVI, como no
século XVIII, acreditaram, na sua inata e manhosa avidez por lucros,
poder ficar com três-quartas partes do trabalho alheio. Não
suspeitaram que detrás do junho francês espreitava o novembro
austríaco, e detrás do novembro austríaco, o dezembro prussiano.
Não suspeitaram que, se na França a burguesia, que demolira o
trono, não via a não ser um único inimigo diante dela, o proletariado
– a burguesia prussiana, em luta contra a Coroa, não tinha mais do
que um único aliado o povo. Não que ambos não tivessem
interesses opostos e hostis entre si, mas porque o mesmo interesse
ainda os ligava contra uma terceira força que igualmente os oprimia.
(MARX, 1993, pp. 72-3)
Em suma, com o tracejamento dos perfis dos ministérios de
Camphausen e Hansemann, o autor denuncia a “camphausenidade”
14
, postura
cujo itinerário conciliador e vacilante só podia ter o fim a ela de fato dado pelo
governo prussiano. No entanto, Marx trata, como havia deixado claro em
outros momentos, não da debilidade de caráter individual de Camphausen,
Hansemann ou seus consortes, mas sim da incapacidade da classe que
representavam:
Eles não foram nada além do que os órgãos de uma classe. Sua
linguagem, seus atos não foram nada além do que o eco oficial de
uma classe que os havia empuxado ao primeiro plano. Não foram
mais do que a grande burguesia – no primeiro plano. (MARX, 1993,
p. 49)
Ao ampliar o foco para as classes sociais e seus embates na trama da
sociabilidade alemã, Marx começa a descortinar as raízes mais profundas do
13
O conde Brandenburg chefiou o ministério contrarrevolucionário de nov. 1849 a nov. 1850.
14
O “governo de ação” (25 jun. a 21 set. 1848), que sucedeu o de Camphausen, tinha em
Auerswald seu chefe formal e novamente Hansemann como ministro das Finaas, este, o
verdadeiro chefe do “ministério de ação” (cf. MARX, 1993, p. 48, nota).
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quadro assinalado. Este tem origem em um duplo movimento. De um lado, o
autor aponta para um processo de supressão das “antigas diferenças de
classes” que opunham os capitalistas e os grandes proprietários fundiários
representados na Dieta Unificada
15
. Trata-se, sinteticamente, do
“desenvolvimento da sociedade burguesa na Prússia”. De outro lado, em
conexão com esse mesmo desenvolvimento, o estado absolutista, vendo sua
antiga base de sustentação ruir, torna-se óbice ao prosseguimento do processo,
dada sua inadequação à “nova sociedade burguesa, com seu modo de produção
modificado e suas necessidades alteradas”. Essa inadequação leva a burguesia
a aspirar à subversão de toda ordem existente principiando, é claro, pela
reivindicação do “domínio político” –, haja vista que seu modo de produção
exige uma série de liberdades e direitos que a velha ordem não comporta. De
acordo com o autor, “antes de março de 1848 a burguesia estava no melhor dos
caminhos para ver a efetivação de todos os seus desejos”. Indicando com
precisão o quadro favorável, Marx aduz:
O estado prussiano encontrava-se em dificuldades financeiras. Seu
crédito estava esgotado. Eis o segredo da convocação da Dieta
Unificada. Por certo, o governo resistiu contra seu destino, dissolveu
sem indulgência a Dieta “Unificada”, mas a falta de dinheiro e a falta
de crédito o teriam irremediavelmente jogado, pouco a pouco, nos
braços da burguesia. (MARX, 1993, pp. 50-1)
Antes de completar o mosaico, Marx aponta para um requisito para o
sucesso da empreitada da oposição presente na Dieta Unificada, requisito este
que na quadra em questão constituía, concomitantemente, uma virtualidade:
“Face a face com o governo, não poderia naturalmente reivindicar os direitos e
as liberdades que aspirava para si, a não ser que se apresentasse sob a razão
social dos direitos e liberdades do povo.” Arrematando e entreabrindo a
porta de acesso à razão do insucesso da revolução alemã de 1848, o filósofo
assinala: “Esta oposição se encontrava, como foi dito, no melhor dos
caminhos, quando estalou a tempestade de fevereiro.” (MARX, 1993, p. 52)
Os eventos de fevereiro em Paris precipitaram a revolução de março e
colocaram a burguesia alemã diante de um enorme paradoxo: de um lado,
abriu a possibilidade de alcançar o tão almejado poder político, de outro, a via
de acesso aberta não havia sido construída ao seu modo, a saber, através de
uma transação pacífica com a Coroa”, mas por meio de uma revolução, de
um movimento popular”. A diferença entre os modos de transição assume sua
verdadeira dimensão quando se observa, com Marx, que o caminho popular
implicava a representação burguesa dos interesses do povo contra a Coroa”,
15
A primeira Dieta Unificada se reuniu de 11 abr. a 26 jun. 1847, tendo sido suspensa pelo rei
após se declarar incompetente para aprovar o empréstimo solicitado. Sua segunda convocação
se deu em 2 abr. 1848, adotando, a 8 abr., a lei eleitoral para a formação da Assembleia
Nacional Prussiana (cf. MARX, 1993, pp. 49-50, nota).
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exatamente a parte com a qual planejava um acordo. O filósofo sintetiza da
seguinte maneira a situação na qual se encontrava a burguesia:
se a revolução de fevereiro, inclusive suas dores alemãs do
puerpério, foi bem-vinda para a burguesia alemã prussiana, pois
jogou-lhe nas mãos a direção do estado, foi também para ela um
embaraço, dado que seu domínio ficou ligado a condições que não
queria, nem podia satisfazer (MARX, 1993, p. 54).
A captação e exposição de uma entificação particular no
desdobramento desse episódio alemão ganha traços mais vigorosos quando
Marx passa à comparação entre o “anacronismo” alemão apontado e as
revoluções de “tipo europeu”. Esse último é constituído, na concepção do
filósofo, pelos casos das revoluções inglesa de 1648 e francesa de 1789.
apontando uma diferença fundamental entre essas e o caso prussiano de
março, assevera:
A revolução de 1789 não tinha outro modelo (ao menos na Europa)
que a revolução de 1648, e a revolução de 1648 somente a sublevação
dos Países Baixos contra a Espanha. As duas revoluções estavam um
século adiante dos seus modelos, não apenas no tempo, mas também
no conteúdo.
Nas duas revoluções a burguesia era a classe que efetivamente
estava na ponta [Spitze] do movimento. O proletariado e as frações
das classes médias não pertencentes à burguesia ou não tinham
ainda interesses distintos da burguesia, ou ainda não formavam
classes ou frações de classe desenvolvidas de modo independente.
(MARX, 1993, p. 55)
Marx evidencia assim que a identidade de interesses da burguesia e das
camadas proletárias e médias ou a ausência de independência dessas duas
últimas no tipo europeu possibilitam à primeira ser a cabeça do movimento,
facultam sua liderança em uma empreitada conjunta. Creditando as
divergências efetivamente ocorridas entre os líderes e os liderados nas
revoluções do tipo em questão ao modo de imposição dos interesses da
burguesia, Marx avança na determinação do quadro, contrastando a
significação geral de cada variante da revolução burguesa. De acordo com o
autor, as revoluções inglesa de 1648 e francesa de 1789:
Não foram o triunfo de uma determinada classe da sociedade sobre
a velha ordem política; foram a proclamação da ordem política para
a nova sociedade europeia. Nelas triunfou a burguesia; mas o triunfo
da burguesia foi então o triunfo de uma nova ordem social, o triunfo
da propriedade burguesa sobre a propriedade feudal, da
nacionalidade sobre o provincianismo, da concorrência sobre o
corporativismo, da partilha sobre o morgado, do domínio do
proprietário de terra sobre a dominação do proprietário através da
terra, do esclarecimento sobre a superstição, da família sobre o
nome de família, da indústria sobre a preguiça heroica, do direito
burguês sobre os privilégios medievais. (MARX, 1993, p. 56)
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Apontada a altura do empreendimento de uma revolução europeia”,
equivalente à instauração de uma nova sociabilidade em todas as suas esferas,
o autor dimensiona, auxiliado pelo parâmetro exposto, a revolução prussiana
de março:
A revolução de fevereiro suprimira a monarquia constitucional
efetivamente e a dominação da burguesia na ideia. A revolução
prussiana de março devia criar a monarquia constitucional na ideia
e a dominação da burguesia na efetividade. Bem longe de ser uma
revolução europeia, era apenas o retardado eco débil de uma
revolução europeia num país atrasado. Ao invés de estar à frente de
seu século, atrasara-se mais de meio século em relação a ele. (...) Não
se tratava da instauração de uma nova sociedade, mas do
renascimento berlinense da sociedade morta em Paris. A revolução
prussiana de março não foi sequer nacional, alemã, era desde o
princípio provincial-prussiana. (MARX, 1993, pp. 56-7)
Após evidenciar a distância que separa a revolução de tipo europeu do
arremedo prussiano de março, Marx avalia o perfil da burguesia alemã,
clarificando desse modo sua postura em tudo diferente de suas vizinhas
europeias mais aguerridas e a resultante de sua ação vacilante e comedida.
Segundo o autor:
A burguesia alemã tinha se desenvolvido com tanta indolência,
covardia e lentidão que, em face do feudalismo e do absolutismo,
percebeu diante dela o proletariado ameaçador, bem como todas as
frações da burguesia cujas ideias e interesses são aparentados aos do
proletariado. E tinha não apenas uma classe detrás de si, diante dela
toda a Europa a olhava com hostilidade. A burguesia prussiana não
era, como a burguesia francesa de 1789, a classe que, frente aos
representantes da antiga sociedade, da monarquia e da nobreza,
encarnava toda a sociedade moderna. Ela havia decaído ao nível de
uma espécie de casta, tanto hostil à Coroa como ao povo, querelando
contra ambos, mas indecisa contra cada adversário seu tomado
singularmente, pois sempre via ambos diante ou detrás de si; estava
disposta desde o início a trair o povo e ao compromisso com o
representante coroado da velha sociedade, pois ela mesma
pertencia à velha sociedade; representando não os interesses de uma
sociedade nova contra uma sociedade velha, mas interesses
renovados no interior de uma sociedade envelhecida; ao leme da
revolução não porque o povo estava atrás dela, mas porque o povo a
empurrava à sua frente; (...) (MARX, 1993, pp. 57-58)
Como se pode facilmente depreender do texto marxiano, o atraso
econômico e social em relação aos povos que haviam passado pela revolução
de “tipo europeu”, a essa altura constituídos sob a forma de nação, se
converte em óbice à resolução da problemática da superação do historicamente
velho. Projetando idealmente em seu próprio solo o que o proletariado era
na França, a burguesia alemã passa a temer seu embrião germânico, optando
assim por uma aliança com as forças da velha sociedade feudal. Soma-se a isso,
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ainda de acordo com a letra marxiana, o fato de toda a Europa, sob a vigilância
da Rússia, viver um momento de reação, o que coloca o arremedo
revolucionário alemão sob suspeita, ainda que seus agentes não tivessem
envergadura suficiente para se alçar à condição de representante de toda a
sociedade moderna”, mas apenas à de “casta”, entificação atolada no velho.
O horizonte almejado pela burguesia alemã era, em sua mesquinhez,
viver sob condições impróprias à essência de classe burguesa, isto é, enquanto
coadjuvante em uma “monarquia constitucional”. Sintetizando o sonho dessa
burguesia em todo o seu acanhamento, Marx afirma: “A Coroa sacrificaria a
nobreza à burguesia, a burguesia sacrificaria o povo à Coroa. Nesta condição o
reino seria burguês e a burguesia seria régia.” (MARX, 1993, p. 61) Desta
forma, enquanto nos países constituídos pela revolução de “tipo europeu” a
dominação política era afirmada de modo inconteste pela burguesia, seu
arremedo germânico ansiava por uma dominação política amalgamada,
amistosamente, com os interesses dos representantes do feudalismo.
Essa projeção burguesa é arrimada, no entanto, em uma interpretação
equivocada das reais possibilidades de efetivação do domínio burguês na
Alemanha. Nessa direção, entendia estar no terreno da constituinte, baseado
na divisão de poderes entre a Assembleia Nacional Prussiana e a Coroa,
objetivando desse modo a conversão da monarquia feudal em burguesa sob a
forma de um acordo. No entanto, Marx assinala a inevitabilidade do conflito
inerente a essa propositura, pois o terreno do embate não era de modo algum
constitucional, mas revolucionário, e os contendores, em vez de poderes
separados, duas sociedades distintas; de um lado, a “velha sociedade feudal-
burocrática”, de outro, “a moderna sociedade burguesa”. Um conflito cuja
natureza requeria, para uma sequência mais pujante do desenvolvimento, uma
solução de mesmo talhe, isto é, radical. Diferente, portanto, da “resistência
passiva” ou “meia revolução” praticada pela burguesia prussiana, estratégia
que resultou na vitória da contrarrevolução. No entender de Marx, expresso
em diversos artigos do periódico referido, a alternativa era a “escola
preparatória da revolução plena”, isto é, uma prática que ditatorialmente
suprimisse os restos do historicamente velho (cf. MARX, 2010, pp. 212-5; 264-
6; 465-75). Uma conduta mais consequente e, portanto, firmemente articulada
pela densidade da participação popular16, único remédio à incipiência e
16
A caracterização de uma possível prática revolucionária consequente à época é feita,
retrospectivamente, por Engels, em seu Marx e a Nova Gazeta Renana 1848/1849: “Para
nós, Fevereiro e Março poderiam ter o significado de uma autêntica revolução: mas somente
caso não fossem o coroamento, e sim o ponto de partida de um amplo movimento
revolucionário, um movimento em que (como ocorrera na grande Revolução Francesa) o povo
se fosse desenvolvendo através de suas próprias lutas, em que os partidos fossem marcando
suas fronteiras de modo cada vez mais nítido até coincidirem inteiramente com as grandes
classes – a burguesia, a pequena-burguesia e o proletariado; em que, numa série de batalhas,
a classe operária fosse conquistando uma posição após outra.” (ENGELS, 1976, p. 175)
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covardia da burguesia alemã. D Marx falar em uma “revolução social-
republicana”. Não é outro o significado da lição geral que extraí:
A história da burguesia prussiana, como em geral da burguesia
alemã de março a dezembro, demonstra [beweist] que na Alemanha
uma revolução puramente burguesa e a fundação [Gründung] do
domínio burguês, sob a forma da monarquia constitucional, são
impossíveis; que apenas o possíveis a contrarrevolução absolutista
ou a revolução social-republicana. (MARX, 1993, p. 90)
Dada a fundamentação histórica das causas do destino inglório da
revolução de março em Berlim, a saber, atraso histórico no desenvolvimento
econômico burguês e de sua classe condutora em um contexto de luta de
classes internacional, torna-se claro tratar-se de mais um capítulo da
miséria alemã, fórmula que alude ao modo como Marx e Engels discutiram a
trajetória particular daquele país, ou ainda, num registro mais atual e apoiado
na retomada por Lênin da mesma temática, “o drama da Revolução Alemã de
48 é um ato da tragédia da via prussiana” (CHASIN, 1993, p. 34).
V
Em tom conclusivo, pudemos observar que, no tratamento das mais
diversas problemáticas, Marx sempre identifica no modo particular de
constituição do capitalismo o núcleo estruturador das múltiplas configurações
espirituais e práticas. Nesse sentido, o acerto de contas com a filosofia
especulativa alemã e a constituição da própria posição teórica sempre se dão
em contato com o exame crítico da realidade histórico-social. Daí a presença
constante do tema da particularidade do capitalismo alemão, ainda que com
níveis distintos de elaboração. Mesmo em sua formulação mais incipiente, a
crítica marxiana deixa clara a complexidade do tema em questão, pois
estabelece a coexistência, em solo alemão, de atraso social e político, de um
lado, e modernidade teórica, de outro. De modo geral, as mazelas presentes no
quadro do atraso alemão são denunciadas por Marx enquanto resultados da
quanto ao conteúdo efetivo da luta, isto é, seus objetivos, o mesmo autor assinala as
alternativas e seus perigos, divisando a partir daí o caminho a ser seguido: “O interesse do
proletariado opunha-se tanto à prussianização da Alemanha como à perpetuação de sua
divisão em pequenos estados. Exigia imperiosamente a unificação definitiva da Alemanha em
uma nação, única forma de limpar de todos os mesquinhos obstáculos herdados do passado a
arena em que teriam de medir forças o proletariado e a burguesia. Entretanto, o interesse do
proletariado opunha-se também a que essa unificação se realizasse sob a hegemonia da
Prússia: o estado prussiano, com todas as suas instituições, suas tradições e sua dinastia, era
precisamente o único inimigo interno sério que a revolução alemã tinha que derrubar; além
disso, a Prússia podia unificar a Alemanha desmembrando-a, deixando de fora a Áustria
alemã. Dissolução do estado prussiano, desmoronamento do estado austríaco, unificação real
da Alemanha, sob a forma de uma república: este, e este, podia ser nosso programa
revolucionário imediato. E esse programa podia ser posto em prática através da guerra contra
a Rússia, e só por esse meio.” (ENGELS, 1976, p. 174)
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ausência de emancipação política, não por mera falta de vontade de seus
agentes, mas em função da carência de condições objetivas, de um processo
histórico particular. No mesmo passo analítico em que assinala a grandeza e
os limites da emancipação política, Marx observa que na Alemanha, dadas as
condições particulares de seu desenvolvimento, a única via possível para a
superação do historicamente velho é a da metapolítica, ou seja, a revolução
radical ou emancipação humana.
Em nossa apreciação, não constatamos mudanças significativas na
evolução da análise empreendida por Marx. De modo geral, seu diagnóstico
ganha novos contornos ao longo do tempo, mas sempre na mesma linha
interpretativa e propositiva. A denúncia da debilidade histórica da burguesia e
o apontamento do caráter nefasto de uma política de conciliação entre o novo
e o velho o mantidos ao longo dos textos marxianos dos anos 1840. O que
ocorre é um adensamento da análise, isto é, são acrescidas novas
determinações ao quadro do desenvolvimento tardio do capitalismo na
Alemanha. Nesse sentido, pode-se destacar a afirmação exacerbada da figura
do estado político, a aparente autonomia da intelectualidade em relação à
burguesia, os efeitos do atraso no campo da consciência comunista e a rica
análise da luta de classes em solo alemão. Mesmo o contraponto do
anacronismo ganha novos contornos, com uma descrição mais nuançada do
processo clássico de revolução burguesa. Marx chega até a distinguir no
interior desse último a modalidade específica seguida nos estados norte-
americanos. Em suma, de acordo com nossa avaliação, uma conexão
orgânica no conjunto dos textos selecionados.
Como fizemos questão de assinalar no início deste artigo, não temos a
intenção de acompanhar a trajetória completa da transição alemã ao
capitalismo na obra de Marx, mas apenas mostrar, com algumas passagens dos
anos 1840, a preocupação do autor com a particularidade presente. Trata-se
de tema constante na obra marxiana, ainda que não seja central. De fato, a
especificidade da constituição do capitalismo alemão é uma problemática
faceada por Marx no enfrentamento de questões as mais variadas, desde as
configurações ideais até as formas de confrontação política. Assim, não
estamos diante da mera descrição de um conjunto de idiossincrasias nacionais,
mas sim do enfrentamento da questão fundamental acerca das objetivações
particulares da constituição e da processualidade do capitalismo, as quais
estabelecem a plataforma que possibilita os múltiplos modos de ser dos
diversos momentos da totalidade social. Ao empreender o trabalho em
questão, Marx foi pioneiro na visualização e investigação de transições não
clássicas ao capitalismo, abrindo perspectivas importantes para aqueles que se
inspiram em suas reflexões, as quais deram resultados particularmente
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frutíferos nas obras de autores como Vladimir Lênin, György Lukács e Antonio
Gramsci
17
.
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______. A “imagem do Brasil” na obra de Carlos Nelson Coutinho: a
hipótese da “via prussiana” e da “revolução passiva”. S. l.: Novas Edições
Acadêmicas, 2015.
17
Em outra oportunidade, tratamos da teorização própria de Antonio Gramsci, sintetizada na
fórmula da “revolução passiva” (cf. SILVA, 2010). As reflexões de Marx e de seus seguidores
no que tange ao tema da particularidade da constituição do capitalismo também nortearam
autores que trataram do caso brasileiro. Entre outros, podem ser mencionados nomes como
os de Carlos Nelson Coutinho, J. Chasin e Luiz Werneck Vianna (cf. SILVA, 2015).
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Como citar:
SILVA, Vladmir Luis da. A particularidade da constituição do capitalismo
alemão em Marx: algumas passagens dos anos 1840. Verinotio Revista on-
line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 353-84,
jan./jun. 2020.
Data do envio: 3 jan. 2020
Data do aceite: 14 jun. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.528
John Kennedy Ferreira
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Resenha
O capital monopolista financeiro no Brasil
John Kennedy Ferreira
1
ROCHA, Ronald. Anatomia de um credo: o capital financeiro e o progressismo
da produção. Belo Horizonte: Editora O Lutador, 2018. 148 p.
Antônio Ermírio de Moraes foi símbolo do capitalismo industrial
brasileiro, criticava a ostentação dos novos ricos e o sistema financeiro. Certa
feita, entrou numa loja para comprar um relógio importado e o vendedor
vendo seus trajes humildes lhe avisou que “não era para seu bico”, mal sabia o
comerciante que estava diante de uns dos brasileiros mais ricos. Vestia-se
simples e, reza a lenda, que usava as roupas de seu falecido pai. Para além
disso, sempre foi um crítico contumaz do sistema financeiro, chegou a dizer:
“Se não acreditasse no Brasil, seria banqueiro.” Isso porque em uma época de
crise sua empresa pegou um empréstimo que levou 15 anos para pagar.
Nesse período, a estruturação do capital monopolista estava iniciando a
sua engrenagem no Brasil e predominava a ideia de que havia uma burguesia
nacional progressista, defensora dos interesses nacionais frente aos capitais
estrangeiros e financeiros. Antônio Ermírio foi um herói burguês da
industrialização tardia, foi saudado na sociedade como líder das “classes
produtoras”.
Antônio Ermírio viveu o apogeu de um capitalismo industrial onde, na
maior parte de sua vida empresarial, não havia a fusão monopolista de capitais
industrial e financeiro (GORENDER, 1981, p. 107).
Essa aura romântica e esse debate que se desenvolveu nos anos de 1950,
60 e até os anos 80, sobre o papel progressista de uma burguesia nacional
produtora, voltou requentada com a chegada dos governos social-liberais no
ano de 2002 (BOITO, 2017; MARTUSCELLI, 2018; ALMEIDA, 2019). O
crescimento que se viu com o mercado interno aquecido e com a poderosa
intervenção do estado, favorecendo grupos nacionais em disputas internas e
externas, levou a que não poucos observadores imaginassem o surgimento de
uma poderosa burguesia interna capaz de gerar uma nova fase de prosperidade
ao capitalismo brasileiro. Não foram poucos os que enxergaram o Brasil como
sócio menor do seleto grupo dos países imperialistas (FONTES, 2009, p. 115).
1
Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do
Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
E-mail: jotakennnedy@yahoo.com.br.
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Pouco tempo depois dessa euforia toda, o governo social-liberal de
Dilma caiu sem luta, sem que o seu principal beneficiado, a burguesia
interna”, tomasse qualquer posição concreta para defender seus interesses. O
que levou a muitos a se perguntarem por que não houve nenhuma resistência
dessa fração política?
Ronald Rocha se propôs a debater a formação atual dos capitais
brasileiros e, de sorte, fazer uma anatomia da composição orgânica de sua
estrutura in démarche de seus interesses políticos.
Dessa maneira realiza seu trabalho em três grandes abordagens: a
primeira será sobre a composição antiga dos capitais financeiros, a segunda
sobre os capitais financeiros no culo XXI e, por fim, a decorrência política
desse novo capital nos dias que se segue no Brasil.
Logo de cara, Rocha mostra que se formou um mantra que se repete ano
após ano nos jornais, na academia e mesmo em segmentos da esquerda: uma
separação fictícia entre um capitalismo “produtivo” e financeiro. Segundo essa
lenda, os capitais especulativos vampirizam a sociedade e os capitais
produtivos. Por essa lógica, os capitais usurários seriam uma espécie à parte
do capital.
Rocha lembra que desde o século XVIII, os juros modernos advêm da
própria realização da mais-valia, isso é: uma manifestação do lucro
empresarial que se divide enquanto capital empregado na produção ou
comércio e outro, em juros do capital creditício, mas a sua origem é a própria
mais-valia extraída da produção da mercadoria.
Destaca que tal mobilidade ocorre em função do desenvolvimento da
sociedade civil burguesa nos séculos XVII e XVIII, que apresenta o ser como
indivíduo autônomo e exclusivo, que se desenvolve a partir de sua própria
iniciativa. Essa imaginação reificada qualifica e a individualidade (de seu
capital) como sendo oprimido por um movimento usurário, o que leva a
pequena-burguesia emparedada e com pequena margem de lucros entre as
grandes corporações a crer que a sua produção está limitada ao pagamento
de juros. Sonha-se até com um paraíso terrestre sem os juros. Evidente que
esse setor abstrai o fato concreto de que seus negócios não teriam começado e
nem prosperado sem o capital financeiro e, portanto, imaginam-se eles os
“produtores” onerados pela financeirização da economia.
Por essa ideação, grandes magnatas brasileiros, suas milionárias
federações industriais, mais acadêmicos e imprensa, apresentam esse grupo
econômico como “produtores” e vítimas que são massacradas pelo capital
financeiro, esquecendo o fato de que a riqueza advém do trabalho humano
expropriado e transformado em mais-valia. Rocha recorda que mais de 100
anos o capital financeiro centraliza em um todo orgânico toda a mobilidade
dos capitais.
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Retoma então ao processo que desencadeia a financeirização do mundo,
lembrando os estudos e as resoluções dos Congressos da Social-Democracia,
com a produção intelectual de John Hobson (Imperialismo, 1902), Rudolf
Hilferding (O capital financeiro, 1910), Rosa de Luxemburgo (Acumulação
primitiva, 1914) e Vladimir Lênin (Imperialismo, fase superior do
capitalismo, 1917). Deixando claro que a partir do momento que o houve a
fusão entre os capitais industriais e financeiros, os velhos capitais autônomos
entraram em decadência, tendo como futuro ou se fundir aos grandes
conglomerados ou perecer.
De para a financeirização avançou muito, bastando ver que entre
1980 e 2006 cresceu 14 vezes, enquanto o PIB apenas cinco vezes. As terceira
e quarta revoluções industriais dotaram o capital de uma imensa velocidade,
isso a impressão de que o capital não tem base material, mas ao contrário,
nunca a exploração e a extração de mais-valia foram tão amplas e intensas.
Dessa maneira conforma-se um capital monopolista financeiro.
Rocha demonstra que o núcleo de compreensão do sistema capitalista
não está na circulação ou no humor ou outras subjetividades do mercado, mas
sim o processo anárquico de produção de mercadoria, o que é determinante
para entender as crises de 2008 e 2014 e própria política brasileira.
Aqui observamos de que forma as opções dos conglomerados
monopolistas financeiros decidiram por terminar a experiência social-liberal
brasileira, pois essa fração superior do capital
transformou a massa de empresários em sua tributária, bem como
adquiriu um peso dominante na exploração do trabalho, na vida
social, no controle da mídia, no funcionamento dos órgãos estatais,
na correlação de forças parlamentares, na elaboração das políticas
governamentais e no exercício da hegemonia (p. 87).
A partir do instante em que o condomínio monopolista financeiro
determina as relações sociais, a própria lógica de superação da dependência se
torna uma quimera, que as relações imperialistas se naturalizaram e
tornam-se partes da realidade geral com o imperialismo agindo internamente
e externamente em seu próprio proveito. Dessa maneira a questão soberana
nacional deixa de ser um apanágio burguês e se “converteu uma tarefa
prioritária dos trabalhadores, na exata medida em que a questão proletária se
transformou em imperativo nacional” (p. 91).
De igual forma processa-se uma alteração profunda no aparelho do
estado, que passa a agir conforme os interesses do capitalismo monopolista
financeiro, onde o estado passa a ser um facilitador dos interesses privados. Se
antes a bancarrota liberal (1929) levou a burguesia a colocar limites à livre
concorrência, nos dias hoje se segue o contrário, o casamento entre os
oligopólios nacionais e o estado é substituído pelo fortalecimento da livre
iniciativa monopolista financeira tanto nos aspectos voltados à privatização
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como nas concessões. São duas faces possíveis da ação e alargamento ou não,
das políticas monopolistas financeiras e seu estado.
Ou seja, a caracterização do estado como monopolista e financeiro
define ainda dois momentos de análise: o primeiro, mostrando as dimensões e
particularidades nacionais em comparações com outras experiências. Rocha
toma, por exemplo, os países que fizeram rupturas com o sistema financeiro
mundial (Cuba, China etc.), chama a atenção que as concessões feitas ao
sistema capitalista foram realizadas por estados sobre o controle de
organismos revolucionários e comunistas e, em seguida, mostra que as
concessões feitas pelo estado brasileiro foram promovidas por um estado
burguês sobre controle do capital monopolista financeiro. Daí decorre algumas
falsas compreensões: a mais notória de todas é de limitar o universo das ações
do proletariado ao limite da ordem burguesa, crendo por falsa análise da
realidade e da história em que há “uma etapa” de democracia burguesa,
decorrendo novos pactos com a burguesia nacional anti-imperialista etc.
A segunda, e o importante quanto primeira, é a limitação teórica que
a falsa análise da realidade produz, já que limita a ação e a imaginação dos
partidos e movimentos dentro de um estado dominado (interna e
externamente) pela ação imperialista e de seu condomínio monopolista
financeiro.
Voltemos a Antônio Ermírio de Moraes, este, ao fundar o Banco
Votorantim (BV), disse que “a ideia era o pagar os juros cobrados pelo
mercado e estabelecidos pelo Banco Central”. Poucos anos depois, o BV já era
um dos mais importantes bancos financeiros do país. Antônio Ermírio de
Moraes Neto, herdeiro desse importante grupo econômico, saúda o
crescimento explicando a habilidade e mobilidade que a financeirização
possibilitou à corporação.
O livro de Ronald Rocha é uma contribuição que chegou silenciosa e aos
poucos vai ganhando voz no debate após o golpe de 2016. Enquanto alguns se
preocupam em criar uma nova burguesia, em crer na autonomia das frações
burguesas, Rocha mostra o inverso, como deve se organizar e se preparar as
classes proletárias e populares para os embates no centro de uma nova
realidade concreta: o capitalismo monopolista financeiro.
Por fim, as de 148 páginas do livro são bem escritas, acinzentadas
cansando menos ao leitor. O autor é conhecido pelo seu refinado marxismo e
exigente erudição, a orelha vem com um bom comentário do líder sindical José
Reginaldo Inácio e, na outra orelha, uma breve apresentação biográfica do
autor. no corpo, segue uma apresentação muito boa de Carlos Machado,
diretor do Sinpro-MG.
Um bom texto e uma boa contribuição para os dias que se seguem!
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Como citar:
FERREIRA, John Kennedy. O capital monopolista financeiro no Brasil
(resenha). Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio
das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 385-9, jan./jun. 2020.
Data do envio: 14 mar. 2020
Data do aceite: 12 jun. 2020