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VERINOTIO REVISTA ON-LINE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ISSN 1981-061X v. 26 n. 2 JUL./DEZ. 2020
PERIODICIDADE: SEMESTRAL
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SUMÁRIO
Editorial .................................................................................... 7
Vitor Bartoletti Sartori
DOSSIÊ: 200 anos de Engels
A crítica marxista do direito diante de Friedrich Engels ...................... 16
Vitor Bartoletti Sartori
O hegelianismo do jovem Engels (1839-42) ......................................... 61
Felipe Cotrim
Teoria da história ou gênese do capital? As diferentes recepções aos
estudos etnológicos de Marx ................................................................ 85
Gustavo Henrique Lopes Machado
Engels contra Marx? Do lógico/histórico aos níveis de abstração ....... 110
César Mortari Barreira
A questão do fim do estado: confluências e divergências nas análises de
Marx e Engels ................................................................................... 134
Felipe Ramos Musetti
Estado dos capitalistas ou estado do capital? Linhas de recepção do
conceito de estado de Engels no século XX ........................................ 168
Ingo Elbe
Engels, etnógrafo do capitalismo? .....................………………………..… 194
Lucas Parreira Álvares
A superação dos pilares do marxismo de Friedrich Engels na obra de
György Lukács: rumo ao resgate do pensamento de Karl Marx ............ 207
Vladmir Luís da Silva
Un férreo lector de Engels: aproximaciones a la obra de José
Ferraro …………………………………………………………………………………….. 235
Jaime Ortega Reyna
Traduções: Friedrich Engels
Apresentação das traduções ............................................................... 254
Vitor Bartoletti Sartori
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Esboço para uma crítica da economia política …………………….………. 263
Friedrich Engels
O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia ……………………… 288
Friedrich Engels
O Livro de apocalipse ........................................................................ 299
Friedrich Engels
Artigos de fluxo contínuo
As relações entre capitalismo e forma romanesca em Lucien
Goldmann ......................................................................................…. 305
Aline Cristina Ferreira
A “Profissão de do Vigário Saboiano e a fundamentação do
pensamento de Rousseau ................................................................... 321
Henrique Segall Nascimento Campos
O silêncio ontológico na obra de Wittgenstein: crítica à filosofia da
educação matemática ......................................................................... 359
Guilherme Wagner; Everaldo Siqueira
Gaudemar encontra Pachukanis: breve ensaio sobre a mobilidade do
sujeito de direito e migrações ............................................................ 383
Gabriel Martins Furquim; Mauro Cardoso Simões; Milena Pavan Serafim
Crítica marxista do estado e do direito: Nicos Poulantzas
em debate ...........................................................................................403
Thais Hoshika
Capitalismo periférico: do desenvolvimento atrofiado à reiteração das
desigualdades globais ........................................................................ 432
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.594
Vitor Bartoletti Sartori
7
Editorial
Vitor B. Sartori
1
A presente edição da Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências
Humanas traz, além dos habituais textos de fluxo contínuo, um dossiê sobre
os 200 anos do nascimento de Friedrich Engels. Trata-se de uma ocasião em
que não somente se rendem elogios a este importante autor, mas também se
tem a possibilidade de reflexão crítica sobre sua obra, o marxismo e a própria
realidade social.
Dentre as diversas posições defendidas nos artigos sobre o autor do
Anti-Düring, certa ênfase ao fato de se tratar do primeiro divulgador da
obra de Marx. E, com isto, pode-se dizer que os marxistas são todos, mesmo
que indiretamente, herdeiros de Engels. Assim, o presente número da
Verinotio pretende auxiliar, mesmo que minimamente, no debate que pode
dar ensejo à mencionada reflexão crítica e autocrítica.
Há, portanto, alguns pontos a serem levantados. de se dizer que,
depois da morte de Marx, as dificuldades engelsianas não foram poucas.
Primeiramente, quer se queira, quer não, ele foi um pensador de estatura
menor que seu grande amigo. Somado a isto, tem-se o fato de explicitamente
ele ter buscado divulgar, e popularizar, posições que não foram suas e que
foram desenvolvidas pelo autor de O capital. Deve-se destacar também a
necessidade que teve o autor do Anti-Düring e todo aquele comprometido
com as lutas de uma época de compreender a complexa tessitura da
realidade, e isto sem o auxílio direto de seu grande amigo, que morreu em
1883. Ou seja, em Engels, e na própria tradição marxista, havia tarefas
bastante díspares e que, embora correlacionadas, imediatamente pareciam
opor-se. Os artigos do presente mero abordam estes aspectos de um modo
ou doutro: trazem elementos decisivos do debate em torno da obra de
Friedrich Engels e das consequências das leituras dele e dos marxistas que o
seguiram.
Isto é importante porque a grandiosidade do marxismo, em parte
considerável, decorre da correlação existente entre as tarefas mencionadas,
ligadas a aspectos da formação de alguns pontos centrais para a crítica à
sociedade capitalista: ao rigor de uma tradição intelectual, à formação de uma
consciência comunista de massa e à análise apurada do processo de
desenvolvimento, bem como das contradições e das oposições, que marcam a
realidade social de uma época. Engels, de certo modo, precisou ser
1
Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Autor de Ontologia nos extremos:
o embate Heidegger e Lukács, uma introdução (Intermeios, 2019). Coeditor da Verinotio. E-
mail: vitorbsartori@gmail.com.
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“marxólogo”, ativista político socialista e alguém que, a partir do conhecimento
acumulado e do modo científico de proceder diante da realidade, procurou
apreender as determinações desta última. E o fez tanto ao procurar explicitar
as dimensões mais universais da realidade efetiva de uma época quanto no que
diz respeito à especificidade de cada formação social em cada momento do
desenvolvimento histórico do sistema econômico capitalista e de um povo.
Se teve o mesmo sucesso que Marx nesta última empreitada não cabe
levantar aqui, mas os debates trazidos nos artigos do presente dossiê
adentram, de um modo ou doutro, neste importante problema. O essencial
aqui é destacar que, consciente da determinação social do pensamento, bem
como da função concreta que este exerce na realidade como ideologia, a
tradição marxista, seguindo Engels, buscou uma correlação entre a crítica da
situação presente e a necessária superação da sociabilidade burguesa.
O marxismo, assim, parecia ter por vocação se tornar uma força
material. E, para tanto, precisaria manter sua capacidade analítica, seu rigor e
exercer uma função social por meio da correlação entre os intelectuais e as
massas. Estas últimas, estando educadas naquilo que de melhor haveria no
pensamento ocidental, poderiam criticar as bases do modo presente pelo qual
a civilização explicita-se contraditoriamente: o modo de produção capitalista.
Uma consciência comunista de massa seria, pois, de grande relevo.
Nos 200 anos do nascimento de Engels, porém, sabemos que a história
embora marcada por episódios importantes, em que a unidade destas tarefas
se manifestou de modo mais ou menos meandrado mostrou que as
dificuldades que Engels enfrentou foram muito maiores para seus herdeiros
no século XX. É preciso que se diga, sobre os anos que se passaram depois da
morte de nosso autor: se o centenário de Friedrich Engels foi marcado pelas
possibilidades trazidas à tona pela Revolução Russa, dificilmente achamos
algum intelectual no século XX que tenha realizado tais tarefas de modo pleno.
E, desde o início, o marxismo precisou lidar com as dificuldades já encontradas
por Engels. Mesmo V. I. Lênin, se comparado a Engels, tinha uma formação
filosófica problemática. Um autor como György Lukács nem sempre de se
colocar diante das situações concretas da melhor maneira, e com uma análise
cuidadosa e materialista da situação concreta (basta pensar no messianismo e
na associação entre Weber, Hegel e Marx, de História e consciência de classe);
o mesmo vale, ainda que de modo mediado, para alguém como E. Bloch; Rosa
Luxemburgo, grande leitora da economia política e grande política comunista,
foi brutalmente assassinada; A. Gramsci ficou preso durante seu ápice
intelectual e morreu em decorrência de seu tempo na prisão. Karl Korsch
distanciou-se intencionalmente da práxis do movimento comunista. N.
Bukhárin, embora pudesse possuir méritos em certos aspectos de suas teorias,
era claramente dogmático em temas como o do desenvolvimento das forças
produtivas (vale destacar que tanto Gramsci quanto Lukács o atacaram com
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bastante vigor sobre o assunto). Ou seja, a difícil unidade do pensamento e da
prática engelsiana e marxista apareceu nos maiores expoentes do
marxismo do início do século XX de modo trágico e, é claro, correlacionado à
situação histórica da época, marcada por grandes potencialidades e por uma
violenta reação. Esta última foi vigorosa, com o exército branco invadindo a
Rússia revolucionária e, depois, tornou-se efetiva no fascismo, no nazismo e
em outras formas ideológicas irracionalistas, regressivas e afeitas ao ser-
propriamente-assim do capitalismo. E quase não é preciso dizer que, diante da
ameaça fascista, os desafios que já se haviam colocado a Engels reapareceram
de modo fortíssimo. Mostraram-se, também de forma extremamente
complicada na hegemonia do stalinismo no movimento comunista.
O taticismo stalinista foi incapaz de articular estas tarefas de modo
minimamente coerente: sua leitura de Marx era escolástica, sendo este autor
substituído por textos stalinistas de um simplismo atroz; o debate com os
clássicos do marxismo e o desenvolvimento de uma tradição crítica também
ficaram, na melhor das hipóteses, estancados. A análise de realidade era feita
de modo tosco, por meio das formulações dogmáticas da III Internacional. E,
assim, mesmo que a existência da União Soviética possa ter sido um potente
incentivo àqueles que lutaram contra o nazifascismo, o stalinismo foi um
entrave ao desenvolvimento socialista e à realização da unidade colocada entre
as tarefas que apareceram pela primeira vez já na prática e na teoria de
Friedrich Engels.
Voltemos, porém, aos grandes expoentes do marxismo do começo do
século XX: todos, de certo modo, buscaram incansavelmente tal unidade, mas
ela estava condicionada, como não poderia deixar de ser, pela própria
realidade. E esta última foi marcada pelos rumos da Revolução Russa e pela
crescente subordinação do movimento comunista aos caminhos teóricos e
práticos desta, que, também em sua grandiosidade, acabou em parte
considerável por eclipsar aspectos da especificidade nacional de cada formação
social que estudavam ou em que atuavam os marxistas. A importância desta
Revolução, assim, trouxe um aspecto dúplice: mostrou que seria possível a
formação de uma consciência comunista de massa e explicitou a possibilidade
de as formas econômicas capitalistas serem ultrapassadas; porém, também fez
que o mundo todo tivesse um olhar um tanto quanto russo para o socialismo
e para o marxismo.
E, se é verdade que mesmo Marx já havia se voltado para a Rússia, isso
havia ocorrido com a preocupação de destacar a diferença específica entre as
distintas formas de entificação do capitalismo e, por conseguinte, as distintas
vias revolucionárias. Observe-se que o que ocorreu na época foi, de certo modo,
o oposto disso. O que não deixou de ser desastroso.
Para que nos aproximemos da realidade brasileira, podemos dizer que,
à época da Revolução Russa, tanto o marxismo disponível em países não
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europeus quanto a apreensão da particularidade destes países foram bastante
débeis. E isto não decorreu necessariamente da obra de Marx e de Engels
supostamente europeus privilegiados, que, hoje, precisariam passar por uma
crítica “decolonial” , que trataram da Rússia, da China, da Índia, da miséria
alemã, da diferença entre o desenvolvimento americano e o francês, dentre
outros pontos. No século XX, em meio ao centenário de Engels, em grande
parte, a tarefa de divulgar a obra de Marx se deu sem acesso a textos
importantes deste autor, que somente depois seriam publicados. A
popularização da posição marxiana passou também pela ação de propaganda
da II Internacional, cuja interpretação foi marcada fortemente por uma
concepção mecanicista, economicista e evolucionista. Depois, veio o
esquematismo e o dogmatismo da III Internacional. Ou seja, salvo raríssimas
exceções, como Lênin, Gramsci e, em parte, Rosa Luxemburgo, a apreensão da
peculiaridade das formações sociais foi simplesmente ignorada. Os
“marxistas” dos países não europeus também demoraram a se desenvolver de
modo minimamente aceitável e com o mínimo de conhecimento sobre a obra
de Marx, sobre o marxismo e, também, sobre aspectos decisivos da crítica ao
modo pelo qual a entificação do capitalismo se deu em seus países.
Assim, quer se queira, quer não, quando se toma por referência o
movimento socialista, o centenário do pensamento de Engels foi marcado pela
atuação, sobretudo, de intelectuais europeus. Em conjunto, parte destes
grandes pensadores contribuiu enormemente para o movimento, inclusive,
compreendendo a realidade social de seus países com cuidado e buscando e,
por vezes, conseguindo orientar os distintos movimentos revolucionários dos
trabalhadores. No contexto, podemos dizer que a Revolução Russa, e suas
dificuldades iniciais, marcaram o centenário de Friedrich Engels. Uma parte
dos marxistas lidou com as dificuldades enfrentadas por Engels, outra que
triunfaria com o stalinismo, posteriormente parecia não se dar conta sequer
dos reais problemas colocados teórica, prática e efetivamente. Assim,
infelizmente, também podemos pontuar que, tanto pelas razões teóricas que
apontamos acima (e por outras mais graves basta pensar no gradual triunfo
do stalinismo em parte substancial do movimento comunista) quanto por
razões práticas, como o grau de desenvolvimento das forças produtivas de um
país como a Rússia, que se viu de repente isolado, uma tragédia veio a
desenvolver-se. Os rumos do marxismo posterior à morte de Engels (em 1895)
trouxeram grandes dificuldades que foram combatidas de modo hercúleo, mas
que, com o desenvolvimento do século XX, não foram superadas nem mesmo
nos melhores casos.
Não que não tenham existido grandes vitórias da classe trabalhadora.
Hoje, porém, vemos que o socialismo de moldes soviéticos sofreu uma derrota
irreversível. Talvez seja possível dizer que ela não era inevitável; porém, com
as tarefas do marxismo subordinadas a “intelectuais” stalinistas que mais se
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assemelhavam a burocratas, dificilmente tal unidade almejada por Engels e
pelos grandes marxistas poderia ter sido bem-sucedida. Neste sentido
específico, não se pode deixar de dizer que não houve o que comemorar nos
100 anos da Revolução Russa, em 2017. As potencialidades desta Revolução
foram muitas, mas parte de sua herança ligou-se inelutavelmente ao
stalinismo, que, mesmo que possa ser explicado, na época, pelas condições
materiais da União Soviética, foi um entrave ao movimento socialista. Tal
tradição certamente, para dizer o mínimo, é uma degeneração e uma
falsificação de uma posição crítica e revolucionária.
O evento que marca o centenário de Friedrich Engels, e o marxismo que
daí decorreu, teve, portanto, um rumo trágico, assim como foi trágico o destino
dos grandes intelectuais socialistas do início do culo XX. Lukács, por
exemplo, precisou render homenagens, mesmo que protocolares, ao
stalinismo, que tanto criticou. Permaneceu, de um modo ou doutro, limitado
pela realidade de sua época e pelas suas esperanças na reforma do sistema
soviético. O marxista húngaro permaneceu isolado e parte substancial de seus
textos de intervenção foi publicada muitos anos depois de escritos. Lênin
morreu cedo, Trotsky foi assassinado a mando de Stálin, Rosa foi assassinada
e Gramsci apodreceu na prisão... Ou seja, mesmo sabendo da unidade das
tarefas que mencionamos, tais intelectuais foram levados pelos rumos do
conturbado século XX, no qual ocorreu, na melhor das hipóteses, o isolamento
e o silenciamento de uma das maiores vozes daquele período. O que nos leva a
uma preocupação sobre o presente: ao analisarmos o pensamento de Engels,
bem como as questões que se colocam a partir dele no século que nos antecede,
as quais marcam os rumos dos intelectuais que mencionamos, podemos dizer
que a farsa vem depois da tragédia? Seria o bicentenário de Engels a reedição
farsesca de seu centenário?
Esta talvez seja uma importante questão a ser respondida no
bicentenário deste autor. Duzentos anos depois de seu nascimento e um pouco
mais de 100 anos depois da Revolução Russa estamos em uma situação, para
dizer o mínimo, nada boa para os marxistas.
Os herdeiros diretos dos grandes pensadores do início do século XX, em
grande parte, morreram ou não tiveram envergadura suficiente. Deste modo,
, na melhor das hipóteses, lukacsianos, leninistas, gramscianos,
luxemburguistas, trotskistas etc. Mas a gigantesca capacidade analítica dos
mestres não está presente nos discípulos. Estes, não raro, utilizam somente
uma espécie de jargão que supostamente estaria presente naqueles em que
embasam sua teoria e sua prática. Ou seja, as tarefas que Engels colocava a si
mesmo e aos marxistas passam longe de serem cumpridas de modo
satisfatório. Adicionam-se, ainda no campo marxista, althusserianos,
discípulos da teoria crítica (de Adorno, Horkheimer, Marcuse, Benjamin, entre
outros) e tantas linhagens afins importantes em diversos aspectos que,
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geralmente organizadas em torno da vida universitária (embora não só),
correm constantemente o risco de se tornarem seitas.
Ainda seria possível dizer que alguma força de maoístas embora
raros e de stalinistas, mais presentes em certa militância socialista que é
saudosa das virtudes, mas, sobretudo, dos vícios do movimento socialista do
século XX. Poderíamos ainda destacar inúmeras vertentes de marxistas. E,
assim, no bicentenário de Engels, aparentemente haveria debates pungentes
entre aqueles que, a partir de Marx, e na esteira do pensamento engelsiano,
buscam criticar o sistema capitalista de produção. Se esta pungência se
colocasse crítica e efetivamente, e se tivesse uma função prática decisiva no
movimento dos trabalhadores, estaria longe o desfecho não mais trágico, mas
cômico e farsesco para os intelectuais marxistas envolvidos nas lutas
anticapitalistas e na alternativa à sociabilidade burguesa. Trata-se de um
grande “se”.
Infelizmente, a capilaridade de tais marxismos no movimento dos
trabalhadores é muito fraca. Aliás, o próprio movimento dos trabalhadores
está em uma crise séria, que precisa ser entendida. E, assim, se as
potencialidades da Revolução Russa marcaram o centenário de Friedrich
Engels, mudanças substantivas na forma pela qual se desenvolveram as forças
produtivas, na organização das relações de produção e no modo pelo qual se
toma consciência destas marcam o bicentenário do autor. Neste contexto, uma
tarefa essencial aos marxistas seria tal qual fez Engels em sua época, ao
analisar o caráter ultrapassado das lutas de barricadas e ao trazer à tona as
mudanças na economia capitalista, advindas dos monopólios e das empresas
por ações considerar com muito cuidado as determinações contemporâneas
do modo de produção capitalista.
Engels, também pautado pela organização do livro III de O capital, em
que tais temas apareciam, partiu de Marx, mas pretendeu ir além,
compreendendo a sua época com todo o cuidado possível. Talvez isto seja
necessário ao marxismo hoje. E, se é verdade que as dificuldades que o autor
do Anti-Düring encontrou foram muitas e que nem sempre sua análise de
realidade esteve plenamente correta, igualmente verdadeiro é que nosso autor
sabia que não bastava repetir aquilo que Marx havia dito. Ele também tinha
consciência de não se podia em hipótese alguma trazer respostas que
mobilizariam os trabalhadores imediatamente, mas que não correspondiam à
verdade da situação concreta. Hoje, por outro lado, não podemos deixar de
notar: a posição dos muitos marxismos que se colocam no mercado das ideias
(e das redes sociais...) é muito distinta daquela de Engels.
Isto, é claro, deve-se à menor envergadura dos intelectuais
contemporâneos, via de regra, escravizados pela divisão do trabalho de modo
muito mais claro e brutal que seus antepassados do século XX. também as
dificuldades naturais da conjugação de rigor analítico na leitura dos clássicos
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(ou seja, não mais de Marx, mas de Engels e Lênin, entre outros), da
tentativa de avançar em teorizações marxistas e da análise de realidade. Isto é,
não se trata de fatores simplesmente ligados à subjetividade e à vontade
individuais. Antes, as determinações de uma época marcada pela derrota do
movimento socialista do século XX (e, mais recentemente, por retrocessos
gritantes no que diz respeito à organização das relações de trabalho) deixa suas
marcas.
Dessa forma, nosso (coloco-me, é claro, dentre aqueles que estão
marcados pelas limitações levantadas acima) marxismo tem dias muito difíceis
pela frente. Para que não seja uma simples expressão cômica e farsesca daquilo
que foi, precisa avançar muito, sendo que suas bases não são as melhores:
no que diz respeito à compreensão dos clássicos, parecemos oscilar entre a
exegese escolástica e as hermenêuticas da imputação, que procuram
“atualidade” em Marx e nos clássicos do marxismo mesmo que seja preciso
deformá-los. Na tarefa de divulgação e popularização, não uma imprensa
socialista e as grandes editoras como é de sua natureza precisam ter por
norte o cálculo comercial. Com isto, a popularização de Marx e do marxismo
corre o risco de se alastrar nos rincões das redes sociais, em que, de repente, o
intelectual marxista é forçado a se tornar uma espécie de “influencer”. Sem a
base teórica adequada, e com disputas não raro, bizantinas entre os vários
“ismos” do marxismo atual, a análise de realidade é usualmente rasa,
esquemática e extremamente voluntarista.
Nossa envergadura, certamente, não é semelhante à dos nossos
antepassados; porém, a ausência de autocrítica (muitas vezes, não se sabe
sequer o solo em que se está pisando, mas continua-se: “bola pra frente”!) leva
a consequências sérias. Nem sequer questionamos seriamente as razões de
nossa quase insignificância prática... este talvez seja o primeiro passo para que
não sejamos simplesmente cômicos. Se este questionamento não aparece de
modo sério, os jargões substituem a análise de realidade, o debate marxista
vira simples clubismo e a compreensão da obra de Marx, na melhor das
hipóteses, coloca-se como uma questão meramente escolástica. Certamente,
enunciar um problema não é o mesmo que resolvê-lo; porém, é preciso, com
autocrítica, assumir os problemas de uma época em sua real tessitura. Se é
verdade que a humanidade somente coloca a si mesma problemas que pode
resolver, igualmente verdadeiro é que tal resolução demanda muito de nós.
Uma coisa é séria: damos passos largos à farsa no campo da teoria. Os
marxistas do século XX, que por vezes beiraram certo sincretismo, procuraram
ler Marx por meio de Kant (austromarxistas, Colleti), de Hegel (Lukács de
História e consciência de classe e os frankfurtianos), por Heidegger (Marcuse)
e Husserl (Karel Kosík), Spinoza (Althusser), entre outros. Fizeram-no em
meio aos conflitos teóricos de uma tradição que parecia mais do que nunca ser
uma força material junto ao movimento dos trabalhadores. Não raro, tentaram
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complementar Marx devido a supostas insuficiências de seu pensamento.
Mesmo que seja possível questionar tais insuficiências, este não é nosso ponto,
aqui; cabe destacar somente que, hoje, a questão se coloca de outro modo. De
modo muito pior.
Para iniciar, parece haver certa tentativa de revigorar o stalinismo. Em
um momento em que a especificidade do capitalismo e das formações sociais
precisa ser compreendida com todo o cuidado, procura-se ressuscitar
justamente a tradição que é mais cega a isto. Não debaterei os meandros da
questão, ou as tentativas supostamente historiográficas de combater tal lenda
negra”... mas comparar uma biografia como a de I. Deutscher, por exemplo,
àqueles que procuraram recentemente retirar Stálin do ostracismo é de uma
covardia gigantesca. Deste modo, é preciso falar daqueles que se contrapõem
ao stalinismo ou que procuram complementar suas insuficiências. Aqui, a
farsa já está consumada: em vez de se tomar como referência as insuficiências
de Marx, toma-se Stálin como ponto de partida.
Continuemos, pois. Voltamo-nos àqueles que se opõem ao stalinismo.
Não raro, fora de poucos círculos, ou uma leitura atenta de Marx é vista
como purista, de modo que nem sequer se busca compreender o autor que
nome a uma tradição, ou tal leitura é vista como um exercício simplesmente
filológico (basta pensar em algumas declarações de certos membros da
MEGA2, como bem alertou entre nós Maurício Vieira Martins); em esquerdas
marxizantes, são imputados diversos temas contemporâneos, e nem sempre
bem colocados, ao pensamento do autor. Deste modo, Marx aparece como
culpado por não ter tratado daquilo que se coloca em nosso capitalismo senil
como, de imediato e na superfície, fundamental. Não seria a anatomia do
homem a fornecer uma das chaves à anatomia do macaco; a anatomia de um
corpo putrefato é tomada como referência e procura colocar-se como A chave
do presente; e, deste modo, a presentificação sem qualquer mediação tende a
marcar inúmeras hermenêuticas da imputação. Assim, seria preciso
complementar Marx não mais com grandes autores da filosofia que eles
seriam todos homens, brancos, europeus, sendo preciso um pensamento
realmente decolonial, não eurocêntrico, não heteronormativo etc. , mas a
partir do mercado de ideias que marca a imediatidade das lutas sociais.
Os campos em que se deveria beber são muitos: as redes sociais, as
lideranças de movimentos sociais, que são marcadas por um antimarxismo e
antissocialismo gritantes, e, no limite, quaisquer autores e autoras que
pareçam cumprir uma função crítica diante dos adversários teóricos. E, assim,
de repente, parece não haver o que apreender objetivamente no pensamento
de Marx, no marxismo e na própria realidade.
Parece tratar-se de marcar posição, de modo que a complementação do
marxismo se aproxima bruscamente de uma forma de nominalismo muito
perigosa: o essencial não é mais a apreensão da realidade que permite que
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possamos operar em meio às possibilidades e contradições desta , mas a
contraposição aos inimigos práticos e teóricos. O taticismo que era típico do
stalinismo reaparece, com igual cegueira, com menos destaque e importância,
de modo igualmente caricato, mas com outra face. Para marcar posição, parece
que a própria ciência é um adversário... parece que não colocações sérias
sobre a estratégia socialista são deixadas de lado: a própria objetividade do real
o é. E, assim, fica-se refém daquilo que imediatamente se combate. Lemas do
mercado de ideias mencionado, ligados por jargões, operam de modo que
marca posição, certamente. Por vezes, os pontos de vista são até mesmo
acertados; porém, compreende-se pouco ou nada da realidade e, assim,
transformá-la é cada vez mais difícil.
Também por isto, no campo da prática, não caminhamos muito bem, já
que nem sequer conseguimos compreender a especificidade do capitalismo em
que vivemos.
Muitas vezes, não reconhecemos derrotas avassaladoras que a classe
trabalhadora sofreu. E, por isto, é preciso que a crítica e a autocrítica que são
o mínimo que se espera daqueles que pretendem contestar substancialmente
um modo de produção voltem a ser levadas a sério. Se não queremos ser um
pastiche ridículo, precisamos enterrar os mortos. Com isto, pode-se
reconhecer nossas derrotas para que, então, as possibilidades do presente
possam ser compreendidas. Assim, as tarefas colocadas por Engels talvez
possam ter uma função ativa hoje. O que somente faz algum sentido se
conseguirmos explicar primeiramente as razões da falência do projeto
socialista no século XX, as derrotas que presenciamos no século XXI e, é claro,
a relação entre as leis imanentes do modo de produção capitalista e a figura
atual deste sistema de produção. Se não o fizemos, no melhor dos casos,
seremos o pastiche e a versão farsesca da esquerda do século XX. Não basta a
vontade para reverter tal situação, sendo preciso compreender as próprias
questões que estão colocadas ao presente. Se este número da Verinotio ajudar
minimamente para isto, acredito que terá sido dado um de muitos passos
necessários.
Como citar:
SARTORI, Vitor B. Editorial. Verinotio Revista on-line de Filosofia e
Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 7-15, jul./dez. 2020.
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.559
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A crítica marxista do direito diante de Friedrich Engels: a tensão
entre exposição e pesquisa em sua análise da esfera jurídica
Vitor B. Sartori
1
Resumo: Tendo em conta a crítica marxista ao direito, principalmente em sua
vertente mais estruturada colocada na esteira de Pachukanis, analisaremos a
contraposição de Friedrich Engels à esfera jurídica. Ao considerar certa tensão
entre a exposição e a pesquisa engelsiana, veremos como que o autor do Anti-
Düring relaciona a circulação capitalista de mercadorias ao direito. Tendo
realizado tal tarefa, tratemos à tona a crítica de nosso autor ao direito racional
e à justiça. Exporemos como que a posição de Engels é mais sofisticada que
normalmente se supõe. Notaremos, porém, que o risco de leituras apressadas
de seus textos não é exógeno ao modo pelo qual eles são articulados. Por fim,
veremos como a crítica engelsiana ao direito ainda pode ser muito importante
para a crítica marxista.
Palavras-chave: Engels; direito; marxismo; crítica marxista ao direito.
The Marxist critic of law and Friedrich Engels: the tension
between research and exposition in his analysis of the juridical
sphere
Abstract: Considering the Marxist critique of law, especially in its most
sophisticated aspect, which follows Pachukanitracks, we will analyze the
criticism of Friedrich Engels of the legal sphere. Having a certain tension
between exposure and research in Engels texts, we will see how the author of
Anti-Düring relates the capitalist circulation of commodities to law. Having
accomplished this task, we try to bring the critics our author of the rational
right and justice. This will prove how Engels' position is much more
sophisticated than is normally supposed. We will note, however, that the risk
of hasty readings of your texts is not exogenous to the way in which they are
articulated. Finally, we will see how Engelsian criticism of law can still be very
important for Marxist criticism.
Keywords: Engels; law; Marxism, Marxist critic of law.
1
Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Autor de Ontologia nos extremos:
o embate Heidegger e Lukács, uma introdução (Intermeios, 2019). Coeditor da Verinotio. E-
mail: vitorbsartori@gmail.com.
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Introdução
Por mais que o tratamento marxiano sobre o direito seja abundante, ele
não é sistemático; e, é preciso dizer: isto traz bastantes dificuldades na análise
deste aspecto da obra de Marx. Levando isto em conta, pode-se dizer que, em
verdade, muito embora o competente e vigoroso trabalho de Márcio Bilharinho
Naves (2014) tenha trazido à tona uma importante contribuição para o estudo
da temática, ainda muito a se pesquisar nesta seara. É preciso ainda tratar
deste objeto passando-se pelos diversos posicionamentos do autor alemão
sobre o direito durante sua vida; e isto é algo que, ao menos com o cuidado
devido, não está presente nos escritos de Naves. Na esteira de Pachukanis
(2017), Naves enfoca sua análise no Livro I de O capital. Mas uma gama
muito mais ampla de textos marxianos (mesmo no Livro II, no III, bem como
nas Teorias do mais-valor, para que fiquemos em textos cujo relevo é unânime
na crítica marxista ao direito) em que a crítica ao direito tem um papel bastante
importante na conformação da posição marxiana (cf. SARTORI, 2020)
2
. Assim,
por mais estranho que possa parecer, pode-se dizer que o estudo da crítica
marxiana ao direito ainda está em seu começo. E isto faz com que seja
necessário relativizar qualquer pretensão de acabamento da crítica marxista
ao direito. Esta última, acreditamos, ainda deve passar por aspectos
importantes da obra de Marx, que não foram estudados com o devido cuidado
(cf. CHASIN, 2009).
Sem uma análise de fôlego e rigorosa dos próprios textos marxianos, o
marxismo corre o risco de estar aquém daquilo colocado pelo autor que
nome à tradição. Diante de parte do marxismo do século XX, de viés stalinista,
e frente à retomada do stalinismo por partidos e intelectuais brasileiros
3
é
necessário o que Lukács chamou de renascimento do marxismo (cf. LUKÁCS,
2013). O marxismo precisa ser visto com cuidado no século XXI. Grande parte
do que foi produzido em nome de Marx não passou de um tacanho
esquematismo, contra o qual autores importantes como Lukács (de quem nos
aproximamos mais) e Althusser (em quem parte substancial da crítica
marxista ao direito brasileira se inspira) se colocaram. Ao ter em conta este
contexto, escrevemos o presente texto, que pretende resgatar o primeiro autor
a falar em nome de Marx depois de sua morte, Friedrich Engels.
Pelo que mencionamos, no que diz respeito ao direito, mesmo que se
2
Poderíamos mencionar outras obras do autor. Porém, para que marquemos nosso ponto,
basta citar as obras que os althusserianos (linhagem na qual Naves se enquadra) acreditam ser
essenciais ao pensamento maduro de Marx.
3
Neste texto vamos criticar algumas posições dos pachukanianos, no Brasil, inspirados pela
obra de Márcio Naves. Um ponto importante a se destacar desde é que esta tradição, tal qual
Naves, continua com uma posição crítica, não aceitando certa retomada do stalinismo, a qual
acreditamos ser nefasta para uma tradição como a marxista. Neste ponto, não se pode deixar
de indicar o estudo sério de Naves (2000) sobre Pachukanis e sua posição diante de Stálin.
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tenham autores sérios debruçados sobre os textos de Marx a partir de
Pachukanis, a obra marxiana ainda está para ser estudada. Aqui, porém, não
poderemos realizar esta tarefa. Voltar-nos-emos à obra engelsiana.
Engels, por outro lado, está em uma situação bastante diferente ao se
ter em mente os estudos da crítica marxista ao direito: ele tem muitos textos
em que, ao atacar seus adversários teóricos e políticos (como Menger, Düring
e os proudhonianos) passa por uma análise mais sistemática sobre o terreno
do direito. A tradição de crítica marxista ao direito, por sua vez, se
compararmos sua lida com Marx, soube aproveitar-se muito mais destas
análises. O estudo destes textos, como o Anti-Düring, O socialismo jurídico e
Sobre a questão da moradia, foi comparativamente muito mais cuidadoso do
que o estudo dos textos de Marx. E, assim, muito embora a crítica marxista ao
direito que até hoje, em geral, tem por base a seminal obra de Pachukanis
(2017) pretenda partir de uma análise rigorosa e cuidadosa dos textos de
Marx, ela acaba fazendo algo um pouco diferente: a partir de Pachukanis, ela
toma emprestado de Engels um tratamento polêmico sobre o direito e vem a
deixar em segundo plano a análise exaustiva dos textos do autor de O capital
(cf. SARTORI, 2015a).
Com isso, as bases para a crítica marxista ao direito estão, até certo
ponto, em Marx, e principalmente na leitura conjunta dos capítulos I e II do
Livro I de O capital, que são analisados de modo bastante interessante pelo
autor da Teoria geral do direito e o marxismo
4
. No entanto, embora muitos
digam o contrário
5
, é da leitura sistemática de Engels que parte a tradição
iniciada por Pachukanis e cujos expoentes são notórios no Brasil (cf. SARTORI,
2015a; PAÇO CUNHA, 2015).
Isto não necessariamente é um problema. No entanto, a posição
segundo a qual a leitura pachukaniana é a mais fiel ao texto de Marx (cf.
NAVES, 2000, 2014; MASCARO, 2012), ao se ter isto em conta, precisa ser
vista com alguma desconfiança (cf. PAÇO CUNHA, 2014; 2015).
Não entraremos aqui no debate sobre as implicações disto, o que
renderia, ao menos, um texto bastante extenso à parte. Nele, seria de grande
relevo analisar a recepção de Pachukanis por autores inspirados em Althusser
(como Edelman, e, no Brasil, o próprio Naves), bem como pela teoria
derivacionista, cujo principal expoente é Hirsch
6
; outro ponto fundamental
seria trazer à tona textos como os Grundrisse, as Teorias do mais-valor, os
4
As leituras pachukanianas se colocam muito próximas daquelas de Isaac Rubin (1987) e, tal
qual este último autor mencionado, trazem um enfoque bastante grande no fetichismo da mer-
cadoria.
5
Diz Márcio Naves: “Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às refe-
rências ao direito encontradas em O capital e não seria exagero dizer que ele é o primeiro
que verdadeiramente as mas, principalmente, ele retorna à inspiração original de Marx,
ao recuperar o método marxiano” (NAVES, 2000, p. 16).
6
A influência do autor na obra de Alysson Mascaro é patente (cf. MASCARO, 2013).
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livros II e III de O capital (só para que fiquemos nas “obras econômicas” de
Marx) que estes textos foram pouquíssimo analisados pela crítica marxista
ao direito (cf. SARTORI, 2020). Seria necessária uma análise cuidadosa do
papel que a crítica ao direito tem na formação do pensamento propriamente
marxiano; e igualmente necessária seria uma crítica ao modo pelo qual a noção
de corte epistemológico althusseriano fez com que parte substantiva dos textos
marxianos não fossem estudados com o devido rigor. Aqui, portanto,
analisaremos a obra de Engels no que diz respeito à sua crítica ao direito. Isto
se dá porque, se é verdade que é impossível um tratamento marxista da esfera
jurídica sem passar pelo tema em Marx, igualmente verdadeiro é que Friedrich
Engels, e seu papel no movimento socialista, são essenciais para o assunto em
referência. Para a compreensão, e embate, com a crítica marxista ao direito, é
de grande relevo passar pelo autor que primeiramente tentou difundir o
pensamento marxiano.
A partir daquilo que J. Chasin chamou de análise imanente
7
,
pretendemos passar pela contribuição do autor do Anti-Düring ao termos em
mente o legado da crítica marxista ao direito, que, como mencionamos, tem
em Pachukanis, salvo raras exceções
8
, seu ponto de partida. Pretendemos, com
isto, demonstrar que Friedrich Engels tem um tratamento rico do direito. Seus
posicionamentos, muito embora problemáticos em alguns sentidos como seu
modo de exposição, que lembra o hegeliano em alguns pontos –, como veremos,
coloca-se de modo dúbio diante da crítica marxista ao direito: traz uma base
sólida para esta, expressando também méritos desta, que são muitos (cf.
SARTORI, 2015a); ao mesmo tempo, remete para além desta, trazendo à tona
uma análise do direito que tem na relação entre a esfera jurídica e a circulação
mercantil algo importante, mas que é mais ampla e multifacetada que parece
supor o tratamento pachukaniano. Assim, se a insuficiência da tradição
mencionada acima diante da análise cuidadosa da obra marxiana existe são
muito raros os textos da crítica marxista ao direito que tratem de outra obra
que o Livro I de O capital –, talvez estejam presentes também insuficiências
na leitura da obra engelsiana. Mesmo que esta tenha sido tratada de modo
muito mais sistemático pelos estudiosos marxistas do direito, a análise da obra
7
Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto a formação
ideal – em sua consistência autosignificativa, compreendida toda a grade de vetores que o
conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e
suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta
que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses,
iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo
investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de
entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por
isso, de existir” (CHASIN, 2009, p. 26).
8
Hoje, certa tentativa de retomar o legado de Stucka, bem como seu embate com
Pachukanis. Para um rico panorama deste debate, cf. Goldman (2014). Para uma análise do
debate diante do stalinismo, cf. Naves (2000).
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engelsiana ainda pode explicitar questões essenciais à temática aqui proposta.
No presente artigo, começaremos por trazer alguns aspectos mais gerais
do pensamento engelsiano, procurando demonstrar como sua exposição pode
ser dúbia: ao mesmo tempo, tem um papel importante na popularização do
pensamento de Marx e traz a possibilidade de leituras apressadas. Depois,
analisaremos o tema clássico da crítica marxista ao direito: a relação entre
esfera de circulação de mercadorias e direito; posteriormente, passaremos pelo
modo pelo qual Engels estabelece uma crítica à moral e à justiça, que se
colocariam principalmente na esfera da distribuição. Com isto, haveria, no
autor, uma crítica, também, às teorizações sobre a esfera jurídica. Por fim,
analisaremos como que haveria, segundo o autor do Anti-Düring,
possibilidade da superação da igualdade jurídica naquilo que chama de
igualdade econômica e social, havendo necessidade simultânea de lutas que se
coloquem no terreno do direito e da crítica decidida deste terreno.
Engels como sistematizador do pensamento de Marx: as
dificuldades e trunfos da exposição do autor do Anti-Düring
A discussão sobre o pensamento de Engels não é nada nova. Ao menos
desde o começo do século XX, o debate sobre a diferença de seu pensamento
diante de Marx marcou o marxismo. Temas polêmicos como a dialética da
natureza, o papel do indivíduo na história, a relação entre método dialético e o
pensamento de Hegel, a posição diante das ciências positivas, dentre outros
permearam um debate árduo (cf. SARTORI, 2015b). Aqui não poderemos nos
posicionar sobre cada um destes pontos; enfocaremos na análise engelsiana do
direito, mesmo que reconheçamos a importância destes aspectos tanto em sua
obra quanto na tradição marxista. Assim, para que possamos começar nosso
tratamento da obra de Friedrich Engels, devemos dizer que o estatuto do
pensamento engelsiano é, até certo ponto, bastante dúbio: ao mesmo tempo
em que pôde concordar com Marx quando este disse que “a única coisa que sei
é que não sou um marxista” (MARX; ENGELS, 2010, p. 277), ele viu-se como
divulgador e propagador da tradição que viria a se tornar o marxismo (cf.
SARTORI, 2015b).
Ou seja, com Marx, foi um crítico de primeira hora daqueles que
pretendiam falar em nome de autor de O capital e que procuraram transformar
a concepção materialista como Engels gostava de chamar a posição que
desenvolveu com Marx em uma espécie de dogmatismo. Porém, ao fim, o
autor do Anti-Düring, depois da morte de seu grande amigo em 1883, veio a
ser um grande divulgador da obra marxiana, falando em nome de Marx e sendo,
de certo modo, conivente com certos deslizes de autores como Karl Kautsky e
Edward Bernstein, que seriam vistos posteriormente como os papas do
marxismo do século XX, um em uma vertente ortodoxa, outro buscando o
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reformismo.
Com isto, não se deve desmerecer o pensamento engelsiano – que tem,
inclusive, aspectos interessantes e originais diante do contexto do final do
século XIX (cf. SARTORI, 2016; 2018a) no entanto, há de se reconhecer, de
imediato, que o autor não tem o pensamento idêntico ao de Marx.
Compreender os autores separadamente é impossível, mas
simplesmente identificá-los é também equivocado. Também se tem que, como
veremos, o pensamento engelsiano é muito mais complexo do que supõem
grande parte da tradição da II Internacional (em grande parte, inspirada em
Kautsky e Bernstein). Ele também é bastante mais cheio de meandros do que
o stalinismo estipulou. Ou seja, é preciso ver com cuidado como que se
conforma o pensamento do autor. Aqui, pretenderemos analisar a questão a
partir da crítica engelsiana ao direito e à justiça. Continuemos, pois.
O próprio autor do Anti-Düring diz que, enquanto seu amigo se
dedicava aos estudos que levariam à redação de O capital, sua função era
distinta: “em consequência da divisão de trabalho existente entre Marx e eu,
coube-me defender nossos pontos de vista na imprensa periódica,
particularmente na luta contra opiniões adversárias, para que Marx tivesse
tempo necessário para elaborar sua grande obra.” (ENGELS,1988, p. 8).
Perceba-se: é verdade que cumprir uma função diferente não significa
necessariamente trazer um pensamento substancialmente distinto. No
entanto, a exposição típica da imprensa periódica da época e deve-se dizer
que mesmo a grande obra de Engels, o Anti-Düring, foi primeiramente
publicada nesta imprensa é diferente daquela de um livro como O capital,
em que a relação entre exposição e pesquisa
9
é de grande relevo e é
problematizada pelo próprio autor (cf. GRESPAN, 2019). Ou seja, pelo menos
no que diz respeito à forma (e esta nunca é simplesmente estilística nos
grandes autores), a exposição engelsiana é mais sistemática que a marxiana,
tratando de assuntos (como o direito) de maneira mais temática (cf. SARTORI,
2015b).
Marx não tem um texto cujo tema seja o direito; Engels, por sua vez,
possui ao menos um livro (O socialismo jurídico) e três capítulos do Anti-
Düring em que a argumentação é estruturada em torno das possibilidades e
dos limites constitutivos da esfera jurídica. E isto é bastante coerente com a
função de divulgação engelsiana, sendo seu texto, até certo ponto, mais
acessível devido ao seu caráter sistemático e menos imanente se comparado ao
9
Segundo Marx “é, sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição formalmente do
método de pesquisa. A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas
várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima.” A exposição, aparece “só depois de
concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real” (MARX, 1996a,
p. 140). Para posições distintas sobre a relação entre exposição e pesquisa, cf. Reichelt (2013);
e, doutro lado, Alves (2013b).
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marxiano (cf. SARTORI, 2015b). Pesquisadores do direito podem se servir de
seus textos de modo muito mais direto do que, por exemplo, de O capital de
Marx, cuja publicação na íntegra, diga-se de passagem, ficou a cabo de nosso
autor. Aqui devemos destacar: a exposição engelsiana leva a certa facilidade na
divulgação de posições sobre a esfera jurídica, e isto ajudou muito no estudo
do direito pelo marxismo. Ao mesmo tempo, porém, o risco de autonomizar
tais análises, que são expostas separadamente. Há, deste modo, um aspecto
bastante dúplice na função de Engels, e no modo pelo qual ela se deu.
Aliás, uma das tônicas do pensamento engelsiano é a divulgação das
descobertas de Marx. Mesmo que elas tenham sido feitas, em grande parte, em
parceria com Engels, o autor do Anti-Düring sempre se colocou em uma
posição secundária (cf. ENGELS, 1988). Isto se dá, seja ao publicar textos
marxianos (como os livros II e III de O capital), seja ao polemizar com autores
da época a partir daquilo que desenvolveu conjuntamente com o seu grande
amigo. Isto fez com que, diante de um tom polêmico, Engels tenha sido muito
mais afeto às generalizações teóricas do que Marx (cujo prefácio de 1859 talvez
seja um dos poucos momentos em que se trazem posicionamentos mais gerais
sobre seu modo de pesquisa
10
). Assim, na esteira da divulgação do que chamou
de concepção materialista da história, disse Engels que haveria um fator
decisivo na história, colocado, em última instância, na produção e reprodução
da vida material; na Origem da família, da propriedade e do estado, ele diz:
De acordo com a concepção materialista, o fator decisivo na história
é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata.
Mas essa produção e reprodução são de dois tipos: de um lado, a
produção de meios de existência, de produtos alimentícios,
habitação e instrumentos necessários para tudo isso; de outro lado,
a produção do homem mesmo, a continuação da espécie. (ENGELS,
2002, p. 10)
Se a passagem marxiana de 1859 (que remetia à relação entre base, infra
e superestrutura) deu margem a leituras apressadas, esta passagem de Engels
e algumas outras abriram espaço para certo determinismo e certo
mecanicismo, mesmo que não tenha sido isto que o autor do Anti-Düring
pretendesse com suas generalizações
11
(cf. SARTORI, 2015b). A conjunção da
última instância com o fator decisivo, mencionados pelo autor, fez com que a
dialética, em grande parte, parecesse ser uma questão de compreensão de leis
gerais da história, que deveriam ser aplicadas em quaisquer casos. E é bom
dizer que o próprio Engels, de certo modo, colaborou para que tal leitura se
perpetuasse; ao tratar das chamadas leis da dialética, o grau de generalização
que o autor traz é bastante contundente. E, em um claro diálogo com a lógica
de Hegel tão criticado no que toca seu caráter sistemático pelo autor (cf.
ENGELS, 1982) tem-se no texto engelsiano uma exposição bastante
10
Vale notar que este talvez seja o texto de Marx que deu mais ensejo a interpretações
simplistas e manipulatórias.
11
Sobre o papel das generalizações e das abstrações no marxismo, cf. Chasin (2009) e Lukács
(2012; 2013; 2010).
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sistemática do que ele sabe trazer uma tessitura, em verdade, aberta e marcada
pela processualidade e pela historicidade:
As leis da dialética são, por conseguinte, extraídas da história da
Natureza, assim como da história da sociedade humana. Não são
elas outras senão as leis mais gerais de ambas essas fases do
desenvolvimento histórico, bem como do pensamento humano.
Reduzem-se elas, principalmente, a três: 1) A lei da transformação
da quantidade ·em qualidade e vice-versa; 2) A lei da
interpenetração dos contrários; 3) A lei da negação da negação.
(ENGELS, 1979, p. 34)
A passagem é retirada de um texto (Dialética da natureza) em que,
talvez sem o cuidado necessário, Engels procura aplicar as leis da dialética na
esfera do ser natural (cf. SARTORI, 2015b)
12
. É verdade que o texto não estava
ainda acabado, e pronto para a publicação; no entanto, salta aos olhos seu
caráter muito mais generalizante e sistemático. Em determinados momentos,
parece que o autor, a partir de certos elementos da lógica hegeliana, faz
analogias com aspectos diversos da natureza. E isto faz com que o caráter quase
que experimental da escrita engelsiana deste texto
13
– que precisaria de muito
mais estudo para poder ser concluído – leve o nosso autor a afirmações
descuidadas. Não se pode ler de modo apressado a passagem, pois. Ao mesmo
tempo, não é possível deixar de notar que o raciocínio por trás da exposição se
aproxima perigosamente daquele que se critica com veemência em Ludwig
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1982), em que Engels ataca
duramente o caráter sistemático de Hegel, bem como certa logicização da
realidade.
Com isto, ao menos em uma primeira visada, parece que basta aplicar
estas três leis da dialética para que se passe das leis gerais dialéticas para a
efetividade e materialidade da história.
Parece haver autorização para a famigerada distinção entre
materialismo dialético e materialismo histórico
14
. Tal aplicação mecânica
constituiria, como o autor sabe, uma violação patente do seu modo de proceder
e daquele de Marx. E, com isto, pode-se dizer que, se o autor torna categorias
complexas mais acessíveis àqueles que não estão embebidos no embate
filosófico da época, o faz, por vezes, a um custo bastante alto. Tem-se, em meio
à popularização daquilo que chama de concepção materialista, a possibilidade
de uma compreensão simplificadora por parte dos leitores que têm acesso a
somente alguns dos textos engelsianos. Dizemos isto porque certamente a
12
Seria importante uma análise cuidadosa de como que há distinções grandes entre A dialética
da natureza e o Anti-Düring sobre o assunto. Aqui, porém, não poderemos abordar o assunto.
13
Neste texto que mencionamos parece haver certa justaposição indevida entre uma exposição
que se parece com a hegeliana e a pesquisa, que não poderia estar estruturada em torno de um
pensamento logicizante (cf. SARTORI, 2014).
14
A distinção ficou célebre devido a seu uso esquemático pelo stalinismo. Porém, é preciso
dizer que autores importantes e sérios do século XX, como Lukács e Althusser, utilizaram, cada
um a sua maneira, tal distinção.
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leitura conjunta dos posicionamentos do autor leva a uma compreensão muito
mais sofisticada que aquela de uma primeira análise superficial (cf. SARTORI,
2015b). Porém, a relação entre a exposição engelsiana e o modo de se proceder
diante do objeto pesquisado não é simplesmente contingente. Até certo ponto,
no espírito da época, há também uma valorização das descobertas das ciências
naturais do século XIX, levando a certo perigo no parcelamento, por demasia
analítico, da realidade efetiva
15
.
A questão certamente tem diversos contornos (cf. SARTORI, 2015 b;
PAÇO CUNHA, 2015). Porém, não pode deixar de ser destacada, mesmo não
podendo ser analisada aqui com todo o cuidado. Nesta esteira, porém, há de se
destacar o que diz o autor sobre a ciências, a dialética e a filosofia.
Primeiramente, diz-se, no Anti-Düring sobre a dialética o seguinte:
Ela não é uma filosofia, mas uma simples concepção de mundo,
que tem de comprovar-se e atuar não numa ciência à parte, mas nas
ciências reais. A filosofia foi, portanto, “suprassumida
(aufgehoben), isto é, “tanto superada como preservada” – superada
em sua forma, preservada em seu conteúdo real. (ENGELS, 2015, p.
168)
A citação ensejo a que se enxergue a dialética como uma concepção
de mundo (Weltanchauung), tendo-se ela não mais como parte da filosofia
(especulativa), mas em meio às ciências reais
16
. Estas últimas, por sua vez,
podem, de certo modo, aproximar-se das ciências parcelares se não forem
vistas com cuidado, o que é bastante problemático (cf. SARTORI, 2015b).
E, assim, novamente, por mais que não queira, Engels abre espaço para
certas leituras (errôneas) do marxismo do século XX, como aquelas da II
Internacional, e de Kautsky em especial; elas vieram a tomar o marxismo como
uma espécie de doutrina baseada nas ciências parcelares do século XIX, ao
passo que Marx e Engels são, em grande parte, críticos decididos da
conformação da ciência da época, que seria descendente da economia vulgar e
da decadência da ciência burguesa (cf. LUKÁCS, 2010, 2013). Tem-se, porém,
ainda outra questão relacionada; o uso – um tanto hegeliano – da categoria de
suprassunção [Aufghebung] é central à passagem de Friedrich Engels
17
.
Segundo o autor alemão, com tal relação com a filosofia, supera-se, suprime-
se e se preserva ao mesmo tempo aquela que vinha se colocando de modo
especulativo (cf. SARTORI, 2015b). E isto faria com que não se tenha qualquer
apologia das ciências parcelares. Antes, ocorreria o oposto. Porém, em meio a
15
É preciso que se aponte que, mesmo que de modo um pouco apressado, Engels não deixa de
criticar duramente estas ciências em sua Dialética da natureza (cf. 1979). Também de se
perceber que os meandros da relação de Engels com o materialismo e com as ciências de sua
época são muitos, como fica claro no Anti-Düring (2015).
16
Para uma crítica ao tom demasiadamente epistemológico desta expressão, cf. Lukács (2010;
2013). Uma discussão sobre a questão da visão de mundo” em Engels também pode ser
importante (cf. SARTORI, 2015b).
17
Sobre a categoria Aufhebung e a crítica de Marx a ela, cf. Sartori (2014).
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uma exposição bastante sistemática e que busca certa popularização da
concepção materialista, isto, em grade parte, corre o risco de passar
despercebido. E, é preciso que apontemos para o modo pelo qual a exposição
engelsiana abre espaço para elementos problemáticos: a outra face da
suprassunção da filosofia é o uso engelsiano das ciências individuais. No Anti-
Düring, destaca-se:
No momento em que cada ciência individual é conformada com a
exigência de obter clareza sobre sua posição dentro do nexo global
das coisas e do conhecimento das coisas, torna-se supérflua toda a
ciência específica dedicada ao nexo global. Depois disso, o que de
toda a filosofia pregressa ainda preserva seu caráter independente é
a teoria do pensamento e de suas leis – a lógica formal e a dialética.
Tudo o mais é absorvido pela ciência positiva da natureza e da
história. (ENGELS, 2015, p. 54)
Se é verdade que a filosofia enquanto ciência específica dedicada ao
nexo global e, portanto, de uma generalidade especulativa, é negada por Engels,
tal generalidade acaba adentrando sua teoria (principalmente no que toca a
exposição) pela porta dos fundos. A suprassunção da filosofia estaria, de um
lado, em sua dissolução nas ciências individuais, doutro, em sua preservação
nas leis da lógica formal e da dialética. A ciência positiva da natureza traria à
tona um tratamento da totalidade dos fenômenos naturais ao passo que a
ciência positiva da história diria respeito à sociabilidade e ao seu
desenvolvimento processual na realidade efetiva. Assim, tem-se algo bastante
dúbio na exposição engelsiana: nas ciências positivas, ele critica, ao mesmo
tempo, o parcelamento do conhecimento (mas reconhece a diferença específica
entre a história e a natureza); porém, isto se com o reconhecimento dos
méritos das ciências individuais, que, na época, já adquiriam um caráter
apologético (cf. LUKÁCS, 2010). Sobre a filosofia, tem-se algo similar. um
rechaço do caráter especulativo e apartado da filosofia de um lado e, doutro, a
generalização típica da filosofia especulativa está presente nas leis da lógica
formal e nas leis da dialética. de se reconhecer: a exposição mais
sistemática de Engels faz com que uma apreensão mais superficial de seus
posicionamentos – e dos de Marx – seja facilitada, quando não incentivada. A
compreensão mais rigorosa e profunda do que o autor traz passa a necessitar
de idas e vindas, que tornam o estudo de suas obras muito mais permeado de
meandros do que se supõe. Engels, assim, contraditoriamente, é muito difícil
de se estudar ao se ter em conta uma compreensão cuidadosa de seu
pensamento justamente porque ele tenta trazer uma exposição que facilite a
divulgação e tal compreensão.
Seria, porém, equivocada uma crítica unilateral a tais procedimentos
engelsianos. Não é possível, pois, simplesmente colocar em suas costas as
vicissitudes do pior do marxismo do culo XX, como certos cientificismo,
reducionismo e ultrageneralização. Em verdade, Engels pode se voltar
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facilmente contra todas estas posições se olharmos seus textos de modo
cuidadoso (cf. SARTORI, 2015b). Porém, de igual cegueira é não perceber que
na própria exposição de Engels, que não pode ser dissociada do seu modo de
pesquisar, germes que poderiam levar a posições, no mínimo, questionáveis
pelo marxismo sério e rigoroso
18
. Ou seja, não é possível deixar de reconhecer
os méritos de um autor que popularizou a posição de Marx, divulgou e publicou
as obras do autor de O capital. Porém, não se pode deixar de destacar que o
autor do Anti-Düring teve um papel indireto no modo, eivado de problemas,
pelo qual se desenvolveu o pior da tradição marxista no século XX.
Engels como crítico do direito: igualdade jurídica e circulação
mercantil
Pelo que vemos, tratar do pensamento de Engels pode ser importante
para analisar o marxismo, tanto em suas virtudes históricas, quando em suas
adversidades que apareceram no século XX. Para o que nos interessa aqui,
porém, é bom analisar o autor do Anti-Düring somente frente à crítica
marxista ao direito. Para tratarmos da questão, trazemos uma passagem
importante do autor:
Ao transformar as coisas em mercadorias, a produção capitalista
destruiu todas as antigas relações tradicionais e substituiu os
costumes herdados e os direitos históricos pela compra e venda, pelo
“livre” contrato. (ENGELS, 2002, p. 93)
Engels destaca um aspecto muito enfatizado por Pachukanis (2017), a
relação entre a circulação de mercadorias, o direito e o “livre” contrato
19
. Neste
sentido, pode-se dizer que o autor soviético está bastante correto no aspecto
principal de sua análise, caso olhemos também para o autor da Origem da
família, propriedade privada e do estado. Ao tratar das coisas como algo que
não é por natureza mercadoria, bem como ao abordar a liberdade de contratar,
uma aproximação clara da passagem engelsiana com a famosa passagem do
capítulo II de O capital
20
, tomada como apoio para grande parte da
18
Isto fica bastante claro na diferença de abordagem de Engels e de Marx quanto ao caso russo.
Ao passo que o autor que tratamos aqui defende uma posição que, de certo modo, não enxerga
a especificidade do caso russo, Marx defende que seria possível uma passagem direta da
comuna agrária russa ao socialismo, desde que o país se aproveitasse do desenvolvimento das
forças produtivas presentes no ocidente. Para uma análise comparativa destes aspectos, cf.
Sartori (2015b). No mesmo sentido, vale a leitura de Felipe Musetti (2015).
19
Este é o aspecto central para o autor soviético, que correlaciona forma jurídica e forma
mercantil a partir da mencionada relação (cf. PACHUKANIS, 2017).
20
Diz Marx que “as mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos,
portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias
o coisas e, consequentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a
ele de boa vontade, ele pode usar a violência, em outras palavras, to-las. Para que essas
coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se
relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um,
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argumentação de Teoria geral do direito e o marxismo. Neste sentido, pode-
se dizer que autores como Mascaro e Naves podem ter, em grande parte,
Engels como um aliado.
Para Engels, há uma correlação entre a relação econômica que torna as
coisas mercadorias e a relação jurídica que faz com que as pessoas operem
livremente pelos contratos após se colocarem como livres de sua propriedade
dos meios de produção. Tem-se também a liberdade para que se utilize, como
bem entender dos mesmos meios de produção (no caso da burguesia).
Segundo Engels, em complemento a isto, porém, existe uma ligação íntima
entre a dissolução de relações tradicionais, bem como dos costumes herdados.
E isto se daria pela compra e venda, colocada juridicamente no contrato. Neste
sentido, uma grande convergência entre a teorização engelsiana e a
pachukaniana.
de se destacar, porém, que existem divergências. Se, para o autor
soviético (2017), o direito devido à relação entre equivalência, forma
mercantil e forma jurídica é, por natureza, capitalista, o autor do Anti-
Düring, tal qual Marx
21
, aponta a existência de direitos anteriores ao
capitalismo.
Os direitos históricos
22
, relacionados aos privilégios, seriam superados
pelo direito burguês. E, assim, por mais que a aproximação entre Engels e
Pachukanis seja grande, ela não é, nem pode ser, completa. Há de se destacar,
porém, ainda outro ponto de aproximação entre os dois autores:
Para firmar contratos, é necessário que haja pessoas que possam
dispor livremente de si mesmas, de suas ações e de seus bens, e que
se defrontem em igualdade de condições. Criar essas pessoas “livres”
e “iguais” foi exatamente uma das principais tarefas da produção
capitalista. (ENGELS, 2002, p. 94)
Tal qual para o autor de Teoria geral do direito e o marxismo, Engels
traz como mediação entre as relações econômicas pré-capitalistas e as
propriamente capitalistas as pessoas “livres” e “iguais”, dando certa ênfase à
categoria “pessoa”. Esta última é essencial na teorização pachukaniana, pois
corresponderia, em verdade, segundo o autor, à categoria jurídica sujeito de
direito (cf. PACHUKANIS, 2017). Aqui não podemos discutir até que ponto tal
somente de acordo com a vontade do outro, portanto, apenas mediante um ato de vontade
comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem,
portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica,
cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se
reflete uma relação econômica. O conteúdo dessa relão jurídica ou de vontade é dado por
meio da relação econômica mesma.” (MARX, 1996a, p. 79) Para a análise da passagem, de
modo distinto de Pachukanis, cf. Sartori (2019).
21
Sobre o assunto, cf. Sartori (2020).
22
Ao tratar de direitos, Marx e Engels remetem à existência do direito, em diversos
momentos de suas obras, como em O capital, ou na Origem da família, propriedade
privada e do estado.
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aproximação é ou não acertada (cf. SARTORI, 2015a; 2019; 2020). No entanto,
também em Engels, tal qual na tradição com a qual dialogamos, é clara a
correlação entre a igualdade e a liberdade contratuais, a categoria pessoa e a
emergência da produção propriamente capitalista. E, assim, tem-se que o
trabalho realizado, no Brasil, por Márcio Naves, tem uma grande valia e um
grande acerto, também, ao se ter em conta Engels.
A igualdade de condições, que é necessária para que as pessoas possam
dispor de si mesmas ou seja, vender sua força de trabalho emerge com a
produção capitalista, cuja tarefa relacionada à superação dos privilégios de
nascimento é essencial, segundo Engels, na constituição da moderna sociedade
civil-burguesa. Assim, o papel da igualdade jurídica na transição do feudalismo
para o capitalismo seria evidente e deveria ser ressaltado em qualquer análise
séria do tema:
A emancipação dos entraves feudais e a implantação da igualdade
jurídica, pela abolição das desigualdades do feudalismo, eram um
postulado colocado na ordem do dia pelo progresso econômico da
sociedade, e que depressa alcançaria grandes proporções. Embora
proclamado este postulado da igualdade de direitos no interesse da
indústria e do comércio, não havia mais remédio senão torná-lo
extensivo também à grande massa de camponeses que, submetida a
todas as nuanças de vassalagem, que chegava até a servidão
completa, passava a maior parte de seu tempo trabalhando
gratuitamente nos campos do nobre senhor feudal, além de ter de
pagar a ele e ao estado uma infinidade de tributos. Postos neste
caminho, não havia outro remédio para os burgueses senão exigir
também a abolição dos privilégios feudais, da isenção de impostos
para a nobreza, dos direitos políticos singulares de cada categoria
social feudal. E como a sociedade não vivia mais num império
mundial como o romano, mas sim dividida numa rede de estados
independentes, que mantinham entre si relações de igualdade e
tinham chegado a um grau quase burguês de desenvolvimento, era
natural que aquelas tendências adquirissem um caráter geral,
ultrapassando as fronteiras dos estados e era natural, portanto, que
a liberdade e a igualdade fossem proclamadas direitos humanos.
Para compreender o caráter especificamente burguês de tais direitos
humanos, nada mais eloquente que a Constituição norte-americana,
a primeira em que são definidos os direitos do homem, na qual, ao
mesmo tempo, se sanciona a escravidão dos negros, então vigente
nos Estados Unidos, e se proscrevem os privilégios de classe,
enquanto que os privilégios de raça são santificados. (ENGELS,
1990, p. 89)
Na leitura engelsiana, o papel ativo do direito aparece no rompimento
com os entraves feudais, tendo a igualdade jurídica, ao mesmo tempo, como
uma necessidade do processo econômico que redundaria na grande indústria
e como algo essencial no encaminhamento de tal movimento econômico. Em
outras palavras, para o autor do Anti-Düring, sem a mediação da esfera
jurídica, não seria possível tal passagem da sociedade feudal à capitalista.
Neste momento, aquele da transição, porém, as coisas seriam mais mediadas
do que normalmente se supõe: a igualdade de direitos traria consigo o
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interesse da indústria ao mesmo tempo em que se estendia aos camponeses.
Ou seja, a igualdade jurídica, que é essencialmente burguesa (cf. ENGELS,
2015), traz consigo a emergência da hegemonia burguesa, ao mesmo tempo em
que libera os camponeses dos entraves feudais.
O papel do direito, portanto, coloca-se à serviço da sociabilidade
emergente, mas não somente à serviço dos interesses burgueses, embora estes,
neste terreno, venham a prevalecer no final das contas. A questão precisa ser
destacada porque direitos políticos, impostos e privilégios feudais são
suprimidos, não no interesse burguês, mas no interesse da grande massa
dos camponeses. E, com isto, há de se notar que, na análise do autor alemão, a
igualdade jurídica é essencialmente burguesa, mas não opera somente no
sentido dos interesses da burguesia. Os direitos humanos, nesta esteira,
rompem com os privilégios feudais trazendo o domínio burguês, certamente.
Mas o fazem, em um primeiro momento, com grande benefício dos pequenos
camponeses. E, desta maneira, o caráter ativo do direito não reflete
imediatamente a forma mercantil, mas algo que se coloca no processo em que
esta se consolida no metabolismo social passando por relações de produção
que não são subsumidas imediatamente à forma assalariada. E, assim, ao
contrário do que diz Naves (2014) sobre Marx, em Engels, o papel do direito se
coloca, primeiramente, naquilo que Marx chamou de subsunção formal ao
capital (cf. MARX, 2004). A efetividade do direito é bastante destacada
justamente quando a relação-capital está se colocando sobre os próprios pés,
antes da preponderância da grande indústria.
Deste modo, a relação entre forma-mercadoria e direito passa também
pelo papel do campesinato nas lutas que redundam na emergência do
capitalismo. E estas lutas têm um elemento religioso bastante claro, como
mostra a análise engelsiana das guerras camponesas na Alemanha (cf.
ENGELS, 2008). Um tema essencial a Engels, portanto, é o modo nuançado
pelo qual o elemento religioso e o jurídico se entrelaçam na emergência e na
consolidação da sociedade capitalista. No que se tem algo importante: longe
da tônica de Engels estar colocada na relação-capital consolidada e na
subsunção real ao capital, ao tratar da igualdade jurídica, ela passa pela
emergência desta relação, em que o papel da religião e do direito são grandes
nas lutas de classe tanto burguesas quanto camponesas (cf. SARTORI, 2018b).
A crítica engelsiana ao direito tem por essencial, tanto a relação entre as lutas
de classe medievais e modernas, quanto a relação entre religião e o campo
jurídico.
Assim, não é simplesmente por uma questão estilística que Engels trata
do universalismo do cristianismo primitivo (1979), da noção de pessoa que
aparece na religião cristã, principalmente em meio às lutas camponesas
(2008), para, a partir das transformações nestas formas ideológicas, abordar
a emergência dos direitos humanos na figura da pessoa e da igualdade
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jurídicas. E se é verdade que Pachukanis (2017) trata do modo pelo qual
uma correlação entre a ideologia religiosa e a igreja em um primeiro momento,
para que depois se tenha a ideologia jurídica e o direito, há de se destacar que,
em Engels, as correlações entre religião e direito são muito mais fortes e
marcantes, havendo, inclusive, uma ligação entre o universalismo do
cristianismo e aquele dos direitos do homem (cf. SARTORI, 2018b). Para o
autor do Anti-Düring, as personificações, bem como as máscaras que
adquiriam as lutas de classe no medievo eram essencialmente religiosas; na
moderna sociedade capitalista nascente, tais máscaras seriam
preponderantemente jurídicas (cf. ENGELS, 2008).
Ou seja, não se trata tanto da relação entre a forma-mercadoria e “a”
forma jurídica, como em Pachukanis, mas do processo pelo qual as lutas de
classe passam de um terreno, o religioso, para outro, o jurídico, na moderna
sociedade civil-burguesa. As lutas burguesas começam no terreno da nobreza,
o religioso, para, somente com o desenrolar do processo, colocarem-se sobre o
terreno propriamente burguês, aquele do direito (cf. ENGELS; KAUTSKY,
2012) A tonalidade engelsiana na análise da relação entre a igualdade jurídica
e a circulação mercantil é aquela em que se tem o preparo para a circulação
propriamente capitalista de mercadorias. E, deste modo, tem-se o foco nesta
transição, e não tanto na acumulação de capital regida pelas suas próprias
leis imanentes.
Assim, este momento de transição aparece nos temas do autor na
medida em que tal processo expressa-se na passagem da religião ao direito,
sendo o papel da esfera jurídica colocado imediatamente na subsunção formal
ao capital, e não na salvaguarda da relação-capital por meio da ideologia
contratual. Isto certamente se daria, mas o tratamento engelsiano passa por
outros aspectos.
Dizemos tudo isto, não para destacar um caráter histórico que é
essencial ao pensamento engelsiano. Também trazemos isto à tona porque não
é de menor importância o autor alemão mencionar que o caráter
especificamente burguês dos direitos humanos apareceria na constituição
americana, em que os privilégios de classe são proscritos em nome do direito
burguês. Na análise engelsiana, tem-se a igualdade jurídica e política
colocando-se juridicamente sobre a desigualdade social; porém, e isto é
essencial para nosso ponto: há certa santificação dos privilégios de raça.
E dois pontos a serem destacados imediatamente sobre isto:
primeiramente, deve-se apontar que a linguagem e a mistificação religiosas
não são suprimidas no direito burguês; elas são elevadas a um patamar
superior. Os vícios da visão de mundo religiosa, de certo modo, permanecem,
mesmo que de modo mais sofisticado, na visão de mundo jurídica. Em segundo
lugar, de se apontar como que a igualdade jurídica é plenamente compatível
com o privilégio de raça, que não se coloca somente no campo jurídico e
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político, mas em meio à conformação objetiva das relações sociais, no caso,
com a escravidão moderna. Engels, deste modo, traz uma relação bastante
mais complexa – se comparada à de Pachukanis – entre a forma-mercadoria e
o direito; este último, inclusive, pode aparecer de diversas formas
23
. É verdade
que em ambos os autores se tem a propriedade privada como uma relação
econômica bastante pronunciada nas relações jurídicas; porém, em Engels, a
correlação entre igualdade jurídica e forma-mercadoria aparece tanto na
configuração mais básica da relação-capital quanto, de modo mais mediado,
no processo contraditório da formação do campesinato e dos escravos
modernos. Isto faz com que a análise do autor alemão traga muito em comum
com aquela do jurista soviético (cf. SARTORI, 2016b). Porém, também
explicita como que as consequências destacadas por Engels são bastante mais
abrangentes e de maior alcance do que aquelas que são enfatizadas por
Pachukanis (2017) em sua obra magna (cf. SARTORI, 2016a).
Outro aspecto importante que aparece na passagem engelsiana é a
ligação da circulação de mercadorias capitalista com o desenvolvimento do
mercado mundial. Isto faria com que – na correlação entre os diferentes
estados os direitos humanos tendessem a ultrapassar as próprias fronteiras
nacionais, dando espaço a relações sociais extremamente contraditórias. Os
direitos humanos, tal qual a produção capitalista, ultrapassam as barreiras dos
estados nacionais, portanto.
E, deste modo, seria preciso, inclusive, uma análise mais detida das
relações jurídicas no campo internacional ao se ter em conta a correlação entre
mercado mundial, igualdade e liberdade. De certo modo, tem-se que, tal qual
o cristianismo ultrapassava um povo eleito com sua concepção universal de
igualdade, o mesmo se daria com o direito (cf. SARTORI, 2018b), tendo-se
certa passagem do universalismo e da igualdade religiosos para aqueles do
direito burguês e da produção capitalista de mercadorias (cf. ENGELS, 1977;
1979) Também por isto que, diz o autor: “a bandeira religiosa tremulou pela
última vez na Inglaterra no século XVII, e menos de 50 anos mais tarde
aparecia na França, sem disfarces, a nova concepção de mundo, fadada a se
tornar clássica para a burguesia, a concepção jurídica de mundo(ENGELS;
KAUTSKY, 2012, pp. 17-8). Tal concepção clássica precisaria ser estudada
tendo em mente a formação do modo de produção capitalista, em que a
centralidade política da igreja lugar ao papel centralizador do estado
moderno. E, assim, a gama de temas que perpassa a crítica engelsiana ao
direito é extensa, e mais ampla que a de Pachukanis.
A categoria “pessoa”, que trazia consigo a universalidade da
pecaminosidade cristã (cf. ENGELS, 2015) teria dado lugar à universalidade
23
Tal qual em Marx, a noção de forma jurídica aparece de modo muito mais trivial que em
Pachukanis, para quem há uma correlação íntima entre “a” forma jurídica e a mercantil. Para
uma análise da questão, cf. Sartori (2020).
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32
da pessoa que aparece em meio à igualdade jurídica e política, correlatas do
rompimento dos privilégios medievais. Esta categoria – a “pessoa” portanto,
ao contrário do que diz Pachukanis e seus seguidores (cf. KASHIURA, 2009;
2014), precisa ser vista em um contexto muito mais amplo que aquela da
categoria sujeito de direito, que não aparece explicitamente, seja em Marx, seja
em Engels (cf. SARTORI, 2015a; 2020) O processo em que a concepção de
pessoa tem sua tônica modificada aparece em Marx ao se ter em conta a
correlação entre fetichismo da mercadoria, reificação, a pessoa e a esfera da
troca (cf. SARTORI, 2019); em Engels, por outro lado, é preciso que se passe
por uma compreensão detalhada da correlação entre direito e religião na
passagem do feudalismo ao capitalismo, da visão de mundo religiosa à jurídica.
Portanto, a universalização da circulação de mercadorias no mercado
mundial, segundo Engels, é um fruto da produção capitalista. Com isto, os
privilégios de classe dão lugar à igualdade jurídica, plenamente compatível
com o privilégio de raça e com relações de produção essencialmente modernas,
mas não assalariadas, como a escravidão, bem como aquela do pequeno
camponês
24
. Tal processo é essencialmente econômico, mas, segundo Engels,
não poderia ter se dado se não fossem diferentes formas pelas quais a categoria
pessoa se colocou, primeiramente, relacionada com a universalidade cristã,
depois com a jurídica. As personificações e as máscaras pelas quais se deram
as lutas de classe foram do medievo ao capitalismo, da religião ao direito. A
relação entre liberdade, igualdade e contrato, portanto, é bastante íntima,
como destacam corretamente a escola pachukaniana e o próprio Pachukanis;
porém, já em Engels, é preciso que se veja o tema com cuidado e analisando os
diversos meandros da questão, presentes também em vários textos em que o
autor não trata imediatamente do direito. Assim, os méritos e os deméritos da
exposição engelsiana se explicitam, no caso, ao se ter, por vezes, uma leitura
apressada do autor alemão; porém, também a muito maior complexidade
de seu pensamento e de sua análise do papel do direito na emergência do
capitalismo.
Igualdade jurídica, emergência do proletariado e crítica à
sociedade capitalista
O terreno em que teria se colocado as lutas de classe medievais teria sido
aquele da religião, ao passo que, com a emergência da moderna sociedade civil-
burguesa, tais lutas estão no terreno do direito. Engels é bastante claro quanto
a isto. Porém, como mencionamos, sua análise trata deste processo histórico
24
Isto se mesmo que, com o desenvolvimento do capitalismo, tais relações de produção
tendam a desaparecer progressivamente (cf. ENGELS, 2015). Para uma análise da questão, cf.
Marx (1986a; 1986b; 1980).
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justamente em seu elemento transicional. Deste modo, a burguesia teria
começado suas lutas em um terreno que não era propriamente o seu, e assim
também se daria com o proletariado.
Assim como outrora a burguesia, em luta contra a nobreza, durante
algum tempo arrastara atrás de si a concepção teológica tradicional
de mundo, também o proletariado recebeu inicialmente a concepção
jurídica e tentou contá-la contra a burguesia. As primeiras
formações proletárias, assim como seus representantes teóricos,
mantiveram-se estritamente no jurídico ‘terreno do direito’, embora
construíssem para si um terreno do direito diferente do da
burguesia. (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 20)
Tal qual o terreno da religião não era aquele da burguesia, o do direito
não é o do proletariado. Porém, há de se notar algo essencial. Primeiramente,
no que toca à burguesia, tem-se: as lutas burguesas só conseguem se assentar
sobre uma base adequada passando pelas lutas religiosas. E, assim, certamente
a maturidade das lutas sociais na quais a classe burguesa é proeminente
extrapola o terreno religioso; mas isto pode se dar ao atravessar, superando-
a, a concepção teológica e tradicional de mundo. E, segundo Engels, ao ter em
conta o proletariado, tem-se algo, de certo modo, similar.
O autor é explícito, inclusive, no sentido de as primeiras e imaturas
formações proletárias terem se colocado no “jurídico” terreno do direito. A
maturidade da classe do moderno proletariado, portanto, ultrapassa as lutas
jurídicas, mas certamente, em um primeiro momento, não prescinde delas. Tal
aspecto, embora seja ressaltado por Pachukanis (2017), é muito pouco
destacado pela tradição pachukaniana no Brasil (cf. SARTORI, 2018a). Para o
autor alemão, porém, isto teria se dado de modo exemplar para os socialistas
utópicos – bastante criticados por Engels (1962; 2015) –, para quem o direito
e a concepção de justiça eram essenciais, na esteira do iluminismo e da
ascensão da burguesia com classe dominante (cf. ENGELS, 1962). Engels, ao
ter em conta o final do século XIX, porém, destaca algo bastante diferente ao
tratar do jurídico terreno do direito: ainda haveria em sua época pessoas como
Menger, Proudhon e outros que estariam apegados, seja ao modo burguês, seja
ao modo do proletariado imaturo, ao jurídico terreno do direito. Ou seja, longe
de o autor do Anti-Düring trazer uma análise em que não qualquer
ambiguidade na igualdade jurídica, ele destaca justamente estas
ambiguidades, que seriam decisivas às lutas do proletariado do final do século
XIX (cf. SARTORI, 2018a). As lutas burguesas apareceram primeiramente
como religiosas, para que, então, a burguesia conseguisse se colocar sobre os
próprios pés no terreno jurídico. O proletariado, do mesmo modo, lutaria
primeiramente no terreno do direito, mas precisa superá-lo caso quisesse
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passar ao terreno da revolução social
25
. Somente neste último, conseguiria
romper com a visão de mundo burguesa. E, deste modo, ao mesmo tempo em
que o autor alemão não tem uma visão unilateral sobre o papel do direito, ele
é muito claro quanto aos seus limites, atrelados à sociabilidade marcada pela
circulação mercantil, bem como pela acumulação de capital e pela extração do
mais-valor.
As ambiguidades de tal processo, em que o direito cumpre um papel
importante, são destacadas por Engels. Isto se dá, não só porque há elementos
transicionais entre os terrenos mencionados, mas porque, ao trazer à tona as
lutas do proletariado, de se destacar que este formou para si mesmo um
terreno do direito diferente daquele da burguesia. Ou seja, a especificidade do
direito (na fórmula pachukaniana, a forma jurídica
26
) não aparece sempre ao
se afirmar imediatamente a forma-mercadoria e a equivalência da troca
mercantil; por vezes, as mediações são bastantes maiores; e, deste modo, ao
mesmo tempo, é preciso afirmar os limites intrínsecos à esfera jurídica e se
deve ter em mente que esta não se apresenta de um mesmo modo, seja na
história anterior ao capitalismo, seja no desenvolvimento do próprio modo de
produção capitalista. No que toca este último aspecto, para Engels, o direito
burguês é, sim, indissolúvel da circulação mercantil capitalista; porém, o autor
destaca a ambiguidade deste terreno ao passo que, sem conseguir se
desvencilhar dos pressupostos do próprio modo de produção capitalista,
ergue-se uma crítica proletária e jurídica aos efeitos do capitalismo. Neste
momento do desenvolvimento destas formulações ideais, as ideologias em
questão, na melhor das hipóteses, são utópicas (cf. ENGELS, 1962). Ou seja,
mesmo que não consiga se colocar como uma crítica ao próprio capitalismo,
formulações jurídicas e proletárias que, no terreno do inimigo, tentam, sem
nunca ter êxito duradouro, voltar a máquina jurídica contra a própria
burguesia.
Segundo Engels, houve, assim, uma crítica permeada pelo direito que se
dirigiu, de modo sincero, contra os sintomas da implementação do modo de
produção capitalista. Esta crítica foi o resultado tanto da ambiguidade do
terreno jurídico quanto da imaturidade do moderno proletariado.
Depois de determinado momento do desenvolvimento social, porém,
tem-se algo totalmente distinto: a concepção jurídica de mundo, com tons
“socialistas”, aparece de modo vulgar e apologético, em indivíduos como
Düring e Menger, bem como nos discípulos de Proudhon. O texto engelsiano,
portanto, passa por estes aspectos, destacando, também, este elemento
ambíguo da visão jurídica de mundo, que não se apresenta de modo
25
A oposição entre terreno do direito e da revolução é essencial na Nova Gazeta Renana, em
que Marx e Engels analisam, principalmente, a Alemanha de seu tempo (cf. MARX, 2010;
COTRIM, 2010).
26
Para uma crítica à noção pachukaniana de forma jurídica, cf. Sartori (2020).
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indiferenciado na história. Ela o faz trazendo consigo as consequências da
maturidade, da imaturidade, das vitórias e das derrotas da classe trabalhadora.
Em um primeiro momento, portanto, a concepção jurídica de mundo,
bem com o direito, trazem a emergência da burguesia, juntamente com a
oposição entre campesinato e nobreza; depois, tem-se a construção de um
terreno do direito distinto daquele da burguesia, o que aparece principalmente
nos movimentos que Engels caracterizou de socialistas utópicos.
27
Por fim, a
influência da visão jurídica de mundo se dá de modo, até certo ponto, reativo,
para que se tivesse um socialismo que não toma a revolução social (e a própria
Comuna de Paris, posteriormente) como modelo; ter em conta estes diferentes
momentos da análise engelsiana é central à compreensão de sua posição.
Porém, como anteriormente, tem-se a exposição de Engels trazendo uma
posição muito bem marcada, mas com afirmações que, devido ao caráter
sistemático da escrita do autor, podem ser mal compreendidas.
O tom polêmico de Engels contra seus adversários faz com que suas
afirmações precisem marcar uma posição decidida, por vezes, deixando de
lado meandros de questões complexas. Isto certamente se quanto ao direito,
cuja análise engelsiana, em grande parte, desenvolve-se contra os expoentes
teóricos de sua época, em que há uma reação, mesmo que “socialista”, à
revolução.
É importante marcar certo salto qualitativo: para o autor do Anti-
Düring, os próprios socialistas do final do século XIX momento em que as
ilusões dos socialistas utópicos não estavam presentes, nem tinham como
estar (cf. ENGELS, 1962) – apegaram-se ao terreno do direito em oposição ao
terreno da revolução. As ambiguidades do terreno que aqui analisamos são
grandes; ao mesmo tempo, ao termos em conta o espectro do comunismo,
deve-se dizer que elas podem se manifestar na sinceridade dos socialistas
utópicos ou no caráter reativo à revolução social, em uma espécie de socialismo
jurídico. E este último foi criticado por Engels, e pela crítica marxista ao
direito.
Tem-se uma posição muito dura contra aqueles que, no final do século
XIX, apegam-se ao terreno do direito. Porém, Engels também é explícito no
27
Diz Engels que as contradições da sociedade civil-burguesa ainda não estavam maduras ao
tempo dos socialistas utópicos: “essa situação histórica dominava também os fundadores do
socialismo. Ao estamento imaturo da produção capitalista, à condição imatura de classe
correspondiam teorias imaturas. A solução para as tarefas sociais ainda oculta nas relações
econômicas pouco desenvolvidas deveria ser gestada por cérebros pensantes. A sociedade
nada proporcionava além de precariedades; eliminá-las era tarefa da razão pensante. Tratava-
se de inventar um novo sistema mais perfeito de ordem social e outorgá-lo à sociedade a partir
de fora, mediante a propaganda e, quando possível, pelo exemplo de experimentos-padrão.
Esses novos sistemas sociais estavam de antemão fadados a permanecer utopias; quanto mais
elaborados eram em seus pormenores, mais se esvaíam necessariamente na pura
fantastiquice.” (ENGELS, 2015, p. 291)
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sentido de que é necessário ao moderno proletariado tanto passar pelo terreno
do direito quanto superá-lo de modo decidido; o caráter sistemático da
exposição de Engels faz com que ele não tenha passado por esta questão, tal
qual Marx realiza até certo ponto em O capital e em textos sobre a França, ao
analisar movimentos dos trabalhadores, por exemplo, na Comuna de Paris. Ou
seja, ao mesmo tempo em que a análise engelsiana é histórica, ela vem a
enunciar somente os aspectos mais gerais da questão, deixando aos seus
herdeiros (os marxistas) a tarefa de dar continuidade ao seu trabalho
28
. O
autor, sobre o ponto aqui mencionado, é claro no sentido de que foi preciso
colocar a reivindicação de igualdade (antes presente na religião e, agora, no
direito) contra a própria burguesia. Porém, com isto, a classe dos
trabalhadores precisaria ter consciência do caráter irreconciliável existente
entre igualdade jurídica e social
29
. A igualdade burguesa teria aparecido na
sombra da religião, colocando-se sobre o terreno do direito; a igualdade
proletária, por seu turno, pressuporia a igualdade burguesa, e precisaria a
superar decididamente.
Sabe-se, por outro lado, que a burguesia, desde o instante em que sai
do embrião da burguesia feudal, instante em que, de camada feudal
se converte em classe moderna, se vê ladeada, sempre e em todas as
partes, inseparavelmente, como por sua própria sombra, pelo
proletariado. E ao movimento da igualdade burguesa acompanha,
também, como a sombra ao corpo, o movimento da igualdade
proletária. Desde o instante em que se proclama o postulado
burguês da abolição dos privilégios de classe, ergue-se o postulado
proletário da abolição das próprias classes postulado esse que adota
primeiro a forma religiosa, baseada no cristianismo primitivo, e que,
mais tarde, se apoia nas próprias teorias burguesas da igualdade. Os
proletários colhem a burguesia pela palavra: é preciso que a
igualdade exista não na aparência, que não se circunscreva
apenas à órbita do estado, mas que tome corpo e realidade, fazendo-
se extensiva à vida social e econômica. E, desde que a burguesia
francesa, sobretudo depois da Grande Revolução, passou a
considerar em primeiro plano a igualdade burguesa, o proletariado
francês coloca, passo a passo, as suas próprias reivindicações,
levantando o postulado da igualdade social e econômica, e, a partir
dessa época, a igualdade se converte no grito de guerra do
proletariado, e, muito especialmente, do proletariado francês.
(ENGELS,1990, p. 89)
A burguesia, que utilizou do terreno do direito para romper com o
terreno da religião ao trazer uma nova forma de sociabilidade, tem o
proletariado como sua sombra. Isto se devido à natureza moderna das
classes na sociedade burguesa em que “tudo que era sólido e estável se
28
Grande parte dos marxistas que tratam do tema sequer se atentaram à complexidade do
pensamento do autor, porém.
29
Aqui também se nota o grau de generalidade das afirmações engelsianas. Como estamos
demonstrando, elas têm um profundo substrato histórico; porém, a exposição engelsiana nem
sempre o explicita, o que pode gerar dificuldades.
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desmancha no ar, tudo que era sagrado é profanado e os homens são obrigados
finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e suas relações com
outros homens” (MARX; ENGELS, 1998, p. 43). As classes que se
apresentavam anteriormente à maneira de estamentos não o fariam mais.
Tem-se também que a defesa da igualdade, trazida pela burguesia, certamente
tinha no essencial um conteúdo ligado à produção capitalista de mercadorias,
tal qual destacam com bastante afinco tanto Pachukanis quanto a tradição
pachukaniana; no entanto, a igualdade jurídica trazida com a burguesia não
deixava de ser acompanhada pelos pequenos camponeses em um primeiro
momento e, depois, do seu oposto.
Tem-se, assim, como potência, a igualdade econômica e social, que se
colocava na boca do proletariado contra a burguesia, o modo de produção
capitalista e a própria existência das classes.
O mesmo movimento que traz as condições de exploração do moderno
proletariado tem consigo os pressupostos de sua libertação, bem como da
supressão das classes sociais.
Engels, assim, identifica na igualdade jurídica a igualdade burguesa, ao
passo que a igualdade econômica e social seria oposta à jurídica, tal qual o
proletariado se coloca em uma relação antagônica diante da classe burguesa.
O proletariado moderno nasce junto com a burguesia, com a abolição e
supressão dos privilégios de classe. A burguesia, assim, coloca-se contra os
privilégios de classe; o proletariado posiciona-se contra a existência das
próprias classes sociais. correlações entre estes movimentos, que se
constituem na oposição entre burguesia e proletariado. E, deste modo, o
caráter contraditório da sociedade civil-burguesa se explicita: ao mesmo
tempo em que o proletariado se opõe à burguesia com as próprias armas
forjadas por esta, ele as transforma de modo mais ou menos substancial: a
igualdade, que foi o brado de guerra da classe burguesa, volta-se contra ela.
Com isto, em um primeiro momento, tem-se um terreno do direito
distinto, a busca pela complementação, sempre ilusória, da igualdade jurídica
com a social. Depois, porém, tem-se a oposição ao próprio terreno do direito e
à sociedade capitalista. E, se é verdade que o proletariado pega a burguesia
pela palavra, ele o faz, segundo Engels, transitando do terreno do direito ao da
revolução social. O modo pelo qual isto ocorre concretamente, porém, não é
deixado claro por Engels.
Para nosso autor, o movimento destas categorias é um processo
essencialmente histórico e marcado pelos distintos conflitos e lutas de classes;
a exposição engelsiana, assim, ao mesmo tempo, também sobre este aspecto,
explicita posições importantes, mas traz um grau de generalidade que pode
levar a leituras marcadas por certa unilateralidade na compreensão do
processo social.
Sua pesquisa é essencialmente histórica, mas a exposição de seu texto
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muitas vezes não traz explicitamente tal movimento histórico em sua
especificidade e em seu ser-propriamente-assim.
certo processo de desenvolvimento na exposição engelsiana: a
igualdade religiosa colocada no universalismo do cristianismo e, de modo
revolucionário no cristianismo primitivo (cf. ENGELS, 1969) abre espaço
para a igualdade burguesa que, por sua vez, remete à igualdade proletária.
Passa-se, assim, do terreno da religião, ao do direito e, por fim, da revolução.
A complexidade deste processo é analisada, fragmentariamente, por
Engels em diversos textos; porém, não podemos deixar de notar: caso
tomemos somente a passagem acima como referência, e se o cuidado
necessário não for tomado, certo risco da exposição engelsiana dar a
impressão que as categorias brotam umas das outras, como se daria em Hegel
(cf. MARX, 2011). A exposição mais acessível e voltada à popularização da
concepção materialista sobre determinados temas, como o direito, novamente,
tem seu preço. Nota-se que o grau de generalização do autor é bastante grande.
Porém, mesmo assim, é preciso que se aponte que, não há uma fórmula
simplesmente aplicável a todas as realidades. Como se percebe na passagem,
remissão do autor ao contexto francês, que é tomado como modelo para a
passagem, embora não se possa resumir todas as situações distintas a este
contexto. Engels, portanto, destaca o papel da religião, do direito e da
revolução de modo histórico. Porém, os meandros deste processo, por vezes,
não ficam tão claros em sua exposição.
Aliás, é curioso que mesmo que a visão jurídica de mundo seja aquela a
se tornar clássica da burguesia, não é tanto esta visão de mundo que é
analisada de modo mais explícito, histórico e sistemático por nosso autor.
Antes, é a visão de mundo teológica que em As guerras camponesas na
Alemanha, bem como, em menor grau, no Cristianismo primitivo, é tratada
em seu desenrolar efetivo em meio às lutas de classe de um país. Ou seja, a
rigor, a análise engelsiana sobre a religião é mais completa que sua análise do
direito, de modo que, também por isso, não se pode deixar de tratar da esfera
jurídica no autor sem ter como referência o processo de passagem do
feudalismo ao capitalismo.
-se, portanto, que os meandros do tratamento engelsiano da
igualdade, do direito e da circulação mercantil são bem mais complexos do que,
por vezes, a tradição pachukaniana parece supor. A mesma coisa se dá, aliás,
com a questão da moral
30
. Esta última não é tomada como uma algo
30
Diz Engels sobre a moral e seu papel ativo no capitalismo: “que espécie de moral nos pregam
hoje? Temos, em primeiro lugar, a moral cristã-feudal, que nos legaram os velhos tempos da
e que se divide, fundamentalmente, numa moral católica e numa moral protestante, com
toda uma série de variações e subdivisões que vão desde a moral católica dos jesuítas e a moral
ortodoxa dos protestantes, até uma moral de certo modo liberal e tolerante. E, ao lado dessas,
temos a moderna moral burguesa e, ao lado da moral burguesa moderna, a moral proletária
do futuro. Portanto, somente nos países mais cultos da Europa, nos defrontamos com três
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inerentemente burguês, embora não seja, nunca, por si resolutiva,
colocando-se como uma força ativa na tomada de consciência dos homens
diante da forma pela qual a igualdade é real e efetiva no capitalismo
31
. Neste
sentido também, as mediações da crítica engelsiana ao direito são muitas,
como veremos mais à frente de nosso texto. Sobre o que tratamos aqui, porém,
ainda é preciso apontar mais um ponto em que Engels se diferencia em relação
à tradição de crítica marxista ao direito.
No que toca a tradição iniciada por Pachukanis, há também de se
explicitar que Engels traz de modo bastante claro a necessidade de
reivindicações proletárias na forma de leis, e por meio de reivindicações
jurídicas. Não que os pachukanianos e o autor de Teoria geral do direito e o
marxismo não o façam, e com as devidas ressalvas. Mas é preciso que se
destaque que é notável a ênfase do autor do Anti-Düring na necessidade de se
passar pelo jurídico terreno do direito para se chegar ao terreno da revolução
(cf. SARTORI, 2018a; 2018b). Após dizer que seria impraticável e uma
insensatez um socialismo jurídico, sendo o direito o terreno da burguesia, e
não do proletariado, diz o autor:
Isso naturalmente não significa que os socialistas renunciaram a
propor determinadas reivindicações jurídicas. É impossível que um
partido socialista ativo não as tenha, como qualquer partido político
em geral. As reivindicações resultantes dos interesses comuns de
uma classe podem ser realizadas quando essa classe conquista o
poder político e suas reivindicações alcançam validade universal sob
a forma de leis. Toda a classe em luta precisa, pois, formular suas
reivindicações em um programa, sob a forma de reivindicações
jurídicas. (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 47)
Nota-se, deste modo, que Engels é extremamente crítico quanto ao
terreno do direito. Mas ele admite que nãocomo simplesmente abandoná-
lo. As reivindicações do proletariado como classe passam pelo direito e mesmo
pelas leis. Tal classe não nasce pronta para a revolução; ela precisa passar pelo
terreno do direito, tal qual a burguesia passou pelo terreno da religião.
Reivindicações que alcançam validade universal na forma de leis são
necessárias, embora não sejam resolutivas. E, também aqui, resta certa
dubiedade na exposição engelsiana: na citação acima há uma defesa do uso do
direito. O autor marca sua posição dizendo que não como simplesmente
saltar das lutas políticas imediatas para o terreno da revolução; tal qual
ocorreu com a burguesia com respeito ao terreno religioso, formas
grupos de teorias morais, correspondentes ao passado, ao presente e ao futuro, pretendendo
esses três grupos dominar, concorrente e simultaneamente. Qual delas é a verdadeira? Em
sentido absoluto e definitivo, nenhuma; mas, evidentemente, a que contém mais garantias de
permanência é a moral que, no presente, representa a destruição do presente, o futuro, ou seja,
a moral proletária.” (ENGELS,1990, p. 78)
31
Para uma análise das aporias do pensamento engelsiano sobre este ponto e sobre o modo
pelo qual o tratamento do estado e da transição para o socialismo acabam prejudicados
devido a esta posição, cf. Sartori (2016).
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transicionais que se explicitam ao passo que uma classe ainda não se coloca
sobre os próprios pés. Até este momento, sem problemas na compreensão de
nosso autor. No entanto, de se notar que a passagem, se vista isoladamente,
e se não é situada no contexto da obra engelsiana, pode dar margem a uma
posição simplesmente oportunista sobre o direito. Poder-se-ia, inclusive,
pensar que a forma transicional que menciona Engels seria a elaboração de um
outro terreno do direito, sendo que o próprio autor é explícito na crítica a esta
posição. Ou seja, também neste ponto, de se tomar muito cuidado com a
exposição engelsiana: ela é enfática e marca posição de modo exemplar. Porém,
suas posturas sempre precisam ser analisadas em conjunto, mesmo que não
estejam presentes em uma só obra. A facilidade de compreensão de sua obra é
aparente, pois.
Pelo que dissemos, em verdade, a compreensão do direito em Engels
traz consigo a análise da religião e da passagem do feudalismo ao capitalismo.
E isto não é pouco. Envolve, por exemplo, o papel proeminente da igualdade,
seja em sua figura religiosa, jurídica ou econômico-social.
No que diz respeito a este último aspecto, a exposição engelsiana passa
por diversos aspectos históricos e que podem ser trazidos à tona ao se ter
em conta a análise concreta das lutas de classe de uma época e país. Engels
procura fazer isto. Porém, não tem como realizar tal empreitada;
primeiramente, porque o grau de generalização de suas formulações é bastante
grande e, depois, porque não estuda e nem teria como estudar com o
devido cuidado todas as distintas formações sociais. E, também aqui, nota-se
que as formulações do autor do Anti-Düring são cheias de mediações e mais
complexas que a análise pachukaniana por vezes faz parecer. O tratamento das
ambiguidades do terreno do direito também é bastante importante para o
autor, tendo-se este assunto como central em sua compreensão, não da
esfera jurídica, mas das lutas do proletariado no final do século XIX, em que
uma espécie de socialismo jurídico se opunha ao seu socialismo e ao de Marx.
Justiça, moral, concepção jurídica e terreno do direito
A crítica de Engels ao direito visa, portanto, à sociedade em que se tem
a autovalorização do valor como télos. E, ao mesmo tempo em que o autor não
deixa de considerar que as lutas cotidianas passam pela dimensão jurídica, é
explícito no sentido de o direito não ser resolutivo. Sobre aqueles que buscam
a crítica da sociedade capitalista sem a crítica ao valor, diz o autor do Anti-
Düring:
Querer abolir a forma de produção capitalista mediante a instituição
do “valor verdadeiro” significa, por conseguinte, querer abolir o
catolicismo mediante a instituição do “verdadeiro” papa ou querer
instituir uma sociedade em que os produtores finalmente
dominariam seu produto mediante a execução consequente de uma
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categoria econômica, que é a expressão mais abrangente da
escravização do produtor por seu próprio produto. (ENGELS, 2015,
p. 344)
Como vem sendo recorrente, a correlação entre a posição engelsiana e a
crítica à igreja e à religião aparece aqui. E, deste modo, deve-se destacar: se a
visão de mundo teológica teria tentado resolver as contradições que marcam a
sociedade feudal buscando algo como o verdadeiro papa, aqueles que tomam
os pressupostos da sociedade capitalista explícitos no valor como base,
teriam buscado o verdadeiro valor. Pelo que vemos, a base da crítica engelsiana
ao direito é a crítica à moderna sociedade civil-burguesa, aquela em que os
produtos dominam os produtores, em que os homens são dominados pelas
coisas
32
. Portanto, por mais que a visão de mundo clássica da burguesia seja a
jurídica, isto só poderia se dar devido a determinada base econômica, que, em
última instância, para que se use a famigerada expressão do autor,
determinaria a existência dos indivíduos desta sociedade. A última instância
engelsiana, assim, não deixa de trazer uma relação, inclusive positiva, com sua
exposição: ela permite que Engels trate da autonomia e da especificidade de
cada esfera, trazendo-as à tona uma análise sistemática várias esferas do ser
social, como o direito. Ao mesmo tempo, é preciso dizer também que, após
tratar da visão religiosa, da visão jurídica de mundo, de sua relação com a
igualdade etc., o autor pode dizer que, em verdade, o movimento das categorias
que trouxe à tona tem uma determinação, em última instância, econômica. De
um lado, isto não deixa de ser essencial à compreensão da especificidade e do
papel ativo de cada esfera do ser social. E isto é fundamental para uma análise
cuidadosa da realidade efetiva da sociedade capitalista. Doutro lado, certo
risco, como mencionado acima, da conexão imanente das categorias entre si
poder ser perdida de vista. Ela está na posição engelsiana; porém, não deixa de
haver certo perigo, decorrente da exposição do próprio autor, em haver certa
leitura unilateral de seus textos (cf. SARTORI, 2015b)
momentos do texto engelsiano, no entanto, em que ele justamente
aponta para o perigo da perda da conexão entre os elementos distintos de um
contexto. Ou seja, também se marca posição contra aquilo que seria
desenvolvido a partir de uma leitura apressada de sua obra. Em nosso caso, ao
tratar da noção de justiça, e de sua relação com a moral, é justamente este
aspecto que aparece na linha de frente contra Proudhon, os proudhonianos e
contra Düring, principalmente.
O nosso autor diz o mesmo sobre os juristas e os políticos de profissão,
que, partindo de suas posições na divisão social do trabalho, pretendem que as
esferas em que atuam sejam as determinantes, autonomizando-as de modo
32
Deve-se notar que este é um tema central ao primeiro capítulo de O capital, que tem
centralidade na análise pachukaniana. Para uma análise dos limites desta abordagem, cf.
Sartori (2019).
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absoluto diante da esfera economia e as colocando como o demiurgo da
realidade. Há, portanto, certa autonomização do direito e do estado, que é
tratada pelo autor do Anti-Düring; mas estes não são absolutamente
autônomos diante da base real da sociedade-civil-burguesa:
O estado, porém, uma vez tornado poder autônomo face à sociedade,
produz logo uma ulterior ideologia. Nos políticos de profissão, nos
teóricos do direito público e nos juristas do direito privado,
nomeadamente, por maioria de razão, perde-se a conexão com os
fatos econômicos. (ENGELS, 1982, p. 418)
Para Engels, a conformação da ideologia e da visão de mundo jurídicas
passaria pelo estado. Não haveria como estabelecer uma ligação direta entre a
circulação mercantil e o direito, tal qual ocorre em Pachukanis (2017). O modo
pelo qual a ideologia parece ser autônoma diante da esfera econômica decorre,
também, da autonomização do estado; a determinação do direito e da política
diante do movimento econômico faz com que eles apareçam como marcados
por uma autonomia absoluta; e isto nunca pode ser dar. Tanto as formações
ideais dos políticos de profissão quanto dos teóricos do direito público e dos
juristas do direito privado teriam uma conexão indissolúvel com os fatos
econômicos. Engels, portanto, está mostrando que uma das características da
ideologia jurídica e da ideologia política é que elas pretendem estar
desconectadas da determinação econômica.
Deste modo, nosso autor adentra em um campo pouquíssimo tratado
na crítica marxista ao direito, a análise da conformação da ideologia jurídica,
inclusive, em suas expressões aparentemente mais críticas. Engels, portanto,
elabora uma análise sobre os próprios teóricos do direito, bem como à
concepção de direito natural e de justiça que estes desenvolvem contra o
direito positivo.
E isto se justamente ao passo que Engels destaca que esta
dependência mencionada se explicita na autonomização do estado diante da
sociedade civil-burguesa. No caso, trata-se de um fenômeno típico da
sociedade capitalista, embora possa se explicitar de modos diferentes, por
exemplo, no estado absolutista e no bonapartismo de Bismarck (cf. SARTORI,
2017a). Principalmente nestes dois casos, mas também, na atividade diuturna
dos juristas e dos políticos profissionais, o estado (bem como o direito)
pareceriam ter uma autonomia que nunca poderia ter. Noutros lugares, nosso
autor relacionará este aspecto à burocracia (cf. ENGELS, 2008). Aqui, porém,
surge algo bastante importante para a análise engelsiana: a base real para que
o direito (e a política, que não poderemos tratar aqui
33
) possa atuar como uma
33
Aqui, basta citarmos a polêmica de Engels sobre o poder político, que é visto como aquilo de
determinante por Düring: “está claro qual é o papel histórico que o poder desempenha no
desenvolvimento econômico. Em primeiro lugar, todo poder político está baseado
originalmente numa função social, econômica e se intensifica à medida que, pela dissolução
dos sistemas comunitários originais, os membros da sociedade o convertidos em produtores
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espécie de fuga diante do reconhecimento dos nexos colocados pelos fatos
econômicos. É sobre esta base – a oposição entre sociedade civil-burguesa e o
estado autonomizado que aparece na moderna sociedade capitalista que a
visão de mundo jurídica se consolida como aquela a se tornar clássica da
burguesia (cf. SARTORI, 2018b).
A partir desta autonomização do direito surgem alguns temas
importantes à crítica engelsiana ao direito. Tem-se, por exemplo, os papéis da
teoria jurídica e da justiça analisados, por exemplo.
Segundo Engels, principalmente ao se ter em conta a noção de justiça,
bem como o papel do direito no campo econômico, autores como ring
teriam procurado uma crítica à distribuição de riquezas na sociedade
capitalista, e não às relações de produção desta sociedade. E, com isto, ao
contrário do que se em Pachukanis e na tradição pachukaniana, por parte
de nosso autor uma análise bastante interessante acerca de como o papel ativo
do direito e da moral, colocados no direito natural e na justiça, aparecem, na
distribuição
34
, como uma espécie de outra face de Janus da relação entre a
esfera de circulação de mercadorias e o terreno do direito. Diz Engels sobre o
Düring:
Ele traslada toda a teoria da distribuição do campo econômico para
o da moral e do direito, isto é, do campo dos fatos materiais
estabelecidos para o das opiniões ou dos sentimentos mais ou menos
oscilantes. Portanto, ele não precisa mais investigar nem provar,
apenas declamar animadamente o que lhe vier à mente, e pode fazer
a exigência de que a distribuição dos produtos do trabalho se oriente
não por suas causas reais, mas por aquilo que parece moral e justo
para ele, para o sr. Dühring. (ENGELS, 2015, pp. 185-6)
Operando como teórico do direito público e filósofo, Düring
primeiramente perde a conexão do direito e da moral com os fatos econômicos.
Concebe uma teoria de como as coisas deveriam se dar no campo da economia;
depois, a partir de uma autonomização arbitrária, procura tomar como critério
do campo econômico justamente o moral e o direito. Haveria, portanto, uma
privados, ou seja, tornam-se ainda mais estranhos aos administradores das funções sociais
comuns. Em segundo lugar, depois que o poder político ganha autonomia em relação à
sociedade, convertendo-se de servidor em senhor, ele pode atuar em duas direções. Ou ele atua
no sentido e na direção do desenvolvimento econômico regular (nesse caso, não conflito
entre ambos e o desenvolvimento econômico é acelerado), ou ele atua na contramão desse
desenvolvimento (nesse caso, com poucas exceções, ele sucumbe regularmente ao
desenvolvimento econômico). Essas poucas exceções são casos isolados de conquista, nos
quais os conquistadores mais rudimentares exterminaram ou desterraram a população de um
país e devastaram ou deixaram deteriorar-se as forças produtivas com as quais não sabiam o
que fazer. Foi o que fizeram os cristãos na Espanha moura com a maior parte das instalações
de irrigação, nas quais estava baseada a agricultura e a jardinagem altamente desenvolvidas
dos mouros. Toda conquista por um povo mais rudimentar obviamente perturba o
desenvolvimento econômico e destrói numerosas forças produtivas.” (ENGELS, 2015, p. 211)
34
Para o papel do direito na distribuição, e para uma crítica a Pachukanis sobre este aspecto,
cf. Sartori (2020).
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44
patente inversão.
Engels é duro sobre tal posicionamento: tratar-se-ia de meras opiniões
e sentimentos oscilantes; no lugar da ciência, em que é preciso provar e
investigar com cuidado, ter-se-ia neste defensor da visão de mundo jurídica
uma animação moral decorrente do desconhecimento das causas reais do ser-
propriamente-assim da sociedade. Assim, de repente, o problema da sociedade
capitalista seria que ela não obedece aos desejos e caprichos do teórico do
direito e do filósofo, no caso, o sr. Düring. Com a ideologia que decorre da
autonomização do estado – e passa pela burocracia (cf. ENGELS, 2008)
35
–, a
moral e a justiça parecem ser o critério da realidade. Perde-se, assim, toda a
conexão entre a esfera da distribuição dos produtos do trabalho com a forma
pela qual se organiza a produção social. Trata-se de uma inversão que fora
denunciada por Marx e Engels nos ideólogos da ideologia alemã (2007), mas
que aparece agora – no final do século XIX – de modo ainda mais pueril. Com
isto, a partir da suposição do valor e do direito, tenta-se voltar contra as
consequências da autovalorização do valor, que, por sua vez, são reconhecidas
oficialmente no direito
36
.
Uma posição que parte de tais premissas poderia redundar em um
profundo idealismo. A explicação deste último, porém, é essencial para o
entendimento do direito; as teorias jurídicas, bem como as teorizações sobre a
justiça e o direito natural usualmente são marcadas por tal idealismo.
No campo dos teóricos do direito público, portanto, tem-se certa
contraposição àquilo que é reconhecido em meio à naturalização da
circulação mercantil no direito privado. E, assim, uma contraparte da relação
entre forma-mercadoria, a circulação mercantil e o direito é a tentativa de
resolver os problemas sociais de modo moralizante e com um apelo à justiça.
Para o autor do Anti-Düring, em verdade, a outra face dos juristas do direito
civil são os teóricos do direito blico; e, assim, há, inclusive, uma correlação
ente direito natural e os sistemas jurídicos modernos:
Na medida em que os juristas classificam como direito natural
aquilo que mais ou menos de comum em todos esses sistemas
jurídicos. Porém, o padrão pelo qual se mede o que é e o que não é
direito natural é precisamente a expressão mais abstrata do próprio
direito: a justiça. A partir de agora, portanto, o desenvolvimento do
direito passa a ser, para os juristas e para aqueles que neles
acreditam à letra, apenas o esforço no sentido de aproximar
continuamente as situações humanas, na medida em que se
expressarem juridicamente, do ideal da justiça, da justiça eterna. E
esta justiça é sempre a expressão ideologizada, celestializada, das
relações económicas existentes, ora segundo o seu lado conservador,
ora segundo o seu lado revolucionário. A justiça dos gregos e dos
romanos achava justa a escravatura; a justiça dos burgueses de 1789
exigiu a supressão do feudalismo por ele ser injusto. (ENGELS, 1982,
35
Para uma análise da crítica de Engels à burocracia, cf. Sartori (2017a).
36
Sobre esta forma de reconhecimento, cf. Lukács (2013).
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45
p. 51)
de se notar que tal posição engelsiana pode vir à tona porque a
autonomização do estado é efetiva, mesmo que não seja absoluta. O
tratamento do autor, portanto, tem por elo essencial a mediação do estado na
conformação da ideologia jurídica. E isto, novamente, afasta o pensamento de
Engels daquele de Pachukanis de modo bastante claro. Com isto, ao contrário
do que ocorre com o jurista soviético, tem-se uma análise bastante
multifacetada da noção de justiça e de direito natural (cf. SARTORI, 2017b).
Ainda no que diz respeito à esfera em que o direito se coloca, outro ponto
importante: pelo que vemos, o direito, a moral, e a noção de justiça em
conjunto – aparecem sobretudo na crítica (superficial, sentimental e opinativa)
da esfera da distribuição.
Não há, portanto, como analisar o direito em Engels sem tratar desta
esfera. E, se levarmos a sério a contribuição de nosso autor, a crítica marxista
ao direito precisa tratar do assunto também.
É verdade que, como indicou corretamente Pachukanis, há uma ligação
íntima entre a circulação de mercadorias e a esfera jurídica; porém, igualmente
necessário é apontar o papel que exerce o direito na esfera da distribuição das
mercadorias. E isto se dá mesmo que a efetividade desta esfera do ser social se
coloque como uma espécie de impotência diante dos fatos econômicos
37
.
Para Engels, não há como negar que a contraposição entre o direito dos
juristas do direito civil e o direito natural e a moral do direito público seja parte
constitutiva do ser-propriamente-assim da esfera jurídica. Isto apareceria,
sobretudo, na noção de justiça (cf. SARTORI, 2017b). E, deste modo, seria
muito unilateral não considerar tal aspecto em uma crítica ao direito. Também
aqui, Pachukanis tem muitos méritos. Porém, ele destaca, essencialmente, a
relação entre troca equivalente, forma mercantil e a justiça; e, novamente, os
elos intermediários entre tais coisas são destacados pelo autor do Anti-Düring
como essenciais, e de modo muito mais mediado do que se no autor da
Teoria geral do direito e o marxismo. Tal análise engelsiana pode ser
importante, não para a compreensão mais geral do tema, mas para uma
crítica àqueles que, como Düring, Prouhon e Menger, colocam-se como
expoentes importantes do movimento socialista do século XIX. Tais autores
estariam ganhando proeminência na medida em que se apegam a uma visão
de mundo, em verdade, burguesa, aquela do terreno do direito
38
. A relação
entre a teorização, as classificações e a atividade dos juristas é vista de modo
37
Interessante notar que, com Marx, Engels havia dito anteriormente sobre a moral: “a moral
é a 'impuissance mise en action'” (MARX; ENGELS, 2003, p. 224), é a impotência posta em
ato. Para a análise da questão, cf. Sartori (2017b).
38
Em verdade, o apego ao terreno do direito é muito recorrente na esquerda, inclusive naquela
autoproclamada marxista. Aqui, porém, não podemos tratar do assunto com cuidado, valendo
destacar somente que, com isto, tal esquerda fica muito aquém da análise engelsiana do direito,
da justiça e da moral.
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bastante mais cuidadoso por Engels, portanto (cf. SARTORI, 2018a; 2018b).
E, acreditamos, a crítica marxista ao direito precisa de tal cuidado ao tratar de
assuntos que têm proeminência nos debates da esquerda, como aquele
relacionado à justiça das transações e da distribuição.
A análise do autor alemão, portanto, vem a caracterizar a justiça como
a expressão ideologizada e celestializada das relações econômicas, voltando,
assim, a um tema central de sua crítica ao direito: a relação entre direito e
religião, entre visão de mundo teológica e a jurídica. E, novamente neste ponto
a pesquisa essencialmente histórica de nosso autor aparece com proeminência.
No que é possível se dizer do tema sobre o qual nos debruçamos agora:
de certo modo, tal qual a religião oficial era criticada pela teologia, o direito
positivo é criticado pelos teóricos do direito público. Estes últimos, a partir da
autonomização do estado, pretendem imprimir à realidade determinada
concepção de justiça e de moral. E, assim, não como reduzir o direito
público e as teorizações sobre a justiça e a moral ao direito privado e à esfera
de circulação mercantil (como até certo ponto, parece fazer Pachukanis em
algumas passagens); ao mesmo tempo, não é possível, de modo algum,
dissociar o público e o privado bem com a esfera da circulação de
mercadorias da esfera da distribuição - no que diz respeito ao direito. Este
último tem por base a autovalorização do valor, bem como o domínio das
coisas sobre os homens, que são reconhecidos pelo direito uma espécie de base
natural tanto na busca por justiça quanto na regulamentação da circulação.
O tratamento desta questão, tal qual a relação entre o terrestre e o
celeste no caso da religião, é bastante importante a Engels. E deve-se notar o
tom quase que religioso da noção proudhoniana de “justiça eterna”, que é
criticada pelo nosso autor na passagem. O autor da Miséria da teoria
procuraria retomar o lado revolucionário da noção de justiça, que teria sido
bastante ativo na Revolução Francesa; tratar-se ia de trazer a justiça eterna à
realidade. Os contrarrevolucionários e reacionários poderiam por exemplo,
a partir de certa concepção tomista retomar o lado conservador do direito
natural. Engels, porém, atém-se à análise do lado “revolucionário” da coisa:
tanto Proudhon quanto os seus discípulos, bem como Düring, pressuporiam o
assalariamento e, portanto, a relação-capital; no que o nosso autor é irônico
sobre a afirmação de Düring sobre a igualdade quantitativa e qualitativa:
“salários iguais e preços iguais produzem a ‘igualdade quantitativa de consumo,
embora não produzam a igualdade qualitativa’, e, desse modo, é concretizado
economicamente o ‘princípio universal da justiça’” (ENGELS, 2015, p. 334).
Tratar-se-ia, assim, de um “sistema construído sobre um ‘princípio universal
da justiça’ ou seja, isento de todas as considerações relativas a fatos materiais
econômicos” (ENGELS, 2015, p. 323). Tal qual na religião seria preciso se
tomar o reino de Deus como critério da terra, no direito, a justiça e o direito
natural apareceriam como o crivo da realidade das relações econômicas. E isto
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seria possível devido à conformação bastante específica das ideologias dos
juristas e dos políticos profissionais, duramente atacados pelo nosso autor.
Ainda sobre os juristas, deve-se apontar a contraposição entre a letra e
a realidade efetiva; a inversão aqui seria patente, de modo que aos juristas e
aos teóricos do direito pareceria que aquilo a se fazer é a aproximação
progressiva da realidade econômica da letra jurídica. O jurídico terreno do
direito, assim, parece ser o critério da realidade econômica ao passo que
expressa de modo mais ou menos mediado, em última instância, esta. Tem-se,
assim, a expressão ideologizada e celestializada, de que fala o autor. E, também
neste ponto, é preciso trazer à tona o fato de que a análise engelsiana está
colocada em um grau de minúcias muito maior que aquela de Pachukanis. Ela,
inclusive, abre espaço para toda uma crítica marxista à ideologia jurídica, que,
em grande parte, ainda está a ser feita.
Para nossa análise, porém, é importante destacar que, para o autor
do Anti-Düring, tal procedimento idealista presente nos juristas,
bem como nos políticos profissionais e nos teóricos do direito, não é
algo como um câncer a ser extirpado do direito. Ele faz parte do seu
próprio método. Ao tratar de Düring, tal qual anteriormente em A
ideologia alemã (2007), o nosso autor ataca a inversão ideológica
trazida, bem como o método adotado por aquele que critica em sua
principal obra:
Ora, quando algum ideólogo dessa linha formula a moral e o direito
a partir do conceito ou dos assim chamados elementos mais simples
“da sociedade”, em vez de fazê-lo a partir das relações sociais reais
das pessoas que o rodeiam, que material ele tem à disposição para
realizar essa formulação? Claramente, são dois tipos de material: em
primeiro lugar, o resíduo escasso do conteúdo real que
possivelmente ainda está presente nas abstrações colocadas como
base e, em segundo lugar, o conteúdo que nosso ideólogo reintroduz
a partir de sua própria consciência. E o que ele encontra em sua
consciência? Sobretudo, noções morais e jurídicas como expressão
positiva ou negativa, afirmativa ou polêmica correspondente, em
maior ou menor grau, às relações sociais e políticas nas quais ele vive;
além disso, talvez encontre concepções extraídas da bibliografia
pertinente; por fim, possivelmente ache ainda algumas
excentricidades pessoais. Nosso ideólogo pode virar e mexer como
quiser: a realidade histórica que ele jogou porta afora volta a entrar
pela janela e, acreditando esboçar uma teoria moral e jurídica para
todos os mundos e todas as épocas, ele de fato confecciona um
retrato desfigurado das correntes conservadoras ou revolucionárias
do seu tempo desfigurado por ter sido desarraigado do seu chão
real e posto de cabeça para baixo como num espelho côncavo.
(ENGELS, 2015, p. 127)
Na passagem, Engels critica Düring que, tal qual a economia política
antes dele, parte de uma espécie de robinsonada; nela, tem-se uma imagem
abstrata da sociedade civil-burguesa, que passa a ser vista como “a sociedade”.
Na economia política, porém, tratava-se “da antecipação da ‘sociedade
burguesa’, que se preparou desde o século XVI e que, no século XVIII, deu
largos passos para sua maturidade” (MARX, 2011, p. 54). No autor criticado
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por Engels tem-se esta sociedade consolidada. Ou seja, se Smith e Ricardo
foram grandes autores que trouxeram ilusões decorrentes de suas épocas, o
mesmo não se mais com Düring, cujo comportamento é de um ideólogo
39
,
de alguém que acredita que pode ignorar a realidade histórica na medida
mesma em que somente a coloca de cabeça para baixo, trazendo uma imagem
invertida e deformada da realidade, como em um espelho côncavo. O “método
ideológico” (ENGELS, 2015, p 127), assim, traria à tona tal inversão. Tal
aspecto é bastante proeminente na crítica de Engels e de Marx também (cf.
SARTORI, 2018c) à ideologia jurídica. Trata-se de uma teoria que é
desenvolvida, não mais diante das ilusões da burguesia, mas do caráter
anacrônico do domínio burguês. Não se tem mais gigantes como Smith,
Ricardo, Kant e Hegel, mas anões como Menger e Düring na dianteira da teoria
e da ideologia burguesas.
E isto se mesmo que o tom destes dois autores seja autodeclarado
socialista.
O método de que parte a teoria moral e jurídica, assim, é extremamente
idealista, correspondendo àquilo que o autor alemão criticou, tratando como
ideológico
40
: “trata-se aqui apenas de outra formulação do velho e apreciado
método ideológico, em outras partes também chamado apriorístico, de
identificar as propriedades de um objeto não a partir do próprio objeto, mas
de derivá-las argumentativamente do conceito do objeto”. No que
complementa Engels: “primeiro, formula-se, a partir do objeto, o conceito do
objeto; em seguida, inverte-se tudo e mede-se o objeto por seu retrato, pelo
conceito. Dali por diante, não é o conceito que deve se orientar pelo objeto,
mas o objeto pelo conceito” (ENGELS, 2015, p. 127). A concepção de justiça e
de moral de Düring pretendem, portanto, em primeiro lugar, uma fuga diante
da realidade efetiva do campo econômico; com isto, apega-se ao elemento
jurídico e moral e volta-se as costas às relações de produção e às forças
produtivas da sociedade capitalista. Ao fazê-lo, eterniza-se os pressupostos
desta sociedade, tratando-a como “a sociedade”. Com isto, os problemas da
economia capitalista deixam de estar ligados aos fatos econômicos e passam a
estar relacionados à regulamentação destes no interesse da moral e da justiça.
Se a economia política tentava uma resolução das questões sociais no
campo das relações econômicas, os socialistas” que Engels critica, dentre
outras coisas, por se apegarem à visão jurídica de mundo, fogem da
compreensão dessa. Isto se dá tanto com Düring quanto com Proudhon: “toda
a doutrina de Proudhon assenta neste salto de salvação que vai da realidade
39
Tal uso da noção de ideologia (e de seus derivados) não é o único em Engels (cf. SARTORI,
2015b).
40
Aqui não podemos tratar da categoria ideologia em Engels. Porém, de se ressaltar que,
não obstante certa oscilação no conceito, ele não corresponde somente a uma espécie de falsa
consciência (cf. SARTORI, 2015b).
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económica para a frase jurídica”. No que continua Engels de modo bastante
irônico: “o valente Proudhon, sempre que deixa escapar a conexão econômica
— e isto acontece nele com todas as questões sérias — refugia-se no campo do
direito e apela para a justiça eterna” (ENGELS, 1982, p. 12), O método
ideológico, segundo nosso autor, faz parte do próprio campo do direito e está
bastante presente naqueles que pretendem voltar este campo contra a
economia a partir da moral e da justiça (cf. SARTORI, 2017a; 2017b). E, neste
sentido, tem-se em Engels uma crítica bastante dura àqueles que pretendem
ter no direito e na noção de justiça um ponto de apoio essencial contra as
consequências do domínio burguês.
Deste modo, podemos dizer que Engels trata da prática dos juristas e
dos teóricos do direito de modo mais cuidadoso que Pachukanis, que, embora
destaque tal aspecto em alguns momentos, não o faz com o mesmo grau e com
a mesma ênfase que o autor do Anti-Düring.
No que é preciso que se diga: este método especulativo presente na
teorização sobre a justiça e o direito natural, mesmo em suas diferenças
específicas, é comum à religião, à filosofia da ideologia alemã dos neo-
hegelianos e aos juristas. A combinação entre o resíduo escasso do que resta
da representação invertida da realidade com a consciência do ideólogo faz com
que a justiça e o direito natural pareçam poder atuar como uma espécie de
demiurgo do real. E, a inversão realizada, assim, é gritante. Diz Engels sobre o
autor da Miséria da Teoria: “Proudhon coloca à sociedade de hoje a exigência
de se remodelar não segundo as leis do seu próprio desenvolvimento
econômico, mas segundo as prescrições da justiça.” (ENGELS, 1982, p. 49) A
crítica à figuração da ideologia como uma espécie de inversão especulativa
entre o conceito e a realidade, assim, ganha bastante espaço na posição de
Engels sobre aqueles que se dizem socialistas e se apegam à visão de mundo
jurídica. Embora esta não seja a única acepção de ideologia presente em Engels
(cf. SARTORI, 2015b), ela é importante e seu entendimento passa pelo modo
pelo qual o direito opera na esfera da distribuição.
Isto se dá na medida em que a moral e a justiça são o apoio dos juristas
e dos teóricos do direito. A aparência grandiosa dos clamores por justiça,
portanto, não é algo externo e contingente ao campo jurídico. Ela faz parte do
seu ser-propriamente-assim. Tal inversão ideológica, característica da
sociedade capitalista, passa pelo terreno do direito e traz um tom de sapiência
àquilo que, em verdade, é uma grande ignorância quanto ao real
funcionamento da sociedade civil-burguesa.
A teoria jurídica traz a imagem invertida da teoria dos economistas
burgueses vulgares.
Engels, novamente, é bastante duro: “Proudhon encobre a sua
ignorância econômica e impotência julgando todas as relações econômicas não
segundo as leis econômicas, mas sim consoante elas estejam ou não de acordo
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50
com a sua representação dessa justiça eterna.” (ENGELS,1982, p. 49) Na
sociedade capitalista do final do XIX, um modo bastante importante pelo qual
o método ideológico se coloca é aquele de uma crítica ao status quo a partir da
concepção jurídica de mundo, de uma teoria jurídica e moral sobre a justiça. E
nos parece que o estudo desta crítica ainda seja bastante atual para aqueles que
pretendem elaborar uma crítica marxista ao direito
41
.
E é preciso que se diga: tem-se com esta teorização sobre a justiça, até
certo ponto, e somente até certo ponto, um posicionamento “crítico” sobre a
distribuição da riqueza na sociedade capitalista. No entanto, esta crítica
pressupõe o essencial desta sociedade. E, também aqui, a relação entre esta
crítica jurídica da esfera da distribuição e o modo pelo qual o direito se
relaciona com a circulação de mercadorias é muito mais desenvolvido em
Engels que em Pachukanis
42
. O processo pelo qual as correntes revolucionárias
do direito natural criticam, com uma posição burguesa, a sociedade feudal é
trazido à tona por Engels; depois, o autor mostra como que os socialistas
utópicos também apelam a isto, em grande parte, ao modo dos iluministas; e,
por fim, mostra-se que os socialistas como Düring, Menger e Proudhon não se
apoiam no realismo – ou mesmo no cinismo (cf. MARX, 1980) – da economia
política, nem a ingenuidade dos socialistas utópicos (cf. ENGELS, 1962). Tem-
se uma posição reativa à possibilidade de uma revolução social aos moldes
da Comuna de Paris. E, assim, com a pretensão de superar tanto os
economistas quanto os socialistas anteriores, fica-se em uma versão tacanha
do método ideológico, que vem a ter por central a concepção jurídica de mundo.
Em grande parte, este seria o ponto de partida da teoria jurídica e da
conceituação sobre a justiça. E, assim, acreditamos que a análise engelsiana
tem muito a oferecer neste campo, o qual, reiteramos, ainda precisa ser
visitado com mais cuidado pela crítica marxista do direito.
Há, portanto, diferentes figuras da visão de mundo jurídica. E, também
aqui, mesmo que a exposição engelsiana seja bastante sistemática em diversos
momentos, sua pesquisa é essencialmente histórica; talvez seja exagero
apontar no autor uma contradição entre uma pesquisa essencialmente
histórica e uma exposição sistemática; mas certa tensão entre as duas. No
que diz respeito ao nosso tema, isto se explicita ao passo que o apelo à justiça
é visto como uma fuga diante da realidade do fato econômico; porém, o modo
pelo qual se esta fuga varia do iluminismo revolucionário burguês à
vulgaridade de socialistas como Düring, Menger, os proudhonianos e, em
41
Tal aspecto está relacionado com um modo mais manipulatório de lidar com a filosofia (cf.
SARTORI, 2018c).
42
No campo pachukaniano, há um interessante desenvolvimento da questão (cf. KASHIURA,
2009). Mesmo que acreditemos que o ponto de partida do autor possa deixar algumas questões
importantes de lado, de se destacar o desenvolvimento inteligente e sofisticado da análise
de Celso Kashiura sobre campos do direito público, do direito do consumidor, bem como de
aspectos importantes da teoria da justiça de John Rawls.
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menor grau, o próprio Proudhon. A visão jurídica de mundo, na forma do
direito natural, poderia se colocar de modo conservador, como no mundo
antigo, ou de modo revolucionário, como na Revolução Francesa, como
dissemos. Ao se ter este último aspecto em vista, deve-se apontar que a herança
burguesa, segundo Engels, passa pelas ilusões do iluminismo e pela razão. E,
do mesmo modo como anteriormente, nosso autor traz apontamentos e marca
posições de modo firme, mas uma análise imanente do próprio
desenvolvimento histórico pelo qual isto se deu não aparece senão de modo
esparso.
Diz o autor que “os filósofos franceses do século XVIII, os precursores
da revolução, apelaram para a razão como juíza única de tudo o que existia. O
que se pretendia era organizar um estado racional, uma sociedade racional, e
tudo o que contradizia a razão eterna deveria ser eliminado sem dó nem
piedade” (ENGELS, 2015, p. 289). Deste modo, o apelo à razão e à justiça
andaram juntos na ascensão da burguesia. Trata-se do momento heroico desta
classe social. No que complementa Engels: “vimos igualmente que essa razão
eterna, na realidade, nada mais era que o entendimento idealizado do cidadão
médio que, justamente, naquela época, estava evoluindo à condição de burguês”
(ENGELS, 2015, p. 289). Pelo que vimos, pode-se dizer que a razão eterna foi
acompanhada da justiça. Esta, em Proudhon, aparece posteriormente na
figura da justiça eterna. Porém, ainda diz nosso autor algo bastante importante
sobre o desenrolar histórico da sociedade e do estado racionais:
O estado racional ruiu completamente. O contrato social
rousseauniano concretizou-se no período do Terror, diante do qual
a burguesia, desenganada de sua própria capacitação para a política,
buscou refúgio primeiro na corrupção do Diretório e, por fim, sob a
égide do despotismo napoleônico. A paz perpétua prometida havia
se revertido numa interminável guerra de conquista. A sociedade
racional não se saiu melhor. O antagonismo entre rico e pobre, em
vez de dissolver-se no bem-estar universal, aguçou-se com a
eliminação da função intermediadora dos privilégios corporativos e
afins e da função mitigadora das instituições de caridade da Igreja;
o crescimento da indústria sobre bases capitalistas elevou a pobreza
e a miséria das massas trabalhadoras ao nível de condição de vida
da sociedade. (ENGELS, 2015, p. 289)
A realização dos ideais burgueses não poderia se dar em outra sociedade
que a burguesa. E, portanto, a sociedade, o estado e a justiça racionais são
efetivos contraditoriamente justamente na miséria das massas trabalhadoras.
A função mitigadora da igreja – e não podemos deixar de ressaltar novamente
a relação entre igreja e direito burguês de um lado, e entre a concepção
teológica e a jurídica doutro e da caridade se realizam no estado, nas working
houses e no cárcere modernos
43
. E, assim, segundo Engels, a defesa
consequente da razão e da justiça, mesmo que ainda se colocasse no terreno do
43
Sobre o assunto, cf. Medrado (2018).
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direito, não poderia mais estar com aqueles com uma posição puramente
burguesa.
A partir dos socialistas utópicos principalmente, o proletariado tenta
criar um terreno do direito diferente daquele da burguesia. O anticlericalismo
do Iluminismo, assim, não estaria mais em seu melhor terreno com a classe
burguesa, mas com os socialistas, que, nesta configuração presa a uma noção
idealizada de razão, ao estado e ao terreno do direito, aparece com certa
ingenuidade e com certo apelo ao gênio individual; tudo isto, sem que se
explicitasse com clareza os antagonismos classistas que marcam a moderna
sociedade civil-burguesa. Diz-se no Anti-Düring:
A exemplo dos iluministas, eles não queriam libertar uma
determinada classe, mas a humanidade inteira. Como aqueles,
pretendiam introduzir o império da razão e a justiça eterna; mas o
império deles era completamente diferente do império dos
iluministas. O mundo burguês organizado segundo os princípios
desses iluministas também é irracional e injusto e, por conseguinte,
vai parar no caldeirão das coisas condenáveis, da mesma forma que
o feudalismo e todas as condições sociais anteriores. A verdadeira
razão e justiça ainda o chegaram para governar o mundo
unicamente pelo fato de não terem sido corretamente identificadas.
O que faltava era o gênio individual que agora entrou em cena e
reconheceu a verdade; o fato de ele ter entrado em cena logo agora e
não constituem acontecimentos inevitáveis, necessariamente
decorrentes do desenvolvimento histórico, mas puro acaso. Esse
gênio poderia muito bem ter nascido anos antes e, nesse caso, teria
poupado à humanidade quinhentos anos de erros, lutas e
sofrimentos. (ENGELS, 2015, pp. 47-8)
Não é indiferente a que figura desta visão de mundo um teórico se apega.
O iluminismo aparece como inviável à burguesia depois de determinado
momento, de modo que ele, bem como a visão jurídica de mundo amparada no
direito natural revolucionário aparecem nos socialistas utópicos. Por meio de
uma concepção idealizada de estado ou de sociedade racionais, a justiça parece
poder ser realizada. Porém, devemos destacar que, se os iluministas franceses
e os socialistas utópicos são bastante respeitados por Engels, o mesmo não se
com os proudhonianos, com Düring e com Menger. Eles buscariam uma
visão de mundo essencialmente burguesa ao passo que o caráter reacionário
da burguesia já estaria claro. Ou seja, os socialistas do final do século XIX, que
se opunham à concepção materialista que Engels desenvolveu com Marx não
se comparariam com os gigantes do passado burguês; trariam todos os seus
defeitos sem possuir nenhuma das qualidades.
Acreditamos que isto é essencial para que se compreenda a análise
engelsiana daqueles críticos que se colocam no terreno do direito. Tem-se
também um ponto de partida interessante para a análise da ideologia jurídica
e da visão jurídica de mundo que se coloca depois do século XIX.
O caráter enciclopédico dos iluministas, e o ímpeto revolucionário dos
socialistas utópicos dão lugar à ignorância e ao charlatanismo. No que diz
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respeito ao nosso tema, nosso autor diz sobre Düring, por exemplo, que:
“devemos constatar, assim, que o sr. Dühring desconhece completamente o
único código burguês moderno baseado nas conquistas sociais da Grande
Revolução Francesa e que as traduziu para a linguagem jurídica” (ENGELS,
2015, p. 140). A vulgaridade do autor criticado no Anti-Düring seria tamanha
que ele se apoiaria na concepção jurídica de mundo e na ideia de justiça ao
passo que, como filisteu provinciano, conheceria somente o direito alemão. E,
assim, em todos os aspectos, tal retomada do direito natural e da justiça faria
destes autores anões perto dos gigantes do passado. Se os iluministas
procuravam fazer ciência, para alguém como Düring, “liberdade na ciência
significa, então, escrever sobre tudo aquilo de que nada se aprendeu e alegar
que esse é o único método rigorosamente científico”. No que complementa
Engels: “o sr. Dühring é um dos tipos mais característicos dessa atrevida
pseudociência que, na Alemanha atual, em toda parte, se apressa a ocupar o
primeiro plano e cujo som trovejante de tambor de lata se sobressai a todos os
demais” (ENGELS, 2015, p. 31). E, deste modo, percebemos que a crítica
engelsiana ao direito é incompreensível, não sem uma abordagem histórica;
tem-se a necessidade da compreensão do processo histórico em que a visão de
mundo jurídica passa de revolucionária à apologética.
E, também sobre isto, o tratamento engelsiano é bastante mais cheio de
meandros que o pachukaniano. Ele certamente não é completo, ou mesmo
suficiente sob diversos aspectos. Por vezes, marca-se posição de maneira
bastante firme, remetendo ao processo histórico concreto. Mas este mesmo
não é exposto em suas minúcias e em seu desenrolar concretos, reais e efetivos.
E, assim, se é verdade que o modo de exposição não se confunde com o
de pesquisa, igualmente correto é dizer que, em Engels, certa tensão entre
trazer a necessidade de realizar um tratamento histórico e uma exposição
sistemática, em que a relação imanente entre as categorias nem sempre fica
clara. Aquilo que dissemos sobre a relação entre direito e religião certamente
joga um papel bastante grande aqui também. Porém, se Engels realiza um
tratamento histórico-imanente em sua análise das Guerras camponesas na
Alemanha, isto se sem que tenha feito algo semelhante sobre os pontos que
destacamos acima. Nossos posicionamentos sobre a ligação entre razão,
iluminismo e justiça, bem como sobre as diferentes figuras desta tematização
estão no autor. Porém, isto se dá de modo esporádico, e sem uma análise
histórica cuidadosa do modo pelo qual real e efetivamente tais categorias
se colocam como uma potência ativa em situações concretas.
Tal abordagem histórica está presente na forma de posicionamentos
sobre diversos assuntos, certamente relacionados, mas tratados, até certo
ponto, separadamente, por temas, e de modo sistemático. A superação do
anticlericalismo e do deísmo dos iluministas pela visão de mundo materialista
é tratada por Engels no início do Anti-Düring, bem como o modo pelo qual o
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materialismo e as ciências são uma força revolucionária na passagem do
feudalismo para o capitalismo; tem-se uma análise do materialismo na crítica
à sociedade civil-burguesa nascente, remetendo-se ao papel da ciência na
superação de uma visão teológica. Porém, a conexão imanente dstas questões
com as relações econômicas, com a religião, com o direito e com a crise da
sociedade capitalista é apenas indicada pelo autor. E, assim, tem-se um
aspecto dúplice: tais indicações podem ser preciosas em uma análise histórica
do processo de desenvolvimento social; porém, corre-se o risco de, como
aconteceu não poucas vezes, tais posicionamentos sejam tomados de modo
dogmático.
Tais aspectos são indissolúveis na obra engelsiana, cuja exposição,
como mencionamos, traz as virtudes e as vicissitudes do melhor e do pior do
marxismo do século XX. Para o que diz respeito ao nosso tema, há de se notar
a dificuldade da apreensão da crítica de Engels ao direito.
Uma leitura do Socialismo jurídico e dos capítulos do Anti-Düring
sobre o direito, de imediato, passa a impressão segundo a qual a relação entre
circulação de mercadorias, emergência da burguesia e a esfera jurídica é “o”
ponto de partida marxista. Isto foi desenvolvido com muita profundidade e
competência por Pachukanis e pela tradição pachukaniana. Aqui, pretendemos
ter demonstrado que, ao tomarmos Engels como referência, a crítica ao direito
precisa passar com cuidado por diversos temas que não são aprofundados pelo
autor da Teoria geral do direito e o marxismo. E, assim, de certo modo, Engels
se coloca de modo muito mais multifacetado e interessante que Pachukanis,
mesmo que a dificuldade na compreensão de sua real posição não seja pequena
e mesmo que a obra engelsiana não seja destituída de ambiguidades, que
aparecem, sobretudo, em certa tesão entre seu tratamento histórico e seu
modo de exposição, que tende a ser muito mais sistemático que o de Marx.
Apontamentos finais
Engels não é qualquer autor. Ao mesmo tempo em que é impossível que
não fique na sombra de Marx, ele tem uma estatura própria, que faz com que
desenvolva temáticas importantes para a compreensão da moderna sociedade
capitalista. É o que se dá com seu tratamento do direito.
O enfoque histórico no desenvolvimento do direito, da igualdade e da
justiça faz com que a contribuição engelsiana traga a especificidade da esfera
jurídica, e que esta seja analisada ao se ter em conta sua relação com a religião,
com a circulação de mercadorias e com a esfera da distribuição. O tratamento
de cada um destes momentos do desenvolvimento do direito, por sua vez,
remeteria, em última instância, às relações materiais de produção. Vimos que
um dos grandes méritos do autor é explicitar tais correlações e determinações
recíprocas, o que faz de sua crítica ao direito algo, ao mesmo tempo,
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multifacetado, e integrado à crítica ao valor e à sociedade capitalista. O
trabalho do autor, neste sentido específico, é grandioso. Decididamente foge
de simplismos e de unilateralidades.
A leitura atenta da obra engelsiana que procuramos abordar aqui no
que diz respeito ao direito deixa clara a existência de um grande fôlego em
suas análises, mesmo que elas, por vezes, sejam explicitadas ao marcar posição
contra autores de sua época, os quais, hoje, são ilustres desconhecidos. Düring,
Menger e os proudhonianos, de certo modo, são lembrados devido aos
estudos do contexto das obras de Marx e de Engels. Devemos destacar, assim:
a exposição engelsiana é rica e traz a correlação de todos os aspectos que
mencionamos neste pequeno texto. Porém, não podemos deixar de notar certa
tensão entre a pesquisa essencialmente histórica do autor e sua exposição
sistemática dos temas abordados, com o direito, a justiça e a visão de mundo
jurídica.
Isto faz com que, muitas vezes, mesmo autores cuidadosos e cuja
contribuição é essencial, como Pachukanis, tenham feito uma leitura parcial
da obra engelsiana. Se o autor soviético aponta com razão a centralidade da
relação entre a esfera de circulação de mercadorias e o direito, a análise do
autor do Anti-Düring é mais complexa neste ponto. Ela se tratando do papel
ativo da esfera jurídica na passagem, não só do feudalismo ao capitalismo, mas
ao trazer à tona a correlação entre a produção camponesa e o direito, bem com
a luta do proletariado e a necessidade de se superar o terreno do direito na
crítica ao capitalismo. Ou seja, o papel ativo do direito é visto pelo autor com
muito mais mediações, se comparado a Pachukanis. E isto se porque sua
pesquisa, essencialmente, configura-se por uma análise histórica em que a
autonomia relativa das esferas do ser social como o direito, a ideologia e a
religião, para que fiquemos no que tratamos – joga um importante papel.
Em um primeiro momento, no que toca o direito, isto se daria na
medida em que a superação do privilégio de classe é uma demanda tanto da
burguesia quanto do pequeno campesinato, que é analisado por Engels nas
Guerras camponesas na Alemanha. Depois, porém, com a burguesia se
colocando sobre os próprios pés, a igualdade jurídica que teve um papel
essencial na subsunção formal ao capital e que exerce também uma função
importante no capital consolidado com a subsunção real coloca-se
efetivamente como igualdade burguesa. Por fim, nosso autor procura
demonstrar como que as lutas do moderno proletariado passam pelo terreno
do direito, mas, tal qual a burguesia o fez quanto ao terreno da religião,
precisam remeter a um terreno mais próprio para suas lutas sociais, o terreno
da revolução. Desta maneira, em Engels uma análise do modo pelo qual o
campo jurídico é tipicamente burguês, mas é necessário que a luta do
proletariado passe por ele.
Ao passo que se trata de várias formas pelas quais a esfera jurídica se
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configura historicamente, tem-se certamente este campo como aquele propício
ao domínio burguês, como mencionamos. Porém, destaca-se como que é
possível, até certo ponto, que o proletariado pegue a burguesia pela palavra, a
partir da igualdade, central ao direito. Mas, aí tem-se uma diferença essencial
para nosso autor: no proletariado, o clamor por igualdade é colocado em
oposição à igualdade jurídica na figura da igualdade econômica e social. A
análise engelsiana, também neste ponto, é muito mais complexa que a de
Pachukanis. E, deste modo, ainda hoje, pode ser importante aos críticos do
direito a leitura atenta da obra de Engels, sendo inaceitável, neste aspecto,
tomar a crítica pachukaniana como a última palavra na compreensão de algo
básico para qualquer marxista, as obras de Marx e de Engels.
No caso de Engels, não há como deixar de se destacar como sua análise
do direito é permeada por aspectos importantes da sociedade capitalista, como
o fato de que o proletariado e os seus representantes precisariam superar a
visão de mundo jurídica, mas não necessariamente o fazem.
Isto acontece, também, porque, com a perda do potencial
revolucionário da burguesia, a visão de mundo jurídica permeia aqueles que se
contrapõem à distribuição da riqueza na sociedade capitalista. É o que se
com Menger, Düring, com os proudhonianos e com o próprio Proudhon no
final do século XIX. E a análise engelsiana da relação entre direito, razão,
justiça e a prática dos juristas e dos políticos profissionais é exemplar no que
toca a importância da ideologia jurídica na moderna sociedade civil-burguesa.
Com tal ideologia vai-se da crítica iluminista da sociedade feudal à visão mais
ou menos vulgar (no caso aqui analisado com um socialismo vulgar
44
) das
possibilidades da sociedade capitalista. Tem-se uma espécie de crítica que
parte da ideologia burguesa, assume os pressupostos da sociedade burguesa e
se opõem somente aos sintomas do modo de produção capitalista. Isto se
com um método ideológico, que, a partir da autonomização do estado, traz
uma verdadeira fuga diante da compreensão das reais razões de determinada
configuração social, colocadas em última instância, nos fatos econômicos. E,
também aqui, a visão engelsiana é muito mais ampla que a pachukaniana e a
dos pachukanianas. Tendo como pano de fundo a relação entre direito e
religião, bem como a emergência da sociedade capitalista, a análise de nosso
autor se coloca em termos históricos mesmo que sua exposição, por vezes,
possa ser demasiadamente sistemática.
E, sobre este aspecto, mesmo que se coloque contra isso de modo
explícito e decidido, o risco da autonomização dos diferentes temas tratados
por Engels está na própria análise do autor.
Mesmo que não se possa culpar Engels pelas adversidades de certo
44
Devemos destacar que esta expressão é mais recorrente em Marx que em Engels. O autor de
O capital, por exemplo, critica Proudhon e aqueles que acreditam poder resolver as
vicissitudes da sociedade capitalista atacando os juros ou a distribuição da riqueza.
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marxismo do século XX, há de se admitir que sua pesquisa e sua exposição são
indissociáveis. Ou seja, o tratamento engelsiano do direito é histórico, mas a
análise histórica concreta de como a igualdade religiosa é superada na jurídica,
que, por sua vez, é suprimida pela econômico-social, não está presente no
autor. Ele anuncia aspectos fundamentais, traz posições certeiras, mas elas,
por vezes, correm o risco de aparecer como se fossem desenvolvidas ao modo
hegeliano, e não a partir da análise imanente da realidade efetiva.
Para o que nos interessa aqui, destacamos: a crítica engelsiana ao direito
é seminal e traz posições muito importantes para o desenvolvimento de uma
crítica marxista ao direito que, acreditamos, deve ir além da obra de
Pachukanis; porém, Engels muitas vezes anuncia ligações e conexões que ele
não explica rigorosamente com uma análise concreta e cuidadosa da história.
Ele se posiciona fortemente, marcando posição contra expoentes e
personagens importantes de sua época. Em uma peculiar divisão do trabalho
com Marx, Engels foi um autor de envergadura gigantesca, mas se mostrou
principalmente em polêmicas com outros autores, o que traz certo caráter, ao
mesmo tempo, fragmentário e sistemático em sua obra, por mais que isto possa
parecer uma contradição em termos; a realidade, muitas vezes, é tratada a
partir de temas essenciais ao momento, como o direito no final do século XIX.
Porém, posteriormente, o autor precisa trazer a abrangência real das questões
remetendo à famigerada determinação em última instância. E, assim, diante
de tal peculiaridade do pensamento do autor do Anti-Düring restam duas
alternativas: a primeira delas, infelizmente tornada clássica, é tomar as
afirmações engelsianas separadamente, e como dogmas; a segunda, e mais
proveitosa, é enxergar nos escritos de nosso autor algo cuja leitura é muito
mais difícil que à primeira vista. Com isto, Engels pode ser visto como aquele
que realiza uma tarefa difícil que é importante a todo marxista -, e que
consiste em falar, até certo ponto, em nome de Marx, e com base no autor de
O capital, mas o fazer sempre ao trazer os nexos e as categorias em suas
conexões imanentes na própria realidade. A exposição do autor talvez tenha o
atrapalhado sob diversos aspectos; nós, marxistas, se tivermos consciência
disto, ainda precisamos achar uma correlação adequada entre exposição e
pesquisa hoje. Porém, como não temos o repertório e a capacidade de Engels,
e muito menos de Marx, uma coisa é certa: hoje, tanto no que diz respeito à
exposição quanto à pesquisa, o trabalho de investigação marxista da realidade
precisa ser coletivo.
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Como citar:
SARTORI, Vitor B. A crítica marxista do direito diante de Friedrich Engels: a
tensão entre exposição e pesquisa em sua alise da esfera jurídica. Verinotio
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2,
pp. 16-60, jul./dez. 2020.
Data do envio: 27 maio 2020
Data do aceite: 13 out. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.557
Felipe Cotrim
61
O hegelianismo do jovem Engels (1839-42)
Felipe Cotrim
1
Resumo: O artigo tem por objetivo reconstituir o percurso da evolução
filosófica de Friedrich Engels entre os anos de 1839 a 1842 com a finalidade de
apreender e explicitar sua adesão à filosofia hegeliana. Consideramos que uma
compreensão adequada do hegelianismo de Engels entre os anos de 1839-1842
é fundamental para o esclarecimento sobre o método por ele empregado tanto
na investigação quanto na exposição de sua pesquisa sobre as classes
trabalhadoras inglesas entre os anos de 1842 a 1844.
Palavras-chave: Friedrich Engels; Filosofia clássica alemã; F. W. J.
Schelling; G. W. F. Hegel; História econômica; Teoria e historiografia do
pensamento econômico.
Young Engels’ Hegelianism (1839-42)
Abstract: The purpose of the essay is to reconstruct Friedrich Engels’ course
of philosophical evolution from 1839 to 1842 in order to grasp and make
explicit his adherence to Hegelian philosophy. We consider that an adequate
understanding of Engels’ Hegelianism between the years 1839-1842 is
essential to clarifying the method he employed in the investigation and in the
exposition of his research on the English working classes between 1842 to
1844.
Keywords: Economic History, Friedrich Engels, F. W. J. Schelling, German
Classical Philosophy, G. W. F. Hegel, Theory and Historiography of Economic
Thought.
1
Mestre pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista Capes (2018-2020). E-mail:
f.cotrim.89@gmail.com.
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Introdução
O Esboço de uma crítica da economia política
2
, publicado na revista
Deutsch-Französische Jahrbücher, foi um dos primeiros textos sobre
economia política escrito e publicado por Engels. Tratou-se de uma obra
pioneira do ponto de vista de sua abordagem metodológica da economia
política em razão de sua combinação da dialética hegeliana com o materialismo
feuerbachiano, chamando a atenção de Karl Marx (1818-83) para o estudo
dessa teoria social. Posteriormente, Marx veio a fazer referências tanto nos
seus manuscritos Cadernos de Paris e Manuscritos econômico-filosóficos
3
quanto em suas obras de maturidade Contribuição à crítica da economia
política e o Livro 1 de O capital
4
.
Neste artigo, visamos a resgatar as primeiras leituras de Engels dos
textos do filósofo alemão G. W. F. Hegel (1770-1831). Por meio desse exercício,
buscaremos reconstituir o percurso da evolução filosófica de Engels entre os
anos de 1839 a 1842, sua apreensão, compreensão e seu uso da filosofia
hegeliana, a fim de melhor compreender a metodologia por ele empregada no
Esboço de 1844. Para tanto, utilizaremos os ensaios de crítica literária e
filosófica e da correspondência de Engels entre os anos de 1839 a 1842,
selecionando as passagens nas quais ele fez referências e comentários à
filosofia hegeliana.
Organizaremos esse acervo documental em duas partes. A primeira
parte corresponderá aos textos e à correspondência engelsiana do período de
Bremen (1839-41). Entre os textos desse período a serem examinados se
encontram: “Sinais retrógrados do tempo”; Réquiem para a gazeta da
aristocracia alemã”; “Ernst Moritz Arndt”; e “Polêmica moderna”
5
. Entre a
correspondência, examinaremos as cartas enviadas aos irmãos Wilhelm e
Friedrich Graeber (1820-95; 1822-95) ex-colegas de Engels do ginásio de
Elberfeld entre os anos de 1839 a 1841. A segunda parte corresponderá aos
textos engelsianos do período de Berlim (1841-2), sendo examinados os
seguintes textos: “Schelling sobre Hegel”; Schelling e a revelação. Crítica a
mais recente tentativa da reação contra a filosofia livre; e Schelling, o filósofo
em Cristo, ou a transfiguração da sabedoria do mundo em sabedoria divina.
2
“Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie” (Paris, n. 1-2, fev.). [Edição brasileira:
Temas de Ciências Humanas, v. 5, pp. 129, 1979; in Engels (São Paulo: Ática, 1981. p. 53
81. Col. Grandes Cientistas Sociais, v. 17).]
3
Pariser Manuskripte (Paris, 1844); Ökonomisch-philosophischen Manuskripte (Paris, 1844).
4
Zur Kritik der politischen Ökonomie (Berlim, 1859); Das Kapital: 1. Band (Hamburgo, 1867).
5
“Retrograde Zeichen der Zeit” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 26-28, fev. 1840);
“Requiem für die deutsche Adelzeitung” (Telegraph r Deutschland, Hamburgo, n. 59, abr.
1840); “Ernst Moritz Arndt” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 3, jan. 1841);
“Moderne Polemik” (Mitternachtzeitung für gebildete Leser, Brunswick, n. 83-87, 21-22, 25-
26, 28 maio 1840).
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Para cristãos fiéis que desconhecem a linguagem filosófica
6
posteriormente
editados e reunidos sob o título de Anti-Schelling.
Todas as fontes mencionadas acima e que examinaremos em nosso
artigo se encontram disponíveis nas coleções Marx-Engels-Werke (MEW) e
Marx & Engels Collected Works (MECW).
1.
Nesta primeira seção do artigo, examinaremos as primeiras imersões de
Engels na filosofia hegeliana durante seu período em Bremen (1838-41).
Diferentemente do jovem Marx, em textos como a Crítica da filosofia
do direito de Hegel (1843, Kreuznach), o jovem Engels não produziu um
estudo sistemático por meio do qual possamos examinar suas considerações
sobre a filosofia de Hegel. Desta forma, a fim de estudarmos o hegelianismo do
jovem Engels tivemos de recolher uma série de passagens dispersas em artigos,
ensaios e cartas. Através dessa coletânea de passagens dispersas identificamos:
(1) as primeiras menções de Engels à leitura e ao estudo da filosofia hegeliana;
(2) o percurso de Engels em direção à filosofia hegeliana a partir da teologia de
D. F. Strauss; (3) a compreensão de Engels da concepção hegeliana da teologia
e da história; e, por fim, (4) a tese engelsiana de juventude da necessidade da
fusão da práxis política de Börne com a filosofia de Hegel.
A seguir, apresentaremos breve exposição dos temas listados acima.
1.1.
A primeira menção de Engels sobre a filosofia hegeliana por nós
identificada foi em carta a Wilhelm Graeber, de 24 de maio a 15 de junho de
1839 (MECW 2, pp. 451-2; MEW 41, pp. 3978). Nessa carta, Engels
apresentou uma síntese crítica do panfleto Os hegelistas. Fragmentos de
documentos e provas para a denúncia da denominada verdade eterna
7
, de
Heinrich Leo (1799-1878), historiador e jornalista conservador alemão
(MECW 2, p. 631). Nesse panfleto, Leo, oponente da filosofia de Hegel,
antagonizou os Jovens Hegelianos, a quem se referia por meio do termo
depreciativo Hegelings (MECW 2, 600, nota 49). Mais do que a primeira
menção à filosofia hegeliana, tomamos conhecimento, também, da primeira
defesa dela pelo jovem Engels. A iniciação de Engels na leitura e estudo das
6
“Schelling über Hegel” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 207-208, dez. 1841);
Schelling und die Offenbarung. Kritik des neuesten Reaktions versuchs gegen die freie
Philosophie (Leipzig, mar. 1842); Schelling, der Philosoph in Christo, oder die Verklärung der
Weltweisheit zur Gottesweisheit. Für gläubische Christen, denen der philosophische
Sprachgebrauch unbekannt ist (Berlim, maio 1842).
7
Die Hegelingen. Actenstücke und Belege zu der s. g. Denunciation der ewigen Wahrheit
(1838, Halle).
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obras hegelianas ocorreu no contexto da dissolução da filosofia hegeliana como
filosofia “oficial” do reino da Prússia, sendo Leo um de seus principais e mais
inflamados adversários. Ao final da carta a Wilhelm Graeber mencionada
acima, Engels observou a relação entre a emergente oposição à filosofia
hegeliana e ao reacionarismo político, que caminhavam como que de mãos
dadas no cenário filosófico e político alemão nas décadas de 1830-1840
(MECW 2, p. 452; MEW 41, p. 398).
* * *
Na parte seguinte, trataremos, a partir de excertos da correspondência
de Engels, de sua progressiva leitura, estudo e adesão à filosofia hegeliana.
1.2.
Ao longo do período no qual Engels morou em Bremen, podemos
observar por meio de sua correspondência seus primeiros passos na leitura,
imersão e gradual adesão ao sistema filosófico hegeliano.
Em carta de 29 de outubro de 1839 a Friedrich Graeber, Engels declarou
haver aderido à doutrina hegeliana: “Estou com a doutrina Hegeliana” (MECW
2, p. 477; MEW 41, p. 426)
8
.
Em passagem de carta a Wilhelm Graeber, de 13 a 20 de novembro de
1839, Engels expressou ser favorável ao racionalismo declarando se encontrar
“a ponto de se tornar um hegeliano”, e complementou: “Se eu vou me tornar
um ainda não sei, é claro, mas Strauss acendeu as luzes em Hegel para mim, o
que torna a coisa bastante plausível para mim”. Ademais, Engels mencionou,
pela primeira vez em carta, ter lido a Filosofia da história
9
, de Hegel, e que
este livro estava como que “escrito como do meu próprio coração” (MECW 2,
p. 486; MEW 41, p. 435).
Aproximadamente duas semanas depois, em outra carta a Friedrich
Graeber, de 9 de dezembro de 1839 a 5 de fevereiro de 1840, Engels declarou
que havia adentrado no caminho em direção ao hegelianismo, absorvendo os
aspectos mais importantes de seu sistema, e que havia aderido à concepção
hegeliana de Deus. E mais adiante, nessa mesma carta, Engels escreveu:
“Estou estudando o Geschichtsphilosophie de Hegel, um gigantesco trabalho;
o leio com atenção todas as noites e seus pensamentos extraordinários me
envolvem profundamente”, citando, como exemplos, o princípio hegeliano de
que “humanidade e divindade são em essência idênticas” e “o pensamento de
que a história mundial é o desenvolvimento do conceito de liberdade”. Nessa
mesma carta, Engels também caracterizou o sistema hegeliano como sendo um
“edifício ciclópico” (MECW 2, pp. 489-91; MEW 41, p. 438-40).
Ainda sobre a imersão do jovem Engels nas obras hegelianas, o
8
Essa e as demais traduções da MEW e da MECW para o português foram feitas pelo autor.
9
Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte (1837, Berlim).
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marxólogo Norman Levine (2006, cap. 2) acredita que Engels também tenha
lido tanto a Enciclopédia
10
em razão de ter feito menção a ela no ensaio
“Ernst Moritz Arndt” (MECW 2, p. 142; MEW 41, p. 124), de janeiro de 1841
quanto a obra Filosofia do direito
11
. Sobre essa última, Levine (2006, cap. 2,
nota 97) diz que, conforme documentado pelas edições MEGA-2 (IV/32, p.
316), Engels possuía tanto em 1841 quanto nos últimos anos de vida uma
edição do Filosofia do direito em sua biblioteca pessoal.
* * *
A partir dos fragmentos acima é possível observar o quanto Engels ficou
profundamente impactado com o poder e a capacidade da teoria hegeliana em
justificar a filosofia, a história e a teologia. A seguir, examinaremos a
compreensão engelsiana da filosofia da história de Hegel.
1.3.
No ensaio “Sinais retrógrados do tempo”
12
, publicado em fevereiro de
1840, Engels, sustentado na filosofia da história de Hegel, apresenta
considerações próprias sobre a concepção hegeliana da história. Desde já
crítico e antagônico ao pensamento conservador e reacionário alemão, o jovem
Engels expõe as implicações políticas das concepções da história que negam o
caráter transitório e, portanto, histórico das sociedades.
Iniciando sua argumentação sobre as verdades absolutas, Engels
escreveu que elas não resistem às mudanças impostas pelo tempo ao longo da
história, por mais que existam conservadores que lutem em prol da estagnação
e contra o progresso (MECW 2, p. 47; MEW 41, p. 27).
Desdobrando a concepção de história apresentada por Karl Gutzkow
(1811-78) escritor e editor da revista Telegraph für Deutschland em Para
a filosofia da história
13
, onde ele havia descrito o movimento histórico como
uma espiral, o jovem Engels elabora uma ilustração da história similar a uma
elipse, que se expande gradualmente a cada novo ciclo e que internaliza ou
acomoda as contradições em camadas cada vez mais amplas e complexas e,
portanto, mais contraditórias.
Mas prefiro uma espiral desenhada à mão livre, cujas voltas não são
executadas com muita precisão. A história começa seu curso
lentamente a partir de um ponto invisível, fazendo languidamente
suas voltas ao seu redor, mas seus círculos tornam-se cada vez
maiores, o voo torna-se cada vez mais rápido e animado, até que
finalmente a história dispara como um cometa flamejante de estrela
em estrela, muitas vezes contornando seus antigos caminhos,
10
Encyclopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1817, Heidelberg).
11
Grundlinien der Philosophie des Rechts, oder Naturrecht und Staatswissenschaft im
Grundrisse (1820, Berlim).
12
“Retrograde Zeichen der Zeit” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 26-28).
13
Zur Philosophie der Geschichte (1836, Hamburg).
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muitas vezes cruzando-os, e a cada volta se aproxima do infinito.
Quem pode prever qual será o fim? E nos pontos onde a história
parece retomar um caminho antigo novamente, pessoas míopes que
não veem mais longe do que seus narizes se levantam e gritam
alegremente que é exatamente como eles pensavam! E estamos
nós: não nada de novo sob o Sol! Então nossos heróis da
estagnação chinesa, nossos mandarins do retrocesso são jubilosos e
fingem ter cortado três culos dos anais do mundo como uma
excursão inquisitiva a regiões proibidas, como um sonho delirante
e não conseguem ver que a história se precipita pelo caminho
mais direto para uma nova resplandecente constelação de ideias,
que com sua magnitude semelhante à do Sol logo cegará seus olhos
débeis. (MECW 2, p. 48; MEW 41, pp. 27-8)
A partir da passagem acima podemos identificar a tradução do jovem
Engels da concepção hegeliana da história: um processo em aberto onde
nenhum sujeito pode prever seu final e permeado de contradições que a
impulsionam a avançar, inevitavelmente, para a suprassunção [Aufhebung]
delas, a despeito do esforço conservador e reacionário dos “mandarins do
retrocesso” [Rückschrittsmandarine], que, segundo escreveu Engels,
fracassam em compreender que a história marcha necessariamente para frente
em direção a “uma nova constelação de ideias”. Mais adiante, Engels concluiu
essa passagem identificando o tempo presente de sua época como sendo um
ponto de inflexão da história, onde ocorria o conflito e sua futura e inevitável
suprassunção entre o pensamento reacionário feudal-absolutista e o
revolucionário liberal-ilustrado (MECW 2, p. 48; MEW 41, p. 28).
1.4.
Nessa parte trataremos da tese de maior originalidade do pensamento
engelsiano durante seu período em Bremen: a fusão da práxis política de Börne
com a filosofia de Hegel. Tratava-se, então, de uma tese ousada, pois
antagonizava com o entendimento predominante no Jovem Alemanha
14
, que
considerava o cosmopolitismo de Börne antagônico e incompatível com o
sistema filosófico de Hegel, considerado, então, por muitos intérpretes como
sendo um germanista (MECW 2, pp. 140-1; MEW 41, pp. 121-3). Entretanto,
para o jovem Engels a fusão entre Börne e Hegel não somente era viável como
consistia na tarefa histórica de sua geração. Sendo fundamental para o
progresso da consciência política alemã, a combinação entre a práxis política
[politischen Praxis] de Börne e a filosofia de Hegel enriqueceria tanto a prática
quanto a teoria do movimento republicano e democrático alemão,
indispensável para a organização política capaz de impulsionar e realizar a
formação do estado nacional germânico projeto político no qual Engels
14
Ciclo de artistas e intelectuais liberais alemães no qual Engels integrou durante o período
em que morou em Bremen (1838-1841).
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esteve engajado durante a década de 1840
15
.
* * *
O escritor alemão Ludwig Börne (1786-1837), ao lado de Hegel, esteve
entre os pensadores de maior influência no pensamento estético e político do
jovem Engels. A proposta de redação e a estrutura literária de ensaios
engelsianos de juventude, tal como as “Cartas de Wuppertal”
16
, foram
inspiradas na série Cartas de Paris
17
, de Börne. Encontramos ao longo da
leitura e exame dos artigos e ensaios, além da correspondência do jovem
Engels, passagens onde ele demonstrou sua admiração tanto pela obra literária
quanto pela prática e teoria política de Börne (MECW 2, p. 43; 448; MEW 41,
p. 24; 395). De acordo com o marxólogo russo Davíd Riazánov (1927, cap. 2),
Börne foi o primeiro jornalista político da Alemanha, e influenciou
profundamente a evolução do pensamento político alemão de seu tempo e das
gerações posteriores. Democrata radical, Börne antagonizou com o estado
autocrático prussiano em favor da liberdade política. Segundo o marxólogo
russo L. F. Ilitchev (1986, p. 19), Engels encontrou em Börne “um homem de
prática política” e se entusiasmou “pelo apelo” dele “à luta contra o feudalismo
e o absolutismo, o obscurantismo e o servilismo fátuo”.
A tese engelsiana de juventude sobre a fusão de Börne e Hegel foi
apresentada no ensaio “Ernst Moritz Arndt” (MECW 2, p. 142; MEW 41, pp.
123-4), publicado em janeiro de 1841, no qual Engels argumentou que em
ambos sendo, cada um à sua maneira trabalharam no desenvolvimento do
espírito moderno alemão, e que sua relação de complementaridade não fora
reconhecida até a morte de ambos. Mais à frente, Engels iniciou crítica ao que
considera como sendo um falso antagonismo entre o cosmopolitismo de Börne
e o germanismo, estabelecendo-o acima do conflito entre essas duas
tendências. Engels também exaltou o caráter não especulativo dos escritos de
Börne e de seu comprometimento com o democratismo e a expansão da
liberdade. Ao final, Engels valorizou Börne por ter sido o primeiro a
demonstrar concretamente a relação histórica entre a Alemanha e a França,
muito antes dos hegelianos que então se encontravam, escreveu Engels,
ocupados em decifrar a Enzyklopädie isto é, a Enciclopédia das ciências
filosóficas
18
, de Hegel.
A seguir ainda no ensaio “Ernst Moritz Arndt” Engels iniciou o
exame sobre Hegel, particularmente o vínculo de seu sistema filosófico com o
estado prussiano. Segundo Engels, Hegel foi o homem do pensamento e
15
Ao final do ensaio “Ernst Moritz Arendt”, Engels advogou a favor de um estado alemão
unitário e democrático (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 4, jan. 1841, in MECW 2,
p. 146; MEW 41, p. 127).
16
“Briefe aus dem Wuppertal” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 49-52, 57, 59, mar.-
abr. 1839).
17
Briefe aus Paris (1833, Paris).
18
Enzyclopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1817, Heidelberg).
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formulador do sistema completo da nação. Por essa razão, o estado prussiano
se apropriou e instrumentalizou o sistema filosófico hegeliano
particularmente, sua filosofia do direito. Entretanto, após a morte de Hegel,
sua “filosofia do estado” passou por uma renovação crítica que se voltou contra
o prussianismo (MECW 2, p. 143; MEW 41, p. 124).
Apesar de o sistema filosófico hegeliano ter sido adotado como uma
espécie de doutrina oficial pelo estado prussiano, Engels nega o caráter
imanentemente conservador dessa filosofia. A apropriação do sistema
filosófico hegeliano pelo estado prussiano, segundo Engels, impulsionou uma
crítica de caráter potencialmente revolucionário, crítica que partia dos
pressupostos da própria filosofia hegeliana isto é, como se o feitiço se
voltasse contra o próprio feiticeiro. Essa crítica encontrou sua melhor
formulação entre os Jovens Hegelianos, reanimando a dimensão
revolucionária da filosofia de Hegel. Entre os autores que arquitetaram tal
crítica, Engels menciona D. F. Strauss, no campo da teologia, e os filósofos
hegelianos radicais Eduard Gans (c. 1798-1839)
19
e Arnold Ruge (1802-80), no
campo da teoria política (MECW 2, p. 143; 626; 635; MEW 41, pp. 124-5).
Nesses comentários de Engels, observa-se sua adesão à tese de que
haveria no núcleo da filosofia de Hegel dois caminhos opostos de
interpretação: um baseado no sistema e o outro na dialética. O primeiro
caminho teria dimensões conservadoras, o que justificaria a apropriação da
filosofia hegeliana como doutrina oficial do estado prussiano. o segundo
caminho ao qual Engels se subscreveu teria uma dimensão revolucionária,
identificada na dialética, capaz de fornecer os fundamentos teóricos para a
crítica do estado prussiano como, também, dos demais resquícios da ordem
feudal-absolutista (LUKÁCS, 2009b, pp. 124-5).
No artigo “Réquiem para a gazeta da aristocracia alemã”,
20
publicado
em abril de 1840, Engels escreveu que Hegel foi “servil na frente, como provou
Heine, e revolucionário por trás, como provou Schubarth” (MECW 2, p. 66;
MEW 41, p. 62)
21
tese que voltaria a defendercadas mais tarde no ensaio
19
Gans foi amigo e colega de Hegel na Universidade de Berlim. Após a morte de Hegel em
1831, Gans organizou um grupo formado por professores e estudantes batizado de “amigos do
eterno”, que assumiu a tarefa de editar e publicar ao longo dos anos 1830 as obras completas
de Hegel. Conforme informado no índex de literatura citada e mencionada das coleções MECW
e MEW, foi por meio dessas edições organizadas por Gans que Marx e Engels estudaram a
filosofia de Hegel (LEVINE, 2006, cap. 2; MECW 2, p. 626).
20
“Requiem für die deutsche Adelzeitung” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 59), in
MECW 2, p. 66; MEW 41, p. 62.
21
Sobre a afirmação a respeito do escritor alemão Heinrich Heine (1797-1856), Engels,
provavelmente, fez referência ao ensaio História da religião e filosofia na Alemanha [Zur
Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland], escrito por Heine entre 1833 e 1834
durante seu exílio em Paris. Nesse ensaio, Heine formulou pela primeira vez, segundo György
Lukács (2009, pp. 124-5), a tese de que haveria na filosofia hegeliana uma dimensão de caráter
revolucionário a dialética e outra de caráter conservador o sistema. Essa tese foi
dominante entre os Jovens Hegelianos. Por sua vez, Marx, em sua tese de doutorado,
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“Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã” (1886, Stuttgart)
22
.
Engels encerrou o ensaio “Ernst Moritz Arndt” afirmando que a tarefa
de sua geração seria a de completar a fusão entre Hegel e Börne isto é,
completar a fusão entre o pensamento e a ação (MECW 2, p. 144; MEW 41, p.
125).
* * *
Por volta do mesmo período dos textos examinados acima, Engels
buscou aplicar o método dialético hegeliano, como também a terminologia
hegeliana, em seus ensaios de crítica literária e sobre a história da literatura
alemã, por exemplo, na série de ensaios intitulados “Polêmica moderna”
23
,
publicados em 21, 22, 25, 26 e 28 de maio de 1840. Logo, “Polêmica moderna”
consiste em importante fonte de investigação da apreensão e compreensão do
jovem Engels da dialética e da metodologia hegeliana.
Em síntese, o período de Engels em Bremen foi o período de
aproximação e das primeiras leituras da obra de Hegel. Contudo, não se tratou
de leituras e estudos sistemáticos, mas do uso e da aplicação dessa obra com a
finalidades de examinar e compreender a Alemanha de seu tempo, como,
também, de recurso metodológico para seus ensaios sobre literatura. Ademais,
o hegelianismo do jovem Engels em Bremen era complementado com as
contribuições de filósofos e teólogos hegelianos contemporâneos, por
exemplo: Strauss, Gans e Ruge.
* * *
Na próxima seção, examinaremos a etapa seguinte do hegelianismo do
jovem Engels, que teve lugar durante o período no qual morou em Berlim
(1841-2).
Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro (1841), conforme examinou
Lukács, questiona a divisão feita pelos Jovens Hegelianos radicais entre um Hegel
revolucionário e outro conservador. Para Marx, a acomodação de Hegel e de sua filosofia ao
poder prussiano “tem sua raiz mais profunda numa insuficiência […] do seu próprio
princípio”; isto é, deve-se buscar a compreensão e a justificativa para a acomodação política
de Hegel no núcleo de sua filosofia, e não formular uma divisão arbitrária e seletiva dela. Sobre
a afirmação a respeito do professor e escritor conservador alemão Karl Ernst Schubarth (1796-
1861), Engels, provavelmente, fez referência ao livro Sobre a incompatibilidade da ciência
política hegeliana com o princípio da vida e do desenvolvimento absoluto do estado
prussiano [Ueber die Unvereinbarkeit der Hegel’schen Staatslehre mit demobersten Lebens-
und Entwickelungsprinzip des Preussischen Staats] (1839, Breslau) (MECW 2, p. 66, nota c,
pp. 657; 626).
22
Em “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica ale”, Engels defendeu a tese de que o
elemento conservador da filosofia hegeliana se encontrava no sistema. Por sua vez, o elemento
revolucionário se encontrava na dialética, ou “a álgebra da revolução” (ENGELS, 1982, cap. I;
MEW 21, pp. 265-73; LUKÁCS, 2009, p. 44).
23
“Moderne Polemik” (Mitternachtzeitung für gebildete Leser, Brunswick, n. 83-87), in
MECW 2, pp. 81-93; MEW 41, pp. 45-58.
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70
2.
Entre os textos mais marcantes de Engels em Berlim se encontram
aqueles referentes aos debates sobre a nova política imposta à Universidade de
Berlim pelo rei Frederico Guilherme IV, após o estabelecimento de F. W. J.
Schelling como professor da cátedra de filosofia.
Durante o período em que residiu em Berlim, Engels frequentou uma
série de conferências proferidas na Universidade de Berlim e integrou os
efervescentes debates que ocorriam então. Seu envolvimento nesses debates
impulsionaram uma nova fase da sua evolução filosófica e política.
As conferências ministradas na Universidade de Berlim haviam se
tornado um campo de disputa filosófica e política, fazendo com que o ambiente
universitário fosse efervescente e estimulante para o autodidata Engels. Entre
as mais importantes dessas conferências foram aquelas ministradas por
Schelling. Schelling tinha por intenção apresentar em Berlim sua nova filosofia
e prometia sobrepor a filosofia hegeliana.
Engels redigiu artigos e ensaios filosóficos sobre a filosofia de Schelling
apresentada durante a série de conferências ministradas em Berlim entre os
anos de 1841 e 1842. Nosso propósito nesta seção é extrair do texto engelsiano
suas considerações sobre a filosofia hegeliana visando evidenciar sua
compreensão por Engels. Para tanto precisaremos extrair tais referências entre
os textos sobre Schelling. Ademais, seria inviável tratarmos do hegelianismo
do jovem Engels sem algum esclarecimento sobre a filosofia de Schelling, pois
Engels expôs suas considerações sobre Hegel a partir de sua crítica a Schelling.
Assim, antes de adentramos efetivamente nas considerações de Engels sobre
Hegel, apresentaremos um breve esboço da vida e da obra de Schelling e o
contexto de suas conferências em Berlim.
2.1.
O esboço da vida e da obra de Schelling abaixo consiste em uma síntese
produzida a partir dos estudos de Bowie (2016), Breazeale (1993, pp. 138-80),
Lukács (1959, pp. 103-25) e Plant (2000) sobre Schelling e a filosofia clássica
alemã. Também fizemos uso do esboço biográfico “Schelling: vida e obra” e do
texto “História da filosofia moderna: Hegel”, de Schelling (1979, pp. v-xiv; 155-
78), ambos publicados na coleção Os pensadores.
* * *
O filósofo alemão Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) foi,
ao lado de Immanuel Kant (1724-1804), Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) e
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G. W. F. Hegel (1770-1831), um dos mais importantes filósofos do idealismo
alemão.
Filósofo precoce, Schelling teve sua obra de juventude, particularmente
durante o denominado período de Jena (1798-1806), reconhecida desde o
princípio pela originalidade e ousadia de suas teses; por exemplo, a
assimilação da substância infinita de Spinoza ao eu transcendental de Fichte;
a crítica ao caráter excessivamente mecanicista e newtoniano da concepção
kantiana e fichtiana da natureza; e a identidade cartesiana entre o pensamento
e o ser
24
.
Schelling destacou-se também durante o período de Jena pela
formulação da filosofia da natureza [Naturphilosophie], que consistia na fusão
da filosofia transcendental [Transzendentalphilosophie] dos filósofos alemães
Kant e Fichte com a física especulativa. A filosofia de Schelling em Jena,
portanto, culminou na harmonização entre a filosofia da natureza e a filosofia
transcendental por meio da denominada filosofia da identidade
[Identitätsphilosophie]
25
.
O período de Schelling em Jena foi também de intensa colaboração com
Hegel, que, poucos anos antes, foi seu colega de estudos e amigo no seminário
teológico de Tübingen. Em parceria com Hegel, Schellling mergulhou num
vasto campo de investigação filosófica e teológica, editou o Kritisches Journal
der Philosophie entre 1802 e 1803 e, após receber notícias sobre os primeiros
eventos referentes à Revolução Francesa de 1789, plantou com Hegel uma
árvore em homenagem à liberdade. Ambos, Schelling e Hegel, partilhavam da
consciência de que a modernidade trouxe consigo uma série de bifurcações, ou
fragmentações, nas sociedades humanas; por exemplo, a fragmentação entre a
sociedade e o espírito [Geist]; a sociedade e a natureza; e a sociedade e os
sujeitos individuais. A partir da crítica filosófica dessas fragmentações,
Schelling e Hegel formularam uma série de categorias analíticas, tal como a da
alienação, que viriam a caracterizar profundamente a obra subsequente dos
dois filósofos (PLANT, 2000, pp. 15; 19-26). Apesar de inicialmente Schelling
e Hegel trabalharem de forma colaborativa na formulação e defesa da filosofia
24
Do período anterior ao de Jena (pré-1798) se destacaram os seguintes textos de Schelling:
Do eu como princípio da filosofia ou sobre o absoluto no conhecimento humano [Vom Ich als
Princip der Philosophie oder über das Unbedingte im menschlichen Wissen] (1795) e Ideias
para uma filosofia da natureza [Ideen zu einer Philosophie der Natur] (1797). Nos textos desse
período, o pensamento de Schelling foi marcado pela adesão a filosofia de Fichte (“Schelling:
vida e obra”, in OS PENSADORES, 1979, pp. vivii).
25
Entre os principais textos de Schelling durante o período de Jena (1798-1806), destacaram-
se: Sistema do idealismo transcendental [System des transzendentalen Idealismus] (1800);
Da alma do mundo [Von der Weltseele] (1798); Exposição do meu sistema filosófico
[Darstellung meines Systems der Philosophie] (1801), Bruno, ou sobre o princípio divino e
natural das coisas [Bruno oder über das göttliche und natürliche Prinzip der Dinge] (1802),
Filosofia e religião [Philosophie und Religion] (1804); e Sistema reunido da filosofia e da
filosofia da natureza em particular [System der gesammten Philosophie und der
Naturphilosophie insbesondere] (1804) (“Schelling: vida e obra”, in Schelling (Os pensadores)
(São Paulo: Abril Cultural, 1979), pp. viii-x).
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da identidade, foram justamente as divergências resultantes do
aprofundamento e desenvolvimento dela que gerou a subsequente ruptura
entre eles.
A obra filosófica de Schelling após o período em Jena (pós-1806) foi
marcada pelo desenvolvimento e defesa da filosofia da identidade, estudos de
estética e teologia, a aproximação da tradição gnóstica e a ruptura definitiva
com Hegel que ele acusou de tê-lo plagiado em Fenomenologia do espírito
26
.
A partir de então, Schelling aproximou-se de grupos sociais conservadores, ao
mesmo tempo em que se manteve afastado da vida intelectual e pública.
Durante o referido período que coincide, aproximadamente, com a
Restauração (1815-48) , Schelling também passou a defender a aliança
reacionária entre o trono e o altar, advogando, portanto, a favor do estado
teocrático e se identificando como oponente do jacobinismo e do Iluminismo,
aderindo, assim, às fileiras da contrarrevolução.
Após aproximadamente três décadas de quase reclusão e completa
imersão na filosofia e na teologia exceto alguns períodos nos quais lecionou
de forma intermitente na Universidade de Munique , Schelling como que
reemerge na história da filosofia na década de 1840 ao assumir o cargo de
conselheiro da corte do rei da Prússia, Frederico Guilherme IV, e a cátedra de
professor de filosofia na Universidade de Berlim cargo que até 1831 foi
ocupado por Hegel. A indicação de Schelling para o cargo de professor em
Berlim fez parte de um projeto político do rei Frederico Guilherme IV, que
visava o desmonte institucional e filosófico do hegelianismo tanto na
Universidade de Berlim quanto no espírito dos intelectuais e artistas alemães
do período. A filosofia e a teologia irracionalista, gnóstica e reacionária que
Schelling gestou ao longo das décadas de 1810-30 servia, aos olhos da
monarquia prussiana, com perfeição para o cumprimento desse projeto.
Em oposição à filosofia negativa de Kant, Fichte e Hegel assim como
a própria filosofia durante o período de Jena (1798-1806) , Schelling
caracterizou sua nova perspectiva filosófica como positiva. Desta forma,
Schelling, por meio da filosofia da revelação, voltou-se contra o período
ascendente e progressista do idealismo alemão e aderiu à contrarrevolução
política e ao romantismo filosófico do período da Restauração (1815-48).
* * *
Após se mudar de Berlim em 1842, Schelling retornou ao estilo de vida
recluso e introspectivo, até falecer em 1854 aos 79 anos de idade na cidade
suíça de Bad Ragaz, para onde havia se retirado a fim de recuperar-se de um
resfriado.
26
Phänomenologie des Geistes (1807, Bamberg & Würzburg).
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2.2.
“Schelling sobre Hegel”
27
, publicado em dezembro de 1841 sob o
pseudônimo de Friedrich Oswald, foi o primeiro texto de Engels
correspondente à série de escritos sobre a filosofia de Schelling. Schelling
iniciou as conferências na Universidade de Berlim em novembro de 1841 e
ministrou as últimas conferências em março de 1842. Portanto, “Schelling
sobre Hegel” corresponde às primeiras dessas conferências. Engels não omite
o caráter parcial do texto em questão. Ao longo das páginas de “Schelling sobre
Hegel”, Engels expressou abertamente sua intenção de desafiar a filosofia da
revelação de Schelling e defender de forma apaixonada o legado filosófico de
Hegel (MECW 2, p. 185; MEW 41, pp. 167-8).
Por sua vez, Schelling e a revelação. Crítica à mais recente tentativa da
reação contra a filosofia livre
28
, redigido entre o fim de 1841 e o início de 1842
e publicado anonimamente
29
no formato de brochura em Leipzig em março de
1842, é o mais extensivo e minucioso dos três textos de Engels publicados
contra a filosofia mística e irracionalista do Schelling pós-Jena (1806-54),
sendo, assim, o principal deles. Schelling e a revelação repercutiu nos mais
variados ciclos intelectuais da Alemanha. Os seguidores de Schelling
descreveram a crítica engelsiana como “ataques absurdos”. Os Jovens
Hegelianos, por sua vez, aplaudiram a brochura de Engels (MECW 2, pp. 607-
8, nota 121). Arnold Ruge, por exemplo, a resenhou positivamente nos
Deutsche Jahrbücher;
30
e, ao saber ser Engels o autor anônimo da brochura, o
contatou em carta, convidando-o para contribuir regularmente no jornal
31
.
Schelling, o filósofo em Cristo, ou a transfiguração da sabedoria do
mundo em sabedoria divina. Para cristãos fiéis que desconhecem a
linguagem filosófica
32
foi o último dos três textos de Engels sobre as
conferências de Schelling em Berlim, encerrando, assim, a série. Sua redação
ocorreu, provavelmente, no início de 1842, sendo publicado em Berlim no
formato de brochura no início de maio daquele ano. Assim como Schelling e a
27
“Schelling über Hegel” (Telegraph für Deutschland, Hamburgo, n. 207-208), in MECW 2,
pp. 181-7; MEW 41, pp. 163-70).
28
Schelling und die Offenbarung. Kritik des neuesten Reaktions versuchs gegen die freie
Philosophie, in MECW 2, pp. 189-240; MEW 41, pp. 171-221.
29
Engels confirmou ser o autor de Schelling e a revelação no ensaio “Alexander Jung,
“Conferências sobre a literatura moderna alemã” [Alexander Jung, „Vorlesungen über die
moderne Literatur der Deutschen“] (Deutsche Jahrbücher für Wissenschaft und Kunst,
Leipzig, n. 161, 8 jul. 1842), assinado sob o pseudônimo de Friedrich Oswald (MECW 2, p. 295;
MEW 1, p. 443).
30
Leipzig, n. 126128, 28, 30-31 maio 1842 (MECW 2, pp. 607-8, nota 121).
31
Conforme carta de Engels a Arnold Ruge (Berlim, 15 jun. 1842), in MECW 2, p. 543.
32
Schelling, der Philosoph in Christo, oder die Verklärung der Weltweisheit zur
Gottesweisheit. Für gläubische Christen, denen der philosophische Sprachgebrauch
unbekannt ist, in MECW 2, pp. 241-64; MEW 41, pp. 223-45.
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revelação, Schelling, o filósofo em Cristo foi publicado anonimamente
(MECW 2, p. 68, nota 127; MEW 41, p. 245).
Nessa nova ocasião, Engels teve por foco não os aspectos filosóficos das
conferências de Schelling, mas questões referentes a suas interpretações sobre
a trindade; o Novo e o Velho Testamento; a vida e a natureza divina ou humana
de Jesus; a vida dos 12 apóstolos; as fases históricas da Igreja; as relações entre
o paganismo e o monoteísmo dos hebreus e dos cristãos etc. Marcante na
exposição de Schelling sobre esses temas é a permanente presença do
sobrenatural na história mundialna verdade, o papel do sobrenatural como
efetivo sujeito da história. Esses temas haviam sido examinados
criticamente por Engels em Schelling e a revelação. Porém, em Schelling, o
filósofo em Cristo, eles retomam em uma linguagem exotérica, acessível
àqueles que não dominavam a linguagem esotérica da filosofia de Schelling
conforme proposto em seu subtítulo: Para cristãos fiéis que desconhecem a
linguagem filosófica”.
Schelling, o filósofo em Cristo teve como público-alvo cristãos católicos
e protestantes. Schelling, o filósofo em Cristo demonstra que Engels não
queria deixar nenhum grupo da sociedade alemã de seu tempo escapar de sua
crítica à filosofia do Schelling pós-Jena (1806-54). Para tanto, Engels teve que
ajustar sua retórica.
O último texto de Engels sobre Schelling teve rápida repercussão entre
a imprensa conservadora alemã, que o criticou negativamente. A edição do
jornal pietista Elberfelder Zeitung de 8 de maio de 1842 descreveu o autor
anônimo de Schelling, o filósofo em Cristo como um “rabiscador frívolo”. O
Allgemeine Zeitung, jornal de Augsburg, em sua edição de número 139, de 15
de maio de 1842, o acusou de cinismo. Por sua vez, a Rheinische Zeitung o
órgão de imprensa vinculado aos jovens hegelianosdefendeu a brochura nas
edições de número 138 e 157, respectivamente dos dias 18 de maio e 6 de junho
de 1842, louvando a originalidade e o caráter irônico e satírico pelo qual o autor
examinou as interpretações de Schelling dos textos bíblicos (MECW 2, p. 127,
nota 608).
* * *
Quando morreu em 1831, Hegel deixou como legado um sólido sistema
filosófico e um punhado de discípulos entre professores e estudantes que
se dedicaram ao longo da cada de 1830 em organizar, publicar e divulgar
suas obras completas trabalho dirigido por Eduard Gans (c. 1798-1839),
filósofo e professor alemão da Universidade de Berlim, e amigo de Hegel
(LEVINE, 2006, cap. 2; MECW 2, p. 626). Além do trabalho de organização,
publicação e divulgação das obras completas de Hegel, seus discípulos se
dedicaram também à atividade de realizar a crítica necessária à filosofia do
mestre a fim de melhor lapidá-la, dando-lhe uma linguagem mais humana e
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acessível. Esse trabalho permitiu com que o hegelianismo transbordasse da
filosofia e da teologia para as demais áreas do conhecimento, como a
jurisprudência, a historiografia, a literatura etc. (MECW 2, pp. 195-6; MEW 41,
pp. 175-6). Assim, de uma filosofia que, inicialmente, circulava exclusivamente
entre eruditos, o hegelianismo se tornou acessível a um público mais amplo na
Alemanha.
O trabalho dos discípulos de Hegel em prosseguir o desenvolvimento da
obra do mestre foi, segundo Engels, necessário. Os fundamentos do sistema
hegeliano, escreveu Engels, foram completados antes de 1810 considerando
que o livro Fenomenologia do espírito
33
foi publicado em 1807. sua
concepção de mundo [Weltanschauung], por volta de 1820 considerando
que o livro Ciência da lógica
34
foi publicado entre 1812 e 1816, e Princípios da
filosofia do direito
35
em 1820. Sua perspectiva política e suas considerações
sobre o estado e o direito possuíam as marcas do Congresso de Viena (1815) e
da Restauração (1815-48). Portanto, segundo Engels, a filosofia hegeliana
consistia na síntese ou no reflexo em pensamento de seu próprio tempo e
de sua personalidade. Para Engels tanto os méritos quanto as inconsistências
e contradições de Hegel se deviam a esses aspectos. Seus princípios dialéticos
eram integralmente livres de amarras e liberais, enquanto suas conclusões
fundamentadas no sistema expressas, por exemplo, na filosofia da religião e do
direito, eram, nos termos de Engels, ortodoxas, pseudo-históricas e iliberais.
Alguns de seus discípulos, como Ruge e Strauss, Bruno Bauer e Feuerbach,
apegaram-se aos princípios dialéticos e rejeitaram as conclusões da ortodoxia
do sistema, desenvolvendo, assim, uma corrente do hegelianismo de viés
liberal e revolucionário (MECW 2, pp. 196-7; MEW 41, pp. 176-7).
Os discípulos hegelianos citados acima superaram os limites
precedentes da filosofia da religião de Hegel ao imporem à religião,
particularmente ao cristianismo, uma crítica radical. Segundo Engels, esses
filósofos hegelianos radicais fundaram uma nova era filosófica ao consolidar o
trabalho iniciado pelos filósofos modernos do passado iniciando por
Descartes, passando pelos iluministas franceses do século XVIII e a filosofia
clássica alemã Kant, Fichte e Hegel (MECW 2, p. 197; MEW 41, p. 177).
* * *
Nos parágrafos seguintes, acompanharemos os textos “Schelling sobre
Hegel”, Schelling e a revelação e Schelling, o filósofo em Cristo, visando a
extrair deles suas considerações sobre a filosofia de Hegel e o hegelianismo de
seu tempo, a fim de apreender o estágio da sua evolução filosófica durante o
período em Berlim.
33
Phänomenologie des Geistes (Bamberg & Würzburg).
34
Wissenschaft der Logik (Nuremberg).
35
Grundlinien der Philosophie des Rechts (Berlim).
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* * *
A crítica à filosofia positiva de Schelling e a defesa da filosofia negativa
de Hegel por Engels não se fez por meio de um hegelianismo “puro”, mas a
partir das contribuições à filosofia hegeliana desenvolvida por seus sucessores,
como Feuerbach. Sustentado em Feuerbach, Engels compreende que a razão
[Vernunft] existe efetivamente na mente, ou no espírito [Geist]. Porém, a
mente, ou o espírito, deve necessariamente existir na natureza [Natur]. Desta
forma, qualquer concepção que afirmasse haver uma mente, ou um
pensamento livre da matéria real orgânica que constitui o universo, já se
encontrava, desde então, rechaçada por Engels (MECW 2, pp. 209-0; MEW 41,
pp. 189-90).
Mais adiante, Engels prosseguiu:
Schelling // concebe a ideia como um ser extramundano, como um
Deus pessoal, uma coisa que nunca ocorreu a Hegel. Para Hegel a
realidade da ideia não é outra coisa senão a natureza e o espírito. É
também por isso que Hegel não tem o absoluto duas vezes. No final
da lógica a ideia está lá como ideal-real, mas por isso mesmo ela é,
evidentemente, também natureza. Se ela se expressa apenas como
ideia, é apenas ideal, apenas existindo logicamente. O ideal-real
absoluto, completo em si, nada mais é do que a unidade da natureza
e do espírito na ideia. O esquema, porém, ainda concebe o absoluto
como sujeito absoluto, pois, embora preenchido com o conteúdo da
objetividade, ele permanece sujeito sem se tornar objeto. (MECW 2,
p. 216; MEW 41, pp. 196-7)
Por sua vez, para Schelling, observou Engels:
Natureza e espírito são // tudo o que é racional. Deus não é
racional. Por isso, aqui também se mostra que o infinito pode
existir racionalmente na realidade quando aparece como finito,
como natureza e espírito, e que qualquer existência extramundana
do infinito deve ser relegada ao reino das abstrações. Essa filosofia
positiva particular depende inteiramente da fé, como já vimos, e
existe para a fé. (MECW 2, p. 236; MEW 41, p. 218)
Por essa razão, Engels concluiu:
Schelling, por outro lado, toma a razão realmente por algo que
também poderia existir fora do organismo mundial
[Weltorganismus] e assim coloca seu verdadeiro reino na abstração
oca e vazia, no “aeon antes da criação do mundo”, que, felizmente,
porém, nunca existiu e no qual a razão ainda menos se encontrou ou
mesmo se sentiu feliz. Mas aqui vemos como os extremos se
encontram: Schelling não consegue captar o pensamento concreto e
o conduz a mais vertiginosa abstração, que lhe aparece de novo como
uma imagem sensorial. (MECW 2, p. 210; MEW 41, pp. 190-1)
Engels concluiu que, se tudo que a filosofia negativa da identidade
contempla é verdadeiro na natureza [Natur] e no espírito [Geist], ela é,
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portanto, real, e a filosofia positiva que contempla uma existência vazia e
abstrata fora da relação natureza-espírito é, portanto, supérflua (MECW 2,
p. 236; MEW 41, pp. 217-8).
De alguma maneira, mesmo para o idealismo de Hegel, a razão
escreveu Engels consistia no conteúdo do mundo na forma de pensamento
motivo pelo qual Lukács se referiu ao idealismo de Hegel como idealismo
objetivo, isto é, um idealismo filosófico ancorado na realidade material da
natureza e das sociedades humanas, ainda que “de modo latente” (LUKÁCS,
2012, p. 282). Para Schelling, contudo, o absoluto existiria fora do mundo
material, da relação natureza-espírito, e antecederia a existência dessa relação.
Isso levou Engels a concluir que: “Esta confusão de abstração e concepção é
característica da forma de pensar místico-escolástica de Schelling” (MECW 2,
p. 210; MEW 41, p. 191).
* * *
Para sustentar a arbitrariedade, o irracionalismo e o misticismo da
filosofia positiva da revelação e da mitologia, Schelling, escreveu Engels,
recorreu frequentemente a princípios e forças sobrenaturais (MECW 2, p. 228;
MEW 41, p. 209). Consequentemente, a adesão à filosofia positiva de Schelling
era dependente da fé de seu interlocutor. Entretanto, nessa altura de sua
evolução filosófica, o racionalismo e o materialismo do jovem Engels
encontravam-se bem estabelecidos. Para Engels: “A razão que não vai além do
poder da cognição é chamada de irracional. Somente é aceita como razão
aquela que realmente se prova pela cognição, {da mesma forma que} um olho
somente é aceito como verdadeiro se ele ”. Portanto, segundo Engels, um ser
que não se manifesta ativamente na realidade, na natureza, não pode ser um
ser, mas um não-ser, ou um ser impotente, pois, o ser “deve se manifestar, deve
reconhecer” [muß erkennen] (MECW 2, p. 208; MEW 41, pp. 188-9). Não
haveria, portanto, para o jovem Engels em 1842, razoabilidade em um
reconhecer [erkennen] que não fosse provado por meio dos sentidos e
mediados pela razão [Vernunft]. Desta maneira, Engels resume a filosofia
positiva da revelação de Schelling nas seguintes palavras:
Um ensino que não tem fundamento nem em si mesmo nem em
qualquer outra coisa que tenha sido provada. Aqui, baseia-se num
pensamento liberto de toda a necessidade gica, que é arbitrário,
pensamento vazio; ali, sobre algo de que precisamente a realidade
está em questão, e de que as reivindicações são disputadas, a saber,
a revelação. Que exigência ingênua que, para se curar da dúvida, é
preciso descartar a dúvida! “Bem, se você não acredita, não há
salvação para você!”. (MECW 2, p. 219; MEW 41, p. 200)
Observamos, assim, que o Engels de 1842 estabelecia a realidade
efetiva do mundo seja material ou espiritual [Geist], isto é, intelectual
como o critério fundamental do conhecimento e da razoabilidade do real.
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* * *
Enquanto a filosofia positiva da revelação e da mitologia de Schelling
encontrava-se na dependência da existência de uma força sobrenatural que
injetaria o princípio do vir-a-ser na realidade material do mundo, a filosofia
negativa de Hegel, escreveu Engels, prescindia da existência dessa força
sobrenatural, pois, conforme essa filosofia, tudo produz a si mesmo”, logo,
“uma personalidade divina é supérflua” (MECW 2, p. 236; MEW 41, p. 217).
Segundo Plant (2000, pp. 37-3), Hegel manteve em sua filosofia da
religião o conceito de Deus. Porém, para Engelssustentado na tese exposta
por Feuerbach em A essência do cristianismo , esse Deus não mais seria um
ser sobrenatural com existência autônoma e autoconsciente, mas seria “nada
menos que a consciência da humanidade em puro pensamento, a consciência
do universal” (MECW 2, p. 236; MEW 41, p. 217)
36
.
* * *
A adesão à tese materialista feuerbachiana sobre a natureza e o espírito
não significou que Engels se absteve de criticar Feuerbach quando ele
apresentou objeções a Hegel que o primeiro considerava equivocadas. Sobre
isso, Engels escreveu:
É curioso {Hegel} estar agora sob ataque duplo, pelo seu antecessor
Schelling e pelo seu discípulo mais novo, Feuerbach. Quando este
último acusa Hegel de estar profundamente preso ao velho, ele deve
considerar que a consciência do velho já é precisamente a nova, que
o velho é relegado à história justamente quando foi completamente
trazido à consciência. Portanto, Hegel é de fato o novo como velho,
o velho como novo. Por isso, a crítica de Feuerbach ao cristianismo
é um complemento necessário ao ensinamento especulativo sobre
religião fundado por Hegel. Este atingiu seu auge em Strauss, por
meio de sua própria história o dogma se dissolve objetivamente no
pensamento filosófico. Ao mesmo tempo, Feuerbach reduz as
categorias religiosas às relações humanas subjetivas, não anulando
de forma alguma os resultados alcançados por Strauss, mas, ao
contrário, colocando-os à prova e, de fato, ambos chegam ao mesmo
resultado, que o segredo da teologia é a antropologia. (MECW 2, p.
237; MEW 41, p. 219)
A justa crítica materialista de Feuerbach do idealismo de Hegel,
portanto, não inverteu para Engels a hierarquia e o devido tributo à filosofia
formulada e estabelecida pelo último. Ademais, o reconhecimento por parte de
Engels da contribuição de Feuerbach ao desenvolvimento da filosofia
36
Décadas depois, Engels (2015, seção I, cap. VIVIII, p. 87116; MEW 20, p. 5277) retornou
ao tema da origem do universo em Anti-Duhring (1877-1878, Leipzig). Entretanto, naquela
ocasião, não mais baseado em uma hipótese lógica e filosófica, como a expressa em Schelling
e a filosofia da revelação, mas naquelas que seriam as teorias científicas mais avançadas de
seu tempo. Em síntese, para o Engels do Anti-Dühring, o movimento constante da natureza é
o modo de existir da matéria e ele não pode ser criado nem destruído, mas somente
transmitido.
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hegeliana não significou que ele se omitiu de identificar e apontar seus limites.
Citações com a transcrita acima demonstram, uma vez mais, a imanente
postura crítica do jovem Engels, mesmo diante de seus mestres. Se de um lado
Feuerbach corrigiu o idealismo até então presente na filosofia hegeliana,
invertendo a relação natureza-espírito, os princípios dialéticos dessa filosofia
deveriam ser mantidos como a matriz de quaisquer filosofias futuras. Portanto,
a despeito da postura crítica do jovem Engels à filosofia de Hegel, seu ponto de
partida, a matriz de seu pensamento filosófico, foi, desde o princípio, a própria
filosofia hegeliana. (Isso deve ser levado em consideração no exame de textos
de maturidade de Engels [1982, cap. I; MEW 41, p. 272], particularmente
perante afirmações como a presente em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã [1886, Stuttgart]
37
: “Momentaneamente fomos todos
feuerbachianos”. A verdade foi que, independentemente do momentâneo
entusiasmo geral para com as teses feuerbachianas em A essência do
cristianismo, o jovem Engels não se desviou de Hegel. Mas, justamente pelo
contrário, manteve Hegel como sua principal referência filosófica.)
* * *
Outro ponto relevante no exame crítico de Engels sobre a filosofia
positiva de Schelling foi no que se referia à relação necessidade-liberdade.
Para o Schelling pós-Jena (1806-54), necessidade e liberdade não
existiriam como categorias ou determinações reflexivas, mas antagônicas,
sendo que a liberdade somente poderia ser efetivada quando fosse emancipada
dos limites impostos pela necessidade isto é, fora das determinações
materiais existentes na relação natureza-espírito.
Em Schelling, escreveu Engels, a liberdade se confunde com a
arbitrariedade o pensamento emancipado da negatividade da natureza
[freies Denken] e a autonomia existencial da tricotomia das potências perante
o vir-a-ser. Entretanto, prosseguiu Engels, em um mundo arbitrário isto é,
desprovido de determinações e leis objetivas , como poderiam os seres
atuarem em liberdade? Para Engels, a liberdade atuava em relação
imanentemente dialética com a necessidade isto é, a liberdade germina no
solo da necessidade, pois a primeira emerge da consciência e da ação prática
do gênero humano sob a causalidade dos fenômenos materiais da natureza.
Assim, asseverou Engels em Schelling e a revelação: “Somente é verdadeira a
liberdade que contém em si a necessidade; de fato, a única verdade é a
razoabilidade da necessidade” (MECW 2, p. 236; MEW 41, p. 217).
A relação dialética imanente entre necessidade-liberdade é tratada pelo
jovem Engels em 1842 de forma abstrata e sustentada na lógica filosófica.
Décadas mais tarde, sustentado sobre o instrumental teórico da concepção
37
Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie (Die Neue Zeit,
n. 4-5).
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materialista da história plenamente desenvolvida, Engels retomaria a questão
da relação necessidade-liberdade de forma mais concreta em Anti-Dühring
(1877-8, Leipzig) como também por Marx no Livro 3 de O capital (1894,
Hamburgo)
38
.
Sobre essa questão, Engels escreveu no Anti-Dühring:
Quando a sociedade tomar posse dos meios de produção, será
eliminada a produção de mercadorias e, desse modo, o produto
deixará de dominar os produtores. A anarquia na produção social
será substituída pela organização consciente e planejada. Cessará a
luta pela existência individual. depois que isso acontecer, o ser
humano se despedirá, em certo sentido, definitivamente do reino
animal, abandonará as condições animais de existência e ingressará
em condições realmente humanas. O âmbito das condições de vida
que envolvem os seres humanos, que até agora os dominaram,
passarão para o domínio e o controle deles, que pela primeira vez se
tornarão senhores reais e conscientes da natureza, porque (e à
medida que) passam a ser senhores de sua própria socialização. As
leis do seu fazer social, com que até agora se defrontavam como leis
naturais estranhas, que os dominavam, passarão a ser empregadas
e, assim, dominadas pelos seres humanos com pleno conhecimento
de causa. A própria socialização dos seres humanos, até agora vista
como outorgada pela natureza e pela história, passará a ser ato livre
deles. As potências objetivas e estranhas que até agora governaram
a história passarão a ser controladas pelos próprios seres humanos.
Só a partir desse momento os seres humanos farão sua história com
plena consciência; só a partir desse momento as causas sociais
postas em movimento por eles terão, de modo preponderante e em
medida crescente, os efeitos que desejam. É o salto da humanidade
do reino da necessidade para o reino da liberdade. (2015, seção III,
cap. II, pp. 318-9; MEW 20, p. 264)
Independentemente do caráter abstrato no tratamento da relação
necessidade-liberdade de Engels em 1842, era então possível identificar o
38
Nos termos de Marx: “O reino da liberdade começa onde cessa o trabalho determinado
pela necessidade e pela adequação a finalidades externas; pela própria natureza das coisas,
portanto, é algo que transcende a esfera da produção material propriamente dita. Do mesmo
modo como o selvagem precisa lutar com a natureza para satisfazer suas necessidades, para
conservar e reproduzir sua vida, também tem de fazê-lo o civilizado e tem de fazê-lo em todas
as formas da sociedade e sob todos os modos possíveis de produção. À medida de seu
desenvolvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, porquanto se multiplicam as
necessidades; ao mesmo tempo, aumentam as forças produtivas que as satisfazem. Aqui, a
liberdade não pode ser mais do que fato de que o homem socializado, os produtores associados,
regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, submetendo-o a seu controle
coletivo, em vez de serem dominados por ele como por um poder cego; que o façam com o
mínimo emprego de forças possível e sob as condições mais dignas e em conformidade com
sua natureza humana. Mas este continua a ser sempre um reino da necessidade. Além dele é
que tem início o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si
mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, no entanto, pode florescer tendo como base
aquele reino da necessidade. A redução da jornada de trabalho é a condição básica” (2017,
seção VII, cap. 48.III, pp. 882-3).
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pressuposto materialista firmemente estabelecido nessa etapa de sua evolução
filosófica.
Por fim, sustentados nas passagens acima sobre a relação
imanentemente dialética entre necessidade e liberdade, podemos demonstrar
que a repetida afirmação de que Engels só viria a aderir ao materialismo
filosófico a partir de seu período em Manchester somente poderia se sustentar
enquanto sua obra durante o período em Berlim for ignorada pelos
pesquisadores. Passagens como as citadas acima demonstram que Engels
aderiu conscientemente ao materialismo filosófico nos anos de 1841 e 1842 em
Berlim, sem que ela causasse quaisquer agravos à matriz dialética de seu
hegelianismo.
* * *
Para Engels, a filosofia positiva da revelação e da mitologia, como,
também, a tricotomia das potências, expuseram o caráter fantasioso,
irrazoável e ilógico do pensamento do Schelling pós-Jena (1806-54),
terminando por compará-las a uma estrada com rumo ao nada (MECW 2, p.
207; MEW 41, p. 188). Segundo Engels, a tricotomia das potências não
consistia em nada além do que a unidade tripartite do curso do
desenvolvimento dialético da ideia-natureza-espírito da filosofia de Hegel, que
Schelling rebatizou com outros nomes e transformou em entidades autônomas
e sobrenaturais equivalentes à trindade cristã (MECW 2, pp. 206-7; 224-5;
MEW 41, pp. 186-7; 205-6).
O projeto de Schelling em Berlim de desmoronar a filosofia hegeliana
terminou por ser uma promessa não cumprida. Nas palavras de Engels:
Tudo saiu diferente {do planejado}. A filosofia hegeliana vive, na
tribuna, na literatura, nos jovens; ela sabe que todos os golpes que
lhe foram infligidos até agora não lhe poderiam fazer mal e
prossegue calmamente no seu próprio curso de desenvolvimento
interior. Sua influência sobre a nação, como provado pelo aumento
da raiva e da atividade de seus oponentes, está crescendo
rapidamente, e Schelling deixou quase todos os seus ouvintes
insatisfeitos. (MECW 2, p. 192; MEW 41, p. 174)
Assim, para Engels, apesar das investidas filosóficas e institucionais, a
filosofia hegeliana permanecia viva e tinha muito a prosperar e contribuir no
desenvolvimento do conhecimento humano historicamente acumulado.
A conclusão de Engels tem um tom triunfalista. Por meio da filosofia
hegeliana a humanidade adquiriu a autoconsciência [Selbstbewusstein der
Menschheit] de seu lugar no mundo, como se o heaven has come down to
earth” (MECW 2, pp. 238-40; MEW 41, pp. 219-1).
Confiante na vitória inevitável da razão sobre o obscurantismo, da
liberdade sobre a servidão, do racionalismo sobre o irracionalismo, Engels
encerra o ensaio convocando o leitor a se engajar nessa luta intelectual
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iluminista contra a reação. Assim, Engels encerra o ensaio Schelling e a
revelação nas seguintes palavras:
Vamos esquecer esta perda de tempo. coisas mais finas para
contemplarmos. Ninguém vai querer nos mostrar este naufrágio e
afirmar que somente ele é um navio navegável, enquanto em outro
um porto uma frota inteira de fragatas orgulhosas está ancorada,
prontas para sair para o alto-mar. Nossa salvação, nosso futuro, está
em outro lugar. Hegel é o homem que abriu uma nova era de
consciência ao completar a velha. (MECW 2, p. 237; MEW 41, p. 219)
Considerações finais
Quando chegou em Berlim em meados de setembro de 1841, Engels era
um ensaísta de crítica literária e democrata radical de inspiração jacobina com
forte tendência para o ateísmo. Sua concepção de mundo [Weltanschaunng]
se alinhava ainda que de forma incipiente ao racionalismo e ao
hegelianismo.
Ao longo de seu período em Berlim, Engels solidificou seu ateísmo, sua
crítica à autocracia e à teocracia do estado prussiano e aderiu ao materialismo
de Feuerbach, rompendo com quaisquer elementos idealistas que havia trazido
consigo de Bremen. Entretanto, o materialismo feuerbachiano não significou
uma ruptura para com a sua matriz hegeliana. Mas, pelo contrário, essa foi
lapidada com o aprofundamento da leitura das obras de Hegel, dos textos de
seus discípulos mais radicais particularmente, os Livres [die Freien] de
Berlim e por meio do próprio exercício crítico, expresso com maior nitidez
ao longo de seus textos contra Schelling.
Conforme foi demonstrado acima, o período em Berlim foi de
solidificação da dialética hegeliana do jovem Engels, o instrumento
metodológico por meio do qual viria a examinar criticamente a história, a
filosofia, a cultura, a sociedade e a economia capitalista durante seu primeiro
período em Manchester (1842-4). Contudo, não se tratou de um hegelianismo
abstrato, mas de um hegelianismo voltado para a ação prática na política e na
sociedade uma filosofia da ação [Philosophie der Tat].
O período em Manchester entre os anos de 1842 a 1844, o contato com
as classes burguesas e trabalhadoras inglesas e a vivência naquele que era
então o centro do capitalismo mundial, conduziu o jovem Engels a submergir
não somente na leitura e no estudo de livros, mas, também, no estudo de
campo das grandes cidades industriais inglesas e seus habitantes, traçando
uma nova e sinuosa linha na espiral logarítmica de sua evolução filosófica. O
estudo e o exame da evolução filosófica do jovem Engels entre seu período em
Bremen e particularmente em Berlim (1838-42) é fundamental para
compreender a metodologia empregada por Engels em sua investigação
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83
econômica e social, como também em sua atividade política de seu primeiro
período em Manchester (1842-4).
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78.
Como citar:
COTRIM, Felipe. O hegelianismo do jovem Engels (1839-42). Verinotio
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2,
pp. 61-84, jul./dez. 2020.
Data do envio: 20 abr. 2020
Data do aceite: 13 out. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.575
Gustavo Henrique Lopes Machado
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Teoria da história ou gênese do capital? As diferentes recepções
aos estudos etnológicos de Marx: de Engels à atualidade
Gustavo Henrique Lopes Machado
1
Resumo: No presente artigo, procuramos mostrar, em primeiro lugar, que
Marx estudou, ao menos desde o início dos anos de 1850, continuamente as
comunidades humanas primordiais. Nossa tese é que o cerne de tão vastos e
persistentes estudos não é outro senão a busca das dissoluções históricas que
conduziram a gênese do modo de produção capitalista. Em sentido diverso,
indicamos como Engels interpretou a última etapa desses estudos de Marx,
ilegitimamente, como a fundação de uma teoria geral da história, produzindo
uma série de falsas polêmicas que se estendem até os nossos dias, sobretudo,
no que diz respeito ao estatuto dos extratos que Marx compilou nos anos
finais de sua vida, inapropriadamente denominados Cadernos etnológicos.
Palavras-chave: Marx; comunidades originárias; história.
Theory of history or genesis of capital? The different receptions to
the ethnological studies of Marx: from Engels to the present
Abstract: In this paper, we seek to show, first of all, that Marx has studied,
at least since the early 1850s, continuously the most remote human
communities. Our thesis is that the central objective of such vast and
persistent studies is nothing more than the search for the historical
dissolutions that led to the genesis of the capitalist mode of production. In a
different sense, we indicate how Engels interpreted the last stage of these
studies of Marx, illegitimately, as the foundation of a general theory of
history, producing a series of false polemics that extend to the present day,
above all, with regard to the status of the extracts that Marx compiled in the
final years of his life, inappropriately denominated Ethnological notebooks.
Keywords: Marx; original communities; history.
1
Doutorando pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador do Instituto
Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos (Ilaese). Autor de Marx e a história: das
particularidades nacionais à universalidade da revolução socialista (Sundermann, 2018). E-
mail: gustavohlm@yahoo.com.br.
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“Que diria o velho Hegel se soubesse na outra vida que o universal
[Allgemeine] em alemão e nórdico nada mais significa do que a terra comum
[gemeindland] e que o particular [das Sundre, Besonde] nada mais do que a
propriedade privada separada da terra comum? Eis aí categorias lógicas surgindo
lindamente, afinal, do nosso ‘trato social’.”
Carta de Marx a Engels, 25/3/1868
Se Marx é considerado por muitos o filósofo da história, aquele que
desvelou suas leis gerais e sua estrutura universal, seu início e seu fim,
poucos se atentaram ao fato de ele gastou pouca tinta, e cérebro, no exame de
outras formas de organização social senão a capitalista. Não existe, por
exemplo, uma obra de sua autoria, nem mesmo artigos ou anotações
pessoais, cuja finalidade proposta fosse desvelar a estrutura e articulação
geral dos modos de produção antigo ou medieval; escravocrata ou feudal.
Quando tratou de tais formas sociais pretéritas foi, sempre, da perspectiva da
forma social presente. Mas algo aqui pouco notado e que deve, portanto,
ser ressaltado tendo em vista nosso propósito.
De toda a plêiade de formas sociais passadas foram aquelas mais
primordiais, originárias, que despertaram em Marx maior atenção. Se
colocarmos um parêntese em sua formação clássica, típica do ensino europeu
daquela época, povoado de todo o arsenal de textos gregos e romanos, foram
as comunidades humanas mais remotas o alvo central de seus estudos e
investigações. Basta rememorar que nas Formas que precedem a produção
capitalista, extrato dos Grundrisse em que Marx se detêm mais longamente
no exame das formas sociais do passado, a forma social feudal está
praticamente ausente; as formas antigas, greco-romanas, ocupam algumas
poucas páginas e as formas germânicas não chegam a duas páginas contínuas
de exposição. Por outro lado, as comunidades primitivas ou, em uma
tradução mais adequada, originárias quer seja em suas variantes nômades,
sedentárias ou asiáticas estão quase onipresentes em todo esse extrato e,
mesmo, em outros tantos momentos esparsos no curso de todos os
Grundrisse. Qual seria o motivo de tão amplo interesse de Marx por tal tema?
A questão ganhou nova luz quando, no início dos anos de 1970,
Lawrence Krader (1988) compilou e publicou uma série de estudos que Marx
realizou nos últimos anos de sua vida. Trata-se de extratos de obras de
etnólogos cujos trabalhos começavam a despontar. Entre os textos estudados,
destaca-se a Sociedade antiga de Lewis Henry Morgan.
Tais estudos se revestiam, então, de particular interesse, que
estavam na base da constituição do primeiro esboço na tradição marxista de
uma teoria histórico universal. É assim que foi interpretado pelo principal
colaborador de Marx: Friedrich Engels. Ele tomou essas anotações de Marx
sobre a obra de Morgan como se tratasse da posição do próprio Marx e
publicou o livro: A origem da família, da propriedade privada e do estado.
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Mais ainda, apresentou sua própria obra como sendo “a execução do
testamento” de Marx (ENGELS, 2019, p. 19).
Krader e outros autores recentes, ao contrário da interpretação de
Engels, tratam esses últimos estudos realizados por Marx como marcando
uma inflexão em seu pensamento, uma ruptura com o etnocentrismo, com o
eurocentrismo. Em suma, como marcando uma ruptura justamente com uma
teoria linear e universal da história. Nesse trilho, Néstor Kohan (KOHAN,
1998, p. 237) diz que, em particular nesse período, “se produz uma forte
descontinuidade na trajetória teórica e científica de Marx no que diz respeito
aos problemas específicos originados da relação entre capital europeu
ocidental com os povos e países da periferia colonial dependente”. Na mesma
direção, Michael Löwy sustenta que os últimos escritos marcam uma
“ruptura profunda com qualquer interpretação unilinear, evolucionista,
‘etapista’ e eurocêntrica do materialismo histórico” (LÖWY in MARX;
ENGELS, 2013, p. 9).
Um mesmo conjunto de textos e anotações de estudos, como se vê,
deram margem a interpretações opostas. Quando isso ocorre, comumente, é
porque a questão de fundo está mal colocada. Pensamos que esse é
precisamente o caso. Regra geral, o debate a respeito de tais estudos que
Marx realizou gira em torno de se ele teria construído uma teoria unilinear ou
multilinear da história, ainda que tal tema jamais tenha sido posto pelo
próprio autor em seus escritos
2
. Em sentido distinto, a tese que iremos
sustentar no presente artigo é que o centro das investigações de Marx a
respeito das primeiras comunidades humanas está relacionado à busca dos
pressupostos históricos que possibilitaram a emergência da forma social
capitalista.
Para além das falsas questões, associadas a uma suposta teoria da
história, outro problema metodológico pode ser verificado no tratamento dos
materiais produzidos por Marx nos últimos anos de sua vida. Todo um amplo
conjunto de estudos, anotações e escritos por ele produzidos foram tratados
em bloco sob o crivo de temas e rótulos externamente introjetados pelos
intérpretes posteriores: colonialismo, questão nacional, países periféricos,
sociedades não ocidentais, teoria da história e outros análogos. É assim que o
exame de Marx das comunidades humanas mais remotas como nos textos
etnológicos compilados por Krader foram colocados lado a lado com cartas
e rascunhos trocados com jornalistas e ativistas russos a respeito do destino
da propriedade comum da terra ainda existente no país; bem como de
estudos das diversas formas de propriedade fundiária russas tendo em vista
2
Em nosso livro (MACHADO, 2018) demonstramos não existir nenhuma teoria universal da
história no pensamento de Marx, quer seja considerada linear ou multilinear, aberta ou
fechada.
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reelaborar a seção relacionada a renda da terra no Livro III de O capital.
É sob essa chave interpretativa externa e não imanente que a crítica
mais recente identifica os materiais que Marx produziu nos últimos anos de
sua vida os chamados cadernos de 1879-82 como atestando uma inflexão
dita não eurocêntrica em seu pensamento, com maior atenção e interesse em
relação ao mundo colonizado e periférico
3
.
Um caso ilustrativo, nessa direção, é a obra recente de Kevin
Anderson: Marx nas margens: nacionalismo, etnias e sociedades não
ocidentais. Apesar de se tratar de um trabalho interessante em diversos
sentidos, padece do mesmo defeito ao considerar essa ampla gama de
materiais descolados das questões especificamente abordadas por Marx em
seus textos e efetivamente investigadas em seus estudos. É assim que,
tomados em bloco, segundo Anderson “os cadernos de 1879-1882 mostram
uma nova direção no pensamento do filósofo alemão, com uma ênfase maior
nas sociedades não ocidentais” (ANDERSON, 2019, p. 35).
Em verdade, como examinaremos logo adiante, Marx estudou
continuamente as comunidades humanas originárias desde ao menos 1851.
Os chamados cadernos de 1879-82 não constituem, quanto a esse tema,
inflexão alguma. Tal impressão é, muito mais, produto do fato de que tais
textos foram pioneiramente publicados por Krader em princípios dos anos de
1970, enquanto boa parte dos demais materiais apenas foram
disponibilizados recentemente, com alguns poucos volumes publicados.
Além disso, cabe perguntar: qual relação um estudo das formas
primordiais da organização dos homens teria com fenômenos como
colonização, mundo periférico, nacionalidades? Fenômenos picos da
sociedade capitalista? Poderia ser, talvez, por resquícios de tais relações
sociais diretas e comunitárias ainda se fazerem presentes no século XIX,
sendo abruptamente dissolvidas pela dominação ocidental. Ainda que tal
relação exista, tal tese não explica o fato de Marx não se deter tanto no exame
de tais comunidades em pleno século XIX, focando suas investigações nas
formas mais remotas e originárias de organização social.
3
No livro já citado (MACHADO, 2018, pp. 317-413) e também em artigo recentemente
publicado (MACHADO, 2020), mostramos que existem sim inflexões muito significativas de
Marx a respeito do papel da colonização britânica na Ásia em meados dos anos de 1850. No
entanto, tais mudanças relação alguma possuem com uma suposta teoria unilinear e
eurocêntrica da história. Antes, estão associados ao exame particular dos respectivos
processos em curso e, por meio desses, a descoberta do fundamento oculto do modo de
produção capitalista: a acumulação originária. Isto é, o capitalismo não se funda, como
pensava Marx até então, no desenvolvimento positivo do comercio e da divisão social do
trabalho, mas na violência, na expropriação dos produtores diretos. Existem ainda outras
inflexões importantes de Marx quanto a questão nacional irlandesa na década seguinte. No
entanto, como procuraremos mostrar no curso deste artigo, as investigações dos textos
etnológicos e afins tem em mira objetivos radicalmente distintos do que poderíamos chamar
questão colonial ou nacional.
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Para atestar o que acima indicamos, pensamos que é crucial fazer uma
espécie de catálogo dos estudos que Marx direcionou as comunidades
humanas mais remotas, quando se tornará evidente que não se tratou, de
modo algum, de uma tendência de estudos que caracterizou unicamente os
últimos anos de vida. Mas não somente isso. Para além da enumeração dos
estudos realizados por Marx no período, iremos assinalar brevemente
aspectos contidos na literatura em questão, bem como no contexto em que
ela foi produzida, que colocam em xeque a visão unilateral de que os autores
do século XIX sempre trataram o tema das sociedades não ocidentais de
forma preconceituosa e parcial. Tal visão parcial sobre o mundo não
ocidental era, certamente, dominante, mas não hegemônica. E foi justamente
a essa literatura recente que desconstruía o modo caricatural como era
analisada a oposição do ocidente ante o oriente que, desde muito cedo, Marx
se debruçou.
Somente após realizarmos esse percurso, poderemos indicar, ao final
do artigo, em contraposição as teses de Engels e a de Krader, uma hipótese
alternativa a respeito da motivação principal de tais estudos de Marx e suas
consequências.
Marx e as comunidades originárias
Uma consulta a primeira edição finalizada das Obras completas de
Marx, a primeira MEGA (MARX; ENGELS, 19752001)
4
, a atual edição em
curso da MEGA2, bem como o índice completo dos manuscritos, rascunhos e
cartas de Marx disponibilizados pelo Instituto Internacional de História
Social em Amsterdã
5
nos fornecem uma amostragem significativa da
amplitude de seus estudos sobre as formas de sociedade mais remotas.
À primeira vista, todavia, pode parecer que, no século XIX, quando a
etnografia e a antropologia apenas balbuciavam suas primeiras formulações,
não existia ainda uma base material e histórica ampla o suficiente para que
fosse possível a Marx, e qualquer outro, estabelecer reflexões minimamente
consistentes sobre o tema. Basta mencionar que Marx não conheceu a
enorme gama de textos sumérios, acádios, egípcios que vieram à tona nos
últimos 150 anos, além das inúmeras fontes arqueológicas que, desde fins do
4
Daqui em diante citado como MECW, seguido pelo volume citado.
5
O índice completo dos cadernos de Marx e Engels, que estão no Instituto Internacional de
História Social-IISG/IISH (Amsterdã), está disponível em: <https://search.iisg.
amsterdam/Record/ARCH00860/ArchiveContentList>. Daqui em diante aparecem citados
com a letras A: Manuscritos de Marx, B: Cadernos de excertos de Marx seguido pela
numeração do caderno e S: indicando a paginação dos extratos de Marx, tal como
estruturados no site do IISG/IISH.
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século XIX, foram desenterradas e, somente então, retiradas de seu
esquecimento milenar. No máximo, Marx teve notícias quando em 1872 o
assiriólogo George Smith apresentou, no Museu Britânico, a primeira
tradução da narrativa acádia do dilúvio que integra o que hoje conhecemos
como a Epopeia de Gilgámesh.
Tais ponderações são, certamente, justas. No entanto, são relativizadas
quando nos damos conta de que Marx jamais pretendeu escrever a história
dessas civilizações e, muito menos, apresentar uma filosofia da história que,
como em Hegel, procurasse racionalizar o processo histórico em seu
conjunto. São relativizadas, também, quando nos inteiramos de que o
conhecimento de Marx sobre as primeiras formas de organização humana era
muito superior ao que se poderia julgar à primeira vista. Como esse é um
aspecto pouco refletido entre os inúmeros intérpretes de Marx, mas de
grande relevância para nossos propósitos como ficará nítido mais adiante,
cabe, aqui, uma breve retrospectiva sobre esse itinerário.
Ainda em 1842, Marx estuda a História crítica geral das religiões de
Christoph Meiners (B 12, S. 2-8; B 61, S. 31-43), trabalho repleto de relatórios
de viajantes à distintas comunidades da Sibéria, da América, da África e do
Oriente. Estuda, ainda, Do culto dos deuses fetiches de Charles de Brosses (B
11, S. 2-16; KRADER, 1974, p. 89), publicado em 1760. De Brosses,
colaborador da Enciclopédia de Diderot e D’Alambert, ao comparar as
manifestações religiosas do Egito e da região do Níger, formula uma teoria
materialista sobre as origens da religião. É ele quem associa, pela primeira
vez, o termo fetiche ao fenômeno religioso, designando, por esse termo, as
forças naturais divinizadas. Marx extratou ainda o livro Ideias sobre a arte-
mitológica de Karl August Böttiger (B 12, S. 17-25).
Até esse momento, tais estudos de Marx estão de todo alinhados ao
contexto intelectual alemão da época. Nesse período, consagrou-se, por meio
da chamada Escola Histórica Alemã, uma metodologia histórica que
sistematizou a crítica das fontes de modo a fornecer, segundo a intenção dos
autores, uma via de acesso objetiva ao passado. Daí foi um passo a aplicação
desse método ao texto bíblico, o que fez surgir uma verdadeira saga pela
busca e tradução de textos antigos que servissem de referência para tal
exame. Com maior repercussão encontra-se, sem dúvida, a Vida de Jesus de
David Friedrich Strauss que utilizou o mito como chave interpretativa do
Novo Testamento. Mas Strauss é apenas o mais proeminente de uma plêiade
de outros autores que se aventuraram pelo tema. Dentre eles encontra-se, por
exemplo, o orientador juvenil de Marx: Bruno Bauer. Some-se a isso outro
viés imposto aos debates sobre as mitologias e demais formas antigas de
expressão religiosa pelas elaborações do último Schelling. Friedrich Wilhelm
Joseph von Schelling direcionou todas as suas setas contra as interpretações
dos mitos como um mero produto da imaginação de homens primitivos,
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ingênuos e ignorantes. Nesse cenário, as temáticas do Jesus histórico, das
mitologias antigas e do oriente foram as de maior repercussão na Alemanha
em meados do século XIX e teve como subproduto a descoberta de uma série
de documentos e informações inéditas sobre as civilizações mais antigas.
Distante de todas essas querelas de fundo teológico, parece ser exatamente
todo esse repositório de novas informações o centro do interesse de Marx,
como ficará claro adiante.
Até o início de 1850, Marx tem contato com o estudo das sociedades
primitivas por terceira mão. Sobretudo nas referências constantes as formas
de organização social orientais em textos de economistas políticos como
Adam Smith, John Stuart Mill e Richard Jones. Mas ao fim desse período a
situação se altera por completo. Têm início os escritos que ficaram
conhecidos como Cadernos de Londres: extratos e anotações de leituras que
abarcam mais de uma centena de autores no curso de 26 cadernos. Ali,
revela-se uma peculiaridade das mais inusitadas, raramente notada.
Justamente esses escritos em que aprofunda, pela primeira vez, seus estudos
de economia política, o exame das sociedades originárias ganha espaço
considerável, em abrangência que chega a concorrer com os temas mais
diretamente ligados à economia política. Façamos, aqui, uma breve súmula.
Ainda em 1851, estuda A história natural da sociedade no estado
bárbaro e civilizado de B. W. Cooke Taylor (B 55, S. 83-88; MARX, 1986, pp.
460-70). Esta obra consolida a divisão da humanidade em barbarismo e
civilização, além de dividir as comunidades bárbaras em caçadores, pastores
e agricultores. Cabe notar, de passagem, que tal divisão foi retomada por
diversos autores que Marx estudara nas décadas seguintes, como Phear, Tylor
e Morgan, e adotada pelo próprio Engels em sua A origem da família, da
propriedade privada e do estado. Apesar disso tais categorias e a
periodização proposta jamais foram utilizadas pelo próprio Marx.
No mesmo ano Marx leu e anotou a obra de Arnold Heeren:
Investigações sobre as fontes dos mais proeminentes historiadores e
geógrafos antigos (B 50, S. 76-81; MARX, 1991, pp. 365-71; 464-70).
Tratava-se de uma obra padrão de histórica universal da época e continha um
esquema histórico-evolutivo de causas e consequências então bastante usual:
comunidades baseadas na família e tribos produzem relações internas
despóticas; a emergência da agricultura ocasionam a vida sedentária; a
formação das cidades e do comércio fomentam a divisão do trabalho; a
descoberta da América produz o mercado mundial. Temos, ainda, a
tradicional oposição entre Ocidente e Oriente, este último marcado pelo
poder absoluto do soberano em contraposição ao primeiro marcado pela
separação entre religião e política. Interessante notar que, com exceção da
relação entre agricultura e vida sedentária, todos pares do esquema causal
evolutivo de Heeren serão, em distintos momentos, alvos da crítica de Marx.
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O material mais importante que Marx leu e anotou no ano de 1851 foi,
provavelmente, a seminal História da conquista do México (B 50, S. 35-40;
MARX, 1991, pp. 403-15) e a História da conquista do Peru (B 50, S. 40-48;
MARX, 1991, pp. 416-34) ambas de William Hickling Prescott. É evidente,
nas anotações pessoais de Marx, sua principal preocupação no estudo dessas
obras: as formas de organização social dos incas e astecas, amplamente
analisadas por Prescott e, não tanto, as guerras espanholas de conquista,
tema central de ambos os livros. Ou seja, o interesse primeiro de Marx nesse
estudo em particular, e suas anotações não deixam dúvidas quanto a isso, não
é tanto a questão colonial, mas a organização social de incas e astecas.
A obra de Prescott vem a calhar tendo em vista esses propósitos.
Aborda a geografia, produção, política, cultura e religião dessas civilizações e
procura, ainda, identificar os fatores sociais internos que tornaram a
conquista possível. Apesar de manter a oposição entre povos “civilizados” e
“primitivos” e comparar as sociedades mexicanas e andinas com as asiáticas;
o trabalho de Prescott se distingue de outras obras do período por enfocar as
diferenças sociais entre esses povos. E são justamente essas diferenças que
Marx destaca nos extratos transcritos de ambos os livros. Por exemplo,
Prescott aborda casos em que o despotismo do soberano seria mitigado pela
ausência de castas e pela existência de um corpo judicial popular, nuançando
a visão estabelecida do caráter necessariamente despótico das civilizações
não ocidentais. Adentra em inúmeros detalhes a respeito das formas culturais
de expressão, dos conhecimentos técnicos, dos usos e costumes, das
atividades públicas e privadas, das relações de troca e de trabalho. Sempre
colocando em relevo as diferenças entre Incas e Astecas com relação a cada
tópico examinado.
Cabe menção, nessa mesma direção, os estudos de Marx sobre a
posição social da mulher nas comunidades primitivas e modernas. Em
particular, o trabalho Origem das distinções entre as classes sociais de John
Millar (B 61, S. 6-16; PRADELLA, 2015, pp. 113-5), um discípulo de Adam
Smith. Ainda que seguindo o modelo histórico evolutivo de seu mestre, Millar
contrapôs a concepção generalizada a respeito da natureza inerentemente
patriarcal da família. Segundo ele, na fase primitiva da humanidade, existiria
uma relação livre entre os sexos. O casal surgiria na fase selvagem e a
instituição jurídica do casamento aparecera e se universalizara a partir dos
romanos. Millar faz uma análise inovadora do casamento em grupo,
matrilinearidade e matriarcado em sociedades primitivas baseado em fontes
que vão desde os índios americanos até os lídios e babilônios; dos gregos e
romanos aos povos do Sião, Cochinchina e Camboja. Sustenta a tese de que a
opressão da mulher está relacionada com a emergência das classes sociais,
mas, também, que a relação livre entre os sexos poderia ser restaurada com o
desenvolvimento da manufatura e da sociedade capitalista. Na sequência,
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Marx analisa todo um conjunto de autores do século XVIII que contrapõem a
suposta liberdade da mulher no mundo moderno ocidental a sua suposta
escravidão no mundo oriental e primitivo, tais como A história da mulher de
William Alexander (B 61, S. 50-51), a História do sexo feminino de
Christophn Meiners (B 61, S. 31-43), os Ensaio sobre o caráter, maneiras e
espírito das mulheres de Antoine Leonard Thomas (B 61, S. 49-50) e, por
fim, a História das mulheres de Georg Jung (B 61, S. 16).
Marx retoma, ainda, o estudo das manifestações culturais mais
remotas anotando, em 1852, a História geral da cultura de Wilhelm
Wachsmuth (B 61, S. 18-30; 43-48; 54-56; B 62, S. 3-40, 47-51). Wachsmuth
foi um dos primeiros a entrelaçar a noção de civilização à raça e, sob essa
ótica, apesar do caráter claramente apologético da cultura ocidental e
germânica, descreve muitas particularidades de outras culturas. Por exemplo,
ao apresentar os limites da cultura chinesa e tibetana diz: “sem deuses de
aparência sensível”, “sem mitologia”, “isolados e sem analogia com o resto do
Oriente” (apud PRADELLA, 2015, pp. 114-5). O estudo de Marx englobou
exatamente os dois primeiros volumes da obra de Wachsmuth,
subintitulados: Oriente pagão, Antiguidade clássica, cristianismo, Império
Romano cristão, islamismo e A Idade Média. Assim, apenas o último volume
dedicado ao “período mais recente” ficara de fora das anotações de Marx. Os
estudos das manifestações culturais antigas prosseguiram no primeiro
semestre de 1853 com a História cultural geral da humanidade de Gustav
Klemm, em particular os volumes 6 e 7 dedicados à China, ao Japão e aos
povos do Oriente (B 63, S. 45-46; HARSTICK, 1999, p. 374), além dos Esboço
da história cultural de Wilhelm Drumann (B 61, S. 52-54) e a História geral
da cultura e literatura de Johann Gottfried Eichhorn (B 61, S. 3-5).
Nesse mesmo período tem contato, por meio de Engels, com Uma
geografia histórica da Arábia do reverendo Charles Forster (MECW, 39, pp.
325-8
6
), texto que investiga a origem de vários povos do Oriente Antigo e,
também, com uma compilação de poesias e textos em prosa persas antigos
contidos na Gramática da língua persa de William Jones (MECW, 39, pp.
335-42
7
).
O grande pulo do gato, todavia, se daria no ano de 1853. Marx inicia
uma série de artigos sobre a Índia e China para o jornal New York Daily
Tribune. Para tal, coloca em marcha uma série de investigações que não mais
se interromperiam. Destacam-se, aí, as Viagens de François Bernier (B 63, S.
62-65; MECW, 39, pp.330-5
8
), médico francês que vivera por mais de uma
década na Índia no início do século VII, relatando detalhes do modo de vida,
6
Carta de Engels a Marx, 28 maio 1853.
7
Carta de Engels a Marx, 6 jun. 1853.
8
Carta de Marx a Engels, 2 jun. 1853.
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hábitos e estrutura social das várias comunidades que visitou. Mas, também,
A história de Java de Thomas Stamford Raffles (B 65, S. 3-7; MECW, 39, pp.
344-8
9
); Índia moderna: um esboço do sistema de governo civil e Um
esquema para o governo da Índia de George Campbell (B 65, S. 12-22, 24-
32); Os princípios das monarquias asiáticas de Robert Patton (B 65, S. 37-
39); Esboços históricos do Sul da Índia de Mark Wilks (B 65, S. 7-9; MARX,
2013, p. 432); O algodão e o comércio da Índia de John Chapman (B 65, S.
23-24)
10
, Relato histórico e descritivo da Índia britânica de Hugh Murray (B
65, S. 9-12; MARX, 2013, p. 415) e as Cartas orientais de Jakob Philipp
Fallmerayer (B 65, S. 41-42).
Tais obras estão distantes de descreverem um cenário dualista com
que, normalmente, o Oriente era concebido naqueles tempos, como
despotismo versus democracia. Thomas Raffles, como indica o próprio Marx:
“argumentou persuasivamente que o soberano não era um proprietário
universal de terras: o solo, pelo contrário, era quase invariavelmente uma
propriedade inalienável de seus súditos’’. Fundamentando sua tese, continua
a explicar Marx a partir de Raffles que “terra era minuciosamente dividida
entre as famílias individuais, que não trabalhavam em comum, como em
aldeias semelhantes na Índia, mas cultivavam-na separadamente'' (MECW,
39, p. 348
11
). George Campbell, por sua vez, indica uma coexistência entre
propriedade coletiva e individual com diferentes tipos de organização
comunal: comunidades simples sob a orientação de um único líder;
comunidades democráticas com propriedade comum e redistribuição
periódica de terras; aldeias sujeitas a líderes tributários. Mina, portanto, a
representação dualista de um “Oriente despótico” em contraposição a um
“Ocidente democrático”. Robert Patton estabelece a diferença entre direito de
posse e direito de propriedade, considerando o primeiro um direito
hereditário à posse da terra em troca da obrigação de seu cultivo, segundo
ele, a forma dominante na Índia. Wilks descreve minunciosamente a
divisão do trabalho no interior de muitas comunidades indianas. É ele quem
cunha a ideia de numerosas pequenas repúblicas indiferentes as mudanças
dinásticas no céu político. Dentre outras abordagens.
As principais fontes a respeito das comunidades indianas, contudo,
foram primárias: documentos parlamentares sobre a Índia, documentos
diplomáticos e os famosos livro azuis em que os burocratas ingleses, em
função dos obstáculos para a expansão comercial então almejada na Índia e
China, relatam toda sorte de detalhes dos hábitos, conformação social e
9
Carta de Marx a Engels, 14 jun. 1853. Um longo trecho de Rafles é citado também em O
capital (MARX, 2013, p. 432).
10
Em O capital, Marx escreve: “Uma boa descrição das diversas formas da comunidade
indiana pode ser encontrada em George Campbell, Modern India” (MARX, 2013, p. 432).
11
Carta de Marx a Engels, 14 jun. 1853.
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características específicas de povoações indianas e chinesas, tanto no
ambiente rural como urbano. Citações desses documentos irão povoar os
escritos de Marx para o New York Daily Tribune até o início dos anos de
1860.
Se é verdade que a motivação imediata dos artigos para o Tribune
foram os acontecimentos mais recentes que envolviam a dominação inglesa
nesses territórios: revolta Taping na China, revolta dos cipaios na Índia,
guerra do ópio e assim por diante; o interesse primeiro de Marx, como
atestam suas cartas e anotações pessoais, sempre foram as formas de
organização social mais antigas cujos vestígios ainda era possível entrever.
Por exemplo, em 14 de junho de 1853, Marx escreve a Engels que em “Bali,
uma ilha da costa Oriental de Java, esta organização hindu ainda se mantém
intacta, podendo, além disso, encontrar-se os seus traços no território de
Java”. Ciente das polêmicas sobre o tema complementa: “tal como a questão
da propriedade, esta é uma questão muito controversa entre os ingleses que
escrevem sobre a Índia. Na região montanhosa a sul de Krishna, a
propriedade da terra parece não ter existido” (MECW, 39, p. 348).
Quando, portanto, em fins de 1857, Marx se pôs a escrever, nos
Grundrisse, sobre alguns traços específicos das comunidades humanas
originárias ante o capitalismo, não o fez de forma leviana e apressada. Tanto
é assim que as hipóteses mais gerais dessas análises irão permanecer até os
últimos escritos sobre o tema, as vésperas de sua morte. Mas todo este
processo de investigação sobre tais comunidades estava apenas começando.
Continuemos, portanto, nossa apresentação sumária desses esforços
continuados de Marx.
Em 1860 os três volumes recém publicados do etnógrafo alemão
Adolph Bastian: O ser humano na história (MECW, 41, pp. 231-3; pp. 245-
7
12
). O juízo de Marx com relação a esta obra é severo: ele dirá a Engels que
“sua tentativa de apresentar a psicologia em termos de ‘ciência natural’ e a
história em termos de psicologia, é ruim, confusa e amorfa. A única coisa útil
nessa obra são algumas excentricidades etnográficas de vez em quando. E, o
que é pior, muito pretensioso e atrozmente escrito” (MECW, 41, pp. 232-3).
Logo após a publicação do primeiro livro de O capital, Marx se dedica ao
estudo das várias obras do historiador alemão George Ludwig von Maurer (B
111, S. 116-140, 144-162; B 112, S. 5-21; B 133, S. 4-45; B 134, S. 3-95; B 135, S.
3-15; MECW, 42, pp. 547-9
13
; MARX, 2013, p. 147) que, dentre outras coisas,
demonstra a existência da propriedade comunal nas origens da história dos
diversos povos germânicos. Recebe com grande entusiasmo tais trabalhos,
chegando a afirmar em carta a Engels datada de 14 de março de 1868: “O
12
Respectivamente: cartas de Marx a Engels, 19 dez. 1860; e a Lassale, 18 jan. 1861.
13
Carta de Marx a Engels, 14 mar. 1868.
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ponto de vista que apresentei de que as formas de propriedade asiáticas ou
indianas em toda parte marcam o começo na Europa, recebe aqui uma nova
prova (embora Maurer não saiba nada disso)” (MECW, 42, p. 547).
Em 1870, estuda as obras do etnógrafo polaco-francês Franciszek
Duchinski (MECW, 42, pp. 161-4; MECW, 43, pp. 433-6)
14
defensor da tese,
contestada por Marx, das origens mongóis e não eslava dos russos. No ano
seguinte estuda os escritos do oficial prussiano August Franz von Haxthausen
(B 138, S. 16-41)
15
sobre o sistema agrário e a comuna camponesa na Rússia.
Segundo Haxthausen, os camponeses russos não conheciam a propriedade
privada dos campos, prados e florestas: toda aldeia era considerada
proprietária. As famílias camponesas apenas recebiam parcelas de campos
para utilização temporária e que, tal como os antigos germânicos estudados
por Maurer, a distribuição se fazia por sorteio. Nos anos seguintes, Marx
estuda ainda As raças nativas dos estados do Pacífico do etnógrafo Hubert
Howe Bancroft (MECW, 46, pp. 394-6)
16
; Anahuac: ou México e os
mexicanos, antigos e modernos de Edward Burnett Tylor (MARX, 2014, p.
543); além dos escritos sobre a história das relações agrárias da Alemanha de
August Meitzen.
Interessante notar que o estudo de todo esse vasto material, sobretudo
após os anos de 1860, é realizado, quase sempre, no momento imediatamente
posterior as respectivas publicações; dando conta de que Marx acompanhava,
na ordem do dia, a evolução de todo tipo de pesquisas sobre o tema. Cabe
menção, ainda, as obras do historiador, etnógrafo e advogado russo Maxim.
M. Kovalevskí (B 156, S. 26-47, 66-90), autor de ensaios sobre a história do
sistema comunal primitivo na Rússia. Marx o conheceu pessoalmente em
1877 e, desde então, estabeleceu com Kovalevskí relações de estreitas por
meio de uma vasta correspondência e mesmo algumas vistas deste último a
Marx em Londres.
Marx retoma em 1879 seus estudos sobre a Índia. Compilou, ano após
ano, os principais acontecimentos políticos, sociais e econômicos do país
entre os anos 664 e 1858 (MARX, 1960). Faz largo uso do livro História da
Índia de Mountstuart Elphinstone (MARX, 1960, pp. 12; 24; 109; 114; 118;
121; 138; 141), mas também A cronologia da Índia moderna de James
Burgess (MARX, 1960, pp. 34; 39; 40; 47; 48; 52; 61; 63; 109; 115; 131; 148),
A história da Índia Britânica de James Mill (MARX, 1960, p. 47), Estudos da
história da renda fundiária em Bengala de Richard Ramsbotham (MARX,
14
Cartas de Marx a Engels, 24 jul. 1865; e a Kugelmann, 17 fev. 1870.
15
Em 4 de fevereiro 1971, Marx solicita a Kulgemann o livro de Haxthausen (MECW, 44, p.
111).
16
Em 1982 Engels extrata a obra de Bancroft por sugestão de Marx. Nos extratos de
Kovalevskí, fica claro que Marx havia entrado em contato com sua obra (B 140, S. 19, 20,
22).
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1960, p. 49) e A história analítica da Índia de Robert Sewell (MARX, 1960,
pp. 26-9; 59; HARSTICK, 1999, p. 600). Um dos temas tratados nessas notas
é justamente as formas de posse da terra na Índia. Se seguiu a esta cronologia
um resumo dos livros de Kovalevskí em que um dos tópicos é intitulado por
Marx: Dominação britânica e seu efeito na propriedade comunitária
indiana (MARX, 1960, pp. 55-6).
Ainda nesse período, Marx diversas obras recém-publicadas sobre a
sociedade indiana, dentre elas A história da Índia, desde o período remoto
até o fim do século XVIII de John Clark Marshman (B 140, S. 28), Índia: ou
fatos apresentados para ilustrar o caráter e condição dos habitantes nativos
de Robert Rickards (B 162, apresentado conjuntamente com os extratos de
Henry Sumner Maine indicados abaixo), A história de Bengala, desde a
primeira invasão maometana até a conquista virtual daquele país pelos
ingleses em 1757 d.C. de Ch, Stewart (B 156, S. 40), A história da Índia,
contada por seus próprios historiadores de Henry Miers Elliot (B 156, S.
40); além de outras tantas mais relacionadas com a dominação e
administração inglesa em terras indianas.
Por fim, nos dois últimos anos de vida Marx se põe a fichar e glosar
uma série de etnólogos cujos trabalhos começavam a despontar na Europa e
nos Estados Unidos. Entre os principais se encontram A aldeia ariana na
Índia e no Ceilão de John BuddPhear (B 162, S. 131-157; KRADER, 1988, pp.
211-48); As instituições primitivas de Henry Sumner Maine (B 162, S. 162-
199; KRADER, 1988, pp. 249-96); A origem da civilização de John Lubbock
(B 168, S. 3-10; KRADER, 1988, pp. 297-309) e, principalmente, Sociedade
antiga de Lewis Henry Morgan (B 162, S. 4-101; KRADER, 1988, pp. 71-209).
Além desses materiais, Marx toma notas também sobre a história, evolução e
situação real dos povos coloniais de James William Bayley Money (B 162, S.
102-30) e os estudos das leis antigas e medievais de Rudolph Sohn (B 162, S.
157-61).
Fica evidente, então, que qualquer que tenha sido a motivação
principal de Marx por tão longos e permanentes estudos a respeito das
comunidades humanas mais remotas, não se trata, de modo algum, de um
interesse circunscrito aos seus últimos anos de vida. Suas pesquisas sobre o
tema foram concomitantes as investigações diretamente ligadas a O Capital.
Não há dúvidas de que o processo de dominação ou colonização levado a cabo
pelos países capitalistas dominantes esteve entre as preocupações de Marx e
com relação a esse tema dedicará não poucos artigos. No entanto, não vemos
uma correlação direta entre esse tema e sua obsessão em compreender as
formas primeiras de organização social entre os homens. Mesmo quando
examina exemplos contemporâneos de sociedades não ocidentais, o material
disponível não deixa dúvidas, na maior parte dos casos, que a preocupação
primeira de Marx são suas formas originárias de organização social e não
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tanto a sua conformação atual. Ao fim desse artigo, apresentaremos uma
hipótese provável a respeito desse tema. Antes, contudo, pretendemos
reexaminar brevemente as hipóteses de Engels e Krader anteriormente
aludidas. Como veremos, elas caem diante do apanhado bibliográfico acima
realizado.
Engels e as comunidades originárias: a tese da teoria da história
É justamente a partir do último compilado de extratos realizado por
Marx que, longe de esclarecer os motivos de tão amplo interesse de nosso
autor pelas primeiras formas humanas de organização social, a maior parte
dos intérpretes posteriores acabaram por turvá-lo de forma quase definitiva,
senão trágica. A começar pelo principal colaborador de Marx, Friedrich
Engels. Este último tomou as anotações de Marx sobre seminal obra de
Morgan, Sociedade antiga, anotações essas que não passavam de meros
fichamentos com raríssimos comentários, como se tratasse da posição do
próprio Marx e publicou o aludido livro: A origem da família, da
propriedade privada e do estado
17
.
Em sua obra, Engels retoma de Morgan a divisão das comunidades
originárias em selvageria, barbárie e civilização sendo as duas primeiras
subdivididas em épocas inferior, média e superior. Em diversos momentos, a
universalização de Engels da análise realizada por Morgan das comunidades
iroquesas nos Estados Unidos é patente. Se não constrói uma periodização de
toda a história humana, o faz com relação aos atos primeiros dessa trama.
Por exemplo, após apresentar as dez determinações fundamentais da
confederação” iroquesa, como configurando a “organização social mais
progressista da qual os índios foram capazes, na medida que não chegaram
além do estágio inferior da barbárie” (ENGELS, 2019, p. 89), dirá ele, que
“onde encontramos a gens como unidade social de um povo, também
podemos procurar uma organização da tribo similar à descrita aqui”
(ENGELS, 2019, p. 92).
Como vimos, desde pelo menos 1851, Marx se deparara, em Cooke
Taylor, com uma proposta análoga de periodização e em momento algum a
adotou. Tanto é assim que, em 1882, após, portanto, os estudos sobre
Morgan, escreve Marx em carta a revolucionária russa Vera Zasulitch que a
“história da decadência das comunidades primitivas ainda está por ser
escrita, e seria um erro colocar todas elas no mesmo patamar” (MARX,
2013b, p. 101, grifo nosso).
17
Uma análise do livro de Engels e sua relação com a Sociedade antiga de Morgan pode ser
encontrada no primeiro capítulo do importante estudo de Jair Antunes (2003, pp. 18-44). A
esse respeito, consultar também o trabalho mais recente de Lucas Parreira Álvares (2019).
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Some-se a isso que a contraposição barbárie e civilização é quase
onipresente em grande parte da bibliografia estudada por Marx que
anteriormente elencamos. Em suas anotações e extratos desses historiadores,
etnólogos e afins, por exemplo naquelas já citadas de Prescott sobre a história
da conquista dos povos Incas e Astecas, vimos que Marx privilegia
nitidamente as diferenças, sobretudo sociais, que o historiador estadunidense
identifica entre ambos os povos. Da mesma forma, a ênfase que Marx confere
nos estudos sobre a Índia de meados dos anos de 1850 por meio de
historiadores como Raffles, Campbell, Patton, Wilks, Chapman, Murray
tende a acentuar os aspectos que colocam em xeque as caricaturas então
consolidadas como a contraposição entre ocidente democrático e oriente
despótico. Tanto é assim que, mais de 20 anos depois, fazendo uso de novos
autores e novos estudos, compilou uma cronologia da história do país em um
período superior a mil anos.
Agregamos aqui outro importante elemento que desautoriza
considerar A origem da família, da propriedade privada e do estado como a
execução do testamento de Marx. Seguindo Morgan, Engels utiliza-se de
aspectos técnicos materiais e não sociais como demarcação entre uma e outra
forma de sociedade. Se nos Grundrisse, apesar de não propor nenhum
ordenamento geral entre as formas sociais, Marx as identifica e as diferencia
pela forma por meio da qual as comunidades humanas se apropriam da
natureza; o critério de demarcação entre uma fase e outra na obra de Engels é
sempre técnico material e jamais social. É assim que Engels distingue as fases
inferior, média e superior da selvageria, da barbárie até a civilização pelos
seguintes elementos técnicos materiais: coleta; uso do fogo; descoberta do
arco e flecha; descoberta da cerâmica; domesticação de plantas e animais;
criação de instrumentos de ferro e a escrita fonética.
Se Marx examinou as comunidades originárias sempre na perspectiva
de sua diferença com o modo de produção capitalista, Engels, partindo de
Morgan, procura, em seu livro, construir uma teoria histórica universal
positiva, encontrando, assim, o encadeamento necessário e universal entre as
múltiplas formas de organização social. Não é nosso interesse aqui
reexaminar toda esta questão. Gostaríamos apenas chamar atenção para o
fato de que esta ênfase obscureceu o real significado dos estudos de Marx
sobre essas comunidades. E Engels é, nesse caso, apenas o primeiro capítulo
da tragédia.
Krader e as comunidades originárias: a tese do Marx etnólogo
Após a publicação desses cadernos de estudos de Marx, utilizados por
Engels, antes de receber nova luz, a questão tornou-se ainda mais obscura.
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Como exemplo mencionamos a primeira e razoavelmente difundida edição
desses escritos realizada por Lawrence Krader: The Ethnological notebooks of
Karl Marx (Os Cadernos etnológicos de Karl Marx) ou segundo a edição
alemã: Karl Marx, die ethnologischen Exzerpthefte (Karl Marx, os excertos
etnológicos). Nesse trabalho, tais escritos são tratados, como os títulos já
indicam, como sendo de etnologia ou ao menos notas introdutórias de um
trabalho etnológico que, somente então, Marx traria à luz. Mais ainda,
tendem apresentar o tipo de investigação ali presente como sendo uma
particularidade dos últimos anos de vida de Marx. Descobriu-se, assim, um
Marx etnólogo.
Ora, cabe perguntar: com que direito? Não estudara Marx esse tema no
curso de toda sua vida? Caso descobríssemos uma série de anotações e
comentários de Marx sobre obras historiográficas diversas, isto faria de Marx
um historiador? Evidentemente não. E, de fato, não uma única menção de
Marx sobre a intenção em escrever uma obra de etnologia. O Marx etnólogo é
tal como aquele economista, cientista social ou historiador uma ficção.
A asserção que fazemos não é de interesse menor nem um detalhe
pouco significativo. A lenda do Marx etnólogo tem o inconveniente de sugerir
que suas reflexões sobre o tema estão de todo separadas de suas demais
elaborações. Trata-se de um trabalho paralelo, no máximo, tenuemente e
externamente conectado com sua crítica da economia política. O mais curioso
de tudo é que mesmo um antropólogo como Lawrence Krader, sedento por
encontrar o Marx etnólogo, é obrigado, aqui e ali, a admitir o contrário. Diz
ele que tanto nos Grundrisse como em O capital a “comunidade primitiva
aparece como uma categoria e suas relações espontâneas servem, em sua
abstração, para representar a concretização da economia capitalista, em
contraposição a elas”. Em seguida ele afirma de modo categórico que os
“povos primitivos não são tomados cada um por si” (KRADER, 1988, p. 10,
grifo nosso). Como se vê, Krader está ciente de que na crítica da economia
política de Marx as comunidades originárias foram sempre utilizadas para
explicitar as diferenças específicas e, assim, concretizar, no curso da
exposição, o modo de produção capitalista. Apesar disso, acredita ele que,
somente agora, nessas últimas notas de Marx, veríamos surgir o Marx
etnólogo: “A concretização ocorre mais tarde, nos extratos etnológicos dos
anos 1879-1882” (KRADER, 1988, p. 10). Cabe perguntar a Krader: com que
direito pode-se fazer tal afirmação? Qual o motivo desse mero compilado de
extratos de outros autores, realizados nos últimos anos da vida de Marx,
representarem um estágio mais concreto que outros tantos realizados desde
1850?
É inútil discutirmos até que ponto Marx almejou, ou não, escrever um
livro sobre etnologia. Fato é que ele jamais foi escrito. O máximo que
podemos afirmar é que, nesses últimos anos de vida, Marx prometera
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escrever uma brochura sobre as possibilidades futuras no desenvolvimento
da comuna rural russa. Mesmo nesse caso, tratava-se em responder a
questões concretas que envolviam o movimento revolucionário russo de
então. Seja como for, a hipótese de Krader, como aquela concretizada por
Engels, não explicam o fato desses últimos estudos de Marx sobre etnologia
não passarem de uma mera continuidade de outros tantos realizados desde
ao menos 1851, sem que as respectivas teses e periodizações presentes em
todos os autores estudados no curso de mais de 30 anos tenham sido jamais
subscritas.
A real tese de Marx: a acumulação ou expropriação originária
Por outro lado, podemos encontrar dois motivos fartamente
documentados que dão conta do interesse de Marx por essas sociedades
originárias. Eles não remetem, de modo algum, a intenção de escrever uma
história empírica das comunidades primitivas e sua decadência, mas de
determinar a especificidade de nosso presente capitalista à luz das formas de
organização social precedentes.
O primeiro desses motivos fora enunciado por Krader nas linhas
acima e tem sua razão de ser. Marx não parte, em sua exposição do modo de
produção capitalista, de nenhum princípio tomado dogmaticamente como
universal e primeiro, de nenhum axioma, de nenhum fundamento geral das
sociedades humanas. Ele pode determinar as formas específicas que
caracterizam esse modo de produção comparando-o a outras formas sociais
de produção. As comunidades originárias, nesse contexto, emergem com
interesse maior entre todas as demais formas de sociedade que se seguiram.
Afinal, são elas que assinalam a máxima diferença em relação ao capital e o
capitalismo e, por isso mesmo, mostram-se as mais adequadas para revelar
muitas das especificidades da forma social regida pela relação capital.
Nessa direção as comunidades originárias e outras a elas correlatas
emergem em inúmeras passagens de O capital. Por exemplo, ao tratar da
forma mercadoria diz Marx que na “antiga comunidade indiana, o trabalho é
socialmente dividido sem que os produtos se tornem mercadorias” (MARX,
2013, p. 120). Quando aborda a necessidade de desenvolvimento da
propriedade privada como pré-condição da generalização das trocas diz: “tal
relação de alheamento mútuo não existe para os membros de uma
comunidade natural-espontânea”. Em seguida indica que essa comunidade
natural não se reduz, de modo algum, a uma única forma e complementa:
“tenha ela a forma de uma família patriarcal, uma comunidade indiana
antiga, um estado inca etc. (MARX, 2013, p. 162). Aqui, é possível notar,
como em outras passagens que trataremos mais adiante, que, sob nenhum
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aspecto, Marx reduz as comunidades primitivas a uma única forma, mas as
considera, nos dizeres de Krader, em sua abstração, isto é, em relação ao
modo de produção capitalista. No mesmo sentido, quando analisa a
especificidade da forma de cooperação do trabalho no capitalismo, assinala
que as comunidades originárias baseiam-se, por um lado, na apropriação
“comum das condições de produção e, por outro, no fato de que o indivíduo
isolado desvencilhou-se tão pouco do cordão umbilical da tribo ou da
comunidade quanto uma abelha da colmeia” (MARX, 2013, p. 397).
Inúmeros outros exemplos poderiam ser mencionados e detalhados.
Mas não se trata unicamente desse aspecto. Além de se referir as
formas históricas pretéritas no intuito de determinar a forma social presente,
Marx busca, ainda, os pressupostos históricos dessa última. O capital não
emergiu do nada, seus pressupostos históricos nos remetem,
retrospectivamente, para a dissolução das comunidades originárias, para o
longo processo histórico no curso do qual os produtores diretos foram
expropriados e objetivamente separados de todas as condições objetivas de
existência. Nas últimas linhas do Grundrisse esse processo é anunciado de
forma mais nítida:
A propriedade comum foi redescoberta recentemente como uma
curiosidade própria dos eslavos. Na realidade, entretanto, a Índia
oferece-nos um mostruário das mais variadas formas de tal
comunidade econômica, mais ou menos em dissolução, mas ainda
inteiramente reconhecíveis; e uma investigação histórica mais
profunda reencontra tal comunidade como ponto de partida de
todos os povos civilizados. O sistema da produção fundado na
troca privada é, em primeiro lugar, a dissolução histórica desse
comunismo desenvolvido natural e espontaneamente. Contudo,
toda uma série de sistemas econômicos entre o mundo moderno,
em que o valor de troca domina a produção em toda a sua
profundidade e extensão, e as formações sociais cujo fundamento é
constituído pela propriedade comunal dissolvida (MARX, 2011,
p. 757, grifo nosso).
A referência a esse longo processo histórico, iniciado com a dissolução
das comunidades originárias, cujo aprofundamento culmina no modo de
produção capitalista, é anunciado, também, em O capital. Marx diz que o
capital “só surge quando o possuidor de meios de produção e de subsistência
encontra no mercado o trabalhador livre como vendedor de sua força de
trabalho”. Na sequência, indica que a emergência do trabalhador livre
contraposto ao possuidor dos meios de produção remete para muito além dos
umbrais do capitalismo: “essa condição histórica compreende toda uma
história mundial” (MARX, 2013, p. 245)
18
. No Livro II, por sua vez, podemos
18
É evidente que no desenvolvimento interno de toda essa histórica mundial indicada por
Marx, que culminou no modo de produção capitalista, o mundo ocidental passou por
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ler que a venda generalizada da força de trabalho “pressupõe processos
históricos que decomponham a conexão originária entre os meios de
produção e a força de trabalho” (MARX, 2014, p. 114). O processo de
dissolução das comunidades originárias coincide, portanto, com o processo
de gênese do modo de produção capitalista. A análise desse processo está
explicitamente presente no capítulo 24 de O capital. Mas justamente aí, nesse
célebre capítulo, em que se examina o pressuposto histórico do capital, temos
uma questão das mais intrigantes.
Foi pouco notado que o logo trecho dos Grundrisse conhecido como:
Formen corresponde exatamente ao capítulo 24 do Livro I de O capital: A
acumulação originária
19
. Como demonstrou Roman Rosdolsky, Marx
procurava, nos Grundrisse, a forma mais adequada de exposição de sua
obra. Apesar de muitas alterações relevantes nas constantes montagens e
remontagens de sua crítica à economia política nos anos que se seguiram,
podemos encontrar, nos Grundrisse, uma clara tentativa de ordenar
adequadamente todo material analítico até então produzido. Não sem razão,
em não poucos aspectos, a exposição dos Grundrisse coincide com aquela de
O capital. Vejamos!
Após um longo capítulo do dinheiro que corresponde, em linhas
gerais, a primeira seção de O capital, temos, na sequência, o que os editores
do manuscrito denominam Capítulo do Capital que compreende
respectivamente a análise da transformação do dinheiro em capital, o
processo de trabalho e valorização, bem como a análise da mais valia absoluta
e relativa, temas tratados respectivamente nas seções II a V da obra máxima
de Marx. Na sequência do manuscrito, na seção [Reprodução e acumulação
do capital], ainda segundo os títulos dos editores, Marx aborda exatamente os
temas correspondentes aos primeiros capítulos da seção VII do Livro I.
Somente então temos duas seções encadeadas: Acumulação originária de
capital e as [Formas que precederam a produção capitalista], que
correspondem exatamente ao Capítulo 24 de O capital.
Tanto é assim que, na sequência das Formen, será abordado os temas
do circuito do capital, capital fixo e circulante, tratados precisamente nas
diversos modos de produção. No entanto, nunca esteve entre suas preocupações examinar a
lógica interna desses modos de produção pretéritos, menos ainda uma ordem necessária
entre eles. Quando os examinou, ou se tratou da busca das especificidades das categorias do
modo de produção capitalista em contraste com seu outro ou se tratou da busca de seus
pressupostos históricos. Examinamos exaustivamente a questão em nosso livro (2018)
citado.
19
Uma exceção notável é o trabalho recente já citado de Lucia Pradella (2015): Globalisation
and the critique of political economy. Ali, a autora nota que as relações de propriedade nas
primeiras comunidades humanas “variavam muito na forma, mas todas as formas sociais
(oriental, eslava, antiga e germânica), para Marx, pressupunham a propriedade da
comunidade. Isso explica por que, nos Grundrisse, ele procura traçar o processo de
dissolução de tal unidade original” (PRADELLA, 2015, p. 137).
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duas primeiras seções do Livro Segundo. No entanto, apesar dessas
coincidências nada arbitrarias, emerge daí uma diferença significativa que
queremos chamar a atenção. Se, nos Grundrisse, Marx trata do tema da
expropriação dos produtores diretos desde a dissolução das comunidades
originárias; em O capital, a análise principia pela dissolução dos laços de
dominação feudais na Europa que fizeram culminar, na Inglaterra, no modo
de produção capitalista. Do exame de toda uma história mundial que
expropriou os produtores diretos de suas condições objetivas de existência, o
que vemos em O capital é uma análise restrita aos últimos capítulos dessa
odisseia. Quais seriam os motivos dessa mudança de abordagem?
Ora, em todo material então disponível não existe uma resposta
definitiva a presente questão. Como indicamos, Marx manteve, até o final
de sua vida, as mesmas hipóteses esboçadas nas Formen no que diz respeito à
gênese do capital como fundada na dissolução daquelas comunidades
originárias. O mais provável, portanto, é que a abordagem restrita na versão
final de O capital se deu em função de considerar insuficiente o material
empírico e histórico então disponível sob o presente tema. Por esse motivo,
sua generalização da propriedade coletiva a todos os povos em sua origem,
bem como a dissolução dessa apropriação comum como pressuposto
histórico mais geral que culminou na sociedade capitalista, permanece, para
Marx, como uma tese, ainda não suficientemente atestada pelas evidências
empíricas então disponíveis.
É, de fato, nesses termos que ele se refere a questão em diversos
momentos. Quando estuda Maurer, em passagem citada, diz que as
análises desse último confirmam, quanto a universalidade originária da
propriedade coletiva, o "seu ponto de vista". Em outro trecho do Livro III de
O capital, ao discutir a relação entre preço de produção e valor, Marx alude a
sua opinião /.../ de que a transformação dos produtos em mercadorias
resulta do intercâmbio entre diversas coletividades, e não entre membros de
uma e mesma comunidade” (MARX, 2017, p. 211, grifo nosso)
20
. Como se vê,
as várias asserções que Marx realiza sobre as comunidades originárias e sua
decomposição são, sempre, anunciadas como seu “ponto de vista”, “sua
opinião”, em suma, sua tese.
Nossa hipótese, portanto, é que tais investigações de Marx sobre as
comunidades originárias tem por objetivo verificar e fundamentar a tese por
ele mesmo anunciada justamente nas linhas finais dos Grundrisse quando o
manuscrito fora interrompido: “O sistema da produção fundado na troca
20
Em nota, Engels comenta este trecho dizendo que Em 1865, isso era ainda uma simples
opinião de Marx. Hoje, a partir da ampla investigação das comunidades primitivas, de
Maurer até Morgan, é um fato que quase não se questiona em parte nenhuma”. Temos aí um
claro indício da tendência apressada de generalização de Engels, como comentamos no
caso de A origem da família...
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privada é, em primeiro lugar, a dissolução histórica desse comunismo
desenvolvido natural e espontaneamente”. No entanto, na altura da redação
de O capital, e mesmo depois, jamais considerou as evidências disponíveis
amplas o suficiente para referendá-la.
A presente hipótese explica o motivo de Marx ter continuado a
estudar, durante toda sua vida, e com maior intensidade em seus últimos
anos, os textos etnológicos e afins. Explica, ainda, o motivo de ter restringido,
temporal e espacialmente, a exposição dos pressupostos históricos do modo
de produção capitalista no célebre capítulo A acumulação originária.
Expropriação originária como gênese da civilização ocidental
Por fim, chamamos a atenção que a tese por nós assinalada abre
perspectivas inéditas de investigação que extrapolam largamente a mera
exegese dos textos de Marx. Para além de todos esses aspectos internos a sua
obra, acreditamos que a forma e o modo como se deu a decomposição das
comunidades originárias, particularmente em sua forma mais desenvolvida
no mundo greco-romano, fornecem-nos, particularmente, os “ingredientes”
sociais que nos permite compreender a base social que possibilitou o
desenvolvimento filosofia e sua subsequente cristalização metafísica. Não
apenas como um fenômeno autônomo do pensamento ou, ainda, associado a
características de todo específicas do mundo grego, mas como um fenômeno
brota de características sociais que, uma vez originadas, continuaram a se
desenvolver até atingir sua plenitude sob a forma capital. Isto faz da crítica à
economia política de Marx uma crítica as bases sociais que nos remetem não
apenas a sua atualidade, mas se volta, de forma demolidora, igualmente
sobre sua gênese e desenvolvimento.
Insistimos sobre esse último aspecto. Os elementos que caracterizam a
dissolução das comunidades originárias no mundo greco-romano
caracterizam-se, sem dúvida, por transformações que se originaram de
acontecimentos históricos particulares e, em alguma medida, acidentais, mas
que fizeram emergir uma situação socialmente distinta e com traços
estruturais que permaneceram. Novos contornos que passam a caracterizar
aquilo que a tradição consumou sobre o nome de história ocidental.
Até os dias de hoje, contudo, tais especificidades que conformam o
mundo ocidental veem sendo acentuadas apenas no que diz respeito aos seus
traços culturais e políticos. Como demonstra as querelas da passagem do
mŷthos ao logos e o debate historiográfico do milagre grego. Some-se a isso
a imagem do mundo ocidental como a conjunção entre filosofia grega, direito
romano e cristianismo.
Nas Formen, Marx denomina a sociedade greco-romana como a
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“segunda forma de propriedade” uma vez que produziu alterações
fundamentais, alterações locais, mas históricas” (MARX, 2011, p. 390). Que
alterações históricas seriam essas? Em que sentido seriam históricas?
Segundo Marx, para os indivíduos imersos naquelas comunidades
originárias, as condições objetivas de existência emergem como “o corpo de
sua subjetividade preexistente como natureza inorgânica, ou seja, o corpo
objetivo de sua subjetividade, uma extensão de sua subjetividade” (MARX,
2011, p. 389). Nesse contexto originário, os nexos diretos que unem os
indivíduos enquanto membro imediato do todo comunitário faz com que os
elementos objetivos sob nossa perspectiva exteriores aos indivíduos se
afigurem como corpo objetivo de sua subjetividade. A subjetividade dos
membros do corpo comunitário não está dissociada dos elementos que lhe
são exteriores. Ela está associada diretamente o emaranhado de eventos e
fenômenos com os quais se defrontam. A natureza inorgânica serve
diretamente de material de expressão de sua subjetividade.
Quando Marx examina a dissolução mais profunda dessas
comunidades originárias naquela segunda forma de propriedade, a greco-
romana, vemos que, pela primeira vez, os discursos humanos se separam
conscientemente de seu, até então, firme chão. A subjetividade dos homens
se descola de seu corpo objetivo. A respeito dessa forma de sociedade explica
Marx: “tem como pressuposto a entidade comunitária, todavia, não mais
como substância, na qual os indivíduos são meros acidentes, ou, ainda,
componentes puramente naturais” (MARX, 2011, p. 390). Os indivíduos, em
sua variabilidade imanentes, deixaram de ser mero acidente de uma entidade
comunitária substancial. Isto ocorre porque “a propriedade do indivíduo não
é imediatamente, diretamente e por si propriedade comunitária”. Por um
lado, sua propriedade se desgarra do vínculo umbilical com a comunidade e,
por outro, seu acesso a esta ocorre de forma mediada. Emerge um organismo
de todo estranho: a comunidade política, a ação tua dos indivíduos
proprietários. A comunidade– agora considerada estado mostra-se como
dupla faceta: Por um lado, a relação recíproca entre estes proprietários
privados livres. [Por outro lado,] seu vínculo com o exterior, isto é, sua
garantia” (MARX, 2011, p. 391).
Se seu ser como proprietário privado revela-se diretamente na posse e
uso contínuo de sua propriedade, seu ser como membro do estado não possui
qualquer vínculo imediatamente reconhecível. A comunidade não é mais
reconhecida tão somente na relação direta entre seus membros. Ela aparece,
agora, também, como unidade geral, como um ente autônomo: um espaço
público, formal, a priori. Não como um mero ente externo e sobreposto a
cada indivíduo, família como um outro. Antes, como algo universal que o
constitui objetivamente.
Vemos surgir, no interior mesmo do corpo social, o universal, o
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conceito que, de um modo místico e obscuro, confere ao interesse particular o
estatuto de geral. Tal processo irá se desenvolver no curso dos séculos, não
sem idas e vidas, não sem obstáculos e contingências de todos os tipos,
culminando no modo de produção capitalista.
Transparece, pois que em todos os estudos que Marx realizou sobre
aquelas comunidades humanas mais remotas, não estava a fazer uma história
das comunidades primitivas. Ele busca determinar, esclarecer, desvendar o
modo de produção capitalista, produto de um longo processo histórico de
dissolução daquelas comunidades. Mas se tal busca se faz necessária é porque
em nossa sociedade atual as coisas não se apresentam da forma direta, clara e
transparente como outrora. Entre os indivíduos e as coisas se elevou uma
dimensão intermediária: dimensão das mediações sociais. Daí a necessidade
de expressá-las, subjetivamente, em representações simbólicas universais,
conceituais. Representações quase sempre enigmáticas e obscuras, ao não
traduzirem, imediatamente, a abrangência de suas relações e significados.
Todo esse processo tem no capital o seu ponto culminante. Sua gênese,
contudo, data da dissolução dessas comunidades naturais e infinitamente
diferenciadas. Como dirá Marx em passagem citada: as condições
históricas de existência do capital surgem “quando o possuidor de meios
de produção e de subsistência encontra no mercado o trabalhador livre como
vendedor de sua força de trabalho”. A investigação desse pressuposto, por sua
vez, “compreende toda uma história mundial” (MARX, 2013, p. 245).
Pensamos que nessas linhas estão dados os elementos fundamentais
para que possamos estender a gênese do capital para a dissolução das
comunidades originárias, o que o próprio Marx evitou de fazer em O capital,
segundo supomos, pelas limitações das fontes históricas e etnológicas então
disponíveis. Assim compreendido, a crítica dessa forma histórica particular
nos fornece uma chave para a crítica das expressões subjetivas autônomas,
conceituais, miméticas, alegóricas, em uma palavra, metafísicas. O oceano de
palavras e discursos no interior do qual a consciência teórica ocidental
encontra-se imersa. Assim compreendida, a crítica a sociedade burguesa
mostra-se, ao mesmo tempo e inseparavelmente, como crítica à metafísica.
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Gustavo Henrique Lopes Machado
109
atualidade. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio
das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 85-109, jul./dez. 2020.
Data do envio: 31 ago. 2020
Data do aceite: 2 nov. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.580
César Mortari Barreira
110
Engels contra Marx? Do lógico/histórico aos níveis de abstração
César Mortari Barreira
1
Resumo: O presente artigo tem como objetivo problematizar as críticas ao
chamado “historicismo” de Engels. Ainda que este traga inúmeras dificuldades
para a compreensão da crítica da economia política, isso não deve encampar
um argumento de ruptura entre Marx e Engels. Na verdade, a análise das
edições de O capital levanta problemas igualmente “engelsianos”,
notadamente no exame do dinheiro. Ao invés de recolocar o clássico problema
da relação entre o lógico e o histórico, ambos são compreendidos como
diferentes níveis de abstração a partir dos quais pode-se construir uma teoria
marxista da sociedade.
Palavras-chaves: Engels; Marx; lógico; histórico.
Engels versus Marx? From logical/historical to abstraction levels
Abstract: This article aims to question the criticisms of Engels’ so-called
‘historicism’. Even if this poses some difficulties in understanding the critique
of political economy, this should not lead to an argument of rupture between
Marx and Engels. In fact, the analysis of Capital editions raises equally
Engelsian problems, notably in the examination of money. Instead of
replacing the classic problem of the relationship between the logical and
historical, both are understood as different levels of abstraction from which a
Marxist theory of society can be constructed.
Keywords: Engels; Marx; logical; historical.
Introdução
Duzentos anos após o nascimento de Friedrich Engels, as discussões
sobre o legado do autor ainda constituem um dos mais claros exemplos do
característico campo de batalha marxista. Das questões relacionadas à crítica
da economia política àquelas referentes à dialética da natureza, o valor de
Engels para o marxismo não poucas vezes é ceifado em duas alternativas: ou
1
Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Coordenador Científico do
Instituto Norberto Bobbio. E-mail: csarmbarreira@gmail.com.
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ele aparece como um verdadeiro detrator, como se suas reflexões
constituíssem uma degradação do desenvolvimento científico alcançado por
Marx; ou ele é apreciado como o cofundador do socialismo moderno, tendo
não apenas construído sua obra em perfeita harmonia com seu fiel amigo, mas
até mesmo desenvolvido o campo de reflexão deste.
Por isso mesmo, não chega a ser surpreendente a análise feita por
Christopher Arthur acerca do legado engelsiano cem anos após seu
falecimento. Naquele momento, era particularmente claro que a variedade
temática das contendas sequer encobria a rotineira interpretação de que Marx
seria “o bom moço”, restando a Engels o papel de “vilão” (ARTHUR, 1996, p.
xii). Essa constatação levanta a suspeita de que a recorrência da “controvérsia
Engels”
2
(BLACKLEDGE, 2019, p. 6) possa estar associada à existência de uma
motivação ideológica. Esta, por sua vez, seria a responsável por alimentar
“sentimentos mistos” que invertem argumentos científicos em insultos
pessoais. Nesse sentido, Kaan Kangal destaca uma estratégia argumentativa
bastante arriscada, em que as interpretações atuais sobre Engels são
projetadas a partir de um texto passado, estabelecendo uma forte distinção
entre as intenções do autor, seu texto e suas leituras subsequentes (KANGAL,
2020, p. 3).
É curioso notar que esse modus operandi esteja bastante distante do
esforço filológico que caracteriza a nova leitura de Marx
3
, notadamente a
partir da MEGA2. Nesta, o estudo minucioso tanto dos manuscritos marxianos
como de sua correspondência compõe um mosaico cada vez mais vasto que
aponta não só para a compreensão da obra de Marx “como um processo
atribulado de avanços e estagnação na compreensão /.../, de tomar partido e
recuar” (VOLLGRAF, 2018, p. 66), mas sobretudo para as chamadas
“ambivalências de Marx”
4
(HEINRICH, 2017, p. 198). Não seria possível,
2
Segundo Stephen Rigby, o argumento de que Engels teria distorcido as ideias de Marx
estava presente no final do século XIX (RIGBY, 1992, p. 4). Blackledge apresenta um resumo
detalhado dos embates logo na introdução de seu Friedrich Engels and modern social and
political theory (BLACKLEDGE, 2019, pp. 1-20).
3
A nova leitura de Marx [neue Marx-Lektüre] tem início na década de 1960, mais
precisamente nos anos de 1964 e 1965, no âmbito da Escola de Frankfurt, a partir do
desenvolvimento de um grupo de trabalho de alunos de Adorno. Com fulcro nos trabalhos de
Hans Georg Backhaus, Helmut Reichelt, Helmut Brentel e, mais recentemente, Michael
Heinrich e Nadja Rakowitz, entre outros, essa leitura tem como premissa a retomada da
forma-valor como eixo a partir do qual se movimentam as análises da sociedade capitalista.
Apesar das profundas divergências sobre o sentido das categorias marxianas, a defesa de uma
teoria monetária do valor e a ênfase no fetichismo do capital e não da mercadoria
constituem duas de suas principais contribuições. Para uma visão geral das inúmeras leituras
de Marx que passam a ser produzidas a partir da década de 1960, ver o livro Marx global
(HOFF, 2009, pp. 78-195).
4
Note-se que essa ambivalência não é atribuída a um erro ou a uma falta de precisão conceitual
(BRENTEL, 1989, p. 281). O argumento aqui é sensivelmente mais profundo. As
ambivalências são compreendidas como uma consequência de toda revolução científica que
tenta “criar uma nova disciplina teórica com base na crítica de um sistema de pensamento
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portanto, compreender a negação de Engels como negação da negação de Marx
enquanto centro de certeza para o marxismo?
Esse tipo de questionamento está relacionado à sugestiva “nova leitura
de Engels”
5
e serve como estímulo ao presente artigo. Após apresentar as raízes
e desdobramentos da “leitura histórica” de O capital, exporei a influente
contraposição entre o “lógico” (Marx) e o histórico(Engels), formulada por
Backhaus a partir da análise do conceito engelsiano de “produção simples de
mercadorias”, destacando os deslocamentos que a posição Engels sofre nesse
processo. Logo após, demonstrarei como a confusão lógico-histórica pode ser
encontrada no próprio Marx. Minha hipótese é que o reconhecimento desses
déficits comuns atesta tanto a infertilidade da distinção lógico/histórico como
a necessidade de incorporar a problemática dos níveis de abstração como
requisito para a construção de uma teoria marxista da sociedade.
1. Engels contra Marx: apontamentos sobre a “leitura histórica”
é comum na literatura marxista observar uma série de comentários
a respeito da “leitura historicista de Marx” (SOTIROPOULOS; MILIOS;
LAPATSIORAS, 2013, p. 46). De modo geral, a narrativa de que o Livro I de O
capital seria um “trabalho essencialmente histórico” (KAUTSKY, 1887, p. IX)
decorre de uma interpretação bastante específica do sentido da crítica da
economia política, notadamente da Seção I do Livro I. É a partir de uma
resenha de Engels ao livro Para à crítica da economia política (1859) que a
crítica marxiana passa a ser interpretada a partir do “método lógico-histórico”,
isto é, como uma apresentação do processo de desenvolvimento histórico do
capitalismo.
Nesse texto, Engels inicialmente salienta que o método dialético
utilizado por Marx permitiria “fazer a crítica da economia de duas maneiras: a
histórica e a lógica” (MEGA, II. 2, p. 252). No entanto, uma vez que o
desenvolvimento histórico frequentemente passa por “saltos e ziguezagues”,
então seu tratamento lógico pareceria ser a única alternativa. Ainda assim,
Engels sustenta que “isto [a abordagem lógica CMB], no entanto, não é na
verdade nada mais que o [método CMB] histórico, apenas despojado da
forma histórica e das irritantes contingências”, de tal modo que “lá onde
começa essa história deve começar também o processo de reflexão (MEGA,
II. 2, p. 253 destaque meu). Além disso, Engels compreende que o
estabelecido” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013, p. 46). Por isso Heinrich
argumenta que o seu próprio desenvolvimento categorial [de Marx CMB] permanece
ambivalente em pontos decisivos” (HEINRICH, 2017, p. 17 destaque no original).
5
O termo [neue Engels-Lektüre] é utilizado por Kangal logo na introdução de seu Friedrich
Engels and the dialectics of Nature, em clara referência à “nova leitura de Marx” (KANGAL,
2020, p. 1).
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desenvolvimento conceitual nada mais seria do que “a imagem refletida, de
forma abstrata e teoricamente consequente do desenvolvimento histórico”.
Assim, “neste método, partimos da primeira e mais simples relação que temos
historicamente, factualmente; aqui, portanto, da primeira relação econômica
que encontramos. Depois, procedemos à sua análise (MEGA, II. 2, p. 253
destaque meu).
O mesmo tipo de entendimento aparece em Lei do valor e taxa de lucro
(1895). Mais do que apenas reafirmar essa abordagem histórica, nesse escrito
Engels faz uma interpretação da teoria marxiana do valor que será
particularmente influente nas análises marxistas do século XX. Em um
primeiro momento ao comentar a interpretação de Werner Sombart do
sistema marxiano , Engels parece não apresentar nada particularmente novo.
Ele resume os pontos principais da compreensão da teoria do valor,
destacando que “o valor das mercadorias é a forma histórica específica em que
se impõe, de maneira determinante, a força produtiva do trabalho, a qual, em
último caso, rege todos os processos econômicos” (MEGA, II. 14, p. 328).
Em que pese salientar que “não se pode dizer que esteja incorreta essa
concepção da importância da lei do valor para a forma de produção
capitalista”, Engels destaca: “porém, parece-me que sua formulação é
demasiadamente ampla, suscetível de uma formulação mais restrita, mais
precisa” (MEGA, II. 14, p. 328 destaque meu). Por isso, logo após a lei do
valor é apresentada “em maiores detalhes”. Engels enfatiza que a produção
de mercadorias se desenvolveu a partir da determinação do valor pelo tempo
de trabalho, algo que inclui “múltiplas relações em que se afirmam os
diferentes aspectos da lei do valor, tal como expostos na seção I do Livro I de
O capital (MEGA, II. 14, p. 332). Consequentemente, são as condições
presentes nessas múltiplas relações que afetam a forma-valor. E Engels de fato
destaca que essas condições parecem naturais, de tal modo que elas “se
impõem sem que os participantes tomem consciência delas e podem ser
abstraídas da prática cotidiana por meio de uma longa investigação teórica”
(MEGA, II, 14, p. 332).
No entanto, um acontecimento histórico “o progresso mais
significativo e decisivo” é apresentado como o principal responsável por
alterar substancialmente as referidas condições, qual seja “a transição para o
dinheiro metálico” (MEGA, II. 14, p. 332). Este seria o responsável por fazer
com que a determinação do valor pelo tempo de trabalho não mais aparecesse
de forma visível na superfície da troca de mercadorias. Esta demarcação
histórica separa dois períodos, aquele anterior ao dinheiro metálico,
denominado por Engels “produção simples de mercadorias” [einfache
Warenproduktion] ou “produção mercantil”, e o período capitalista
propriamente dito, atual, de tal modo que a Seção I do Livro I de O capital e
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sua análise da forma-valor pertenceriam tão somente ao primeiro período
6
. E
é exatamente isso que Engels sustenta no Prefácio ao Livro III, ao dizer que,
no início de sua crítica da economia política, Marx “toma como ponto de
partida a produção simples de mercadorias como seu pressuposto histórico
para, então, avançar desde essa base até o capital” (MEGA, II. 15, p. 16
destaque meu). Vale ressaltar a questão acerca da validade da lei do valor nas
palavras do próprio Engels:
[A] lei marxiana do valor tem validade geral, desde que as leis
econômicas valham para todo o período da produção simples de
mercadorias, portanto, até o tempo em que esta experimenta uma
modificação por meio da introdução da forma de produção
capitalista /.../. Assim, a lei marxiana do valor tem validade
econômica geral para um período que vai desde os primórdios da
troca que transforma os produtos em mercadorias até o século XV
de nossa era. No entanto, a troca de mercadorias tem origem numa
época anterior a toda a história escrita; numa época que, no Egito,
remonta a pelo menos 3.500, talvez 5.000, e na Babilônia, a 4.000,
talvez 6.000 anos antes de nossa era; portanto, a lei do valor
vigorou por um período de cinco a sete milênios (MEGA, II. 14, p.
333 destaque meu).
A influência dessa interpretação foi gigantesca
7
no desenvolvimento das
correntes marxistas. Note-se, por exemplo, a própria compreensão de W. I.
Lênin a respeito da obra marxiana. Se em As três fontes e as três partes
constitutivas do marxismo (1913) é dito que “Marx traçou o desenvolvimento
do capitalismo desde os primeiros germes da economia mercantil /.../ até às
suas formas superiores, até à grande produção” (LW, 19, p. 07), no texto Karl
Marx (1915) a principal obra de Marx é vista como um estudo que apresenta o
modo de produção capitalista “em sua emergência, desenvolvimento e
decadência” (LW, 21, p. 48).
Aqui sobressai uma compreensão empírica das categorias da crítica da
economia política. Desse modo, a forma-valor teria como objeto “a origem da
forma-dinheiro do valor, o estudo do processo histórico do desenvolvimento
da troca, dos atos de troca particulares e fortuitos /.../ até a forma geral do
valor” (LW, 21, p. 49 destaque no original). Na mesma linha encontra-se
6
Após a publicação do Livro III, o falecido Marx era alvo da crítica de que a lei do valor
exposta no Livro I teria sido abandonada a favor das determinações dos preços de produção.
Daí o argumento de Conrad Schmidt de que o valor seria apenas uma “ficção”, uma mera
“hipótese científica”. A saída encontrada por Engels para defender Marx foi justamente
salientar que toda a temática não era apenas lógica, mas histórica. O “dinheiro metálico” seria
o responsável tanto por invisibilizar a teoria do valor como por trazer à luz os preços de
produção como critério de avaliação.
7
Trata-se daquilo que Ingo Elbe denomina Engelsianismo: “os escritos de Engels – ainda que
conceitos como ‘marxismo’ ou ‘materialismo dialético’ não se encontrassem neles
forneceram para gerações inteiras de leitores, marxistas e antimarxistas, o modelo
interpretativo através do qual a obra de Marx foi apreendida” (ELBE, 2010, p. 14).
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Ernest Mandel, para quem, sem a produção simples de mercadorias, nenhum
capitalismo poderia começar a existir, razão pela qual O capital, os
Grundrisse e outros textos econômicos básicos de Karl Marx incluem muitas
análises da produção simples de mercadoria” (MANDEL, 1976, p. 14
destaque meu)
8
.
No mesmo contexto, são igualmente sintomáticas as palavras de Ronald
Meek. Adepto da leitura histórica do valor, ele sustenta que a postulação de
Marx de uma sociedade abstrata pré-capitalista baseada no que ele chamou
de produção ‘simples’ de mercadorias não era essencialmente diferente da
postulação de Adam Smith sobre uma sociedade ‘precoce e rude’ habitada por
caçadores de veados e castores” (MEEK, 1973, p. 303 destaque meu)
9
. De
todo modo, na produção simples de mercadorias a lei do valor operava de
modo a tornar as relações de troca equivalentes às taxas de trabalho
incorporadas” (MEEK, 1973, p. 156).
É verdade que não deixam de existir diferenças entre esses autores, aqui
brevemente retratados. Se em Engels a lei do valor existiu em uma etapa
anterior ao capitalismo, no período da “produção simples de mercadorias”’ ou
“produção mercantil”, em Meek ela é vista como um primeiro “modelo geral”,
uma “primeira aproximação” que seria especificada e aprofundada
gradativamente (MEEK, 1973, p. 180). Ainda assim, o interesse por trás dessa
concisa retomada da interpretação de Engels acerca do objeto da Seção I do
Livro I é destacar de que modo ela pavimenta o caminho para as análises que
compreendem a crítica da economia política como a análise da gênese histórica
do capitalismo
10
.
Como se sabe, Marx diz, na Introdução de 1857, que “seria, além de
impossível, falso ordenar as categorias econômicas na sucessão em que foram
historicamente determinantes”. Consequentemente, não apenas sua ordem
seria determinada pela relação que elas mantêm entre si, na sociedade
burguesa moderna”, como isso seria o “o inverso do que parece ser a sua ordem
natural ou a correspondente sucessão do desenvolvimento histórico” (MEGA,
II. 1.1, p. 42). Daí a assertiva em O capital de que a lei do valor “só se
8
Note-se, no entanto, que nenhuma referência textual é dada ao leitor. Como destacado mais
adiante, isso ocorre porque a categoria “produção simples de mercadoria” simplesmente
nunca foi utilizada por Marx.
9
Salientando quão complexa era uma análise desse tipo para fins de compreensão da
sociedade capitalista, Meek chega mesmo a classificar esse estudo como uma “mitodologia”
[mythodology] (MEEK, 1973, p. 304).
10
O exemplo mais sintomático possivelmente está em Wolfgang Fritz Haug. Em sua “décima
preleção” introdutória sobre O capital, Haug chega mesmo a dizer, em defesa da perspectiva
trans-histórica da teoria do valor, que nada se altera desde os tempos de Homero, ou desde
milênios antes dos mesmos, ainda que o seu estatuto social [da forma valor CMB], bem
como o estatuto das formas que se vão edificando em cima dela, com destaque para a forma
do preço, passem por metamorfoses enormes” (HAUG, 2005, p. 152 destaque meu).
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desenvolve livremente com base na produção capitalista(MEGA, II. 6, p. 499
destaque meu).
Polêmicas à parte, as diferenças entre Marx e Engels não devem ser
subestimadas, algo que pode ser observado pela comparação entre o
manuscrito do Livro III (publicado pela MEGA2 em 1992) e o Livro III tal
como editado por Engels (1894). Marx, por exemplo, não deixa dúvidas de que,
“no caso das categorias mais simples do modo de produção capitalista, da
mercadoria e dinheiro, nós salientamos o caráter mistificador (MEGA, II.
4.2, pp. 848-9 destaque meu). No entanto, em seu processo de edição, Engels
altera o sentido da frase ao acrescentar e demarcar a análise da mercadoria e
do dinheiro à produção mercantil, isto é, à “produção simples de mercadorias”:
“no caso das categorias mais simples do modo de produção capitalista, e
mesmo da produção mercantil, ao examinar a mercadoria e o dinheiro, nós já
salientamos o caráter mistificador (MEW, 25, p. 835 destaque meu)
11
.
Note-se que, a partir dessa linha de raciocínio, mercadorias e dinheiro
já não são mais as categorias mais simples do modo de produção capitalista,
mas da produção mercantil. Como destaca Brentel, Engels entende a lei do
valor da referida “produção simples de mercadorias” no sentido de um
comércio de permuta realmente pré-monetário, em que os atos de troca são
mais ou menos diretamente orientados pela quantidade de trabalho”
(BRENTEL, 1989, p. 144). Por isso mesmo, não é mera casualidade que, ao
deslocar a forma-valor para o período pré-capitalista, esse tipo de leitura
apareça como o principal adversário de Backhaus em sua tentativa de
reconstrução da crítica da economia política.
Ainda assim, o “historicismo” de Engels não constitui a única fonte que
alimenta as reflexões do aluno de Adorno. Diante das exposições mais ou
menos fragmentárias de Marx e das variações na exposição da forma-valor
12
,
Backhaus não hesita dizer: “resta, portanto, um desideratum urgente da
pesquisa marxista em reconstruir por inteiro a teoria do valor (BACKHAUS,
11
Naturalmente, existem outros exemplos da interpretação histórica de Engels. Em Anti-
Dühring, após citar a famosa referência acerca da inversão das leis de propriedade que regem
a produção de mercadorias em leis da apropriação capitalista “a lei da apropriação ou lei da
propriedade privada, fundada na produção e na circulação de mercadorias, transforma-se,
obedecendo sua dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto” (MEGA, II. 6, p.
538) –, Engels sustenta que essa “fase” corresponde à “história do desenvolvimento da
burguesia” (ENGELS, 2015, p. 192).
12
Existem seis exposições da forma-valor, todas diferentes entre si: (i) a primeira, tal como
aparece em Para a crítica da economia política (1859); (ii) a segunda, na primeira edição do
Livro I de O capital (1867); (iii) a terceira, na versão popularizada, incluída como anexo à
primeira edição do Livro I; (iv) a quarta, igualmente divergente das anteriores, na segunda
edição do Livro I de O capital (1872); (v) uma quinta exposição na tradução francesa do Livro
I, revisada e corrigida pelo próprio Marx e (vi) a sexta, tal como aparece na autocrítica feita
em Complementos e alterações à primeira edição, texto publicado pela primeira vez em 1987.
Daí a enorme importância da hercúlea organização e nova redação do Livro I a partir dessas
diferenças, feita por Thomas Kuczynski (2017).
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1997, p. 42 destaque meu). Este é o solo em que a distinção entre a “leitura
lógica” e a “leitura histórica” se enraizará.
2. Marx contra Marx: o canto do cisne da reconstrução categorial
Em se tratando dos debates que ocorreram em solo alemão na cada
de 1970, a assim chamada “reconstrução da crítica da economia política”
possui um sentido bastante preciso. Trata-se do pressuposto de que entre os
diversos textos de Marx existiria um discurso unitário e correto que, por sua
vez, permitiria uma reconstrução apta a tanto afastar as interpretações
equivocadas da teoria marxiana como reverter seu processo de popularização
(HEINRICH, 2017, p. 16). Essa hipótese tem como corolário a expectativa de
que O capital seria a “obra final”, isto é, como se os manuscritos que compõem
o projeto da crítica da economia política seguissem uma linha qualitativa
ascendente entre os textos marxianos que culminasse na melhor e definitiva
versão.
De modo geral, a principal referência dessa notória e recorrente
expectativa remete aos trabalhos de Backhaus, notadamente em Dialética da
forma-valor (1997), livro que reúne artigos que apresentam e desenvolvem o
projeto de pesquisa do autor
13
. Como salientado, o principal adversário da
“leitura lógica” era a leitura historicista da crítica da economia política
efetuada por Engels, principalmente no que diz respeito à tese da “produção
simples de mercadorias”. Por tal razão, o importante aqui não é expor uma
análise detalhada da obra de Backhaus, mas enfatizar como a mudança de
postura desse autor em relação aos estudos históricos e, consequentemente,
uma reavaliação da contribuição de Engels abre portas para a compreensão
dos diversos níveis de abstração que compõem o estudo da reprodução social
capitalista e seus respectivos limites, uma abertura que, como será destacado,
não se deixa entrincheirar pela oposição lógico ou histórico.
Considere-se, primeiramente, o texto Para a dialética da forma-valor
(1969). Nele Backhaus faz uma espécie de apresentação de seu programa de
pesquisa, tendo como ponto de partida uma análise da recepção da crítica da
economia política em diversos autores. Nesse momento é salientando como a
teoria marxiana do valor é geralmente distorcida na mera “enumeração de
hipóteses sociológicas e econômicas” (BACKHAUS, 1997, p. 41), algo
13
O desenvolvimento das reflexões de Backhaus parte de sua leitura, por volta de 1963, da
primeira edição (1867) de O capital, na biblioteca de Hermann Brill, um político social-
democrata que falecera alguns antes. Segundo Hoff, o texto era raramente conhecido naquele
período, pelo menos na Alemanha Ocidental. As consequências da leitura em especial, as
diferenças na exposição da forma-valor constituíram uma espécie de guia para a elaboração
conceitual de Backhaus (HOFF, 2009, p. 83).
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intimamente associado aos déficits de compreensão da forma-valor no
marxismo então hegemônico. No entanto,
[A] recepção inadequada da análise da forma de valor não pode ser
atribuída apenas a uma certa cegueira problemática dos intérpretes.
A inadequação de suas representações provavelmente pode ser
entendida partindo da suposição de que Marx não deixou para trás
uma versão completa de sua teoria do valor-trabalho (BACKHAUS,
1997, p. 42).
Backhaus refere-se à existência das mencionadas diferenças na
exposição da forma-valor, o que traria a “necessidade urgente” de reconstruir
totalmente a teoria do valor (BACKHAUS, 1997, p. 42). Com isso ele esperava
destrinchar a contribuição da análise da forma-valor para a teoria marxiana da
sociedade a partir de três aspectos: ela seria (i) a interface entre sociologia e
teoria econômica para a construção de uma teoria da sociedade; (ii) a base para
uma crítica da ideologia e a para a construção de uma teoria específica do
dinheiro; e (iii) a premissa para se compreenderem as relações entre as
relações de produção e a “superestrutura” no âmbito de uma teoria da
sociedade (BACKHAUS, 1997, p. 57).
Mas é a partir da década de 1970 que Backhaus aprofunda essas
questões. Entre 1974 e 1997 aparecem os famosos Materiais para a
reconstrução da teoria marxiana do valor, divididos em quatro partes
primeira (1974), segunda (1975), terceira (1978) e quarta (1997). As duas
primeiras possuem uma narrativa comum, qual seja, a construção de um
discurso crítico tanto a Engels como ao marxismo que o sucedeu. Assim, na
Primeira parte Backhaus inicia suas considerações analisando algumas
críticas feitas à teoria do valor de Marx, para então salientar que a literatura
marxista “não era de modo algum capaz de refutar convincentemente todas as
objeções do outro lado; ela mesma não está livre de graves deficiências de
interpretação(BACKHAUS, 1997, p. 69 – destaque meu). E qual seria a razão
dessa “grave deficiência”?
Segundo Backhaus, isso estava intimamente associado ao “erro
fundamental” de Engels ao interpretar equivocadamente os três primeiros
capítulos de O capital nos termos de uma “produção simples de mercadorias”,
tal como destacado no item anterior. Consequentemente, ao seguir essa
interpretação, “a teoria marxista do valor teve que bloquear a compreensão da
teoria marxiana do valor” (BACKHAUS, 1997, p. 69 destaques no original).
Isso teve como consequência primária a formação de um cenário em que
atuam as distintas versões da análise da forma-valor e os mais diversos erros
interpretativos, de tal modo que “os estudiosos marxistas se viram incapazes
de definir o significado de seus próprios conceitos básicos da teoria do valor de
uma maneira universalmente vinculante” (BACKHAUS, 1997, p. 72). Desse
modo, não chega a ser surpreendente que Backhaus resuma a contribuição da
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teoria marxista do valor ressaltando uma vez mais a diferença entre Marx e
marxistas:
A teoria marxista do valor ficou presa ao terreno da teoria pré-
marxiana, e sua estrutura conceitual poderia ser definida como uma
versão apenas terminologicamente nova da teoria do valor-trabalho
dos ricardianos de esquerda (BACKHAUS, 1997, p. 74 destaque
no original).
Esse tipo de compreensão traz uma consequência importante, qual seja,
a expectativa de que “o texto de Marx é, em si mesmo, incompreensível e, na
melhor das hipóteses, acessível somente à filologia especializada de Marx
(BACKHAUS, 1997, p. 70 destaque meu). Assim, a ênfase nos erros da
tradição marxista vinculada a Engels e o destaque à reconstrução filológica do
núcleo da crítica da economia política denotam um pressuposto fundamental:
a existência de um discurso correto e coerente no texto marxiano, como
indicado, acessível somente a especialistas.
Ora, este é justamente o principal objeto da Segunda parte, que tem
início destacando como as teorias marxistas do valor possuem uma “afinidade
estrutural” com as teorias subjetivas do valor. E qual seria essa afinidade?
Segundo Backhaus, ambas ignoram a conexão entre forma-valor e dinheiro e,
portanto, constituem “teorias pré-monetárias do valor” em que “a indiferença
à teoria monetária e à forma não-dialética do desenvolvimento conceitual o
basicamente apenas dois aspectos da mesma coisa (BACKHAUS, 1997, p. 93).
É a partir deste momento que Backhaus passa a enfatizar o caráter monetário
da teoria marxiana do valor, no preciso sentido de que a crítica da economia
política deveria ser entendida como uma crítica a todas as abordagens pré-
monetárias (BACKHAUS, 1997, p. 94). Daí a retomada do argumento de que o
“núcleo racional” da teoria marxista do valor seria uma “variante determinada
da teoria do valor dos ricardianos de esquerda” (BACKHAUS, 1997, p. 94).
Backhaus procura justificar esse argumento salientando que a “função
do valor” teria sido reduzida à mera regulação da relação de troca entre
mercadorias. Consequentemente, “para a apresentação do conceito de valor,
parece ser completamente irrelevante se os valores são expressos como preços
monetários e se a troca é mediada pelo dinheiro ou não” (BACKHAUS, 1997,
p. 95). Assim, ainda que os adeptos da teoria da “produção simples de
mercadorias” façam uso de conceitos dialéticos, Backhaus não nisso mais
do que uma mera “construção verbalmente dialética” (BACKHAUS, 1997, p.
97) que substitui a derivação conceitual do dinheiro por uma hipótese histórica
acerca de seu surgimento.
Daí sua insistência na tese de que o material histórico poderia ser
compreendido e ordenado pela lógica. Mas não só, já que o autor chega a dizer
que “se as interpretações de Engels fossem seguidas, as montanhas da dialética
de Marx teriam dado à luz a nada mais do que um rato” (BACKHAUS, 1997, p.
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120
112 destaque meu)
14
. Portanto, não chega a ser surpreendente a suspeita
levantada por Backhaus de que Engels possivelmente não tenha compreendido
adequadamente o sentido da exposição dialética marxiana das categorias da
crítica da economia política (BACKHAUS, 1997, p. 113).
No entanto, o que realmente chama a atenção é a mudança de postura
observada na Terceira parte de suas reflexões acerca da alegada “necessidade
urgente” de reconstrução da teoria marxiana do valor. Aqui Backhaus informa
ao leitor que tomou conhecimento de algumas passagens de Marx e Engels que
não se enquadravam nem lógica, nem historicamente, o que trouxe uma vez
mais a problemática da primazia de uma ou outra abordagem (BACKHAUS,
1997, p. 131). Diferentemente de momentos anteriores, agora Backhaus admite
que existe “uma incerteza da parte de Marx sobre a origem e validade dos
termos que ele usa”. Consequentemente, seria necessário “rever
fundamentalmente o conceito de ‘reconstrução’ subjacente às duas primeiras
partes dos Materiais” (BACKHAUS, 1997, p. 132 – destaque meu).
Isso significa que há uma alteração na “imputação” dos chamados erros
de interpretação. Se antes Backhaus advogava pela existência de uma leitura
correta da obra marxiana, algo que seria obtido pela reconstrução lógica da
apresentação categorial, agora é o próprio estatuto da crítica da economia
política que é questionado. Uma vez constatada uma “certa incerteza” em Marx
ou seja, a não clareza quanto ao caráter lógico ou histórico de determinadas
passagens , então os equívocos interpretativos têm origem no próprio Marx:
[À] luz das passagens anteriormente ignoradas no texto, esta
interpretação lógica revelou-se uma simplificação injustificável
do problema da apresentação /.../. O conteúdo teórico crítico e
monetário forma apenas um componente da teoria do valor de
Marx, de modo que a peculiaridade problemática dessa teoria do
valor é compreendida quando se mantém um olho no
componente oposto, sua intenção histórico-lógica. Apenas o
reconhecimento de certas ambiguidades [Zweideutigkeiten]
transmite uma imagem adequada da teoria marxiana do valor
(BACKHAUS, 1997, p. 133 destaque meu).
Note-se bem: aquilo que constituía a forma de descobrimento do
discurso correto e coerente de Marx aparece agora como uma “simplificação
injustificável”. Mais que isso, que Backhaus também aponta a necessidade
de se reconhecerem as “ambiguidades”
15
de Marx. Ora, as consequências desse
tipo de posicionamento afetam profundamente o conteúdo das Partes I e II dos
Materiais, algo que não passa despercebido pelo próprio autor.
14
Backhaus faz referência aqui à expressão de Horácio: parturiente montes, nascetur mus,
isto é, “a montanha pariu um rato”, utilizada para descrever situações em que o resultado
esperado é decepcionante frente à expectativa criada.
15
É importante não confundir a tese das “ambiguidades” (Backhaus) com a tese das
“ambivalências” (Heinrich).
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Com isso se compreende o argumento de que a interpretação lógica
poderia negar a interpretação histórica, mas que esta também poderia negar
aquela. Assim, o impasse entre esses dois modelos interpretativos deveria ser
entendido “como uma indicação de que o problema metodologicamente tão
importante da interpretação ‘lógica’ e ‘histórica’ foi resolvido de forma instável
pelo próprio Marx(BACKHAUS, 1997, p. 136 – destaque meu). Isso significa
uma mudança radical de postura frente às primeiras considerações
apresentadas nas páginas anteriores, o que pode ser observável pela própria
advertência feita por Backhaus: se a interpretação lógica de O capital ignorasse
as referidas “ambiguidades”, ela correria o risco de se tornar uma “nova
ortodoxia”, um “novo dogmatismo de uma filologia marxiana” em que o texto
marxiano seria considerado “sacrossanto” (BACKHAUS, 1997, p. 138).
Como se vê, o canto do cisne da tentativa de reconstrução filológica
constitui um verdadeiro réquiem para a distinção entre “lógico” ou “histórico”
como chave de leitura da crítica da economia política. Consequentemente,
percebe-se como Engels já não é mais o “rato”, ao mesmo tempo em que Marx
não aparece como a “montanha”. Tal como destacado por Backhaus, “o
próprio texto marxiano motivos para argumentar com Marx contra
qualquer interpretação marxista e, finalmente, também com Marx contra
Marx” (BACKHAUS, 1997, p. 139 – destaque meu).
Se assim for e isto é fundamental para a problemática construída ao
longo deste artigo , então cai por terra a possibilidade de toda e qualquer
reconstrução da forma-valor e sua verve anti-Engels, algo que Backhaus
também admite. Primeiramente, salientando que o principal problema em
Marx já não seria o da “variabilidade” e dos “erros de exposição”, mas a
manifestação destes como “problemas objetivos insuficientemente resolvidos,
defeitos da análise material” (BACKHAUS, 1997, p. 144). E, em segundo lugar,
sustentando que Marx se viu incapaz de articular de modo suficientemente
claro e distinto sua própria descoberta por meio dos conceitos econômico-
filosóficos por ele utilizados, os quais pertenciam a diferentes modelos
teóricos” (BACKHAUS, 1997, p. 144).
Diante dessas novas reflexões, quais seriam as consequências desse giro
compreensivo para o embate entre Marx e Engels? Se a expectativa inicial
acreditava poder desvendar um discurso correto e coerente da obra marxiana
a partir dessas determinações formais, seria o reconhecimento da importância
da leitura histórica um aceite da historização da forma-valor? Seria correto, tal
como postula Engels, considerar que “a lei do valor vigorou por um período de
cinco a sete milênios” (MEGA, II, 14, p. 333 – destaque meu)?
Em hipótese alguma. A contribuição da leitura “lógica” está justamente
na crítica à tese da “produção simples de mercadorias”, revelando com isso o
amálgama existente entre valor, forma-valor e dinheiro no capitalismo.
Mesmo Blackledge concorda com os críticos dentre os quais se destacam,
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além de Backhaus, Arthur e Heinrich –, afirmando que Engels “entendeu
muito mal a teoria do valor de Marx de uma forma que teve implicações
teóricas e políticas profundamente deletérias para o marxismo do século XX”
(BLACKLEDGE, 2019, p. 166).
Ainda assim, é indisputável a limitação e a reavaliação do projeto
originário de Backhaus. Se a análise da forma-valor continua fundamental, ela
perde o estatuto de centro de gravidade a partir do qual todas as questões
subjacentes à crítica da economia política poderiam ser resolvidas. Por essa
razão, Backhaus agora admite que o próprio Marx mescla análises lógicas e
históricas. Portanto, “esses novos problemas [referentes à contribuição dos
estudos históricos CMB] estão em condição de relativizar a reconstrução
‘lógica’ da teoria do valor, transformando-a em uma interpretação”
(BACKHAUS, 1997, p. 155 destaque no original). Neste movimento da
“reconstrução” à “interpretação” , Backhaus chega mesmo a dizer, em uma
nota de rodapé particularmente importante, que suas reflexões de 1969
quando destacava a “necessidade urgente de reconstruir por inteiro a teoria do
valor” (BACKHAUS, 1997, p. 42) nada mais seriam do que a manifestação de
uma “pretensão ingênua” (BACKHAUS, 1997, p. 220, n. 32 – destaque meu).
De todo modo, diante da própria mudança de postura de Backhaus, a
Quarta parte dos Materiais tenta desvendar a possível conexão entre as
leituras lógicas e históricas. Aqui entra em cena um exame minucioso não
das edições de O capital, mas também dos Grundrisse e de Para a crítica da
economia política. Se o “Rascunho” de 1857-8 e a primeira edição (1867) de O
capital jogariam a favor de uma interpretação lógica, o prefácio do texto de
1859 e a segunda edição (1872) de O capital encampariam uma interpretação
histórica. Assim, essa análise teria como condão provar que “em Marx e Engels
o ‘lógico’ e o ‘histórico’ se combinam de diferentes maneiras” (BACKHAUS,
1997, p. 229). Essa “combinação”, no entanto, nada diz acerca da pergunta:
como se relacionam o lógico e o histórico na exposição categorial dialética?
Backhaus não consegue encaminhar uma resposta satisfatória a essa
questão, mesmo após percorrer inúmeros textos de Marx e Engels. Ele até
considera a hipótese de que a história não seria uma mera “ilustração” do
desenvolvimento categorial dialético, mas uma “prova” deste, para logo então
descartar essa possibilidade (BACKHAUS, 1997, pp. 258-9). Não por acaso,
após idas e vindas, Backhaus observa a conexão entre “lógica” e “história”
como um problema irresolúvel da construção marxiana da teoria do valor”,
em que as distintas versões deixadas por Marx manifestariam sempre novas
tentativas de estabelecer alguma relação lógico-histórica (BACKHAUS, 1997,
p. 297 destaque meu). Aparentemente, então, o projeto inicial de reconstruir
a teoria marxiana do valor pela correta interpretação da forma-valor
desemboca num beco sem saída. Tendo reconhecido a importância da análise
da forma-valor para uma crítica das teorias pré-monetárias do valor, a
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discussão sobre a conexão entre crítica da economia política e teoria da
sociedade tão cara a Backhaus em seus primeiros escritos parece ter seu
desenvolvimento interrompido.
Ocorre que as coisas não são tão simples. De fato, Backhaus termina
suas reflexões salientando como as críticas de Marx a Smith a respeito da
confusão entre desenvolvimento categorial e histórico podem ser
direcionadas ao próprio Marx, de tal modo que a construção de uma teoria
social a partir deste resta profundamente prejudicada. Mas o último parágrafo
da Parte IV também esboça uma saída. Diante de todas as reflexões que
marcam o percurso dos Materiais para uma reconstrução da teoria marxiana
do valor, notadamente a reconsideração dos estudos históricos, Backhaus
agora diz: “isto implica a necessidade de uma reconstrução crítica
(BACKHAUS, 1997, p. 297 destaque meu). Mas qual seria o sentido desta
nova reconstrução?
Somente uma frase a mais é apresentada por Backhaus até o término do
livro, onde se lê: “isso só pode significar que a teoria de Marx é ‘decomposta e
recomposta em uma nova forma para que possa assim atingir o fim que ela
mesma se pôs’” (BACKHAUS, 1997, p. 297). Assim, essa nova reconstrução
crítica implicaria desmontar e refazer a crítica da economia política, não mais
a partir de uma crítica imanente tal como desenvolvida pela apresentação
categorial das determinações formais do modo de produção capitalista , mas
a partir de uma aproximação à intersubjetividade como critério normativo.
Isso porque o trecho citado por Backhaus “desmontada e refeita em uma
nova forma para melhor atingir o objetivo que estabeleceu para si mesma”
vem de Para a reconstrução do materialismo histórico, escrito por Jrgen
Habermas
16
em 1976 (BACKHAUS, 1997, p. 298).
Ora, os impasses decorrentes da tentativa de Backhaus de reconstruir a
análise da forma-valor parecem constituir uma espécie de “Cavalo de Tróia” do
chamado “giro antiprodutivista da teoria social” (GONÇALVES, 2014),
caracterizado sobretudo pelo retorno do idealismo. Por isso mesmo, é
fundamental apontar os dois pontos principais que constituem o principal
legado da reflexão iniciada pelo aluno de Adorno. O primeiro tem como base
as duas primeiras partes dos Materiais, intimamente associadas à ênfase na
conexão interna entre a teoria do valor e a teoria do dinheiro. Isso significa a
compreensão da crítica da economia política como uma crítica das teorias pré-
monetárias do valor, sejam elas marxistas ou não. O segundo ponto, por sua
16
Como destaca Habermas já no início de suas reflexões: “a falta de clareza imperou desde o
início sobre os fundamentos normativos da teoria social de Marx /.../. As melodias do
socialismo ético foram tocadas sem êxito até o fim: uma ética filosófica que não se limita a
enunciados metaéticos pode encontrar lugar ainda hoje se conseguir reconstruir os
pressupostos e procedimentos comunicativos universais de justificação de normas e valores
(HABERMAS, 2016, p. 28 destaque meu).
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vez, decorre da guinada compreensiva presente nas duas últimas partes dos
Materiais. Se a análise da forma-valor, apesar de permanecer fundamental, já
não pode ser vista como o centro a partir do qual gira uma reconstrução da
obra marxiana, isso significa que ela mesma constitui somente um nível de
abstração da crítica da economia política, distinto, por exemplo, do estudo
histórico de uma sociedade capitalista em particular.
Consequentemente, a possibilidade de uma saída normativa uma
abertura posta pelo próprio Backhaus, ainda que ele mesmo não a siga está
longe de ser uma necessidade. Pelo contrário, não se trata aqui de desmontar
a crítica da economia política em virtude do “problema insolúvel” acerca da
relação entre o lógico e o histórico, mas de delimitar seus respectivos âmbitos
de problematização e sua conexão em uma ciência integrada da reprodução
social capitalista. Nesse sentido, a análise da forma-valor e seu
desenvolvimento conceitual até as formas mais concretas podem ser
compreendidos como manifestação da crítica da economia política em sua
“média ideal” (MEGA, II. 4.2, p. 853), tal como colocado por Marx no Livro
III
17
.
Mas não só. Como o próprio Marx destacava nos Grundrisse, “o nosso
método indica os pontos onde a análise histórica tem de ser introduzida”
(MEGA, II. 1.2, p. 369). No entanto, não se trata apenas de uma indicação,
que no Urtext Marx faz uma advertência decisiva, e ainda hoje pouco
reconhecida: “a forma dialética de apresentação é correta se conhece seus
limites(MEGA, II. 2, p. 91 destaque meu). Mais do que uma separação entre
leituras lógica ou histórica , aqui se manifesta uma distinção referente aos
distintos níveis de abstração que atravessam uma teoria crítica da
sociabilização capitalista. No entanto, isso não significa que não existam
dificuldades “históricas” no próprio Marx, notadamente no âmbito de sua
análise do dinheiro, tema que, como destacado, orientou grande parte das
críticas destinadas a Engels.
3. Engels com Marx: aprofundando a temática dos níveis de
abstração
Uma dificuldade considerável atravessa O capital, qual seja, a
fundamentação do sistema monetário em uma mercadoria que seria dinheiro
17
Em Resultados do processo imediato de produção texto que originalmente seria a “ponte”
entre o Livro I e II , Marx também qualifica sua abordagem como “pura”. Ao discutir a relação
entre fluidez do capital e versatilidade do trabalho um axioma da economia política clássica
–, Marx salienta: “a fim de apresentar as leis da economia política na sua pureza, é feita
abstração destas fricções, tal como na mecânica pura é feita abstração de fricções particulares
que têm de ser ultrapassadas em cada caso particular da sua aplicação” (MEGA, II. 4.1, p. 88
destaque meu).
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[Geldware]
18
: “a dificuldade não está em compreender o que é mercadoria,
mas em descobrir como, por que e por quais meios a mercadoria é dinheiro”
(MEGA, II. 6, p. 120). Diante da queda de Bretton Woods, que pôs fim ao ouro
como lastro do dólar, isto é, fazendo com que o sistema monetário não
dependesse mais de uma mercadoria, o que fazer com a premissa acima
destacada? Seria possível encontrar outra fundamentação para o sistema
monetário que não seja pressupondo historicamente uma mercadoria-
dinheiro como base de seu desenvolvimento conceitual?
Aqui é interessante notar como no Urtext encontra-se outra delimitação
acerca da fundamentação do dinheiro:
O processo de produção burguesa apreende primeiro a circulação do
metal como um órgão tradicional acabado, que se transforma
gradualmente, mas que retém sempre a sua construção básica. A
questão, portanto, do porquê o ouro e a prata servem como material
do dinheiro ao invés de outras mercadorias, vai além dos limites do
sistema burguês. (MEGA, II. 2, p. 39)
Diferentemente do argumento sustentado em sua principal obra, nesse
momento Marx explicitamente se move pela narrativa dos “limites” do sistema
burguês. Ora, não parece ser trivial que o dinheiro deva ser uma mercadoria
X, e não Y, algo que Marx procurou destrinchar ao longo dos anos. Ainda que
a partir da segunda edição de O capital se encontre a referida identificação
entre dinheiro e mercadoria, é importante notar um registro distinto dessa
questão tanto em Para a crítica da economia política como na primeira edição
de O capital. A diferença na abordagem está relacionada a uma determinação
formal importante para a teoria monetária do valor, e posteriormente
abandonada por Marx: a sugestiva “forma genérica” [Gattungsform].
Em se tratando do texto de 1859, em particular no que se refere à análise
do dinheiro, Marx sustenta:
Contrariamente às mercadorias que apenas representam a
existência independente do valor de troca, o trabalho social geral, a
riqueza abstrata, o ouro é a existência material da riqueza abstrata
/.../. O ouro é a riqueza universal como indivíduo. (MEGA, II. 2, p.
188 destaque no original)
Se o “ouro é a riqueza universal como indivíduo”, então o dinheiro não
é apenas um termo genérico abstrato, mas também isto é, ao mesmo tempo
18
Esta não é a única questão problemática envolvendo o dinheiro na crítica da economia
política, algo relacionado à tese de Gerhard Göhler acerca da “redução dialética” (GÖHLER,
1980, p. 160). Em Para a crítica da economia política e na primeira edição de O capital, a
forma-dinheiro não é desenvolvida a partir da análise da forma-valor, mas surge como
resultado do processo de troca, exposto no segundo capítulo, um nível de abstração distinto
daqueles a relação de troca e a relação de valor entre mercadorias tratados no primeiro
capítulo do Livro I. Daí a presença da “forma IV” na edição de 1867 (MEGA, II. 5, p. 43),
abandonada nas edições posteriores.
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a materialização da riqueza abstrata, um elemento concreto que está no
mesmo plano das mercadorias individuais. Trata-se, assim, de um universal
que efetivamente também é individual, algo que Marx havia captado na
primeira edição alede O capital em uma passagem igualmente excluída
das edições posteriores com a sugestiva analogia:
Na forma III, que é a segunda forma invertida e que está, portanto,
contida nela, a tela aparece, pelo contrário, como a forma genérica
[Gattungsform] do equivalente para todas as outras mercadorias. É
como se ao lado e além dos leões, tigres, lebres e todos os animais
efetivamente reais, que agrupados constituem as diferentes raças,
espécies, subespécies, famílias etc. do reino animal, existisse
também o animal, a encarnação individual de todo o reino animal.
Tal indivíduo que compreende em si mesmo todas as espécies
efetivamente existentes da mesma coisa é um universal, como o
animal, Deus e assim por diante. (MEGA, II. 5, p. 37 destaques no
original)
19
Essa “forma genérica” é sem dúvida uma abstração real, cujo sentido
permite uma melhor compreensão da problemática assertiva de que o dinheiro
deve ser uma mercadoria. Note-se que esse “animal” não necessita ser, por
exemplo, o leão, ou o tigre. O que está em jogo não é a identidade entre o
gênero e as espécies, mas que aquele exista ao lado destes.
Ou seja, a possibilidade de que ambos coincidam, algo que Marx
tomava como sendo necessário. Tal como destacado por Heinrich,
Marx inicia a análise da forma de valor com o fato de que o valor de
uma mercadoria é expresso no valor de outra mercadoria. O que ele
demonstra não é que seja necessário que uma segunda mercadoria
sirva como expressão de valor para a primeira, mas que esta
expressão de valor é incompleta e deficiente, se estiver ligada a uma
única mercadoria aleatória. Por meio da expressão de valor de uma
mercadoria em outra mercadoria, Marx demonstra quais
requisitos uma forma de valor deve atender para expressar
adequadamente seu valor. No entanto, que o portador desta forma
de valor seja ele próprio uma mercadoria não foi evidenciado, mas
assumido desde o início. Embora a análise da forma de valor forneça
as determinações formais do equivalente geral, ela não fornece um
argumento sobre se o equivalente geral deve ou não ser uma
mercadoria. (HEINRICH, 2017, p. 233 destaques no original)
No entanto, no âmbito da crítica da economia política, isto é, tendo em
vista seu nível de abstração na referida média ideal”, a posição dessa
identidade ultrapassa os mencionados limites da apresentação dialética.
19
Um raciocínio próximo se manifestava nos Grundrisse, momento em que Marx faz um
paralelo com a álgebra: “por exemplo, a, b, c são números; números em geral; contudo, o
números inteiros em relação à a/b, b/c, c/b, c/a, b/a etc., que, todavia, os pressupõem como
elementos gerais” (MEGA, II. 1.2, p. 359).
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Mesmo nos Grundrisse, ainda que sem se referir à “forma genérica”, Marx
também salienta:
A mercadoria deve ser trocada por uma terceira coisa que, por sua
vez, não seja ela mesma uma mercadoria particular, mas o símbolo
da mercadoria como mercadoria, o próprio valor de troca da
mercadoria; portanto, que represente, digamos, o tempo de
trabalho enquanto tal, digamos, um pedaço de papel ou de couro
que represente uma parte alíquota de tempo de trabalho. (MEGA,
II. 1.1, p. 79 destaques no original)
Não por acaso, a ideia de que o dinheiro existe “ao lado” das
mercadorias era aqui percebida. Por isso é dito que o valor de troca se
apresenta no dinheiro não só como “mercadoria universal ao lado de todas as
mercadorias particulares”, mas “simultaneamente /.../ como mercadoria
particular (dado que possui uma existência particular) ao lado de todas as
outras mercadorias”. Consequentemente, “aqui não se fala ainda, de modo
algum, do dinheiro fixado na substância de um determinado produto”
(MEGA, II. 1.1, p. 84 destaques no original).
Por mais que nos Grundrisse essa percepção do dinheiro não seja
desenvolvida a partir da análise da forma-valor, é importante atentar que
qualquer dinheiro (quer se trate de mercadorias com valor
intrínseco ou não) é apenas um representante do valor como tal e,
portanto, um selo de valor. Apenas neste sentido geral é que a
categoria de dinheiro é o resultado do exame do processo de troca
(HEINRICH, 2017, p. 236 destaque no original).
Note-se que a ideia de representação está intimamente associada à
análise formal. É ela que desenvolve a determinação decisiva do dinheiro, qual
seja, a forma de equivalente geral. Por isso, aqui se percebe como a abordagem
marxiana se distancia tanto do nominalismo como do metalismo. Nestes, a
controvérsia gira em torno da pergunta “o que transforma o dinheiro em
dinheiro, uma convenção social ou um valor intrínseco da coisa?”. Marx, por
sua vez, aponta a necessidade de uma expressão independente de valor, uma
manifestação que é tanto exteriorização quanto fetichização.
Naturalmente, o desenvolvimento histórico subjacente a essa
necessidade “materializa” de distintos modos a referida expressão
independente de valor. Assim, é importante atentar para a delimitação desse
objeto no estudo do dinheiro tal como ele se apresenta na circulação simples
de mercadorias, essa “esfera abstrata” (MEGA, II. 2, p. 68) da sociedade
burguesa. No entanto, aqui a pergunta acerca da necessidade do dinheiro está
localizada em um vel distinto de apresentação quando comparada à
pergunta pela natureza do objeto que figura como dinheiro (HEINRICH, 2017,
p. 237).
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Como se vê, nesta ocasião entra em cena uma vez mais a importante
ressalva de que “a forma dialética de apresentação é correta se conhecer seus
limites(MEGA, II. 2, p. 91 destaque meu), ainda que o próprio Marx os
ultrapasse em determinados momentos. Por isso, é a desatenção a essas
fronteiras que faz com que o desenvolvimento categorial do dinheiro fique por
vezes refém da determinação histórica, tal como manifestado na análise do
“dinheiro mundial”:
Ao deixar a esfera da circulação interna, o dinheiro se despe de suas
formas locais de padrão de medida dos preços, de moeda, de moeda
simbólica e de símbolo de valor, e retorna à sua forma original de
barra de metal precioso. (MEGA, II. 6, p. 162 destaque meu)
Mas é justamente o reconhecimento de que também em Marx o “lógico”
é atravessado pelo “histórico” que permite questionar uma vez mais sua
contraposição a Engels. É certo que existem diferenças fundamentais. Diante
da sequência mercadoria-dinheiro-capital exposta no Livro I
20
, pode-se dizer
que Engels a aborda em termos históricos e, assim, mescla a dialética
conceitual com a dialética histórica (ARTHUR, 1996, p. 183). Isso, no entanto,
omite um texto sumariamente ignorado pela literatura, qual seja, a sinopse”
escrita por Engels em 1868, em que a necessidade do dinheiro é explicitamente
desdobrada da análise da mercadoria, sem nenhum argumento histórico
(MEW, 16, p. 247).
Marx, por sua vez, inicialmente a compreende como manifestação da
circulação simples de mercadorias, isto é, como forma de aparecimento da
totalidade da sociabilização capitalista, “esfera abstrata do processo global de
produção burguês” (MEGA, II. 2, p. 68)
21
. Mas aqui também não se pode
esquecer que o próprio Marx colocou a questão do valor igualmente em termos
históricos no manuscrito do Livro III: “é bastante apropriado /.../ considerar
os valores das mercadorias não do ponto de vista teórico, mas também do
histórico, como o prius dos preços de produção” (MEGA, II. 4.2, p. 252
destaque no original).
Essas referências reforçam a mencionada suspeita de que a negação de
Engels serve como instrumento de bloqueio à problematização de que que a
doutrina de Marx seria “omnipotente porque ela é verdadeira. É completa e
harmoniosa, dando aos homens uma visão integral do mundo” (LW, 19, pp. 3-
4 destaque meu), tal como interpretado por Lênin em As três fontes e as três
20
A delimitação é importante, já que a avaliação deve ter seu tom calibrado quando se leva em
consideração a análise feita em Para a crítica da economia política. Como destaca Arthur, no
final da década de 1950 “Marx não estava de forma alguma claro sobre a relação entre lógica e
história; a questão tem muito a sensação de uma discussão exploratória” (ARTHUR, 1996, p.
185).
21
Note-se que a circulação simples de mercadorias, apesar de fundamental, é exposta
detalhadamente o que inclui reflexões sobre sua “lei de apropriação” nos Grundrisse e,
sobretudo, no Urtext.
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partes constitutivas do marxismo (1913). Na verdade, há entre Marx e Engels
mais aproximações ainda que estas demonstrem problemas comuns do
que franca contraposição, tal como sugerido nas reflexões iniciais de Backhaus.
Por isso mesmo, é particularmente importante a sistematização
apresentada por Kozo Uno na década de 1960, ao apresentar três níveis de
apreensão da sociedade capitalista: (i) a teoria pura [genriron]; (ii) a teoria
dos estágios históricos capitalistas [dankaïron]; e (iii) a análise empírica da
atual situação da economia política em um estado qualquer [genjô-bunseki]
(UNO, 2016, p. 236), sendo que “a lógica interna do capitalismo pode ser
rigorosamente compreendida pela teoria pura econômica, que por sua vez é
distinta da teoria das etapas do desenvolvimento capitalista” (UNO, 2016, pp.
31-2)
22
.
A partir dessa perspectiva, a reflexão de Engels acerca da transformação
histórica pode ser compreendida como a tentativa de uma “teoria da história
econômica” (HOLLANDER, 2011, p. 111), algo que se situa no nível do
dankaïron. Isso fica particularmente claro quando se atenta para a carta que
Engels enviou a Werner Sombart (11 de março de 1895). Após salientar a
importância da análise de Marx sobre as leis econômicas e a equalização da
taxa de lucro, Engels pergunta: “mas como esse processo de equalização
realmente se deu? Esse é um ponto muito interessante sobre o qual o próprio
Marx tem pouco a dizer” (MEW, 39, p. 428). E, logo após, pondera:
Todo o modo de pensar de Marx não é tanto uma doutrina, mas um
método. Ele fornece, não tanto dogmas prontos, mas auxílios para
uma investigação mais profunda e o método para tal investigação.
Aqui, então, está um trabalho a ser feito que o próprio Marx não
tentou em seu primeiro rascunho. /.../ Uma exposição efetivamente
histórica deste processo que, embora reconhecidamente exigindo
uma grande quantidade de pesquisa, oferece a perspectiva de
resultados correspondentemente gratificantes seria um
complemento muito valioso para o Capital. (MEW, 39, pp. 428-9
destaque no original)
23
22
Ainda assim, é importante reconhecer que a fundamental problemática dos níveis de
abstração foi possivelmente colocada pela primeira vez por Lênin, em um artigo de 1899. No
texto Novamente sobre o problema da teoria da realização, o líder da Revolução Russa
destaca a diferença entre o “ideal do capitalismo” e sua “realidade efetiva” (LW, 4, p. 77). O
“novamente” deve-se ao fato de Lenin ter abordado a temática em Nota sobre o problema
da teoria dos mercados: a propósito da polêmica entre o Sr. Tugan-Baranowski e o Sr.
Bulgakow, escrito no final de 1898 e publicado em janeiro de 1899 (LW 4, p. 45).
23
É digno de nota que na mesma carta Engels restringe o alcance da “lei do valor”. Se em Lei
do valor e taxa de lucro a “produção simples de mercadorias” tem uma validade milenar, aqui
Engels diz o seguinte: “eu deveria delimitar [o conceito de valor CMB] historicamente,
confinando-o expressamente à fase econômica na qual, por si, tem e poderia ter havido
qualquer questão de valor até agora às formas sociais em que existe troca de mercadorias e
produção de mercadorias; o comunismo primitivo não conhecia nenhum valor” (MEW, 39, p.
427).
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130
Como se vê, o “historicismo” de Engels não é uma substituição ou
inversão de O capital, mas um complemento que pode ter a crítica da
economia política em sua “média ideal como seu pressuposto. Essa
possiblidade, no entanto, depende cada vez mais de pesquisas que consigam
amalgamar o ímpeto filológico da “nova leitura de Marx” à “nova leitura de
Engels”.
Considerações finais
Em uma carta a Maxim Maximowitsch Kowalewski (abril de 1879),
Marx não deixou de destacar a importância de “distinguir o que um
determinado autor realmente diz do que ele acredita dizer” (MEW, 34, p. 506).
Apesar da seletividade de grande parte da literatura marxista na aplicação
dessa regra, as recentes discussões acerca das ambivalências do aparato
conceitual marxiano prometem bons frutos. Ainda que “poucos marxistas
estejam prontos para aceitar a possibilidade de tais contradições nos escritos
econômicos maduros de Marx” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS,
2013, p. 35), esta é uma abertura particularmente importante. No presente
artigo, procurei demonstrar como ela pode ser produtivamente movimentada
contra as narrativas que sustentam a existência de uma contraposição entre
Marx e Engels.
Após inicialmente apresentar uma retomada dos argumentos que
caracterizam o “historicismo” de Engels notadamente, a resenha de Para a
crítica da economia política e o texto Lei do valor e taxa de lucro , destaquei
tanto a influência que o conceito de “produção simples de mercadorias” teve
enquanto chave de leitura da crítica da economia política, como sua
cristalização enquanto “leitura histórica” de O capital, principal adversária da
“leitura lógica”. Logo depois, recuperei a argumentação desenvolvida por
Backhaus, principalmente no que se refere à alegada “necessidade urgente” de
reconstrução da teoria marxiana do valor. Tendo apresentado os argumentos
desenvolvidos em Materiais para a reconstrução da teoria marxiana do
valor, enfatizei a mudança de postura no tocante à contribuição de Engels para
a crítica da economia política. Nesse contexto, se a análise da forma-valor
não podia ser vista como o eixo a partir do qual giraria a reconstrução da obra
marxiana, isso significou que ela mesma estava restrita a um nível de abstração
específico a análise na “média ideal” ou genriron , não se confundindo com
o estudo histórico da sociedade capitalista situado no nível do dankaïron.
Esses argumentos serviram como base para aprofundar os desafios da
distinção lógico/histórico no próprio Marx. Após discutir um dos aspectos
problemáticos na exposição do dinheiro no Livro I, demonstrei como a
“presença” historicista de Engels no próprio Marx aponta para a necessidade
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de incorporação dos estudos dos níveis de abstração que atravessam a
sociabilização capitalista como objeto de pesquisa. Nesse sentido, a tão
criticada “transformação histórica” engelsiana aparece como um
desenvolvimento analítico que não apenas difere da “pureza” subjacente à
dialética categorial como a pressupõe. Assim, o reconhecimento dos “limites”
da “média ideal”, de um lado, e a construção de um amálgama conceitual que
vincule os níveis macro, meso e micro, do outro, ainda constituem um dos
principais desafios para a construção de uma teoria marxista da sociedade.
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Como citar:
BARREIRA, César Mortari. Engels contra Marx? Do lógico/histórico aos níveis
de abstração. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas,
Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 110-33, jul./dez. 2020.
Data do envio: 31 ago. 2020
Data do aceite: 2 nov. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.583
Felipe Ramos Musetti
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A questão do fim do estado: confluências e divergências nas
análises de Marx e Engels
Felipe Ramos Musetti
1
Resumo: O presente artigo pretende analisar o modo como Marx e Engels
abordam, criticamente, a relação entre estado moderno e sociedade civil-
burguesa, procurando enfocar na particularidade do tratamento de cada
autor à questão do papel do estado na transição da sociedade burguesa para a
sociedade comunista.
Palavras-chave: Marx; Engels; estado; política; Comuna; revolução.
The question of the end of the state: confluences and divergences
in the analysis of Marx and Engels
Abstract: This article analyzes Marx and Engelss critical approach of the
relationship between modern state and civil-bourgeois society, seeking to
focus on the particularity of each author's treatment of the role of the state in
the transition from bourgeois to communist society.
Keywords: Marx; Engels; state; politics; Commune; revolution.
Introdução
Na história do pensamento ocidental, dificilmente se encontra uma
parceria tão profícua como a formada por Marx e Engels. Como se sabe, a
amizade entre ambos constituiu uma relação colaborativa que se estendeu
para muito além do campo intelectual. Na vasta correspondência trocada
entre eles, pode-se, facilmente, verificar a profundidade do laço afetivo que os
unia, o que remete à pertinência das observações de Paul Lafargue, genro de
Marx, quando salientou que Dinheiro, saber tudo era dividido entre eles
/.../ Engels estendeu sua amizade a toda a família de Marx: tratava como suas
as filhas de Marx, e elas o consideravam um segundo pai. Essa amizade
perdurou no além-túmulo (apud HUNT, 2010, p. 138). Não menos
1
Doutorando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail:
felipermusetti@gmail.com.
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135
pertinente é a última parte do relato de Lafargue, no sentido de estender a
amizade de ambos para o período posterior à morte de Marx. Bastaria
mencionar que, não fosse o decisivo trabalho editorial de Friedrich Engels,
jamais viriam a blico os Livros II e III de O capital, uma vez que Marx não
conseguiu concluir a redação dos manuscritos em vida
2
. No Prefácio ao
Anti-hring, Engels relata como, após a morte de Marx, postergou uma
série de empreendimentos teóricos pessoais para ocupar-se da tarefa de
editar os trabalhos inconclusos do Mouro (cf. ENGELS, 2015b).
Considerada a dedicação de Engels para levar adiante projetos
inconclusos do falecido amigo, tampouco é negligenciável que algumas das
mais lebres obras que conformam o pensamento marxiano foram escritas
em quatro mãos A ideologia alemã e o Manifesto comunista , de modo
que a identificação da contribuição particular de cada autor nem sempre é
facilmente reconhecida. Ademais, mister ressaltar a contribuição oculta de
Engels nos textos de autoria exclusiva de Marx, o que pode ser verificado, por
exemplo, nas cartas endereçadas ao Mouro sobre o golpe de Luís Bonaparte,
na França de 1848, as quais tiveram passagens decisivas incorporadas na
letra de O 18 de brumário de Luís Bonaparte (cf. ENGELS, 2010, p. 503).
Inversamente, sabe-se que o Anti-Dühring, de autoria exclusiva de Engels,
foi lido para Marx antes de ser publicado
3
.
A intensa troca de ideias e afetos que marca a relação de amizade entre
Marx e Engels delimita o cenário das dificuldades na análise do pensamento
independente de cada autor. Ciente de tais dificuldades, o presente texto
pretende acompanhar os principais movimentos da crítica de Marx e Engels à
política, de modo a apontar os pontos fundamentais de convergência, bem
como algumas diferenças significativas evidenciadas na comparação de textos
independentes de ambos. A amplitude da temática, bem como sua
complexidade, impede o tratamento exaustivo, neste espaço, das obras de
Marx e Engels, razão pela qual a proposta deste artigo se restringe a salientar,
no itinerário de desenvolvimento do pensamento de ambos, os principais
movimentos argumentativos que versam, especificamente, sobre a questão do
fim do estado
4
. Nesse percurso, procurar-se-á considerar o processo de
desenvolvimento da crítica dos autores ao estado e à política até a redação do
2
Sobre a discussão sobre o impacto das intervenções de Engels para clarear ou obscurecer as
posições marxianas originais, cf. Krätke (2015).
3
O Anti-Dühring contou, inclusive, com a contribuição de Marx na redação de algumas
páginas da série de artigos que se centravam na economia política (NETTO in ENGELS,
2015b, p. 14), editadas por Engels antes da publicação.
4
Com isso, não se negligencia a importância da crítica econômica, sobretudo tal como
exposta em O capital, para a formação do pensamento político de Marx e Engels. Ademais, é
possível supor, sem temer grandes equívocos, que escritos como A guerra civil na França e
Crítica do programa de Gotha incorporam, dentro dos limites de seus enfoques temáticos,
os principais resultados da crítica econômica desenvolvida, anteriormente, em O capital.
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Manifesto comunista, no qual se apresenta, pela primeira vez, um programa
de transição, que atribui função específica ao estado na dissolução da
sociedade burguesa e edificação da sociedade comunista. Em seguida,
analisa-se como o desenvolvimento contraditório do capitalismo que sucedeu
às revoluções de 1848, bem como a experiência da Comuna de Paris,
impactam a apreensão marxiana da questão do fim do estado, produzindo
uma concepção para a qual o proletariado, uma vez conquistado o poder
político, não pode utilizar o estado para os seus próprios fins. Observar-se,
por fim, como tal concepção não é compartilhada, em sua integralidade, por
Friedrich Engels, que se pronuncia em sentido contrário em alguns
momentos decisivos de sua obra própria. Assim, espera-se esclarecer certa
ambiguidade presente no trato de Engels à questão do estado moderno, sem,
com isso, diminuir o peso e a importância desse autor apaixonante para a
formulação da crítica à sociedade civil-burguesa.
A crítica da política no processo formativo de Marx e Engels
No que se refere ao pensamento marxiano, importa anotar que sua
particularidade se define pela posição crítica em relação à filosofia hegeliana,
cujos primeiros traços aparecem em Crítica da Filosofia do direito de Hegel,
redigida em 1843. Os chamados Manuscritos de Kreuznach
5
marcam o
momento no qual Marx submete à crítica rigorosa a principal referência
filosófica que orientava o seu pensamento a filosofia de Hegel ,
consubstanciando os primeiros passos de uma posição teórica própria. A
gênese da crítica marxiana da política coincide, assim, com o início da
formação do pensamento original de Marx, cuja especificidade se define na
rejeição radical à razão especulativa sob forte influência de Feuerbach ,
bem como à concepção positiva do estado, secular na história da filosofia
política, no sentido de considerá-lo instância realizadora do interesse geral
da sociedade
6
.
5
Esclarece-se que a obra intitulada Crítica da Filosofia do direito de Hegel é composta de
manuscritos inacabados, que nunca foram publicados durante a vida do autor. Também é
conhecida como “Manuscritos de Kreuznach”, em referência à cidade onde o texto foi
produzido.
6
O percurso analítico adotado neste artigo que passa pela formação da especificidade da
crítica marxiana, em 1843, para acompanhar seus desdobramentos até a redação da Crítica
do programa de Gotha, em 1875 revela que, sobretudo no que se refere à crítica marxiana
do estado e da política, uma continuidade evidente no desenvolvimento do pensamento
marxiano ao longo de todo o período, não obstante a ocorrência de aprimoramentos
decisivos. A esse respeito, o equívoco de clivar o desenvolvimento da crítica marxiana pela
oposição entre o jovem Marx e o Marx da maturidade foi devidamente enfatizado em
Chasin (2009), juntamente com a importância crucial da Crítica da Filosofia do direito de
Hegel (1843) no itinerário de formação do pensamento próprio de Marx.
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O contexto de tal ruptura no itinerário formativo de Marx é descrito
pelo próprio autor. No conhecido Prefácio de 1857 à obra Contribuições à
crítica da economia política, Marx relata que, nos anos de 1842-3, na
qualidade de redator da Rheinische Zeitung (Gazeta Renana), viu-se, pela
primeira vez, na embaraçosa obrigação de opinar sobre os chamados
interesses materiais, razão pela qual aproveita sua saída do periódico, em
1843, para deixar a cena pública e se recolher ao gabinete de estudos. Ainda
segundo o filósofo alemão, o primeiro trabalho empreendido para resolver as
dúvidas que o assaltavam foi uma revisão crítica da Filosofia do direito, de
Hegel, trabalho cuja introdução apareceu nos Anais franco-alemães,
publicados em Paris em 1844 (MARX, 2008, pp. 46-7). Importa reter,
motivado pelo embaraço surgido nas primeiras tentativas de discorrer sobre
os interesses materiais, o primeiro acerto de contas com a filosofia
hegeliana resulta em significativa mudança no pensamento marxiano,
sobremaneira no que se refere a sua compreensão do estado político.
Tal mudança é sintetizada pelo próprio Marx, que, discorrendo sobre
os resultados de sua revisão crítica da filosofia hegeliana do direito, assevera
que:
as relações jurídicas, bem como as formas de estado, não podem
ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do
espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas
condições materiais de existência, em suas totalidades, condições
estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século 18,
compreendia sob o nome de “sociedade civil”. Cheguei também à
conclusão de que a anatomia da sociedade burguesa deve ser
procurada na economia política (MARX, 2008, p. 47).
Tal conclusão, atingida com a redação dos Manuscritos de
Kreuznach, é aprofundada nos textos subsequentes, sobretudo em Sobre A
questão judaica e Crítica da Filosofia do direito de Hegel Introdução,
publicados em 1844, nos Anais franco-alemães. Ambos reforçam a
concepção negativa da política desenvolvida por Marx, estruturada pela
identificação da relação orgânica entre sociedade burguesa e estado moderno.
Em contraste radical com a pretensão de aperfeiçoar o aparato estatal
conforme às exigências da Razão presente nos artigos da Gazeta Renana
7
,
7
De modo a explicitar a redação dos “Manuscritos de Kreuznach” como ponto de virada no
processo formativo de Marx, registre-se, em poucas linhas, a transformação da concepção
marxiana do estado. Em artigo intitulado “Debates sobre a lei referente ao furto de madeira”,
publicado na Gazeta Renana, em 1842, evidencia-se no pensamento de Marx a defesa do
estado racional no período que antecede à mencionada revisão crítica da filosofia hegeliana.
Ao analisar projeto de lei penal que criminalizava a coleta de madeira pelos camponeses, a
argumentação marxiana, de modo geral, critica a irracionalidade do dispositivo legal, que
sacrifica o seu “dever universal de dizer a verdade” para garantir os interesses particulares
dos proprietários de terra. Em outros termos, convencido que a criminalização da prática
camponesa pressupunha a sobreposição dos interesses mesquinhos dos proprietários
fundiários em detrimento do interesse geral da sociedade, Marx identifica o problema na
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Marx argumenta que o estado atinge sua verdadeira forma definitiva com a
dissolução da sociedade feudal e a formação da sociedade burguesa, de modo
que, longe de anular as diferenças fáticas produzidas pelo movimento da
propriedade privada, o estado existe tão somente sob o pressuposto delas
(MARX, 2010, p. 40). Em outras palavras, atentando para a contradição
entre o estado e seus pressupostos gerais (MARX, 2010, p. 38), a crítica
marxiana observa que o estado político pleno corresponde à comunidade
ilusória exigida pela sociedade burguesa e seus elementos, à medida que o
desenvolvimento da propriedade privada moderna corresponde à plena
separação entre o indivíduo que se expressa, concretamente, na figura do
bourgeois egoísta e a sua vida genérica, que se expressa no estado moderno
como soberania fictícia e universalidade irreal. Nesse sentido, Marx
observa a correlação entre a realização plena do estado e a emancipação do
espírito egoísta da sociedade burguesa frente às amarras políticas que
obstavam seu movimento (cf. MARX, 2010, p. 52). Frise-se que, para Marx,
longe de solucionar os conflitos estruturantes da sociedade burguesa, o
estado é produzido por eles, os tem como pressuposto, razão pela qual a
superação da propriedade privada implica, igualmente, a superação do estado
(cf. MARX, 2010, p. 54).
Ademais, em Crítica da Filosofia do direito de Hegel Introdução, o
proletariado é identificado como a classe que, como produto autêntico da
sociedade burguesa, concentra nas suas próprias condições de vida a
necessidade da emancipação humana, de modo que, quando anuncia a
dissolução da ordem social existente apenas declara o mistério da sua
própria existência, uma vez que é a efetiva dissolução desta ordem (MARX,
2006b, p. 156). A efetiva necessidade de superação da ordem burguesa se
expressa, concretamente, na existência do proletariado, que, ao exigir a
negação da propriedade privada, apenas estabelece como princípio da
sociedade o que a sociedade elevara a princípio do proletariado e que este
involuntariamente encarna enquanto resultado negativo da sociedade
(MARX, 2006b, p. 156). Uma vez que encarna, involuntariamente, a negação
da propriedade privada, o proletariado torna-se o coração da emancipação
humana, que supera o estado e a política.
Para os objetivos deste artigo, a arquitetônica da crítica marxiana da
imperfeição do estado, que se deixa corromper ao degenerar sua universalidade em prol de
interesses privados. Segundo o autor, “o estado assegurará o interesse privado dos senhores
na medida em que este puder ser garantido por meio de leis racionais e medidas preventivas
racionais” (MARX, 2017, pp. 119-20). Não se trata de questionar a contradição entre estado e
seus pressupostos gerais, mas a irracionalidade de leis e medidas preventivas que
corrompem a universalidade do estado. Para uma análise detida da configuração do
pensamento marxiano no período da Gazeta Renana, cf. Eidt (1998).
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política, ainda que exposta em termos gerais
8
, é importante para indicar o
peso da crítica à política no pensamento de Marx no período de 1843-4,
momento de sua chegada à Paris, onde, no verão de 1844, após encontro
marcado por bebedeiras no Café de la Régence, iniciaria sua parceria com
Friedrich Engels. Filho de industrial, Engels optou por passar um tempo na
cidade francesa quando retornava de Manchester a sua casa, em Barmen,
após período trabalhando na empresa do pai (cf. HUNT, 2010, pp. 91-133).
Trazia consigo o material que comporia sua célebre obra, A situação da
classe trabalhadora na Inglaterra, que seria redigida em sua cidade natal e
publicada em 1845. Engels narra que, quando visitei Marx em Paris no verão
de 1844, nossa concordância cabal em todos os campos teóricos ficou
evidente e nosso trabalho em conjunto data dessa época (apud HUNT, 2010,
pp. 137-8). Tal relato é, de certo modo, corroborado pela descrição de Marx,
no Prefácio de 1859, onde afirma que Friedrich Engels /.../ chegou por outro
caminho /.../ ao mesmo resultado que eu (MARX, 2008, pp. 48-9). Como se
sabe, o encontro de ambos em Paris resultou em dias intensos de debates e na
primeira obra conjunta A sagrada família , para a qual Engels, antes de
seguir viagem e retornar a Barmen, deixou sua importante contribuição.
Obra destinada ao acerto de contas com a filosofia especulativa dos
irmãos Bauer, A sagrada família retoma temas centrais dos textos anteriores
de Marx, sobretudo no que se refere à relação entre estado e sociedade civil-
burguesa, desenvolvida em Sobre A questão judaica. Os autores asseveram
que:
assim como o estado antigo tinha como fundamento natural a
escravidão, o estado moderno tem como base natural a sociedade
burguesa e o homem da sociedade burguesa, quer dizer, o homem
independente, entrelaçado com o homem apenas pelo vínculo do
interesse privado e da necessidade natural inconsciente, o escravo
do trabalho lucrativo e da necessidade egoísta, tanto da própria
quanto da alheia (MARX; ENGELS, 2011, p. 132).
De modo a reter o essencial, salienta-se a concepção, compartilhada
por Marx e Engels, da relação de complementariedade entre, de um lado, o
estado moderno como comunidade abstrata e, de outro, a sociedade
burguesa, estruturada de tal modo que a vinculação dos homens entre si é
estabelecida pelo interesse privado e pela necessidade natural
inconsciente. O texto dA sagrada família explicita a compreensão dos
autores acerca da gênese do estado, compreendido como mediação alienada
entre indivíduo e comunidade exigida pela lógica contraditória da sociedade
burguesa, que dissolve os privilégios medievais e, com isso, constitui uma
coletividade exclusiva mais reduzida, pois não vincula os homens entre si
8
Realizou-se uma alise detida da crítica marxiana da política no período de 1843-4 em
Musetti (2014, pp. 43-63). O caráter negativo da politicidade em Marx é rigorosamente
desenvolvido em Chasin (2000).
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nem sequer através da aparência de um nexo geral. A forma acabada do
estado moderno corresponde, assim, à consolidação da moderna propriedade
privada e da forma de intercâmbio a ela correspondente, marcada pela
guerra de todos os indivíduos, uns contra os outros, apenas delimitados
entre si por sua individualidade (MARX; ENGELS, 2011, p. 135). Nesse
sentido a afirmação dos autores, segundo a qual a antítese entre o estado
representativo democrático e a sociedade burguesa é a culminação da
antítese clássica entre a comunidade pública e a escravidão (MARX;
ENGELS, 2011, p. 135). Diante do círculo vicioso que abrange estado
moderno e propriedade privada como dimensões solidárias entre si, Marx e
Engels defendem a superação da sociedade burguesa pelo proletariado, que
o pode libertar-se a si mesmo sem suprassumir suas próprias condições
de vida, tampouco suprassumir suas próprias condições de vida sem
suprassumir todas as condições de vida desumana da sociedade atual, que se
resumem em sua própria situação (MARX; ENGELS, 2011, p. 49). O
proletariado encarna, pois, a possibilidade histórica objetiva de superação da
sociedade burguesa e do estado:
O proletariado executa a sentença que a propriedade privada
pronuncia sobre si mesma ao engendrar o proletariado, do mesmo
modo que executa a sentença que o trabalho assalariado pronuncia
sobre si mesmo ao engendrar a riqueza alheia e a miséria própria.
/.../ Não se trata do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do
que o proletariado inteiro pode imaginar de quando em vez como
sua meta. Trata-se do que o proletariado é e do que ele se
obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ser. Sua meta
e sua ação histórica se acham clara e irrevogavelmente
predeterminadas por sua própria situação de vida e por toda a
organização da sociedade burguesa atual. (MARX; ENGELS, 2011,
pp. 48-9)
É certo que o fragmento textual destinado à questão do estado em A
sagrada família foi redigido por Marx, que, conforme relata Engels, estendeu
significativamente o tamanho da obra original após seu retorno a Barmen (cf.
HUNT, 2010, p. 140). Não obstante, dificilmente se poderia contestar a
concordância dos autores acerca dos principais pontos da crítica da política,
reforçada pelo autor de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra nas
poucas passagens da obra dedicadas ao tema. Engels explicita a compreensão
da relação orgânica entre estado e sociedade burguesa, ao aduzir, em estilo
próprio, sobre o papel do estado na luta entre burguesia e proletariado, a
qual, segundo o autor, é constitutiva da contradão entre capital e trabalho
que estrutura a sociedade burguesa
9
. De acordo com a letra de A situação da
classe trabalhadora na Inglaterra:
9
Demonstrando precoce compreensão da contradição fundamental que estrutura a
sociedade burguesa, Engels se expressa da seguinte forma: “a relação entre o industrial e o
operário não é uma relação humana: é uma relação puramente econômica o industrial é o
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O proletariado é desprovido de tudo entregue a si mesmo, não
sobreviveria um único dia, porque a burguesia se arrogou o
monopólio de todos os meios de subsistência, no sentido mais
amplo da expressão. Aquilo de que o proletariado necessita, só
pode obtê-lo dessa burguesia, cujo monopólio é protegido pela
força do estado. Eis por que o proletariado, de direito e de fato, é
escravo da burguesia, que dispõe sobre ele de um poder de vida e
de morte. Ela lhe oferece os meios de subsistência, mas em troca de
um equivalente seu trabalho; e chega ao ponto de lhe dar a
aparência de agir segundo sua própria vontade, de estabelecer
livremente com ela um contrato, sem constrangimentos, como se o
proletariado fosse o autor de seu pprio destino. Bela liberdade,
que deixa ao proletariado, como alternativa à aceitação das
condições impostas pela burguesia, a chance de morrer de fome, de
frio, de deitar-se nu e dormir como um animal selvagem.
(ENGELS, 2015, p. 118)
Conforme argumentação engelsiana, o estado garante, no plano do
direito, a escravidão do proletariado pela burguesia no plano fático. Mais
adiante, discorrendo sobre a livre concorrência e o regime do laissez-faire e
laissez-aller, Engels salienta que, embora seu ideal seria operar numa
ordem social privada de estado, na qual cada um pudesse explorar livremente
o próximo, a sociedade burguesa não pode dispensar o estado, que não
teria como conter o proletariado sem ele (ENGELS, 2015, p. 309). Com
efeito, ainda que não se encontre, nas primeiras obras de Engels, uma
extensa reflexão acerca do estado moderno (sobretudo quando se compara à
importância do tema nas primeiras formulações de Marx), as referências
contidas em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, ainda que
poucas e dispersas ao longo do texto, indicam a concordância com os termos
fundamentais da crítica à política que desenvolveria junto com Marx. Tal
concordância é registrada nA ideologia alemã, redigida em quatro mãos
durante a temporada que Marx e Engels residiram em Bruxelas, em 1846,
bem como no Manifesto comunista, de 1848.
Em A ideologia alemã, os autores voltam a investigar a gênese do
estado, identificando sua origem no surgimento da divisão do trabalho, das
classes sociais e da propriedade privada, cujo desenvolvimento separa os
interesses particulares dos interesses gerais e produz a necessidade histórica
da política como comunidade ilusória. Para Marx e Engels:
é precisamente dessa contradição do interesse particular com o
interesse coletivo que o interesse coletivo assume, como estado,
uma forma autônoma, separada dos reais interesses singulares e
gerais e, ao mesmo tempo, como comunidade ilusória (MARX;
ENGELS, 2009, p. 37).
Ao demarcar a gênese da política na divisão do trabalho, os autores
consolidam a concepção da sociedade burguesa como ponto de maturação da
separação entre indivíduo e vida genérica, na qual, por meio da emancipação
‘capital’, o operário é o ‘trabalho’” (ENGELS, 2015, p. 308).
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da propriedade privada em relação à comunidade, o estado se tornou uma
existência particular ao lado e fora da sociedade civil (MARX; ENGELS,
2009, p. 75). A estrutura argumentativa desenvolvida por Marx, desde 1843,
é mantida, no sentido de considerar o estado como produto da
autonomização da vida social dos indivíduos, que passa a se contrapor a eles
como um poder estranho. Não obstante, conforme salientam os autores dA
ideologia alemã, tal autonomia do estado, como poder estranho diante da
sociedade civil, é apenas relativa, à medida que, por meio dele, a burguesia dá
a seu interesse dio uma forma geral (MARX; ENGELS, 2009, p. 75). De
acordo com Marx e Engels, por ser a forma na qual os indivíduos de uma
classe dominante fazem valer seus interesses comuns, o estado sintetiza a
sociedade civil inteira de uma época, de tal modo que todas as instituições
coletivas são mediadas pelo estado e adquirem por meio dele uma forma
política (MARX; ENGELS, 2009, p. 76). Em suma, como produto da
alienação entre indivíduo e comunidade que encontra forma maturada na
moderna sociedade burguesa, o estado se autonomiza frente à sociedade civil,
tornando-se poder independente que, não obstante, cumpre a função de
preservar o interesse médio da burguesia, ao fazer a ingerência e a
contenção práticas dos conflitos que ameaçam o conteúdo particular a
propriedade privada que o estado generaliza como interesse geral
10
.
Ademais, ao mediar todas as instituições coletivas da sociedade, o estado
atribui-lhes forma política, que coincide, nesse sentido, com a comunidade
ilusória conformada no movimento de generalização do interesse particular
da burguesia como interesse geral. A contradição que fundamenta o estado
constitui determinada forma política, que, por sua vez, não se esgota no
estado, haja vista que, enquanto a forma política perpassa todas as
instituições coletivas mediadas pelo estado, este concentra função específica
de ingerência e contenção das práticas que ameaçam os interesses materiais
que visa a preservar.
Em A ideologia alemã, Marx e Engels desdobram argumentação que
sublinha a necessidade de superação da sociedade burguesa e, com ela, o
estado e a política, concebidos negativamente, como instâncias não
resolutivas dos conflitos sociais
11
. Conforme salientam os autores, a liberdade
pessoal se torna possível apenas em comunidade, ou, mais especificamente,
na substituição da comunidade aparente [scheinbare Gemeinschaft]
10
Registre-se a complementariedade, em A ideologia alemã, das duas dimensões do estado
moderno na sociedade burguesa: de um lado, poder autônomo, impessoal, que cumpre a
função de preservar os fundamentos da sociedade burguesa; de outro, instrumento de
dominação de classe, à medida que a preservação da propriedade privada pressupõe, de
modo geral, a manutenção da dominação da burguesia sobre o proletariado.
11
Segundo Marx e Engels, “todas as lutas no interior do estado /.../ não são mais do que
formas ilusórias em geral, a forma ilusória da comunidade nas quais são travadas as lutas
reais entre as diferentes classes” (MARX; ENGELS, 2009, p. 37).
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encarnada pelo estado pela comunidade real [wirklichen Gemeinschaft], que
subordina o desenvolvimento humano a um plano geral de indivíduos
livremente associados (MARX; ENGELS, 2009, p. 69) e, por conseguinte,
prescinde do estado e da política. Nos termos dA ideologia alemã, na
comunidade real, os indivíduos obtêm simultaneamente sua liberdade na e
por meio da associação (MARX; ENGELS, 2009, p. 64), diferentemente dos
sucedâneos da comunidade existentes até aqui, no estado etc., nas quais a
liberdade pessoal existia apenas para os indivíduos desenvolvidos nas
condições da classe dominante e somente na medida em que eram indivíduos
dessa classe (MARX; ENGELS, 2009, p. 64).
Não obstante, uma vez que a luta pela conquista da emancipação
humana tem como ponto de partida a sociedade burguesa e o estado
moderno que lhe corresponde , segue-se que:
toda a classe que almeje à dominação, ainda que sua dominação,
como é o caso do proletariado, exija a superação de toda a antiga
forma de sociedade e a superação da dominação em geral, deve
primeiramente conquistar o poder político, para apresentar seu
interesse como interesse geral, o que ela no primeiro instante se
obrigada a fazer (MARX; ENGELS, 2009, p. 37).
Com efeito, Marx e Engels desenvolvem, em A ideologia alemã, uma
crítica ao estado e à política, na qual convivem a concepção radicalmente
negativa da política, de um lado, e a necessidade da conquista do poder
político como momento incontornável da revolução social, de outro. Em
outros termos, mantendo posição que apreende a política como instância
não-resolutiva e, nesse sentido, reforçando a impossibilidade de solucionar
os conflitos da sociedade civil por meio da política , os autores destacam que
o proletariado é obrigado a conquistar o poder político, haja vista que o
terreno objetivo no qual sua luta é travada pressue a sociedade burguesa e
o estado moderno, que atribui forma política a todas as instituições coletivas.
Destarte, a ação prática do proletariado, direcionada para efetivar seu
interesse objetivo em superar a sociedade burguesa e, com ela, toda a
dominação de classes, deve englobar a necessidade de conquista do poder
político, sem perder de vista, contudo, o caráter alienante do estado e da
política, que se autonomizam frente à sociedade civil para cumprir sua função
de permitir o livre movimento da propriedade privada.
No Manifesto comunista, Marx e Engels apresentam uma primeira
formulação programática para realizar a conquista do poder político pelo
proletariado. Os autores insistem que o poder político é o poder organizado
de uma classe para a opressão da outra (MARX; ENGELS, 2011b, p. 59), mas
reconhecem que o primeiro passo da transformação da sociedade burguesa
pressupõe a elevação do proletariado a classe dominante, para que sua
supremacia política possa servir para arrancar pouco a pouco todo o capital
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da burguesia. Tal movimento, identificado pelos autores do Manifesto como
a conquista da democracia (MARX; ENGELS, 2011b, p. 58), deveria
conduzir o processo de dissolução das relações que estruturam a dominação
de classe, de tal modo que, quando, no curso do desenvolvimento,
desaparecerem os antagonismos de classes e toda a produção for concentrada
nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá o seu caráter
político (MARX; ENGELS, 2011b, p. 59).
Note-se que os lineamentos básicos da crítica de Marx e Engels à
política permanecem inalterados, sobretudo no que se refere ao vínculo
indissocvel entre o caráter político do poder público e os antagonismos de
classes que atravessam a sociedade burguesa. Os autores o explícitos ao
afirmarem que, uma vez superadas as classes sociais pela associação livre dos
indivíduos, desaparece a necessidade do poder político. Sem embargo,
durante o complexo itinerário de transformação da sociedade existente, a
conquista do poder político é necessária para encaminhar as práticas
dissolutivas, através das quais a classe trabalhadora destrói violentamente
as antigas relações de produção, bem como as condições de existência dos
antagonismos entre as classes. Por conseguinte, destrói também as classes
em geral e, com isso, sua própria dominação como classe (MARX; ENGELS,
2011b, p. 59).
O ponto a ser salientado, de modo a concluir este tópico, se refere ao
modo como Marx e Engels concebem, concretamente, a conquista do poder
político pela classe trabalhadora. Para os autores do Manifesto, a supremacia
política do proletariado será utilizada para centralizar todos os instrumentos
de produção nas mãos do estado, de modo a aumentar o mais rapidamente
possível o total das forças produtivas (MARX; ENGELS, 2011b, p. 58). A
organização do proletariado como classe dominante é identificada, nesse
passo, à posse do poder estatal e na sua utilização para controlar os
instrumentos de produção, de modo a implementar intervenções despóticas
no direito de propriedade e nas relações de produção burguesas, bem como
outras medidas que no desenrolar do movimento ultrapassarão a si mesmas
e serão indispensáveis para transformar radicalmente todo o modo de
produção (MARX; ENGELS, 2011b, p. 58). A importância da utilização do
poder estatal na transição para a organização dos indivíduos livremente
associados transparece nas dez medidas revolucionárias que encerram a
seção II do Manifesto, à medida que ao menos três delas se referem,
explicitamente, a um papel ativo do estado na transformação das relações
burguesas. Nesse ponto, o texto do Manifesto comunista se aproxima da letra
engelsiana em Princípios sicos do comunismo, redigido em 1847, onde se
que o domínio político do proletariado estabelece uma Constituição
democrática do estado, bem como implementa medidas que atacam
diretamente a propriedade privada e asseguram a existência do
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proletariado (ENGELS, 2020). Após elencar 12 medidas, no interior das
quais se destaca o papel ativo do estado na transformação da sociedade,
Engels aduz que o proletariado ver-se obrigado a seguir sempre para
diante, a concentrar cada vez mais nas mãos do estado todo o capital, toda a
agricultura, toda a indústria, todo o transporte, toda a troca (ENGELS,
2020). Não se defende, pois, apenas o uso do estado, mas sua intensificação
durante a transição para a sociedade comunista.
Não se pretende, neste espaço, analisar detidamente as diferenças
entre os termos de Princípios básicos do comunismo e a redação final do
Manifesto comunista. A comparação entre ambos interessa apenas para
indicar que a defesa de uma centralização dos instrumentos de produção nas
mãos do estado, tal como exposta no Manifesto, pode ter sofrido uma
influência decisiva da pena engelsiana, haja vista que o autor se manifesta em
termos muito similares em texto próprio, redigido poucos meses antes.
Contudo, tal indício não tem força conclusiva e tampouco deve obscurecer o
fato de que a autoria do Manifesto é tributada a ambos, o que invalida
qualquer insinuação de discordância por parte de Marx frente às proposições
enunciadas no texto. Registre-se, assim, que no início de 1848, Marx e Engels
identificavam a conquista do poder político pelo proletariado com a posse e
uso do aparato estatal no processo transformativo que conduz à dissolução da
sociedade burguesa e à edificação de uma associação na qual o livre
desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de
todos (MARX; ENGELS, 2011b, p. 59). Observa-se, a seguir, a importância
do ano de 1848 para o desenvolvimento da sociedade burguesa, bem como
para a concepção de Marx e Engels acerca do estado.
A forma política enfim encontrada: o desmonte do estado na
análise marxiana da Comuna de Paris
Quase simultaneamente à publicação do Manifesto comunista, as
revoluções de 1848, denominadas por Hobsbawm como Primavera dos
povos (cf. HOBSBAWM, 2009, pp. 27-50), eclodiram e se espalharam por
vários territórios do continente europeu. Compreendendo, rapidamente, a
importância dos processos revolucionários de 1848 na nese da moderna
sociabilidade do capital (cf. CLAUDÍN, 1985), Marx e Engels procuraram
intervir ativamente nos rumos da realidade alemã, ao mesmo tempo em que
acompanharam com especial atenção os desdobramentos dos levantes em
Paris, tornada, mais uma vez, epicentro do terremoto revolucionário que
assolou a Europa. Na Alemanha, os amigos centraram seus esforços na
atuação jornalística da Nova Gazeta Renana, na qual publicaram diversos
artigos contendo análises rigorosas da luta de classes em 1848 (cf. COTRIM,
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2007). Vale anotar que Engels participou ativamente nas barricadas de
Elberfeld, bem como de alguns combates na campanha de Baden, dos quais
destaca-se a batalha da fortaleza de Rastatt, relatada em Die deutsche
Reichsverfassungskampagne (cf. ENGELS, 2020b). Não obstante, após o
desfecho conservador dos levantes populares na França e na Alemanha,
ambos buscaram exílio na Inglaterra, onde acabaram por se estabelecer nas
décadas seguintes.
Não como negligenciar o impacto das revoluções de 1848 nas obras
de Marx e Engels, sobretudo no que se refere à reflexão de ambos acerca da
relação entre política e luta de classes. o conhecidas as importantes
análises de Marx acerca da particularidade francesa, registradas em A luta de
classes na França e O 18 de brumário de Luís Bonaparte, bem como a
extensa reflexão engelsiana sobre o bonapartismo aleo, desenvolvida,
sobretudo, em Sobre o papel da violência na história
12
. Para os objetivos
desta seção, importa acompanhar, em linhas gerais, o desenvolvimento
independente do pensamento político marxiano, procurando observar como
o desenvolvimento do problema acerca do uso revolucionário do estado é
impactado pela experiência de 1848 e pela Comuna de Paris
13
.
Frise-se, de início, que as análises desenvolvidas em A luta de classes
na França e O 18 de brumário de Luís Bonaparte são retomadas no texto
sobre a Comuna de Paris, também de sua autoria, intitulado A guerra civil na
12
Sobre a extensa reflexão engelsiana sobre o bonapartismo, cf. Assunção (2015).
13
Reitera-se que, tendo em vista o escopo do presente artigo, não seria possível expor, com o
rigor necessário, os desenvolvimentos decisivos da crítica marxiana da economia política que
culminariam na publicação de O capital, em 1867. Ainda que a repercussão de tais
desenvolvimentos na maturação da crítica marxiana da política seja inegável, intenta-se
priorizar escritos nos quais se destaca o tema do uso revolucionário do estado, como A
guerra civil na França e Crítica do programa de Gotha. Vale registrar, tais textos foram
redigidos após a elaboração da crítica econômica madura de Marx e, nesse sentido,
incorporam os seus principais desdobramentos. Ademais, a continuidade da reflexão sobre
os processos revolucionários franceses compreendida, sobretudo, nas obras As lutas de
classe na França (1850), O 18 de brumário de Luís Bonaparte (1852) e A guerra civil na
França (1871) ao longo de todo o desenvolvimento do pensamento marxiano indica o
equívoco dos intérpretes que, ao exaltar os resultados da maturação da crítica econômica de
Marx em O capital, ofuscam os seus textos políticos de análise concreta da luta de classes.
Destarte, tais textos registram a relevância, na obra madura de Marx, de categorias como luta
de classes, interesse de classe, exploração, propriedade privada etc., sobretudo no que se
refere ao tema do estado. Nesse preciso sentido, poder-se-ia discordar de Moishe Postone,
quando, em sua argumentação, opõe ao que considera ser procedimento crítico do marxismo
tradicional a crítica da posição [standpoint] do trabalho, que entende a dominação do
capital essencialmente em termos de dominação de classe, enraizada na propriedade
privada dos meios de produção a sua crítica social do trabalho no capitalismo, que
caracteriza a forma de dominação mais fundamental da sociedade capitalista como uma
forma de dominação abstrata, impessoal, estrutural, que subjaz à dinâmica histórica do
capitalismo (POSTONE, 2006, p. 68). Não obstante os méritos da investigação do autor,
aponta-se que a análise detida de A guerra civil na França e Crítica do programa de Gotha
revelam que tais formas de crítica, distinguidas por Postone, são dimensões
complementares no interior da cientificidade marxiana.
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França. Tais escritos, embora destinados à análise de uma conjuntura
específica, apresentam desdobramentos decisivos para os principais
elementos da crítica marxiana da política, sobretudo no que se refere à
necessidade da conquista do poder político por parte do proletariado,
enfatizada em A ideologia alemã e no Manifesto comunista. Ademais,
permitem identificar indícios de uma importante mudança da concepção de
Marx sobre o papel do estado na luta do proletariado contra o capital, tal
como exposta no Manifesto comunista, redigido conjuntamente com Engels.
Em A guerra civil na França, Marx retoma reflexão acerca da gênese
do estado moderno, presente em seu pensamento desde sua Crítica da
Filosofia do direito de Hegel, redigida em 1843. Tal como esboçado nos
Manuscritos de Kreuznach, a crítica marxiana reconhece a origem do
estado moderno nos tempos da monarquia absoluta, quando serviu à
nascente sociedade da classe média como uma arma poderosa na luta contra
o feudalismo. Não obstante, coube à enorme vassoura da Revolução
Francesa do século XVIII a função de varrer todo tipo de restos medievais,
de modo a limpar o solo social dos últimos estorvos que se erguiam ante a
superestrutura do edifício do estado moderno (MARX, 2011b, p. 54). No
Primeiro rascunho que originou o texto final de A guerra civil na França,
Marx desdobra a argumentação ao aduzir que a Revolução Francesa de 1789,
com sua tarefa de fundar a unidade nacional (de criar uma nação),
consolida um processo iniciado pela monarquia absoluta: a centralização e
organização do poder do estado, de modo a expandir a circunferência e os
atributos do poder estatal, o número de seus instrumentos, sua
independência e seu poder sobrenatural sobre a sociedade real, poder que, de
fato, tomou o lugar do céu sobrenatural medieval e seus santos (MARX,
2011b, p. 125). Como resultado do movimento de formação do estado
moderno, todo interesse singular engendrado pelas relações entre grupos
sociais foi separado da própria sociedade, fixado e tornado independente dela
e a ela oposto na forma do interesse estatal (MARX, 2011b, pp. 125-6).
A continuidade com a reflexão desenvolvida no itinerário que culmina
em A ideologia alemã é evidente, no sentido de compreender o estado
moderno como produto da cisão entre interesse particular e interesse geral
consolidada pela Revolução Francesa. O ponto central da análise marxiana,
não obstante, consiste na notável mudança sofrida pelo caráter político do
estado, à medida que ganha forma a moderna luta de classes, a luta entre
capital e trabalho, cuja maturação se explicita nas revoluções de 1848.
Segundo Marx, ainda que o estado fora sempre o poder para a manutenção
da ordem, isto é, da ordem existente da sociedade e, portanto, da
subordinação e exploração da classe produtora pela classe apropriadora, ele
sofre uma marcante mudança quando a sociabilidade do capital deixa de ser
uma força revolucionária contra o feudalismo para atingir seu ponto de
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maturação. De um lado, à medida que a ordem do capital foi aceita como
uma necessidade incontroversa e incontestada, o poder estatal pôde
assumir um aspecto de imparcialidade (MARX, 2011b, p. 170),
naturalizando a moderna subordinação de classes como ordem incontestável
das coisas. De outro lado, com a entrada da própria sociedade em nova fase,
a fase da luta de classes, o poder estatal, como força pública organizada do
estado, desenvolve cada vez mais seu caráter de instrumento do despotismo
de classe, de engrenagem política voltada a perpetuar a escravização social
dos produtores da riqueza por seus apropriadores, do domínio econômico do
capital sobre o trabalho (MARX, 2011b, p. 170). Note-se que, tal como em A
ideologia alemã, o caráter de instrumento de classe do estado convive,
simultaneamente, com sua dimensão de poder impessoal do capital sobre o
trabalho, razão pela qual garante o domínio dos apropriadores mantendo a
aparência de imparcialidade
14
. Não obstante, os vínculos entre a comunidade
ilusória do estado e o movimento do capital são explicitados quando efetivada
a completa dissolução da sociabilidade feudal, que acaba por intensificar o
antagonismo entre capital e trabalho.
Embora gestada ao longo do itinerário histórico do I Império à
Monarquia de Julho, o marco de tal mudança significativa no caráter político
do estado é constituído pelas revoluções de 1848 na França, mais
especificamente pelo significado das jornadas de junho na luta do trabalho
contra o capital. Recorde-se que, conforme análise desenvolvida em A luta de
classes na França e O 18 de brumário de Luís Bonaparte, a Revolução de
Fevereiro, que derrubou a Monarquia de Julho e proclamou a República
com instituições sociais, configura a repetição farsesca da tragédia
encarnada pela Revolução Francesa de 1789, quando o triunfo da burguesia
sobre a monarquia absoluta dos Bourbon representou a vitória da sociedade
moderna em luta contra a sociedade feudal. Para Marx, o contraste entre
1789 e 1848 se define pela função que cada processo revolucionário
desempenha no processo de formação das bases estruturais da sociedade
burguesa: de um lado, a Revolução Francesa de 1789 expressou a potência
revolucionária da sociedade burguesa contra uma estrutura social
14
Mesmo sem poder desenvolver detalhadamente, poder-se-ia indagar sobre a pertinência da
reflexão de Michael Heinrich, ao sugerir que a crítica madura de Marx à economia política
problematiza uma suposta concepção instrumentalista de estado isto é, o estado como
meio de dominação de classe para priorizar uma análise do estado como um poder sem
sujeito, que opera para assegurar os fundamentos da sociedade capitalista. Sem descartar
completamente o caráter de classe do estado, Heinrich enfatiza que ele deve ser uma força
discreta, independente, à medida que tem que compelir todos os membros da sociedade a se
reconhecerem mutuamente como proprietários privados (HEINRICH,2012, pp. 199-218).
Ainda que não inteiramente equivocada, o limite da argumentação se encontra, justamente,
na oposição de duas dimensões do estado que, para a análise marxiana, sempre foram
complementares: de um lado, é expressão política do poder impessoal do capital, de outro,
instrumento da classe dominante para a manutenção de seu poder sobre as demais classes.
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predominantemente feudal, circunstâncias que permitiram uma coincidência
real e efetiva entre o interesse particular da burguesia em formação e o
interesse geral das demais classes exploradas; de outro lado, a Revolução de
Fevereiro realiza-se em contexto histórico marcado pela maturação do modo
de produção regido pelo capital, razão pela qual resultou na versão prosaica
da república burguesa, que sacrificou os interesses do proletariado que a
erigiu as ilusões sociais da Revolução de Fevereiro para garantir a
manutenção das relações de produção vigentes. O desfecho dos levantes
revolucionários no massacre dos insurgentes de junho explicita, de uma vez
por todas, o compromisso do estado com o despotismo do capital,
evidenciando que, na Europa, as questões em pauta iam além da alternativa
República ou Monarquia’” (MARX, 2011, p. 36).
Ao retomar a gênese do estado no itinerário das revoluções francesas,
a crítica marxiana atenta para o processo de maturação da relação-capital e
seu impacto na luta de classes, observando que a consolidão das modernas
relações de produção, após completa dissolução dos entulhos feudais,
repercutem na função conservadora que passa a ser desempenhada pela
burguesia e, consequentemente, pelo estado, mesmo na forma republicana. O
rápido desgaste do Governo Provisório erigido na Revolução de Fevereiro,
bem como seu desfecho no massacre das jornadas de junho, revelaram que a
República Social pretendida pelos trabalhadores era impossível nos marcos
do estado moderno, uma vez que este explicitara sua relação orgânica com o
movimento de reprodução do capital. Em outras palavras, evidenciava-se que
a melhoria das condições de vida do proletariado permaneceria uma utopia
dentro da república burguesa, uma utopia que se converteria em crime assim
que fizesse menção de se tornar realidade (MARX, 2012, p. 64). No Segundo
rascunho dA guerra civil na França, ao retomar a análise das revoluções de
1848 na França, Marx anota que, durante o período da República
Parlamentar, o poder estatal tornou-se, enfim, o confesso instrumento da
guerra, empregado pela classe apropriadora contra a massa produtora do
povo (MARX, 2011b, p. 171). Assim, ao derrotar a Monarquia de Julho e
proclamar a República, as jornadas de fevereiro de 1848 se inseriram no rol
das revoluções que apenas aperfeiçoaram a maquinaria estatal, em vez de se
livrar desse pesadelo sufocante (MARX, 2011b, p. 126). Diferentemente, nas
jornadas de junho, quando o proletariado fez do seu túmulo o berço da
república burguesa, obrigou-a simultaneamente a vir à frente em sua forma
pura, ou seja, como o estado cujo propósito confesso é eternizar o domínio do
capital, a escravidão do trabalho (MARX, 2012, p. 64).
A análise marxiana das jornadas parisienses de fevereiro e junho
explicita o significado das revoluções de 1848 na gênese do estado. Este tem o
seu caráter político transformado quando, por exigência das
transformações econômicas, deixa de ser arma poderosa da burguesia
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contra o feudalismo para explicitar-se como poder nacional do capital sobre
o trabalho e quina do despotismo de classe (MARX, 2011b, p. 55). Em
outras palavras, ao se firmar através de uma contrarrevolução do capital
contra o trabalho, a república burguesa despia-se das ilusões heroicas
cultivadas pela Revolução Francesa de 1789, quando os interesses da
burguesia revolucionária coincidiam, materialmente, com os interesses das
demais classes. Com efeito, os massacres de junho marcam a realização
prosaica da república burguesa e evidenciam a contradição fundamental do
estado moderno nos marcos da maturação do modo de produção do capital,
definida pelo movimento no qual a universalidade da forma republicana é
degenerada pelo seu compromisso com a manutenção da propriedade
privada, de tal modo que, no período de 1848 a 1851, a república francesa
gesta em seu seio a forma estatal que é sua própria negação, a ditadura
bonapartista. Em O 18 de brumário de Luís Bonaparte, observando o
recrudescimento político do estado francês na passagem da Reblica à
ditadura bonapartista, Marx é explícito ao afirmar que aquela república
nada perdeu além de sua aparência de respeitabilidade. A França atual estava
integralmente contida na república parlamentar. Bastava uma estocada de
baioneta para estourar a bolha e fazer com que o mostrengo saltasse aos
olhos (MARX, 2011, p. 138).
A análise marxiana do processo revolucionário francês de 1848 é
decisiva para delimitar a natureza do estado moderno no contexto de
maturação do modo de produção do capital. O desfecho, em 1851, pelo
retorno do estado ao domínio despudoradamente simples da espada e da
batina, revelou que a forma republicana se mantém apenas enquanto for
eficiente para conter os conflitos da sociedade civil e manter o bom
funcionamento das relações burguesas. O 18 de brumário mostra que,
quando a República se torna um obstáculo para o movimento do capital
(como ocorre nos desdobramentos de 1848), o estado acaba por explicitar,
politicamente, o despotismo de classe que impera nas relações sociais que lhe
servem de fundamento. Nesse sentido, o triunfo do bonapartismo na França,
em 1851, significa, para Marx, a vitória do poder sem fraseologia sobre o
poder da fraseologia (MARX, 2011, p. 139). O golpe de Luís Bonaparte, em
suma, mostrava, no plano do estado, o caráter despótico do domínio do
capital sobre o trabalho, no plano social.
Em O 18 de brumário, Marx anota que o governo do segundo
Bonaparte consuma independência do estado face à sociedade civil. Tal ideia
é retomada em A guerra civil na França, onde se que o estado parasita
recebeu seu último desenvolvimento apenas durante o II Império. Isso se
evidencia na própria mediocridade de Bonaparte: segundo Marx, o poder
governamental, com seu exército permanente, sua burocracia a dirigir tudo,
seu clero embrutecedor e seu servil tribunal hierárquico, crescera tão
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independente da própria sociedade que um aventureiro grotescamente
medíocre /.../ era o suficiente para governá-lo (MARX, 2011b, p. 126). Com
efeito, o II Império explicita a natureza do estado como expressão política do
poder impessoal do capital sobre o trabalho: com Luís Bonaparte, o poder
estatal humilhou sob seu jugo até mesmo os interesses das classes
dominantes, cuja farsa parlamentar ele substituiu por Corps gislatifs
autoeleitos e senados autopagos, sancionados em seu governo absoluto pelo
sufrágio universal, pela reconhecida necessidade de manter a ordem’”
(MARX, 2011b, p. 126). Em outros termos, o bonapartismo mostrava que a
função do estado em preservar o domínio da propriedade privada se impõe
independentemente de sua composição ou forma de governo, de modo a
transcender, inclusive, os interesses particulares das diferentes frações da
burguesia, que, sob o Segundo Império, perdem a participação política direta
no Parlamento e submetem-se à forma que finge ser o poder superior da
sociedade (MARX, 2011b, p. 127). Nesse sentido, ao apresentar-se como
representante de toda a sociedade em defesa da ordem e, concretamente,
produzir uma rápida centralização do capital pela expropriação da classe
média e pelo alargamento do abismo entre a classe capitalista e a classe
trabalhadora (MARX, 2011b, p. 171), o imperialismo de Luís Bonaparte se
constitui como a forma mais prostituída e, ao mesmo tempo, a forma
acabada do poder estatal, desenvolvido pela sociedade burguesa como meio
de sua própria emancipação do feudalismo e que a sociedade burguesa
madura acabou transformando em meio para a escravização do trabalho pelo
capital (MARX, 2011b, p. 56).
Importa anotar, não obstante, que, na condição de última e suprema
expressão do poder estatal, o II Império jamais foi concebido por Marx como
ponto de chegada definitivo das metamorfoses do estado no sentido de não
ser mais possível o retorno à forma republicana , mas como forma maturada
da relação entre estado e capital. Vale lembrar, a esse respeito, que as
análises marxianas do governo de Luís Bonaparte registradas em A guerra
civil na França foram redigidas após a sua derrocada na guerra franco-
prussiana, a qual resultou na captura do imperador francês e na proclamação
da república, novamente, em Paris, no dia 4 de setembro de 1870. Nesse
sentido, cabe cautela ao precisar o sentido do bonapartismo como último
desenvolvimento do estado na argumentação marxiana, de modo a afastar
interpretações apressadas e equivocadas, que insinuam um suposto otimismo
desacertado de Marx
15
. Em A guerra civil na França, o argumento marxiano
15
Nesse ponto específico, aponta-se a infelicidade da argumentação de száros, quando
discorre que “a avaliação otimista de Marx sobre a Comuna de Paris /.../ estava associada a
uma caracterização igualmente otimista do II Império bonapartista como ‘a última expressão
daquele poder de estado’, a última forma possível de domínio de classe [burguês]’ e o
último triunfo de um estado separado e independente da sociedade’” (MÉSZÁROS, 2007, p.
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é explícito no sentido de apresentar o II Império como a maturação da
relação orgânica entre estado e capital, que tem como consequência a
explicitação da função estatal como poder relativamente autônomo, voltado à
proteção das relações sociais burguesas. Em poucas palavras, com Luís
Bonaparte, o poder estatal aparece em sua forma acabada e mais prostituída,
em sua suprema e mais pérfida realidade (MARX, 2011b, p. 172). Nesse
preciso sentido o bonapartismo é a última forma de desenvolvimento do
estado.
Para Marx, a antítese direta do Império era a Comuna (MARX,
2011b, p. 56), na exata medida em que foi uma revolução não contra essa ou
aquela forma de poder estatal, seja ela legítima, constitucional, republicana
ou imperial (MARX, 2011b, p. 127). Enquanto o retorno da forma
republicana no dia 4 de setembro foi apenas a reivindicação da República
contra o grotesco aventureiro que a havia assassinado, a Comuna de Paris
mirou a reassunção, pelo povo e para o povo, de sua própria vida social,
razão pela qual, opondo-se à relação incestuosa entre estado e capital
explicitada no II Imrio, foi uma revolução contra o estado mesmo, este
aborto sobrenatural da sociedade (MARX, 2011b, p. 127). Discorrendo sobre
as metamorfoses do estado no desenvolvimento da sociedade burguesa, a
argumentação marxiana salienta que, embora se diferenciem na forma,
República e bonapartismo correspondem às lutas insignificantes entre as
formas executiva e parlamentar da dominação de classe, que se limitaram a
transferir o poder estatal de uma fração das classes dominantes para a
outra (MARX, 2011b, p. 127). A diferença radical da Comuna se constitui,
assim, no seu movimento de revolta contra ambas essas formas e, nesse
sentido, não contribui para o aperfeiçoamento do estado, mas para destruir
essa horrenda maquinaria da dominação de classe ela mesma (MARX,
2011b, p. 127). Com efeito, para Marx, a Comuna foi a direta negação do
bonapartismo e, por conseguinte, o início da Revolução Social do século
XIX (MARX, 2011b, p. 127).
Registre-se, desse modo, que a análise marxiana em A guerra civil na
França concebe o bonapartismo como a forma acabada do estado moderno
no sentido de explicitar sua dimensão de poder nacional do capital sobre o
trabalho , cuja negação é a Comuna, que era essencialmente um governo
da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a classe
apropriadora, a forma política enfim descoberta para se levar a efeito a
emancipação econômica do trabalho (MARX, 2011b, p. 59). Salientado o
núcleo da argumentação de Marx, importa observar a importância dA guerra
civil na França no desenvolvimento da crítica marxiana da política, tendo em
342). Para uma crítica dessa posição de Mészáros, que culmina por sustentar a necessidade
do estado operário na transição para a sociedade comunista, cf. Cotrim (2007).
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vista, sobretudo, a importância dos processos revolucionários franceses na
formação do estado moderno. Ao se referir à Comuna como forma política
enfim descoberta”, Marx demarca sua diferença em relação à experiência
fracassada da República Social pretendida pelos trabalhadores em fevereiro
de 1848, a qual evidenciou o caráter ilusório da reivindicação de uma forma
estatal republicana como solução para atenuar as contradições oriundas da
relação capital-trabalho. Conforme a argumentação marxiana, a “Reblica
Social” conquistada pelos trabalhadores em fevereiro de 1848 “não
expressava senão a vaga aspiração de uma república que viesse não para
suprimir a forma monárquica da dominação de classe, mas a dominação de
classe ela mesma”. Enquanto a República Social de fevereiro expressou a
ilusão da busca pela superação da dominação de classe no interior do estado,
a Comuna foi “a forma positiva dessa república” (MARX, 2011b, p. 56), à
medida que transcende o universo limitado das formas estatais para se
afirmar como organização potica do “autogoverno dos produtores”. A
Comuna é, nesse sentido, a realização prática das promessas que a forma
republicana está, estruturalmente, impossibilitada de cumprir: a República
deixou de ser o nome de uma coisa do passado. Ela foi impregnada com um
novo mundo” (MARX, 2011b, p. 123). Ainda nas palavras de Marx:
Todos os elementos vitais da França reconhecem que uma
república é possível na França e na Europa como uma
República Social”, isto é, uma república que desapropria o capital
e a classe dos proprietários rurais da máquina estatal para que esta
seja assumida pela Comuna, que declara francamente que a
“emancipação social” é o grande objetivo da República e, assim,
garante essa transformação social pela organização comunal. A
outra república não pode ser mais do que o terrorismo anônimo de
todas as frações monárquicas, da coalizão dos legitimistas,
orleanistas e bonapartistas, tendo como meta final a instauração de
um Império quelconque, o terror anônimo do domínio de classe
que, uma vez realizado o seu trabalho sujo, resultará sempre em
um império! (MARX, 2011b, p. 137)
Note-se que, de acordo com o argumento marxiano, a Comuna
comprova o que o massacre dos trabalhadores em junho de 1848 havia
demonstrado: que a República Social pretendida pelos trabalhadores, capaz
de se sobrepor ao antagonismo entre capital e trabalho, apenas se realiza fora
dos marcos do estado. Após listar numerosas transformações significativas
realizadas pela Comuna no sentido de desmontar a máquina estatal, Marx
aponta que, justamente por prescindir do poder centralizado do estado, por
ser o povo agindo para si mesmo e por si mesmo (MARX, 2011b, p. 108), a
organização comunal dotou a República de uma base de instituições
realmente democráticas (MARX, 2011b, p. 59). Com efeito, a importância
decisiva da Comuna de Paris para a crítica marxiana da política reside no seu
caráter de forma política da emancipação social (MARX, 2011b, p. 131), que
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substitui o estado como força artificial usurpadora do poder social da
sociedade, com vistas à reabsorção, pela sociedade, pelas próprias massas
populares, do poder estatal como suas próprias forças vitais em vez de forças
que a controlam e subjugam (MARX, 2011b, p. 129). Em suma, a Comuna se
constitui como forma política não-estatal, a partir da qual o proletariado
pode levar adiante o processo de sua emancipação, cuja consequência é a
abolição de todas as classes.
A organização comunal se apresenta, assim, como resposta prática ao
problema formulado pela crítica marxiana, à medida que avança na
compreensão do caráter negativo da política moderna: de um lado, a
identificação do estado como instância não-resolutiva que, na condição de
comunidade ilusória, tem como principal função a perpetuação da relação-
capital, a despeito da forma específica que assume (República ou
bonapartismo); de outro lado, a necessidade da conquista do poder político
pelo proletariado, haja vista que o ponto de partida de sua emancipação
apenas pode ser a luta de classes no interior da sociedade burguesa, que, por
sua vez, pressupõe a mediação alienada da política como complemento
necessário da cisão entre indivíduo e comunidade produzida pela
propriedade privada. Conforme a análise marxiana de A guerra civil na
França, a Comuna seria, justamente, a forma organizacional do proletariado,
uma vez conquistado o poder político. Destarte, Marx é cuidadoso ao
salientar que a Comuna não era a forma definitiva da superação do capital,
mas a forma enfim encontrada pelos trabalhadores para a conquista do poder
político, bem como para levar adiante as transformações necessárias para a
transformação da sociedade. De acordo com a letra marxiana:
Tal é a Comuna a forma política da emancipação social, da
libertação do trabalho da usurpação dos monopolistas dos meios
de trabalho, sejam estes meios criados pelos próprios
trabalhadores ou dados pela natureza. Assim como a máquina e o
parlamentarismo estatal não o a vida real das classes
dominantes, mas apenas os órgãos gerais organizados de sua
dominação , assim também a Comuna não consiste no
movimento social da classe trabalhadora e, portanto, no
movimento de uma regeneração geral do gênero humano, mas sim
nos meios organizados de ação. A Comuna não elimina a luta de
classes, através da qual as classes trabalhadoras realizam a abolição
de todas as classes e, portanto, de toda [dominação de] classe
(porque ela não representa um interesse particular, mas a liberação
do trabalho, isto é, a condição fundamental e natural da vida
individual e social que apenas mediante usurpação, fraude e
controles artificiais pode ser exercida por poucos sobre a maioria),
mas ela fornece o meio racional em que essa luta de classe pode
percorrer suas diferentes fases da maneira mais racional e humana
possível. Ela pode provocar violentas reações e revoluções
igualmente violentas. Ela inaugura a emancipação do trabalho
seu grande objetivo , por um lado, ao remover a obra improdutiva
e danosa dos parasitas estatais, cortando a fonte que sacrifica uma
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imensa porção da produção nacional para alimentar o monstro
estatal, e, por outro lado, ao realizar o verdadeiro trabalho de
administração, local e nacional, por salários de operários. Ela
início, portanto, a uma imensa economia, a uma reforma
econômica, assim como a uma transformação política. (MARX,
2011b, p. 131)
A passagem citada do Primeiro rascunho é precisa ao delimitar a
natureza da Comuna e seu lugar na crítica marxiana da política: ela não se
confunde com o movimento social da classe trabalhadora e, por
conseguinte, não elimina a luta de classes, mas fornece o meio racional no
qual essa luta pode ser travada com vistas à abolição de todas as classes,
justamente por remover a obra improdutiva e danosa dos parasitas estatais.
Marx expõe que a classe trabalhadora o esperava milagres da Comuna
(MARX, 2011b, p. 60), tampouco possuía uma utopia pronta para
introduzir par décret du peuple. Segundo a análise dA guerra civil na
França, os trabalhadores sabem que, para atingir sua própria emancipação,
/.../ terão de passar por longas lutas, por uma série de processos históricos
que transformarão as circunstâncias e os homens. A organização comunal
seria o meio político para libertar os elementos da nova sociedade dos quais
a velha e agonizante sociedade burguesa esgrávida (MARX, 2011b, p. 60).
Reitera-se, a potencialidade da Comuna reside na sua condição de forma
política completamente flexível (MARX, 2011b, p. 59), não-estatal, à medida
que a dominação política dos produtores não pode coexistir com a
perpetuação de sua escravização social. Com efeito, a Comuna, enquanto
forma que substitui o monstro estatal, não coincide com a realização do
télos último da revolução social a emancipação humana , mas serve como
alavanca para desarraigar o fundamento econômico sobre o qual descansa a
existência das classes e, por conseguinte, da dominação de classe (MARX,
2011b, p. 59). Trata-se, em suma, da forma política enfim encontrada para o
processo de conquista do poder político do proletariado, cujo objetivo final é
a edificação da nova sociedade o comunismo , a partir da velha sociedade
burguesa.
De modo a demarcar a importância das análises marxianas da Comuna
de Paris no desenvolvimento de sua crítica da política, aponta-se,
brevemente, que a reflexão acerca da forma política da emancipação social é
desdobrada nos últimos textos de Marx, sobretudo em Crítica do programa
de Gotha e nos excertos do Resumo crítico de Estatismo e anarquia, de
Mikhail Bakunin, redigidos no período de 1874-5. Em Crítica do programa
de Gotha, o filósofo alemão retorna ao problema de como desenvolver a
sociedade comunista tal como ela acaba de sair da sociedade capitalista,
portanto trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais
herdadas da velha sociedade de cujo ventre ela saiu (MARX, 2012b, p. 29).
Salienta, em seguida, a necessidade da permanência de certas formas
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políticas e jurídicas que, embora radicalmente transformadas, são herdadas
da velha sociedade burguesa e continuam a operar enquanto a moderna
divisão do trabalho (sua base material) não for completamente superada
16
.
Ademais, discorrendo, especificamente, sobre o papel do estado, argumenta
que entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da
transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também
um período político de transição, cujo estado não pode ser senão a ditadura
revolucionária do proletariado (MARX, 2012b, p. 43).
Embora não seja explícita, na letra marxiana de Crítica do programa
de Gotha, a vinculação entre concepção marxiana de ditadura revolucionária
do proletariado e a forma política da emancipação social desenvolvida pela
Comuna de Paris, os excertos do Resumo crítico de Estatismo e anarquia,
de Mikhail Bakunin, contribuem de modo decisivo para precisar o modo
como a crítica de Marx apreendia o período político de transição.
Evidenciando o sentido de ditadura do proletariado como o proletariado
organizado como classe dominante, o filósofo alemão rebate as críticas de
Bakunin, que, apoiando-se nos aportes de Marx e Engels registrados no
Manifesto comunista, acusa-os de defensores de um estado popular e
aproxima a noção marxiana de ditadura do proletariado à concepção de
Blanqui, denunciando-a como governo do povo por meio de um número
escasso de líderes seletos (eleitos) pelo povo (apud MARX, 2012b, p. 114).
Respondendo ao crítico russo, Marx salienta que a dificuldade reside no fato
de que a transformação radical da sociedade burguesa pressupõe um período
árduo de transição, no qual o proletariado, durante o período de luta para
derrubar a antiga sociedade, ainda age com base na antiga sociedade e, por
conseguinte, continua a se mover entre formas políticas que mais ou menos
pertenciam àquela sociedade (MARX, 2012b, p. 116). Não obstante, Marx
denuncia Bakunin por querer imputar-lhe a defesa de um estado popular
que, em realidade, era feita por Liebknecht e considerada uma bobagem
pelo pensamento marxiano.
Ademais, ao precisar a concepção de ditadura do proletariado o
proletariado organizado como classe dominante , Marx afasta,
definitivamente, a identificação com o estado popular, ou com o governo de
uma minoria privilegiada, como queria Bakunin. Para a ctica marxiana, a
ditadura do proletariado quer dizer, apenas, que os prolerios, em vez de
combater individualmente as classes economicamente privilegiadas,
adquiriram força e organização suficientes para empregar meios comuns de
coerção contra elas, o que, por sua vez, refere-se ao emprego de meios
econômicos que suprimam seu próprio caráter assalariado, portanto seu
16
Marx analisa, mais detidamente, a permanência de um direito ainda marcado por
limitações burguesas (cf. MARX, 2012b, pp. 29-32).
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caráter de classe (MARX, 2012b, p. 113). Mais adiante, discorrendo sobre
como seria possível o governo da sociedade pelo proletariado organizado,
Marx aduz que a questão começa com o autogoverno da Comuna,
explicitando a permanência, em seu pensamento, das contribuições da
Comuna de Paris para a crítica da política.
A análise da forma política enfim encontrada, presente em A guerra
civil na França, mantém, assim, sua importância decisiva para o
amadurecimento da crítica marxiana da política, à medida que apresenta
uma solução específica para o problema da necessidade da conquista do
poder político pelo proletariado, que se distancia da defesa de uma
centralização dos instrumentos de produção nas mãos do estado, tal como
exposta no Manifesto comunista. Para Marx, a forma política descoberta
pelos communards, com seu caráter flexível, responde à necessidade de
conquista do poder político pelos trabalhadores, evitando, ao mesmo tempo,
que a dominação política dos produtores coexista com a perpetuação de sua
escravização social, o que fatalmente ocorre com a manutenção do estado,
uma vez considerado seu vínculo orgânico com a manutenção do capital,
independentemente de sua composição ou forma. Com efeito, fica claro, para
Marx, que a classe trabalhadora, mesmo no período transicional instaurado
pela revolução, não pode usar a máquina estatal para os seus próprios fins,
mas substituí-lo pela forma política que permita, efetivamente, a
desconstrução da relação-capital.
O uso do estado nos últimos escritos de Engels
Em 24 de junho de 1872, cerca de um ano após a derrota da Comuna
de Paris, Marx e Engels escrevem, conjuntamente, um revelador Prefácio ao
Manifesto comunista, contendo uma curta avaliação do conteúdo do texto,
vinte e cinco anos após sua primeira publicação. Atentando para o
desenvolvimento das relações de produção capitalistas nas décadas seguintes
a 1848, os autores observam que, por mais que tenham mudado as
condições nos últimos 25 anos, os princípios gerais expressados nesse
Manifesto conservam, em seu conjunto, toda a sua exatidão, ainda que
certos detalhes possam ser melhorados. Os autores atestam, assim, a
validade das determinações gerais extraídas da gênese da sociedade
burguesa, das quais se destacam, entre outras, a constatação que “o executivo
no estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de
toda a classe burguesa (MARX; ENGELS, 2011b, p. 42), bem como a
delimitação do poder político como poder organizado de uma classe para a
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opressão de outra
17
(MARX; ENGELS, 2011b, p. 59). O ponto a ser
destacado, não obstante, é a posição de Marx e Engels em relação à aplicação
prática dos princípios gerais, que, segundo a própria letra do Manifesto,
dependerá, em todos os lugares e em todas as épocas, das condições
históricas vigentes (MARX; ENGELS, 2011b, p. 71).
A consideração dos autores acerca da aplicabilidade dos princípios
gerais do Manifesto importa, particularmente, à medida que, além de afastar
o emprego mecânico dos princípios gerais (em detrimento da diferença
específica de cada formação social), repercute na avaliação retrospectiva dos
autores em relação às medidas revolucionárias propostas no final da seção
II, nas quais destacavam a necessidade programática de centralizar todos
os instrumentos de produção nas mãos do estado (MARX; ENGELS, 2011b,
p. 58), como se viu. Em 1872, Marx e Engels salientam que não se deve
atribuir importância demasiada às medidas revolucionárias propostas no
final da seção II (MARX; ENGELS, 2011b, p. 71), esclarecendo que “hoje em
dia, esse trecho seria redigido de maneira diferente em muitos aspectos
(MARX; ENGELS, 2011b, pp. 71-2). Mais além, os autores chegam a afirmar
que, “em certos pormenores, esse programa está antiquado, destacando dois
fatores fundamentais para sustentar tal asserção: i) “o desenvolvimento
colossal da indústria moderna desde 1848”, bem como “os progressos
correspondente da organização da classe operária”; e ii) a experiência
prática adquirida, primeiramente na revolução de fevereiro e, mais ainda, na
Comuna de Paris, onde coube ao proletariado, pela primeira vez, a posse do
poder político, durante quase dois meses” (MARX; ENGELS, 2011b, p. 72).
O destaque às experiências da revolução de fevereiro e da Comuna de
Paris não são casuais. Conforme a análise marxiana dos processos
revolucionários franceses, as jornadas de fevereiro e a Comuna de Paris
demonstraram que, não obstante a necessidade de conquista do poder
político pelo proletariado, a demanda dos trabalhadores por uma República
Social não poderia ser efetivada no interior do estado moderno. De acordo
com Marx, a potencialidade da Comuna de Paris se constitui à medida que
encontrou, enfim, uma forma política não-estatal capaz de realizar os anseios
que a revolução de fevereiro manifestou, confusamente, nos marcos da
17
Cabe insistir, nesse ponto, que os termos do Prefácio de 1872 ao Manifesto comunista
revelam a permanência, na obra madura de Marx (e Engels), da concepção do estado como
instrumento de dominação de classe. Tal concepção, reiterada após a publicação da crítica da
economia política em O capital, não exclui, de modo algum, a complexidade da análise
marxiana do estado, apreendido, também e simultaneamente, como forma política que
expressa o poder impessoal do capital sobre o trabalho e que subjuga as próprias classes
dominantes. Conforme salienta Sartori, o comitê de que fala Marx tem uma materialidade e
uma estrutura burocrática, inclusive. Por meio dele não se impõem simplesmente os
interesses burgueses há de se falar de assuntos comuns de toda a burguesia,
reconhecendo-se, pois, que não se trata de uma classe social homogênea e com interesses
simples de serem equacionados (SARTORI, 2012, p. 33).
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república burguesa. Nesse sentido, os autores do Manifesto comunista
retomam, em 1872, a letra marxiana dA guerra civil na França,
argumentando que “a Comuna de Paris demonstrou, especialmente, que o
basta que a classe trabalhadora se apodere da máquina estatal para fazê-la
servir a seus próprios fins’” (MARX; ENGELS, 2011b, p. 72). Considerado o
teor da análise marxiana em A guerra civil na França, pode-se afirmar, sem
temer grandes equívocos, que a retomada da experiência da Comuna no
Prefácio ao Manifesto comunista, de 1872, feita no contexto em que os
autores salientam “certos pormenores” antiquados da parte programática,
indica uma revisão da necessidade de centralizar os instrumentos de
produção nas mãos do estado”, tal como expresso na primeira publicação do
Manifesto, em fevereiro de 1848. Os autores pretendem, em suma, rever a
parte programática que se refere à conquista do poder político pelo
proletariado, de modo a incorporar os aportes marxianos expostos em A
guerra civil na França, na qual Marx registra a necessidade de combinar a
conquista do poder político pela classe trabalhadora com o desmonte do
poder estatal centralizado. Tal revisão conflui com a assertiva marxiana a
Kugelmann, em carta de 17 de abril de 1871, na qual o autor dA guerra civil
na França, discorrendo sobre a Comuna de Paris, aduz que a luta da classe
trabalhadora contra a classe dos capitalistas e seu estado entrou, com a luta
parisiense, em nova fase haja vista que a Comuna conquistou um novo
ponto de partida de importância histórico-mundial (MARX, 2011b, p. 209).
Embora a autoria desse importante Prefácio ao Manifesto comunista
pertença a ambos os autores, Engels, em alguns de seus escritos
independentes, parece destoar dos termos da importante advertência
marxiana em relação à impossibilidade do uso do estado para os fins da
classe trabalhadora. Isso pode ser observado em carta a Theodor Cuno,
redigida poucos meses antes do Prefácio supramencionado, na qual Engels,
contrapondo-se ao anarquismo de Bakunin, acusa-o de considerar o estado
como principal mal a ser abolido, negligenciando o capital e, por
conseguinte, o antagonismo de classe entre capitalistas e trabalhadores
assalariados que surgiu no desenvolvimento da sociedade (ENGELS,
2020c). A pertinente observação de Engels se refere à ausência, em Bakunin,
de uma concepção acerca da relação orgânica entre estado e movimento do
capital, presente nas elaborações de Marx e Engels desde o início da
colaboração teórica entre ambos. Não obstante, ainda que se possa dar razão
a Engels ao acusar a completa abstenção de toda a política pressuposta na
concepção bakuniniana de estado em contraste com a concepção marxiana,
para a qual a luta de classes é uma luta política , o autor de Barmen parece
dar pouca importância à necessidade do desmonte do poder centralizado do
estado uma vez conquistado o poder político pelo proletariado, ressaltada por
Marx na análise da Comuna de Paris. Ao contrário, Engels apresenta uma
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concepção para a qual a dissolução do estado seria efetivada, aparentemente,
como consequência natural do longo processo de superação do capital. Em
suas palavras, se aboli o capital, a apropriação do conjunto dos meios de
produção nas mãos de uns poucos, e o estado cairá por si próprio (ENGELS,
2020c).
Note-se que, mesmo compartilhando com Marx a autoria do Prefácio
de 1872 ao Manifesto comunista, Engels esboça posição distinta em escritos
próprios, no sentido de dar menos importância aos ensinamentos da Comuna
de Paris para o problema do fenecimento do estado. Essa diferença sutil,
porém plena de consequências é reiterada nos textos subsequentes e se
traduz em certa ambiguidade no que se refere à tematização do fim do estado
em meio à conquista do poder político pelo proletariado, tal como Marx
desenvolve em A guerra civil na França. Observe-se, nesse sentido, a
argumentação engelsiana em Sobre a autoridade, de 1873, também em
polêmica com os anarquistas, considerados antiautoritários. Conforme
Engels:
Todos os socialistas estão de acordo em que o estado político, e
com ele a autoridade política, desaparecerão como consequência da
próxima revolução social, isto é, do fato de que as funções públicas
perderão o seu caráter político, passando a ser simples funções
administrativas, destinadas a zelar pelos verdadeiros interesses
sociais. Mas os antiautoritários exigem que o estado político
autoritário seja abolido de um golpe, mesmo antes de terem sido
destruídas as condições sociais que o fizeram nascer. Pedem que o
primeiro ato da revolução social seja a abolição da autoridade.
alguma vez viram uma revolução, estes senhores? (ENGELS, 1976,
p. 121)
Não obstante o pano de fundo subjacente ao texto engelsiano,
constituído pelo embate político com os anarquistas e pela contenda em
torno do princípio de autoridade, importa destacar, para os fins deste
artigo, a mesma linha argumentativa tracejada na carta a Cuno, que desloca o
momento do desmonte da máquina estatal para o final do processo da
revolução social, quando, nos mesmos termos do Manifesto comunista, as
funções públicas perderão o seu caráter político. Queda-se ausente da
reflexão engelsiana a sofisticada articulação presente na análise marxiana em
A guerra civil na França, que, sem desconsiderar o processo histórico de
longas lutas que se interpõe entre o início da revolução social e a dissolução
completa das relações de produção do capital, caracteriza a Comuna como
forma política que se constitui, fundamentalmente, à medida que desmonta o
poder centralizado do estado, para se afirmar como meio racional pelo qual
a luta de classes pode percorrer o árduo processo histórico de superação da
relação-capital.
A ambiguidade do tratamento engelsiano ao problema do desmonte do
estado, tal como desenvolvido por Marx, aparece mais explicitamente em sua
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carta a August Babel, redigida em 1875, na qual, criticando a noção de
estado popular livre, de Liebknecht, Engels faz ressoar os aportes
marxianos, aduzindo que dever-se-ia ter deixado de lado todo esse
palavreado sobre o estado, sobretudo depois da Comuna, que o era um
estado em sentido próprio (ENGELS, 2012, p. 56). Compreendendo e
concordando, à primeira vista, com a análise marxiana da Comuna de Paris, o
autor de Barmen continua, não obstante, em sentido distinto:
Não sendo o estado mais que uma instituição transitória, da qual
alguém se serve na luta, na revolução, para submeter
violentamente seus adversários, então é puro absurdo falar de
estado popular livre: enquanto o proletariado ainda faz uso do
estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para submeter
seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar de
liberdade, o estado deixa de existir como tal. Por isso, nossa
proposta seria substituir, por toda a parte, a palavra estado por
Gemeinwesen, uma boa e velha palavra alemã, que pode muito
bem servir como equivalente do francês commune. (ENGELS,
2012, p. 56)
Sublinha-se que, embora alinhada com a crítica marxiana no que se
refere aos lineamentos gerais da relação orgânica entre estado moderno e
sociedade burguesa, bem como à necessidade de superação do estado na
constituição de uma sociedade comunista, a análise de Engels, logo após
destacar a importância da experiência da Comuna na formação de uma
organização política que não era um estado em sentido próprio, segue a
insistir na ideia do estado como instituição da qual alguém se serve na luta,
na revolução, para submeter violentamente seus adversários. Nesse sentido,
mantém a concepção para o qual o proletariado faz uso do estado, ainda
que não no interesse da liberdade, mas para submeter seus adversários.
Ademais, a proposta engelsiana de substituir a palavra estado por
Gemeinwesen comunidade , com vistas a encontrar na língua alemã um
termo correspondente à Comuna francesa, embora indique a percepção do
autor acerca da importância da Comuna de Paris na gênese do estado,
permanece uma solução consideravelmente aquém da apreensão marxiana
da Comuna como a forma política da emancipação social
18
. Para Marx, a
Comuna, que se distingue do estado, tampouco se identifica com a
comunidade [Gemeinwesen], categoria que, na argumentação marxiana,
refere-se à dimensão comunitária da existência, frente a qual o homem se
18
Deve-se considerar que a proposta engelsiana de substituir a palavra estado por
Gemeinwesen se insere em contexto específico, envolvendo a recepção crítica de Marx e
Engels diante do Programa de Gotha. Não obstante, para os fins desta argumentação,
acredita-se que a proposta engelsiana permanece reveladora de certa ambiguidade na
compreensão da Comuna como forma política não-estatal, responsável por consolidar o
poder político do proletariado, ao mesmo tempo em que permite o desmonte do poder
estatal centralizado.
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aliena à medida que se desenvolvem a propriedade privada e o estado
moderno
19
.
Sintomático, nesse sentido, que o próprio Engels, em seus textos sobre
o processo de transformação da sociedade burguesa, jamais se refere ao
estado como Gemeinwesen. No Anti-Dühring, redigido em 1878, o autor de
Barmen volta a insistir na necessidade do uso do estado [Staat] pelo
proletariado, após a conquista do poder político, para concentrar nele a
propriedade dos meios de produção. Ao discorrer sobre o processo
revolucionário que supera a sociedade burguesa, Engels descreve um
primeiro momento da revolução social no qual o proletariado assume o
poder do estado e transforma os meios de produção primeiramente em
propriedade do estado, argumentando que, desse modo, ele próprio se
extingue como proletariado, desse modo, ele extingue todas as diferenças e
antagonismos de classes e, desse modo, ele também extingue o estado
enquanto estado (ENGELS, 2015b, p. 316). Com efeito, embora não seja
contestável para Engels que a sociedade livre não pode utilizar ou tolerar
nenhum estado entre ela e seus membros, o autor do Anti-Dühring parece
indicar, em sua argumentação, que o estado é desmontado aos poucos, quase
que naturalmente e por si, à medida em que se dissolvem as relações
estruturantes do capital. É o que se entende na afirmação segundo a qual, de
esfera em esfera, a intervenção do poder estatal nas relações sociais vai se
tornando supérflua e acaba por desativar-se (ENGELS, 2015b, p. 316).
Como se vê, ainda que concordem com os principais elementos da
crítica de Marx à política, no que se refere ao papel do estado na
transformação das relações de produção burguesas, as asserções engelsianas
negligenciam a advertência marxiana, segundo a qual o proletariado não
pode se servir da máquina estatal para os seus próprios fins. Nota-se uma
visível diferença de tratamento, por parte de Engels, ao tema do papel do
estado no processo de transição revolucionária. Tal diferença se mostra,
sobretudo, na particularidade das apreensões de Marx e Engels sobre a
Comuna de Paris. Mais especificamente, percebe-se nos escritos de Marx a
preocupação de identificar na Comuna uma forma política flexível, capaz de
levar adiante a luta do proletariado contra as estruturas de dominação da
sociedade burguesa, com vistas à construção da sociedade comunista a
verdadeira comunidade , na qual, nos termos do Manifesto comunista, o
poder público perde o seu caráter político. Nesse sentido, as reiteradas
manifestações de Marx destacando que a Comuna conquistou um novo ponto
19
Nesse sentido, para Marx, a Comuna é forma política intermediária que se interpõe entre o
desmonte da maquinaria estatal, que se inicia com a conquista do poder político pelo
proletariado, e a comunidade real [wirkliche Gemeinschaft], que se realiza com o fim das
classes sociais, eliminando a necessidade de qualquer forma política para gerir os interesses
comuns da sociedade.
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de partida de importância histórico-mundial. Nos escritos de Engels, a ênfase
atribuída à necessidade de uso do estado pelo proletariado que conquista o
poder político configura um tratamento ambíguo à questão, que ora se
aproxima das elaborações marxianas, ora se contrapõe explicitamente à
advertência sobre a impossibilidade do uso do estado pelo proletariado,
respaldada por Engels no Prefácio ao Manifesto comunista, redigido junto
com Marx, em 1872.
Em carta a Philpp Von Patten, de 18 de abril de 1883, Engels volta a se
contrapor, literalmente, ao prefácio que escreveu com Marx ao Manifesto.
Novamente em polêmica com os anarquistas, o autor de Barmen reconhece o
estado como organização cujo principal objeto sempre foi assegurar, com
força armada, a sujeição econômica da maioria trabalhadora pela minoria
rica (ENGELS, 2010b, p. 10). Contudo, ao versar, especificamente, sobre a
transição para a sociedade comunista, Engels considera uma gradual
dissolução que teria apenas como resultado final o desaparecimento
definitivo do estado, argumentando que o estado seria a única organização
que a classe trabalhadora vitoriosa encontra pronta para uso, ainda que
possa exigir certa adaptação para as novas funções (ENGELS, 2010b, p. 10).
O melhor amigo de Marx continua em sentido contrário à advertência contida
no Prefácio de 1872 ao Manifesto comunista, aduzindo que desmontar o
estado após a conquista do poder político pelo proletariado significaria
destruir o único organismo por meio do qual a classe trabalhadora vitoriosa
pode exercer o seu novo poder conquistado para reprimir os seus inimigos
capitalistas e levar adiante a revolução econômica da sociedade. Engels
chega a argumentar, ainda, que, sem a utilização do estado pelo proletariado
para conter os inimigos da revolução, a viria termina em derrota e massacre
da classe trabalhadora, tal como ocorreu na Comuna de Paris! Com efeito, em
sentido oposto à advertência marxiana, Engels remete à Comuna como
exemplo negativo, para ilustrar o perigo do desmonte do estado na conquista
do poder político pelo proletariado. Como se vê, a carta de Engels a Philpp
Von Patten conforma o momento no qual o autor de Barmen se contrapõe aos
aportes marxianos de modo mais nítido. Explicitando um curioso contraste
com a letra do Prefácio ao Manifesto comunista que redigiu com Marx, em
1872, Engels afirma, enfaticamente, que o proletariado deverá,
primeiramente, possuir a força política organizada do estado e, com sua
ajuda, eliminar a resistência da classe capitalista (ENGELS, 2010b, p. 10),
sustentando tal proposição com referência ao final da seção II do Manifesto
(justamente a parte do texto que, junto com Marx, afirmara estar, em muitos
aspectos, antiquada).
Registre-se, desse modo, diferenças importantes no tratamento de
Engels à questão do fim do estado, quando comparado aos aportes de Marx,
que, desde a análise da Comuna de Paris, insiste na impossibilidade de a
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classe trabalhadora fazer uso do estado para os seus próprios fins. Os textos
de Engels, diferentemente, configuram certa ambiguidade no tratamento do
tema, ora se aproximando da letra marxiana, ora se opondo explicitamente a
ela
20
. Ilustrativo de tal ambiguidade é a Introdução que o autor de Barmen
escreve para A guerra civil na França, de Marx, na qual Engels se manifesta
em sentido mais próximo da argumentação marxiana, referindo-se ao estado
como um mal que o proletariado vitorioso herda na luta pelo domínio da
classe e cujos piores aspectos o proletariado, assim como a Comuna, não
pode evitar eliminar o mais prontamente possível. Em seguida, Engels
reforça o que Marx havia afirmado nos excertos do Resumo crítico de
Estatismo e anarquia, de Mikhail Bakunin, salientando que a Comuna de
Paris foi a ditadura do proletariado (ENGELS, 2011, p. 197).
Com efeito, observa-se que a letra engelsiana, diferentemente da
marxiana, apresenta oscilações quando se refere ao desmonte do estado na
revolução social. Tais oscilações são evidenciadas nos momentos da obra
engelsiana em que, mesmo após a experiência da Comuna de Paris, o autor
defende explicitamente o uso do estado para atingir os fins do proletariado.
Na obra de Marx, não se encontra nada similar. Ao contrário, após a
experiência da Comuna, o Mouro se manifesta em sentido contrário ao uso
do estado pelo proletariado nos momentos em que esse tema é abordado.
Evidencia-se, pois, as particularidades nas argumentações de Marx e Engels
acerca do fim do estado, o que, de modo algum, obscurece a profícua
pareceria de ambos.
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20
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enquanto arrogantes senhores do povo /.../, sendo a política estatal real e efetivamente uma
forma de excrescência parasitária, /.../ Engels traz a posição bem mais mediada segundo a
qual o proletariado vencedor deve reconstruir o antigo aparelho burocrático do estado,
administrativamente centralizado, antes de procurar utilizá-lo para seus próprios fins. /.../
Portanto, embora trate do fenecimento do estado, tal qual Marx em suas últimas obras, o
autor do Anti-Dühring faz isto de modo muito menos decidido que o autor de O capital
(SARTORI, 2016, p. 388).
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Como citar:
MUSETTI, Felipe Ramos. A questão do fim do estado: confluências e
divergências nas análises de Marx e Engels. Verinotio Revista on-line de
Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 134-67,
jul./dez. 2020.
Data do envio: 31 ago. 2020
Data do aceite: 29 nov. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.570
Ingo Elbe
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Estado dos capitalistas ou estado do capital? Linhas de recepção do
conceito de estado de Engels no século XX
1
Ingo Elbe
2
Resumo: O artigo identifica uma ambiguidade no pensamento político de
Friedrich Engels. Por um lado, algumas de suas formulações conferiram
substrato a concepções limitadoras da compreensão do estado no modo de
produção capitalista, tais como, em polos opostos, o marxismo tradicional da
tradição leninista e a social-democracia sustentada em Hans Kelsen. Em
contrapartida, ao lado da visão do “estado dos capitalistas”, há em Engels
também uma percepção do estado do capital” que permitiria dar conta da
forma política do capitalismo de modo teoricamente mais fundamentado.
Palavras-chave: teoria política; filosofia do direito; Friedrich Engels;
marxismo.
State of capitalists or state of capital? Reception lines of the state
concept of Engels in the 20th century
Abstract: This article identifies an ambiguity in the political thought of
Friedrich Engels. On the one hand some of his formulations provided a basis
for conceptions that limited the comprehension of the state in the capitalist
mode of production, such as the opposed visions of the traditional Marxism-
Leninism and of the social democracy theorized by Hans Kelsen. On the other
hand one might find in Engels, besides the view of a “state of the capitalists”, a
perception of the “state of the capital” which could explain the political form of
capitalism with a theoretically sounder understanding.
Keywords: political theory; philosophy of law; Friedrich Engels; Marxism.
No início do século XX, o movimento socialista dos trabalhadores viu-
se diante da questão quanto à postura que se deveria assumir diante do
estado, com o qual se havia confrontado na política cotidiana, e do qual, se
1
Título original: Staat der Kapitalisten oder Staat des Kapitals? Rezeptionslinien von Engels'
Staatsbegriff im 20. Jahrhundert. In: SALZBORN, Samuel. "...ins Museum der Altertümer":
Staatstheorie und Staatskritik bei Friedrich Engels. Baden-Baden: Nomos, 2012, pp. 155-181.
Tradução de André Vaz.
2
Privatdozent na Universidade de Oldenburgo (Alemanha).
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era o caso de manter uma perspectiva "revolucionária", era preciso ter um
conceito que permitisse, enfim, imaginar alternativas sociais. Os textos
daquele que nome à influente "escola marxiana" não continham uma
teoria do estado acabada, ainda que uma tal teoria estivesse prevista nos
planos da construção da crítica da economia política de Marx (MARX, 2008,
p. 47). As reflexões de Engels sobre teoria do estado preencheram essas
lacunas e marcaram decisivamente as concepções de estado dos teóricos
socialistas do século XX.
Inobstante encontremos em Engels definições de estado ainda
altamente contraditórias, que variam entre as fórmulas "estado do capital /
capitalista global ideal" e "estado dos capitalistas / capitalista global real", a
recepção na segunda metade do século XX acolheu em geral esta última, e a
partir daí desenvolveu ou uma teoria crítica ao estado autoproclamada
“ortodoxa”, ou, usando tais fórmulas como pretexto, um conceito alternativo
e afirmativo do estado. A seguir, inicialmente serão apresentadas, a partir de
Vladimir Ilitch Lênin e Hans Kelsen, elaborações paradigmáticas dessas
concepções, que se relacionam a Engels como imagens simétricas. A reflexão
sobre esses modelos de pensamento socialista sobre o estado não representa
interesse ultrapassado; ela reflete modos ainda hoje correntes de concepções
sobre o estado que perambulam como fantasmas na qualidade de fragmentos
teóricos e ideologias cotidianas através de panfletos e práticas da esquerda.
Num terceiro momento, deverá ser finalmente esboçado o propósito
fundamental de uma linha de recepção [do pensamento de Engels], que
com exceção do precursor Evguiéni Pachukanis surgiu somente a partir dos
anos 1970, e assumiu a definição do estado como estado do capital” e
capitalista global ideal”, e pela qual se toma o rumo de uma elaboração das
implicações teóricas acerca do estado e do direito diretamente a partir da
crítica marxiana da economia.
Ambas as abordagens aqui apresentadas como clássicas e
paradigmáticas enfrentaram a principal questão política do movimento dos
trabalhadores na e logo depois da I Guerra Mundial: o estado capitalista, a
nação ou, no mínimo, determinadas formas estatais democráticas devem ser
caracterizadas como estado de todo o povo”, ou são todos “instrumentos da
classe dominante”? Lênin responde a tal questão no último sentido; Kelsen e
a maioria da social-democracia, no primeiro
3
. A linha instrumentalista e de
conteúdo fixo [inhaltsfixierte] do pensamento engelsiano acerca do estado
serve, com isso, tanto ao comunista revolucionário nin quanto ao
reformista social-democrata Kelsen como modelo “da” teoria do estado
marxista. No centro desse conceito de estado encontram-se as seguintes
assunções fundamentais, que exporei com base em sua recepção,
sistematização e crítica:
3
Nos anos 1930, também o leninismo acolhe o mote do estado popular. Essa mudança tem
pouco que ver com Lênin (cf. ELBE, 2008, pp. 385-91).
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A forma da vontade estatal é evidente; é seu conteúdo de classe que
deve ser desvendado e criticado (ENGELS, 2012b, p. 157); o estado se revela
então como instrumento da classe economicamente dominante para a
opressão dos explorados (ENGELS, 2012a, pp. 215-6). A verificação da
imprescindibilidade do estado é enfocada diretamente nas classes.
Com isso, as formas do domínio de classe e do estado são histórico-
universalmente niveladas: “O” estado é um poder público que está presente
em todas as sociedades de classe, e constitui uma dominação “política”, a ser
diferenciada da “econômica” (ENGELS, 2012a, pp. 214-5).
O caráter de classe do estado, sua relação funcional com a economia é
concebida de modo personalista e teórico-manipulativo(ENGELS, 2012a, p.
215).
A autonomização do estado é uma ilusão, mas que se torna real em
situações excepcionais (ENGELS, 2012a, p. 215).
I. Estado dos capitalistas
As reflexões teóricas de Lênin sobre o estado, sobretudo a obra O
estado e a revolução, de 1917/1918, são de significado decisivo para a
posterior tradição do “marxismo-leninismo”, e se dirigem explicitamente
contra a afirmação do estado por parte da socialdemocracia de seu tempo.
Em correspondência quase textual com Engels (2012a, p. 214), Lênin
compreende o estado inicialmente como aparato de força especializado,
dirigido por especialistas em dominação (LÊNIN, 2019, p. 353), aparato que
consiste em grupos especiais de homens armados, que têm à sua disposição
as prisões etc. (LÊNIN, 2011, p. 40).
Para ele, são condições históricas para a especialização de um aparato
desse tipo, por um lado, um nível de produtividade que possibilite um mais-
produto (LÊNIN, 2019, p. 353) e, por outro, o surgimento de um
antagonismo inconciliável” de classes (LÊNIN, 2011, p. 37), que divide a
sociedade em grupos de pessoas, algumas das quais se apropriam
permanentemente do trabalho alheio (LÊNIN, 2019, p. 351).
A imprescindibilidade de uma dominação de classe regulada pelo
estado é fundamentada a partir dessa contradição entre classes. Isso parece,
se seguimos Lênin, levar permanentemente os subalternos a “protesto e
revolta” (LÊNIN, 2011, p. 138), o que, sem o monopólio estatal da violência,
conduziria as classes a um “armamento espontâneo”, e finalmente a
deflagrarem a “luta armada” entre si (LÊNIN, 2011, p. 41). A condição para
isso é um processo de exploração explícito que é tido como ilegítimo pelos
explorados, pois estes se confrontariam sem absurdas ilusões e fantasias”
com os supostamente “desnudados, abertamente explícitos processos de
expropriação e apropriação da economia capitalista” (LÊNIN, 1963b, p. 417).
O estado é definido então como instrumento da classe economicamente
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dominante para a opressão dos explorados (LÊNIN, 2011, pp. 37-9; 42-5); ele
é, como Lênin cita a partir de Engels, sua autoridade principal em termos de
teoria do estado, estado da classe mais poderosa, da classe economicamente
dominante, classe que, por intermédio dele, se converta também em classe
politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e
exploração da classe oprimida (ENGELS, 2012a, pp. 215-6, também citado
em LÊNIN, 2011, p. 44).
Chama a atenção a orientação histórico-universal, igualmente
recolhida de Engels, desse paradigma de teoria do estado que deixa
esmaecidos os contornos de conceitos centrais: em especial, escapa a
diferença entre, por um lado, a apropriação direta do mais-produto sob
violência e sua apropriação especificamente econômica e, por outro, a função
do monopólio da violência física. No estado de direito capitalista, segundo
Lênin, é certo que “todos o iguais perante a lei”. Dessa afirmação, porém,
ele não extrai nenhuma consequência seria possível perceber o
deslocamento de sentido na frase seguinte: A lei protege todos por igual;
protege a propriedade dos que a possuem contra os ataques das massas que
[não possuem] nenhuma propriedade (LÊNIN, 2019, p. 356). “Todos”,
“proprietários”, “massa sem propriedade”: o sujeito de direito é reduzido aos
possuidores dos meios de produção. na próxima página, portanto, Lênin
subentende na máxima antifeudal da liberdade para os proprietários
(LÊNIN, 2019, p. 356) o que aqui, uma vez que a classe trabalhadora é
compreendida como destituída de propriedade, pode referir-se aos
proprietários dos meios de produção. Embora, portanto, também Lênin
conheça diferenças de forma no que se refere ao domínio de classe, e faça
menção à específica igualdade moderna de todos os cidadãos perante a lei, a
liberdade no modo de produção capitalista parece-lhe sempre, “mais ou
menos, o que foi nas repúblicas da Grécia antiga: uma liberdade de senhores
fundada na escravidão” (LÊNIN, 2011, pp. 134-5)
4
.
A forma mediada de exploração específica do modo de produção
capitalista, em que a coerção física exerce um papel totalmente distinto do
que na Antiguidade, é eliminada por decreto; a liberdade burguesa é
desmascarada como evidente “preconceito (LÊNIN, 2019, p. 359), com o que
Lênin segue o diagnóstico de desmistificação de Marx e Lênin no Manifesto
(MARX; ENGELS, 2015, pp. 42-3; 49-5)
5
. A apropriação violenta e direta do
mais-produto na escravidão serve, para Lênin, como modelo para assertivas
generalizantes como esta: É impossível obrigar a maior parte da sociedade a
trabalhar em forma sistemática para a outra parte da sociedade sem um
4
O fato de que democracia e isonomia na Antiguidade apenas valiam para os senhores de
escravos, e não para os escravos (as mulheres são ignoradas por nin [2019, pp. 353-4]) é
referido como "fato fundamental", que " deita mais luz do que qualquer outro sobre o
problema do estado, e apresenta a nu a natureza do estado" (LÊNIN, 2019, p. 354).
5
Aqui a exploração nua e crua é vislumbrada como característica do capitalismo. Isso será
modicado em Marx a partir da teoria da mistificação da vida cotidiana capitalista, que Lênin,
no entanto, ignorou (cf. PROJEKT KLASSENANALYSE, 1972, pp. 74-5).
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aparelho permanente de coerção (LÊNIN, 2019, pp. 353-4). No capitalismo,
porém, não é mais essa coerção direta que compele ao mais-trabalho. O
estado assegura aqui unicamente as relações de propriedade, cuja coerção
estrutural reproduz a exploração. Por fim, o conceito de força pública, que
Lênin extrai de Engels, é altamente problemático para descrever formas
antigas e feudais de dominação, que lá, apesar da parcial diferenciação de
agentes da dominação, vigem amplamente os princípios da posse pessoal do
poder
6
e da unidade entre violência (ou ameaça de violência) física e
apropriação dos produtos do trabalho alheio. Não pode tratar-se, em absoluto,
de um monopólio “público” da violência, que se confronta com uma
“sociedade” despolitizada
7
.
A conquista de poder sobre os subalternos permanece, na concepção
“hipotético-repressiva”
8
de Lênin, puramente externa e sob a forma de
violência (LÊNIN, 2011, pp. 138-40). Os subalternos são sempre tidos,
portanto, mais ou menos como inimigos blicos da ordem sustentada na
violência. A história”, segundo Lênin, está cheia de constantes tentativas
das classes oprimidas de se libertarem da opressão (LÊNIN, 2019, p. 355
grifo IE)
9
. A própria dominação torna-se extremamente personalista,
enquanto poder de uns poucos milionários sobre toda a sociedade” (LÊNIN,
2019, p. 358)
10
, como disposição direta de uma minoria sobre o mais-
trabalho das massas e sobre o poder do estado. Sob esse ponto de vista, não
há lugar sistemático para a coerção estrutural e o domínio anônimo do capital,
em cujo âmbito também os dominantes podem exercer dominância
heterônoma.
Especialmente por sua explicação teórico-manipulativa do caráter de
classe da violência democrático-burguesa, fica claro que nin compreende o
estado burguês não como estado do capital, mas dos capitalistas. Uma vez
6
Cf. Hoffmann: “dominação pessoal significa /.../ uma relação direta de dominação entre as
pessoas, sustentada na violência diversamente de uma dominação mediada econômica
(venda de força de trabalho) ou juridicamente (domínio da lei)” (1996, p. 532).
7
Cf., a respeito da unidade entre dominação e expropriação nas sociedades pré-capitalistas,
Gerstenberger (1990, pp. 497-532); Teschke (2007, pp. 63-9; 93).
8
Foucault (1988) entende por isso uma concepção específica da forma de eficácia do poder,
pela qual este é concebido no sentido de um regime de proibição” sustentado no aparato
central de poder, que se confronta externamente aos dominados como instância limitadora e
geradora de impotência.
9
Cf., contrariamente, Godelier (1984, pp. 163-6), que mostra que uma condição para
ordenamentos duradouros de dominação é a construção desta como dominação a serviço dos
dominados. É certo que Lênin leva em conta, em outro ponto, também a “escravidão /.../
espiritual” (LÊNIN, 2020, p. 123) dos oprimidos, mas ela é tida sempre como mentira,
fraude e dissimulação, que prescindiria de qualquer realidade e, sobretudo, “poderia contar
sempre com a ignorância e os preconceitos das camadas populares mais atrasadas” (LÊNIN,
1963a, p. 232).
10
O que inicialmente parece uma expressão de agitação, recebe consagração teórica na
abordagem do estado capital-monopolista, de que Lênin é cofundador: substituição da
dominação anônima da lei do valor pela dominação pessoal “de um punhado de capitalistas
monopolistas” sobre toda a sociedade. Conferir Jordan (1974), numa crítica à abordagem do
estado capital-monopolista.
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que em momento algum ele se lança à empreitada de esclarecer a forma
específica da dominação de classe regulada pelo estado no capitalismo,
necessariamente passa-lhe despercebida também a relação imanente do
conteúdo de classe com sua forma a da força coerciva pública, que domina
por meio de leis gerais e abstratas. O estado capitalista, segundo Lênin,
“nega” seu caráter de classe e afirma “exprimir a vontade do povo todo”
(LÊNIN, 2019, p. 356). Mas isso não seria mais do que um expediente
fraudulento o porquê de tal expediente funcionar é algo que permanece
obscuro. O caráter de classe do estado e da legalidade burguesa é
obstinadamente assumido por Lênin, dito de modo mais exato, concebido de
modo puramente personalista: O estado seria “atado à burguesia por
milhares de fios”. Isso deveria ficar claro sobretudo pela corrupção,
mecanismos de exclusão, possibilidades formais insuficientes de participação,
pauperização do proletariado, a experiência /.../ [de] cada trabalhador”
(LÊNIN, 2011, p. 64) com a repressão aberta, por parte do estado, contra
greves
11
, e revoltas do proletariado (cf. LÊNIN, 1977a, p. 14; 1918a, pp. 45; 64;
86; 133-5; 1929, pp. 473-4; 477-8). São os “desvelamentos da relação entre
‘operações’ financeiras e a alta política” que demonstram o real fundamento
sobre o qual se sustenta a direção do estado na sociedade capitalista” (NIN,
1963a, p. 231). A reflexão sobre o caráter de classe do estado é, portanto, uma
tarefa jornalística, e não científica. Também aqui Lênin se baseia sobretudo
na consideração de Engels de que, na república democrático-burguesa, a
riqueza exerceria seu poder de modo indireto”, o que nesse contexto não
significa nada além de “nos bastidores”, ou seja, na forma “da corrupção
direta dos funcionários públicos” e da “aliança entre governo e bolsa de
valores” (ENGELS, 2012a, p. 217, também citado em LÊNIN, 2011, p. 45).
Permanece obscuro, assim, como esse caráter de classe pode assumir
até mesmo a forma do estado democrático de direito. A concentração
exclusiva no caráter de classe
12
se deve, entre outros motivos, à empreitada
engelsiana no sentido de uma teoria materialista do estado, que Lênin segue
fielmente: Engels constata em Ludwig Feuerbach que o fato de, nas
sociedades de classe, serem todas as necessidades articuladas através da
vontade estatal constituiria “o lado formal da coisa, que se compreende por si
mesma”. A questão principal de uma teoria materialista do estado seria, ao
revés, apenas “o conteúdo desta vontade puramente formal seja do
11
“Qualquer tentativa dos operários por atingir a menor melhoria efetiva da sua situação
provoca imediatamente a guerra civil”; a “burguesia /.../ contrata soldados e reprime a
greve” (LÊNIN, 2019, p. 359). Aqui não apenas se está fazendo referência a um fenômeno
histórico a ausência de um sistema tarifário / de lutas dos trabalhadores
institucionalizadas e juridicamente reguladas como essência (capitalista) do estado. Pelo
uso da expressão “soldados” (mercenários), fica também claro que Lênin não leva a sério o
caráter público da organização moderna da força. Para falar com Pachukanis: em Lênin, o
estado se transmuta em aparato privado da classe dominante.
12
Cf. Arndt: “com a afirmação de que o estado seria instrumento da dominação de classe, a
teoria do estado se move no típico nível da crítica da economia, quando identifica o fato da
exploração, mas seu mecanismo de funcionamento ainda não está desvendado” (1985, p. 90).
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indivíduo ou do estado e saber de onde provém este conteúdo e por que é
precisamente isso o que se deseja, e não outra coisa (ENGELS, 2012b, p.
157).
Uma vez que Lênin confunde democracia com sua forma política (cf.
SCHÄFER, 1994, p. 73) e a vincula a violência estatal, igualdade formal
burguesa, divisão de poderes e princípio parlamentar-representativo
13
,
também ela se sujeita à crítica (LÊNIN, 2011, p. 128) mas não, frise-se, o
princípio majoritário e os órgãos representativos per se (cf. LÊNIN, 2011,
[respectivamente] pp. 128; 86). Lênin constrói, com isso, uma limitada
correspondência entre república democrática e capitalismo: A democracia
corresponde à livre concorrência. A reação política corresponde ao
monopólio” (LÊNIN, 1984, p. 13). À parte a absurdidade histórica dessa
colocação, Lênin consegue também aqui vincular-se à tese, derivada
igualmente da pena de Marx e Engels, da democracia como forma final, do
regime autoritário-bonapartista como forma de existência conservadora
última da dominação burguesa (cf. MARX, 2011b, pp. 36-7). Se isso
representa uma ruptura fundamental com a ortodoxia socialdemocrata,
Lênin recorrerá então em outro ponto, porém, ao modelo de fundamentação
de tal ortodoxia. Ele afirma subitamente que a república democrática
contradiria logicamente o capitalismo “porque ‘oficialmente’ iguala o rico e o
pobre. Isto é uma contradição entre o sistema econômico e a superestrutura
política” (LÊNIN, 1984, p. 15), contradição que poderia ser superada
através de corrupção e do entrelaçamento pessoal entre estado e capital
financeiro. A mediação entre liberdade/igualdade política e não-
liberdade/desigualdade econômica segue, portanto, um enigma para Lênin.
Além disso, ele deveria também considerar a base econômica como
contradição com a base econômica, porque também aqui, com as
determinações do processo de troca, entram em cena os momentos de
equivalência
14
entre todos os proprietários e de ausência de dependência
econômica, o que, no entanto, como demonstrado, é por ele ignorado.
A ignorância relativamente às determinações da estatalidade
democrática de direito e a completa confusão na compreensão da
emancipação política têm também consequências para o conceito de Lênin de
estatalidade de transição e de democracia socialista, em relação aos quais, no
entanto, não nos aprofundaremos aqui (cf. ELBE, 2008, pp. 370 ss;
SCHÄFER, 1994, pp. 71 ss). Porém, deve ao menos ser mencionado que o
13
Cf., sobre os pontos, na ordem em que foram elencados: Lênin (2011, pp. 128; 150, 84-5;
83-6). Para a crítica da democracia representativa (cf. LÊNIN, 2011, pp. 83-4), Lênin serve-
se claramente do argumento crítico republicano radical da vontade popular não
representável em Rousseau (1999, p. 114): no intervalo de alguns anos, o povo tem a
liberdade de escolher seus ‘representantes’ e “[,assim que estes são eleitos,] ele é escravo, não
é nada”.
14
O autor utiliza a expressão “Gleich-Gültigkeit”, o que constitui um jogo de palavras.
Literalmente, trata-se de validade igual”, ou seja, “equivalência”, tal como traduzido no
texto. Mas o termo remete ao substantivo “Gleichgültigkeit”, que significa “indiferença”. [NT]
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modelo centralizado de Lênin de educação popular e de planejamento
econômico no socialismo representa um coerente desdobramento da tese
engelsiana do estado capitalista desenvolvido como "capitalista global real"
(ENGELS, 2015, p. 314), que cada vez mais suprimiria a anarquia da
produção
15
: uma vez que, para Lênin, o "capitalismo monopolista" é tido
como época da dissolução da dominação da lei do valor, as instituições do
"capitalismo monopolista de estado", sobretudo do "comunismo de guerra"
alemão imperial e da produção em massa taylorista, para ele apresentam-se
economicamente como modelos da economia socialista: já no capitalismo
seriam verificáveis amplo planejamento estatal e uma forma direta de divisão
social do trabalho, não mais mediada pelo valor, assim como uma
simplificação de funções administrativas e de setores dispositivos de
atividades (cf. LÊNIN, 2011, pp. 80-2; 88-9; 111-2; 152-3). Com isso, o
socialismo pode ser compreendido simplesmente como um capitalismo de
estado posto a serviço do proletariado
16
.
II. Estado no capitalismo
Hans Kelsen, socialdemocrata moderado e corresponsável pela
Constituição Federal austríaca de 1920, posiciona-se contrariamente à teoria
do estado engelsiana sobretudo em seu escrito Marx ou Lassalle (1924). Na
sequência, abordarei superficialmente o conceito teórico-jurídico de estado
de Kelsen, para em seguida apresentar sua compreensão de estado,
exemplificativa do estatismo socialdemocrata, e como ela se desenvolve em
contraposição à abordagem instrumentalista de Engels/Lênin.
É necessária a diferenciação entre as compreensões política e jurídico-
teórica do estado, porque aqui uma discrepância: o juspositivismo
kelseniano supõe que a validade jurídica é independente estabelecimento
conteudístico de metas. “Toda e qualquer finalidade social pode ser
perseguida” do "modo específico do direito" o da vinculação de um
15
Engels deixa clara, com isso, uma restrita compreensão da produção privada capitalista. Na
Crítica do projeto de programa de Erfurt (ENGELS, 1982), escreve ele: Eu conheço uma
produção capitalista como forma de sociedade, como fase económica; [conheço] uma
produção privada capitalista como um fenômeno que sobrevém desta ou daquela maneira
no interior desta fase. Que significa, portanto, produção privada capitalista? Produção pelos
empresários isolados, e esta torna-se cada vez mais uma excepção. Produção capitalista
através de sociedades por ações não é nenhuma produção privada, mas produção por
conta associada de muitos. E, se passarmos das sociedades por ões aos trusts, que
dominam e monopolizam ramos inteiros da indústria, então, acaba não apenas a produção
privada, mas também a ausência de planejamento”.
16
A Alemanha no ano de 1918 é por ele considerada como a «última palavra» da grande
técnica capitalista moderna e da organização planificada, subordinada ao imperialismo
Jünker-burguês. Ponde de lado as palavras sublinhadas, colocai em vez de estado militar,
Jünker, burguês, imperialista, também um estado, mas um estado de outro tipo social, de
outro conteúdo de classe, o estado soviético, isto é, proletário, e obtereis toda a soma de
condições que dá como resultado o socialismo. (Cf. LÊNIN, 1977b, p. 332)
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comportamento tido por indesejado a um ato considerado negativo,
sobretudo um ato de coerção estatal. O direito não é caracterizado como
finalidade, mas como um determinado meio. (KELSEN, 2008, p. 43)
17
Isso
se aplica ao estado, uma vez que este nada mais é do que um ordenamento
jurídico. O direito é, portanto, uma norma de coerção e uma técnica social. A
obrigação jurídica não se fundamenta na moralidade ou na utilidade do
conteúdo da norma, e nesse ponto Kelsen se diferencia consideravelmente de
Lassalle, sua principal influência no campo da política. O indivíduo é, ao
contrário, "juridicamente obrigado a uma determinada conduta quando uma
oposta conduta sua é tornada pressuposta de um ato coercitivo (como
sanção)" (KELSEN, 2009, p. 133). O direito tem a função de produzir um
"estado social desejado" pela instância legislativa, de modo que "ao
comportamento humano que representa a oposição contraditória a tal estado
/.../ é vinculado, como consequência, um ato coercivo" (KELSEN, 2008, p.
40). Com isso, sublinha-se expressamente que "todo e qualquer conteúdo”
pode “ser direito" (KELSEN, 2008, p. 74). No que tange à compreensão
política do estado de Kelsen, ao revés, trata-se de uma definição mais precisa
do conteúdo das tarefas do estado, definição que, em sua perspectiva
juspositivista, é rejeitada e ultrapassa os limites de uma teoria descritiva.
Contrariamente a entendimentos que vinculam a unidade do estado à
identidade natural ou a interações empíricas, Kelsen sublinha inicialmente o
caráter normativo do vínculo estatal. com isso se permitiria falar numa
ordem estatal duradoura. Todos os outros princípios de ordenamento
produziriam no máximo aglomerações efêmeras de massas ou práticas não
compatíveis com os critérios de estado, por exemplo o comércio exterior. A
atuação estatal seria definível apenas juridicamente. Ele recusa um conceito
de estado que se supõe "por trás" do direito um estado que, embora criador
de direito, não seja ele mesmo compreendido juridicamente. É que os atos do
estado são ações que partem de indivíduos determinados. Elas podem ser
atribuídas ao estado, o que nada significa além de que são ações de
indivíduos normativamente autorizados. A diferença entre a ão de um
indivíduo enquanto policial ou guerrilheiro pode ser verificada pela
referência a tais normas:
[O] estado apenas é existente nos atos do estado, que são atos
postos por indivíduos e são atribuídos ao estado como pessoa
jurídica. E tal atribuição apenas é possível com base em normas
jurídicas que regulam especificamente estes atos. Dizer que o
estado cria o direito significa apenas que indivíduos, cujos atos são
atribuídos ao estado com base no direito, criam o direito. Isto quer
dizer, porém, que o direito regula a sua própria criação (KELSEN,
2009, p. 346).
Kelsen diferencia entre imputação e atribuição. A primeira é definida
como "ligação normativa de dois fatos" (KELSEN, 2009, p. 167 p. 425 nota
17
Ele observa que mesmo a função de pacificação não integra necessariamente o direito
(KELSEN, 2009, p. 225).
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de rodapé n. 11) e caracteriza a norma jurídica: se ocorre A, então deve ser B,
em que B é um ato de coerção estatal. Atribuição, ao revés, designa a
vinculação do comportamento de um indivíduo com a comunidade,
ficticiamente concebida como pessoa. Se o estado é o ordenamento jurídico,
então nenhum estatal é ato extrajurídico. É conceitualmente excluída a
possibilidade de injusto estatal (KELSEN, 1962, p. 234). Que o estado seja
uma ordem jurídica, e com isso normativo-coerciva, não significa que com
isso se descreva uma coerção empírica, mas que um ordenamento normativo
declara que, sob determinadas condições, deve ser exercida coerção física
(KELSEN, 1962, p. 82). Isso porque a coação puramente fática não constitui
coerção estatal, pois somente um ato de coerção normativamente ordenado
pode ser identificado como estatal. Uma vez que a pura violência ("ser") não
pode fundamentar a validade da norma ("o que objetivamente deve ser"),
uma outra norma pode fazê-lo. As normas que conferem significado jurídico
a um fato são criadas por um ato jurídico, que por sua vez "recebe de outra
norma seu significado" (KELSEN, 2008, p. 19). Não um fato, mas a
coincidência com o conteúdo de uma norma é o que transmuta um ato
empírico em ato jurídico. A norma, por seu turno, se constituiu por um ato
empírico, que coincide com o conteúdo de uma outra norma, que com isso
transforma tal ato num ato jurídico etc. Isso leva a uma dinâmica regressiva,
caso não se suponha uma última norma, que por sua vez não é posta: a
norma fundamental. Esta é pressuposta por todo aquele que pretenda
interpretar um ordenamento coercitivo como direito. Essa interpretação de
um ato coercivo como direito, no entanto, não é obrigatória, pois Kelsen
rejeita todo critério normativo de conteúdo pré-positivo (ou seja, não
estabelecido empiricamente). Com isso, falta o paradigma com o qual um ato
coercivo específico possa ser comparado e, portanto, ser reputado válido. A
todo ato coercivo pode ser concedido caráter normativo, por meio da
suposição da norma fundamental, de cunho exclusivamente formal
18
. Com
isso, segundo Kelsen, o ato coercivo não é considerado puramente efeito do
indivíduo físico que o executa, mas é atribuído ao estado enquanto
ordenamento jurídico válido. A obediência a atos estatais, assim, não é
obediência à vontade fática de uma pessoa concreta, mas ao estado enquanto
ordem normativa coerciva anônima. Mas isso não diz ainda nada sobre o
estado burguês, que para Kelsen toda ordem coerciva, quando interpretada
juridicamente, deve basear-se numa norma fundamental "dominante". Seu
conceito de forma jurídica é explicitamente a-histórico.
O estado é, por certo, um ordenamento jurídico, mas nem todos os
ordenamentos jurídicos são estado. O ordenamento jurídico estatal
diferencia-se dos outros pelo fato de que aqui normas jurídicas são criadas e
aplicadas por órgãos em divisão funcional de tarefas, pela qual tais atos são
de certa maneira centralizados. Por exemplo, a jurisdição e a execução do
18
A validade objetiva se torna, com isso, subjetiva: anarquismo epistemológico (cf. ELBE, p.
2.011).
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direito são tarefas de órgãos qualificados como tribunais ou unidades da
administração. Em ordenamentos jurídicos pré-estatais, ao contrário, os
"próprios membros da comunidade [jurídica]" (KELSEN, 2009, p. 358) são
dotados de poderes, a) através dos costumes, de criar normas jurídicas, b) de
exercer justiça pelas próprias mãos, c) de prestar assistência, isto é, de
estatuir sanções no caso de ações criminosas por si próprio identificadas.
Em qualquer ordem estatal, segundo Kelsen, uma classe não é
submetida às outras imediatamente, mas todas são subsumidas ao
ordenamento normativo. Nesse sentido, impera sempre a norma, que por sua
vez é um conteúdo (conceito) propositivo não empírico do pensamento
empírico. Uma norma tem por conteúdo que algo deve acontecer. Ela é “um
ato intencional [de vontade] dirigido à conduta de outrem” (KELSEN, 2008,
p. 6). O ato de vontade é um fato empírico; a norma, enquanto conteúdo de
sentido daquele ato, é um dever ser. E "o estado nada mais é do que um
conceito, um conceito de ordenamento!" (KELSEN, 1962, p. 91). A ordem
jurídica estatal não é regularidade de comportamento no sentido da
observação de atos costumeiros, de uma média empírica ou de uma
probabilidade de ações. No ser empírico, Kelsen vislumbra unicamente "um
caos, uma sequência sem gica" de vontades humanas, cuja unidade pode
ser construída por intermédio da "unidade ideal do estado" que, por sua vez,
de modo totalmente neokantiano, "é constituída através do conhecimento
científico" (KELSEN, 1962, p. 123). O estado é o conteúdo de sentido de ações,
ao passo que a probabilidade de ocorrência do comportamento realmente
orientado àquele sentido permanece fora de consideração (e depois, porém,
deve ser novamente recuperada como condição de validade jurídica):
enquanto apenas conteúdo de sentido /.../ ou esquema
interpretativo /.../, o estado existe tanto ou tão pouco quanto o
teorema de Pitágoras: sua existência é sua validade, e nisso ele é
essencialmente distinto da factualidade das ações cujo sentido ele é
(KELSEN, 1962, p. 160).
O estado é, portanto, um complexo de "coisas do pensamento
normativas" (KELSEN, 1962, p. 73). Estas podem, por intermédio da
representação da norma, motivar o querer empírico dos homens, e assim
tornar-se efetivas. O poder estatal é, desta forma, a "força /.../ motivante de
certas representações normativas" (KELSEN, 1962, p. 89) que leva os
homens a exercer coerção física sobre outros, e não o arsenal de armas e as
prisões, ou os grupos de homens que têm isso à sua disposição. Com isso,
Kelsen critica implicitamente a definição de Lênin, retirada de Engels, da
violência estatal como reunião de "homens armados" e de "materiais
acessórios, prisões e instituições coercivas de toda espécie" (ENGELS, 2012a,
pp. 215-6; LÊNIN, 2011, p. 4o). A violência estatal nada mais é do que a
efetividade idealmente mediada do ordenamento jurídico centralizado. Para
Kelsen, portanto, o estado é, assim como Deus, algo que, para ser negado,
devemos apenas tirá-lo da cabeça: A existência de Deus", no sentido em que
mesmo o ateu deve admiti-la,
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é a mesma existência do estado que o anarquista combate,
consistindo na força motivadora de certas representações
normativas. Assim, Deus e estado existem se e na medida em
que alguém crê neles, e são aniquilados - junto com seus imensos
poderes que saturam a história universal - quando o espírito
humano se liberta de tais crenças (KELSEN, 2012, p. 52).
Kelsen, nesse mesmo ponto, elogia expressamente o "anarquismo
como mera crítica do conhecimento" de Max Stirner, com sua "dissolução da
/.../ hipostasia do estado" (KELSEN, 1962, p. 239 - nota de rodapé) e seu
reconhecimento do modo de ser do estado enquanto "fantasma /.../ ficção"
(KELSEN, 2012, p. 52). Nesse sentido posso "eu, que realmente sou eu", a
qualquer momento remover do estado "comedor de grama /.../ sua pele de
leão" (STIRNER apud KELSEN, 1962, p. 239 - nota de rodapé)
19
.
Com isso, movemo-nos, entretanto, na esfera de validade
autossuficiente da norma, porquanto para Kelsen uma validade da norma é
assumida subjetivamente, por meio da aceitação da norma fundamental. Por
outro lado, existem sistemas coercitivos efetivos, e Kelsen decide por atribuir
a estes e somente estes o caráter jurídico(-estatal): ele transforma um
mínimo de efetividade em condição de validade de uma ordem coerciva. Caso
se aceite esse critério, não sobra muito do anarquismo epistemológico. Mas
este é em todo caso irrelevante para ordenamentos coercitivos fáticos:
certamente, é correto que ordens coercitivas só podem ser efetivas se as
pessoas de alguma forma as assimilam (uns porque elas lhes são úteis ou eles
as consideram sagradas; outros porque, por medo da sanção, agem em
conformidade), mas isso não diz nada sobre os as origens e as bases sobre as
quais uma ordem coercitiva surge numa forma histórica específica. As
19
Trecho estendido da passagem de Stirner citada por Kelsen (STIRNER, Max. O único e sua
propriedade. [1845] Trad. João Barrento. Lisboa: Antígona, 2004, p. 177-178): Um estado
existe sem que eu tenha de fazer nada por isso: eu nasço nele, cresço nele, tenho os meus
deveres para com ele e tenho de lhe prestar homenagem”. Por sua vez, o estado recebe-me
na sua “graça”, e eu vivo dela. Assim, a existência autónoma do estado fundamenta a minha
dependência, a sua “naturalidade”, o seu organismo, exigem que a minha natureza não
cresça livremente, mas se lhe ajuste. Para que ele se possa desenvolver de forma natural,
aplica-me a mim a tesoura da “cultura”; dá-me uma instrução e uma educação que lhe
servem a ele, mas não a mim, e ensina-me, por exemplo, a respeitar as leis, a não agir contra
a propriedade do estado (isto é, propriedade privada), a venerar uma autoridade, divina e
terrena, etc.; em suma, ensina-me a ser irrepreensível, exigindo com isso que eu “sacrifique”
a minha singularidade própria a algo de “sagrado” (e muitas coisas podem ser sagradas, por
exemplo a propriedade, a vida dos outros, etc.). Nisso consiste o tipo de cultura e formação
que o estado me pode dar: educa-me para eu ser uma “ferramenta útil”, um “membro útil da
sociedade”. Todo o estado tem de fazer isso, tanto o popular como o absolutista ou
constitucional. Tem de fazê-lo enquanto nós continuarmos a insistir no erro de que ele é um
eu, o que o autoriza a atribuir a si próprio o nome de uma “pessoa moral, mística ou estatal”.
É esta pele de leão do eu que Eu, que sou verdadeiramente eu, tenho de arrancar a esse
imponente comedor de cardos. Em quantos roubos, de toda a espécie, não tive eu de
consentir ao longo da história do mundo, concedendo a Sol, Lua, estrelas, gatos e crocodilos
a honra de passarem por eus; depois veio Jeová, Alá e Nosso Senhor e ofereci-lhes também o
presente do eu; e vieram famílias, tribos, povos e por fim até a humanidade, e todos foram
honrados com o nome de eus; e veio o estado, a Igreja, com a pretensão de serem eus, e eu
deixei-me ficar calmamente a olhar. [NT]
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condições de reprodução socioestruturais do estado permanecem aqui
ocultas, e o discurso abstrato do ‘tirem o estado da cabeça’ não serve a
ninguém que viva numa ordem coercitiva histórico-específica
20
.
Certamente Kelsen está muito distante de avalizar um "anarquismo
ético-político" que "nega absolutamente toda validade às normas coativas
obrigatórias " (KELSEN, 2012, p. 52). Ao revés, ele não enxerga, a partir do
instinto natural egoísta do homem, qualquer outra possibilidade de vida em
conjunto que não por intermédio de uma tal ordem coerciva, isto é, ele
reintroduz as condições materiais do estado enquanto condições
antropológicas. Não seriam condições específicas de reprodução material,
mas a eterna natureza humana que faria o estado necessário. A "natureza do
homem" produziria espontaneamente "exploração econômica", e deveria ser,
por meio do estado, "permanentemente refreada" (KELSEN, 1931, p. 467).
Nesse ponto, não nada de extraordinário na afirmação de Kelsen de que o
estado seria obra dos homens e “da essência do estado, consequentemente,
não se pode derivar nada que contra o homem" (KELSEN, 2012, p. 52).
Isso pode dizer respeito a estados específicos, não ao estado enquanto tal.
Com isso, entretanto, novamente se deduz indiretamente algo sobre o estado
no contraste com o homem: 'você não pode existir sem estado (ou no mínimo
sem ordem coercitiva)'!
vimos, na contradição entre anarquismo voluntarista da validade
(cada um decide por si se uma ordem coercitiva é direito/estado) e
antropologismo da coerção (ordens coercitivas brotam inevitavelmente da
natureza humana), que Kelsen, apesar de todos os esforços no sentido da
pureza metodológica de sua teoria do direito, não consegue deixar de se
apresentar como teórico político. Se ele também abdicasse de tais assertivas
materiais mínimas sobre os fundamentos, origens e funções de ordens
coercitivas, ele permaneceria preso ao nirvana teórico da validade o estado
seria então, na realidade, pouco diferenciável do teorema de Pitágoras.
Kelsen via a função da ordem normativa estatal em domar a natureza
a-social dos homens e protegê-los uns dos outros, sobretudo da exploração e
da violência. Com essas definições, ele abertamente se posiciona na disputa
política no seio da socialdemocracia europeia após a I Guerra Mundial. Na
compreensão tradicional do marxismo a respeito do estado, em tal período,
dois modelos se contrapõem: para Engels e Lênin, como visto, o estado é
entendido como instrumento da classe economicamente dominante para a
20
Enquanto o anarquismo epistemológico se satisfaz com a assertiva de que se ninguém
acreditar no estado, ele não existirá”, a teoria materialista do estado investiga a razão de não
ser mero acaso que as pessoas acreditem no estado e produzam uma ordem coercitiva. O
segredo reside na formulação: as pessoas m de conferir à sua vontade condicionada por
essas relações* [sociais específicas] bem determinadas uma expressão geral como vontade
do estado, como lei” (MARX; ENGELS, 2007, p. 318, grifos IE).
*N.T.: na edição da Boitempo por nós referenciada, comete-se um equívoco na tradução da
palavra Verhältnisse utilizada por Marx e Engels originalmente, que foi vertida para
“condições” (e não relações, como é o correto).
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opressão dos explorados. A forma específica da organização moderna da
violência é ignorada, ou desqualificada como preconceito burguês. A
socialdemocracia majoritária, ao revés, compreende o estado como instância
de proteção dos subjugados, ferramenta para um desenvolvimento cultural
superior do homem e garantia do bem-estar geral (cf. LASSALLE, 1963, pp.
235-6). A forma neutra do estado moderno, sua autonomia relativa, é posta
de lado não como ilusão, mas é tida como encarnação da moralidade geral.
Kelsen, apesar de rejeitar em absoluto o “páthos” moral, defende a segunda
posição.
Ele considera O estado e a revolução, de Lênin, a autêntica
interpretação da "teoria do estado" marxiana: ele a teria "reconstituído" por
meio de seu escrito (KELSEN, 1967, p. 264). Ou seja, ele imputa a Marx uma
compreensão instrumentalista do estado, segundo a qual o estado teria
"servido exclusivamente à exploração de uma classe pela outra" (KELSEN,
1967, p. 266), representaria apenas "um comitê executivo dos capitalistas"
(KELSEN, 1967, p. 268), e até mesmo "só poderia ser a classe proprietária"
(KELSEN, 1967, p. 293). Kelsen compartilha essa compreensão do estado
com marxistas de seu tempo; ele coloca apenas um sinal negativo. Em
especial após a I Guerra Mundial, contudo, essa tendência se impõe também
no marxismo ortodoxo da II Internacional, o que Kelsen observa com
satisfação. Ele cita, para fins de comprovação, Kautsky, Bauer, Renner,
Hilferding, Cunow
21
e também Engels. Com isso, Kelsen demonstra, em parte,
uma visão acerca dos problemas teóricos do estado mais clara que a dos
chamados socialdemocratas: em especial, Kelsen reconhece corretamente a
"posição claudicante" de Engels (KELSEN, 1967, p. 277 - nota de rodapé)
entre instrumentalismo estatal (estado como meio não independente) e
diagnóstico de autonomização (estado como instância relativamente
autônoma, mediadora e localizada sobre as classes). Engels fala de
independência apenas momentânea do estado, por meio de contrapesos entre
as classes, que ele, por outro lado, qualifica como aparência: o estado seria
"ferramenta" direta da classe dominante. Somente "por exceção”, há períodos
nos quais a violência estatal, em contexto de "equilíbrio" entre classes, "como
mediador aparente, adquire certa independência momentânea relativamente
em face das classes" (ENGELS, 2012a, p. 216). Isto é, seu diagnóstico de
autonomização é sustentado puramente em termos da sociologia dos grupos
e referido a tendências bonapartistas de autonomização do executivo, que
descrevem algo essencialmente mais específico que a autonomia relativa do
estado. Kelsen reconhece também, mais claramente que os mais
entusiasmados estatistas radicais do austromarxismo de direita, que a
questão não pode versar sobre um equilíbrio de forças entre classes na
Áustria do pós-guerra (KELSEN, 1967, p. 287) e, por outro lado, que a ideia
21
Renner afirma que “já se verifica hoje o núcleo do socialismo em todas as instituições do
estado capitalista” (apud KELSEN, 1967, p. 272). Cunow finalmente conclui que hoje seria
verdadeiro o seguinte: “O estado somos nós” (apud KELSEN, 1967, p. 290).
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do estado como estado popular não estaria sociologicamente correta somente
com a existência de um governo de coalizão burguês-socialdemocrata, como
pensa Otto Bauer (cf. KELSEN, 1967, pp. 274-5)
22
: contrariamente à
compreensão do estado como instrumento da classe dominante, Kelsen fala
afinal no "colapso" da "teoria política marxista" (KELSEN, 1967, p. 271),
deflagrado pelas tendências socialistas estatais, pela organização sindical do
proletariado (KELSEN, 1967, p. 286), pelas crescentes possibilidades de
participação política - até a composição do governo, na Alemanha e na
Áustria, por partidos proletários (KELSEN, 1967, pp. 275-6; 290) - e pelo
nacionalismo de massas na I Guerra Mundial (KELSEN, 1967, pp. 268-9).
Agora estaria claro que o estado jamais seria puro instrumento de uma
classe, mas havia sempre se revelado um instrumento útil para proteger os
despossuídos contra exploração demasiadamente severa (KELSEN, 1967, p.
267). O ordenamento jurídico estatal seria uma estrutura de um
compromisso que "produz um equilíbrio de forças entre as classes" (KELSEN,
1967, p. 266), que deveria em geral ser também aceito pelos dominados, de
modo que os instrumentos coercivos do estado, colocados em primeiro plano
de maneira unilateral por Engels/Lênin, possam ser afinal utilizados
23
e,
assim, seja tal ordenamento compreendido como resultante de uma "relação
social de forças" (KELSEN, 1967, p. 274). Também aqui são novamente
sublinhadas a relacionalidade [NT: Relationalität] e a idealidade do estado,
em contraposição à representação de sua coisalidade [NT: Dinghaftigkeit] e
de seu caráter de fortaleza. Assim, o marxismo não conseguiria explicar a
"tendência imanente [dos órgãos estatais] a se autonomizar" (KELSEN, 1967,
p. 268). Kelsen "fundamenta" essa tendência de modo psicologista-metafísico,
a partir de um desejo por poder que é indestrutível e independente de todas
as condições econômicas /.../, e que domina o desenvolvimento de todas as
instituições conduzidas pelos homens", bem como a partir de ethos
preventivo de revoluções da burocracia, que induziria à atenuação da
oposição entre as classes e colocaria os funcionários do estado em "oposição
/.../ aos capitalistas" (KELSEN, 1967, p. 268). O estado seria, assim, "estado
não somente dos possuidores, mas também /.../ dos despossuídos" (KELSEN,
1967, p. 269), "também um estado dos proletários" (KELSEN, 1967, p. 274), o
que seria ainda fortalecido por meio de sua reivindicação de representar o
ideal nacional. Isso porque os despossuídos nunca seriam "tão despossuídos
22
Bauer reconhece na fase do governo de coalizão austríaco após a Primeira Guerra Mundial
a seguinte situação: “tratou-se de uma república na qual nenhuma classe era forte o
suficiente para dominar as demais, e com isso todas as classes deviam compartilhar o poder
estatal entre si. Então, todas as classes do povo tinham de fato sua participação no poder
estatal, a efetividade do estado era de fato a resultante das forças de todas as classes do povo;
desse modo, podemos designar essa república como república popular” (apud KELSEN, 1967,
pp. 275-6).
23
Cf. Kelsen: “também a ‘violência’ opera, em última instância, através do espírito (1967, p.
285).
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/.../ que não possuíssem sua nacionalidade e estivessem decididos a manter
essa posse" (KELSEN, 1967, p. 269).
Mesmo que isso seja "um bem imaginário", para os proletários,
entretanto, seria uma realidade psíquica, um bem pelo qual eles estariam até
mesmo dispostos a dar a vida. Também o nacionalismo é antropologizado:
Kelsen fala do "instinto" de submissão e de autoeliminação do homem. Além
disso, o irremediável "desejo por poder" buscaria sempre novas "máscaras"
(KELSEN, 1962, p. 25), para satisfazer sua necessidade de poder e
importância e para submeter indiretamente os outros, pois estes estão
submetidos à autoridade do mesmo modo que nós mesmos, e indiretamente
é possível exaltar a si mesmo como parte da respectiva comunidade através
de soberba religiosa ou de glorificação nacional (KELSEN, 2012, p. 41). Uma
vez que o estado, portanto, traria em si essas tendências "popular-
estatistas", tratar-se-ia apenas de fortalecer tais tendências por vias
reformistas, a fim de satisfazer às demandas do proletariado
24
.
A teoria do estado de Kelsen funde uma euforia em torno da direção -
ele fala das "ilimitadas possibilidades que o estado oferece em termos de
técnica social" (KELSEN, 1967, p. 270) com um sociologismo no que toca
ao conteúdo das normas jurídicas do estado ele fala de uma resultante de
interesses de grupos e remete a autonomização do estado a tendências
psicológicas ou conscientemente estratégicas. Mas, se houvesse um impulso
do homem por poder que levasse à autonomização do político, então deveria
existir em todas as épocas uma organização de poder autônoma,
"independente" (KELSEN, 1967, p. 268) e ao lado das relações 'econômicas',
o que não é o caso. Por certo, dificilmente pode-se negar que haja uma
aspiração por poder por parte dos funcionários do estado e um imperativo
organizatório de autopreservação. Isso pressupõe apenas aquilo que Kelsen
pretende explicar a partir por meio do impulso ao poder: a existência das
instituições a serem preservadas. Afora isso, coloca-se a questão de se a
tomada em conta das necessidades proletárias, se compromissos entre
interesses burgueses e dos trabalhadores ou se a presença de partidos do
proletariado no parlamento ou no governo alteram algo a respeito do caráter
burguês do estado.
O que Kelsen aqui chama de conteúdo das normas jurídicas é
exatamente aquilo que, em Marx, constitui a forma do estado burguês, seu
caráter de poder público "que não pertence a ninguém em particular, que está
acima de todos e que se endereça a todos (PACHUKANIS, 2017, p. 148).
Essa forma escapa a Kelsen devido à carência de uma teoria econômica que
pudesse explicá-la a partir das específicas relações de troca de mercadorias, e
é por ele reduzida a uma teoria de disputa de interesses entre grupos sociais.
Kelsen ontologiza normativamente a forma jurídica numa esfera de validade
24
Kelsen explica o suposto posicionamento crítico ao estado por parte dos primeiros
socialdemocratas a partir do caráter avesso a reformas e antidemocrático do império
(KELSEN, 1967, p. 287).
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autossuficiente (a norma deve sempre imperar), e ela deve ser a posteriori
materialmente preenchida por interesses os conteúdos histórico-específicos
são reduzidos a uma soma de conteúdos de vontade e de interesses
particulares. Dito de outro modo: assim como Lênin, Kelsen compreende o
caráter burguês do estado moderno como expressão da predominância de
interesses de classe burgueses, não como forma institucional de
separação/relação entre política e economia. Se outros interesses que não os
da classe burguesa encontram também acesso ao estado, então, segundo esse
ponto de vista, está fundamentalmente colocado em questão o caráter de
classe do estado, e liberado o caminho para a ideologia do estado popular
25
. E,
com isso, o sóbrio juspositivista Kelsen se transmuta em social-democrata
estatista, que, como alternativa a Marx, recomenda Ferdinand Lassalle aos
ideólogos de uma substância moral do estado
26
e de um nacional-socialismo
27
.
III. Estado do capital
Nem a doutrinação de Engels por Lênin, nem a crítica a Engels por
Kelsen podem dar uma resposta satisfatória à clássica questão formulada por
Pachukanis em 1924:
Por que o aparelho de coerção estatal não se constitui como
aparelho privado da classe dominante, mas se destaca deste,
assumindo a forma de um aparelho de poder público impessoal,
separado da sociedade? (PACHUKANIS, 2017, p. 143)
Pachukanis reconhece, portanto, que, com o estado moderno,
apropriação econômica e dominação política se dissociam, e a detenção do
domínio se torna despersonalizada. O estado é "um da classe dominante
particular e independentes /.../, que figura como força impessoal"
(PACHUKANIS, 2017, p. 144). A tradição da teoria da forma, ligada a
Pachukanis, relaciona-se, logo, também à definição de Engels do estado como
"estado do capital" e "capitalista global ideal”. Essa definição compreende o
estado não como ferramenta da burguesia, mas como uma
25
A respeito do dogma da estrutura externa ao sistema [systemfremden NT] do estado
democrático como estado somente no capitalismo (cf. BUSCH-WEßLAU, 1990, pp. 96-101).
Também os críticos do revisionismo Kautsky e Luxemburgo compartilharam, conforme a isto,
a posição de seus opositores no que tange ao suposto caráter exterior ao sistema
[systemfremden] da democracia (pp. 110-1). Criticamente a Kautsky, cf. também Projekt
Klassenanalyse (1976, pp. 84-104).
26
Cf. Lassalle: a finalidade do estado não é, portanto, a de proteger apenas a liberdade
pessoal e a propriedade do indivíduo isolado, com as quais este, segundo o pensamento da
burguesia, ingressa no estado ingressa; a finalidade do estado é a de, ao revés, através
dessa associação, colocar os indivíduos no posição de alcançar essas finalidades e um tal
nível de existência que eles enquanto indivíduos jamais puderam alcançar, capacitá-los a
exigir um conjunto de formação, poder e liberdade que para eles enquanto indivíduos seria
simplesmente inalcançável” (1963, p. 235).
27
Kelsen afirma isto (1967, pp. 294 ss) de bom grado.
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organização que a sociedade burguesa monta para sustentar as
condições exteriores gerais do modo de produção capitalista contra
ataques tanto dos trabalhadores como de capitalistas individuais
(ENGELS, 2015, p. 314).
Com essa indicação a respeito da função, porém, ainda não é
esclarecida a forma específica da estatalidade moderna.
A teoria da forma do estado indaga por que a coerção direta assume
duradouramente o formato de uma força monopolizada, extraeconômica e
pública, que domina por meio de leis abstratas e gerais; por que essa
violência reproduz a dominação do capital e, todavia, é reconhecida como
neutra e legítima. Não é exigido que se exponha uma história do estado
moderno, ou que se "expliquem" suas práticas a partir da funcionalidade
destas para a economia. A análise o precisa repassar o curso da história,
mas /.../ expor as formas na relação em que logicamente figuram, isto é, na
relação em que elas /.../ se reproduzem sob as condições de uma formação
social /.../ específica" (BLANKE et al., 1974, p. 65). A separação entre política
e economia vale, assim, tanto como “consequência quanto como pressuposto
(BLANKE et al., 1974, p. 69 - nota de rodapé) desse sistema. Investiga-se a
reprodução perene da separação [Diremtion NT] da economia e da política
sobre as próprias bases do modo de produção capitalista, e busca-se a análise
da relação sistemática de momentos necessários e mutuamente sustentados
de um ciclo de reprodução: não economia sem política, não política
sem economia. A sociedade civil, segundo os teóricos da forma, necessita do
estado na forma de sua separação em face dela mesma, separação que é ao
mesmo tempo a forma da relação constitutiva do estado para com tal
sociedade. Trata-se de explicar tanto a autonomização real quanto o laço em
comum constitutivo da política e da economia.
Os teóricos da forma reconhecem que partir diretamente das relações
de classe leva necessariamente a que se desperceba a forma específica da
organização moderna do poder. Ao contrário, dever-se-ia começar com a
maneira histórico-específica dos processos materiais de reprodução no
capitalismo: com a sociabilização do trabalho mediada pela troca e a
exploração do mais-trabalho. Com isso, a esfera de circulação funciona como
único ponto de partida possível para uma explicação do estado. A relação
entre forma mercadoria e forma estatal é concebida como mediada pela
forma jurídica. A reconstrução dessa “relação genética e identidade estrutural
entre valor e direito” (BLANKE et al., 1974, p. 73), ou melhor, entre valor e
direito/estado, orienta-se, portanto, fortemente pelas reflexões de
Pachukanis.
A relação de troca das mercadorias é entendida como relação de
mediação coisal-econômica [sachlich-ökonomischer - NT](BLANKE et al.,
1974, p. 70), como relação especificamente social entre coisas, relação em que
as coisas são postas por pessoas. As pessoas relacionam-se aí apenas por
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meio dessas coisas sociais, enquanto representantes de mercadorias
28
. A
relação social dos possuidores de mercadorias é mediada pelos produtos do
trabalho; eles não estão, no que tange à socialização de seus trabalhos, em
relação social direta uns com os outros. A relação de valor, enquanto relação
social entre coisas e autonomizada no dinheiro, implicaria uma relação social
específica, indireta das pessoas, que, afinal, as coisas “não podem ir por si
mesmas ao mercado” (MARX, 2013, p. 159). Ao mesmo tempo em que a
relação de valor, no que tange à constituição da forma econômica como
abstração real seria mantida independentemente da vontade dos homens
(cf. BLANKE et al., 1974, p. 70), ela conteria uma relação específica de
vontade dos possuidores de mercadoria uns com os outros, para
reciprocamente relacionar os produtos de seus trabalhos como mercadorias,
isto é, para trocá-los, e não deles se apropriar pela violência.
A "forma valor deve, portanto, 'do lado subjetivo', encontrar uma
forma adequada que permita unir os proprietários privados enquanto
sujeitos" (BLANKE et al., 1974, p. 68); as relações 'coisais' dos produtos do
trabalho têm lugar quando "os indivíduos se comportam de modo
adequado ao movimento do valor" (BLANKE et al., 1974, p. 73). Uma
abstração real dos valores de uso e dos trabalhos concretos exigiria, também,
uma abstração real dos homens enquanto indivíduos concretos com
propriedades diversificadas, o que constituiria os indivíduos como sujeitos de
direito iguais. Enquanto representantes de mercadorias de igual valor e com
livre movimento, os homens se reconhecem mutuamente como proprietários
privados livres e iguais de seus produtos, e o expressam no acordo de
vontades mutuamente vinculante, no contrato como "figura jurídica
originária" (BLANKE et al., 1974, p. 71): eles são, em igual medida,
possuidores de mercadorias, têm absoluto poder de disposição sobre a
própria mercadoria; não existe coerção extraeconômica para que seja
realizada a troca, mesmo com possuidores de mercadorias determinados, e
pode-se obter apenas um título de propriedade por meio da alienação do
próprio título. A forma abstrata do direito deve-se à "forma da relação do
trabalho social" (BLANKE et al., 1974, p. 70)
29
, mediada por coisas. Quando
Marx, então, diz que o conteúdo do direito define a forma jurídica, ou que
esta expressa aquela
30
, apenas fala de como esse conteúdo, a relação
econômica, exibe uma forma específica: a do valor como forma de
sociabilização de trabalhos privados-dissociados e de produtos, relação que
tem de reproduzir-se na relação de troca dos atores. De forma alguma pode
28
Cf. Marx: "os indivíduos confrontam-se apenas como proprietários de valores de troca, e
como tais deram-se reciprocamente uma existência objetiva através de seu produto, as
mercadorias. Sem essa mediação objetiva, eles não m relação uns com os outros" (1980, p.
53).
29
Cf. também a definição de forma jurídica de Cerroni, como "forma da relação de vontade
dos indivíduos isolados, que através da real mediação das coisas são postos socialmente em
relação uns com os outros" (1974, p. 91).
30
Marx (2013, p. 159) fala também no reflexo do conteúdo através da forma jurídica.
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com isso estar-se referindo a que um particular interesse de classe ou uma
vontade particular diretamente se erija em direito, como se supôs na teoria
jurídica soviética (cf. ELBE, 2008, pp. 388-9).
no nível do processo de troca, deveria ser constatado o caráter
contraditório do interesse comum dos possuidores de mercadorias como
universalidade dos interesses egoístas” (MARX, 2011a, p. 188): a forma de
socialização, a forma da troca de equivalentes seria para os produtores
privados isolados apenas meio para os fins de perseguição de seus interesses
particulares. A apropriação da propriedade alheia seria definida como
conteúdo, ou melhor, como motivo da socialização.
[O] interesse comum, que aparece como motivo do ato como um
todo, é certamente reconhecido como fact por ambas as partes,
mas não é motivo enquanto tal, ao contrário, atua, por assim dizer,
por detrás dos interesses particulares refletidos em si mesmos, do
interesse singular contraposto ao do outro. (MARX, 2011a, p. 187)
Do fato da socialização indireta, seguir-se-ia, portanto, a tendência
espontânea dos possuidores de mercadorias à violação das leis de
apropriação da troca de mercadorias
31
. Na forma jurídica do contrato, na qual
os atores mutuamente se reconhecem como proprietários privados e seria
vinculantemente fixado o acordo das relações de vontade de ambos os
possuidores de mercadorias em relação à forma do ato de troca”, não seria
ainda revogada [aufgehoben NT] a contrariedade de interesses dos
possuidores de mercadorias resultante da contradição entre valor de uso e
valor de troca” (LÄPPLE, 1976, pp. 126-7). A reprodução material dos
indivíduos em relações mediadas pela troca implicaria, portanto, exigências
contraditórias de comportamento, que necessitariam de uma forma de
movimento. Pachukanis constata que, entre os sujeitos do mercado coagidos
à concorrência devido ao ordenamento da propriedade privada,
[nenhum] deve ser capaz de surgir na qualidade de reguladora do
poder da relação de troca, mas, para isso, é preciso uma terceira
parte, que encarne aquela garantia mútua que os possuidores de
mercadorias na qualidade de proprietários dão um ao outro e que
são, consequentemente, as regras personificadas pela sociedade de
possuidores de mercadorias (PACHUKANIS, 2017, p. 150).
Aos proprietários de mercadorias defronta-se sua própria
racionalidade de cooperação sob condições antagônicas, enquanto instância
coerciva especial.
A forma jurídica estaria, no estado, por meio de uma força coercitiva
extraeconômica, codificada ("certeza jurídica quanto ao conteúdo") e
31
Cf. Läpple (1976, p. 126), bem como Marx e Engels: a atitude do possuidor de mercadorias
"para com as instituições de seu regime" é a seguinte: "ele as transgride sempre que isso é
possível em todo caso particular, mas quer que todos os outros as observem" (MARX;
ENGELS, 2007, p. 181). Os possuidores de mercadorias têm, portanto, " de conferir à sua
vontade condicionada por essas relações bem determinadas uma expressão geral como
vontade do estado, como lei" (MARX; ENGELS, 2007, p. 318).
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garantida ("certeza quanto à execução"
32
), o que constituiria as funções
legislativa e executiva do estado. Essa violência seria extraeconômica, pois a
coerção que ela exerceria sobre os sujeitos de direito deveria estar situada
fora das coerções coisais da circulação (dependência recíproca dos atores em
divisão do trabalho na produção privada, redução objetiva do trabalho
individual-concreto à medida social média do trabalho abstrato, coerção
"voluntária" à venda da força de trabalho), para que ainda possa se falar em
troca (BLANKE et al., 1974, pp. 169-70). A apropriação não pode, portanto,
suceder mediada pela violência; a violência tem de ser monopolizada para
além do campo de disposição dos guardiães de mercadorias isolados, numa
instância destacada e, se necessário, coagir violentamente à eliminação da
violência direta na economia
33
. A lei geral (em oposição ao privilégio no
feudalismo), a norma geral é a forma das medidas legislativas e executivas
estatais. Esta norma geral atua como princípio formal do estado, que seria
adequado às relações jurídicas anônimas da esfera da circulação, na qual os
indivíduos se inter-relacionam apenas como representantes de mercadorias
de igual valor: "seu pressuposto é a igualdade abstrata, portanto seu efeito
não pode ser outro que não um efeito igual para todos " (BLANKE et al., 1974,
p. 79). Regras estatais têm, por conseguinte, de assumir uma forma geral-
abstrata, normas devem ter validade sem consideração à pessoa concreta,
medidas estatais devem incidir em nome dessa forma legal, enquanto
dominação sem sujeito (BLANKE et al., 1974, pp. 72-3). Sublinha-se que a
realidade da forma abstrata-geral do estado de direito seu caráter de poder
coercivo extraeconômico que reina sobre todos os possuidores de
mercadorias em igual medida por meio de normas gerais e em nome dessa
forma legal não desaparece pela consideração das relações de classe, e não
se revela como névoa puramente ideológica. As determinações da circulação
simples (M-D-M), das quais provém a reconstrução da forma estatal, seriam
também determinações reais da relação de capital conceitualmente
desenvolvida (D-M-D'); as "modificações internas de função que surgem com
a emergência do capital não alteram em nada essa forma exterior" (BLANKE
et al., 1974, p. 73).
Devido à unidade [Ineinanders - NT] dialética - não reconhecível
empiricamente por força da mistificação do salário (MARX, 2013, p. 611) de
liberdade/igualdade no nível da circulação e ausência de
liberdade/desigualdade no nível da produção, o estado burguês preservaria
seu caráter duplo, como estado de classe e estado de direito que, em virtude
de sua função de estado de direito, de verdadeira garantia neutra do status
de proprietário privado de todos os possuidores de mercadorias, garantiria ao
mesmo tempo as condições de reprodução da relação de classes:
32
Ambas as expressões em Blanke et al. (1974, p. 72 - nota de rodapé n. 47).
33
"(...) segurança jurídica como exigência básica produz a coerção extraeconômica"
(BLANKE et. al., 1974, p. 72).
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Garantia de propriedade, que se refere à propriedade de
mercadoria, significa portanto, primariamente, garantia da forma
determinada do processo de produção, da relação do capital. A
partir da forma do direito, não se pode perceber, no todo, qualquer
mudança de função. Quanto à forma, é propriedade = propriedade
(e também isso não é uma “ilusão”! O poder coercitivo
extraeconômico protege também o direito de propriedade da força
de trabalho). Em termos de conteúdo, porém, a proteção da
propriedade do capital significa, ao mesmo tempo, proteção da
dominação do capital sobre o trabalho assalariado. (BLANKE et al.,
1974, p. 75)
O direito positivo pode, por conseguinte, ser compreendido como
forma de mediação e de movimento da relação de classes: o ato de troca sob
forma jurídica soluciona o problema específico dessa formação da
“conjugação de produtores e meios de produção sobre a base de sua
separação” (TUSCHLING, 1976, p. 16), e de maneira tal que, através da forma
específica de conjugação, essa separação é continuamente reproduzida. Isso
se tornaria possível na medida em que o direito abstrai das determinações,
em termos de conteúdo, dos possuidores de mercadorias e de seus valores de
uso, e a ambas as partes do ato de troca ‘trabalho assalariado-capital’,
tão logo sejam considerados como vendedores /.../, atribua-se a
apropriação do valor de uso da mercadoria alienada de um ao outro
ao trabalhador assalariado, portanto, o valor de uso da
mercadoria equivalente, e ao capitalista o valor de uso da força de
trabalho (TUSCHLING, 1976, p. 36).
Por meio disso, estaria garantida ao capitalista tanto a qualidade
gratuita do trabalho de preservar o valor dos meios de produção, como
também a parte material geral dos produtos do mais-valor produzido e
assim a reprodução da separação entre produtores e meios de produção como
resultado do processo de produção capitalista. Uma vez que o trabalhador,
por meio do ato de troca e sua forma contratual, teria concordado em “ceder
ao comprador o valor de uso de sua mercadoria temporariamente, assim
como o vendedor /.../ de todas as outras mercadorias promete ceder ao
comprador o valor de uso da mercadoria por outra equivalente”
(TUSCHLING, 1976, p. 37), não teria ele, igualmente, qualquer pretensão
jurídica ao produto por ele produzido.
Com essas poucas observações, foram expostos unicamente os
alicerces básicos abstratos da argumentação analítico-formal
34
. Deve,
contudo, ter ficado claro que esse conceito, por si, pode resgatar a ideia de
Engels a respeito do estado do capital e, com isso, evitar tanto a consideração
isolada e a entronização da forma abstrata-geral do estado na
socialdemocracia quanto a consideração isolada de seu particular conteúdo
de classe por Engels e Lênin. Estes não conseguem explicar como o conteúdo
de classe assume a forma do estado de direito; aquela não consegue explicar
34
Cf., mais minuciosamente, Elbe (2008, pp. 319-442), em especial quanto à crítica da tese
kelseniana de que o estado social seria uma parcela de socialismo no capitalismo.
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como essa forma reproduz necessariamente o conteúdo de classe. Fica
também claro que, na perspectiva analítico-formal, o caráter “burguês” do
estado é estabelecido num nível muito mais profundo que o do exercício
interessado de influência ou das relações políticas de força.
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Como citar:
ELBE, Ingo. Estado dos capitalistas ou estado do capital? Linhas de recepção
do conceito de estado de Engels no século XX. Trad. André Vaz. Verinotio
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2,
pp. 168-93, jul./dez. 2020.
Data do envio: 22 jul. 2020
Data do aceite: 9 ago. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.584
Lucas Parreira Álvares
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Engels, etnógrafo do capitalismo?
Lucas Parreira Álvares
1
Resumo: O presente artigo tem por objetivo contrapor as formulações que
advogam em defesa da posição de que A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra é uma obra fruto de uma investigação “etnográfica”. Para tanto,
através de uma análise imanente investigaremos o processo de pesquisa que
permeou a produção desta obra de Engels e seus textos suplementares. O
argumento é que embora seja possível extrair desta obra certos elementos
semelhantes às etnografias contemporâneas, o ato de reduzir a obra A situação
da classe trabalhadora na Inglaterra nesses marcos implica em uma traição
aos próprios pressupostos da investigação de Engels.
Palavras-chave: Etnografia; capitalismo; Friedrich Engels; observação
participante.
Engels, capitalism's ethnographer?
Abstract: The purpose of this article is to oppose the formulations that
advocate in defense of the position that The condition of the working class in
England is a work resulting from an “ethnographic” investigation. Therefore,
through an immanent analysis we will investigate the research process that
permeated the production of this work by Engels and its supplementary texts.
The argument is that although it is possible to extract from this work certain
elements similar to contemporary ethnographies, the act of reducing the work
The situation of the working class in England in these milestones implies a
betrayal of the very assumptions of Engels' investigation.
Keywords: Ethnography; capitalism; Friedrich Engels; participant
observation.
Em novembro de 1842, Friedrich Engels parte da Alemanha para a
Inglaterra com uma missão inusitada para aquele jovem que arriscava alguns
traços poéticos e estava bastante envolvido com os círculos intelectuais
alemães. Sua ida ao país anglicano tinha como justificativa um estágio na
empresa Ermen & Engels, uma fábrica de algodão cujo nome revela a
associação de sua família. Mais que um “estágio”, tratou-se de um momento
1
Doutorando em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail:
lucasparreira1@gmail.com.
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decisivo no itinerário intelectual de Engels: nos 21 meses em que fez parte da
empresa, acentuou consideravelmente seus estudos e pôde viver de perto as
intempéries que envolviam os trabalhadores da produção fabril. Como
resultado de suas investigações e observações, publicou uma obra capaz de
desnudar os segredos da ordem capitalista, levar a público dimensões
concretas da sociabilidade vigente e compartilhar com outros trabalhadores a
necessidade de superação da sociedade adjetivada por aquele modo de
produzir. Nascia, em 1845, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.
A composição desta obra e textos a ela complementares, impõe alguns
caminhos que contribuem para sua apreensão. O corpo do texto em si, onde é
exposta a investigação de Engels é apenas uma de suas faces. O livro foi
originalmente escrito em alemão, mas no mesmo ano de sua primeira
publicação, Engels escreveu um texto suplementar direcionado aos
trabalhadores ingleses: impresso de maneira externa ao corpo do texto, a
dedicatória “Às classes trabalhadoras da Grã-Bretanha” foi enviada a partidos,
movimentos de trabalhadores e políticos. Nela, alguma dimensão do
interesse de Engels com sua obra; o público a que ela se dirige; e as intenções
que estão nela subjacentes. Também, os prefácios de Engels às edições
estadunidense (1887), inglesa (1892) e alemã (1892), oferecem materiais que
possibilitam a análise sobre as particularidades existentes nesta importante
investigação. Desse modo, a investigação que aqui se inicia terá como
referência primária o corpo do texto original de Engels e os demais materiais
suplementares que contribuem para entendimento do todo.
A situação da classe trabalhadora na Inglaterra é uma obra que
provocou constantes disputas metodológicas. Em função das
particularidades que constituem sua investigação, o caráter informativo e
analítico desta obra a coloca em uma posição “seminal” para a história
econômica, a sociologia e uma série de ciências humanas e sociais aplicadas
surgidas ou repaginadas ao longo do século XIX (COTRIM; SOUZA, 2018, p.
15). Com o desenvolvimento das ciências parcelares, diversos intérpretes
tentaram reivindicar para si a fração de Engels que cabia a seus respectivos
campos de conhecimento. Não bastasse o balizamento nos marcos
disciplinares, o objetivo passou a ser a categorização desta obra complexa no
interior de subcampos acadêmicos. Desde então, A situação da classe
trabalhadora na Inglaterra foi anunciada como uma obra de sociologia
urbana” (cf. RIBEIRO, 2019), e frequentemente é tida como a primeira
“etnografia urbana” (cf. PATTERSON, 2014; MAGUBANI, 1985;
KATZNELSON, 1992).
O objetivo deste artigo é contrapor as formulações que advogam em
favor da posição de que A situação da classe trabalhadora na Inglaterra é um
trabalho etnográfico. Para tanto, centraremos nossa investigação no processo
que envolveu a produção desta obra de Engels e seus textos suplementares. A
partir das determinações contidas nesta importante obra, levaremos adiante
algumas proposições que podem se tornar um convite para uma resposta às
associações enunciadas que ainda provocam inquietações àqueles que
tentaram desvendar as razões e os limites investigativos de um dos principais
pensadores do século XX e que possui, em sua biografia, contribuições
inestimáveis que constituem versos da “poesia do futuro”.
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O primeiro destino de nosso breve itinerário anunciado corresponde ao
entendimento de algumas especificidades da investigação de Engels que
culminou na obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.
No fatídico “Prefácio” à Contribuição à crítica da economia política, um
dos mais citados textos de Karl Marx e onde se encontra alguma de suas
citações célebres” - como ironizava Althusser - o autor diz que “não se julga o
indivíduo pela ideia que de si mesmo faz” (MARX, 2008, p. 48). Pede
passagem uma investigação que confronte esta citação de Marx aos
pressupostos da pesquisa etnográfica, mas o intuito de trazer tal “citação
célebre” neste momento é o cometimento de uma aparente heresia: apresentar
o que Engels disse de seu próprio trabalho. Mas isso, não de maneira descolada
de sua investigação, mas sim, pela confrontação do que ele diz fazer com o que
de fato fez.
Ao falar de sua própria obra, Engels reflete sobre adjetivações de sua
pesquisa, suas intenções e a mesmo algumas questões pessoais que
atravessaram seu trabalho. É momento de investigarmos três dimensões que
comportam a pesquisa de Engels que culminou com a obra em questão. São
elas: 1) a pesquisa de documentos oficiais e não oficiais; 2) a pesquisa por
observação e relação direta; 3) a dimensão moral suscitada pela experiência de
campo.
Durante 21 meses, tive a oportunidade de conhecer de perto, por
observações e relações pessoais, o proletariado inglês, suas
aspirações, seus sofrimentos e suas alegrias ao mesmo tempo em
que completava minhas observações recorrendo às necessárias
fontes originais. Tudo que vi, ouvi e li está reelaborado neste livro.
(ENGELS, 2010, p. 41)
Logo no seu prefácio, Engels nos brinda com algumas informações de
sua investigação. A primeira delas é que sua experiência junto aos
trabalhadores da fábrica Ermen & Engels durou 21 meses, ou seja, quase dois
anos inteiros. As documentações que comprovam a estadia de Engels em
Manchester entre novembro de 1842 ao fim de agosto de 1844 coincidem com
o período no qual o autor afirma ter pesquisado a condição do trabalho e dos
trabalhadores na fábrica inglesa.
A observação ofereceu ao trabalho de Engels uma adjetivação singular
frente a outras investigações anteriores (cf. PARKINSON, 1841; GASKELL,
1833) que tentaram, cada qual a seu modo, apreender os nexos entre os quais
os trabalhadores ingleses eram envolvidos. No entanto, Engels não propõe
uma primazia da observação frente a outras formas de investigação. Por isso
assumiu que ao mesmo tempo em que sua relação com os operários produzia
informações imediatas, era fundamental recorrer às “necessárias fontes
originais” para completar suas observações.
Nesse aspecto, uma correspondência íntima entre o que Engels diz
de sua obra e o que ele de fato fez. Engels dispôs de uma série de informações
de origem concreta e estatística. Se orientando por investigações anteriores e
por uma série de documentos oficiais (como “relatórios sobre a condição de
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mulheres e crianças na atividade agrícola”, “relatórios sobre a condição
sanitária dos trabalhadores ingleses” etc.), pôde se utilizar de materiais
quantitativos acerca do número de prisões por crimes penalmente qualificados
entre 1805 e 1842 (ENGELS, 2010, p. 168), o aumento considerável da
exploração nas minas de carvão (ENGELS, 2010, p. 56), e a densidade
demográfica nos principais distritos industriais (ENGELS, 2010, p. 53);
também se utilizou de métodos cartográficos, desde uma antiga planta de
Manchester que denunciava as falibilidades de sua arquitetura urbanística
(ENGELS, 2010, pp. 87-92), até mapas que orientavam o cálculo da ventilação
ou da ausência desta nas residências operárias (ENGELS, 2010, pp. 98-9).
A profundidade da investigação de Engels revela uma versatilidade
notável deste autor no tratamento dos mais variados recursos à sua disposição.
É interessante perceber que Engels demonstra um apetite insaciável pelas
implicações que, no decorrer desses quase dois anos inteiros, sua investigação
suscitou. A imprevisibilidade é sempre um elemento presente nas pesquisas de
campo, e provavelmente Engels certamente não devia antever que a
“ventilação das residências operárias” fosse um dos aspectos relevantes que
sua investigação enunciaria. É comum que os escopos de pesquisas sejam
alterados em razão das dinâmicas colocadas no campo, e a convivência com os
operários, em seus mais distintos recintos, impôs a ele uma necessidade de se
aprofundar em algo que estava geograficamente distante da linha de
montagem, mas que intercedia diretamente na condição de saúde do
trabalhador fabril.
Pode parecer inusitado insistir nesse argumento, mas subjacente a ele
encontra-se adjetivações que compõe a especificidade de sua pesquisa. Engels
percebeu com primazia que “todas as grandes cidades têm um ou vários
‘bairros de má fama’ onde se concentra a classe operário” – o que, a propósito,
evidencia a associação entre a expansão de agrupamentos urbanos frente à
incidência da produção capitalista. Duas das “grandes cidades” por meio das
quais Engels se utilizou como exemplo ilustrativo são Londres e Manchester,
no entanto, a exposição de sua obra revela que o tratamento dado por esse
autor a essas cidades foi distinto. Vejamos, portanto, como Engels lida com a
ventilação nos bairros operários em Londres em comparação com o modo que
lida nas residências de Manchester.
Referente a capital inglesa, Engels demonstra que “a ventilação na área
[residências operárias] é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como
nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do
ar que se respira nessas zonas operárias” (ENGELS, 2010, p. 70) não é de se
espantar que o bairro com o qual Engels se utilizou de recurso ilustrativo fosse
conhecido como “ninho dos corvos” [rookery]. ao se referir a Manchester,
após fazer uma extensa descrição das condições precárias da residência dos
operários, Engels confessa: “relendo a descrição que apresentei, devo
confessar que, longe de ser exagerada, é muito débil para evidenciar a
imundície, a degradação e o desconforto dessa área que abriga, pelo menos,
entre 20 e 30 mil habitantes” e que sua “estrutura urbana é um desafio a
qualquer princípio de ventilação, salubridade e higiene”. Logo em seguida,
completa: “Basta vir até aqui para saber de quão pouco espaço para mover-se,
de quão pequena quantidade de ar e que ar! para respirar necessitam os
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homens e em que tão baixo nível de civilidade eles podem sobreviver quando
obrigados pela necessidade” (ENGELS, 2010, pp. 95-6).
Com as informações sobre as condições precárias das habitações
urbanas em Londres e a baixa circulação de ar nos bairros operários, Engels,
que se dispôs de dados estatísticos e cartográficos para apresentar tal
conclusão, afirma que “é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas
zonas operárias”. Diferente do ar dos bairros operários de Manchester, cujo
tratamento é distinto: “basta vir até aqui para saber /.../ quão pequena a]
quantidade de ar e que ar!”. Ou seja, diferente daquele, este ar Engels
respirou, e por meio dos apetites da sensibilidade pôde extrair conclusões
sobre a péssima condição do ar que os operários respiram em seus ambientes
de morada “e que ar!”.
A consulta aos dados estatísticos, através dos documentos oficiais,
parecia não corresponder à dimensão das pretensões e expectativas de Engels.
Insaciável, a diferença entre o tratamento dado à circulação de ar nos
diferentes bairros operários revela como a observação de Engels contribuiu
para o desenvolvimento de sua pesquisa e a consequente investigação. Nas
palavras do autor, em uma dedicatória redigida para os próprios trabalhadores
ingleses que foram seus interlocutores de pesquisa, Engels afirma que A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra é
uma obra na qual me esforcei por apresentar aos meus compatriotas
alemães um quadro fiel de vossas condições de vida, de vossos
sofrimentos e lutas, de vossas esperanças e perspectivas. Vivi entre
vós tempo bastante para alcançar o conhecimento de vossas
condições de existência, às quais consagrei a mais ria atenção,
examinando os inúmeros documentos oficiais e não oficiais que tive
a oportunidade de consultar. Contudo, não me contentei com isso:
não me interessava um conhecimento apenas abstrato de meu tema
eu queria conhecer-vos em vossas casas, observar-vos em vossa
vida cotidiana, debater convosco vossas condições de vida e vossos
tormentos; eu queria ser uma testemunha de vossas lutas contra o
poder social e político de vossos opressores (ENGELS, 2010, p. 37).
certa modéstia nessa afirmação de Engels, pois ele definitivamente
não foi apenas uma testemunha” das condições de vida e das lutas dos
operários contra o poder opressivo. Ele participou avidamente dos meios de
vida e de trabalho dos operários. A presença deste autor nos bairros pobres de
Manchester é apenas um exemplo de que ele realmente conviveu de perto com
seus interlocutores através de observações e relações sociais. Em suma, a
posição de Engels sobre sua pesquisa corresponde, mais uma vez, ao que ele
efetivamente fez.
um contraste entre a vida que levava na Alemanha em comparação
à que passou a ter na Inglaterra. Nos enleios de uma família bem afortunada,
pôde frequentar na infância um ginásio de ótima reputação; sempre esteve
diante de círculos artístico e intelectuais e, mesmo que desde jovem tenha
manifestado certas resistências a seus meios de vida, não deixou de receber de
seus progenitores uma solicitude constante e preocupada, fruto, por óbvio, do
fato de que Engels era o herdeiro designado da atividade empresarial da
família (STEDMAN-JONES, 1979, p. 388). Era de se esperar que o ato de
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frequentar espaços distintos daqueles que normalmente compunham seu
cotidiano destilasse espanto à sua família.
uma dimensão do afeto que também perpassa a investigação de
Engels. Os quase dois anos de pesquisa junto aos trabalhadores da fábrica
Ermen & Engels representava uma renúncia à vida que tinha à sua disposição,
que pode ser entendida também como um acerto de contas com seu passado.
Eis como procedi: renunciei ao mundanismo e às libações, ao vinho
do Porto e ao champanhe da classe média, e consagrei quase
exclusivamente minhas horas vagas ao convívio com simples
operários e estou, ao mesmo tempo, feliz e orgulhoso por ter agido
assim. Feliz, porque vivi muitas horas alegres dedicando-me a
conhecer vossa verdadeira existência, horas que, de outro modo,
seriam dissipadas em conversas fúteis e em cerimônias entediantes;
e orgulhoso, porque desse modo pude fazer justiça a uma classe de
homens oprimidos e caluniados e à qual, apesar de todos os seus
defeitos e de todas as dificuldades de sua situação, só podem recusar
estima aqueles que têm alma de negociante inglês; orgulhoso,
também, porque assim tive oportunidade de defender o povo inglês
do inelutável e crescente desprezo produzido no continente pela
política brutalmente egoísta, bem como pela conduta geral, de vossa
classe média dominante. (ENGELS, 2010, p. 37)
A experiência vivida em campo pode significar o divisor de águas sobre
como o pesquisador se enxerga no mundo. O compromisso com a investigação,
e consequentemente com os interlocutores, “é importante para conhecer as
pessoas intimamente, ver e compreender os conflitos e contradições entre eles
e, o mais importante, desafiar nossas próprias ideias e premissas” (SHAH,
2017, p. 51). Talvez Engels tivesse projetado as consequências que esses
quase dois anos na Ermen & Engels poderiam causar em seu percurso
intelectual e nas suas relações familiares. Mas a renúncia aos vinhos e
champanhes de classe média aparentemente valeram a pena. Conforme
afirmou 40 anos depois de sua primeira estadia naquela cidade, “vivendo em
Manchester, por assim dizer eu pegara com as mãos que os fatos econômicos,
que até então a historiografia desprezara ou menosprezara, constituem uma
força histórica decisiva” e que “eles formam a base dos atuais contrastes de
classe” (ENGELS apud STEDMAN JONES, 1979, p. 394). E nesse processo as
visões, os sons e os cheiros tiveram papel decisivo para o aprimoramento de
suas consequentes investidas críticas à economia política, a seu modo e a
contrapelo.
***
O segundo destino de nosso itinerário passa pela delimitação do que
normalmente é conhecido como “pesquisa etnográfica”, prática que,
contemporaneamente, pode ser enunciada como a coluna vertebral do
conhecimento antropológico.
O mais notório exemplo de uma produção etnográfica, cujo alcance
ainda ressoa além das aulas de Introdução à Antropologia, é Argonautas do
Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski. A investigação romântica deste
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intelectual nas Ilhas Trobriand arquipélago próximo da costa oriental da
Nova Guiné não é a primeira etnografia sob a órbita do conhecimento
antropológico, mas não dúvidas de que foi consagrada como a mais
influente para as linhagens teóricas que a sucederam.
Quando algum interesse em conhecer o modo de investigação dos
trabalhos clássicos, a “Introdução desta obra de Malinowski é um texto
incontornável. Argonautas foi publicado no ano de 1921, época em que a
antropologia se definia por investigar “sociedades tribais”, “sociedades
primitivas”, “sociedades indígenas” e “sociedades selvagens” termos que
carregavam certa valoração acerca das caracterizações dessas formas sociais.
Na famosa Introdução, onde Malinowski inaugura uma espécie de “padrão
expositivo” das grandes monografias antropológicas, reservando um lugar
reflexivo às experiências metodológicas do antropólogo frente a sua
experiência em campo, este investigador indica que os objetivos da pesquisa
etnográfica podem ser alcançados através de três caminhos:
1. A organização da tribo e a anatomia de sua cultura devem
ser delineadas de modo claro e preciso. O método de
documentação concreta e estatística fornece os meios com
que podemos obtê-la.
2. Este quadro precisa ser completado pelos fatos
imponderáveis da vida real, bem como pelos tipos de
comportamento, coletados através de observações
detalhadas e minuciosas que são possíveis através do
contato íntimo com a vida nativa e que devem ser
registradas nalgum tipo de diário etnográfico.
3. O corpus inscriptionum uma coleção de asserções,
narrativas típicas, palavras características, elementos
folclóricos e fórmulas mágicas deve ser apresentado
como documento da mentalidade nativa. (MALINOWSKI,
1978, p. 33)
Trazendo seus princípios metodológicos a um grau maior de abstração,
Malinowski resume os três diferentes caminhos que se utilizou para a
investigação dos trobriandeses ao afirmar que, “em breves palavras, o objetivo
[da pesquisa etnográfica] é o de apresentar o ponto de vista dos nativos, seu
relacionamento com a vida, sua visão de seu mundo” (MALINOWSKI, 1978,
pp. 33-4). Tal enunciação pode sugerir uma falibilidade da teoria frente ao
trabalho etnográfico de campo, mas Malinowski (1978, p. 23) assegura que
não, pois “o pesquisador de campo depende inteiramente da inspiração que lhe
oferecem os estudos teóricos”.
É claro que quando pensamos no contexto dos trobriandeses do
princípio do século XX, as categorias utilizadas por Malinowski sob influência
de seu trabalho de campo não correspondem aos dilemas do capitalismo inglês
investigado por Engels. Malinowski trabalhou com uma forma social cujo
“tempo de trabalho socialmente necessário” não atingia um terço das fábricas
inglesas; uma sociedade onde não podia existir movimento operário porque
sequer existia operariado; em que a produção social dos meios de vida era
coletiva e em escala infinitamente menor que aquela desempenhada na grande
indústria da Inglaterra. Em suma, Malinowski investigou a organização social
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dos trobriandeses, e com isso, os elementos que saltaram aos olhos do
antropólogo inglês foram distintos daqueles empreendidos por Engels na
primeira metade do século XIX em uma fábrica inglesa. O etnógrafo se
interessou pela dinâmica do kula, um sistema de troca intertribal característico
de povos do leste da Nova Guiné; pelo processo técnico de confecção de uma
canoa pelos trobriandeses; pelas expressões mitológicas e cerimoniais daquele
povo; e por outras determinações características e específicas dos nativos das
Ilhas Trombriand.
Os interesses da investigação de Engels eram absolutamente distintos:
ele identificou as condições precárias do proletariado; as dinâmicas
migratórias provocadas pelo trabalho; a relação entre a extração de matéria-
prima, a agricultura e a produção fabril; além, é claro, dos processos de
organização de classe por parte dos movimentos operários frente à sua sujeição
imposta pela burguesia. O objetivo aqui não passa por uma valoração de um
trabalho sobre o outro. Na verdade, queremos enfatizar que, estabelecendo as
devidas mediações, pode parecer que a investigação de Engels “cumpre”, a seu
modo, as diretrizes enunciadas por Malinowski em sua fatídica “Introdução”.
Em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, Engels: 1)
delineou de modo claro e preciso, com documentação concreta e estatística, a
organização dos operários fabris, seja no contexto de suas dinâmicas de
trabalho ou mesmo nas atividades de organização de classe; 2) não há dúvidas
de que Engels completa o quadro de fontes estatísticas oficiais com os “fatos
imponderáveis da vida real”, que a presença de Engels no cotidiano dos
trabalhadores o possibilitou, levando às últimas consequências seus apetites
sensíveis, um conhecimento aprofundado das condições de vida e de existência
desses operários; 3) e por mais que a terceira diretriz de Malinowski pareça
distante da realidade fabril da Inglaterra do século XIX, podemos notar que a
religiosidade, as crendices e outras expressões subjetivas foram importantes a
Engels, porém, com a razão inversa: Engels percebeu que “o Deus deste mundo
é o dinheiro” (ENGELS, 2010, p. 154) e que na medida em que se acentua a
pobreza dos operários, cresce o desprezo por soluções e respostas místicas.
Até certo ponto, a ilação segundo a qual a pesquisa de Engels cumpre os
requisitos de Malinowski não parece nenhum exagero. Uma investigação
etnográfica no contexto urbano da Inglaterra oitocentista altera o escopo da
“Introdução de Argonautas, mas ainda assim, a condição de Engels frente
àquela “comunidade” de trabalhadores da fábrica Ermen & Engels o propiciou
uma interação sensível a partir da experiência imediata que lhe foi conferida.
Além disso, Engels não reduziu sua investigação à dimensão descritiva:
produziu e coletou dados; acessou documentos; e não fez tábula-rasa do
conhecimento previamente existente, mencionando trabalhos anteriores que
foram caros à sua investigação. O acesso de Engels a espacialidades destinadas
a trabalhadores seja na fábrica ou em ambientes externos, como bares,
moradias e festas o alçou ao chão dos dramas pessoais, das reivindicações,
dos dilemas, e das demais intempéries que orbitavam o cotidiano dos operários
ingleses do século XIX.
No entanto, será que tal aproximação pode significar, por sua vez, que
Engels produziu uma pesquisa etnográfica”? Quais as implicações desse
enquadramento e por que tal associação provoca certo incômodo?
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Por fim, o destino final de nosso breve itinerário será composto por
alguns apontamentos sobre as consequências de enquadramento etnográfico
da obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels.
Vimos anteriormente que a obra de Engels em questão é distinta frente
às investigações precedentes e documentos oficiais que dispuseram, cada qual
a seu modo, compreender especificidades das dinâmicas capitalistas no
alvorecer da grande indústria. Isso, pois Engels qualificou sua pesquisa não só
com uma admirável e diversa fonte de materiais quantitativos, cartográficos,
oficiais; ele também usufruiu da aptidão sensível da observação e relação junto
a seus interlocutores, o que o propiciou experimentar as sensações e as
dinâmicas que envolviam o operariado fabril naquele contexto. Certas
semelhanças entre a pesquisa de campo realizada por Engels e as
especificidades da etnografia tornaram-se um convite para que alguns
intérpretes advogassem em defesa da posição de que a obra A situação da
classe trabalhadora na Inglaterra pode ser considerada uma pesquisa
etnográfica (cf. PATTERSON, 2014; MAGUBANI, 1985; KATZNELSON,
1992).
Houve uma “inflexão epistemológica”
2
na Antropologia durante as
décadas de 60 e 70 do século XX na qual o “o que pesquisar” cedeu lugar ao
“como pesquisar”. Esta sequer é uma posição oriunda de pensadores marxistas
na Antropologia, mas sim, de um dos mais importantes nomes da antropologia
hegemônica: Clifford Geertz (cf. 2001), responsável por propor uma
“antropologia interpretativa/hermenêutica”, que por sua vez inspirou
diretamente as tradições pós-modernas neste campo de conhecimento.
Marcada por investigações sobre formas sociais “primitivas” adjetivo que
corretamente foi extirpado de seu glossário a antropologia passou a se
constituir como uma disciplina cuja razão de ser encontra lugar no seu modo
de investigação: a etnografia e sua indissolúvel “observação participante”.
Essa inflexão epistemológica da antropologia se expressa no fato de que
um campo de saber que tinha sua especificidade assegurada a partir do âmbito
e dos caminhos a serem investigados, passou a guiar-se predominantemente
por um elemento constitutivo do modo pelo qual a pesquisa deve ser realizada.
Essa mudança abriu o leque antropológico sobretudo no tocante às
possibilidades de investigação de nossa própria sociabilidade ocidental e
passou a se distinguir de outros campos das ciências humanas e sociais não
pelo objeto desse campo de conhecimento, mas sim pela suposta especificidade
do trabalho desempenhado pelo antropólogo.
É verdade que não é unânime a posição segundo a qual a antropologia
se reduz à etnografia
3
, mas também é notório como as novas possibilidades
2
Não intentamos, neste artigo, defender ou criticar esse desvio significativo no escopo da
antropologia. Para uma exposição mais atenta sobre o que aqui é chamado de “Inflexão
Epistemológica”, conferir Álvares (2018).
3
Tim Ingold sugere que o objetivo da etnografia é “descrever as vidas de outras pessoas para
além de nós mesmos, com uma precisão e sensibilidade afiada por uma observação detalhada
e por uma prolongada experiência em primeira mão”. Delimitando sua posição, Ingold
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etnográficas encontraram respaldo nos caminhos trilhados pela história do
pensamento antropológico nas últimas décadas. Mauro W. B. Almeida (2003,
p. 9) tem razão quando diz que “a antropologia está em baixa, mas a etnografia
está em alta”; que antropologia da pobreza” soa pretensioso e démodé, mas
que etnografia da pobreza” parece soar bem aos ouvidos. Este antropólogo
nota com precisão que a disciplina antropológica abdicou da ambição teórica
tão cara entre seus fundadores modernos em favor da ideia de fazer
descrições sem teoria. Essa face etnográfica se assemelha à comparação feita
por Marisa Peirano (2014, p. 383) ao sugerir que a etnografia desvinculada da
ambição teórica se assemelha a “uma descrição jornalística, ou a uma
curiosidade a mais no mundo de hoje”, o que parece pouco frente a uma
pretensão que almeja refinamento teórico.
Os dados da Antropologia derivam, em última instância, da observação
daquilo que é investigado. O ato de observar e descrever as características
presentes em determinada sociedade tribal, por exemplo, é o tipo de trabalho
que metamorfoseia o pesquisador em etnógrafo (ÁLVARES, 2019, p. 94). No
entanto, a tarefa de observar, descrever e interpretar não é fruto do surgimento
da antropologia enquanto campo de conhecimento autônomo. É possível
observar, desde a história antiga, a descrição feita por determinado povo
acerca de outras culturas. Se fosse esse o critério, os escritos de Heródoto a
respeito dos persas poderiam ser caracterizados como escritos “etnográficos”
embora tal ilação adquira contornos visivelmente irrazoáveis.
Somente no entardecer do século XV uma tentativa de sistematização
do modo de compreender outros povos e expressões culturais. No entanto, essa
prática ainda era desempenhada por exploradores, aventureiros e
missionários, e essa forma de trabalho ainda não exprimia a profundidade e
complexidade das etnografias contemporâneas (CONKLIN, 1988, p. 154)
Tampouco era utilizado esse termo para se referir a esse tipo de investigação:
a origem do termo “etnografia”, do ponto de vista das ciências humanas e
sociais, se origina no ano de 1826 através do geógrafo italiano Adriano Balbi
por meio de seu Atlas etnográfico global. Todavia o termo “etnografia” ainda
não tinha nenhum vínculo com o modo pelo qual tal prática foi absorvida pelo
conhecimento antropológico: a utilização feita por Balbi se referia à
classificação de grupos humanos através de suas características linguísticas.
Como vimos, foi a clássica monografia Argonautas do Pacífico
Ocidental que propiciou a Malinowski o reconhecimento, pela literatura
antropológica, como o autor responsável por refinar a chamada pesquisa
etnográfica” nos moldes como tal empreendimento é atualmente reconhecido
por este campo de saber. No entanto, Malinowski reconhecia as limitações
impostas a esse tipo de estudo: “na etnografia, o autor é, ao mesmo tempo, o
seu próprio cronista e historiador; suas fontes de informação são,
argumenta que “aquilo contra o que eu me oponho não é à etnografia enquanto tal, mas ao seu
retrato como fim último da antropologia. Creio que a antropologia, ao sucumbir à etnografia,
desviou-se do seu propósito apropriado”, o que “impediu os esforços antropológicos de
contribuir para o debate de grandes questões de nosso tempo e comprometeu o papel da
academia”. Em função disso, Ingold constata que a etnografia “não é um método”, o que não
inviabiliza o fato de que ela possui seus próprios métodos, seus procedimentos e seus modos
de trabalhar (INGOLD, 2017, pp. 224-5).
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indubitavelmente, bastante acessíveis, mas também extremamente enganosas
e complexas” (1978, pp. 18-9). Além disso, também nota que uma
propensão de que as impressões digitais do etnógrafo marquem sua pesquisa,
pois é “frequentemente imensa a distância entre a apresentação final dos
resultados da pesquisa e o material bruto das informações coletadas pelo
pesquisador através de suas próprias observações, das asserções dos nativos,
do caleidoscópio da vida tribal” (1978, p. 19).
Convém ressaltar que a aproximação da pesquisa etnográfica com o
conhecimento antropológico teve motivações adversas às quais ela
normalmente é empreendida nas Universidades e empresas contemporâneas.
uma motivação colonial impregnada na origem da produção etnográfica
sob os matizes do conhecimento antropológico. “A colonização não é um
fenômeno do século XIX. Entretanto, essa foi a primeira vez em que se teve a
oportunidade de estudar sistematicamente os povos que foram colonizados
(ÁLVARES, 2018, p. 109). A investigação de Malinowski moldou, por algum
tempo, as formas de fazer pesquisa etnográfica. No entanto, as origens inglesa
e francesa da etnografia estiveram assumidamente vinculadas às intenções
coloniais. Os primeiros etnógrafos, desvencilhados do conhecimento
geográfico e sob a forma como hoje os conhecemos, eram também funcionários
a serviço do poder colonial (cf. LECLERC, 1973). Nas palavras de Hunter (apud
LECLERC, 1973, p. 32), um desses representantes, “estudamos as populações
das terras baixas como jamais algum conquistador estudou ou entendeu uma
raça conquistada”; conhecemos a sua história, os seus hábitos, as
necessidades, fraquezas até mesmo os seus preconceitos” e, assim, “este
conhecimento último fornece-nos a base dessas indicações políticas que, sob a
designação de previdência administrativa, de reforma em tempo útil, dão
satisfação à opinião pública”.
O conhecimento antropológico e o marxismo são filhos de um mesmo
tempo histórico, contudo, nascem por interesses divergentes:
a Antropologia surge como uma necessidade da ordem burguesa colonial; já o
marxismo, como reação a essa ordem (ÁLVARES, 2019, p. 218). Sopesar essa
relação é um exercício importante se quisermos pensar as implicações que a
investigação de Engels sobre a Situação da classe trabalhadora na Inglaterra
pode suscitar aliada aos marcos desta ciência parcelar, cuja fragmentação e
especialização foi também uma exigência dos desejos da expansão do
capitalismo. Também as motivações que constituíram as ciências parcelares
foram confrontadas pelo próprio Engels que, décadas após a publicação de sua
obra em questão, afirmou que “desde o momento em que cada ciência tem que
prestar contas da posição que ocupa no quadro universal das coisas e do
conhecimento dessas coisas, não margem para uma ciência
especialmente consagrada ao estudo das concatenações universais(ENGELS,
2011, p. 24).
É possível extrair do texto de Engels alguns elementos condizentes com
o modo pelo qual entendemos as adjetivações da chamada “etnografia”. No
entanto, podemos ser impelidos a cair nas armadilhas do capitalismo. Nesse
sentido, e para concluir, vale elencar alguns motivos demonstrativos de que as
implicações de tal posição sobressaem a eventuais vantagens: 1) as intenções
originárias da etnografia moderna são antagônicas às pretensões de Engels. Ao
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Lucas Parreira Álvares
205
passo que a etnografia se origina como um utensílio frente ao domínio
capitalista sobre outros povos, a obra A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra representa um grito do operariado em sua luta contra a burguesia;
2) o advento da etnografia sob a órbita do conhecimento antropológico é
também uma reprodução, no interior das ciências, dos desejos e anseios da
ordem capitalista; ao passo que tal fragmentação de conhecimento foi também
denunciada e confrontada por Engels; 3) as investigações da tradição marxista
devem prezar pela apreensão da totalidade dos fenômenos sociais, ao passo
que o movimento que a etnografia tem percorrido, desde suas origens, tem sido
pelo vetor oposto. Reduzir a complexa e importante obra de Engels nos marcos
de um subcampo de conhecimento é, antes de qualquer outra coisa, uma
traição a seus próprios anseios.
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Como citar:
ÁLVARES, Lucas Parreira. Engels, etnógrafo do capitalismo? Verinotio
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2,
pp. 194-206, jul./dez. 2020.
Data do envio: 31 ago. 2020
Data do aceite: 20 out. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.561
Vladmir Luís da Silva
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A superação dos pilares do marxismo de Friedrich Engels na obra
de György Lukács: rumo ao resgate do pensamento de Karl Marx
Vladmir Luís da Silva
1
Resumo: A obra de Friedrich Engels constitui momento ineludível na
formação e apresentação do que veio a ser conhecido como marxismo. Nesse
sentido, é uma das peças teóricas fundamentais na determinação do modo
como a obra de Karl Marx foi recebida. Nosso intuito neste trabalho é
mostrar a crítica desse marxismo particular na obra de Grgy Lukács.
Entendemos aqui que os esforços do filósofo húngaro constituem uma
importante via de acesso ao verdadeiro sentido da obra marxiana.
Palavras-chave: Friedrich Engels; marxismo; dialética; método; ontologia.
The overcoming of the pillars of Friedrich Engels’ Marxism in
György Lukács’ work: towards the rescue of Karl Marx’s thought
Abstract: Friedrich Engels’ work constitutes an unavoidable moment in the
formation and presentation of what came to be know as Marxism. In this
sense, it is one of the fundamental theoretical pieces in the determination of
the way in which Karl Marx’s work was received. Our aim in this work ist to
show a criticism of this particular Marxism in György Lukács’ work. We
assume here that the efforts of the Hungarian philosopher constitute an
important access way to the true meaning of Marxian work.
Keywords: Friedrich Engels; Marxism; dialectics; method; ontology.
1
A trajetória intelectual de Lukács até chegar ao pensamento de Marx
enquanto obra de natureza ontológica é marcada por um diálogo intenso com
Engels. Trata-se, a nosso ver, de um ângulo privilegiado para a apreensão do
caminho lukacsiano até a compreensão da obra marxiana enquanto
pensamento de caráter ontológico. Não pensamos aqui em analisar em
detalhe a virada ontológica do pensamento de Lukács ou mesmo seus
1
Doutor pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Autor de A imagem do Brasil"
na obra de Carlos Nelson Coutinho: a hipótese da "via prussiana" e da "revolução passiva"
(Novas Edições Acadêmicas, 2015). E-mail: vladmirluis@yahoo.com.br.
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motivos, mas captar uma faceta que nos parece decisiva nesse processo.
Ainda que nem sempre explícita, tal interlocução nos permite visualizar o
complexo processo de superação que levou o pensador húngaro a alcançar
uma interpretação do pensamento marxiano que julgamos bastante
acertada
2
. Trata-se de empreendimento que revela o verdadeiro significado
da obra de Marx a partir do exercício da leitura imanente, permitindo assim a
superação das velhas e cristalizadas interpretações de caráter gnósio-
epistemológico, isto é, as versões nas quais o pensamento marxiano é tomado
primordialmente sob o prisma da teoria do conhecimento ou do método.
Não temos aqui a pretensão de realizar um escrutínio de toda a obra
lukacsiana, mas apenas analisar alguns dos momentos nos quais o filósofo
húngaro se posiciona em relação aos principais lineamentos engelsianos que
dão forma ao marxismo. A escolha pelas ocasiões em que o interlocutor é
Engels se pela sua importância na definição dos rumos interpretativos e
mesmo constitutivos do pensamento de Marx. Trata-se, não custa lembrar,
do primeiro e principal marxista, fundador de uma tradição predominante no
interior das correntes teóricas e políticas vinculadas ao marxismo.
No desenvolvimento deste trabalho, tocaremos em diversos pontos
controversos da história do marxismo, em especial as intrincadas relações
entre as obras de Marx e Hegel. Trata-se de um complexo problemático
bastante amplo e já discutido por vários autores, em diversos contextos.
Nossa pretensão aqui é abordá-lo apenas na medida em que Lukács realiza
uma contribuição importante. Também nos absteremos de esmiuçar o debate
em torno do papel de Engels na construção do marxismo. Esboçamos um
quadro dessa discussão em outra oportunidade (cf. SILVA, 2019, pp. 16-26).
Por questões de espaço e inteligibilidade, focaremos no objeto específico
constituído pelo diálogo de Lukács com Engels na busca da apreensão do
sentido do pensamento de Marx.
2
Ao sinalizarmos que a trajetória de Lukács é marcada por mudanças de rumo e escolhermos
um de seus momentos para análise, não negamos que exista, em alguma medida, uma
unidade estrutural no conjunto de sua obra. Com boa dose de razão, tanto Nicolas Tertulian
(1999; 2002) quanto Guido Oldrini (no texto de apresentação ao volume II da edição
brasileira da ontologia) insistiram nesta direção. Além de fazer o mesmo, István Mészáros
ofereceu um esboço do quadro histórico e político que impulsionou as mudanças que
constituem o objeto de nosso trabalho (cf. MÉSZÁROS, 2013). Também não sugerimos aqui
que a obra de Lukács possa ser reduzida à conquista de uma posição marxista de natureza
ontológica, mas apenas que a evolução que leva a essa última é importante para o resgate da
obra marxiana. Nosso recorte tem em vista que o pensamento de Marx foi pervertido em
diversos debates e lutas políticas e que o trabalho de Lukács é um ponto alto nas tentativas
de explicitar seu sentido originário.
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2
A primeira peça da galeria lukacsiana que tomamos para análise é um
trabalho protomarxista, a saber, História e consciência de classe (1923),
conjunto de ensaios nos quais o filósofo húngaro se debatia em busca de
instrumental teórico propriamente marxista, mas ainda se via preso nas
tramas da filosofia hegeliana
3
. Desde as páginas do prólogo, somos
informados acerca do impulso que anima a empreitada do autor, a saber,
captar o verdadeiro e único método para a compreensão e transformação da
realidade. Mesmo quando analisa aspectos do pensamento de Rosa
Luxemburgo e de Lênin, Lukács é insistente na afirmação de que o momento
mais importante é a apreensão do momento metodológico: “trata-se /.../ e
essa é a convicção fundamental destas páginas , de compreender
corretamente a essência do método de Marx e de aplicá-lo corretamente, sem
nunca ‘corrigi-lo’ em qualquer sentido que seja” (LUKÁCS, 2003, p. 53).
É também no prólogo que Lukács nos diz que suas rusgas com Engels
ocorrem em nome de uma defesa do marxismo ortodoxo, isto é, quer a
“explicação da doutrina de Marx no sentido de Marx. A fixação do autor em
relação ao âmbito propriamente epistemológico “é determinada, antes de
mais nada, pela convicção de que a doutrina e o método de Marx trazem,
enfim, o método correto para o conhecimento da sociedade e da história”. O
núcleo da metodologia almejada é a dialética. No tocante aos serviços
prestados pela Lógica de Hegel ao tratamento marxiano da economia
política, o filósofo húngaro os interpreta o no sentido das relações
filológicas entre os dois mestres alemães. Para Lukács, “não se trata das
ideias de Marx sobre a importância da dialética hegeliana para o seu próprio
método, mas do que esse método significa de fato para o marxismo”. Em seu
entender, a referência marxiana a um “flerte” com “o modo de expressão”
hegeliano em O capital “induziu frequentemente a considerar a dialética em
Marx como um acréscimo estilístico superficial que, no interesse do caráter
científico, deveria ser eliminado do método do materialismo histórico do
modo mais enérgico possível (LUKÁCS, 2003, pp. 54-6). Assim, o autor
húngaro entende como tarefa fundamental resgatar o que “há de
metodologicamente fecundo no pensamento de Hegel, distinguindo-o
cautelosamente do resto de seu sistema. Observe-se, de passagem, que essa
distinção entre método revolucionário e sistema conservador em Hegel era
uma proposta feita por Engels.
A ideia nuclear do pensamento lukacsiano no período de História e
consciência de classe é a da identidade de sujeito e objeto na figura do
proletariado revolucionário. Tal seria a chave para a unificação de teoria e
prática no processo da revolução. Sendo a dialética materialista
revolucionária, trata-se “de investigar, tanto na teoria como na maneira como
3
Tendo em mente o vivo interesse de muitos autores importantes e leitores em geral por
História e consciência de classe, é necessário dizer que, ao qualificá-la como obra
“protomarxista”, não pretendemos negar os seus méritos, mas apenas sinalizar seu lugar na
evolução do pensamento de Lukács. Fazemos isso a partir das próprias críticas feitas pelo
filósofo ao livro de 1923, muitas delas reproduzidas no decorrer deste artigo.
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ela penetra nas massas,” os “momentos” e “determinações que fazem da
teoria, do método dialético, o veículo da revolução”. Apenas uma dada forma
de relação entre a consciência e a realidade possibilitaria a união entre a
teoria e a práxis. A esse respeito, Lukács escreve:
a conscientização precisa se transformar no passo decisivo a ser
dado pelo processo histórico em direção ao seu próprio objetivo
/.../. Somente quando a função histórica da teoria consistir no fato
de tornar esse passo possível na prática; quando for dada uma
situação histórica, na qual o conhecimento exato da sociedade
tornar-se, para uma classe, a condição imediata da sua
autoafirmação na luta; quando, para essa classe, seu
autoconhecimento significar, ao mesmo tempo, o conhecimento
correto de toda a sociedade; quando, por consequência, para tal
conhecimento, essa classe for, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do
conhecimento e, portanto, a teoria interferir, de modo imediato e
adequado no processo de revolução social, somente então a
unidade da teoria e da prática, enquanto condição prévia da função
revolucionária da teoria, será possível (LUKÁCS, 2003, pp. 65-6).
Ao contrário das demais classes sociais, o proletariado é capaz de
alcançar o ponto de vista que lhe permite a compreensão da sociedade
capitalista enquanto totalidade, superando o nível do imediato. Isto é, a
dialética materialista, enquanto consciência de classe do proletariado, lhe
permite compreender a si mesmo e, portanto, a totalidade da sociedade,
limpando o terreno para a revolução. Desse modo, a teoria marxista se
vincula de modo necessário ao processo de revolução, como sua condição
prévia. O esclarecimento desta função da teoria ajuda a entender o método
dialético. E aqui Lukács lança uma leve censura contra Engels. Esse último
negligenciou justamente a questão das interações entre sujeito e objeto. De
fato, Engels descreve o método dialético enquanto oposto à metafísica, isto é,
como procedimento no qual a rigidez dos conceitos é dissolvida e a passagem
de uma determinação a outra é fluida. Aqui, consequentemente, a ação
recíproca ocupa o lugar da causalidade rígida e unilateral da metafísica. Não
obstante, Lukács vê problemas na descrição engelsiana:
Mas o aspecto mais geral dessa ação recíproca, a relação dialética
do sujeito e do objeto no processo da história, não chega a ser
mencionado, e muito menos colocado no centro (como deveria -
lo) das considerações metodológicas. Ora, privado dessa
determinação, o método dialético (malgrado a manutenção,
puramente aparente, é verdade, dos conceitos “fluidos”) deixa de
ser um método revolucionário. (LUKÁCS, 2003, p. 67)
Desse modo, ao ignorar a dialética de sujeito e objeto, Engels não
capta a principal diferença entre os estudos guiados pela metafísica e pelo
método dialético, a saber, que no primeiro a prevalência de uma
perspectiva contemplativa e no segundo o problema central é a
transformação da realidade.
No entender de Lukács, outra falta cometida por Engels foi a de ter
estendido indevidamente o método dialético ao conhecimento do âmbito da
natureza. Contra essa postura, que é também a de Hegel, o filósofo húngaro
considera importante a restrição de tal procedimento à realidade histórico-
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social. Em sua visão, explicitada de modo bastante breve, as determinações
decisivas da dialética (interação entre sujeito e objeto, unidade de teoria e
prática, modificação histórica do substrato das categorias como fundamento
de sua modificação no pensamento etc.) não estão presentes no
conhecimento da natureza (LUKÁCS, 2003, p. 69). Como bem o observa
Tertulian no posfácio ao texto Reboquismo e dialética, de Lukács, à época de
História e consciência de classe esse autor esposava um “‘sociocentrismo
acentuado, que absolutizava a mediação social da consciência e, sobretudo,
sua vocação transformadora”. Consequentemente, a recusa de uma dialética
na natureza ou a afirmação de que essa esfera constitui uma “categoria social”
não emerge tanto como “desconfiança em relação à autonomia ontológica da
natureza”, mas sim enquanto “significativa resistência à ideia de uma relação
direta, não afetada pela mediação social, do sujeito cognitivo para com a
natureza” (TERTULIAN, 2015, p. 135).
A insistência de Lukács na importância da mediação social da
consciência nos diversos processos o leva a formular uma crítica mais densa
contra a teorização empreendida por Engels. Esse é criticado por suas
considerações em torno da noção kantiana de “coisa em si”. De acordo com
Engels, a práxis é capaz de converter qualquer coisa “em si” em coisa “para
nós”, no sentido de que a atitude própria da indústria e da experimentação
promove a reprodução humana de processos da natureza a partir das
condições próprias dessa e também a sua submissão aos intuitos humanos.
Por esse meio, poderíamos provar a correção de nossa concepção acerca de
um fenômeno natural qualquer. Como exemplo, é arrolado aqui o caso da
produção industrial da alizarina. De saída, Lukács afirma que é inapropriado
contrapor, no sentido da filosofia hegeliana, as noções de em si e para nós,
pois o velho filósofo alemão tomava ambas como equivalentes, residindo seu
contraponto preferencialmente na ideia de um objeto “para si”:
Se alguma coisa é dada simplesmente em si isso significa para
Hegel que é dada somente para nós. O contrário do para nós ou
em si é, antes, o para si, essa espécie de posição em que o ser-
pensado do objeto significa, ao mesmo tempo, a consciência que o
objeto tem de si mesmo. (LUKÁCS, 2003, p. 278)
Na mesma direção, também é refutado o posicionamento engelsiano
referente ao suposto limite cognitivo estabelecido por Kant. Na versão de
Engels, Kant toma a coisa em si como barreira intransponível do
conhecimento. De acordo com Lukács, o filósofo de Königsberg, “que partia
metodicamente da ciência da natureza mais avançada da época, a astronomia
de Newton, e moldara sua teoria do conhecimento justamente à medida desta
e de suas possibilidades de progresso, admite, portanto, necessariamente a
possibilidade ilimitada de alargamento desse método (LUKÁCS, 2003, p.
278). A crítica kantiana tinha em vista, na verdade, uma especificação: nosso
conhecimento refere-se aos fenômenos e não às coisas em si mesmas. Trata-
se, assim, de “barreiras estruturaisdo conhecimento que podemos adquirir.
A principal reprimenda de Lukács se dá, no entanto, pelo fato de
Engels “designar como práxis no sentido da filosofia dialética a atitude
própria da indústria e do experimento”. Para Lukács, o experimento é
justamente o comportamento contemplativo em sua forma mais pura.
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Denuncia-se aqui a natureza da atividade da observação científica, isto é, a
redução do substrato material analisado a um ‘produto’ puramente
racional”. Essa observação afasta os aspectos perturbadores e irracionais em
prol da visualização o mais pura possível das leis visadas. Quanto à indústria,
Lukács aponta a falta de consciência de seus agentes como fator decisivo.
Como observamos anteriormente, no esquema lukacsiano apenas o
proletariado é capaz de superar a imediaticidade da sociedade reificada e
alcançar a totalidade. Essa ausência de consciência dos setores dirigentes
permite a prevalência de uma lei natural na sociedade capitalista. Assim, o
filósofo húngaro conclui ser visível no espírito do marxismo /.../, que a
‘indústria’, isto é, o capitalista como portador do progresso econômico,
técnico etc., não age, mas sofre a ação, e que sua atividade se esgota na
observação e no cálculo exato do efeito objetivo das leis sociais naturais”
(LUKÁCS, 2003, pp. 279-80). Essa desvalorização das formas mais básicas
de ação sobre a natureza enquanto atividades meramente contemplativas por
parte de Lukács deriva de sua compreensão de práxis, a saber, a ação
emancipadora do proletariado revolucionário. Nos termos de Tertulian,
tentado mais fortemente a identificar a práxis com a práxis social
revolucionária, ele tratava com certo distanciamento as formas
mais elementares e mais modestas da práxis, chegando até a negar
à experimentação e à indústria, exemplos utilizados por Engels, o
caráter de práxis (TERTULIAN, 2015, p. 132).
Poucos anos depois da publicação de História e consciência de classe,
Lukács resolveu responder a alguns de seus críticos, nomeadamente Abram
Deborin e László Rudas. Composto provavelmente entre 1925 e 1926, o texto
Reboquismo e dialética veio à luz em meados da década de 1990. Nele,
Lukács realiza a defesa dos principais momentos do livro de 1923 e retorna a
alguns pontos de sua crítica a Engels. O filósofo húngaro parece ter voltado
atrás ao menos em uma de suas reservas quanto aos posicionamentos
engelsianos, a saber, a recusa da tese da dialética da natureza. De fato, Lukács
parece ter relativizado essa negação. O autor nega que a dialética seja produto
do desenvolvimento histórico-econômico da humanidade ou algo de caráter
meramente subjetivo. Contundente, afirma:
Obviamente, a sociedade surgiu a partir da natureza. Obviamente,
a natureza e suas leis já existiam antes da sociedade (portanto,
antes dos seres humanos). Obviamente, seria impossível que a
dialética se tornasse efetiva como princípio objetivo de
desenvolvimento da sociedade se não estivesse ativa, se não
existisse objetivamente como princípio de desenvolvimento da
natureza anterior à sociedade. (LUKÁCS, 2015, p. 91)
Apesar da relativização em causa, Lukács mantém-se firme na
convicção, a nosso ver correta, de que a preexistência de uma dialética na
natureza não impede que o desenvolvimento histórico faça surgir novas
formas objetivas de movimento, novos fatores dialéticos. Ao mesmo tempo,
enfatiza que o conhecimento do desenvolvimento da dialética natural é
possível com a mediação das “novas formas socialmente dialéticas”.
É, não obstante, no âmbito da manutenção de posições que Lukács
gasta a maior parte de sua energia. É no interior desse esforço que temos a
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reafirmação de certas críticas a Engels, inclusive com uma argumentação
mais detalhada em relação ao livro de 1923. Novamente, a preocupação de
Lukács é com o contexto no qual se torna possível a emergência de um
conhecimento dialético:
do fato de que o próprio processo objetivamente real é dialético, de
que a gênese e a vinculação reais dos conhecimentos que
corretamente o refletem são igualmente dialéticas, nem de longe
decorre que todo conhecimento sempre tenha de surgir na forma
de conhecimento do método dialético. /.../ Depende da estrutura
econômica da sociedade e da situação de classe nela assumida pelo
cognoscente se e em que medida um contexto objetivamente
dialético assumirá a forma dialética, se em que medida os homens
poderão tomar consciência do caráter dialético do contexto em
questão (LUKÁCS, 2015, pp. 97-8).
A preocupação de Lukács diante de seus adversários é com as
interações de sujeito e objeto, a unidade de teoria e prática, isto é, quer
enfatizar a gênese não científica do método dialético, mas também seu
contexto histórico-social. Esse é o espírito que anima a retomada da polêmica
contraposição entre as noções de “em si” e “para nós”, de um lado, e “para si”,
de outro. Para Lukács, os conhecimentos sobre a natureza se dão na forma do
correlato “em si para nós”, ao passo que aqueles referentes à história
baseiam-se no fato de que a própria matéria impele à forma do ser para si”.
Consequentemente, as formas de ação que tem por objeto direto a natureza
(experimento e indústria) são consideradas inferiores à práxis atinente à
transformação social. Daí o autor explicar que nunca negou que o
experimento e a indústria convertem a coisa em si em coisa para nós, mas
apenas que tal transformação não refutava as extravagâncias kantianas.
Para Lukács, a refutação oferecida por Engels seria eficaz caso o
agnosticismo de Kant se referisse à “incognoscibilidade pura e simples do
mundo exterior” ou ao “caráter de aparência subjetivo do conhecimento”. No
entanto, na filosofia kantiana afirma-se categoricamente a cognoscibilidade
do campo dos fenômenos objetivos, cujo estatuto jamais pode ser reduzido ao
da simples aparência. Lukács também afirma que é possível ser um agnóstico
no âmbito filosófico sem levar o agnosticismo em conta no comportamento
prático, no caso, produzir a alizarina. Assim, é necessário refutar Kant no
campo da filosofia. E Engels de fato enveredou por este caminho ao recorrer à
crítica Hegeliana à noção de coisa em si: “se conhecerdes todas as
propriedades de uma coisa, conhecereis a própria coisa; nesse caso, nada
resta além do fato de que a referida coisa existe fora de nós” (HEGEL apud
LUKÁCS, 2015, p. 112). O pressuposto da posição de Hegel era a fluidificação
dialética das interações entre sujeito e objeto, em oposição à sua apreensão
metafísica em Kant. Para Lukács, “Hegel rejeita acima de tudo a
representação de que as propriedades da coisa seriam algo meramente
subjetivo”. Além de evidenciar o caráter contraditório do entendimento de
Kant por meio da afirmação do devir como momento preponderante, Hegel
também comprova “que esse entendimento constitui uma estrutura do
conhecimento que necessariamente surgiria em determinado estágio da
apreensão humana do mundo (LUKÁCS, 2015, p. 113). Isto é, a crítica
hegeliana possui caráter não apenas dialético, mas também genético.
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Não obstante, Lukács aponta uma limitação grave no empreendimento
hegeliano, a saber, seu caráter meramente lógico. Isto é, não em Hegel
“uma gênese concreta dessa filosofia, não existe uma gênese histórica. No
entender de Lukács, apenas o materialismo histórico seria capaz de oferecer a
concretização histórica das conquistas hegelianas e de “provar que a
concepção de realidade de Kant não é uma postura possível diante da
realidade, mas a consequência concreta de uma situação de classe concreta”.
Desse modo, a refutação filosófica assume a forma da tomada de consciência
de si por parte do proletariado, ou seja, a aclaração da dialética do
fenômeno de que fala Kant “constitui um produto da transformação do ser
social, à qual tanto o experimento quanto a indústria devem sua existência,
que se torna consciente na consciência de classe do proletariado igualmente
um produto desse desenvolvimento na forma do para si”. Assim, o
experimento pode valer como exemplo de refutação da coisa em si para
aqueles que, como Engels, estão cônscios dessa refutação no materialismo
histórico. Se não for adepto desse último, nem mesmo o experimentador é
capaz de chegar ao conhecimento correto, pois “o experimento em que a coisa
em si se converte em coisa para nós é dialético em si; para revelar seu
caráter dialético para nós, é preciso que um elemento novo seja acrescido:
justamente o materialismo histórico” (LUKÁCS, 2015, pp. 113-4). Para o
filósofo húngaro, a limitação do experimento ao âmbito do imediato é ainda
mais flagrante quando tal categoria é aplicada ao estudo da sociedade e da
história. Nessas áreas, o experimento perde o rigor típico de seu emprego nas
ciências naturais e tem aguçado o seu caráter contemplativo.
Na defesa de suas posições, Lukács lembra que para Marx a refutação
filosófica das extravagâncias filosóficas ocorre apenas por meio da “práxis
transformadora”. A questão que passa a norteá-lo, então, é a de saber se o
experimento pode constituir uma práxis desse tipo. Sua resposta conta de
que o filósofo alemão não veria a atividade observadora de um trabalhador
como “atividade crítico-prática” exatamente pelo fato de a solução dos
mistérios filosóficos ocorrer “na prática humana e na compreensão dessa
prática (MARX apud LUKÁCS, 2015, p. 118). O destaque para a
compreensão é de Lukács, que a somente “no conhecimento da totalidade
do processo histórico-social, ou seja, no materialismo histórico”. Assim, o
acento da argumentação lukacsiana está mesmo no tornar-se consciente do
trabalhador, na apreensão do contexto global de sua atuação. As atividades
do experimentador e do trabalhador industrial se dão em processos dialéticos
objetivos. Contudo, são processos dialéticos apenas em si, carentes da
categoria “superior” do “para si”, o materialismo histórico enquanto
consciência de classe do proletariado. Quanto aos que comandam a indústria
capitalista, isto é, proprietários de capital, engenheiros, capitães etc., Lukács
observa que estão presos ao momento imediato, ao agnosticismo, haja vista
sua impossibilidade de ascender à compreensão da totalidade com o
desenvolvimento do capitalismo. São objetos desse processo, não seus
sujeitos.
Ao final de seu escrito, Lukács a entender que sua crítica à
exposição de Engels não ocorre por uma discordância de princípios.
Diferentemente do que havia feito em sua juventude, o velho Engels elaborou
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uma exposição que não continha todos os passos necessários para o domínio
do método dialético. Como tinha claro para si o caminho percorrido,
considerou-o óbvio demais para uma explicação detalhada. Nos termos do
filósofo húngaro, para Engels, essa omissão, em algumas passagens, das
mediações que lhe foram possibilitadas por seu conhecimento dialético e que
objetivamente fazem parte desse conhecimento, constitui um episódio”
(LUKÁCS, 2015, p. 126). Trata-se, portanto, de um lapso, o qual justificou
a reprimenda lukacsiana em função de sua ampliação e sistematização
posteriores.
Deve-se observar nos textos de História e consciência de classe e de
sua defesa, além do espírito hegeliano que anima toda a crítica e que o
próprio autor denunciaria em 1967, o fato de que, embora Lukács desfira
pesados ataques a aspectos decisivos do empreendimento engelsiano de
interpretar o pensamento de Marx, realiza-os na esfera gnósio-
epistemológica. Isto é, embora Lukács se contraponha abertamente a Engels,
o faz exatamente no campo em que esse último colocou o máximo de seus
esforços em relação à interpretação do pensamento marxiano. Se restar
alguma dúvida quanto a isso, basta lembrar as palavras com as quais Lukács
descrevia a essência do marxismo:
O marxismo ortodoxo não significa /.../ um reconhecimento sem
crítica dos resultados da investigação de Marx, não significa uma
“fé” numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro “sagrado”. Em
matéria de marxismo, a ortodoxia se refere antes e exclusivamente
ao método. Ela implica a convicção científica de que, com o
marxismo dialético, foi encontrado o método de investigação
correto, que esse método pode ser desenvolvido, aperfeiçoado e
aprofundado no sentido dos seus fundadores, mas que todas as
tentativas para superá-lo ou “aperfeiçoá-lo” conduziram somente à
banalização, a fazer dele um ecletismo e tinham necessariamente
de conduzir a isso. (LUKÁCS, 2003, p. 64)
Assim, temos em Lukács uma exaltação do método como a essência do
marxismo ortodoxo, um momento totalmente descarnado em relação aos
múltiplos elementos da realidade socioeconômica. Além disso, é necessário
atinar para a origem do método dialético. Trata-se, como não poderia deixar
de ser, de uma herança hegeliana, tal como fora estabelecido por Engels em
sua recensão de 1859 ao livro Contribuição à crítica da economia política, de
Marx. Lukács é explícito na afirmação da origem do método adotado por
Marx:
A categoria da totalidade, o domínio universal e determinante do
todo sobre as partes constituem a essência do método que Marx
recebeu de Hegel e transformou de maneira original no
fundamento de uma ciência inteiramente nova. /.../ Somente com
Marx a dialética hegeliana tornou-se, segundo a expressão de
Herzen, uma “álgebra da revolução”. (LUKÁCS, 2003, pp. 105-6)
De fato, Lukács toma o método dialético de Marx como herança de
Hegel. no “materialismo histórico” de Marx “a dialética posta sobre seus
próprios pés” (LUKÁCS, 2015, p. 113).
Esse entendimento é desenvolvido em um texto de meados da década
de 1950, Introdução a uma estética marxista. Dedicado ao problema geral da
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categoria da particularidade na estética, Lukács destinou especial atenção às
formulações filosóficas dessa questão em diversos filósofos, especialmente
Kant, Schelling, Hegel e autores da tradição clássica do marxismo. Nos
múltiplos esforços desses pensadores, Lukács afirmar-se, paulatinamente,
uma reflexão cada vez mais consistente acerca da dialética das relações entre
as categorias da universalidade, da particularidade e da singularidade.
Independentemente dos muitos méritos do texto em questão, Lukács toma
como suposto (não provado) que o pensamento próprio de Marx parte de
uma lógica, elaborada a partir da assimilação da lógica hegeliana. Nesse
sentido, afirma que:
No exílio londrino, quando escrevia a primeira versão do Capital e
redigia a Contribuição à crítica da economia política, Marx se
ocupou com renovada intensidade da lógica de Hegel; em 1858,
nasce o projeto de elaborar concisamente, em um breve escrito,
aquilo que havia de racional na obra de Hegel. (LUKÁCS, 1968, p.
74)
A lacuna observada leva Lukács a lamentar que, “infelizmente, não
possuímos a lógica projetada por Marx; não podemos saber, portanto, com
segurança, qual seria a sua atitude em face da estrutura da lógica de Hegel,
que, como é sabido, se baseia sobre esta dialética de singular, particular e
universal”. No mesmo sentido, lastima o fato de que tenha “sido impossível a
Marx realizar o plano de extrair o núcleo racional da lógica de Hegel. Aquilo
que presentemente estamos sublinhando, captando-o passo a passo em suas
obras econômicas, estaria em nossa frente com inequívoca clareza”
(LUKÁCS, 1968, pp. 95; 100). Assim, apesar de não possuir o material
próprio à comprovação da existência de uma lógica hegeliana em Marx,
Lukács julga ver indícios favoráveis nas análises econômicas desse último
4
.
Na argumentação de Lukács, as evidências da presença de uma lógica
de inspiração hegeliana em Marx são constituídas, inicialmente, por alusões a
estudos e planos de trabalho. Para o filósofo húngaro, é evidente pelos
manuscritos de Contribuição à crítica da economia política que Marx se
ocupava com a questão da dialética das categorias de singularidade,
particularidade e universalidade enquanto problema que “diz respeito à
estrutura lógica da totalidade da obra”. Nesse sentido, “na introdução, aflora
o projeto de tratar a relação de produção, de distribuição, etc., segundo o
modelo da lógica de Hegel. É verdade que esta ideia é rechaçada: ‘Ora, esta é
certamente uma conexão, mas superficial’, diz Marx” (LUKÁCS, 1968, p. 95).
Não satisfeito, Lukács aduz mais uma ideia não levada a efeito por Marx:
No curso de elaborações posteriores, surge todavia um esboço, que
ordena as várias espécies e tendências de desenvolvimento do
capital como representação de universalidade, particularidade e
singularidade. E isto de dois modos: não somente a divisão
fundamental parte de suas relações, como também esta tríade se
repete no interior de cada rubrica. (LUKÁCS, 1968, pp. 95-6)
4
Não pretendemos aqui uma avaliação do conjunto dos posicionamentos de Lukács acerca
do problema da relação entre lógica e pensamento marxiano. Uma discussão exaustiva dos
méritos e limites do tratamento dessa questão nos escritos lukacsianos pré-ontologia
encontra-se na obra de J. Chasin (cf. 2009, pp. 139-219).
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O filósofo húngaro defende ainda que em vários momentos de O
capital pipocam trechos eivados pela dialética das categorias de
universalidade, particularidade e singularidade, tal como o seguinte:
Se considerarmos o trabalho tomado em si mesmo, podemos
designar a divisão da produção social em seus grandes gêneros,
agricultura, indústria, etc., como divisão do trabalho em geral; a
divisão destas classes de produção em espécies e subespécies, como
divisão do trabalho em particular; e, finalmente, a divisão do
trabalho dentro de uma oficina como divisão do trabalho em
detalhe. (MARX apud LUKÁCS, 1968, p. 96)
É, não obstante, na dedução da forma valor que Lukács vê a evidência
decisiva da presença da referida dialética na crítica econômica de Marx. Os
diversos passos dessa dedução corresponderiam aos momentos da
singularidade, da particularidade e da universalidade. Nesse sentido, em
Marx, a primeira etapa é ‘a forma de valor simples, singular, ou seja,
acidental’”. O filósofo húngaro destaca aqui que a singularidade é colocada ao
lado da casualidade, movimento que confere concretude ao problema das
relações recíprocas das categorias. Lukács é contundente na afirmação da
natureza histórica da concretização aqui realizada. Em seus termos,
“simplicidade, singularidade e conjuntamente a elas casualidade da
forma do valor caracterizam sua gênese histórica, o tipo e a estrutura do
estágio inicial. Por isso, toda palavra deve ser rigorosamente entendida em
seu significado histórico”. Nessa passagem, o autor húngaro cita Hegel como
uma espécie de arrimo da suposta concepção de Marx. Para o filósofo
idealista, “o novo se apresenta na história primeiro sob uma forma
abstratamente simples e gradualmente se realiza sob uma forma
explicitada no curso do desenvolvimento histórico”. Frise-se, Lukács toma
aqui a descrição inicial da forma valor como expressão de um “grau não
desenvolvido do intercâmbio econômico”, em que a casualidade designa o
caráter imediato, socialmente não desenvolvido, dos atos de troca nesta
etapa” (LUKÁCS, 1968, pp. 96-7).
Focado em uma suposta dimensão histórica da exposição de Marx, o
filósofo húngaro prossegue: “os caminhos do pensamento para o
conhecimento são reflexos do processo de desenvolvimento objetivo (no caso
concreto: da economia). Por isso, o próximo grau da dedução é o da forma
total, ou explicitada, do valor” (LUKÁCS, 1968, p. 98). Tem-se aqui a
afirmação do momento da particularidade, historicamente posterior ao da
singularidade. Trata-se do passo analítico no qual Marx observa que “a forma
natural determinada de cada uma destas mercadorias é uma forma
particular de equivalência ao lado de muitas outras”. Tal apontamento vale
também para o trabalho que produz as mercadorias: “os múltiplos gêneros de
trabalho determinado, concreto, útil, contidos nos diferentes grupos de
mercadorias contam tanto como outras formas particulares de realização ou
de manifestação de trabalho humano como tal (MARX apud LUKÁCS,
1968, p. 98).
Não obstante, na etapa de desenvolvimento referente à
particularidade uma -infinitude, isto é, os diversos tipos de mercadoria e
de trabalho figuram ao lado uns dos outros, sem que um deles seja
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apresentado como equivalente geral. A superação dessa limitação se no
momento da universalidade, com a apresentação da forma universal do valor.
Novamente, temos um processo histórico:
esta extrema generalização, esta elevação da forma do valor ao grau
da autêntica universalidade, não é um produto do pensamento
econômico: este não é senão o reflexo daquilo que ocorreu
realmente no curso do desenvolvimento histórico da economia
(LUKÁCS, 1968, p. 99).
Assim, após ter seguido os passos da dedução da forma valor em Marx,
Lukács julga não ter mais obstáculos para sentenciar: “vemos como a
explicitação da forma do valor, devida ao desenvolvimento econômico real,
eleva-se na realidade objetiva da singularidade à universalidade através
da particularidade” (LUKÁCS, 1968, p. 99).
Nesse ponto, devemos tecer algumas considerações críticas. Em
primeiro lugar, como bem o observou J. Chasin, temos nos referidos
posicionamentos de Lukács uma “certeza incerta” quanto à existência de
uma lógica de extração hegeliana em Marx. Isto é, ao falar alternadamente de
uma ausência de manifestação explícita, de esboços descartados e de
fragmentos dialéticos como evidência do vínculo em questão, Lukács permite
que visualizemos que se trata de uma tese assumida sem arrimos apropriados
na obra marxiana
5
. Nesse sentido, cumpre assinalar que as manifestações de
Marx acerca da dialética hegeliana não vão no sentido defendido por Lukács.
Na carta a que Lukács se refere como evidência da existência de um projeto
de lógica em Marx, tem-se, na verdade, o seguinte:
No método de tratamento, o fato de ter por mero acidente voltado a
folhear a Lógica de Hegel me prestou um grande serviço. /.../ Se
alguma vez tornar a haver tempo para esse tipo de trabalho,
gostaria muito de tornar acessível à inteligência humana comum,
em dois ou três cadernos de impressão (algo entre 30 e 50
páginas), o que é racional no método que Hegel descobriu, mas
que ao mesmo tempo envolveu em misticismo /.../. (MARX apud
CHASIN, 2009, pp. 179-80)
De saída, cumpre observar que não há nessa carta enviada a Engels (16
jan. 1858) nada tão pretensioso quanto um projeto conciso de escrutínio da
lógica ou uma afirmação de uma dívida geral com Hegel, mas sim o
apontamento de que no método de tratamento Marx se valeu de aspectos da
lógica hegeliana. Da leitura da mesma carta, é possível depreender que o
“núcleo racional” aí aludido refere-se, antes de tudo, às “formas gerais de
movimento” da dialética, isto é, as relações de universalidade, particularidade
e singularidade. No mesmo sentido, o revolucionário alemão diz no posfácio à
segunda edição de sua obra máxima: “em O capital, sobre a teoria do valor,
andei coqueteando [kokettierte] aqui e acolá com os seus [Hegel] modos
5
Em outro texto da mesma época, Lukács buscava apoio em Lênin para afirmar a presença
de elementos lógicos de extração hegeliana na obra de Marx: embora Marx não nos tenha
deixado nenhuma Lógica (com letra maiúscula), deixou-nos a gica de O capital. /.../ Em O
capital, foram aplicadas a uma única ciência a lógica, a dialética e a teoria do conhecimento
/.../ do materialismo, que recolheu de Hegel o que nele havia de precioso e o desenvolveu
ulteriormente” (LÊNIN apud LUKÁCS, 2007, p. 181).
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peculiares de expressão [Ausdrucksweise]. No mesmo posfácio, Marx diz ser
“necessário distinguir o método de exposição formal do método de pesquisa.
A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias
formas de evolução e rastrear sua conexão intima”. Atento à sequência e
importância relativa dos dois procedimentos, o filósofo sentencia: depois
de concluído esse trabalho [de pesquisa] é que se pode expor adequadamente
o movimento real” (MARX apud CHASIN, 2009, pp. 180-1)
6
.
Em segundo lugar, deve-se observar que, justamente por estar
desatento à distinção marxiana entre os procedimentos investigativo e
expositivo, Lukács tende a confundi-los na análise da dedução da forma
valor. O resultado é a suposição de que singularidade, particularidade e
universalidade correspondem a etapas do processo histórico, seguidas
rigorosamente na exposição de Marx. Isto é, Lukács defende que na crítica
marxiana as formas simples, explicitada e universal do valor equivalem não a
etapas expositivas, mas sim ao próprio decurso da história efetiva, ou, nos
termos contundentes de Chasin, “a indistinção lukacsiana entre processo
expositivo e processo analítico de realidade acaba por conduzir à
surpreendente conclusão de que a processualidade global da realidade
econômica é silogística” (CHASIN, 2009, p. 184).
Torna-se visível que o entendimento exposto até aqui não é obra
exclusiva de Lukács quando esse cita favoravelmente a seguinte posição de
Lênin: não se pode compreender perfeitamente o Capital de Marx,
notadamente o primeiro capítulo, se não se estudou a fundo e se não se
compreendeu toda a lógica de Hegel. Por isso, meio século depois, nenhum
marxista compreendeu Marx” (LÊNIN apud LUKÁCS, 1968, p. 99). Para
Lukács, Lênin estava correto ao enfatizar o aspecto que Marx utilizou da
herança hegeliana, ou seja, a doutrina do silogismo.
Na falta de um posicionamento detalhado de Marx sobre a lógica de
Hegel, Lukács recorre à recensão de Engels ao livro Contribuição à crítica da
economia política, de Marx. O filósofo húngaro julga encontrar uma justa e
sintética apreciação acerca das relações entre método lógico e história. Nesta
que é a primeira peça na qual temos o esboço dos contornos definidores do
modo como o pensamento marxiano seria interpretado posteriormente,
Engels defende que o escrito marxiano de 1859 constituía um resultado dos
estudos necessários ao desenvolvimento da concepção materialista da
história. Do material lógico ao qual a crítica marxiana poderia se ligar, o
trabalho de Hegel oferecia a vantagem de seu sentido histórico: “tanto
abstrato e idealista na forma, tanto mais o desenvolvimento de seu
pensamento ia sempre paralelo com o desenvolvimento da história mundial,
e a última deve de fato ser apenas a prova do primeiro”. Engels destaca a
capacidade de Marx como sendo o único apto a
6
Quanto à práxis investigativa propriamente dita, Marx é tão contundente na afirmação de
sua diferença em relação a Hegel que nos limitamos aqui a uma citação: “meu método
dialético, por sua fundamentação, não é diferente do hegeliano, mas é também a sua
antítese direta. Para Hegel, o processo do pensamento, que ele, sob o nome de ideia,
transforma num sujeito autônomo, é o demiurgo do real, real que constitui apenas a sua
manifestação externa. Para mim, pelo contrário, o ideal não é nada mais do que o material
transposto e traduzido na cabeça do homem” (CHASIN, 2009, p. 181).
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descascar [herauszuschälen] da gica hegeliana o núcleo que
abarca as descobertas reais de Hegel nesse campo, e de estabelecer
o método dialético, despido de seu invólucro idealista, na forma
simples, na qual se torna a única forma correta de desenvolvimento
do pensamento (ENGELS, 1961, pp. 473-4).
Adquirido o método, tratava-se de encontrar o modo de tratamento
científico para a crítica da economia política. Como colocá-la, historicamente
ou logicamente? A resposta é citada e aprovada por Lukács:
O único método indicado era o lógico. Mas este não é, na realidade,
senão o método histórico, despojado apenas da sua forma histórica
e das contingências perturbadoras. Ali onde começa a história deve
começar também a cadeia do pensamento, e o desenvolvimento
ulterior desta não será mais do que a imagem reflexa, em forma
abstrata e teoricamente consequente, da trajetória histórica; uma
imagem reflexa corrigida, mas corrigida de acordo com as leis que
fornece a própria trajetória histórica; e assim, cada fator pode ser
estudado no ponto de desenvolvimento em que atingiu sua plena
maturidade, sua forma clássica. (ENGELS apud LUKÁCS, 1968, p.
100)
Se, adicionalmente, observarmos que em sua recensão Engels dizia
que tanto “na história, como em seu reflexo literário, o desenvolvimento em
geral vai das relações mais simples para as mais complexas”, então fica mais
claro de onde Lukács trouxe não a ideia do vínculo lógico entre Hegel e
Marx, mas também a tese confluente do transcurso paralelo de história e
lógica
7
.
Recorrendo novamente a Engels, mas agora na forma do escrito
Dialética da natureza, Lukács toma sua interpretação materialista da
doutrina hegeliana do juízo como exemplar acerca da relação dialética e
histórica de universal, particular e singular. Se em Marx a sucessão histórica
das categorias econômicas é sintetizada logicamente, Engels percorre o
caminho inverso: “ele cita, corrigindo e uniformizando, um breve extrato da
teoria do juízo de Hegel, a fim de descobrir /.../ o desenvolvimento histórico
que está na base da sucessão das formas do juízo em Hegel, de um ponto de
vista de princípio e realmente histórico”. Para Engels, a evolução do juízo do
ser ao do conceito, passando pelo da reflexão, corresponde exatamente ao
movimento histórico que vai do singular ao universal através do particular.
Tal sequência seria lida para a evolução histórica de cada conhecimento
particular. Para Lukács, ao simplificar e corrigir o decurso histórico,
descartando as artificialidades de Hegel, Engels nos faria ver no movimento
ascendente das formas do juízo a “ação de um irresistível impulso no
desenvolvimento do pensamento humano, que vai do singular ao universal
7
Apenas para que fique registrado que nem sempre o pensamento de Lukács trilha um
caminho reto em direção à verdade, mas que denota a mesmo recuos, nos parece
importante observar que em um ensaio de 1926 (Moses Hess e os problemas da dialética
idealista) o autor esboça uma posição que, a nosso ver, é mais compatível com a crítica
marxiana: “Ele [Marx] não derivou a sucessão das categorias de sua sequência lógica ou de
sua sucessão histórica, mas reconheceu ‘sua sucessão como determinada pela relação que
elas têm umas com as outras na sociedade burguesa’” (LUKÁCS apud MÉSZÁROS, 2013, p.
62).
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através do particular” (LUKÁCS, 1968, p. 101). Assim, sem mais, o filósofo
húngaro toma a interpretação de Engels, atinente a uma dada teorização e
declarada válida para o pensamento humano em geral, como equivalente ou
similar ao procedimento de Marx, referente a um contexto totalmente
distinto e muito mais restrito:
Tanto a dedução dialética da forma do valor em Marx quanto a
interpretação da teoria hegeliana do juízo em Engels indicam, na
realidade e na sua consciência aproximativamente adequada, um
movimento irresistível, uma aspiração progressiva que conduz do
puramente singular ao universal através do particular. (LUKÁCS,
1968, p. 102)
Explicitamente, Lukács recorre não a Marx em sua busca de bases
textuais em favor da tese do vínculo lógico, mas sim ao “marxismo-
leninismo” ou “materialismo dialético”, isto é, aos chamados clássicos do
marxismo
8
. Como veremos mais à frente, na própria evolução de Lukács, a
afirmação do transcurso paralelo de história e exposição não encontra
respaldo na obra marxiana.
No período final de sua vida, Lukács rompeu de modo cabal com as
posições inspiradas por Engels, ou, ao menos, com o tipo particular de
reflexão que as animava. Um passo inicial no sentido desse rompimento pode
ser visualizado no prefácio redigido em 1967 para o livro História e
consciência de classe. Nesta que é uma revisão de muitas das posições do
célebre conjunto de ensaios, Lukács condena o direcionamento idealista
então conferido ao tratamento de diversas questões. Deixando de lado os
detalhes, que se observar que, no diagnóstico lukacsiano, havia naqueles
textos uma tendência que ia “contra os fundamentos da ontologia do
marxismo”. O equívoco central consistia em confluir com “tendências que
compreendem o marxismo exclusivamente como teoria social ou como
filosofia social e rejeitam ou ignoram a tomada de posição nele contida sobre
a natureza”. A orientação do livro a esse respeito era clara: “em diversas
passagens, a natureza é considerada como uma categoria social, e a
concepção geral consiste no fato de que somente o conhecimento da
sociedade e dos homens que vivem nela é filosoficamente relevante”. O efeito
de tal concepção era importante na estrutura do livro, pois debilitava o
delineamento da economia. A tentativa de explicar os fenômenos ideológicos
a partir de sua base econômica era comprometida, pois a economia tornava-
se estreita quando privada da categoria marxista fundamental: o trabalho
como mediador do metabolismo da sociedade com a natureza. Desse modo,
simultaneamente, desapareciam tanto a “objetividade ontológica da natureza,
que constitui o fundamento ôntico desse metabolismo” quanto a “ação
recíproca existente entre o trabalho considerado de maneira autenticamente
8
Confirma-se aqui o que Chasin sinalizava na avaliação de Lukács acerca da dialética de
Hegel, a saber, que o filósofo húngaro “deixa entrever que, de algum modo, Marx está ou
poderia estar, em última análise, apoiado numa lógica enquanto sustentação operatória de
sua prática científica, ou, pelo menos, que uma lógica poderia legitimar as formas de sua
reflexão” (CHASIN, 2009, p. 165).
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materialista e o desenvolvimento dos homens que trabalham” (LUKÁCS,
2003, pp. 14-6)
9
.
A negligência em relação ao metabolismo do ser humano com a
natureza acaba por debilitar o tratamento lukacsiano da práxis. Em sua ânsia
de combater o caráter contemplativo do pensamento burguês, o filósofo
húngaro conferia àquela noção um tom excessivo, referente à transformação
revolucionária da realidade, algo que “correspondia à utopia messiânica
própria do comunismo de esquerda da época, mas não à autêntica doutrina
de Marx”. Naquele período, Lukács “não percebia que, sem uma base na
práxis efetiva, no trabalho como sua protoforma e seu modelo, o caráter
exagerado do conceito de práxis acabaria se convertendo num conceito de
contemplação idealista (LUKÁCS, 2003, p. 17). E aqui temos uma revisão
relativa da polêmica com a tese engelsiana referente à indústria e à
experimentação como casos típicos de demonstração da práxis como critério
de verdade da teoria. De Fato, Lukács admite que, desde a época de seu
célebre livro, ficou claro
que o terreno da práxis (sem modificação de sua estrutura básica)
se tornou, no curso do seu desenvolvimento, mais extenso,
complexo e mediado do que no simples trabalho, motivo pelo qual
o simples ato de produzir o objeto pode tornar-se o fundamento da
efetivação imediata e verdadeira de uma hipótese teórica e, nessa
medida, servir como critério de sua correção ou incorreção
(LUKÁCS, 2003, pp. 18-9).
Isto é, ao admitir que o trabalho e suas formas complexas constituem
uma práxis autêntica, Lukács é levado a uma concordância com a tese
segundo a qual as formas do primeiro podem ser válidas para a comprovação
de uma hipótese cognitiva. Não obstante, a sugestão de Engels de pôr fim à
teorização kantiana da “coisa em si” por meio da práxis imediata não se
sustenta. O filósofo húngaro argumenta que, nessa forma, o trabalho pode ser
realizado com base em teorias que não captam a essência da realidade. Em
seus termos, “o próprio trabalho pode muito facilmente permanecer no
âmbito da mera manipulação e passar ao largo de modo espontâneo ou
consciente da solução da questão a respeito do em-si, ignorá-la total ou
parcialmente”. O próprio Kant percebia essa possibilidade ao remeter a
objetividade do conhecimento para a esfera dos simples fenômenos. O
mesmo faz o neopositivismo, com sua tentativa de eliminar da ciência
qualquer questão referente à realidade. A solução para o dilema colocado por
Engels exige, de acordo com Lukács, que a práxis eleve-se “acima desse
imediatismo, permanecendo práxis e tornando-se cada vez mais abrangente”
(LUKÁCS, 2003, p. 19).
9
Os limites de seu livro de 1923 tornam-se claros para Lukács nos anos 1930, quando
aprofundou seus estudos sobre a obra de Marx, especialmente em decorrência da descoberta
dos manuscritos juvenis desse último. Falando de sua longa e complexa transição ao
marxismo, o filósofo húngaro observa o seguinte: meu livro História e consciência de classe
(1923) mostra nitidamente este período de transição. Malgrado a tentativa, agora consciente,
de ‘superar’ Hegel em nome de Marx, problemas decisivos da dialética foram resolvidos de
modo idealista (dialética da natureza, teoria do reflexo etc.) (LUKÁCS, 2008, p. 40).
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Assim, ainda que reconheça que sua argumentação era equívoca no
livro de 1923, com a negação do status de práxis à experimentação e à
indústria, Lukács reafirma a pertinência de sua crítica ao posicionamento de
Engels. Isto é, finalmente Lukács encontrou os argumentos corretos para
refutar a tese engelsiana. Os erros anteriores eram, na opinião tardia do
filósofo húngaro, manifestações da “influência da herança hegeliana, que não
foi elaborada de modo coerente pelo materialismo e, por isso, também não foi
suprimida nem preservada” (LUKÁCS, 2003, p. 20). E aqui vemos que,
mesmo admitindo a defesa equivocada de um “hegelianismo exacerbado (e
estrutural) em seu velho livro, atinente à tese do proletariado como
identidade de sujeito e objeto na história, Lukács mantém certas posições
antigas. Central para nossas preocupações é a reafirmação da velha definição
da ortodoxia em matéria de marxismo, ou seja, a preocupação exacerbada
com o método dialético (cf. LUKÁCS, 2003, pp. 29-30). Mesmo que veja
exageros hegelianos estruturantes em seu livro de 1923, Lukács mantém-se
firme na velha afirmação do método como sendo a alma do marxismo, uma
alma na qual avulta a herança hegeliana. Desse modo, cabe-nos salientar que
no prefácio de 1967 o filósofo húngaro continua a se mover, ainda que a
contragosto e mesmo realizando movimentos importantes na direção do
marxismo, no campo gnósio-epistemológico, o qual foi primeiramente
demarcado, grosso modo, por Engels em sua recensão de 1859.
Não obstante, é apenas nos escritos referentes ao tema da ontologia do
ser social, publicados postumamente, que Lukács encaminha a sua solução
derradeira para o tratamento do pensamento marxiano. Nos textos em
questão, além de promover seu acerto de contas com a recensão engelsiana
de 1859, o filósofo húngaro tece críticas a diversas teses de Engels, elaboradas
em textos fundamentais para a formatação e interpretação do marxismo, tais
como A subversão da ciência pelo sr. Eugen Dühring (mais conhecido como
Anti-Dühring), Dialética da natureza e Ludwig Feuerbach e o fim da
filosofia clássica alemã. Dado o nível de complexidade e desdobramento da
argumentação desenvolvida por Lukács, na qual é frequente o recurso a
repetições, vamos nos limitar aqui apenas a uma exposição breve dos pontos
que dizem respeito ao pensamento de Engels, sem acompanhar em toda a sua
extensão a linha teórica assumida pelo autor.
No conjunto teórico referente à ontologia, Lukács assinala de modo
reiterado a contraposição entre a natureza ontológica da obra marxiana,
dedicada ao problema do ser social, em sua objetividade e historicidade, e as
variantes do posicionamento gnosiológico, as quais primam pelo afastamento
dos problemas atinentes ao âmbito da realidade do campo filosófico. Para
Lukács, em Marx as categorias referem-se a formas de ser, a determinações
da existência. Ainda mais contundente é a sua seguinte afirmação:
nenhum leitor imparcial de Marx pode deixar de notar que todos os
seus enunciados concretos, se interpretados corretamente, isto é,
fora dos preconceitos da moda, são ditos, em última análise, como
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enunciados diretos sobre certo tipo de ser, ou seja, são afirmações
puramente ontológicas (LUKÁCS, 2012, p. 281)
10
.
Em sentido totalmente oposto, Lukács destaca, em especial, as
manifestações do pensamento kantiano, do neokantismo e do
neopositivismo. Assim, a contraposição entre a obra marxiana (ontológica),
de um lado, e a teoria do conhecimento e a lógica, de outro, constitui um dos
principais esforços da interpretação final do pensamento de Marx por parte
do filósofo húngaro. Frise-se, o autor não afirma a inexistência do problema
do conhecimento ou dos procedimentos para alcançá-lo no interior da obra
marxiana, mas sim a sua subordinação necessária ao problema geral do ser.
No procedimento metodológico marxiano, tal como adotado por ocasião da
crítica da economia política,
o tipo e o sentido das abstrações, dos experimentos ideais, são
determinados não a partir de pontos de vista gnosiológicos ou
metodológicos (e menos ainda lógicos), mas a partir da própria
coisa, ou seja, da essência ontológica da matéria tratada (LUKÁCS,
2012, p. 322).
Assinalando o destino perverso do pensamento de Marx logo após a
sua morte, Lukács destaca os esforços de Engels e de Lênin contra a
vulgarização coagulante daquele patrimônio. Ambos pretendiam promover
uma interpretação elástica da autêntica dialética. No entanto, Lukács afirma
que tais tentativas não eram marcadas por um rigor especial na distinção
entre as obras de Hegel e de Marx. Assim, Engels
a respeito de algumas questões singulares importantes foi menos
rigoroso e profundo do que Marx em sua crítica a Hegel, ou seja,
acolheu de Hegel naturalmente através de uma inversão
materialista praticamente sem alterações, algumas coisas que
Marx, ao contrário, partindo de reflexões ontológicas mais
profundas, refutou ou modificou radicalmente. A diferença que
existe entre, por um lado, a superação inteiramente autônoma dos
fundamentos da inteira filosofia de Hegel por parte do jovem Marx
e, por outro, a superação de seu idealismo filosófico sob o influxo
de Feuerbach por parte de Engels tem determinadas consequências
também nas exposições posteriores de ambos (LUKÁCS, 2012, pp.
299-300)
11
.
10
O acento lukacsiano no ser social não deve ser visto como uma recaída em suas posições de
1923. Atento ao pensamento marxiano, Lukács observa: “como para Marx a dialética não é
apenas um princípio cognitivo, mas constitui a legalidade objetiva de toda realidade, uma
dialética desse tipo não pode estar presente nem funcionar na sociedade sem ter tido uma
‘pré-história’ ontológica correspondente na natureza inorgânica e orgânica. A dialética
concebida em termos ontológicos tem sentido se for universal. Essa universalidade
naturalmente não representa um singelo sinal de igualdade entre dialética na natureza e
dialética na sociedade /.../”. O autor não perde a oportunidade para, mais uma vez, assinalar
o caráter problemático de seu livro anterior a esse respeito: “me sinto no dever de declarar,
neste ponto, que meu livro História e consciência de classe, publicado em 1923, contribuiu
para despertar ilusões quanto à possibilidade de ser adepto do marxismo no sentido
filosófico e, ao mesmo tempo, negar a dialética na natureza” (LUKÁCS, 2012, pp. 101-2).
11
O diagnóstico lukacsiano é reiterado na versão final da ontologia, isto é, nos Prolegômenos
(cf. LUKÁCS, 2010, p. 155). Em momento anterior de sua exposição, Lukács também assinala
a limitação da crítica de Engels. O revolucionário alemão havia denunciado o caráter
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Lukács oferece um exemplo claro da mescla imprópria de elementos
dos pensamentos de Hegel e de Marx, a saber, o tratamento da categoria da
negação. De acordo com o filósofo húngaro, Hegel, ao conceber as
categorias de “ser-outro” e “ser para outro” como negação do “ser-em-si”,
opera uma transferência da negação do âmbito da lógica para o da ontologia,
isto é, a esfera da realidade. Engels acatou o procedimento hegeliano e, em
seu Anti-Dühring, forneceu exemplos da negação. Entre eles, Lukács destaca
o referente ao grão de cevada:
Tomemos um grão de cevada. Milhares desses grãos são triturados,
fervidos e usados para fabricar a cerveja que é depois consumida.
Mas, se um desses grãos de cevada encontrar as condições normais
para ele, se cair num terreno propício, sob a influência do calor e
da umidade, sofre uma alteração específica, isto é, germina; o grão
enquanto tal morre, é negado, e, em seu lugar, desponta a planta
que ele gerou, a negação do grão. (ENGELS apud LUKÁCS, 2012,
p. 215)
Para Lukács, no plano ontológico temos propriamente a destruição”
de milhares de grãos. Apenas em um caso específico é que o ser do grão de
cevada é levado ao seu ser-outro. As determinações particulares desse caso
são desprezadas quando se usa a expressão geral “negação” para qualificar
sua ocorrência e, ainda por cima, se obscurece o processo ao equipará-lo
formalmente com outros qualitativamente distintos. Assim, a reprimenda de
Lukács, apesar de breve, é contundente:
Engels, portanto, deveria ter feito uma distinção entre a negação
ontológico-dialética e as inúmeras negações simplesmente lógico-
formais; e é evidente que, para realizar tal distinção, não existem
critérios formais de nenhum tipo, nem lógico nem gnosiológico,
sendo preciso sempre recorrer ao próprio processo real concreto,
ou seja, à realidade concreta; o momento distintivo é positivamente
determinado, portanto, tão somente no plano ontológico. Subsumir
esses fenômenos heterogêneos sob o termo lógico da “negação”,
por conseguinte, não faz mais do que confundir as conexões, em
vez de esclarecê-las. (LUKÁCS, 2012, p. 216)
12
arbitrário das passagens de uma categoria ou de uma oposição a outra em Hegel. Para
Lukács, no entanto, a crítica correta e perspicaz de Engels infelizmente se restringe à ligação
formal entre as categorias, e não aborda a questão ontologicamente mais importante do lugar
ocupado pelas categorias no edifício gico-hierárquico do sistema” (LUKÁCS, 2012, p. 224).
A respeito de Lênin, com quem se inicia um “verdadeiro renascimento de Marx”, Lukács
reafirma a correção em princípio de suas posições acerca da necessidade de se compreender
toda a Lógica de Hegel para captar plenamente o sentido de O capital e, consequentemente,
sobre a existência de uma lógica nessa última obra. No entanto, o filósofo húngaro o deixa
de apontar a impropriedade, no sentido de Marx, de se estabelecer uma unidade indistinta
entre lógica, dialética e teoria do conhecimento: “é certo, todavia /.../ que Marx não acolhe a
unidade estabelecida no trecho citado de Lênin, que ele não apenas distingue nitidamente
entre si a ontologia e a teoria do conhecimento, mas na ausência dessa distinção uma das
fontes da ilusão idealista de Hegel” (LUKÁCS, 2012, pp. 300-1).
12
Lukács mostra a impropriedade de todos os exemplos engelsianos do processo de negação
da negação no plano ontológico (cf. LUKÁCS, 2010, pp. 166-70). A recusa da transposição da
negação ao plano ontológico está presente até em mesmo nos momentos finais da vida de
Lukács (cf. 1999, pp. 103-5).
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Para o filósofo húngaro, “está claro que a negação não pode ter lugar
numa ontologia autêntica” (LUKÁCS, 2012, p. 169). O fenômeno da negação
não possui realidade no plano da natureza inorgânica. Na esfera orgânica,
está presente no caso da morte, em que a regressão da matéria orgânica
para o nível das leis sico-químicas. no nível superior do ser social, sua
ocorrência legítima se restringe aos planos gnosiológico e lógico (cf. LUKÁCS,
2012, pp. 214; 245-6; 2010, pp. 159-64). Após criticar a “generalização lógica
abstrata-universal da negação a momento fundamental de todo processo
dialético” e o consequente obscurecimento da “particularidade do ser social”
na lógica de Hegel, Lukács aponta que o próprio Engels parecia relativamente
consciente da situação precária em que se colocava ao adotar procedimento
similar ao do mestre idealista. Nas palavras de Lukács, “o próprio Engels /.../
aponta a problematicidade ontológica da sua dedução logicista da negação da
negação”. Isso transparece nas seguintes palavras, referentes a uma
sequência de casos (distintos) de suposta “negação da negação”: “se afirmo de
todos esses processos que são expressão da negação da negação, compreendo
todos eles sob essa única lei do movimento e, precisamente por isso, deixo de
lado a particularidade de cada processo singular específico” (ENGELS apud
LUKÁCS, 2012, p. 218). A reprimenda lukacsiana é animada, novamente,
pela preocupação quanto aos efeitos do rolo compressor da universalização
logicista: “seria difícil, porém, encontrar uma lei verdadeiramente universal
cujas formas de realização particulares, comparadas entre si, produzissem
absurdos (LUKÁCS, 2012, p. 218).
O filósofo húngaro assinala que em Marx a negação da negação
praticamente não aparece. Sua única aparição relevante se em O capital,
em uma passagem referente à acumulação primitiva. Nesse momento, a
argumentação desenvolvida é estritamente econômica e descreve o processo
histórico de expropriação da “propriedade privada individual, baseada no
próprio trabalho”, e lança a perspectiva da “expropriação dos
expropriadores”, isto é, a extinção da propriedade privada capitalista. Para
Marx, essa segunda expropriação constitui uma negação da negação. Trata-se
aqui, de acordo com Lukács, de “algo estilisticamente decorativo, o qual
nada tem a ver com a argumentação econômica. O filósofo recorre ao próprio
Marx para explicar o sentido da referência, ao afirmar que nesse caso
certamente vale
o comentário de Marx no prefácio da edição dessa obra
afirmando que seu método dialético é o oposto direto do
hegeliano, e que coqueteou, aqui e ali, no capítulo sobre a teoria
do valor com o modo de expressão que lhe era peculiar (LUKÁCS,
2010, p. 157).
Nota-se, aqui e em diversos outros momentos (cf. LUKÁCS, 2010, pp.
152; 357; 2012, pp. 308-16), que Lukács finalmente atinou para a distinção
marxiana entre os métodos de investigação e de exposição.
Continuamente, o autor húngaro chama a atenção para a denúncia de
Marx contra a conversão hegeliana das conexões reais da realidade em
“sequências ideais logicamente necessárias”. O movimento marxiano
constitui, ao mesmo tempo, a crítica ao idealismo filosófico e o combate a
“uma das fundamentações lógicas da filosofia da história”. Enquanto Hegel
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trata o decurso histórico como resultado epistemológico necessário da
sucessão das categorias lógicas, Marx, em direção totalmente distinta,
concebe essas últimas como “‘formas de ser, determinações da existência’,
que devem ser compreendidas ontologicamente, tal como são, no interior dos
complexos onde existem e operam”. Assim, a lógica dos processos no interior
dos quais as referidas categorias atuam de fato compõe um recurso valioso
para o conhecimento dessas, mas nunca o fundamento real de seu ser.
Segundo Lukács, a negligência dessa crítica de Marx a Hegel, independente
de qualquer inversão materialista, leva a manter-se “não superado no interior
do marxismo um motivo próprio do sistema hegeliano, e a historicidade
ontológico-crítica do processo global se apresenta como filosofia logicista da
história de cunho hegeliano (LUKÁCS, 2012, pp. 371-2).
A percepção da radicalidade da crítica em pauta leva o filósofo
húngaro a rever seu antigo acordo com uma tese basilar de Engels,
justamente aquela que estabelecia uma ponte lógica entre Hegel e Marx.
Como vimos anteriormente, esse vínculo foi defendido na resenha engelsiana
de 1859, na forma de uma equivalência entre os caminhos lógico e histórico.
Trazendo à baila exatamente o mesmo trecho que aprovava em sua
Introdução a uma estética marxista, mas agora o qualificando como
exemplo de queda no “fascínio da logicização hegeliana da história,” Lukács
expõe o equívoco nuclear de Engels:
A oposição decisiva com a concepção de Marx reside no primado
do “modo lógico de tratamento”, que é posto aqui como idêntico ao
histórico, “só que despojado da forma histórica e das casualidades
importunas”. A história despojada da forma histórica: nisso está
contido sobretudo o recurso de Engels a Hegel. Na filosofia
hegeliana, isso era possível: uma vez que a história, tal como toda a
realidade, se apresentava apenas como a realização da lógica, o
sistema podia despojar o acontecer histórico de sua forma histórica
e reconduzi-lo à sua essência própria, ou seja, à lógica. Mas para
Marx e de resto também para Engels a historicidade é uma
característica ontológica não ulteriormente redutível do
movimento da matéria, particularmente marcado quando, como é
o caso aqui, trata-se apenas do ser social. As leis mais gerais desse
ser podem também ser formuladas em termos lógicos, mas não é
possível derivá-las da lógica ou reduzi-las a ela. Na passagem
citada, Engels faz isso, o que fica evidente pelo uso da expressão
“casualidades importunas”; no plano ontológico, algo casual pode
muito bem ser portador de uma tendência essencial, não
importando se, da perspectiva da gica pura, o acaso seja
entendido como “importuno”. (LUKÁCS, 2012, p. 373)
Assim, Engels aproxima em demasia Hegel e Marx via extrapolação
lógica, isto é, apreendendo como equivalentes os planos da história e da
lógica, o que leva a uma subestimação do papel das casualidades na
determinação dos processos. Para marcar a impropriedade da posição de
Engels, Lukács recorre a uma passagem marxiana contida na célebre
Introdução de 1857, deixando estabelecido que
Marx toma como ponto de partida, antes de tudo, que o lugar
histórico de categorias singulares pode ser compreendido em
sua concretização histórica, na especificidade histórica que lhes é
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fornecida pela respectiva formação, e não por meio de sua
caracterização lógica, por serem definidas, por exemplo, como
simples ou desenvolvidas (LUKÁCS, 2012, p. 373).
De passagem, Lukács aponta ainda para outro equívoco contido na
interpretação de Engels, a saber, a definição marxiana de classicidade: “tal
categoria, aplicável apenas a complexos totais, é entendida por Engels como
propriedade de momentos singulares, em contraste com sua própria
concepção posterior” (LUKÁCS, 2012, p. 373).
A nova postura de Lukács frente à tentativa indevida de se logicizar a
obra de Marx é radical e provoca rupturas explícitas com momentos
anteriores de sua própria trajetória. Como evidenciamos anteriormente, em
meados dos anos 1950 Lukács via um projeto descartado de tratamento
“segundo o modelo da lógica de Hegel” na indicação de Marx (feita na
Introdução de 1857) quanto a uma “conexão superficial” de ordem silogística
entre as categorias econômicas. na Ontologia, o filósofo húngaro percebe
nessa passagem seu real sentido, isto é, a denúncia marxiana da insuficiência
da análise pautada em aparatos lógicos:
Marx, antes de tudo, acerta contas com a variante hegeliana dessas
falsas conexões, uma variante que com o auxílio de
universalidade, particularidade e singularidade entendidas em
sentido lógico pretendia estabelecer entre as citadas categorias
econômicas um desenvolvimento de tipo silogístico. “Há, sem
dúvida, aqui, um nexo, mas ele é superficial”, diz Marx; e mostra
como o aparato gico que produz a forma silogística funda-se
apenas em traços superficiais, abstratos. (LUKÁCS, 2012, p. 330)
Ponto já presente no exposto acima, a subestimação engelsiana do
papel do acaso é destacada por Lukács. Em Marx um apontamento claro
dos modos de atuação das casualidades: mutuamente compensadas no fluir
da história em geral, elas influem no seu ritmo, às vezes na forma das
qualidades casuais dos grandes personagens. É o que estabelece a seguinte
passagem marxiana elencada por Lukács:
A história universal seria muito cômoda se a luta só fosse assumida
quando houvesse chances infalivelmente favoráveis. De outro lado,
ela teria uma natureza muito mística se as “casualidades” não
desempenhassem nenhum papel. Essas casualidades naturalmente
entram no curso geral do desenvolvimento e são compensadas por
outras casualidades. Mas aceleração e retardamento dependem
grandemente dessas “casualidades”, entre as quais figura também
o “acaso” do caráter das pessoas que se encontram primeiro à
frente do movimento. (LUKÁCS, 2010, p. 118)
Ao comentar o mesmo tema, Engels, apesar de caminhar no mesmo
sentido de Marx na linha principal, acaba por desviar-se da afirmação da
tendencialidade do curso histórico no plano geral. Engels havia relativizado o
papel das figuras de Napoleão Bonaparte e de Marx, respectivamente, no
curso da história francesa e da emergência do materialismo histórico,
dizendo que a ausência desses personagens seria compensada pela presença
de outros. Sobre Bonaparte, disse que “sempre se encontrou o homem
quando se tornou necessário” e, sobre a teoria marxista, estabeleceu que seu
tempo estava maduro “e ela devia ser descoberta”. Para Lukács, aqui Engels
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“proclama de modo ontologicamente simplista uma necessidade
excessiva que é estranha ao ser social, com exceção da economia em sentido
mais estrito”. O filósofo húngaro contesta Engels observando que, de fato,
outra pessoa poderia ter suprido a ausência de Bonaparte, “mas pode-se
duvidar, justificadamente, de que ele possuísse as capacidades casuais que
transformaram Bonaparte naquela figura histórica cuja influência foi sentida
em todo o século XIX (LUKÁCS, 2010, pp. 118-9). Ainda mais grave é o caso
da teoria marxista, uma vez que o próprio Engels chegou a duvidar se possuía
as qualidades (casuais) para desempenhar o mesmo papel que o amigo nesse
particular
13
.
Para sinalizar a evolução em pauta neste trabalho, devemos observar
que, em Reboquismo e dialética, Lukács ainda seguia Engels no
entendimento de que “para o método dialético só para ele, todavia ,
‘casual’ de modo nenhum significa algo não necessário em termos causais.
Pelo contrário, o acaso é a forma de manifestação de certo tipo de
determinismo causal”. O autor húngaro censurava um de seus críticos com as
seguintes palavras: “mesmo não conhecendo Hegel, o camarada Rudas
poderia ter tomado ciência disso a partir de Engels, segundo o qual o acaso
‘não é mais que um dos polos de uma interdependência, da qual o outro se
chama necessidade’” (LUKÁCS, 2015, p. 80). E na Introdução a uma estética
marxista Lukács aprovava exatamente a tese de Engels de que sempre que foi
necessário surgiu o homem para a ocasião (cf. LUKÁCS, 1968, pp. 108-9).
Nesse texto, ainda considerava legítimo afirmar que na ciência pretende-se
“superar o contingente na necessidade” (LUKÁCS, 1968, p. 268).
Voltando ao período da ontologia, podemos dizer o filósofo húngaro
passa a ver com clareza as debilidades filosóficas na apreensão que Engels faz
das posições de Marx. Para Lukács, ao combater vulgarizações em torno do
entendimento marxista da relação entre base econômica e superestrutura,
um esforço válido e necessário, Engels chega a expor traços essenciais do
problema, mas falha ao tentar conferir ao seu empreendimento um
“fundamento filosófico”. Em carta a Joseph Bloch, o revolucionário alemão
havia observado o seguinte:
Segundo a concepção materialista da história, o fator determinante
em última instância na história é a produção e a reprodução da
vida real. Mais não foi afirmado, nem por Marx, nem por mim. Se
agora alguém distorce isso no sentido de que o fator econômico
seria o único fator determinante, transforma aquela proposição
13
É interessante observar aqui que, para o autor húngaro, é característico de “toda
consideração ontológica” que o “centro fundante e a medida geral de toda diferenciação” é
ocupado pelo ser, enquanto que “para a gnosiologia e para a lógica” a necessidade é o “centro
determinante de tudo”. Na essência da obra de Marx, essa “fetichização da necessidade” não
comparece (LUKÁCS, 2010, pp. 191; 194). A abordagem gnosiológica, por contradizer o
fundamento ontológico de todo ser, isto é, a estrutura heterogênea da realidade, deforma a
categoria da casualidade (cf. LUKÁCS, 2010, p. 196; 2012, p. 364). A crítica de Lukács é
severa ao ponto de estabelecer um vínculo de continuidade entre a teorização de Engels e o
stalinismo: “creio que é muito importante e sem esta deformação o stalinismo não seria
possível que Engels e, com ele, alguns social-democratas tenham interpretado o decurso da
sociedade do ponto de vista de uma necessidade gica, em contraste com aquelas conexões
sociais reais de que Marx fala” (LUKÁCS, 1999, p. 107).
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numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base,
mas os diversos momentos da superestrutura /.../ exercem
também a sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos
casos, determinam de modo preponderante a forma dessas lutas.
uma interação de todos esses momentos, na qual, passando por
essa quantidade infinita de casualidades, // o movimento
econômico termina por se impor como necessário. (ENGELS apud
LUKÁCS, 2012, pp. 407-8)
De acordo com Lukács, a contraposição entre o conteúdo econômico e
a forma superestrutural sugerida por Engels não esclarece a conexão ou a
diferenciação entre ambos. Mesmo que tenha ressaltado de maneira acertada
o problema da gênese das ideologias, da legalidade relativamente própria
dessa gênese, Engels opera novamente com um instrumento intelectual
impróprio, isto é, a “relação forma-conteúdo”. Trata-se aqui, na avaliação de
Lukács, de uma “determinação de reflexão”, o que implica em sua inutilidade
para tratar de complexos diversos. Em seus termos:
Isso significa que forma e conteúdo, sempre e em todos os casos,
determinam ao mesmo tempo (e ao mesmo tempo) o caráter, o
ser-propriamente-assim (inclusive a universalidade) do objeto
singular, do complexo, do processo etc. Porém, justamente por isso
é impossível que, na determinação de dois complexos reais
diversos um do outro, um complexo figure como conteúdo e o
outro como forma. (LUKÁCS, 2012, p. 408)
14
Voltando ao problema da aproximação excessiva de Hegel e Marx
operada por Engels, devemos registrar que Lukács a detecta também na
concepção da relação entre as categorias de necessidade e liberdade. Ao
tomar por base as considerações do mestre idealista, para quem “cega a
necessidade na medida em que não é compreendida”, Engels afirma o que
segue:
A liberdade não reside na tão sonhada independência em relação às
leis da natureza, mas no conhecimento dessas leis e na
possibilidade proporcionada por ele de fazer com que elas atuem,
conforme um plano, em função de determinados fins. Isso vale
tanto com referência às leis da natureza externa quanto àquelas
que regulam a existência corporal e espiritual do próprio homem
/.../. Em consequência, liberdade da vontade nada mais é que a
capacidade de decidir com conhecimento de causa. (ENGELS apud
LUKÁCS, 2013, pp. 143; 145)
Para a crítica lukacsiana, essa passagem não conta da questão que
Engels trata, a saber, a do trabalho em sua relação com a liberdade. A
contraposição entre as categorias de necessidade e liberdade não resolve esse
problema no plano ontológico. O processo teleológico que constitui o
trabalho lida não apenas com a necessidade, mas com o todo da realidade,
isto é, sua realização depende de outras categorias modais além da
14
De modo geral, as cartas compostas por Engels em seus últimos anos de vida visavam
manter viva e íntegra a linha de Marx. No entanto, para Lukács, tais esforços foram inócuos
(cf. LUKÁCS, 2012, p. 299; 2013, p. 629). De passagem, merece registro aqui que, em outro
momento, Lukács assinala o “caráter predominantemente gnosiológico” do tratamento que
Engels oferece da ideologia, o qual negligencia nesse fenômeno o peso do desenvolvimento
social e dos conflitos nele atuantes (cf. LUKÁCS, 2013, pp. 479-82).
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necessidade. Nos termos lukacsianos, “a realidade vista aqui como
realidade daqueles materiais, processos, circunstâncias etc. que o trabalho
quer utilizar em determinado caso para sua própria finalidade não se
esgota, de modo algum, na necessidade de determinados nexos etc. A
limitação em causa decorre, em essência, do fato de Engels ter captado
apenas os elementos idealistas imediatamente visíveis da determinação
hegeliana, não viu “que Hegel, em consequência de seu sistema, atribui à
categoria necessidade uma exagerada importância logicista e que, por isso,
não percebe a particular peculiaridade da própria realidade” (LUKÁCS, 2013,
pp. 145; 147). Nesse sentido, o filósofo húngaro destaca o papel das categorias
de possibilidade, em suas modalidades objetiva e subjetiva, e acaso, seja esse
positivo ou negativo para a realização do trabalho.
Não obstante, a determinação engelsiana da liberdade presente no
trabalho padece de outro problema, relevado por Lukács em função do
contexto histórico de sua formulação. A definição de Engels é apropriada
para a liberdade que surge no trabalho. Contudo, escaparam-lhe as possíveis
implicações de suas conexões com o contexto social mais amplo, não
percebeu que o saber conquistado através do trabalho pode evoluir tanto em
sentido positivo quanto negativo. Isto é, a “problematicidade” apontada por
Lukács consiste na divergência no possível desenvolvimento superior da
compreensão, obtida mediante o trabalho, que pode tornar-se ciência
genuína, apreensão do mundo ou mera manipulação tecnológica.” O filósofo
húngaro insiste que também a manipulação mobiliza conhecimento de causa,
de modo que esse último não é suficiente para fundamentar uma teoria da
liberdade. Trata-se, na verdade, de saber qual é a direção geral dada ao
conhecimento: “é esse fim da intenção e não unicamente o conhecimento de
causa que fornece o critério real, o que significa que também nesse caso o
critério deve ser buscado na relação com a própria realidade”. Observe-se,
para efeitos de relativização da crítica, que para Lukács na época de Engels
pareceu que a tentativa de manipulação consciente da ciência, reduzindo-a a
uma “manipulação prática dos fatos”, “estava destinada definitivamente ao
fracasso; o avanço das ciências naturais modernas e sua generalização em
uma concepção de mundo científica pareciam irresistíveis” (LUKÁCS, 2013,
pp. 148-50).
A crítica de Lukács tem por base uma distinção entre o trabalho
originário e a forma de práxis que busca influenciar a ação de outros
indivíduos. Ambos têm por base um conhecimento mais ou menos correto de
conexões causais. No entanto, se o primeiro se realiza em um meio
relativamente natural, visando transformá-lo, o segundo tem por matéria
algo de caráter social, isto é, decisões alternativas de pessoas, um elemento
heterogêneo e dinâmico por excelência. Embora lhes seja comum alguma
dimensão de liberdade, Lukács destaca que um salto qualitativo entre a
liberdade limitada do trabalho, o “movimento livre na matéria”, e a
liberdade mais elevada e espiritualizada da práxis social (cf. LUKÁCS, 2013,
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Vladmir Luís da Silva
232
pp. 150-7)
15
. A preocupação do autor húngaro com a dimensão social da
liberdade nos parece em fina sintonia com a concepção de Marx:
Assim como o selvagem deve lutar com a natureza para satisfazer
suas necessidades, para manter e reproduzir sua vida, assim
precisa fazê-lo o civilizado, e ele precisa em todas as formas de
sociedade e sob todos os possíveis modos de produção. Com seu
desenvolvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, por
causa das necessidades; mas ampliam-se ao mesmo tempo as
forças produtivas que as satisfazem. A liberdade neste campo
pode consistir em que o homem socializado, os produtores
associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a
natureza, colocando-o sob seu controle comum, em vez de serem
por ele dominados como por um poder cego; em que o realizam
com o mínimo esforço e sob as condições mais dignas e adequadas
à sua natureza humana. (MARX, 2004, pp. 794-5)
Apenas para que fique registrada a novidade da postura de Lukács no
conjunto de sua trajetória, devemos lembrar que, em texto da segunda
metade dos anos 1940, o autor ainda demonstrava plena concordância com a
definição engelsiana de liberdade: “uma base da ética marxista é o
reconhecimento de que a liberdade consiste na necessidade tornada
consciente” (LUKÁCS, 2007, p. 75).
Já em tom conclusivo, observemos que no período da ontologia Lukács
é explicito na recusa da ideia de um sistema filosófico no pensamento de
Marx (cf. LUKÁCS, 2012, pp. 290; 296). Trata-se, aqui também, de um
contraponto em relação à postura de Engels, pois esse, embora houvesse
negado a possibilidade de sistemas filosóficos após Hegel, na prática acabou
por dar a seus desenvolvimentos teóricos realizados no Anti-Dühring a forma
de um sistema (cf. SILVA, 2019, pp. 79-88; 200-9). Também em passada
ligeira, vale ressaltar que em seus escritos ontológicos Lukács gastou várias
páginas para desdobrar a crítica esboçada no prefácio de 1967, referente às
formas do trabalho como critério de verdade da teoria, sempre ressaltando a
relatividade histórica e social do critério da práxis (cf. LUKÁCS, 2010, pp. 41;
46; 59-60; 2012, pp. 28; 56-7; 2013, pp. 93-8).
3
Do exposto até aqui, podemos concluir que Lukács capta não só a
impropriedade da aproximação excessiva entre os métodos de Hegel e Marx
operada por Engels, mas esquadrinha suas repercussões no tratamento de
questões essenciais para a compreensão do pensamento marxiano. Lukács
15
Na versão final de sua ontologia, Lukács voltou à carga contra a definição engelsiana da
liberdade enquanto “capacidade de decidir com conhecimento de causa”: “isso é uma
excelente descrição de determinados momentos importantes, decisivos, do processo de
produção no sentido estrito, mas Engels não dá, aqui, nenhuma resposta aos complexos de
problemas que são importantes na totalidade social, à questão acerca de como a maioria dos
seres humanos, cuja atividade é necessária para uma determinada formação, reage a
determinadas mudanças na produção, coisa de que depende, amplamente, o papel que a
consciência (certa ou falsa) dos seres humanos tem do mecanismo causal do processo do
qual participam ativa e passivamente” (LUKÁCS, 2010, p. 313).
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Vladmir Luís da Silva
233
afirma que colocar Hegel “materialisticamente de pé” é um movimento
insuficiente realizado por Engels. Em certos momentos, esse último mantém-
se em sintonia com a ontologia marxiana, mas em outros acolhe como válidos
elementos da dialética hegeliana que Marx julgava improcedentes.
Esperamos que tenha ficado claro que a trajetória de Lukács até o
pensamento autêntico de Marx é não só lenta, complexa e tortuosa, mas que é
permeada por um interessante diálogo com Engels, tomado, na maior parte
do tempo, voluntária ou involuntariamente, como referência clássica na
apreensão da obra marxiana. Desse modo, a ruptura do filósofo húngaro com
Engels constitui não apenas uma crítica a um referencial teórico
fundamental, mas uma revisão cabal de algumas das próprias convicções
filosóficas, além de ser um divórcio consciente em relação ao padrão
dominante de reflexão na modernidade
16
.
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Alberta Franco. São Paulo/Viçosa: Ad Hominem/Editora da UFV, 1999.
16
Em nossa discussão, tratamos as versões da ontologia lukacsiana como equivalentes em
seu conteúdo, pois entendemos que não alterações significativas. Não ignoramos com
isso as inovações para as quais chamam a atenção tanto os apresentadores da edição
brasileira dos Prolegômenos para uma ontologia do ser social (cf. VAISMAN; FORTES,
2010, pp. 27-31), quanto o autor de seu posfácio (cf. TERTULIAN, 2010, pp. 399 ss). De
nossa parte, notamos que, na primeira versão da ontologia, a afirmação quanto à existência
de uma contradição entre o método e o sistema de Hegel é adotada sem reservas por Lukács.
A detecção de uma contradição entre sistema e método em Hegel é atribuída por Lukács não
a Engels, mas também a Lênin ou, genericamente, aos “clássicos do marxismo”. Nessa
primeira versão, Lukács esposa a ideia de Engels segundo a qual Hegel pratica “um
materialismo posto de cabeça para baixo” (cf. 2012, pp. 182-3; 194; 226; 231; 282). Nos
Prolegômenos, esses aspectos são suavizados e o autor húngaro toma por arrimo preferencial
a própria crítica de Marx à filosofia de Hegel (cf., por exemplo, LUKÁCS, 2010, p. 368). No
entanto, como Vaisman e Fortes, entendemos ser precipitada a interpretação de que nos
Prolegômenos Lukács tenha abandonado totalmente a ideia da presença de duas ontologias
em Hegel (uma verdadeira e uma falsa). Também nos parece fundamental assinalar que, com
seus Prolegômenos, Lukács não necessariamente uma solução acabada e definitiva para
os problemas que aponta. Entendemos que muitas dimensões de sua obra constituem pontos
para futuras investigações, em especial o problema da ética. Se Tertulian (1988 e 1999) e
Oldrini (1995; 2008) parecem tomar como ponto pacífico o projeto lukacsiano de compor
uma ética, Mészáros (2002, pp. 486-514; 875-81; 2013) aponta uma tentativa infrutífera
de mediar o ser [Sein] e o dever ser [Sollen] da sociabilidade, um substituto inadequado das
mediações políticas, as quais Lukács não pode desenvolver em função das vicissitudes de sua
própria trajetória política e intelectual.
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Como citar:
SILVA, Vladmir Luís da. A superação dos pilares do marxismo de Friedrich
Engels na obra de György Lukács: rumo ao resgate do pensamento de Karl
Marx. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das
Ostras, v. 26, n. 2, pp. 207-34, jul./dez. 2020.
Data do envio: 10 maio 2020
Data do aceite: 21 nov. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.587
Jaime Ortega Reyna
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Un férreo lector de Engels: aproximaciones a la obra de José Ferraro
Jaime Ortega Reyna
1
Resumen: Este texto aborda de manera central la obra que produjo el filósofo
mexicano-estadounidense Josep Ferraro. A partir de una exposición de su obra,
se pone atención en la defensa que hizo de Frederich Engels en dos temas
cruciales: la concepción del materialismo y de la dialéctica. Ferraro, hizo parte de
una débil, pero constante estela de lectores de Engels en México, situación que
también se aborda como parte del contexto global de recepción del compañero de
Marx.
Palabras-clave: Engels; dialéctica; materialismo; filosofía en México.
Um leitor fiel de Engels: aproximações à obra de José Ferraro
Resumo: Este texto trata centralmente da obra do filósofo mexicano-americano
Josep Ferraro. A partir de uma exposição de sua obra, é dada atenção à defesa de
Friedrich Engels sobre duas questões cruciais: a concepção de materialismo e a
dialética. Ferraro, fez parte de uma trilha fraca, mas constante de leitores de
Engels no México, situação que também é abordada como parte do contexto global
de recepção do companheiro de Marx.
Palavras-chave: Engels; dialética; materialismo; filosofia no México.
A staunch reader of Engels: approaches to the work of José Ferraro
Summary: This text deals centrally with the work produced by the Mexican-
American philosopher Josep Ferraro. Based on an exhibition of his work,
attention is paid to his defense of Frederich Engels on two crucial issues: the
conception of materialism and dialectics. Ferraro, was part of a weak, but constant
1
Universidad Autónoma Metropolitana-Xochimilco (México). Autor de Leer El capital, teorizar
la política (UNAM, 2018) e La incorregible imaginación: itinerarios de Althusser en América
Latina y el Caribe (Doble Ciencia, 2019). E-mail: jaime_ortega83@yahoo.com.mx.
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Jaime Ortega Reyna
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trail of readers of Engels in Mexico, a situation that is also addressed as part of
the global context of reception of Marx's companion.
Keywords: Engels; dialectics; materialism, philosophy in Mexico.
En Asesinato en el Comité Central, una novela policiaca del inolvidable
ensayista Manuel Vázquez Montealbán, el detective Carvalho ingresa a una
biblioteca en la que encuentra un libro de Friederich Engels:
se fue hacia la biblioteca llena de mellas y derrumbamientos, de libros
deformes por un mal apyo o por la asfixa excesiva a que les sometían
libros mayores. Eligió El problema de la vivienda, de Engels, del que le
bastó leer “Tercera parte: observaciones complementarias acerca de
Proudhon y el problema de la vivienda” para decidir que tenía bien
merecido el fuego. Rompió el libro en tres pedazos, arrugó las páginas
para airearlas y permitir la combustión y empezó a ordenar el edificio de
teas y ramas sobre las ruinas de uno de los libros más insuficientes de
Engels (ZQUEZ, 1981, p. 35).
Tal como en la novela, parece que gran parte del “marxismo occidental”
operó de la misma forma con respecto al inseparable compañero de Karl Marx:
tomó una hoja al azar, la leyó, le disgustó y condenó a Engels, no al olvido, pero si
a la hoguera de la crítica. Engels, consumido por el fuego elemento de la
naturaleza es una imagen poderosa que involuntariamente Vázquez Montealbán
nos regaló y que prefigura la relación del marxismo con el pensador: sus libros
son considerados buenos, pero insuficientes frente a los de Marx; su trayectoria
limpia, pero dañinos los efectos de su presencia y, sobre todo, cuestionable el
significado de su legado.
Contrario a esta imagen novelesca, pero con fuerte presencia en el campo
teórico, es que en este texto expondremos el trabajo de un férreo engelsiano: José
Ferraro. Este autor es uno de los marxistas que han permanecido ocultos en las
historizaciones de esta corriente y su desarrollo en América Latina. Afincado en
México aunque de origen norteamericano, desarrolló una importante veta de
investigación en torno a la crítica de la teología de la liberación y la impronta del
marxismo guiada por la figura de Engels, cuya obra resguardó de los múltiples
ataques a la que fue sometida. De manera global es posible considerar su obra
como una defensa y anticrítica de Engels. Defensa, en la medida en que lo
considera un autor con validez para el desarrollo de la crítica del capitalismo y
anticrítica en la medida en que sus principales interlocutores son tanto los más
famosos rivales del compañero de Marx en el siglo XX, como algunos menos
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conocidos.
Este texto, amén de desarrollar una argumentación hacia esta forma
particular de recepción y apropiación de la figura de Engels, también espera
funcionar como un homenaje al profesor y filósofo, cuya obra ha sido descuidada
por la historiografía que despliega argumentos sobre la historia del marxismo en
América Latina y en México. Desarrollaremos nuestro acometido a lo largo de
cuatro secciones. En la primera brindamos las coordenadas de crítica a la obra de
Engels, es decir, el lugar en el que se ubica la discusión del autor en cuestión, en
la segunda aportamos directrices sobre la presencia de Engels en México,
finalmente, en la tercera ofreceremos datos importantes en torno a la figura de
Ferraro; en la última ubicamos las discusiones en torno a Engels que hizo el autor
que es nuestro centro de reflexión a partir de dos grandes temas: el materialismo
y la dialéctica.
Es preciso decir en esta introducción que usamos engelsianismo de una
manera distinta a la contribución de la obra teórica de Engels. La primera
categoría remite, efectivamente, a lecturas positivistas que se amparan en
fragmentos de la obra teórica de Engels, vertiente que operó en múltiples
organizaciones políticas. Se trata del uso de fragmentos o segmento de su obra
que se totalizaron, mostrando un pensamiento osificado y teleológico. Lo que se
suele denominar engelsianismo es un sentido de época producido por la confianza
en la ciencia y en la técnica que no pocos socialistas y comunistas compartieron a
lo largo de la centuria pasada y que tiene expresión en la osificación teórica del
“materialismo dialéctico” o las improntas que confiaron en la dupla entre
progreso y necesidad histórica, acomo en el tránsito de etapas bien definidas de
un supuesto desarrollo histórico obligado.
La obra de Engels, como la del propio Marx, es, por supuesto, un campo de
disputa. No hay un sentido cerrado ni único, mucho menos parámetros definibles
para establecer una lectura correcta. Los puntos de tensión frente a los formatos
más aceptados de la trayectoria crítica son variados. Efectivamente, es sabido que
cuando Marx estudiaba ruso, Engels deseaba que avanzara en El capital, en un
gesto de aparente privilegio de estudio del desarrollo de la universidad del
despliegue de la forma mercantil sobre la especificidad de una situación que
parecía resistir en el entramado del mundo comunitario y campesino. Igual
sucede con su posición respecto a Irlanda, que, se sabe, cambió a lo largo de su
vida, pasando de comentarios ofensivos a los habitantes de esa nación a un
impulso de su lucha por la liberación nacional. En dado caso el engelsianismo
como efecto de un cierto sentido común en la tradición socialista cercana o afin
al positivismo no debe alejarnos de trabajar las obras teóricas más allá de las
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formas de su recepción en determinadas circunstancias. Así, aunque a nombre de
Engels se realizó un ejercicio de “positivización” del marxismo, porque había
material disponible para hacerlo, ello no es indicativo de que Engels sea solo eso.
Defender a Engels
Desde la aparición de Engels contra Marx (BERMUDO, 1981) de Jo
María Bermudo, se han producido en español, pocos, pero significativos trabajos
que problematizan la relación de Engels con Marx y del primero con la tradición
marxista occidental. En este apartado mencionaremos algunos de los principales
textos que asumen una problematización en torno a Engels en una clave
propositiva y no solo condenatoria. Esta es una forma de lectura obligada, en la
medida que, frente a la amplia producción en torno a Marx, la que se ocupa
específicamente de Engels es minoritaria, ello en gran medida porque dentro de
la tradición del marxismo occidental, muchos de los vínculos y referentes
practicaban, en distintos niveles, un anti-engelsianismo militante.
El texto de Bermudo abrió, para la tradición marxista producida en idioma
español, un conjunto de líneas de investigación que pasaban desde la evaluación
política, hasta la presencia de una concepción de la ciencia mucho más flexible.
Enmarcado en las discusiones desatadas tras la emergencia del
“althusserianismo”, el productivo filósofo español permitió visibilizar una
constante en las filas del marxismo occidental: de Eduard Bernstein a Karl
Kautsky, de György Lukács a Lucio Colletti, de Jean-Paul Sartre a Alvin Goudlner,
la hipótesis es la misma: Engels es el responsable de las deformaciones
cientificistas y ontologicistas que el marxismo experimentó. Su obra habría
permitido el abandono de su lugar como “crítica de la sociedad” y habría
impulsado un programa cientificista. En tiempos más recientes la popularización
de las tesis de Maximilian Rubel quien no es referido por Bermudo, pero que
cuenta con seguidores dada su filiación proto-anarquista siguen la misma idea:
Engels es el fundador del monstruo ideológico, cientificista y ontologicista que es
el “marxismo-leninismo”, es decir, de una noción cristalizada de tradición y por
tanto de ortodoxia. En tanto que Marx habría sido mas cauto al diseñar un
paradigma tan estable, dejando abierta la posibilidad de una “crítica” implacable
de todo. Así, Stalin, la academia de ciencias de la URSS, Lysenko y todo despliegue
perverso de aquella ideología de poder, habría sido sembrada, sin quererlo, por
Engels.
Bermudo señaló claramente el eje central por el que atravesó esta
discusión: la contraposición entre Engels y Marx, su separación y posterior
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señalamiento de los males producidos por el primero sobre la herencia el segundo,
nos ha dejado sin la posibilidad real de conocer los aportes específicos de Engels.
El trabajo Bermudo navegó solitario durante un tiempo, en gran medida porque
en la época de la “nueva izquierda” el joven Marx, el de los Manuscritos de 1844
era el héroe, en tanto que el viejo Engels, tan comprometido con la ciencia de la
naturaleza no podía ser sino el villano. Es importante volver a ese Engels contra
Marx, pues marcó las profundidades del significado de la construcción del
engelsianismo: su impacto político, pero también la interpretación negativa de
quienes hicieron parte del marxismo occidental. Los temas son abordados en
función de las trayectorias, por ejemplo, a la filosofía de la praxis la critica en
función de la reducción que hace del problema de la categoría de trabajo de
Engels, tema que reaparecerá constantemente.
En tiempos más recientes dos trabajos más han aparecido, cerrando un
círculo de problematización. Me refiero primero al trabajo de Martín Mazora
Marx discípulo de Engels (MAZORA, 2017) que marcó bien el papel crucial del
aporte con respecto a la crítica de la economía política y en general a la adopción
del proyecto intelectual por parte del filósofo nacido en Tréveris: Marx era deudor
de Engels, en más de un sentido. Mazora acompaña bien el esfuerzo de Bermudo,
pues si el español demostró la tentativa engelsiana constitutiva del marxismo
occidental, el del argentino elabora una hipótesis de nacimiento del marxismo
distinta a la tradicional, incluida la de los marxistas anti-Engels. En este trabajo
Engels no es un acompañante incómodo, ni tampoco un amigo pasivo, sino más
bien un momento crucial en la construcción de una agenda de la crítica de la
economía política.
En segundo lugar y paralelamente al trabajo de Mazora, en Cuba se ha
insistido en una línea similar. Rogney Piedra (PIEDRA, 2017) en Marxismo y
dialéctica de la naturaleza aborda tópicos similares al trabajo de Bermudo, como
lo son la crítica de la dialéctica de la naturaleza, la perspectiva no dogmática del
concepto de materia, la no diferenciación entre las perspectivas de Marx y Engels
en puntos clave, el papel del determinismo en su relación con la libertad, entre
otros. Aunque no resulta del todo original en sus planteamientos la mayor parte
expuestos en el trabajo de Bermudo lo cierto es que hay dos novedades. Primera,
dentro del marxismo cubano, se trata de una línea de ruptura con los resquicios
del Diamaty, por tanto, una manera más elaborada de conceptualizar la relación
ser humano-naturaleza; por el otro, la actualización de los referentes críticos,
estando en la mira no solo Jean Paul Sartre, György Lukács o Lucio Colletti entre
los cuestionados, como en antaño, sino incluyendo a autores de gran notoriedad
contemporánea como Néstor Kohan. La noción de una unidad Marx-Engels como
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planteamiento teórico y político es algo que en Cuba ha sido una constante en el
mediano plazo (HART, 2005, p. 45), como en una tradición que puede ubicarse
hasta el Departamento de Filosofía de la Universidad de La Habana (MARTÍNEZ,
1968, p. 127).
Instantáneas de Engels en México
La ciudad de México no cuenta con ningún busto o estatua de Karl Marx,
pero si se encuentra entre sus populosas calles un pequeño monumento dedicada
a Engels. Asediado por el comercio callejero de una sociedad cuyo trabajo se
organiza en gran medida sobre la base de la precariedad, aquella efigie expresa
una cierta tradición de pensamiento. Por supuesto, la presencia de Engels en
México va más allá de la osificación conmemorativa. Se ancla en intentos de
reflexión teórica y de acción política, de manera discontinua y atravesada por las
contradicciones propias de una sociedad como la mexicana, que, al igual que las
latinoamericanas, tuvo que convivir entre una tendencia nacionalistas dominante
y una cultura socialista subordinada o minoritaria.
El primer gran momento de recepción de Engels en México se da a través
de la figura de Vicente Lombardo Toledano. Se trata de una lectura que produce
un tipo de engelsianismo, en cuyo eje es una clave positivista de interpretar el
desarrollo de las sociedades, ese que se ha construido como el enemigo clásico al
marxismo humanista y crítico (GOULDNER, 1983). Efectivamente, Lombardo
expresa lo que los críticos de Engels han querido ver como todo su contenido: una
visión teleológica, cientificista y de traspaso de categorías de la naturaleza a la
sociedad. Lombardo, dirigente sindical y político acomodaticio, ganó peso e
influencia política en México al convertirse en el “marxista oficial” del régimen
posterior a la revolución mexicana de 1910. Lombardo consideró que la ciencia y
la técnica eran los elementos fundamentales para el desarrollo de la sociedad
mexicana y que está solo podía ir de la mano de un estado modernizante. Por ello,
apeló a que el marxismo debía ser una ciencia que buscara comprender y predecir
los cambios y contradicciones en la línea del desarrollo técnico. Así, la dialéctica
y el materialismo tomaban una forma evolucionista y el marxismo se convertía en
un discurso sobre la necesidad del desarrollo de las fuerzas productivas. Un
momento muy sugerente fue una discusión trasmitida por radio y después
transcrita en el libro Marxismo y antimarxismo, protagonizada entre opositores
al marxismo de la época y Lombardo, en donde queda clara la posición de este:
“no se ocupó del análisis de la filosofía de Marx, sino de la exposición de la filosofía
de Engels” (MORUA, 2007, p. 663). El encuentro tuvo lugar a mediados de la
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Jaime Ortega Reyna
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década de 1930, cuando el socialismo y el marxismo eran parte del discurso
público, al calor la gran transformación en el estado que incorporó a las masas de
obreros y campesinos al estado.
Por supuesto que Engels fue una presencia constante, como puede
esperarse, en el Partido Comunista Mexicano. Su figura apareció en repetidas
ocasiones en el legendario periódico El Machete, en donde se publicó en varias
entregas textos como “Principios de comunismo”. También estuvo presente en las
revistas teóricas que el partido alentó en la década de 1960. El historiador
comunista Enrique Semo, por ejemplo, reseñó la aparición de “10 artículos
inéditos de Engels” (VILLANUEVA, 1962, p. 61) en la revista teórica de aquel
momento. Semo, reconocido historiador económico, presentó esto en una década
en donde el estudio de la teoría apenas comenzaba a realizarse con seriedad.
Posteriormente, él mismo dirigió una importante revista de nombre Historia y
Sociedad, símbolo de la renovación teórica y política del comunismo mexicano.
En ella se publicaron textos inéditos de Engels como parte de ese intento de ir a la
teoría marxista a sus fuentes originarias.
Hacia finales de la siguiente década comenzaron a aparecer trabajos más
especializados, marcados por un acercamiento entre el pensamiento marxista y
los trabajos académicos. Es el caso del trabajo de Concepción Tonda aparecida en
la efímera revista Ítaca, a propósito de la situación de las mujeres. Por su parte,
Jorge Fuentes Morúa (FUENTES, 1991), realizó un estudio sobre los problemas
de la urbanización, en donde distinguía que la concepción marxista incluía tanto
a Marx como Engels. Estos trabajos, dispersos, hacen parte de una cultura política
marxista que no se dejó llevar por el anti engelsianismo del marxismo occidental
y que reivindicó la pertinencia del pensamiento del compañero de Marx para
pensar, tanto el marxismo mismo, como algunos problemas específicos, como el
de la dimensión urbana. Dentro de este entramado es pertinente señalar la obra
de Josep Ferraro.
Josep Ferraro: un perfil intelectual
El 11 de octubre de 2006 apareció en la sección “Correo Ilustrado” del
diario mexicano La Jornada un breve texto firmado por José María Martinelli, en
él se informó de la muerte del profesor Joseph Ferraro. Además de la fecha de su
deceso, se dan algunos datos sobre él, como el de que se trataba de un católico
marxista que había combatido a los poderes eclesiales. Ferraro fue, además, un
profesor en la carrera de sociología de una universidad importante en la ciudad
de México: la Unidad Iztapalapa de la Universidad Autónoma Metropolitana.
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Publicó una larga lista de obras a propósito de la teología y de crítica a la
teología de la liberación, así como en torno al marxismo. En 1976 San Juan de la
Cruz y el problema místico : la necesidad de un nuevo concilio (su tesis de
doctorado en Filosofía por la Unam), en 1979 Hacia un diálogo católico-marxista
sobre la familia, en 1985 Durkheim y el totemismo en la religión contemporánea:
un estudio sociológico sobre el Vaticano II, en 1990 La Anticoncepción: la
necesidad de una revaluación católica, en 1992 Teología de la liberación:
¿revolucionaria o reformsita?, en 1995 Teología capitalista vs teología de la
liberación: espiritualidad y compromiso político, Misticismo y liberación del
pobre y Espiritualidad y compromiso político, en 1997 Misticismo y compromiso
en el evangelio de San Juan, en 2000 Misticismo en las epístolas de San Pablo:
la tradición. En la primera década del siglo XXI apareció la compilación Debates
actuales en torno a la Teología de la Liberación en dos volúmenes.
Póstumamente La lucha de la Iglesia contra el comunismo y el Vaticano II en
2009.
En el campo de la investigación marxista en 1966 presentó su tesis de
maestría titulada “Una estructura para una antropología marxista” que nunca fue
publicada. En 1989 Defensa de la propiedad en Marx y Engels, en 1992 Freedom
and determination in history according to Marx and Engels en la editorial
norteamericana Monthly Review. Así mismo algunos artículos en revistas
académicas, tales como el de 1978 La teoría valor-trabajo según Marx y Santo
Tomás y su aplicación en las relaciones de producción capitalistasen la revista
Dianoia, en 1987 “La naturaleza mediada y no mediada en Marx y Engels” en la
revista Iztapalapa, en 1990 “El problema del humanismo en el Marx maduro” y
en 2000 “Lukács y la dialéctica de la naturaleza de Engels”, estos dos últimos en
los anuarios titulados Polis que editaba la Universidad Autónoma Metropolitana.
Sorprende que con este currículum se sugiera que el académico y filósofo
aportara centralmente sobre Engels. Efectivamente, aunque de manera mucho
menos intensa, sin embargo, Ferraro presenta un caso paradigmático de una
defensa propositiva del aporte de Engels.
¿Qué tipo de marxismo?
Josep Ferraro fue un profesor universitario, recordado por su sencillez y
profunda dedicación. Pero, además, como mostró el aparatado anterior, ocupó
centralidad en los debates a propósito de la teología de la liberación. Además de
todo ello, los últimos 25 años de su vida dedicó a desarrollar una amplia defensa
de la teoría aportada por Engels. Ello requirió varias operaciones, en primer lugar,
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la imposibilidad de separar a Marx de Engels; la segunda, la de evitar los
reduccionismos a los que se sometía los trabajos y perspectiva de este último; la
tercera, menos intensa, pero presente, sostener que Engels fue siempre un
revolucionario.
Ubiquemos entonces, Ferraro desarrolló una perspectiva original, que no
puede ser enclavada ni como crítica de la economía política al estilo Bolívar
Echeverría, ni como filosofía de la praxis aunque comparta algunos
presupuestos, y mucho menos, ligada al althusserianismo. La historia del
marxismo en México, ya iniciada en el trabajo panorámico de Carlos Illades
(ILLADES, 2018), merece detenerse también en los rincones productivos, como
es el caso de Ferraro. El autor compartió una perspectiva humanista del
marxismo, pero de ninguna forma puede ser asimilado a la filosofía de la praxis.
¿De dónde proviene esta imposibilidad de asimilación a las principales
corrientes teóricas? Primero, de que desarrolló una línea clásica, sobre la base de
separarse de la vía implantada por Stalin en su definición de Materialismo
Dialéctico y Materialismo Histórico. Ello quedó bien asentado en su
Introducción al pensamiento de Marx y Engels, texto publicado en 1999 y que
recoge gran parte de su perspectiva, aunque se encuentra diseñado como un
instrumento para la enseñanza. En el trabajo en cuestión se distancia de aquella
interpretación y elabora una que tiene como eje la distinción entre juventud y
madurez, pero no a la manera de Althusser (al que critica débilmente, sobre la
base de la crítica de Adam Schaff), pues ubica la persistencia de un humanismo
persistente en el Marx maduro.
En general, podríamos decir que la perspectiva de Ferraro se alejó de
cualquier noción trascendental y homogeneizante de la praxis. Pero tampoco
pensó que El capital entregara la totalidad de las categorías para ejercer la crítica
de la sociedad moderna. Su registro es más clásico, abordó los vínculos con el
pensamiento idealista y el pensamiento materialista, separó lo económico
contenido en El capital de lo político. Es decir, asum que Marx-Engels son un
todo que debe ser comprendido en sus diversos niveles. Su Introducción al
pensamiento de Marx y Engels operó como ejercicio de establecimiento de las
condiciones de producción del materialismo histórico, así como de comprensión
de las raíces de la dialéctica marxista, tanto en el plano histórico es decir, a partir
de acontecimientos como la revolución industrial inglesa o la revolución burguesa
francesa como en el de las ideas, particularmente en las discusiones con
Feuerbach y Hegel.
Se trata de un capítulo minoritario en la historia del marxismo, no captable
desde los grandes paradigmas que dominaron la reflexión de este campo,
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expresadas en figuras como José Revueltas, Sánchez Vázquez, Carlos Pereyra o
Bolívar Echeverría. Sin embargo, es perceptible una comprensión original, que
responde tanto a imperativos políticos como filosóficos. En gran medida su
especificidad se da en torno a la forma en que aborda la matriz entrega por Engels
al marxismo.
Materialista y dialéctica: una defensa de Engels
En 1989 apareció por el sello editorial de la Universidad Autónoma
Metropolitana el libro ¿Tergiversó Engels el materialismo de Marx? Es,
podríamos decir, el primer trabajo sistemático en torno a Engels que se produjo
en México en el campo estrictamente filosófico. Sorprende que aparec en los
albores de la gran crisis del socialismo a nivel internacional, aunque en México la
izquierda socialista ya se había fundido en una corriente nacionalista un lustro
atrás al derrumbe del poder soviético. El texto fue, de hecho, el primero que su
autor dedicaba al marxismo en español. Como hemos visto antes, la amplia
producción de Ferraro se había concentrado en otras regiones de la crítica
marxista.
¿Qué es lo que hace Ferraro con respecto al materialismo? Hay varias
operaciones teóricas y políticas destacables. La piedra angular es negar que Engels
haya entregado una cosmología que parta de un concepto metafísico, como es el
de materia. Contrario a la visión popularizada en la Unión Soviética y en el
marxismo occidental que lo criticó, Engels no es responsable de la recaída
idealista de un nuevo demiurgo de la historia: la “materia”.
El camino de Ferraro es el de reconstruir los múltiples sentidos que tiene
la noción de materialismo Marx y Engels. La primera forma que encuentra de ella
es que ambos autores la identificaron con los materialistas comunistas: “han
definido el carácter material de las cosas como aquello que existe independiente
de la persona” (FERRARO, 1989, p. 64). Esto nos lleva ya al centro de la discusión
que Ferraro tiene con algunos autores como Jordan, Schmitt: ¿el materialismo de
Engels es contemplativo y por tanto excluyente de la subjetividad? ¿Era el
materialismo de Marx uno que abandonaba la noción de naturaleza y se
concentraba en las formas de operación de lo social, es decir, la praxis?
Desde el punto de vista de los críticos de Engels, Marx habría realizado un
tratamiento distinto del materialismo, al ubicarlo en un plano “praxeológico”, es
decir, alejado de cualquier noción ontológica y anclado en la sociedad. El
materialismo de Marx sería el que destruye cualquier noción tanto naturalista
como contemplativa de la praxis. De un lado quedó asentado que a Marx no le
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interesó escribir una “filosofía de la naturaleza”, pues consideró a esta a la
naturaleza sólo en la mediación que los seres humanos tenían por medio del
trabajo práctico, en tanto que su noción de subjetividad era siempre actuante y no
pasiva.
Ferraro rebate estos argumentos. Primero señaló que “Marx como Engels
han admitió por lo menos implícitamente la existencia de una naturaleza no
mediada por el hombre” (FERRARO, 1989, p. 64). Su punto de arranque es
básico: antes de que existiera una actividad práctico-transformada o propiamente
de trabajo, la naturaleza existía y es esta la que se modifica con la actividad
humana. Señalar que los seres humanos son seres prácticos no debe interpretarse,
según el argumento de Ferraro, que estos son siempre y todo el tiempo, seres que
trabajan. Hay también espacios y momentos donde priva lo contrario: “La historia
supone cierta pasividad sin la cual ni puede existir. Las generaciones presentes
reciben pasivamente su punto de partida de las generaciones pasadas…”
(FERRARO, 1989, p. 64).
Para los críticos de Engels, este habría apostado por un materialismo
ontológico que dejaría en estado de pausa a la subjetividad. En cambio, Marx
habría construido un materialismo afincado en la práctica transformadora. Sin
embargo, Ferraro demuestra como no existe tal bifurcación entre un Engels que
congele al sujeto y un Marx que lo libere de sus ataduras de la necesidad:
Marx y Engels, durante su juventud, sostuvieron que este mundo
sensible real, junto con las relaciones sociales reales, existen
independientemente de la auto conciencia y categorías mentales de la
Critica crítica e incluso independientemente de la conciencia y voluntad
humanas. // No se trata, por tanto, de una visión contemplativa del
materialismo; el materialismo comunista es eminentemente práctico.
Sin embargo, no surg de la nada. Al contrario, tiene un origen
histórico, tanto en el uso del nombre “materialista” como en algunos de
sus principales fundamentos. (FERRARO, 1989, p. 72)
La defensa de Ferraro recae entonces en varios aspectos. El primero, que
Marx mismo, durante su juventud, particularmente en sus Manuscritos de 1844,
pero también en las obras firmadas con Engels, aceptó un elemento heredado, no
práctico, natural. Esto no invalida que su concepción de la vida social sea,
también, del aspecto práctico. Los seres humanos modifican algo que les fue
heredado o algo que no había sido modificado. Esto no convierte a Marx ni
tampoco a Engels en teóricos contemplativos. Pero, además, colocó la
preexistencia de la naturaleza, previa a la intervención humana, como una
premisa. En dado caso, el llamado de Ferraro es el de recordar que existe tanto la
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naturaleza no mediada, como la mediada por el trabajo y que una no invalida a la
otra.
El tránsito hacia la siguiente parada tiene que ver con los trabajos firmados
de forma individual, en donde es s fácil a los críticos contraponer dos visiones.
Por un lado, el Marx humanista, que activa el lado práctico y por el otro el tosco
materialismo engelsiano, que condenó a los sujetos a la inmovilidad frente a las
leyes de la naturaleza. Para ello Ferraro analiza con detenimiento la que fue una
de las obras más comunes entre el movimiento obrero: El Anti-Dühring. La
lectura de Ferraro de esta obra de Engels, deja la siguiente conclusión: “su tema
principal es el socialismo científico y el modo de llegar a implantarlo en la
sociedad. O, dicho de otro modo, aunque vemos que Engels, en el Anti-Dühring
desarrolla sus concepciones sobre una perspectiva materialista de la naturaleza,
no era éste su fin principal(FERRARO, 1989, p.77). El objetivo del compañero
de Marx es el socialismo científico, que, dicho sea de paso, para Ferraro no
invalida que tenga “una finalidad humanista” (FERRARO, 1989, p. 82). Antes
bien, desde la perspectiva de Engels, no habría posibilidad de plantear un
horizonte humanista sino se pasa por una elaboración materialista del lugar de la
naturaleza en la vida social. Así, proclama con énfasis el mexicano: “El enfoque
materialista de la naturaleza del Anti-Düring no es, pues, una desviación del
pensamiento marxiano de juventud sino una continuación y profundización”
(FERRARO, 1989, p. 84).
Para Ferraro el dolo con Engels es que se le arrincona en una visión tosca
u ontologicista del materialismo. Desde su punto de vista, una lectura atenta
demuestra como este concibe al materialismo tanto como “método como
doctrina”: “como método consiste en ir hacia el mundo real para obtener nuestro
conocimiento; y como doctrina, afirma la existencia de ese mundo real
independientemente de nosotros. El mundo no se deriva ni se conforma según
nuestras ideas sino estás se derivan y tiene que conformarse al mundo real”
(FERRARO, 1989, p. 91). Para Ferraro, admitir la existencia de un mundo exterior
a la práctica humana es el primer paso para reconocer el horizonte de
transformación que los seres humanos cargan en sus espaldas. Aceptar que el
mundo existe independientemente del pensamiento de los seres humanos es la
premisa para que este pueda ser conocido en sus regularidades.
Este tema ha generado críticas como la que Rodolfo Mondolfo lanzó, que
Ferraro se encarga de afrontar. Dice nuestro autor que para Engels la naturaleza
no es la única realidad, pero si existe de forma independiente como naturaleza no
mediada. Pero ahí da un paso más, acompañado de la lectura del último Engels:
“la postura de Engels que nada existe fuera de la naturaleza y el hombre, como
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perteneciente a la naturaleza y producto de ésta; es decir, Engels recalca la
importancia de considerar al hombre de un modo materialista, como un producto
de la naturaleza y no de la idea o de la autoconciencia (FERRARO, 1989, p. 109).
Aquí, ya hay una fusión, entre seres humanos y naturaleza, los primeros son un
producto de la segunda, que logran transformarla y cuando lo hacen se
transforman a ellos mismos.
Engels no habla de materia homogénea (FERRARO, 1989, p. 114), no es un
sustrato eternamente igual a mismo (FERRARO, 1989, p. 115). No habla de una
materia “ontológica” (FERRARO, 1989 p. 120). Critica a quienes insisten que
Marx sostuvo exclusivamente la naturaleza mediada por el ser humano, señalando
que en Engels esta mediación es ausente. Ferraro argumenta que Marx también
considero al ser humano como un ente natural –no mediado. Así “el hombre no
sólo es activo; se ve condicionado y limitado. Es un ser que padece y, por tanto,
también es pasivo, como resultado obvio frente a los sufrimientos padecidos por
el proletariado y de los cuales Marx quiso liberarlo” (FERRARO, 1989, p. 124).
Pero que ser y humano y naturaleza pueden ser comprendidos en unidad,
también implica un ejercicio de diferencia. Es claro que la “segunda naturaleza”
que los seres humanos construyen apropiándose de lo dado en el mundo, trans-
formándolo y re-inventándolo de acuerdo a sus necesidades, intereses y sueños,
se asienta en una realidad que no eligen. Así, para Ferraro el joven Marx
no ha perdido de vista que la naturaleza tiene su existencia
independientemente del hombre, es decir, que la naturaleza no sólo
existe para él sino también aparte de él; y el hecho de que la naturaleza
exista independientemente y aparte del hombre, de ningún modo lo
hace completamente diferente de la naturaleza que existe para el
hombre //. Tanto la planta mediada por la praxis humana como la
planta jamás vista por ojos humanos necesita el sol (FERRARO, 1989,
p. 125).
El trabajo teórico que Ferraro entrega es el de reunificar a Marx y a Engels
en en torno a la noción de materialismo. No existen dos visiones contrapuestas,
ni antagónicas. Se trata, desde su argumentación, de la misma perspectiva, pero
con distintos énfasis. En el caso de Engels, del reconocimiento que tanto la
producción de objetos, como de conocimientos, parten de una naturaleza no
mediada, podríamos decir, exterior. Y reconocer esta exterioridad no impide
vislumbrar el lado activo, tanto de la actividad práctica transformadora por
excelencia, que el trabajo, como del conocimiento. Así, por ejemplo, se retrotrae
al periodo “maduro” de Marx, con los Grundrisse señala que hay en este periodo
una naturaleza no mediada también en el filósofo de Tréveris: “La producción
humana, la mediación humana de la naturaleza, pues, supone la naturaleza no
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producida, la naturaleza no mediada; y esta naturaleza no mediada no deja de
tener interés o importancia para el hombre, ya que, sin ella, él no puede producir”
(FERRARO, 1989, p. 132). De la misma forma con pasajes de El capital,
demuestra que: “las cosas tienen sus propias cualidades mecánicas, físicas y
químicas, independientemente de la mediación del hombre” (FERRARO, 1989, p.
134).
Podemos cerrar de forma clara su defensa del materialismo de Engels.
Primero, este no se diferencia sustancialmente de la de Marx, ni en su periodo de
juventud, ni en el de madurez. Segundo, el énfasis en la naturaleza y sus “leyes”
no responde a una visión idealista, ni tampoco a la construcción de una
cosmología, en Engels la naturaleza como espacio no mediado tiene un lugar, pero
no es totalizado como lo único relevante. Tercero, Engels acepta el carácter
práctico del “nuevo materialismo”, pero no deja de insistir en la existencia de una
exterioridad, de un mundo aun no trastocado por la actividad práctica humana.
Cuarto y, finalmente, el materialismo de Engels es también humanista, pues
pretende la construcción de una sociedad socialista, al igual que la de Marx, donde
prive el reconocimiento de las capacidades humanas que han controlado aspectos
de la naturaleza, aunque no por completo.
Pero el materialismo no fue el único tema en el que Ferraro se esforzó por
mantener una postura en la que Engels no apareciera como un “traidor”. Ya en la
última línea del texto de 1989 se anuncia que se abre otra ventana: la dialéctica.
Diez años después de aparecido ¿Traicionó Engels el materialismo de Marx? Vio
a la luz el libro ¿Traicionó Engels la dialéctica de Marx? Los referentes fueron
similares, pero se agregaron tres contrincantes de mucho mayor peso: Lukács,
Sartre y Lucio Colletti.
Los tres mantienen distancia en sus planteamientos, así, mientras Lukács
inició una cruzada por reivindicar la veta hegeliana del marxismo, la de Colletti es
justamente su contraria, el desechar cualquier espacio que abra la puerta a dicha
perspectiva. Lukács reivindicaría la dialéctica siempre y cuando se le saque de la
naturaleza; en tanto que Colletti rechazaría a Engels porque habría replicado
exactamente la dialéctica hegeliana. Sartre, por su parte, coloca en entredicho la
“dialéctica” de la naturaleza, porque según él, se desarrolló sobre formas no
dialécticas.
Como puede verse, más allá de las imputaciones diferenciadas existe un
consenso: la dialéctica practicada por Engels en el nivel de la naturaleza no
equivaldría a los planteamientos de Marx, por tanto, como con el materialismo,
nos encontramos nuevamente ante una “traición”, una “negación”. Marx habría
realizado una operación teórica de tal magnitud que solo la sociedad, el trabajo y
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la práctica podrían ser comprendidas por la dialéctica.
Frente a Sartre, que expresaría un punto de vista similar a los críticos del
materialismo de Engels, en el cual el sujeto queda anulado, Ferraro responde:
“Para Engels no existen cosas sino únicamente procesos: nada es, ya que todo
pasa”. Es decir, no se trataría de ningún ensombrecimiento de la parte subjetiva.
Esto lleva, de hecho, al núcleo fundamental de la discusión: la dialéctica de la
naturaleza de Engels no tiene el carácter que la que se presupone quizá,
cuestionablemente en Hegel. En primer lugar, no se trata de una forma
especulativa, que someta tanto a lo humano como a lo no-humano. La dialéctica
de Engels no es una necesidad de la historia. Dice Ferraro: “Sen Sartre, la
dialéctica de la naturaleza resulta en negar al pensamiento toda actividad
dialéctica, disolverlo en la dialéctica universal, suprimir al hombre
desintegrándolo en el universo’” (FERRARO, 1998, p. 43). Como se ve, la
acusación es similar que con el materialismo: la dialéctica de Engels anularía al
sujeto y su actividad práctica y transformadora.
En cambio, la crítica del italiano va por otra vereda. Para Colletti “el
pensamiento de Engels resulta ser el de Hegel, para quien la razón no es lo
subjetivo frente a lo objetivo, sino la unidad de los dos, tanto como la unidad de
lo finito e infinito // Por admitir la dialéctica dentro del materialismo dialéctico,
lo que Engels hizo fue introducir la dialéctica idealista dentro del marxismo’”
(FERRARO, 1998, p. 27). La acusación del italiano sería de re-introducir a Hegel
aun cuando Marx ya lo habría expulsado de su reflexión.
Aquí podemos ya mencionar con mayor especificidad el punto de vista de
nuestro férreo engelsiano. Lo primero es señalar que no hay un carácter a priori
de las “leyes” de la dialéctica que Engels describió: “Engels afirmó en el Anti-
Düring que “el problema para mí, no podía estar en infundir a la naturaleza leyes
dialécticas construidas, sino en descubrirlas y desarrollarlas partiendo de ella”.
Las leyes dialécticas “no se aplican a la naturaleza y a la historia humana, sino que
se abstraen de ella” (FERRARO, 1998, p. 79). Es decir, para Ferraro, el asunto con
Engels es que cuando se admite una realidad exterior, es posible de ella observar
su comportamiento. Las “leyes” de la dialéctica de la naturaleza no corresponden
a un entramado a-priori y siempre universal, en dado caso, se dan a partir de
algunas regularidades.
Aquí podemos pasar entonces al segundo tema, justamente la dificultad de
hablar de “leyes”. Se tratan de procesos tendenciales, en todo caso. Esto para
Ferraro es claro cuando enmarca en la totalidad de las relaciones entre humanos
y naturaleza: “el hombre puede invalidar la operación de la dialéctica. El puede
moler el grano de evada o aplastar el insecto… // Así, también, en la historia la
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ausencia de ciertas condiciones puede invalidar el engendramiento de su propia
negación por parte de la producción capitalista” (FERRARO, 1998, p. 100). Se
trata de una visión menos teleológica. Dialéctica no es necesidad, ni en la
naturaleza, ni en la historia. En ambos registros deben existir condiciones que
permitan la reproducción de las “leyes”. Esas condiciones pueden o no darse y en
ocasiones los seres humanos juegan decisivamente.
Para Ferraro esta parte demuestra que no hay en Engels una perspectiva
teleológica ni especulativa, es decir, que no tiene que ver con la forma hegeliana
en la que el marxismo recibió gran parte de la noción de dialéctica. Anclaremos,
más abajo, esta perspectiva. Podemos ahora observar el distanciamiento que
Ferraro realiza:
Hegel era idealista y puso la dialéctica de cabeza, mistificándola. En
lugar de derivar su dialéctica de Hegel, Engels la toma de la naturaleza
y la historia, los mismos lugares en donde Hegel mismo la había
derivado antes de mistificarla //. Para Hegel, mistificando la dialéctica
y las contradicciones reales para poder formar su sistema con las
relaciones entre ideas, sostuvo que una cosa y no es simultáneamente y
en el mismo sentido o aspecto. Pero Engels advierte no sólo que Hegel
era idealista y que mistificó la dialéctica por considerar la contradicción
de este modo, sino también que el propio Engels y Marx habían
regresado a los griegos, pensadores dialécticos quienes a la vez eran
pensadores materialistas (FERRARO, 1998, p. 98).
Esta larga cita nos permitirá advertir los problemas que tiene la concepción
de Ferraro. Podemos desmenuzarla de la siguiente forma. Contrario a los críticos,
la concepción de la dialéctica entre Marx y Engels no varía, sino que se reafirma,
de la misma forma que su concepción de materialismo. Esto es así, porque ambos
realizan la crítica de la “mistificación” a la que, supuestamente, Hegel habría
sometido a la dialéctica. En cambio, en Marx y Engels ambas tomaron una forma
no “mistificada”, en la medida en que aborda todo como un proceso o movimiento
de la realidad, este proceso o movimiento es tendencial y no necesario, es decir,
requiere de determinadas condiciones para realizarse. No es “la dialéctica la que
hace la historia” (FERRARO, 1998, p. 254), sino los seres sociales. Que exista una
dialéctica en la naturaleza (y ya se habló de la concepción que tenía Engels de ella)
no invalida esta perspectiva: también en ella se necesitan condiciones para
realizarse.
Indudablemente que los lectores de Hegel podrían rebatir la forma
particular en la que entiende al filósofo de Jena. Sin embargo, más allá de la
fidelidad al texto, se trata de un efecto presente en el marxismo: la dialéctica en
Hegel es necesaria e impide otorgar mayor centralidad a los sujetos. Engels
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rebatiría ello, colocando a los seres humanos de interrumpir los procesos, pero
también de transformarlos. Sin embargo, queda por preguntarse ¿a qué se refiere
Engels con las leyes de la dialéctica? No son más que algunos postulados, que,
para Ferraro, pueden verificarse tanto en la naturaleza en la sociedad. Un ejemplo
clásico sería la transformación de cantidad en calidad: verificada como una
perspectiva de la naturaleza, falta pensarla en la sociedad, y El capital, para
Ferraro sirve para ello. Es el caso de la transformación de las fuerzas productivas,
cuando se reúne a un número muy amplio de trabajadores y se transforma de la
manufactura a la gran industria, se está operando un salto de cantidad en calidad.
Para Engels, sin embargo, la dialéctica en la naturaleza es algo que existe
independientemente de los seres humanos. Dice Ferraro: “Para Engels, si hay
desarrollo, si hay historia, entonces, por definición, hay la superación de un estado
por otro, y, por tanto, se confirma que hay progreso mediante la contradicción, la
negación de la negación, etc., pero es imprescindible realizar la tarea de
investigación empírica para determinar las condiciones particulares y el proceso
especial” (FERRARO, 1998, p. 139). ¿Por qué es importante conocer las “leyes de
la naturaleza”, desde el punto de vista de Engels, dice Ferraro, porque ellas
permiten ejercer la libertad. Contrario a lo que lo acusan sus críticos, la dialéctica
de la naturaleza no es algo que pese sobre las espaldas de los seres humanos y los
condenen, sino que es su conocimiento y utilización lo que permite ensanchar la
libertad de acción: “La necesidad o el determinismo de las leyes naturales no
destruye la libertad sino que la hace posible” (FERRRO, 2000, p. 218).
Así, Engels no fue un determinista como piensa Sartre que anula la
actividad práctica de los seres humanos, ni tampoco un idealista que apele a una
“dialéctica de la historia” automática, como sugiere Colletti. Sino más bien se trata
de un pensador científico que intuye que la dialéctica es una fuerza productiva
para los seres humanos, en la medida en que entiende y se apropia de ciertas
tendencias que existen en la naturaleza y que se pueden comprobar
empíricamente mediante la investigación.
Conclusiones
Un férreo engelsiano o quizá mejor, como un anticrítico de Engels es como
podemos definir la intervención teórica Ferraro. La operación teórica que el
filósofo realizó es clara: desarrollar una línea de argumentación en donde
quedaran invalidadas las críticas más comunes lanzadas contra el teórico alemán,
principalmente en las corrientes asociadas al “marxismo occidental”, que
arrancaron con Lukács y encontraron en Sartre, Schmitd y Colletti momentos
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importantes de su desarrollo.
El centro de su defensa de Engels se desarrolla en dos momentos del
espacio teórico marxista: la dialéctica y el materialismo. En ambos términos, a
pesar de ser evaluadas separadamente, mantienen una significativa unidad. Ella
recae en no separar la obra de Marx y de la de Engels, en la consideración de que
Engels es un teórico y no sólo un organizador, en que su intención fue, como la de
Marx, siempre política.
A partir de estos puntos de enlace, Ferraro desarrollo convincentes
argumentos en su crítica los marxismos que han insistido en deslindar la obra de
Marx de Engels. Es cierto que Ferraro no desarrolla a plenitud las formas diversas
en las que impactó la obra de Engels, en donde, efectivamente, hay visos de una
utilización en clave positivista u ontologicista. Sin embargo, ello no invalida el
trabajo teórico que hace con él.
Deslindar la recepción de Engels por parte de líderes, organizaciones y
movimientos que pudieron procesarlo en ciertas claves hoy defenestradas
(filosofía del progreso, naturalismo, cientificismo) de los profundos significados
de su obra, es una tarea aun por indagar a plenitud. Ferraro entrega, en el plano
filosófico exclusivamente, una convincente defensa y una anticrítica.
El desconocimiento de la obra de Ferraro representa un vacío que hay que
comenzar a resolver. En este caso, nos centramos en lo que respecta a Engels, pero
de alguna forma se trata de la única temática en la que se debe profundizar en su
obra. Pieza clave en una construcción amplia, en donde la teoría funcionaba en la
confrontación de argumentos y en la vuelta a las fuentes.
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Como citar:
REYNA, Jaime Ortega. Un férreo lector de Engels: aproximaciones a la obra de
José Ferraro. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio
das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 235-53, jul./dez. 2020.
Data do envio: 9 set. 2020
Data do aceite: 21 nov. 2020
Vitor Bartoletti Sartori
254
Apresentação das traduções
Vitor Sartori
1
O presente dossiê conta com três traduções de textos de Engels, bastante
representativas de sua obra. Podemos dizê-lo tanto ao analisar a dimensão formal
da apresentação de nosso autor quanto ao olhar para os conteúdos tratados.
Esboço para uma crítica da economia política (1844), O declínio do
feudalismo e a ascensão da burguesia (1884) e O Livro de apocalipse (1883)
expressam tanto temáticas típicas de Engels quanto trazem à tona peculiaridades
de seu modo de exposição. Sobre este último assunto, inclusive, é possível
analisar a evolução da questão no principal interlocutor de Marx: enquanto, no
texto de 1844, traz diversas temáticas em sua relação imanente, isto não se
plenamente nos textos da década de 1880.
Em sua análise da economia política, seu texto “de juventude” correlaciona
teologia, religião, filosofia, economia e o desenvolvimento do capitalismo, de
modo a tentar explicitar o movimento histórico do presente, ao mesmo tempo em
que procura realizar uma crítica imanente de autores como Smith, Day, Malthus
e Ricardo. O seja, o autor, imbuído de uma linguagem bastante próxima da
terminologia hegeliana (a noção de eticidade, por exemplo, é central no texto),
traz uma crítica ao comércio, à legitimidade da propriedade privada, ao
liberalismo e à divisão do trabalho. Ao mesmo tempo, já se nota uma importante
referência a Feuerbach, referência esta que ocorre de modo bastante sui generis:
ao abordar as categorias de valor e de preço, por exemplo, Engels procura
demonstrar como a questão aparece de cabeça para baixo na economia. E
acrescenta que, sobre o assunto, pode-se consultar o autor dA essência do
cristianismo. A referência é peculiar pois, embora em Feuerbach esteja presente
a crítica à inversão hegeliana entre sujeito e predicado a que Engels parece estar
fazendo referência, não no mencionado autor um tratamento da economia
política, ou mesmo da atividade humana sensível em seu desenvolvimento
essencialmente histórico. Ou seja, tem-se categorias típicas do pensamento
hegeliano com bastante destaque (eticidade, reconciliação, oposição,
contradição, por exemplo), categorias utilizadas por Feuerbach aparecem
também (a noção de gênero, bem como sua correlação com a natureza), mas o
modo pelo qual elas se correlacionam não torna Engels simplesmente hegeliano,
feuerbachiano
2
ou qualquer outra coisa. No mencionado texto, o pensamento
1
Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Autor de Ontologia nos extremos: o
embate Heidegger e Lukács, uma introdução (Intermeios, 2019). Coeditor da Verinotio. E-mail:
vitorbsartori@gmail.com. Revisão ortográfico-gramatical de Vânia Noeli Ferreira de Assunção e
Ester Vaisman.
2
Não obstante nosso autor dizer, em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, que,
por determinado período, teria sido, juntamente com seus companheiros de debate,
feuerbachiano.
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engelsiano, não obstante com referências a outros pensadores em momentos
centrais, coloca-se sobre os próprios pés. E, assim, o resultado é algo que não
pode ser rotulado apressadamente.
Em verdade, -se o oposto: a necessidade da compreensão das
determinações do próprio pensamento de Friedrich Engels. Sobre este ponto,
deve-se destacar que a importância do questionamento substancial da
propriedade privada, esta última vista a partir de uma crítica a categorias como
renda, juro, lucro categorias típicas da economia política , explicita-se neste
texto. E nele de se perceber como a lida com os interesses materiais
antagônicos, bem como com as contradições da moderna sociedade civil-
burguesa, leva nosso autor à crítica à economia política e à sua base. Ou seja,
Engels traz uma temática nova, e que será desenvolvida com todo o cuidado por
Marx posteriormente; por mais que empregue categorias que aparecem em
outros autores de sua época, a conformação de seu pensamento depende da
posição crítica quanto à economia política e à sociedade capitalista, sendo
necessário compreender como isto se dá efetivamente.
Sua exposição, dessa maneira, expressa uma linguagem tipicamente
“filosófica” em categorias como eticidade e oposição; porém, isto ocorre ao trazer
à tona categorias econômicas” e “políticas”, que usualmente não estariam
correlacionadas. O pensamento engelsiano, então, não pode aceitar um
tratamento simplesmente temático de algo tão importante como a realidade
efetiva de sua época. E, com isto, ele traz uma exposição imanente da realidade,
em que a tônica é o questionamento teórico e prático das oposições aceitas pela
economia política. Na base das coisas está aquela oposição entre o natural e o
humano, mas, em um nível mais imediato, a oposição entre o interesse geral e o
individual é central ao autor. Tendo tais oposições como um pressuposto, a
economia política naturaliza o momento presente e vem a tomar como ponto de
partida teórico oposições que estão reconciliadas na própria realidade, como
aquela entre a concorrência e o monopólio (Engels tenta mostrar que a primeira,
em verdade, é efetiva na segunda); oferta e demanda também figuram como
oposições que se resolvem não na harmonia social, mas nas crises e naquilo que
nosso autor chama de antieticidade, ou seja, a dissolução e desagregação das
relações sociais que vigem na sociedade moderna, em meio ao comércio, à
concorrência e à crise tendencialmente universal.
A antieticidade, dessa maneira, explicita-se em certa desumanidade, em
que os homens são atomizados e destituídos de consciência genérica
3
. As
contraposições entre os indivíduos, assim, teriam uma forma essencialmente
social na moderna sociedade civil-burguesa. E a exposição de nosso autor traz
essa temática à tona em seu “genial esboço”, que, tendo criticado a naturalização
de tal condição, foi mencionado de modo elogioso por Marx em diversas ocasiões,
até o final da vida do autor de O capital.
3
Aqui não podemos tratar do tema, mas de se perceber que ele, bem como muitos outros do
Esboço de Engels, serão retomados nos Manuscritos econômico-filosóficos escritos por Marx em
1844.
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Sobre este tema as oposições que marcam a sociedade civil-burguesa ,
ainda de se dizer que Engels faz referências à resolução da questão por Fourier.
E, deste modo, notamos que há um forte embate do autor com a economia
política, com o pensamento francês e com a filosofia clássica alemã. Mas, de modo
algum há como traçar uma espécie de “amálgama originário” (Chasin) que daria
origem a seu pensamento.
Como procuramos destacar, as determinações do texto do autor do Esboço
são sui generis e precisam ser vistas com o devido cuidado e, inclusive,
considerando-se a diferença específica do pensamento de Engels e de Marx.
Acreditamos que a tradução que o leitor tem a seu dispor aqui pode propiciar uma
análise comparativa entre o colocado pelos dois autores na mesma época.
Comparar os Manuscritos de 1844 com o Esboço para uma crítica da economia
política é uma tarefa relevante para aqueles que pretendem uma apreensão
cuidadosa das obras destes dois importantes autores.
Se, como tarefa prévia ao renascimento do marxismo (Lukács), é
necessária a compreensão dos textos do próprio Marx, de se perceber que a
diferença específica entre ele e Engels ainda precisa ser vista com cuidado. A
presente tradução é um elemento importante da análise da especificidade do
pensamento engelsiana, a qual ainda está em curso.
A crítica engelsiana à economia política, deste modo, coloca-se tanto
diante de figuras do pensamento marcadas por oposições irreconciliáveis (que
estão presentes na economia política) quanto frente ao fundamento último destas
oposições, a premente necessidade da reconciliação categoria esta também
central à filosofia clássica alemã da humanidade consigo mesma e com a
natureza. E, assim, trata-se de um texto curto, mas muito denso e que precisa ser
estudado com cuidado. Nele, as diversas temáticas que marcam a correlação entre
família, sociedade civil-burguesa e estado esferas estas que compõem a
eticidade aparecem correlacionadas à crítica da economia política. O efeito da
prática e da teoria dos economistas, assim, seria dúplice: ocasionaria a dissolução
das relações presentes e a atomização dos indivíduos, de um lado, ao mesmo
tempo em que traria consigo o processo que poderia levar à superação do estado
presente. A reconciliação das oposições basilares à antieticidade do presente
estaria na supressão da sociedade atual. Tal dialética é de grande relevo ao
pensamento do autor do Esboço.
A centralidade da noção de oposição é patente no texto de Engels, autor
que anseia pela reconciliação das categorias contrapostas na realidade efetiva;
isto, porém, somente seria possível com a superação da própria sociedade
capitalista.
Deve-se apontar, porém, que, por vezes, a ânsia por superar as oposições
que são reconhecidas pela economia política como fundamento da sociabilidade
leva Engels a buscar um ponto de vista que se eleve acima das oposições desta
sociedade, o que, é claro, somente poderia ser conseguido por meio da atividade
prática. No texto, porém, não obstante remeta à necessidade de um
posicionamento correto, não pode nosso autor tratar do tema com os devidos
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cuidado e aprofundamento. Isto é compreensível quando se tem em conta que o
pensamento do nosso autor está em formação embora já esteja sobre os
próprios pés. Ou seja, o ponto de vista de Engels, bem como seu posicionamento,
ainda teria muito a se desenvolver. Tal qual ocorre com os textos de Marx de
1843-44, um posicionamento teórico que será mantido durante toda a obra,
porém, nunca se pode reduzir a opus dos autores àquilo que aparece de modo
primevo e inicial.
No presente texto se apresenta o início de uma crítica aos socialistas que,
posteriormente, no Anti-hring e no Do socialismo utópico ao socialismo
científico, seriam chamados de utópicos. Não obstante nosso autor elogiar os
socialistas ingleses e franceses em alguns momentos, utilizando-se de suas
análises e mesmo tendo Fourier por referência, ao dizer que a concorrência
pode ser suprimida, mas não a rivalidade baseada na natureza humana , de
se perceber que, tal como no caso das categorias da filosofia clássica alemã,
um uso sui generis destes autores. A noção de natureza humana de Fourier,
correlacionada à de gênero humano de Feuerbach, começa a adquirir um
tratamento essencialmente histórico em Engels, diferenciando-se dos autores aos
quais tais categorias fazem referência. Ao mesmo tempo em que os usos de tais
categorias apontam para a degradação moral causada pela concorrência, bem
como à antieticidade, as correlações colocadas na família, na sociedade civil-
burguesa e no estado é que deveriam ser enfocadas. Engels, assim, critica a
economia política não tanto do ponto de vista dos socialistas ingleses e franceses,
mas a partir de uma posição e de um posicionamento que ainda desenvolveria
com mais cuidado no futuro e que conforma a tomada de partido típica do
comunista. Vemos, assim, um texto extremamente complexo, em que a
imanência da própria realidade aparece entrelaçada na exposição.
, assim, um aspecto dúplice e que diz respeito à correlação entre
pesquisa e exposição: no “genial esboço”, ao mesmo tempo em que a
indissociabilidade das diversas dimensões da realidade efetiva não é perdida, o
conjunto de temas e de autores tratados nem sempre deixa fácil e plenamente
explícitas as bases da posição do próprio Engels. Daí diversos intérpretes
buscarem aproximar Engels e Marx de outros autores nos textos de 1843-44.
Porém, ao se analisar o pensamento nascente de importantes autores, isto
somente pode levar a aproximações equívocas e apressadas.
Deste modo, a gênese, a estrutura e a função social das obras engelsianas
da época ainda precisam ser analisadas com mais cuidado. Assim como é
importante estudar os textos de Marx de 1843, bem como os manuscritos
marxianos de 1844, deve-se buscar apreender as determinações do Esboço para
uma crítica da economia política. Sem isso, a própria gênese do pensamento de
um importante autor é reduzida a um etiquetamento estéril, em que ele aparece
como hegeliano, feuerbachiano, humanista etc., mas nunca com suas próprias
características constitutivas. As dificuldades da exposição engelsiana são
perceptíveis e, de certo modo e até certo ponto, explicam tal fenômeno. Mas não
justificam a ausência de cuidado na busca do ser-propriamente-assim do texto do
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próprio Engels. Por mais que seja interessante traçar aproximações entre
diferentes autores, o compreensão das formações ideais e de suas
determinações sem que se perceba a diferença específica entre eles e o que faz
com que cada autor seja, em certa medida, único.
Já nos textos posteriores a exposição engelsiana é muito mais sistemática
que imanente. Isto significa que, mesmo sabendo que relações importantes
entre os objetos de que trata, o autor deliberadamente explicita as determinações
daquilo que aborda quase de modo temático e em função da ocasião do texto: se
antes Engels polemizava com uma vertente do pensamento burguês que
pretendia uma apreensão mais completa da realidade, no final de sua vida, suas
polêmicas na imprensa periódica se dão com autores marcados pelo
parcelamento abstrato da atividade humana e do pensamento.
Engels se coloca diante desses autores a partir da separação e da oposição
entre as esferas do conhecimento e do ser social. Ele destaca as suas diferenças
com aqueles que, sob certos aspectos, podem até mesmo ser úteis e que se
colocam como influências no movimento socialista. Deste modo, não pode ser
compreendido de maneira equivocada por aproximar certas posições de autores
que combate. Porém, a unidade desse pensamento, e da própria realidade, talvez
apareça de forma muito mais parcelada. Se no Esboço é muito difícil saber onde
começam e terminam problematizações sobre teologia, direito, política e
economia política, o mesmo não se com as suas obras do final de sua vida,
expressas nos dois outros textos aqui traduzidos.
Isto tem também um sentido dúplice: as intervenções do principal
interlocutor de Marx passam a se popularizar em meio ao movimento socialista
crescente. Porém, ao mesmo tempo, isto faz que as categorias utilizadas para
tratar da realidade efetiva de uma época, por vezes, pareçam colocar-se como
símiles àquelas da teoria burguesa. Pela leitura conjunta dos textos que aqui
disponibilizamos, a percepção clara de que há ligação íntima na obra
engelsiana e na própria realidade entre a ascensão da burguesia, a religião e
a teologia cristãs modernas e consolidação do estado e do direito da sociedade
capitalista. Porém, caso leiamos O Livro de apocalipse separadamente, isto
nem sempre fica claro, assim como não se explicita como é essencial ao
cristianismo moderno a renegação do conceito de igualdade que era trazido no
cristianismo primitivo. Ou seja, ao polemizar com teóricos que aceitam certa
parcialização do conhecimento, Engels parece flertar com esta última, mesmo
não o fazendo real e efetivamente.
Olhando sua produção da época, isto é claro. É possível trazer a correlação
entre os diversos temas de que o autor trata; porém, ao se olhar cada texto
separadamente, corre-se o risco de se apegar a certo parcelamento do
conhecimento. Se Engels trata da especificidade de cada campo, ele não os
autonomiza; mas sua exposição, mais didática e sistemática, parece dar esta
impressão. Se o seu “genial esboço”, como Marx chamou o texto em O capital,
relaciona a teologia com a economia política e com a dimensão estatal e
ideológica, temas teológicos aparecem separados na exposição destas esferas em
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O Livro de apocalipse; o desenvolvimento do comércio, por sua vez, é analisado
em O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia”, ao se considerar as
relações imediatas entre as classes sociais diante da determinação econômica,
sem que todos os temas do Esboço para uma crítica da economia política
apareçam correlacionados explicitamente na exposição. Ao contrário de seu texto
“de juventude” o posicionamento do autor e sua tomada de partido são muito
claras. Mas a ligação orgânica dos temas tratados precisa ser vista com mais
cuidado na análise imanente da objetividade do texto. E, assim, é preciso que se
olhem os textos engelsianos da década de 1880 em conjunto.
O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia e O Livro de
apocalipse (1883) trazem dimensões essenciais da moderna sociedade civil-
burguesa: passam pela correlação entre a emergência do comércio, o papel da
religião cristã na realidade efetiva e o modo pelo qual as formações ideais
possuem uma função ativa nas relações materiais de produção. Ou seja, temas
presentes no Esboço reaparecem. Porém, com uma exposição bastante diferente,
e com uma tentativa de embate com áreas cujo conhecimento se torna cada vez
mais autônomo, como a leitura bíblica ou a análise propriamente histórica.
De um lado, em O Livro de apocalipse, Engels coloca-se a realizar uma
crítica histórica da Bíblia, mostrando que, em seu tempo, o cristianismo
apoderou-se das massas, tal qual o socialismo moderno em sua época. E, assim,
deixa claro que o cristianismo primitivo com seu universalismo e com sua
concepção universal de pessoa trazia certa oposição aos poderes então
existentes. Ou seja, a análise engelsiana da religião, também presente em sua
discussão das lutas camponesas da Alemanha, não se atém a mostrar como a
religião e a visão de mundo religiosa são incapazes de apreender as
determinações da própria realidade. Ele demonstra que, mesmo assim, a
máscara, a persona religiosa foi essencial para levar até o fim conflitos de classe
de diversas épocas. O modo pelo qual isto se com a religião expressa de
maneira inconsciente a apreensão das determinações da própria realidade; no
socialismo moderno, porém, tal apreensão seria consciente. Daí ser preciso
enfatizar a necessidade da crítica à religião; ela se apodera das massas, mas gera
seitas, ao passo que a organização política do moderno proletariado se opõe
fortemente a isto, como demonstra nosso autor em suas diversas críticas aos
socialistas utópicos e à filantropia burguesa. Ou seja, o tema, aparentemente
livresco, da análise da Bíblia, remete a uma questão essencial à época: a da
necessária crítica à religião e das formas de organização espontâneas do
proletariado. Se Engels não trata disso explicitamente neste texto, o faz, com
referência à questão, no Anti-hring, por exemplo.
Ou seja, um texto aparentemente muito mais fácil de se ler que o Esboço
para a crítica da economia política acaba por remeter a um universo categorial
tão vasto quanto. Na exposição engelsiana, porém, os temas aparecem com certa
separação, buscando tanto um posicionamento certeiro no debate ideológico
quanto uma apresentação mais popular. Em relação a isso, vale voltarmos para
os aspectos mais ligados ao conteúdo do texto.
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As formas ideológicas, tal qual Marx havia colocado no famoso “Prefácio
de 1859, são também aquelas por meio das quais os homens tomam consciência
das contradições sociais e as levam até suas consequências últimas. No caso de
O Livro de apocalipse, Engels trata da Roma antiga e do papel de Nero; porém
não obstante talvez seja possível questionar a leitura de nosso autor sobre este
aspecto específico (não entraremos aqui na questão) , o importante a se
perceber é que ele não deixa de criticar a religião em nenhum momento. Mostra
como ela pode ser uma potência ativa, com todas as suas limitações, limitações
estas que não seriam compartilhadas pelo socialismo moderno, que, em sua
apreensão científica da realidade, tomaria as forças imanentes da sociedade como
originadas dela própria e como passíveis de resolução efetiva com a superação da
moderna sociedade capitalista. O cristianismo, por meio das seitas, teria sido um
movimento revolucionário, feito pelas massas. Mas isto seria muito distinto do
que ocorre com o moderno socialismo; e, para o tratamento desta questão, é
preciso remeter a outros textos. Ou seja, a exposição engelsiana facilita a
apreensão do que ele traz, mas dificulta a compreensão da totalidade das relações
sociais envolvidas na própria exposição.
Ao tratar desta visão religiosa, ao contrário do que se daria em parte
substancial da doutrina da Igreja, Engels diz que a ênfase no pecado original e na
queda seriam estranhas ao cristianismo primitivo. Dotado de um tom igualitário
e de uma valorização dos homens (os profetas, no caso) que realizariam as tarefas
divinas, este estaria muito mais ligado a uma seita que à organização
burocratizada da Igreja. Ou seja, na visão engelsiana, a potência social desta
forma ideológica está em ela ter se apoderado das massas com uma visão
contraditoriamente religiosa e imanente do mundo.
O cristianismo, assim, apareceria como uma seita do judaísmo e como uma
visão de mundo centrada no Livro de apocalipse, justamente o livro no qual
haveria certa oposição ao próprio império romano, escravocrata e governado por
Nero. A análise engelsiana é, assim, bastante rica e traz questões muito
importantes; porém, há de se notar que o tratamento das relações econômicas é,
ao menos, secundário no texto. Sabemos que elas não podem ser
desconsideradas; mas a relação imanente entre elas e o tema tratado, por vezes,
é eclipsada; a busca pela especificidade de certo objeto não pode nunca
obscurecer a sua correlação com o desenvolvimento geral da sociedade e de
outros campos e esferas; e Engels sabe disso. Porém, em sua exposição, as coisas
são dúbias neste sentido.
Em O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia também
questões prementes, e que são tratadas no “genial esboço”. O comércio, por
exemplo, bem como sua relação com a burguesia, é analisado com afinco. A
correlação entre a acumulação de capital e a emergência das cidades modernas,
assim como a emergência da subordinação do campo à cidade, são essenciais à
argumentação engelsiana, que traz à tona, de modo mais detido, temas que
aparecem já em A ideologia alemã, no Manifesto e que são retomados por Marx
em O capital. Segundo o autor, parcela dos habitantes da cidade começa a formar
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uma classe contraposta à nobreza, ligada à renda da terra e à propriedade rural.
A indústria e os homens de negócio tinham um incremento substancial, ao passo
que a nobreza estancava. O caráter burguês da cidadania urbana, assim, ficava
claro, destacando-se a correlação entre a emergência da burguesia e a dominação
da cidade sobre o campo.
Em meio a isto, Engels destaca também o papel da mediação monetária; o
dinheiro, que Marx aponta como um grande Leveller em O capital, aparece
dissolvendo relações feudais. E, assim, percebe-se que um tema muito
importante às obras econômicas de Marx também está presente em Engels: a
correlação entre a mediação das formas econômicas e a luta de classes; o solo
desta última não é, na sociedade capitalista, o da sociedade civil-burguesa, mas
o desta sociedade analisada e compreendida em sua anatomia, que deveria ser
encontrada, diz Marx, na crítica da economia política.
Aqui, porém, tem-se algo análogo ao que se deu anteriormente: se no
Esboço havia, por vezes de modo complexo e de difícil apreensão, a unidade na
exposição da crítica da economia política, da religião, da política e do direito, aqui
a coisa se doutro modo. Engels remete a um tema central, mas, para que a
exposição seja facilitada, apenas menciona aspectos essenciais, que vem a
desenvolver noutros lugares. Em O declínio do feudalismo e a ascensão da
burguesia a análise engelsiana, para que se use uma dicção do próprio autor, é
muito mais “histórica” que “lógica”. O movimento da burguesia emergente é visto
sem que se adentre nos meandros da lógica da anatomia da sociedade civil-
burguesa, que nosso autor, como organizador dos livros II e III de O capital,
conhece consideravelmente. O dinheiro, assim, é visto como um dos fatores que
enfraquecem a lógica feudal, bem como os privilégios feudais; mas a ligação
orgânica desse tema com a acumulação de capital, com a forma mercantil
universalizada, bem como com a consequente consolidação do direito burguês
não está em foco no texto citado, mas em outros, como no polêmico O socialismo
jurídico.
-se, assim, novamente, a necessidade de um tratamento conjunto dos
textos engelsianos. O desenvolvimento das nacionalidades em nações e no estado
moderno também aparece no texto, em que a aliança do rei com o cidadão
burguês é vista como algo a ser mediado por um estrato particular da sociedade,
aquele dos juristas. E, com isto, um dos temas essenciais da obra de nosso autor
aparece aqui; os juristas, e o direito, teriam um papel ativo, fundamental na
consolidação da sociedade capitalista, bem como da burguesia. Como não poderia
deixar de ser, o tema é mais complexo do que parece: se nosso autor menciona a
correlação existente entre os sacerdotes, os jurisconsultos romanos e os juristas
modernos em O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia, há de se ter
em conta aquilo que ele traz tanto no texto sobre o cristianismo primitivo quanto
em O Livro de apocalipse, em que a religião se apodera das massas com uma
concepção universalista e amparada em certa forma de igualdade.
O mesmo se daria com o direito, que traz uma visão universal da noção de
pessoa e coloca na igualdade jurídica a igualdade da própria burguesia; daí, em O
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socialismo jurídico, o autor dizer que na sociedade capitalista a visão teológica de
mundo é substituída por aquela visão de mundo a se tornar a burguesa clássica,
a jurídica. Nota-se, assim, que há uma ligação entre a religião e o direito, os
sacerdotes e os juristas, a teologia e a teoria do direito; ao olhar o conjunto dos
textos de Engels, isto fica bastante claro. Mesmo que ainda precise ser
desenvolvido com mais cuidado tanto em seus textos quanto por seus intérpretes,
a unidade na diversidade entre tais aspectos é trazida de modo riquíssimo no
autor. Sua exposição, por vezes, não facilita esta conclusão; porém, e talvez por
isto, tornam mais acessíveis ao homem comum aspectos essenciais do socialismo
moderno. Tal tensão entre a pesquisa e a exposição passa a ser uma constante no
pensamento do autor. As traduções que aqui apresentamos são um bom exemplo
disto.
Aqui não podemos, nem pretendemos, trazer todos os importantes
aspectos que são levantados pelo próprio Engels. Porém, acreditamos ter
ressaltado dificuldades conexas, e contrapostas, que aparecem na leitura da obra
“juvenil” e “tardia” de nosso autor. Sem que se possa estabelecer qualquer corte
epistemológico ou qualquer classificação final na obra engelsiana, é possível ver
que a unidade e a imanência na exposição do Esboço ajudam na compreensão da
ligação entre diferentes aspectos da realidade efetiva, mas nem sempre deixam
clara a diferença específica da posição engelsiana; nos textos da década de 1880
-se o oposto: na medida em que Engels demarca com clareza a sua posição, seu
tom polêmico faz que questões essenciais à análise das determinações da
moderna sociedade capitalista sejam somente mencionadas, que teriam sido
substancialmente desenvolvidas noutro lugar. A consciência acerca desta tensão
entre exposição e pesquisa na obra engelsiana leva à necessidade do estudo de tal
autor que, ao mesmo tempo, não pode ser separado de Marx, mas, para o bem e,
diriam alguns, para o mal, tem uma estatura e um estatuto próprios.
Como citar:
SARTORI, Vitor B. Apresentação das traduções. Verinotio Revista on-line de
Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 254-62, jul./dez.
2020.
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.589
Friedrich Engels
263
Esboço para uma crítica da economia política
1
Friedrich Engels
A economia política
2
emergiu como consequência natural da expansão
do comércio e, com ela, o trapaceiro simples e não científico foi substituído
por um sistema especializado de fraudes permitidas, uma ciência completa do
enriquecimento.
Essa economia política ou ciência do enriquecimento, que resultou da
inveja recíproca e da ganância dos comerciantes, carrega a marca do egoísmo
mais repugnante na testa. Ainda havia uma concepção ingênua de que ouro e
prata eram riquezas e, portanto, não havia nada mais urgente a se fazer do
que proibir a exportação de metais "nobres”. Os países se encaravam como
avarentos, cada um com sua cara bolsa de dinheiro cercando as duas armas e
olhando para os vizinhos com inveja e suspeita. Todos os meios foram usados
para atrair o máximo possível de dinheiro vivo dos povos com quem se
negociava, e para manter aquilo que foi felizmente obtido dentro dos limites
aduaneiros.
A implementação mais consequente desse princípio teria matado o
comércio. Então se começou a ultrapassar a primeira etapa; percebeu-se que
o capital permanece morto se preso no caixa, enquanto aumenta
constantemente na circulação. Então se tornou mais filantrópico, enviou seus
ducados como chamarizes para trazer outros de volta e se percebeu que não
faria mal se se pagasse demais a “A” por sua mercadoria, desde que se
pudesse vender a “B” por um preço mais alto.
Sobre essa base se ergueu o sistema mercantil. O caráter ganancioso
do comércio foi um pouco escondido; as nações começaram a se aproximar,
fecharam tratados de comércio e amizade, fizeram negócios reciprocamente
e, por amor a um ganho maior, fizeram todo o bem possível uns aos outros.
Mas, basicamente, era a antiga cobiça por dinheiro e o egoísmo que, de
1
Texto traduzido diretamente da língua alemã: “Unrisse zu einer Kritik der
Nacionalökonomie. In: Marx-Engels Werke Bd. 1. Berlin: Dietz Verlag, 1981. Foram
utilizadas, para efeito de cotejamento, as seguintes traduções: “Esbozos para una crítica de la
economia política”. In: MARX, K. Manuscritos económico-filosóficos. Trad. Fernanda Aren,
Silvina Rotemberg y Michel Vedda. Buenos Aires: Colihue Clásica, 2010;ENGELS, F.
Lineamenti di una critica dell’economia politica. Trad. Nicola De Domenico. Roma: Editori
Riuniti, 1977. Tradução de Ronaldo Vielmi Fortes. Revisão da tradução de Vitor Bartoletti
Sartori. Revisão ortográfico-gramatical de Vânia Noeli Ferreira de Assunção. Nesta tradução
foram introduzidas notas das três edições utilizadas. Indicamos as edições do seguinte modo:
edição alemã [NEA]; tradução italiana [NTI] e tradução espanhola [NTE]. Utilizamos
também as anotações [NT] para nota do tradutor e [NRT] quando a nota for do revisor da
tradução.
2
[NTE] Em alemão Nationalökonomie, termo utilizado para designar a economia política.
[NRT] O termo politischen Oekonomie será, porém, utilizado posteriormente pelos autores
em suas obras para tratar do tema.
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Friedrich Engels
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tempos em tempos, explodia nas guerras, que na época eram todas
provocadas pelos ciúmes comerciais. Essas guerras também mostraram que o
comércio, como o roubo, era baseado na lei do mais forte
3
; não havia nenhum
escrúpulo em distorcer, com astúcia ou com uso da força, tratados
considerados os mais favoráveis.
O ponto principal em todo o sistema mercantil é a teoria da balança
comercial. Como o princípio de que ouro e prata eram riquezas ainda era
mantido, o único considerado benéfico era o negócio que acabaria por trazer
dinheiro em espécie para o país. Para deduzir isso, comparava-se exportação
e importação. Se se tivesse exportado mais do que havia sido importado,
acreditava-se que a diferença havia ingressado no país em dinheiro em
espécie e se acreditava estar mais rico. Portanto, a arte dos economistas era
garantir que, no final de cada ano, as exportações tivessem um saldo
favorável em relação às importações; e por causa dessa ilusão ridícula,
milhares de pessoas foram massacradas! O comércio também tem suas
cruzadas e sua inquisição.
O século XVIII, o século da revolução, também revolucionou a
economia; mas, como todas as revoluções deste século foram unilaterais e
ficaram presas à oposição, assim como permaneceu contraposto ao
espiritualismo abstrato o materialismo abstrato, à monarquia a república, ao
direito divino o contrato social, do mesmo modo a revolução econômica não
suplantou a oposição. Os pressupostos permaneceram em toda parte; o
materialismo não atacou o desprezo e a humilhação cristãos do homem,
apenas se limitou a contrapor ao homem, no lugar do deus cristão, a natureza
como absoluto; a política não pensou em examinar os pressupostos do estado
em si e para si; a economia nem sequer chegou a pensar em perguntar sobre a
legitimidade da propriedade privada. É por isso que a nova economia foi
apenas progresso pela metade; ela era obrigada a trair e negar seus próprios
pressupostos, a usar sofisma e hipocrisia para encobrir as contradições em
que se envolvia e a chegar às conclusões a que foi impulsionada não por seus
pressupostos, mas pelo espírito humano do século. Assim, a economia
assumiu um caráter filantrópico; ela negou seu favor aos produtores e o
entregou aos consumidores; agiu como se sentisse uma repulsa sagrada pelos
horrores sangrentos do sistema mercantil e declarou o comércio como um
vínculo de amizade e unidade entre nações, assim como entre os indivíduos.
Era toda a magnificência e esplendor mas os pressupostos voltaram de
novo a vigorar e, em contraste com essa filantropia cintilante, geraram a
teoria populacional malthusiana, o sistema bárbaro mais difícil que já existiu,
um sistema de desespero que derrubou todas aquelas frases bonitas sobre o
3
[NTE] Em alemão: Faustrecht, corresponde ao direito dos cavaleiros que perdurou até o
final da Idade Média.
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amor humano e sobre o cosmopolitismo; eles criaram e elevaram o sistema
fabril e a escravidão moderna, que não tem nada a invejar à antiga escravidão
em termos de desumanidade e crueldade. A nova economia, o sistema de
livre comércio baseado nA riqueza das nações de Adam Smith, está
provando ser a mesma hipocrisia, inconsistência e antieticidade
[Unsittlichkeit]
4
que agora se opõe à humanidade livre em todas as áreas.
Mas o sistema de Smith não foi um progresso? Claro que foi, e foi
um progresso necessário. Era necessário que o sistema mercantil, com seus
monopólios e restrições de tráfego, fosse derrubado, para que as verdadeiras
consequências da propriedade privada pudessem vir à tona; era necessário
que todas essas mesquinhas considerações locais e nacionais retrocedessem
para que a luta de nosso tempo se tornasse mais universal, mais humana; era
necessário que a teoria da propriedade privada deixasse o caminho
puramente empírico, meramente objetivo, e assumisse um caráter mais
científico, que também a responsabilizasse pelas consequências e, assim,
levasse a questão a um domínio universalmente humano; que a antieticidade
[Unsittlichkeit] contida na velha economia fosse elevada até o pico mais alto,
tentando negá-la e incorporando a hipocrisia uma consequência necessária
dessa tentativa. Tudo isso era da natureza da questão. Reconhecemos de bom
grado que pelo estabelecimento e execução do livre comércio nos
encontramos em condições de ir além da economia da propriedade privada,
mas, ao mesmo tempo, devemos ter o direito de apresentar esse livre
comércio em toda a sua nulidade teórica e prática.
Nosso juízo se torna mais difícil quanto mais próximos de nossos
tempos estejam os economistas que devemos julgar. Enquanto Smith e
Malthus apenas encontraram fragmentos isolados à sua frente, os mais
recentes tinham todo o sistema à sua disposição; as consequências foram
todas extraídas, as contradições saíram com clareza suficiente e, no entanto,
não chegaram a uma prova das premissas, e ainda assim assumiram a
responsabilidade por todo o sistema. Quanto mais os economistas se
aproximam do presente, mais se afastam da honestidade. A cada progresso
do tempo, o sofisma necessariamente aumenta a fim de manter a economia à
altura do tempo. Por isso, por exemplo, Ricardo é mais culpado que Adam
Smith e MacCulhoh e Mill são mais culpados que Ricardo.
A economia mais recente não pode sequer julgar o sistema mercantil
corretamente, porque é ela mesma parcial e está vinculada aos pressupostos
daquele. Somente UM ponto de vista [Standpunkt] que se eleva acima da
oposição entre os dois sistemas, que critica os pressupostos comuns de
4
[NRT] A expressão é de difícil tradução, que remete à oposição entre Sittlichkeit,
geralmente traduzido por eticidade, e Moralität, moralidade. Deste modo, embora fosse
possível traduzir Unsittlickeit por imoralidade, perder-se-ia algo central à teoria da época
que dialogava com as expressões hegelianas , a saber, a própria oposição mencionada.
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ambos e parte de uma base universal puramente humana, será capaz de
mostrar a ambos o posicionamento [Stellung] correto. Mostrará que os
defensores do livre comércio são monopolistas piores do que os próprios
mercantilistas. Mostrará que, por trás da resplandecente humanidade dos
mais recentes destes, existe uma barbárie que os antigos não conheciam; que
a confusão conceitual do velho é ainda simples e consequente se comparada à
lógica ambígua de seus críticos, e que nenhuma das partes pode culpar a
outra por algo que não recaia também sobre si mesma. É por isso que a
economia liberal mais recente tampouco consegue conceituar a restauração
do sistema mercantil por meio de ardis, enquanto para nós a questão é muito
simples. A inconsistência e a ambiguidade da economia liberal devem
necessariamente se dissolver em seus componentes basilares. Assim como a
teologia deve voltar à fé cega ou avançar para a filosofia livre, também a
liberdade de comércio deve, por um lado, produzir a restauração dos
monopólios e, por outro, a superação [Aufhebung] da propriedade privada.
O único progresso positivo que a economia liberal fez foi o
desenvolvimento de leis da propriedade privada. Essas estão, entretanto,
contidas nela, embora ainda não estejam totalmente desenvolvidas e
claramente elucidadas. Daí resulta que em todos os pontos em que a decisão
sobre o caminho mais curto para enriquecer, portanto em todas as rígidas
controvérsias econômicas, é importante que os defensores do livre comércio
tenham o direito do seu lado. Bem entendido: em controvérsia com os
monopolistas, não com os adversários da propriedade privada, porque o fato
de serem capazes de tomar decisões economicamente mais corretas sobre
questões econômicas, muito os socialistas ingleses demonstraram
prática e teoricamente.
Ao criticarmos a economia política, portanto, examinaremos as
categorias fundamentais, revelaremos a contradição trazida pelo sistema de
livre comércio e traçaremos as consequências de ambos os lados da
contradição.
_____
A expressão “riqueza nacional” só surgiu pelo vício universalizante dos
economistas liberais. Enquanto existir propriedade privada, essa expressão
não terá significado. A "riqueza nacional" dos ingleses é muito grande e, no
entanto, são o povo mais pobre sob o Sol. Ou bem se abandona a expressão
completamente ou se assumem pressupostos que lhe confiram sentido. O
mesmo vale para expressões como economia nacional, economia política ou
pública. Nas condições atuais, a ciência deveria se chamar economia privada,
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porque suas relações públicas existem apenas em prol da propriedade
privada
5
.
_____
A consequência mais imediata da propriedade privada é o comércio, a
troca de necessidades mútuas, a compra e a venda. Sob o domínio da
propriedade privada esse comércio, como qualquer atividade, deve se tornar
uma fonte direta de renda para o comerciante; ou seja, todos devem procurar
vender o mais caro possível e comprar o mais barato possível. A cada compra
e venda se defrontam duas pessoas com interesses absolutamente opostos; o
conflito é decididamente hostil, porque cada um conhece as intenções do
outro, sabe que são opostas às suas próprias. A primeira consequência é, por
um lado, a desconfiança mútua, por outro, a justificativa dessa desconfiança,
o uso de meios antiéticos [unsittlicher] para alcançar uma finalidade antiética
[unsittlichen]. Por exemplo, o primeiro princípio do comércio é o sigilo,
ocultação de qualquer coisa que possa degradar o valor do artigo em questão.
A consequência disso é: no comércio é permitido se beneficiar tanto quanto
possível da ignorância, da confiança da contraparte e elogiar propriedades de
suas mercadorias que elas não possuem. Em uma palavra, negociar é fraude
legal. Que a prática corresponda a essa teoria testemunhará todo comerciante
que queira honrar a verdade.
_____
O sistema mercantil ainda possuía certa franqueza católica imparcial e
não escondia nem um pouco a essência antiética do comércio. Vimos como
este ostentava abertamente sua ganância vulgar. A posição mutuamente
hostil das nações no século XVIII, a inveja repugnante e o ciúme do comércio
foram as consequências lógicas do comércio em geral. A opinião pública
ainda não era humanizada, então, não havia razão para esconder a natureza
desumana e hostil do próprio comércio. Mas, quando o Lutero da economia,
Adam Smith, criticou a economia anterior, as coisas mudaram muito. O
século foi humanizado, a razão se afirmou, a eticidade começou a reivindicar
seu eterno direito. Os tratados comerciais extorquidos, as guerras comerciais,
o isolamento brusco das nações eram demais para a consciência avançada.
No lugar da retidão católica se impôs a hipocrisia protestante. Smith provou
que a humanidade também estava enraizada na essência do comércio; que o
comércio, em vez de ser "a fonte mais frutífera de discórdia e hostilidade", é
um "vínculo de união e amizade entre nações e entre indivíduos" (cf. A
5
[NRT] Engels utiliza os seguintes termos Natinalökonomie, Politische Ökonomie,
öffentliche Ökonomie e, por fim, privat Ökonomie.
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riqueza das nações, B4, c3, §2), pois é da natureza da questão que o comércio
como um todo seja vantajoso para todos os envolvidos.
Smith estava certo quando saudou o comércio como humano. Não
nada absolutamente antiético no mundo; o comércio também tem um lado
em que presta homenagem à eticidade e à humanidade. Mas que
homenagem! O direito do mais forte, o assalto na rua da Idade Média, foi
humanizado quando passou para o comércio o comércio, como sua
primeira etapa, caracterizada pela proibição da exportação de dinheiro e
para o sistema mercantil. Desse modo, este foi humanizado. Obviamente, é
do interesse do comerciante manter boas relações com aqueles de quem ele
compra barato, assim como com aqueles a quem ele vende a um preço mais
elevado. Portanto, é muito imprudente uma nação alimentar um clima hostil
com seus fornecedores e clientes. Quanto mais amigável, mais benéfico. Esta
é a humanidade do comércio, e essa maneira hipócrita de usar a eticidade
para fins antiéticos é o orgulho do sistema da liberdade de comércio. Não
derrubamos a barbárie do monopólio, exclamam os hipócritas, não levamos a
civilização para partes distantes do mundo, não confraternizamos os povos e
reduzimos as guerras? Sim, fez-se tudo isso, mas como se fez isso!
Aniquilaram-se os pequenos monopólios para tornar o único grande
monopólio, a propriedade, o mais livre e irrestrito possível; civilizaram-se os
confins da terra para ganhar novo terreno para o desenvolvimento de sua
vulgar ganância; confraternizaram-se os povos, mas se formou uma
irmandade de ladrões, e se reduziram as guerras para ganhar mais na paz,
para levar a inimizade do indivíduo, a guerra desonrosa da concorrência, ao
mais alto nível! Quando se fez algo por pura humanidade, por consciência
da nulidade da oposição entre o interesse geral e o individual? Quando se foi
ético sem interesses, sem motivos antiéticos e egoístas como pano de fundo?
Depois que a economia liberal fez o possível para generalizar a
hostilidade, dissolvendo nacionalidades, a humanidade se transformou em
uma horda de animais furiosos não é isso que são os concorrentes? que se
devoram exatamente porque cada um tem o mesmo interesse que os outros;
depois desse trabalho preliminar, lhe restava mais um passo para alcançar
a finalidade, a dissolução da família. Para conseguir isso, sua bela invenção, o
sistema da fábrica, veio em seu auxílio. O último traço de interesses comuns,
a comunidade de bens da família, foi soterrada pelo sistema fabril e pelo
menos aqui na Inglaterra está em processo de dissolução. É algo muito
comum na cotidianidade que crianças, tão logo sejam capazes de trabalhar,
isto é, completem nove anos, usem seu salário para si, e passem a ver a casa
de seus pais como simples tavernas e paguem a seus pais certa quantia pela
comida e acomodação. Como poderia ser diferente? O que mais poderia
resultar do isolamento de interesses subjacentes ao sistema da liberdade de
comércio? Uma vez que um princípio é posto em movimento, ele trabalha por
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si mesmo por meio de todas as suas consequências, gostem ou não os
economistas.
O próprio economista não sabe, porém, a que causa serve. Ele não sabe
que, com todo o seu raciocínio egoísta, é apenas um elo na cadeia do
progresso geral da humanidade. Ele não sabe que, com a dissolução de tudo
em interesses particulares, está apenas abrindo a estrada para a grande
mudança para a qual o século está caminhando, a reconciliação da
humanidade com a natureza e consigo mesma.
_____
Outra categoria determinada pelo comércio é o valor. Sobre esta, assim
como sobre todas as outras categorias, não disputa entre os economistas
mais antigos e os mais novos, porque os monopolistas, em sua fúria imediata
de enriquecimento, não tiveram tempo para lidar com categorias. Todas as
disputas sobre essas questões vieram dos mais recentes.
Para o economista que vive de oposições, existe, naturalmente,
também um valor duplo: o valor abstrato ou real e o valor de troca. Houve
uma longa disputa sobre a essência do valor real entre os ingleses, que
determinaram o custo de produção como expressão do valor real, e o francês
Say, que pretendeu medir esse valor de acordo com a utilidade de uma coisa.
A disputa esteve em suspenso desde o início deste século e adormeceu, não
foi decidida. Os economistas não podem decidir.
Os ingleses MacCulloch e Ricardo em particular afirmam que o
valor abstrato de uma coisa é determinado pelo custo de produção. Bem
entendido, o valor abstrato, não o valor de troca, o exchangeable value, o
valor no comércio que é algo completamente diferente. Por que os custos de
produção são a medida do valor? Por que ouça, ouça! por que ninguém
venderia nada, em circunstâncias normais e desconsiderando as relações de
concorrência, por menos do que a produção lhe custou? O que temos que ver
com "vender" aqui, quando não se trata da aposta comercial? Aqui temos de
novo o comércio, que devemos deixar de fora e que comércio! Um comércio
em que o principal, a relação de concorrência, não deve ser considerado!
Primeiro, um valor abstrato, agora também um comércio abstrato, um
comércio sem concorrência, ou seja, um homem sem corpo, um pensamento
sem cérebro para produzir pensamentos. E o economista não percebe que,
quando a concorrência é deixada de fora do jogo, não nenhuma garantia
de que o produtor venda suas mercadorias exatamente ao custo de produção?
Que confusão!
Mais ainda! Vamos admitir, por um momento, que tudo é como diz o
economista. Supondo que alguém tenha feito algo muito inútil com enorme
esforço e custos enormes, algo que ninguém deseja, esse vale também os
custos de produção? De maneira alguma, diz o economista, quem vai querer
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comprá-lo? Então, temos assim não apenas a utilidade desacreditada de Say,
mas com a "compra" a relação de concorrência ao lado. Não é possível ao
economista manter sua abstração por um momento sequer. Não apenas o que
ele está tentando remover com dificuldade, a concorrência, mas também o
que ele ataca, a utilidade, escorre entre seus dedos a todo momento. O valor
abstrato e sua determinação pelos custos de produção são apenas abstrações,
absurdos.
Mas vamos dar razão novamente ao economista por um momento
como ele determinará os custos de produção para nós sem ter em conta a
concorrência? Quando examinamos o custo de produção, vemos que essa
categoria também se baseia na concorrência e, também aqui, mostra o quão
pouco o economista está em condições de sustentar suas asserções.
Se passamos para Say, encontramos a mesma abstração. A utilidade de
uma coisa é algo puramente subjetivo, algo que não se pode estabelecer de
modo absoluto pelo menos enquanto ainda se estiver vagando entre
oposições, certamente não será estabelecida. Segundo esta teoria, as
carências [Bedürfnisse] necessárias devem ter mais valor que os artigos de
luxo. A única via possível para se chegar a uma decisão razoavelmente
objetiva e aparentemente universal sobre a maior ou menor utilidade de uma
coisa é, sob o domínio da propriedade privada, a relação de concorrência, e é
isso o que se deveria deixar de lado. Mas, se a relação de concorrência for
permitida, então também os custos de produção entram; porque ninguém
venderá por menos do que investiu na produção. Aqui também um lado da
oposição, sem que se queira, transpassa para o outro.
Tentemos lançar luz nessa confusão. O valor de uma coisa inclui os
dois fatores, que são separados à força pelas partes em disputa e, como
vimos, sem sucesso. O valor é a razão entre custos de produção e utilidade. A
aplicação mais precisa do valor é a decisão sobre se alguma coisa deve ser
produzida, ou seja, se a utilidade compensa os custos de produção. Somente
então se pode discutir a aplicação do valor para a troca. Uma vez equiparados
os custos de produção de duas coisas, a utilidade será o fator decisivo para
determinar seu valor comparativo.
Essa base é a única base justa da troca. Mas, se se parte dela, quem
deve estabelecer a utilidade da coisa? A mera opinião das partes? Pelo menos
é assim que uma delas é enganada. Ou uma determinação baseada na
utilidade inerente à coisa, independente das partes envolvidas e não evidente
para elas? A troca só pode ocorrer por coação, e cada um pensa que foi
enganado. Não se pode superar essa oposição entre a utilidade inerente real à
coisa e a determinação dessa utilidade, entre a determinação da utilidade e a
liberdade dos participantes da troca, sem superar a propriedade privada; e,
uma vez que essa venha a ser superada, não se pode mais falar em troca como
ela existe agora. A aplicação prática do conceito de valor será, então, cada vez
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mais limitada a estabelecer a produção, e está é a sua esfera própria.
Mas, então, como estão as coisas agora? Vimos como o conceito de
valor é violentamente dividido e os aspectos individuais são tomados como o
todo. Os custos de produção, distorcidos desde o início pela concorrência,
devem valer como o próprio valor; da mesma forma, a utilidade meramente
subjetiva já que agora não pode haver outra. Para obter essas definições
debilitadas, a concorrência deve ser usada nos dois casos; e o melhor é que,
no caso dos ingleses, a concorrência, em relação ao custo de produção,
representa a utilidade, enquanto, inversamente, em Say, a concorrência, em
relação à utilidade, introduz o custo de produção. Mas que utilidade, que
custos de produção traz! Sua utilidade depende do acaso, da moda, do humor
dos ricos, seus custos de produção aumentam e diminuem com a relação
casual entre demanda e oferta.
A diferença entre o valor real e o valor de troca é baseada em um fato -
a saber, que o valor de uma coisa é diferente do chamado equivalente dado a
ela no comércio, ou seja, que esse equivalente não é equivalente. Esse
chamado equivalente é o preço da coisa e, se o economista fosse honesto, ele
usaria a palavra "valor comercial". No entanto, ele ainda precisa manter um
rastro de aparências de que o preço está de alguma forma relacionado ao
valor, para que a antieticidade do comércio não venha à tona. Mas o fato de o
preço ser determinado pela interação dos custos de produção e da
concorrência é bastante correto e é uma das principais leis da propriedade
privada. Foi a primeira coisa que o economista encontrou, essa lei puramente
empírica; e a partir disso ele abstraiu seu valor real, ou seja, o preço, no
momento em que a relação de concorrência é equilibrada, quando a demanda
e a oferta coincidem então, é claro que os custos de produção permanecem,
e é isso que o economista chama de valor real, embora seja apenas uma
determinação do preço. Então, tudo na economia está de cabeça para baixo;
faz-se com que o valor, que é o original, é a fonte do preço, seja dependente
deste, seu próprio produto. Como é sabido, essa inversão é a essência da
abstração, e sobre tal questão Feuerbach pode ser consultado.
_____
Segundo o economista, os custos de produção de uma mercadoria
consistem em três elementos: a renda fundiária [Grundrente] pelo terreno
necessário para produzir a matéria-prima, o capital com lucro e o salário pelo
trabalho necessário para a produção e elaboração. Mas se mostra de imediato
que capital e trabalho são idênticos, uma vez que os próprios economistas
admitem que o capital é "trabalho acumulado". Portanto, temos apenas dois
lados: o natural, objetivo, o terreno, e o humano, subjetivo, o trabalho, que
inclui capital e uma terceira coisa além do capital em que o economista não
pensa, quero dizer, o elemento espiritual da invenção, do pensamento, além
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do elemento físico do mero trabalho. O que o economista tem que ver com o
espírito da invenção? Todas as invenções não lhe chegaram sem a sua
intervenção? Custou-lhe algo uma delas? Então, por que ele precisa
preocupar-se com o cálculo de seus custos de produção? Para ele, terra,
capital, trabalho são condições de riqueza e ele não precisa de mais nada. A
ciência não lhe interessa. Se ela lhe deu presentes através de Berthollet, Davy,
Liebig, Watt, Cartwright etc., o que beneficiou imensamente a ele e a sua
produção o que isso lhe importa? Ele não sabe como calcular semelhante
coisa; os avanços na ciência vão além de seus meros. Mas, para uma
situação racional, que está além da divisão de interesses, como ocorre com o
economista, o elemento espiritual é um dos elementos da produção e
encontrará seu lugar na economia sob custos de produção. E é satisfatório
saber que o cultivo da ciência também é materialmente gratificante, saber
que um único fruto da ciência, como o motor a vapor de James Watt, trouxe
mais ao mundo, nos primeiros 50 anos de sua existência, do que o mundo
gastou desde o início do cultivo da ciência.
Temos, portanto, dois elementos de produção, natureza e homem, e
este último, por sua vez, física e espiritualmente em atividade; e agora
podemos retornar ao economista e a seus custos de produção.
_____
Tudo o que não pode ser monopolizado não tem valor, diz o
economista uma tese que examinaremos em mais detalhes posteriormente.
Se dizemos que não tem preço, a tese está correta para a condição relativa à
propriedade privada. Se o solo fosse tão fácil de obter quanto o ar, ninguém
pagaria juros fundiários [Grundzins]. Como esse não é o caso, mas a extensão
das terras que são apropriadas em um caso especial é limitada, então são
pagos juros fundiários pelo solo tomado em propriedade, ou seja,
monopolizado, ou se paga um preço de compra por ele. Mas é muito estranho
ter de ouvir do economista, após essas informações sobre a origem do valor
da terra, que os juros fundiários são a diferença entre o rendimento, que paga
os juros, e a parcela que paga pior o esforço pelo cultivo. Como é sabido, esta
é a definição dos juros fundiários que Ricardo desenvolveu completamente.
Esta definição é praticamente correta se levarmos em conta que uma queda
na demanda reage instantaneamente aos juros fundiários e desativa
imediatamente o cultivo de uma quantidade correspondente da pior terra
cultivada. Mas esse não é o caso, a definição é, portanto, insuficiente; além
disso, não inclui a causa dos juros fundiários e, portanto, deve ser
abandonada. O coronel T. P. Thompson, leaguer da Liga contra a “Lei dos
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Friedrich Engels
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Grãos”
6
, renovou a definição de Adam Smith, em contraposição a essa, e a
fundamentou. Segundo ele, os juros fundiários são a relação entre a
concorrência entre os candidatos pelo uso do solo e a quantidade limitada de
solo disponível. Aqui está, pelo menos, um retorno à origem dos juros
fundiários; mas essa explicação exclui a diferença de fertilidade do solo,
assim como a precedente explicação omite a concorrência.
_____
Então, novamente, temos duas definições unilaterais e, portanto,
meias definições para o mesmo objeto. Como no conceito de valor, teremos
novamente de combinar essas duas determinações para encontrar a
determinação correta que se segue ao desenvolvimento da questão e,
portanto, engloba toda a prática. Os juros fundiários são a relação entre a
capacidade produtiva do solo, o lado natural (que, por sua vez, compõe-se da
predisposição natural e da exploração humana, o trabalho, para melhorar) ,
e o lado humano, a concorrência. Os economistas podem sacudir a cabeça
com essa "definição"; eles ficarão chocados ao ver que ela inclui tudo o que
está relacionado à questão.
O proprietário fundiário não tem de reprovar nada ao comerciante.
Ele rouba monopolizando o solo. Ele rouba para si mesmo explorando
o aumento da população, o que aumenta a concorrência e, portanto, o valor
de seu terreno, tornando fonte de sua vantagem pessoal, que não aconteceu
por meio de sua ação pessoal, o que lhe é puramente contingente. Ele rouba
quando arrenda, ao se apoderar das melhorias feitas por seu último
arrendatário. Este é o segredo da riqueza cada vez maior dos grandes
proprietários fundiários.
Os axiomas que qualificam o modo de aquisição do proprietário como
roubo, ou seja, que todos têm direito ao produto de seu trabalho ou que
ninguém deve colher onde não semeou, não são nossa afirmação. O primeiro
exclui a obrigação de alimentar as crianças, o segundo exclui todas as
gerações do direito de existir, na medida em que cada geração assume o
legado da geração anterior. Portanto, esses axiomas são consequência da
propriedade privada. Ou se realizam suas consequências ou se renuncia à
premissa.
6
[NT] A Liga Anti-Corn-Law era uma associação de comerciantes livres fundada pelos dois
fabricantes Richard Cobden e John Bright em 1838 com o objetivo de revogar as leis de
grãos. Trata-se das leis de grãos que foram introduzidas na Inglaterra em 1815 no interesse
dos grandes proprietários de terras, dos senhores da terra e que restringiram ou proibiram a
importação de grãos do exterior. Em 26 de junho de 1846, o Parlamento inglês decidiu abolir
as leis dos grãos. Foi uma vitória importante para a burguesia industrial, que estava sob o
lema do livre comércio contra as leis de grãos, sobretudo para obter mão de obra mais
barata.
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Friedrich Engels
274
Sim, a própria apropriação originária [urprüngliche Appropriation] é
justificada pela afirmação do direito comum de propriedade, ainda mais
antigo. Por onde quer que vamos, a propriedade privada nos conduz a
contradições.
Foi o passo final em direção à usura de si mesmo, da terra, que é a
nossa única e a primeira condição de nossa existência; foi e ainda é uma
antieticidade que só é superada pela antieticidade da venda de si mesmo
[Selbstveräußerung]. E a apropriação originária, a monopolização da terra
por um pequeno número, a exclusão do resto da condição de sua vida, não
ultrapassa em nada, em antieticidade, a tardia comercialização do solo.
Se excluirmos a propriedade privada aqui novamente, os juros
fundiários serão reduzidos à sua verdade, à visão razoável, que é a sua base
essencial. O valor do solo, separado dele como juros fundiários, retorna ao
próprio solo. Esse valor, que deve ser medido pela capacidade de produzir de
uma mesma área com a mesma quantidade de trabalho, é considerado parte
dos custos de produção ao determinar o valor dos produtos e, como os juros
fundiários, é a relação entre a capacidade de produzir e a concorrência, mas a
concorrência verdadeira, tal como será desenvolvida a seu tempo.
_____
Vimos como capital e trabalho são, em sua origem, idênticos; vimos, a
partir dos desenvolvimentos do próprios economistas, como o capital,
resultado do trabalho, é imediatamente transformado em substrato material
do trabalho no processo de produção e, assim, a separação do capital em
relação ao trabalho é superada momentaneamente pela unidade de ambos; e
ainda assim o economista separa capital e trabalho, mantém a divisão sem
reconhecer a unidade de outro modo, exceto pela definição de capital:
"trabalho acumulado". A cisão entre capital e trabalho resultante da
propriedade privada nada mais é do que a divisão do trabalho em si mesmo,
que corresponde a este estado de divisão e dele surge. E, depois que essa
separação ocorre, o capital se divide novamente no capital originário e no
lucro, o aumento de capital que recebe no processo de produção, embora a
própria prática imediatamente transforme esse lucro novamente em capital e
o faça fluir com ele. Sim, mesmo o lucro é novamente dividido em juros e
propriamente em lucro. Nos juros, a irracionalidade [Unvernünftigkeit]
dessas cisões é levada ao extremo. A antieticidade de emprestar a juros,
receber sem trabalho, pelo mero empréstimo, embora seja inerente à
propriedade privada, é óbvia demais e muito é reconhecida pela
consciência popular imparcial, que geralmente é correta nessas questões.
Todas essas cisões e divisões sutis surgem da separação originária do capital
em relação ao trabalho e da conclusão dessa separação na cisão da
humanidade em capitalistas e trabalhadores, uma cisão que está se tornando
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275
cada vez mais nítida a cada dia e que, como veremos, deve sempre ir
aumentando. Essa separação, como a separação do solo entre capital e
trabalho, que foi considerada, é, entretanto, em última instância,
impossível. De maneira alguma é possível determinar quanto da terra, do
capital e do trabalho está contido em um determinado produto. As três
grandezas são incomensuráveis. O solo cria a matéria-prima, mas não sem
capital e trabalho, o capital pressupõe solo e trabalho e o trabalho pressupõe
pelo menos o solo, geralmente também capital. As funções dos três são muito
diferentes e não podem ser medidas em uma quarta medida comum.
Portanto, quando a situação atual leva a uma distribuição do produto entre os
três elementos, não medida inerente a eles, mas uma medida
completamente estranha e aleatória decide: concorrência ou o refinado
direito do mais forte. Os juros fundiários implicam a concorrência, o lucro
sobre o capital é determinado apenas pela concorrência e em seguida
veremos que é o que ocorre com o salário do trabalho.
Se abandonarmos a propriedade privada, todas essas cisões não
naturais desaparecem. A diferença entre juros e lucro desaparece; capital não
é nada sem trabalho, sem movimento. O lucro reduz sua importância ao peso
que equilibra o capital na determinação dos custos de produção e, portanto,
permanece inerente ao capital, à medida que volta à sua unidade original com
o trabalho.
_____
O trabalho, o elemento principal na produção, a "fonte de riqueza", a
atividade humana livre, é desdenhado pelo economista. Como o capital foi
separado do trabalho, o trabalho agora se cinde novamente pela segunda vez;
o produto do trabalho está frente a este como salário, é separado dele e é
novamente determinado, como de costume, pela concorrência, pois, como
vimos, não uma medida fixa da parcela de trabalho na produção. Se
abolimos a propriedade privada, essa separação antinatural também
desaparece, o trabalho é seu próprio salário e o verdadeiro significado dos
salários, anteriormente alienado, é revelado: a importância do trabalho para
determinar os custos de produção de uma coisa.
_____
Vimos que, no final, tudo se resume à concorrência enquanto existir
propriedade privada. Ela é a principal categoria do economista, sua filha mais
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querida, a quem ele mima e acaricia sem cessar e preste atenção ao tipo de
rosto de Medusa sairá daí.
A consequência seguinte da propriedade privada foi a divisão da
produção em dois lados em oposição, o natural e o humano; o solo, morto e
estéril sem fertilização, e a atividade humana, cuja primeira condição é o solo.
Também vimos como a atividade humana se dissolveu em trabalho e capital e
como esses lados se opõem de maneira hostil. tínhamos, portanto, a luta
dos três elementos um contra o outro, em vez do apoio mútuo dos três; agora
se agrega o fato de que a propriedade privada traz consigo a fragmentação de
cada um desses elementos. Uma parcela de terra se opõe à outra, um capital
contra o outro, um trabalhador contra o outro. Em outras palavras: uma vez
que a propriedade privada isola todos de sua própria individualidade rude e
que todos têm o mesmo interesse que seus vizinhos, um proprietário é
hostil a outro, um capitalista a outro, um trabalhador a outro. Nessa
inimizade dos mesmos interesses em prol de sua igualdade, a antieticidade da
presente condição da humanidade está consumada; e essa consumação é a
concorrência.
_____
O oposto da concorrência é o monopólio. O monopólio era o grito de
guerra dos mercantilistas, a concorrência, o canto de batalha dos economistas
liberais. É fácil ver que essa oposição é novamente totalmente vazia. Cada
concorrente deve desejar o monopólio, seja ele trabalhador, capitalista ou
proprietário de terras. Cada coletividade menor de concorrentes deve desejar
ter um monopólio para si mesmo contra todos os outros. A concorrência é
baseada em juros, e os juros criam, por sua vez, o monopólio; em suma, a
concorrência se integra ao monopólio. Por outro lado, o monopólio não pode
interromper o fluxo da concorrência; inclusive, ele cria a própria
concorrência, por exemplo, a proibição de importação ou tarifas elevadas
virtualmente criam a concorrência do contrabando. A contradição da
concorrência é exatamente a mesma que a da própria propriedade privada. É
do interesse de cada um ser dono de tudo, mas o interesse da coletividade é
que cada um tenha a mesma quantidade. Assim, os interesses gerais e os
individuais são diametralmente opostos. A contradição da concorrência é que
cada um deve desejar o monopólio, enquanto a coletividade como tal perde
com o monopólio e deve, portanto, removê-lo. Sim, a concorrência
pressupõe o monopólio, nomeadamente o monopólio da propriedade e aqui
novamente a hipocrisia dos liberais vem à tona e enquanto existir o
monopólio da propriedade, a propriedade do monopólio está legitimada; pois
um monopólio, uma vez concedido, também é propriedade. Que deficiência
miserável é atacar o pequeno monopólio e deixar o monopólio fundamental
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existir. E se adicionarmos a isso a proposição do economista, mencionada,
de que nada tem valor se não pode ser monopolizado, ou seja, nada que não
permita que esse monopólio entre nessa batalha da concorrência, então nossa
afirmação de que a concorrência pressupõe o monopólio está perfeitamente
justificada.
_____
A lei da concorrência é que a demanda e a oferta se completam sempre
e, por isso, nunca se complementam. Os dois lados estão ademais separados e
se transformaram em uma acentuada oposição. A oferta está sempre logo
atrás da demanda, mas nunca chega a atendê-la exatamente; é muito grande
ou muito pequena, nunca segundo a demanda, porque neste estado
inconsciente da humanidade ninguém sabe quão grande é essa ou aquela. Se
a demanda for maior do que a oferta, o preço sobe, e isso perturba [irritiert]
a oferta, por assim dizer; tão logo esta se manifeste no mercado, os preços
caem e, quando se tornam maiores do que a demanda, a queda dos preços
torna-se tão grande que a demanda volta a ser estimulada. E assim continua,
nunca um estado saudável, mas uma alternância constante de perturbação
[Irritation] e relaxamento, que exclui todo o progresso, uma oscilação eterna
sem nunca alcançar a meta. Essa lei, com seu ajuste constante, em que o que
aqui se perde se recupera ali, o economista a considera maravilhosa. É o seu
principal orgulho, ele não se cansa de olhar para ela em todas as
circunstâncias possíveis e impossíveis. E, no entanto, é óbvio que essa lei é
uma lei pura da natureza, não uma lei do espírito. Uma lei que cria a
revolução. O economista apresenta sua bela teoria de demanda e oferta,
prova a voque "nunca se pode produzir em demasia", e a prática responde
com as crises comerciais que se repetem tão regularmente quanto os cometas
e das quais agora temos uma a cada cinco a sete anos, em média. Durante 80
anos, essas crises comerciais ocorreram com a mesma regularidade que as
grandes epidemias do passado e trouxeram mais miséria e mais
antieticidade [Unsittlinchkeit] do que essas (cf. WADE, Hist[ory] of the
middle and working classes, Londres, 1835, p. 211). É claro que essas
revoluções comerciais confirmam a lei, elas a confirmam em toda a extensão,
mas de uma maneira diferente daquela que o economista quer que
acreditemos. O que se deve pensar de uma lei que pode ser aplicada por
meio de revoluções periódicas? É uma lei natural baseada na inconsciência
dos envolvidos. Se os produtores enquanto tais soubessem quanto precisam
os consumidores, se organizassem a produção, se a distribuíssem entre si, a
flutuação da concorrência e sua tendência à crise seriam impossíveis.
Produzindo com consciência, como homens, não como átomos fragmentados
sem consciência genérica, colocar-se-iam acima de todos esses opostos
artificiais e insustentáveis. Enquanto continua a produzir da maneira atual,
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de forma inconsciente e impensada, deixada ao acaso, as crises comerciais
permanecem; e cada crise sucessiva deve se tornar mais universal, isto é, pior
do que a anterior, deve empobrecer um número maior de pequenos
capitalistas e aumentar o número da classe que vive do trabalho em
proporções crescentes ou seja, a massa de trabalho a ser empregada, o
principal problema de nossos economistas, deve aumentar visivelmente e,
finalmente, provocar uma revolução social como a sabedoria escolar
[Schulweisheit] dos economistas não pode sonhar.
A eterna oscilação dos preços, criada pela relação concorrencial,
remove completamente o último traço de eticidade do comércio. Não se trata
mais de valor; o mesmo sistema que parece atribuir tanto peso ao valor, que
à abstração do valor em dinheiro a honra de uma existência particular o
mesmo sistema destrói todo valor inerente por meio da concorrência e muda
a relação de valor de todas as coisas entre si diariamente e de hora em hora.
Onde neste redemoinho está a possibilidade de uma troca fundada
eticamente? Nesses altos e baixos contínuos, cada um deve procurar
encontrar o momento mais favorável para comprar e vender; cada um deve se
tornar um especulador, ou seja, colhendo onde não semeou, enriquecendo
com a perda dos outros, calculando sobre o infortúnio dos outros ou
deixando que o acaso o beneficie. O especulador sempre conta com as
desgraças, principalmente safras ruins, ele usa de tudo, como, em sua época,
o incêndio de Nova York
7
, e o ponto culminante da antieticidade é a
especulação na bolsa de valores em fundos, por meio da qual a história, e nela
a humanidade, é reduzida a meios de satisfazer a ganância do especulador
que calcula ou arrisca. E oxalá o homem de negócios honesto e "sólido" não
se indigne com o jogo do mercado de ações de uma forma farisaica graças a
Deus etc. Ele é tão ruim quanto os especuladores de fundos, ele especula
tanto quanto eles, ele tem de fazê-lo, a concorrência o força a fazer isso, e seu
comércio implica, portanto, a mesma antieticidade que a deles. A verdade da
relação concorrencial é a relação entre a força de consumo e a força de
produção. Em uma condição digna de humanidade, não haverá outra
concorrência senão esta. A comunidade terá de calcular o que pode produzir
com os meios de que dispõe e, de acordo com a relação entre sua potência
produtiva e a massa de consumidores, determinar em que medida deve
aumentar ou diminuir a produção, até que ponto deve ceder ao luxo ou
limitá-lo. Mas, para julgar corretamente sobre essa relação e o aumento da
capacidade produtiva que se espera de uma condição razoável da
comunidade, meus leitores podem consultar os escritos dos socialistas
ingleses e, em parte, também de Fourier.
7
[NTE] No ano de 1835 ocorreu em Nova York um incêndio de grandes proporções,
praticamente toda a Nova York holandesa foi destruída pelo fogo. Estima-se que cerca de
600 casas foram arrasadas nesse incidente.
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A concorrência subjetiva, a rivalidade do capital contra o capital, do
trabalho contra o trabalho etc. será, sob essas circunstâncias, reduzida à
rivalidade baseada na natureza humana e que, até agora, apenas foi
desenvolvida por Fourier de uma maneira aceitável; após a superação dos
interesses opostos, estará limitada à sua própria esfera peculiar e razoável.
_____
A luta do capital contra o capital, do trabalho contra o trabalho, da
terra contra a terra leva a produção a um calor febril que vira de cabeça para
baixo todas as relações naturais e razoáveis. Nenhum capital pode resistir à
concorrência do outro se não for levado ao mais alto nível de atividade.
Nenhuma parcela de terra pode ser usada para construir se não aumentar
continuamente sua capacidade de produção. Nenhum trabalhador pode
enfrentar seus concorrentes se não dedicar todas as suas energias ao
trabalho. Quem quer que se envolva na luta da concorrência pode suportá-la
sem o maior esforço de sua força, sem o abandono de todos os fins
verdadeiramente humanos. A consequência dessa hiperatividade, por um
lado, é, necessariamente, um relaxamento, por outro. Quando a oscilação da
concorrência é escassa, quando a demanda e a oferta, o consumo e a
produção são quase iguais, então o desenvolvimento da produção deve chegar
a um estágio em que haja tanto excedente de força produtiva que a grande
massa da nação não tenha nada para viver; que as pessoas morram de fome
por pura sobreabundância. A Inglaterra está nessa posição insana, nesse
absurdo vivo, algum tempo. Se a produção oscila mais fortemente, como é
necessário em decorrência de tal condição, então ocorre uma alternância de
prosperidade e crise, superprodução e estagnação. O economista nunca foi
capaz de explicar esse posicionamento maluco; para explicá-lo, ele inventou a
teoria da população, que é tão absurda, e ainda mais, do que essa contradição
de riqueza e miséria ao mesmo tempo. O economista não pode ver a verdade;
ele não pode ver que essa contradição é uma simples consequência da
concorrência, porque, do contrário, todo o seu sistema desmoronaria.
Para nós, é fácil explicar a questão. A força produtiva à disposição da
humanidade é incomensurável. A produtividade do solo pode ser aumentada
indefinidamente por meio do uso de capital, trabalho e ciência. De acordo
com os cálculos dos economistas e estatísticos mais capazes (cf. o Principle of
population, de Alison, v. 1, Cap. I e II), a Grã-Bretanha "superpovoada" pode
chegar a produzir em dez anos grãos suficientes para seis vezes sua população
atual. O capital aumenta diariamente; a força de trabalho cresce com a
população, e a ciência sujeita cada vez mais a força da natureza ao homem.
Essa capacidade produtiva incomensurável, se manejada conscientemente e
no interesse de todos, logo reduziria ao mínimo o trabalho que cabe à
humanidade; abandonada à concorrência, ela faz o mesmo, mas dentro da
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280
contradição. Uma parte da terra é mais bem cultivada, enquanto outra na
Grã-Bretanha e na Irlanda, 30 milhões de acres de boa terra fica selvagem.
Parte do capital circula com tremenda rapidez, outra parte fica morta no
caixão. Alguns dos trabalhadores trabalham 14 ou 16 horas por dia, enquanto
outros permanecem ociosos, inativos, e morrem de fome. Ou a distribuição
surge dessa simultaneidade: hoje, o comércio está indo bem, a demanda é
muito importante, tudo está funcionando, o capital está girando com uma
velocidade maravilhosa, a agricultura está prosperando, os trabalhadores
trabalham até adoecer amanhã haverá uma estagnação, a agricultura não
vale o esforço, extensões inteiras de terra permanecem não cultivadas, o
capital congela no meio do rio, os trabalhadores não têm ocupação e o país
inteiro labora em uma riqueza supérflua e uma população supérflua.
O economista não pode reconhecer este desenvolvimento da questão
como o correto; caso contrário, como eu disse, ele teria de desistir de todo o
seu sistema da concorrência; ele teria de ver o vazio de sua oposição entre
produção e consumo, entre população supérflua e riqueza supérflua. Mas,
uma vez que não poderia ser negado, para alinhar esse fato à teoria foi
inventada a teoria da população.
Malthus, o autor desta doutrina, sustentou que a população sempre
pressiona os meios de subsistência, que, à medida que a produção aumenta, a
população aumenta na mesma proporção e que a tendência inerente à
população de aumentar além dos meios de subsistência disponíveis é a causa
de toda miséria e vício. Porque, se muitas pessoas, elas têm de ser
colocadas fora do caminho de uma forma ou de outra, ou mortas
violentamente ou mortas em função da fome. Mas, quando isso acontece,
novamente uma lacuna que é imediatamente preenchida novamente por
outros aumentos da população, e assim a velha miséria começa novamente.
Sim, este é o caso em todas as condições, não apenas no estado civilizado,
mas também no estado natural; os selvagens da Nova Holanda
8
, dos quais
cada um dispõe de uma milha quadrada
9
, sofrem com a superpopulação tanto
quanto a Inglaterra. Em suma, se quisermos ser coerentes, temos de admitir
que a terra estava superpovoada quando havia apenas um homem. As
consequências desse desenvolvimento são que, uma vez que os pobres são
precisamente os supérfluos, nada deve ser feito por eles, a não ser tornar para
eles a morte por inanição o mais fácil posvel, convencê-los de que não se
pode mudar nada e que não salvação para a sua classe a não ser
reproduzir-se o mínimo possível, ou, se isto não funcionar, é ainda melhor
que se estabeleça uma instituição estatal para a matança indolor dos filhos
8
[NTI] Antiga denominação da Austrália.
9
[NTE] A milha inglesa equivale a 1.609 m.
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Friedrich Engels
281
dos pobres, como sugere "Marcus"
10
segundo o qual pode haver dois filhos
e meio para cada família da classe trabalhadora; mas tudo o que vier a mais
será morto sem dor. Dar esmolas seria um crime, pois ajuda a aumentar o
excedente populacional; mas será muito vantajoso se a pobreza se
transformar em crime e as casas dos pobres se tornarem instituições penais,
como foi feito na Inglaterra por meio da nova lei "liberal" dos pobres
11
. É
verdade que esta teoria está muito mal alinhada com o ensino da Bíblia sobre
a perfeição de Deus e sua criação, mas uma refutação ruim usar a Bíblia
contra os fatos"!
Devo elaborar ainda mais essa doutrina infame e vil, essa hedionda
blasfêmia contra a natureza e a humanidade, e levar suas consequências
ainda mais longe? Aqui, finalmente levamos a antieticidade do economista ao
auge. O que são todas as guerras e horrores do sistema de monopólio contra
essa teoria? E é precisamente ela a pedra angular do sistema liberal de
liberdade de comércio, cuja derrubada resulta na ruína de todo o edifício.
Pois, se a concorrência foi provada aqui como a causa da miséria, da pobreza
e do crime, quem então se atreverá a falar a seu favor?
Na obra acima citada, Alison abalou a teoria de Malthus apelando para
a força produtiva da terra e contrariando o princípio de Malthus com o fato
de que cada homem adulto pode produzir mais do que precisa, um fato sem o
qual a humanidade não poderia se multiplicar, nem mesmo existir; de que
mais os ainda não adultos poderiam viver? Mas Alison não vai ao fundo da
questão e, portanto, finalmente volta ao mesmo resultado que Malthus.
Embora ele prove que o princípio de Malthus está incorreto, ele não pode
negar os fatos que o levaram a enunciar esse princípio.
Se Malthus não tivesse considerado a questão de forma tão unilateral,
deveria ter visto que o excedente de população ou a força de trabalho está
sempre ligada à riqueza excedente, ao capital excedente e à propriedade
fundiária excedente. A população é grande onde a força produtiva é muito
grande. A condição de todos os países superpovoados, especialmente a
Inglaterra, desde a época em que Malthus escreveu, mostra isso claramente.
Esses eram os fatos que Malthus deveria considerar em sua totalidade e cuja
consideração deveria levar ao resultado correto; em vez disso, ele escolheu
10
[NTI] Sob o pseudônimo de "Marcus", apareceram na Inglaterra do final da década de
1830 alguns panfletos nos quais a teoria misantrópica malthusiana foi pregada. Em
particular: On the possibility of limiting populousness, editado por John Hill, Block Horse
Court, Fleet Street, 1838; e The theory of painless extinction, cuja publicação foi anunciada
em New moral word em 29 de agosto de 1840.
11
[NTI] Trata-se da lei sobre o pauperismo (An act for the amendment and better
administration of the laws, relating to the poor in England and Wales) que entrou em vigor
em 14 de agosto de 1834 e que concedia uma única assistência aos pobres, sua colocação em
trabalho coercitivo. As pessoas chamavam essas casas de trabalho de "Bastilhas para os
pobres".
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Friedrich Engels
282
um, desconsiderando o outro, e assim chegou ao seu resultado insano. O
segundo erro que ele cometeu foi confundir meios de subsistência e
ocupação. Que a população sempre pressiona pelos meios de ocupação, que
tantas pessoas podem ser geradas quanto possam vir a ser ocupadas, enfim,
que a produção de força de trabalho tem sido até agora regulada pela lei da
concorrência e, portanto, também esteve exposta a crises e flutuações
periódicas, é um fato que Malthus é responsável por estabelecer. Mas os
meios de ocupação não são os meios de subsistência. Os meios de ocupação
aumentam em seus resultados finais pelo aumento da força da máquina e
do capital; os meios de subsistência aumentam tão logo a força produtiva é
aumentada em qualquer quantidade. Aqui, uma nova contradição na
economia vem à tona. A demanda do economista não é a demanda real, seu
consumo é artificial. Para o economista, uma demanda real, um
consumidor real, quando se pode oferecer um equivalente pelo que se recebe.
Mas, e se for um fato que todo adulto produz mais do que pode consumir ele
mesmo, que as crianças são como árvores que retribuem abundantemente o
gasto realizado nelas e certamente esses são fatos então, teria de pensar
que todo trabalhador deveria ser capaz de produzir muito mais do que
precisa, e a comunidade, portanto, gostaria de lhe fornecer tudo o que ele
precisa; então, poderia pensar que uma grande família deveria ser um dom
muito desejável para a comunidade. Mas o economista, na aspereza de sua
visão, não conhece outro equivalente além do que lhe é pago em dinheiro
tangível. Ele está tão firmemente preso aos seus antagonismos que os fatos
mais contundentes o incomodam tanto quanto os princípios científicos.
Eliminamos a contradição simplesmente mediante sua superação.
Com a fusão dos interesses agora opostos, o antagonismo entre a
superpopulação aqui e a abundância ali desaparece; o fato maravilhoso, mais
maravilhoso do que todos os milagres de todas as religiões combinados, de
que uma nação deve morrer de fome por causa da riqueza e da abundância
vãs; desaparece a absurda afirmação segundo a qual a terra não tem o poder
de alimentar as homens. Esta afirmação é o ponto mais alto da economia
cristã e que nossa economia é essencialmente cristã, poder-se-ia ter
provado com cada proposição, com cada categoria, e o farei a seu tempo
12
; a
12
[NTI] É difícil estabelecer a qual projeto literário Engels se referia. Ele provavelmente se
referia à história social da Inglaterra, que pretendia escrever e que menciona no final deste
mesmo ensaio. Em sua rie de artigos, A situação da Inglaterra (Die Lage Englands in:
Werke Marx-Engels, Band 1; Berlin: Dietz Verlag, 1981), que é um breve esboço preliminar
deste trabalho, Engels considera o ensinamento econômico de Adam Smith e as teorias
utilitaristas de Jeremy Bentham e James Mill uma teoria da dominação da propriedade
privada, do egoísmo, da alienação do homem, que representam a realização dos princípios
derivados da visão e da ordem do mundo cristãs (1981, p. 567). É provável, porém, que
Engels planejasse uma obra específica, de cunho econômico. Um ano depois, por exemplo,
Engels menciona a intenção de preparar um panfleto sobre o economista alemão List (ver
sua carta a Marx de 19 nov. 1844).
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283
teoria de Malthus é apenas a expressão econômica do dogma religioso da
contradição entre espírito e natureza e a consequente corrupção de ambos.
Espero ter mostrado essa contradão em sua nulidade também no campo
econômico, muito resolvida para e com a religião; a propósito, não
aceitarei nenhuma defesa da teoria de Malthus como competente se ela não
me explicar de antemão, com base em seu próprio princípio, como um povo
pode morrer de fome por causa da pura abundância, e que não harmonize
isso com a razão e com os fatos.
A teoria de Malthus, por sua vez, foi um ponto de transição
absolutamente necessário, que nos fez avançar infinitamente. Por meio dela,
como sobretudo por meio da economia, tomamos consciência da força
produtiva da terra e da humanidade e, depois da suplatanção [Überwindung]
desse desespero econômico, ficamos para sempre protegidos do medo da
superpopulação. Retiramos dela os argumentos econômicos mais fortes para
a transformação social; pois, mesmo que Malthus estivesse absolutamente
certo, essa transformação teria de ser levada a cabo em seguida, porque
somente ela, somente a formação das massas que ela proporciona, torna
possível a restrição moral do instinto de reprodução, que o próprio Malthus
apresenta como o antídoto mais eficaz e mais fácil para a superpopulação.
Por meio dessa teoria pudemos conhecer a mais profunda humilhação da
humanidade, sua dependência das relações de concorrência; mostrou-nos
como, em última instância, a propriedade privada fez do homem uma
mercadoria cuja produção e destruição dependem apenas da demanda;
mostrou-nos como o sistema da concorrência exterminou e extermina
milhões de homens todos os dias; vimos tudo isso e tudo nos leva à superação
dessa humilhação da humanidade por meio da superação da propriedade
privada, da concorrência e dos interesses contrapostos.
A fim de privar o medo geral da superpopulação de todas as bases, no
entanto, voltemos mais uma vez à relão da força produtiva com a
população. Malthus faz um cálculo no qual baseia todo o seu sistema. A
população aumenta em progressão geométrica: 1 + 2 + 4 + 8 + 16 + 32 etc., a
força produtiva do solo, em aritmética: 1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6. A diferença é
óbvio, é apavorante; mas está correta? Onde está comprovado que a
capacidade produtiva do solo aumenta na progressão aritmética? A extensão
do solo é limitada, tudo bem. A força de trabalho a ser utilizada nesta
superfície aumenta com a população; vamos supor que o aumento dos
rendimentos pelo aumento do trabalho nem sempre aumenta na proporção
do trabalho; ainda assim, resta um terceiro elemento, que obviamente nunca
conta para o economista, a ciência, cujo progresso é tão infinito e pelo menos
tão rápido quanto o da população. Que progresso a agricultura deve, neste
século, apenas à química, sobretudo, apenas a dois homens Sir Humphry
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284
Davy
13
e Justus Liebig
14
? A ciência, entretanto, aumenta pelo menos como a
população; ela aumenta em proporção ao número da última geração; a
ciência avança na proporção da massa de conhecimento que lhe foi deixada
pela geração anterior, isto é, nas condições mais ordinárias, também em
progressão geométrica, e o que é impossível para a ciência? Mas é ridículo
falar de superpopulão enquanto "o vale do Mississippi tiver solo não
cultivado suficiente para transplantar toda a população da Europa"
15
,
enquanto apenas um terço da terra for considerado cultivado e a própria
produção deste terço puder ser aumentada por um fator de seis ou mais
aplicando melhorias que já são conhecidas.
_____
Assim, a concorrência coloca capital contra capital, trabalho contra
trabalho, propriedade fundiária contra propriedade fundiária e, da mesma
forma, cada um desses elementos contra os outros dois. Em uma luta, o mais
forte vence e, para prever o resultado dessa luta, teremos de examinar a força
daqueles que lutam. Em primeiro lugar, a propriedade fundiária e o capital
são mais fortes do que o trabalho, pois o trabalhador deve trabalhar para
viver, enquanto o senhorio pode viver com os seus aluguéis, e o capitalista,
com os seus juros e, em caso de necessidade, com o seu capital ou com as
propriedades fundiárias capitalizadas. A consequência disso é que apenas as
necessidades mais básicas, os meios básicos de subsistência, vão para o
trabalho, enquanto a maior parte dos produtos é distribuída entre o capital e
a propriedade fundiária. Ademais, o trabalhador mais forte desloca o mais
fraco do mercado, o capital maior, o menor, a propriedade funciária maior, a
menor. A prática confirma essa conclusão. São bem conhecidas as vantagens
que o grande fabricante e o grande comerciante têm sobre o pequeno e o
grande proprietários fundiários em relação ao proprietário de uma única
manhã. A consequência disso é que, mesmo em circunstâncias normais, o
grande capital e a grande propriedade fundiária devoram o pequeno capital e
13
[NT] Humphry Davy (Penzance, Cornwall, Reino Unido, 17 dez. 1778 Genebra, Suíça, 29
maio 1829) foi um químico britânico, considerado o fundador da eletroquímica, junto com
Alessandro Volta e Michael Faraday. Davy contribuiu para a identificação experimental de
vários elementos químicos por meio da eletrólise e estudou a energia envolvida no processo,
desenvolveu a eletroquímica explorando o uso da lula ou bateria de Volta. Realizou
importantes estudos na química e foi o responsável por identificar e isolar os elementos
potássio, sódio, bário, estrôncio, cálcio e magnésio.
14
[NT] Justus Freiherr von Liebig (12 maio 1803 18 abr. 1873) cientista alemão que
realizou contribuições importantes nas áreas da agricultura e da biologia química. Foi
considerado o principal fundador da química orgânica. Costuma ser descrito como o “pai dos
fertilizantes industriais por seus estudos sobre a importância do nitrogênio e outros
minerais como nutrientes essenciais para as plantas.
15
[NEA] ALISON, Archibald. The principles of population, and their connection with
human happiness v. 1. London, 1840, p. 548.
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285
a pequena propriedade fundiária de acordo com a lei do mais forte a
centralização da propriedade. Nas crises comercial e agrícola, essa
centralização acontece muito mais rapidamente. A grande propriedade
geralmente se multiplica muito mais rapidamente do que as pequenas, pois
uma parte muito menor da receita é deduzida como despesa da propriedade.
Essa centralização da propriedade é uma lei tão imanente à propriedade
privada quanto a todas as outras; as classes médias devem desaparecer cada
vez mais até que o mundo seja dividido em milionários e pobres, grandes
proprietários de terras e pobres diaristas. Todas as leis, toda divisão da
propriedade fundiária, toda fragmentação possível do capital são inúteis
este resultado deve vir, e virá, se não for precedido por uma transformação
total das relações sociais, uma fusão de interesses contrapostos e uma
superação da propriedade privada.
A livre concorrência, principal palavra-chave de nossos economistas
do dia, é uma impossibilidade. O monopólio pelo menos tinha a intenção, se
não pudesse reali-lo, de proteger o consumidor de fraudes. A abolição do
monopólio abre a porta à fraude. Fala-se que a concorrência tem em si o
antídoto para a fraude, ninguém vai comprar coisas ruins ou seja, cada um
deve ser conhecedor de cada artigo, e isso é impossível , daí a necessidade
de monopólio, que também é encontrada em muitos artigos. As farmácias etc.
devem ter um monopólio. E o artigo mais importante, o dinheiro, precisa do
monopólio acima de tudo. Cada vez que o meio circulante deixou de ser um
monopólio estatal, produziu uma crise comercial e os economistas ingleses,
incluindo o Dr. Wade, admitem aqui também a necessidade de monopólio.
Mas o monopólio também não protege contra o dinheiro falsificado.
Qualquer que seja o lado que se tome frente à questão, um é tão difícil quanto
o outro, o monopólio cria livre concorrência e essa, por sua vez, cria o
monopólio; portanto, ambos devem desaparecer, e essas dificuldades devem
ser eliminadas pela superação do princípio que os produz.
_____
A concorrência permeou todas as nossas condições de vida e
completou a escravidão tua na qual os homens agora se mantêm. A
concorrência é a nossa grande força motriz que incita nossa antiga e
adormecida ordem social ou melhor, nossa desordem social ,
repetidamente à atividade, mas a cada novo esforço consome também uma
parte da força declinante. A concorrência rege o progresso numérico da
humanidade; tamm rege sua eticidade. Qualquer pessoa que se
familiarizou com as estatísticas do crime deve ter notado a peculiar
regularidade com que este progride a cada ano, com a qual certas causas
produzem certos crimes. A expansão do sistema fabril resulta em aumento do
crime em todos os lugares. O número de prisões, casos criminais, até mesmo
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o número de assassinatos, roubos, pequenos furtos etc. para uma grande
cidade ou distrito pode ser determinado com antecedência todos os anos,
como tem sido feito com bastante frequência na Inglaterra. Essa regularidade
demonstra que o crime também é regido pela concorrência, que a sociedade
cria uma demanda para o crime que é atendida por uma oferta adequada,
que a lacuna provocada pela prisão, pela deportação ou pela execução de
certo número de pessoas é imediatamente suprida por outras, assim como
toda lacuna na população é imediatamente preenchida de novo pelos recém-
chegados, ou seja, o crime pressiona tanto os meios de punição quanto os
povos os meios de ocupação. O quanto é justo, nestas circunstâncias, à parte
de todas as outras, punir os criminosos, deixo ao critério dos meus leitores. O
que importa para mim, aqui, é apenas provar a expansão da concorrência
para o campo da moral [moralische Gebiet] e mostrar a profunda degradação
a que a propriedade privada trouxe as pessoas.
_____
Na luta do capital e da terra contra o trabalho, os dois primeiros
elementos têm uma vantagem especial sobre o trabalho o auxílio da ciência,
pois também esta é dirigida contra o trabalho nas condições atuais. Quase
todas as invenções mecânicas, por exemplo, foram motivadas pela escassez
de mão de obra, especialmente as máquinas de fiar algodão Hargreaves,
Crompton e Arkwright. Toda grande demanda por trabalho gerou uma
invenção que aumentou a força de trabalho de forma significativa; por
conseguinte, desviou a demanda por trabalho humano. A história da
Inglaterra de 1770 até o presente é uma evidência contínua disso. A última
grande invenção na fiação de algodão, a Self-acting Mule
16
, foi causada
inteiramente pela demanda de trabalho e do aumento dos salários ela
dobrou o trabalho da máquina e, dessa forma, reduziu o trabalho manual à
metade, deixou metade dos trabalhadores sem ocupação e reduziu, assim, os
salários dos outros pela metade; destruiu uma conspiração dos trabalhadores
contra os fabricantes e destruiu o último resquício de força com que o
trabalho havia suportado a luta desigual contra o capital (ver Dr. Ure,
Philosophy of manafactares, v. 2). O economista diz que o resultado final é
que o maquinário é favorável aos trabalhadores, tornando a produção mais
barata e, assim, criando um mercado novo e maior para seus produtos e,
desse modo, finalmente ocupando os trabalhadores que haviam ficado sem
trabalho. Certo, mas o economista esquece pois aqui que a produção de força
16
[NTE] Máquina fiadora: entre 1738 e 1835 se produziram na Inglaterra muitas invenções
importantes para a mecanização da fiação, muito significativas para o desenvolvimento do
capitalismo. Em 1764, James Hargreaves inventou a máquina “Jenny”, em 1779, Samuel
Crompton inventou outra máquina manual para fiar; em 1875 Richard Robert inventou a
Self-acting Mule ou Selfaktor (a “automática”).
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Friedrich Engels
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de trabalho é regulada pela concorrência, que a força de trabalho sempre
pressiona os meios de ocupação? Esquece que, se a vantagem que traz
consigo a maquinaria se materializar, haverá de novo um excedente de
concorrentes esperando por trabalho, então, tornar-se ilusória essa
vantagem, enquanto a desvantagem isto é, a retirada repentina dos meios
de subsistência para metade e a queda dos salários para a outra metade te o
trabalhador não é ilusória? O economista esquece que o progresso da
invenção nunca pára, que essa desvantagem se perpetua? Ele esquece que,
com a divisão do trabalho tão infinitamente aumentada por nossa civilização,
um trabalhador pode viver se puder ser usado nesta máquina específica
para este trabalho insignificante em particular? Esquece que a passagem de
uma ocupação para outra, mais nova, é quase sempre uma impossibilidade
decisiva para o trabalhador adulto?
Ao considerar os efeitos da máquina, chego a outro tema mais
distante, o sistema fabril, e não tenho inclinação nem tempo para lidar com
isso. A propósito, espero ter em breve a oportunidade de desenvolver
plenamente a hedionda antieticidade desse sistema e de expor
implacavelmente a hipocrisia do economista, em todo o seu esplendor
17
.
Escrito entre o final de 1843 e janeiro de 1844
Publicado por Deutsch-Französische Jahrbücher, Paris, 1844
Como citar:
ENGELS, Friedrich. Esboço para uma crítica da economia política. Trad.
Ronaldo Vielmi Fortes. Rev. Vitor B. Sartori. Verinotio Revista on-line de
Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 263-87,
jul./dez. 2020.
Data do envio: 16 set. 2020
Data do aceite: 7 out. 2020
17
[NEA] Engels pretendia escrever uma tese sobre a história social da Inglaterra, para a qual
havia coletado o material durante sua estada em Manchester (novembro de 1842 a agosto de
1844). Em um capítulo, ele queria lidar com a situação da classe trabalhadora inglesa. Mais
tarde, Engels decidiu dedicar um trabalho especial ao proletariado inglês. Após seu retorno à
Alemanha, ele escreveu A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (cf. Werke Marx-
Engels, v. 2 de nossa edição, pp. 225-506).
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.586
Friedrich Engels
288
O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia
1
Friedrich Engels
Enquanto as batalhas selvagens da nobreza feudal dominante preenchiam
a Idade Média com seu ruído, o trabalho silencioso das classes oprimidas minava
o sistema feudal por toda a Europa Ocidental, criando as condições nas quais
restava cada vez menos espaço para os senhores feudais. É verdade que, no
campo, os nobres senhores seguiam seu modo de ser, atormentando servos,
chafurdando no seu suor, cavalgando sobre suas plantações, estuprando suas
esposas e filhas. Mas cidades surgiam por toda parte: na Itália, no sul da França e
no Reno, as antigas municipalidades romanas
2
ressurgiam das cinzas; em outros
lugares, e particularmente na Alemanha Central, eram novas criações. Em todos
os casos, elas eram cercadas por muralhas e fossos, fortalezas bem mais fortes que
os castelos da nobreza, pois somente poderiam ser tomadas por grandes exércitos.
Por detrás dessas muralhas e fossos, desenvolvia-se a produção artesanal
medieval nos estreitos limites da guilda burguesa; os primeiros capitais se
acumulavam; a necessidade de troca com outras cidades e com o restante do
mundo surgia; e, gradualmente, com a necessidade surgiam as formas de proteger
este tráfego.
No século XV, os cidadãos [Städtebürger] desempenhavam um papel
mais crucial na sociedade do que a nobreza feudal. É verdade que a grande massa
[Masse] da população ainda se ocupava da agricultura, que constituía, portanto,
o principal ramo da produção. Mas os poucos camponeses livres isolados, que
1
ENGELS, Friedrich. “Über den Verfall des Feudalismus und das Aufkommen der Bourgeoisie”
[1884] In: MEGA I/30, pp. 43-53. Cotejado com: ENGELS, Friedrich. The decline of feudalism
and the rise of National States” [1884] In: Marx and Engels collected works, pp. 445-54. Trad.
Gabriel Perdigão, Carolina Peters e Murilo Leite Pereira Neto. [NT] Engels possivelmente escreveu
este trabalho inacabado enquanto preparava uma nova edição de As guerras camponesas na
Alemanha. Seu conteúdo mostra que deveria servir como parte da introdução à nova edição.
Engels também usou suas notas anteriores sobre a história da Alemanha, a saber, o manuscrito
“Varia über Deutschland” (MEGA I/24, pp. 340-50). O título foi fornecido pelos editores. [Nota
do Editor NdE]
2
Na época da República Romana, municipium era uma cidade ligada a Roma por um tratado.
Havia duas categorias de municipia, conforme a natureza do tratado com Roma: iguais ou
desiguais. Os primeiros geralmente gozavam de autogoverno e seus cidadãos gozavam de plenos
direitos civis e políticos em Roma. Os cidadãos destes últimos não tinham direitos políticos em
Roma, mas cumpriam os deveres dos cidadãos romanos. O estatuto de um municipium não era
permanente. [NdE]
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Friedrich Engels
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aqui e ali ainda resistiam à arrogância da nobreza, davam provas suficientes de
que o principal na agricultura não é a pele de urso [Bärenhäuterei]
3
e a chantagem
do fidalgo, mas sim o trabalho do camponês. Ao mesmo tempo, as suas
necessidades cresceram e se transformaram de tal forma que a nobreza não
poderia prescindir das cidades: sua única ferramenta de produção
[produktionswerkz], suas armaduras e armas, afinal de contas, apenas podiam
ser obtidas na cidade! Tecidos, mobílias e joias locais, sedas italianas, rendas de
Bruxelas, peles do Norte, perfumes das Arábias, frutas do Levante, e especiarias
da Índia exceto o sabão , tudo tinha de ser comprado dos habitantes da cidade.
Um certo comércio mundial havia se desenvolvido: os italianos navegavam o
Mediterrâneo e mais além, pela costa atlântica, até Flandres; os hanseáticos ainda
dominavam o Mar do Norte e o Báltico quando enfrentaram a crescente
concorrência da Holanda e da Inglaterra; as conexões entre os Centros Sul e Norte
do tráfego marítimo eram feitas por terra, em estradas que passavam pela
Alemanha. Assim, enquanto a nobreza se tornava cada vez mais supérflua e um
obstáculo cada vez maior ao desenvolvimento, os cidadãos tornavam-se a classe
que incorporava os desenvolvimentos posteriores da produção, do comércio, da
cultura [Bildung] e das instituições políticas e sociais.
Todos esses avanços na produção e na troca foram, de fato, nos termos de
hoje, de natureza muito limitada. A produção manteve-se confinada às formas
artesanais das corporações de ofício, as quais mantinham características feudais;
o comércio permaneceu restrito às águas europeias, não se aventurando além das
cidades costeiras do Levante, onde os produtos do Extremo Oriente eram
trocados. No entanto, ainda que as atividades comerciais e, com elas, os
comerciantes permanecessem estreitos e limitados, foram suficientes para
derrubar a sociedade feudal; e ao menos continuaram avançando enquanto a
nobreza estagnava.
A burguesia da cidade [Bürgerschaft der Städte] tinha uma poderosa arma
contra o feudalismo: o dinheiro. No padrão econômico feudal do início da Idade
Média quase não havia lugar para o dinheiro. O senhor feudal obtinha de seus
servos tudo o que precisava, quer na forma de trabalho, quer na de produto final:
as mulheres fiavam e teciam o linho e a lã e faziam as roupas; os homens
cultivavam o campo; as crianças pastoreavam o rebanho do senhor, coletavam
frutos silvestres, ninhos de pássaros e palha; além disso, a família inteira também
3
Engels, aqui, refere-se, provavelmente, ao conto popular alemão Der Bärenhäuter (“o pele de
urso), reunido pelos irmãos Grimm. O protagonista é um soldado que, ao fim da guerra, encontra-
se completamente solitário. Um dia, aparece um homem que promete torná-lo rico se, durante
sete anos, não cortasse os cabelos, aparasse as unhas, tomasse banho nem orasse, e usasse sempre
um casaco verde, em cujos bolsos encontraria dinheiro ilimitado, e uma capa de pele de urso. [NT]
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Friedrich Engels
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tinha que entregar grãos, frutas, ovos, manteiga, queijo, aves, gado jovem e tudo
mais. Cada feudo [Feudalherrschaft] era autossuficiente; até mesmo serviços
militares eram exigidos em produtos; não havia tráfego ou troca, e o dinheiro era
supérfluo. A Europa fora reduzida a um nível tão baixo, tivera que recomeçar de
tal forma, que o dinheiro naquela época tinha uma função muito menos social do
que meramente política: era usado para pagar impostos e adquirido
principalmente por meio do roubo.
Tudo estava diferente agora. O dinheiro tornara-se novamente um meio de
troca geral e, com isso, sua massa aumentara consideravelmente; mesmo a
nobreza já não podia prescindir dele e, como tinham pouco ou nada para vender,
uma vez que o roubo já não era tão fácil, tiveram que se dispor a pedir emprestado
ao usurário burguês. Muito antes de os castelos do cavaleiro serem destruídos
pelos novos canhões, eles estavam minados pelo dinheiro; na verdade, a pólvora
era, por assim dizer, apenas o oficial de justiça a serviço do dinheiro. O dinheiro
era a grande máquina de nivelamento político dos cidadãos. Sempre que uma
relação pessoal era substituída por uma relação monetária, um benefício em
espécie por um benefício monetário, uma relação burguesa substituía a feudal. É
verdade que na maioria dos casos a velha e brutal economia natural
[Naturalwirtschaft] permaneceu no campo; mas já havia distritos inteiros
como na Holanda, na Bélgica, no Baixo Reno onde os camponeses pagavam
dinheiro aos senhores em vez de serviços e produtos in natura, onde senhores e
súditos já haviam dado o primeiro passo decisivo da transição para proprietários
de terras e arrendatários, onde, aliás, mesmo no campo, as instituições políticas
do feudalismo perderam sua base social [gesellschaftliche Grundlage]. A sede de
ouro dominante na Europa Ocidental no final do século XV ilustra até que ponto
a feudalidade estava minada e consumida internamente pelo dinheiro nesse
período. Ouro foi o que os portugueses procuraram na costa africana, na Índia e
em todo o Extremo Oriente; ouro foi a palavra mágica que levou os espanhóis a
cruzar o oceano Atlântico até as Américas; ouro foi a primeira coisa que os brancos
buscaram ao fincar os pés em praias recém-descobertas. Mas esse ímpeto de se
aventurar por terras longínquas em busca de ouro, ainda que, no início, se
concretizasse nas formas feudais e semifeudais, era em suas raízes incompatível
com o feudalismo, cuja base era a agricultura e cujas campanhas de conquista
visavam essencialmente as aquisições de terras. Além disso, a navegação era um
comércio decididamente burguês, que imprimiu também seu caráter antifeudal
em todas as marinhas modernas.
Assim, no século XV, a feudalidade estava em declínio total em toda a
Europa Ocidental; em toda parte, cidades com interesses antifeudais, com seus
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próprios direitos e com cidadãos armados, haviam se infiltrado nos territórios
feudais, haviam tornado os senhores feudais em parte socialmente
dependentes, por meio do dinheiro, e também, aqui e ali, até politicamente
dependentes; mesmo no campo, onde a agricultura foi intensificada por condições
particularmente favoráveis, os velhos laços feudais começavam a se afrouxar sob
a influência do dinheiro; o antigo governo aristocrático continuou a florescer
apenas em territórios recém-conquistados, como a leste do Elba, na Alemanha, ou
em áreas que eram atrasadas e distantes das rotas de comércio. Mas em toda parte
nas cidades como no campo aumentaram os elementos da população que
exigiam acima de tudo que cessasse a eterna guerra sem sentido; aquelas rixas dos
senhores feudais que tornavam a guerra interna permanente, mesmo quando o
inimigo estrangeiro estava na sua terra natal; aquele estado de devastação
ininterrupta e puramente inútil que durou toda a Idade Média. Ainda que muito
fracos para impor a sua vontade, esses elementos encontraram forte apoio no topo
de toda a ordem feudal na monarquia. E aqui é o ponto em que a consideração
das condições sociais nos leva às do estado, onde passamos da economia para a
política. As novas nacionalidades desenvolveram-se gradualmente do
emaranhado de povos da Alta Idade Média, processo em que, como se sabe, na
maioria das antigas províncias romanas, os vencidos eram assimilados aos
vencedores, os camponeses e os habitantes da cidade aos senhores germânicos.
As nacionalidades modernas também são o produto das classes oprimidas. O
mapa distrital feito por Menke da Lorena central nos uma imagem vívida de
como ocorreu a fusão aqui e a demarcação de fronteira ali
4
. Basta seguir a
fronteira que divide os topônimos românicos e alemães neste mapa para se
convencer de que, para a Bélgica e a Baixa Lorena, eles coincidem amplamente
com a fronteira linguística entre o francês e o alemão que existia cem anos.
Aqui e ali, ainda existe uma área de controvérsia estreita onde as duas línguas
lutam pela prioridade; no geral, entretanto, é claro o que deve permanecer
germânico e o que deve permanecer românico. A forma como aparece a maioria
desses topônimos no mapa, na antiga língua da Baixa Francônia e no alto alemão
antigo, no entanto, mostra que eles pertencem ao século IX ou, no máximo, ao X,
ou seja, que a fronteira foi essencialmente traçada no final da era carolíngia. No
lado românico, especialmente perto da fronteira linguística, agora existem nomes
mistos, compostos por um nome próprio alemão e um topônimo românico, por
exemplo, a oeste do Mosa perto de Verdun: Eppone curtis, Rotfridi curtis, Ingolini
curtis, Teudegisilo-villa, atualmente chamados Ippécourt, Récourt la Creux,
4
Spruner-Menke, Hand-Atlas zur Geschichte des Mittelalters and der neueren Zeit. 3. ed. Gotha
1874, mapa n. 32.
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292
Amblaincourt sur Aire, Thierville. Eram solares francos, pequenas colônias
alemãs em solo românico que mais cedo ou mais tarde foram vítimas da
romanização. Nas cidades e em áreas rurais específicas, havia colônias alemãs
mais fortes, que mantiveram sua língua por muito tempo; em uma dessas, por
exemplo, foi composta, no final do século IX, a "Canção de Ludwig"
5
; apesar disso,
o fato de que uma grande parte dos senhores francos foi romanizada
anteriormente é demonstrado pelos juramentos dos reis e grandes de 842, em que
o romanche já aparece como a língua oficial da França
6
.
Uma vez que os grupos linguísticos foram delimitados (a despeito das
guerras posteriores de conquista e extermínio, como as travadas contra os eslavos
do Elba
7
), era natural que servissem como a base existente para a formação de
estados, para que nacionalidades começassem a se desenvolver em nações. O
rápido colapso do estado misto da Lotaríngia
8
mostra como esse elemento era
poderoso no século IX. É verdade que ao longo de toda a Idade Média fronteiras
linguísticas e fronteiras nacionais estiveram longe de coincidir; mas todas as
nacionalidades, com exceção, talvez, da Itália, eram representadas na Europa por
um estado particularmente grande, e a tendência de criar estados nacionais, que
surgia cada vez mais clara e conscientemente, constitui uma das alavancas de
progresso mais essenciais da Idade Média.
Em cada um desses estados medievais, o rei estava agora no topo de toda a
hierarquia feudal, um topo do qual os vassalos não podiam se esquivar e contra o
5
A Canção de Ludwig [Das Ludwigslied] foi escrita no final do século IX no dialeto da Francônia
por um poeta anônimo. É um panegírico ao rei Ludwig III, da Frância ocidental, comemorando
sua vitória sobre os normandos em Sancourt, em 881 (Hausschatz der Volkspoesie, Leipzig, 1846).
[NdE]
6
Referência aos textos existentes nas línguas do alto alemão antigo e do romanche (francês
antigo), registrando os juramentos de lealdade trocados em Strassburg, em 842, por Luís, o
Alemão, rei franco oriental, e Carlos, o Calvo, rei franco ocidental, bem como por seus vassalos.
[NdE]
7
Trata-se dos eslavos do Elba [Laba], um grande grupo de povos eslavos ocidentais que entre o
primeiro e o segundo milênio da era cristã habitaram o território entre o Laba e seu afluente, o rio
Sala [Saale], a oeste, e o Odra [Oder] a leste. A partir do século X, os senhores feudais alemães
lançaram uma campanha sistemática de apropriação das terras eslavas e estabelecimento de
distritos militares, os marcos, nos territórios conquistados. Apesar da resistência da população
nativa, na segunda metade do século XII, os alemães conseguiram se apropriar dos últimos
territórios livres dos eslavos do Elba. Parte dos eslavos foi aniquilada, alguns foram germanizados
à força e outros conseguiram manter suas características étnicas e culturais. [NdE]
8
Lotaringia (Lorena) foi um estado na margem esquerda do Reno estabelecido em 855 durante a
divisão das possessões do Imperador Lotário I e nomeado em homenagem ao seu filho Lotário II,
a quem foi entregue como um reino independente. Sua localização entre os reinos francos
ocidental e oriental tornava-o instável e era uma das causas da luta por seu território. Após a morte
de Lotário II em 870, Lotaríngia foi dividida (aproximadamente ao longo da fronteira linguística)
entre seus irmãos, o rei franco oriental Luís, o Alemão, e o rei franco ocidental Carlos, o Calvo.
[NdE]
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Friedrich Engels
293
qual estavam, ao mesmo tempo, em estado de rebelião permanente. A relação
básica de toda a economia feudal, a concessão de terras em troca de determinados
serviços pessoais e impostos, em sua forma original e mais simples, fornecia
material suficiente para disputas, especialmente quando tantos estavam
interessados em disputar. O que, então, deveria se esperar da Baixa Idade Média
quando as relações de vassalagem [Lehnsbeziehungen] em todos os territórios
formaram um emaranhado inextricável de direitos [Berechtigungen] e deveres
[Verpflichtungen] aprovados, retirados, renovados, perdidos, alterados ou
submetidas às novas condições? Carlos, o Audaz, por exemplo, era o vassalo do
imperador em alguns de seus territórios, e do rei da França em outros; por outro
lado, o rei da França, seu suserano, era ao mesmo tempo, em certas áreas, o
vassalo de Carlos, o Audaz, ele próprio seu vassalo; como seria possível evitar
conflitos? Daí esta interação secular entre atração dos vassalos centro
monárquico, que poderia sozinho protegê-los de forasteiros e uns dos outros,
transformada incessante e inevitavelmente em repulsão do centro; daí a luta
ininterrupta entre a monarquia e os vassalos, cujo ruído sombrio abafou tudo o
mais durante aquele longo tempo em que o roubo era a única fonte de renda digna
de um homem livre; daí o ciclo interminável e sempre renovado de traição,
assassinato, envenenamento, insidiosidade e toda maldade concebível que, oculta
por trás do nome poético de cavalaria, nunca deixou de falar em honra e lealdade.
É óbvio que a monarquia foi o elemento progressivo nesse estado de
confusão generalizada. Ela representava a ordem na desordem, a nação em
desenvolvimento em oposição à fragmentação em estados vassalos rebeldes.
Todos os elementos revolucionários que se formaram sob a superfície feudal eram
tão dependentes da monarquia quanto a monarquia dependia deles. A aliança
entre monarquia e burguesia data do século X; frequentemente interrompida por
conflitos, que nada seguiu constantemente seu curso em toda a Idade Média,
ela se renovava cada vez mais firmemente, e sempre mais poderosa, até que ela
ajudou a monarquia a alcançar sua vitória final, e a monarquia, em gratidão,
subjugou e saqueou sua aliada.
Tanto reis quanto cidadãos encontraram apoio poderoso no emergente
estamento dos juristas [Stande der Juristen]. Com a redescoberta do direito
romano, o trabalho foi dividido entre os sacerdotes, consultores jurídicos do
período feudal, e os leigos estudiosos do direito [Rechtsgelehrten]. Desde o início,
esses novos juristas pertenciam essencialmente ao estamento burguês; mas a lei
que eles estudavam, ensinavam e praticavam era, por natureza, essencialmente
antifeudal e, em certos aspectos, burguesa. O direito romano é a expressão
jurídica clássica das condições de vida e das colisões de uma sociedade em que
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domina a propriedade privada pura a tal ponto que todas as legislações
posteriores foram incapazes de melhorar qualquer coisa essencial. Mas a
propriedade burguesa da Idade Média ainda estava fortemente ligada às
restrições feudais, consistia, por exemplo, em grande medida de privilégios; a esse
respeito, o direito romano estava muito à frente das condições civis [bürgerlichen
Verhältnissen] da época. O posterior desenvolvimento histórico da propriedade
burguesa, no entanto, só poderia consistir no fato de que ela se desenvolveria em
pura propriedade privada, como aconteceu. Mas esse desenvolvimento teve de
encontrar uma alavanca poderosa no direito romano, que já continha tudo o que
os cidadãos da Baixa Idade Média apenas inconscientemente buscavam. Mesmo
que em muitos casos individuais o direito romano oferecesse o pretexto para
aumentar a opressão da nobreza sobre os camponeses por exemplo, onde esses
não puderam apresentar qualquer prova escrita de sua liberdade dos encargos que
de outro modo seriam costumeiros isso não muda a questão. Mesmo sem o
direito romana, a nobreza teria encontrado tais pretextos e de fato os encontrou
diariamente. Em todo caso, foi um tremendo avanço quando entrou em vigor um
direito que desconhecia absolutamente as relações feudais e que antecipou
plenamente a propriedade privada moderna. Vimos como a nobreza feudal
começou a se tornar supérflua e, em termos econômicos, até mesmo um estorvo
para a sociedade no final da Idade Média; assim como vimos que já estava
politicamente obstruindo o caminho do desenvolvimento das cidades e do estado
nacional, que então só era possível na forma monárquica. Apesar de tudo isso, ela
fora sustentada pelo fato de possuir até então o monopólio das armas, sem as
quais nenhuma guerra poderia ser travada, nenhuma batalha poderia ser
combatida. Isso também estava prestes a mudar; o último passo deveria ser dado
para deixar claro à nobreza feudal que o período em que governaram social e
politicamente [staatliche] havia acabado, que suas habilidades cavaleirescas não
eram mais necessárias, nem mesmo no campo de batalha. Combater a economia
feudal com o próprio exército feudal, no qual os soldados estavam ligados por
laços mais estreitos com seus senhores feudais imediatos do que com o comando
do exército real, evidentemente, significava entrar em um círculo vicioso e não
chegar a lugar nenhum. Desde o início do século XIV, os reis se esforçaram para
se emancipar desse exército feudal, para criar seu próprio exército. Desse
momento em diante, encontramos nos exércitos reais uma proporção cada vez
maior de soldados recrutados ou contratados. No início, formavam
principalmente a infantaria e provinham da escória das cidades [Abhub der
Städte] e servos fugitivos; lombardos, genoveses, alemães, belgas etc. eram
empregados na ocupação das cidades e nas tarefas de cerco, mas dificilmente
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serviam em batalhas campais. Mas, no final da Idade dia, também
encontramos cavaleiros que serviam a príncipes estrangeiros como mercenários,
com seu séquito reunido sabe-se como, demonstrando, assim, o colapso
irremediável do modo feudal de guerrear.
A condição fundamental para uma infantaria eficiente surgiu
simultaneamente nas cidades e entre os camponeses livres, mesmo que os últimos
ainda devessem ser encontrados ou tivessem sido recém formados. Até então, os
cavaleiros, com seu séquito, igualmente, a cavalo, não eram o núcleo do exército,
mas sim o próprio exército; a comitiva de servos que os acompanhavam não
contava, pareciam no campo de batalha meramente presentes para fugir e
saquear. Durante o apogeu do feudalismo, até o final do século XIII, a cavalaria
lutou e decidiu todas as batalhas. A partir daí as coisas mudaram, e em diferentes
pontos ao mesmo tempo. O desaparecimento gradual da servidão na Inglaterra
criou uma numerosa classe de camponeses livres, proprietários de terras
(yeomen) ou arrendatários, e com ela a matéria-prima para uma nova infantaria,
treinada no uso do arco, a arma nacional britânica de então. A introdução desses
arqueiros, que sempre lutaram a pé, apesar de poderem estar montados ou não
quando em marcha, deu lugar a uma mudança fundamental na tática dos exércitos
ingleses. A partir do século XIV, a cavalaria inglesa prefere lutar a pé, onde o
terreno ou outras circunstâncias o tornam apropriado. Atrás dos arqueiros que
iniciavam a batalha e desgastavam o inimigo, a falange fechada da cavalaria
desmontada aguardava o ataque inimigo ou o momento apropriado para avançar,
enquanto apenas uma parte permanece a cavalo para apoiar no momento decisivo
com ataques pelos flancos. As vitórias ininterruptas dos britânicos na França
9
naquela época são essencialmente baseadas na restauração de um elemento
defensivo no exército, em maior parte eram batalhas defensivas, seguidas por
contra-ataques ofensivos, como foram as vitórias de Wellington na Espanha e na
Bélgica
10
. Com a adoção das novas táticas pelos franceses possível desde que
besteiros italianos foram contratados para assumir a função cumprida pelos
arqueiros ingleses a sequência de vitórias dos ingleses foi interrompida.
Também no início do século XIV, a infantaria das cidades flamengas ousou
muitas vezes com sucesso opor-se à cavalaria francesa em batalha campal e
também ao imperador Albrecht, devido à sua tentativa de trair os camponeses
suíços livres em favor do Arquiduque da Áustria, que era ele mesmo, dando o
9
Referência às vitórias inglesas sobre os franceses na Guerra dos Cem Anos (1337-1453). [NdE]
10
Referência à campanha de Wellington contra a França na Guerra Peninsular de 1808-13 e à sua
vitória em Waterloo (Bélgica) em 18 de junho de 1815. Conforme descrito por Engels, as vitórias
mais conhecidas de Wellington na Espanha foram as batalhas de Talavere em 1809 e de Salamanca
em 1812. [NdE]
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impulso para a formação da primeira infantaria moderna de reputação europeia
11
.
Nos triunfos dos suíços sobre os austríacos e especialmente sobre os borgonheses,
a cavalaria pesadamente armada montada ou desmontada sucumbiu, de uma
vez por todas, à infantaria, o exército feudal aos primórdios do exército moderno,
os cavaleiros à burguesia e aos camponeses livres. E os suíços, para determinar
desde o início o caráter burguês de sua República, a primeira república
independente da Europa, monetizaram [versilberten] imediatamente sua fama
de guerra. Todas as considerações políticas desapareceram: os cantões
transformaram-se em mesas de recrutamento para arrebanhar mercenários pelo
lance mais alto. Em outros lugares, também, especialmente na Alemanha, o
tambor do recrutamento rufou; mas o cinismo de um governo que parecia existir
apenas para vender os filhos de sua terra permaneceu incomparável até que, na
época da mais profunda humilhação nacional, os príncipes alemães o superaram.
Então, no século XIV, a pólvora e a artilharia foram trazidas para a Europa
pelos árabes via Espanha. Até o final da Idade Média, o revólver não tinha
importância, o que é compreensível, pois o arco do fuzileiro inglês de Crécy atingiu
tão longe e talvez com mais segurança embora não com o mesmo efeito que o
rifle liso do soldado de infantaria de Waterloo
12
. O canhão de campanha ainda
estava na infância; por outro lado, os pesados canhões haviam repetidamente
aberto a alvenaria dos castelos dos cavaleiros e anunciado à nobreza feudal que o
fim de seu império estava selado com a pólvora.
A difusão da arte da impressão, o renascimento do estudo da literatura
antiga, todo o movimento cultural que se tornou mais forte e mais geral desde
1450
13
tudo isso veio em benefício da burguesia e da monarquia na luta contra
o feudalismo.
A interação de todas essas causas, fortalecida ano a ano por sua crescente
interdependência, que se dirigia cada vez mais na mesma direção, decidiu a vitória
sobre o feudalismo, ainda não da burguesia, mas certamente da monarquia, na
última metade do século XV. Em toda a Europa, até os longínquos países vizinhos
11
Engels refere-se à recusa do imperador alemão Albrecht I dos Habsburgos austríacos de
reconhecer as liberdades dos cantões suíços, confirmada por seu predecessor, Adolfo de Hassau.
Nos séculos XIV-XV, em sua luta contínua pela independência, os cantões conseguiram derrotar
as tropas dos senhores feudais austríacos e assegurar para a Suíça a posição de um estado livre do
domínio austríaco e subordinado apenas formalmente ao Império Alemão. [NdE]
12
Na batalha de Crécy, em 26 de agosto de 1346, os ingleses, usando uma combinação de
cavaleiros e arqueiros, derrotaram o exército francês, cuja principal força era a cavalaria. Esta
batalha foi travada durante a Guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França. [NdE]
13
Referência à impressão com tipo móvel inventada por Johann Gutenberg em meados do século
XV. Essa invenção foi um dos principais fatores que promoveram a ciência e a literatura nos
séculos XV e XVI, e acabou levando ao crescimento das forças produtivas em todo o mundo. [NdE]
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que não passaram pelo estado feudal [Feudalzustand], o poder monárquico
subitamente assumiu o controle. Na Península Ibérica [Pyrenäischen Halbinsel],
duas das tribos de língua românica se uniram para formar o Reino da Espanha e
o reino de Aragão, de ngua provençal, submetidas à escrita castelhana; a terceira
tribo, que uniu seu espaço linguístico (com exceção da Galiza) para formar o Reino
de Portugal, a Holanda Ibérica, afastou-se do interior e provou seu direito à
existência separada por meio de suas atividades marítimas.
Na França, Luís XI teve sucesso. Finalmente, após a queda do Reino
Central da Borgonha
14
, a unidade nacional representada pela monarquia seria
estabelecida no então ainda muito limitado território francês de tal forma que seu
sucessor foi capaz de interferir nas negociações italianas
15
e que esta unidade
foi posta em questão uma única vez por um curto período pela Reforma
16
. A
Inglaterra havia finalmente desistido de suas guerras quixotescas de conquista na
França, das quais ela teria sangrado até a morte no longo prazo; os nobres
procuraram ressarcimento na Guerra das Rosas e encontraram mais do que
haviam procurado: eles entraram em atrito uns contra os outros e conduziram a
Casa de Tudor ao trono, cujo poder real excedeu o de todos os seus predecessores
e sucessores. Os países escandinavos haviam sido unificados muito tempo, a
Polônia estava se aproximando de seu apogeu com um poder real ainda inalterado
desde sua unificação com a Lituânia
17
, e mesmo na ssia a subjugação dos
14
O Ducado da Borgonha, que foi formado no século IX nas bacias do Saône, Sena e Loire e mais
tarde anexou territórios consideráveis (Franco-Condado, parte do norte da França, Holanda),
tornou-se um estado feudal independente entre os séculos XIV-XV. Atingiu o auge de seu poderio
na segunda metade do século XV sob o ducado de Carlos, o Audaz (1467-77). Ele procurou
expandir suas posses e isso impediu a formação de uma monarquia francesa centralizada. O rei
Luís XI da França conseguiu formar uma coalizão de suíços e lotaríngios contra a Borgonha. Como
resultado das guerras da Borgonha de 1474-77, as tropas de Carlos, o Audaz, foram derrotadas e
ele próprio foi morto na Batalha de Nancy (1477). Suas terras foram divididas entre Luís XI e
Maximiliano de Habsburgo, filho do imperador alemão. [NdE]
15
Capitalizando a fragmentação política da Itália e a discórdia entre os estados italianos, o rei
Carlos VIII da França invadiu a Itália em 1494 e ocupou o Reino de Nápoles. A campanha de Carlos
VIII foi o início das Guerras Italianas (1494-1559), durante as quais a Itália foi repetidamente
invadida por tropas francesas, espanholas e alemãs e se tornou o cenário de uma prolongada luta
pela supremacia no meio da península do Mediterrâneo. [NdE]
16
Aqui, Engels tem em mente o movimento dos huguenotes que se desenrolou no século XVI sob
a bandeira religiosa do calvinismo e levou aos huguenotes, ou guerras religiosas entre católicos e
protestantes (huguenotes), que continuou, com interrupções, ao longo da segunda metade do
século XVI. Eles produziram desorganização econômico e anarquia política, o que piorou as
condições das massas e provocou revoltas camponesas. Assustados com eles, os senhores feudais
e a burguesia se uniram em torno de Henrique de Navarra, um ex-líder huguenote, representante
da nova dinastia Bourbon, que adotou o catolicismo e se tornou rei sob o nome de Henrique IV.
17
A primeira tentativa de unificação da Polônia e da Lituânia foi feita em 1385, quando os dois
estados firmaram a União de Krewo, dinastia que levou o nome do Castelo de Krewo, onde foi
formalizada, que visava principalmente à defesa conjunta contra a crescente agressão por parte da
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príncipes e a queda do jugo tártaro ocorreram de mãos dadas e foram finalmente
seladas por Ivan III. Em toda a Europa, havia apenas dois países nos quais a
monarquia e, portanto, a unidade nacional, que era impossível sem ela na época,
não existia ou existia apenas no papel: Itália e Alemanha.
Como citar:
ENGELS, Friedrich. O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia. Trad.
Gabriel Perdigão, Carolina Peters e Murilo Leite Pereira Neto. Verinotio Revista
on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 288-98,
jul./dez. 2020.
Data do envio: 31 ago. 2020
Data do aceite: 12 out. 2020
Ordem Teutônica. Ao mesmo tempo, promoveu os interesses de ambos os estados, que buscavam
expandir seus territórios com o esgotamento das terras ucranianas e bielo-russas. Em 1569, a
União de Lublin foi firmada, sob a qual a Polônia e a Lituânia formaram um único estado sob o
nome de Rzeczpospolita. A Lituânia manteve sua autonomia. A União existiu até 1795.
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.585
Friedrich Engels
299
O Livro de apocalipse
1
e
2
Friedrich Engels
Uma ciência quase desconhecida neste país, exceto para alguns
teólogos liberais que planejam mantê-la tão secreta quanto possível, é a crítica
histórica e linguística da Bíblia, a investigação sobre a idade, origem e valor
histórico dos diversos escritos que compõem o Antigo e o Novo Testamento.
Esta ciência é quase exclusivamente alemã. E, além disso, o pouco que
adentrou além dos limites da Alemanha não é exatamente a melhor parte dela:
é a crítica latitudinariana que se orgulha de ser completa, sem preconceitos e,
ao mesmo tempo, cristã. Os livros não são exatamente revelados pelo Espírito
Santo, mas são revelações da divindade através do espírito sagrado da
humanidade etc. Assim, a escola de Tübingen (Bauer, Gfrörer etc.)
3
é a mais
proeminente na Holanda e na Suíça, bem como na Inglaterra e, se as pessoas
vão um pouco mais longe, seguem Strauss. O mesmo espírito ameno, mas
totalmente a-histórico, domina o renomado Ernest Renan, que é apenas um
pobre plagiador dos críticos alemães. De todas as suas obras, nada lhe pertence
1
O texto de Friedrich Engels aqui traduzido se baseia no original em inglês publicado pela
MECW (ENGELS, Friedrich. The Book of Revelation[1883] In: Marx & Engels collected
works (MECW) v. 26. Londres: Lawrence & Wishart, 2010, pp. 112-7). Este, por sua vez, é uma
transcrição fidedigna do artigo publicado no segundo número do volume II da revista inglesa
Progress, de 1883. As menções bíblicas realizadas por Engels foram aqui traduzidas a partir
da Bíblia de Jerusalém, a mais rigorosa versão lusófona do livro sagrado da cultura judaico-
cristã. As supressões textuais da Bíblia realizadas por Engels foram devidamente mantidas. As
notas que acompanham a fonte original da tradução, a MECW, foram aqui destacadas por
[NEI] (Nota da Edição Inglesa); já as notas do tradutor foram abreviadas por [NT]. Tradução
de Lucas Parreira Álvares. Revisão da tradução de Gabriel Perdigão. Notas de Lucas Parreira
Álvares e Gabriel Perdigão. Revisão ortográfico-gramatical de Vânia Noeli Ferreira de
Assunção. [NT]
2
“The Book of revelation”. Nas edições da Bíblia em inglês, o “Livro de apocalipse” é
normalmente traduzido como o “Livro da revelação”. Em função da opção por “apocalipse”
pela tradição cristã lusófona, optamos por traduzir o título como O Livro de apocalipse. [NT]
Neste artigo, dedicado a uma análise histórica e linguística do último livro do Novo
Testamento, A revelação de o João, o divino ou O apocalipse, Engels examina questões
relacionadas à história do cristianismo primitivo. Ele havia lidado com alguns dos mesmos
problemas anteriormente no artigo “Bruno Bauer e o cristianismo primitivo”; mais tarde, em
1894, Engels os analisou mais detalhadamente no artigo Sobre a história do cristianismo
primitivo. [NEI]
3
A escola de Tübingen, composta por um grupo de teólogos protestantes alemães liberais, foi
fundada em 1830 por Ferdinand Christian Baur, professor da Universidade de Tübingen.
(Diferente do grupo de teólogos de Tübingen que existia no último quartel do século XVIII, às
vezes é chamado de escola neo-Tübingen.) Seus seguidores se engajaram em um estudo crítico
da literatura cristã antiga, notadamente o Novo Testamento. Sem essencialmente abandonar
os limites da teologia cristã, eles foram os primeiros a investigar as fontes do Novo Testamento.
No início de sua carreira filosófica, David Strauss também pertencia à escola de Tübingen, mas
posteriormente suas críticas se tornaram muito mais radicais. A escola se desintegrou na
década de 1860. Engels fez uma descrição detalhada dessa escola em seu artigo “Sobre a
história do cristianismo primitivo”. [NEI]
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Friedrich Engels
300
senão o sentimentalismo estético do pensamento penetrante e a linguagem
diluída que o envolve.
Uma coisa boa, no entanto, Ernest Renan disse:
Se você quiser ter uma ideia distinta de como eram as primeiras
comunidades cristãs, não as compare com as congregações paroquiais
de nossos dias; elas eram como seções locais da Associação
Internacional dos Trabalhadores.
Isto está correto. O cristianismo se apoderou das massas, exatamente
como o socialismo moderno, sob a forma de uma variedade de seitas e mais
ainda de visões individuais conflitantes algumas mais claras, outras mais
confusas, estas últimas a grande maioria , mas todas opostas ao sistema
dominante para “os poderes que existem”
4
.
Tomemos, por exemplo, o nosso Livro de apocalipse, do qual veremos
que, em vez de ser o mais sombrio e misterioso, é o livro mais simples e mais
claro de todo o Novo Testamento. No momento, devemos pedir ao leitor que
acredite no que vamos provar pouco a pouco
5
. Que foi escrito no ano 68 de
nossa era ou janeiro de 69 d.C., e que, portanto, não é apenas o único livro do
Novo Testamento cuja data é realmente fixa, mas também o livro mais antigo.
Através dele podemos ver a imagem refletida das características do
cristianismo em 68 d.C.
Para começar, seitas e mais seitas repetidas vezes. Nas mensagens para
as sete igrejas da Ásia
6
, pelo menos três seitas mencionadas, das quais, de
outra forma, nada sabemos: os nicolaitanos, os balaamitas e os seguidores de
uma mulher aqui tipificada pelo nome de Jezabel. Das três, é dito que elas
permitiram que seus seguidores comessem coisas sacrificadas aos ídolos e que
eles gostavam de fornicação
7
. É um fato curioso que, com todo grande
movimento revolucionário, a questão do “amor livre” chegue ao primeiro
plano. Para um grupo de pessoas, como um progresso revolucionário, como
um chacoalhar dos velhos grilhões tradicionais, não mais necessários; para
outros, como uma bem-vinda doutrina, que recobre confortavelmente todo o
tipo de práticas livres e fáceis entre homens e mulheres. Este último, do tipo
filistino, parece aqui que está em pequena vantagem; pois a “fornicação” está
sempre associada ao consumo de “coisas sacrificadas aos ídolos”, que judeus e
cristãos eram estritamente proibidos de fazer, mas que, às vezes, poderia ser
perigoso, ou pelo menos desagradável, recusar. Isso mostra, evidentemente,
que os amantes livres aqui mencionados geralmente eram inclinados a serem
amigos de todos, e tudo menos mártires.
O cristianismo, como todo grande movimento revolucionário, foi feito
pelas massas. Surgiu na Palestina, de uma maneira totalmente desconhecida
para nós, em um tempo em que novas seitas, novas religiões, novos profetas
surgiam aos montes. É, de fato, uma mera mediação, formada
espontaneamente a partir do atrito mútuo, das mais progressivas seitas, e
4
Do original: “the powers that be”, expressão utilizada para se referir a grupos de indivíduos
que possuem poder/autoridade sobre algo/alguém em específico. [NT]
5
Do original: “by-and-bye”.
6
Apocalipse, 2:6, 14, 20.
7
Do original: “fornication”.
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depois transformada em doutrina pela adição de teoremas do judeu
alexandrino, Philo, e mais tarde de forte infiltração estoica
8
. De fato, se
podemos chamar Philo de pai doutrinário do cristianismo, Sêneca era seu tio.
Passagens inteiras no Novo Testamento parecem quase literalmente copiadas
de suas obras
9
; e você encontrará, por outro lado, passagens nas tiras de
Persius que parecem copiadas do até então não escrito Novo Testamento.
De todos esses elementos doutrinários, não vestígios em nosso Livro de
apocalipse. Aqui temos o cristianismo da forma mais crua em que ele foi
preservado para nós. Há apenas um ponto dogmático dominante: que os fiéis
foram salvos pelo sacrifício de Cristo. Mas como, e por que, é completamente
indefinível. Não nada além da antiga noção judaica e pagã de a que Deus,
ou aos deuses, devem ser propiciados sacrifícios, transformada na concepção
especificamente cristã (que, de fato, fez do cristianismo a religião universal) de
que a morte de Cristo é o grande sacrifício, e que isso basta de uma vez por
todas.
Nenhum traço do pecado original. Nada da santíssima trindade. Jesus
é “o cordeiro”, mas subordinado a Deus. De fato, em uma passagem (15:3) ele
é colocado em pé de igualdade com Moisés. Em vez de um Espírito Santo,
existem “os sete espíritos de deus” (3:1 e 4:5). Os santos assassinados (os
mártires) clamam a Deus por vingança:
Até quando, ó Senhor santo e verdadeiro, tardarás a fazer justiça,
vingando
nosso sangue contra os habitantes da terra? (Apocalipse, 6:10) ,
um sentimento que, mais tarde, foi cuidadosamente retirado do código
teórico-moral do cristianismo, mas realizado praticamente como vingança
assim que os cristãos assumiram o controle sobre os pagãos.
Naturalmente, o cristianismo se apresenta como uma mera seita do
judaísmo. Assim é dito nas mensagens para as sete igrejas:
Conheço tua tribulação, tua indigência és rico, porém! e as
blasfêmias de alguns dos que se afirmam judeus [não cristãos] mas
não são pelo contrário, são uma sinagoga de Satanás! (Apocalipse,
2:9)
E, novamente, no capítulo 3, versículo 9:
Vou entregar-te alguns da sinagoga de Satanás, que se afirmam
judeus mas não são. (Apocalipse, 3:9)
8
Os estoicos discípulos do filósofo Zenão de Cítio, que ensinou na Estoa em Atenas. Daí o
nome desta escola de filosofia helenística e romana, fundada no final do século IV e início do
século III a.C. Entre seus seguidores estavam filósofos antigos, como Sêneca (1º século d.C.),
Filo de Alexandria (1º século d.C.) e Marco Aurélio (2º d.C.). Os estoicos procuraram
corroborar a independência interior da personalidade humana, mas, ao mesmo tempo,
demonstraram um extremo senso de resignação em relação ao mundo circundante e não
fizeram nenhuma tentativa de mudá-lo. O estoicismo introduziu uma estrita divisão da
filosofia em lógica, física e ética. Exerceu uma influência considerável na formação da religião
cristã. [NEI]
9
Veja o capítulo “Sêneca no Novo Testamento”, em Cristo e os Césares de B. Bauer, pp. 47-61.
[NEI]
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Friedrich Engels
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Assim, nosso autor, no 69º ano de nossa era, não tinha a menor ideia
de que ele representaria uma nova fase do desenvolvimento religioso destinada
a se tornar um dos maiores elementos da revolução. Assim, também, quando
os santos aparecem diante do trono de Deus, há inicialmente 144.000 judeus,
12.000 de cada uma das 12 tribos, e somente depois deles são admitidos os
pagãos que ingressaram nesta nova fase do judaísmo.
Tal foi o cristianismo no ano 68 d.C., conforme descrito no mais antigo
e único livro do Novo Testamento cuja autenticidade não pode ser contestada.
Quem foi o autor não sabemos. Ele se chama João. Nem mesmo finge ser o
“apóstolo” João, pois na fundação da “nova Jerusalém” estão “os nomes dos 12
apóstolos do cordeiro” (21:14). Portanto, eles deviam estar mortos quando ele
escreveu. Que ele era judeu isto é claro devido aos hebraísmos abundantes em
seu grego, o que excede em muito a gramática ruim, de longe, e até mesmo os
outros livros do Novo Testamento. Que o chamado Evangelho de João, as
epístolas de João e este livro têm pelo menos três autores diferentes é provado
claramente por sua linguagem, se as doutrinas que eles contêm, colidindo
completamente umas com as outras, não o provam.
As visões apocalípticas que compõem quase todo o livro da
“Revelação” são tomadas, na maioria dos casos, de modo literal dos profetas
clássicos do Antigo Testamento e de seus imitadores posteriores, começando
com o Livro de Daniel (cerca de 190 antes de nossa era, e profetizando coisas
que haviam ocorrido séculos antes) e terminando com o Livro de Enoque, uma
mistura apócrifa em grego escrita pouco antes do início de nossa era. A
invenção original, mesmo o agrupamento das visões roubadas, é
extremamente pobre. O professor Ferdinand Benary, por quem sou grato pelo
seu curso de palestras na Universidade de Berlim, em 1841, nas quais
10
provou
o que se segue, a cada capítulo e verso, de onde nosso autor emprestou todas
as suas pretensas visões. Portanto, não adianta seguir nosso “João” através de
todos os seus caprichos. É melhor chegarmos ao ponto que descobre o mistério
disso em todos os eventos deste curioso livro.
Em total oposição a todos os seus comentadores ortodoxos, que
esperam que suas profecias ainda sejam realizadas, depois de mais de 1.800
anos, “João” nunca se abstém de dizer:
Feliz o leitor e os ouvintes das palavras desta profecia, se observarem
o que nela está escrito, pois o Tempo está próximo. (Apocalipse, 1:3)
E esse é especialmente o caso da crise que ele prevê e que,
evidentemente, espera ver.
Esta crise é a grande luta final entre Deus e o “Anticristo”, como outros
o nomearam. Os capítulos decisivos são o 13 e o 17. Para deixar de fora todas
as ornamentações desnecessárias, “João” vê, surgindo do mar, uma besta que
tem sete cabeças e dez chifres (os chifres não nos interessam de maneira
alguma).
10
Ferdinand Benary ministrou um curso de palestras na Universidade de Berlim e,
simultaneamente, publicou-as no Jahrbücher für wissenschaftliche Kritik (Berlim, n. 17-20 e
30-32 para 1841). [NEI]
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Friedrich Engels
303
Uma de suas cabeças parecia mortalmente ferida, mas a ferida mortal
foi curada. (Apocalipse, 13:3)
Este animal tinha poder sobre a Terra, contra Deus e o cordeiro,
durante 42 meses (metade dos sete anos sagrados), e todos os homens foram
compelidos durante esse tempo a ter a marca do animal ou o número de seu
nome na testa ou na mão direita.
Aqui é preciso discernimento! Quem é inteligente calcule o número
da Besta, pois é um mero de homem: seu número é 666!
(Apocalipse, 13:18)
Irineu, no século II, sabia que, pela cabeça ferida e curada,
significava o imperador Nero. Ele havia sido o primeiro grande perseguidor
dos cristãos. Em sua morte, espalhou-se um boato, especialmente na Acaia e
na Ásia, de que ele não estava morto, mas apenas ferido, e que um dia
reapareceria e espalharia o terror por todo o mundo (Tácito, Ann. VI, 22)
11
. Ao
mesmo tempo, Irineu conheceu outra escritura muito antiga, que fez o número
do nome 616, em vez de 666
12
.
No capítulo 17, a besta com as sete cabeças aparece novamente, desta
vez montada pela conhecida Dama Vermelha, cuja descrição elegante o leitor
pode observar no próprio livro. Aqui, um anjo explica a João:
A Besta que viste existia, mas não existe mais… As sete cabeças são
sete montes sobre os quais a mulher está sentada. São também sete
reis, dos quais cinco caíram, um existe e o outro ainda não veio,
mas quando vier deverá permanecer por pouco tempo. A Besta que
existia e não existe mais é ela própria o oitavo e também um dos sete…
A mulher que viste, enfim, é a Grande Cidade que está reinando sobre
os reis da terra. (Apocalipse, 17:8)
Aqui, então, temos duas claras declarações: (1) A Dama Vermelha é
Roma, a grande cidade que reina sobre os reis da Terra; (2) no momento em
que o livro foi escrito, reina o sexto imperador romano; depois dele, outro virá
a reinar por um curto período de tempo; e então vem o retorno de quem “é dos
sete”, que foi ferido, mas curado, e cujo nome está contido naquele número
misterioso, e que Irineu ainda sabia que se tratava de Nero.
Contando com Augusto, temos: Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e
Nero, o quinto. O sexto é Galba, cuja ascensão ao trono foi o sinal de uma
insurreição das legiões, especialmente na Gália, liderada por Otho, sucessor de
Galba. Assim, nosso livro deve ter sido escrito sob o reinado de Galba, que
durou de 9 de junho de 68 a 15 de janeiro de 69. E prediz o retorno de Nero
como iminente.
Mas agora a prova final o número. Isso também foi descoberto por
Ferdinand Benary, e desde então nunca mais foi contestado no mundo
científico.
Cerca de 300 anos antes de nossa era, os judeus começaram a usar
suas letras como símbolos para números. Os rabinos especulativos viram nisso
um novo método para interpretação mística, ou Kabbala. Palavras secretas
11
A referência é imprecisa. Veja Tácito, Histórias, 2, 8. [NEI]
12
Irineu, Refutation and Overthrow of Gnosis falsely so called. (Against the Heresies), V, 28-
30. [NEI]
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Friedrich Engels
304
foram expressas pela figura, produzida pela adição dos valores numéricos das
letras nelas contidas. A essa nova ciência eles chamaram “gematriah”
geometria. Agora, essa ciência é aplicada aqui pelo nosso “João”. Temos que
provar (1) que o número contém o nome de um homem, e esse homem é Nero;
e (2) que a solução apresentada é válida tanto para a leitura de 666 quanto para
a leitura igualmente antiga de 616. Tomemos letras hebraicas e seus valores
Neron Kesar, o imperador Neron, grego Néron Kaisar. Agora, se em
vez da grafia grega, transferirmos o latim Nero Caesar para caracteres
hebraicos, o nun no final de Neron desaparece e, com ela, o valor de 50. Isso
nos leva à outra leitura antiga de 616 e, portanto, a prova é a mais perfeita
possível
13
.
O livro misterioso, então, agora está perfeitamente claro. “João” prevê
o retorno de Nero por volta do ano 70 e um reinado de terror sob ele, que deve
durar 42 meses, ou 1.260 dias. Após esse prazo, Deus surge e derrota Nero, o
Anticristo, destrói a grande cidade através do fogo e amarra o diabo por mil
anos. O milênio começa, e assim por diante. Tudo isso agora perdeu todo o
interesse, exceto as pessoas ignorantes que ainda podem tentar calcular o dia
do juízo final. Mas, como uma imagem autêntica do cristianismo quase
primitivo, desenhada por um deles, o livro vale mais do que todo o resto do
Novo Testamento.
***
Escrito entre junho e julho de 1883
Primeira publicação: Revista Progress, v. II, n. 2, August, 1883
Como citar:
ENGELS, Friedrich. O Livro de apocalipse. Trad. Lucas Parreira Álvares. Rev.
Gabriel Perdigão. Notas Lucas Parreira Álvares e Gabriel Perdigão. Verinotio
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2,
pp. 299-304, jul./dez. 2020.
Data do envio: 31 ago. 2020
Data do aceite: 12 out. 202
13
A grafia acima do nome, com e sem o segundo nun, é a que ocorre no Talmud e, portanto, é
autêntica. [NEI]
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.572
Aline Cristina Ferreira
305
As relações entre capitalismo e forma romanesca em Lucien
Goldmann
Aline Cristina Ferreira
1
Resumo: O presente artigo apresenta as relações entre capitalismo e romance
de acordo com Lucien Goldmann. Para tanto, apoiamo-nos especialmente em
sua obra Sociologia do romance, em que o autor apresenta a historicização do
romance de forma homóloga às mutações do capitalismo. Acreditamos que
nosso texto é relevante pois Goldmann apresenta uma visão crítica, a partir de
conceitos como o de reificação. No entanto, apesar de seus méritos, em nossas
considerações finais também apresentamos os limites do autor, já que os seus
pressupostos teórico-metodológicos podem gerar uma análise mecanicista.
Palavras-chave: Romance e capitalismo; literatura e sociedade; Lucien
Goldmann
The relations between capitalism and romanesque form in Lucien
Goldmann
Abstract: This article presents the relations between capitalism and romance
according to Lucien Goldmann. For this purpose, we rely especially on his work
Towards a sociology of the novel, in which the author presents the
historicization of the novel in homology to the changes in capitalism. We
believe that our text is relevant because Goldmann presents a critical view,
based on concepts such as reification. However, despite its merits, in our final
considerations we also present the author’s limitations, since his theoretical-
methodological assumptions can generate a mechanistic analysis.
Keywords: Novel and capitalism; literature and society; Lucien Goldmann
Lucien Goldmann foi um sociólogo franco-romeno, cuja produção é
datada a partir da década de 1940, estendendo-se até o fim da década de 1960,
no interior da academia francesa. Sua produção é destacada principalmente
nos estudos sobre marxismo e literatura (EAGLETON, 2011; KONDER, 2013),
além de ser considerado um dos principais representantes da sociologia da
1
Doutoranda pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). O presente trabalho foi realizado
com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (Capes).
E-mail: allinex3@gmail.com
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Aline Cristina Ferreira
306
literatura (RICCIARDI, 1971). Contrapondo-se ao althusserianismo, ideologia
influente em sua época, Goldmann era humanista e historicista, por isso alguns
estudiosos o enquadram como marxista historicista (LÖWY, 1987).
Sua obra de destaque é Le Dieu caché, em que o autor faz uma análise
de Pascal e Racine a partir do conceito de visão do mundo trágica, que,
sabemos, provém do texto Metafísica da tragédia: Paul Ernst, do jovem Lukács
(2015). Além desse campo de estudo associado à filosofia e ao teatro,
Goldmann também investiu na análise de romances. Para tanto, buscou criar
um aparato teórico-metodológico próprio, com influência estruturalista e
marxista o seu chamado estruturalismo genético. Isso se apresenta em seu
também conhecido livro Sociologia do romance (em francês, Pour une
sociologie du roman, título que dá um sentido mais aberto, menos acabado, à
sua sociologia do romance). Nele, há ensaios específicos sobre o seu método e
a análise de alguns romances, com a apresentação de um panorama relacional
entre expressões literárias e a história do capitalismo. É especificamente esse
elemento que objetivamos explorar no presente texto
2
.
Realizar tal trabalho é importante e relevante por dois motivos.
Primeiro porque traz consigo uma perspectiva crítica e sobretudo totalizante
das relações entre literatura e sociedade. Ou seja, trata-se de explorar uma
perspectiva que não a literatura de maneira isolada da realidade social, e,
ainda, parte de uma perspectiva crítica em relação à sociedade. Segundo
porque, a nosso ver, é uma forma de contribuição para o desenvolvimento das
discussões no interior da teoria marxista da literatura. Nesse sentido, não
consideramos de forma alguma a visão de Goldmann como acabada, pelo
contrário. Também sabemos que há outros autores que buscaram realizar tais
associações entre literatura e períodos históricos, tal como é o caso de Lukács
em, por exemplo, O romance como epopeia burguesa (LUKÁCS, 2011). Enfim,
evidenciar o trabalho de Goldmann é importante na medida em que ele traz
novos elementos que podem contribuir para pensarmos as relações entre
literatura e sociedade
3
.
Para atingir o objetivo proposto, apoiar-nos-emos especialmente em
Sociologia do romance em diálogo com as suas bases intelectuais
(notadamente A teoria do romance e História e consciência de classe).
2
Parcialmente isso foi apontado por Frederico (2005; 2006), mas de forma mais geral,
que o objetivo do autor é nos apresentar a sociologia da literatura de Goldmann desde Le Dieu
caché (1959) até A criação cultural na sociedade moderna (1971) e os seus principais conceitos
(sujeito transindividual, visão do mundo etc.). O que pretendemos fazer aqui é um
aprofundamento do elemento específico da historicização, baseando-nos em Sociologia do
romance (1964).
3
Por exemplo, no caso de Lukács, em O romance como epopeia burguesa, ele se atém mais à
forma romance até se chegar às perspectivas do romance socialista. É certo que, em outros
trabalhos, o filósofo húngaro também aborda autores considerados vanguardistas, mas ainda
de forma crítica às vezes com alguns recuos, como é o caso com Kafka. Goldmann, por outro
lado, vai além, chegando até o nouveau roman, associando-o ao conceito de reificação.
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307
Secundariamente, utilizaremos outros textos de sua autoria a fim de melhor
compreendermos os conceitos utilizados.
O herói problemático e o fenômeno da reificação
Lucien Goldmann defende a homologia entre a “forma romanesca” e a
“estrutura do meio social”. Para traçar tal relação, nosso autor se apoia em A
teoria do romance, de Georg Lukács, e Mentira romântica e verdade
romanesca, de René Girard. Goldmann tenta “marxicizar” o Lukács neo-
hegeliano que se utiliza das discussões presentes em A teoria do romance
associando-as ao desenvolvimento do capitalismo e aos conceitos presentes
em História e consciência de classe, notadamente o de reificação. O que gera
uma interpretação específica do romance, desagradando o “velho” Lukács
4
.
Vejamos como isso ocorre.
Para fundamentar a homologia entre a forma romanesca e a estrutura
do meio social, Goldmann considera as relações traçadas por Lukács entre o
herói do romance e o mundo degradado ao qual ele se depara. Para este autor,
“O indivíduo épico, o herói do romance, nasce desse alheamento em face do
mundo exterior” (LUKÁCS, 2009, p. 66, grifo nosso). Há aqui uma associação
entre o mundo que é degradado e o herói do romance que é criado a partir dele.
um herói problemático que busca de forma inautêntica valores autênticos
em um mundo igualmente problemático. Por isso um problema ético se
transforma em um problema estético. Sendo que a partir desse pressuposto
Lukács constitui uma tipologia do romance: 1) romance do idealismo abstrato;
2) romance psicológico - o romantismo da desilusão; 3) romance de educação;
4) abertura de um novo tipo com Dostoievski, já que Lukács pensava que em
1914 estaríamos em uma transição para um novo tipo de sociedade e
Dostoievski representaria essa mudança (LUKÁCS, 2009).
Goldmann insere nessa discussão o desenvolvimento histórico do
capitalismo, retomando Marx e também História e consciência de classe por
meio do conceito de reificação. A partir disso, o autor defende que uma
4
Como se sabe, Lukács passou durante sua trajetória intelectual por diversas perspectivas.
Desde sua aproximação com o Círculo de Max Weber até chegar ao seu encontro com Lênin a
partir da década de 1930 (LÖWY, 1979), e, no final de sua vida, passando ao “resgate do
sistema de conselhos” na década de 1960 (LUKÁCS, 2008). Assim, em meio a críticas,
autocríticas e recuos, Lukács não acha positivo o fato de Goldmann estar atrelado às obras de
sua juventude: “É preciso dizer que, durante a remessa para Lukács de seu livro Le Dieu caché,
que Lukács, aliás, apreciaria como uma obra interessante, Goldmann recebera daquela pessoa
que não cessava de glorificar como ‘o maior pensador do século XX’, mas, exclusivamente, pela
contribuição trazida por suas obras da juventude, uma carta extremamente significativa que
revelava claramente a sua intenção de o aceitar categoricamente todo o discurso
goldmanniano sobre sua obra” (TERTULIAN, 2008, p. 292, grifo nosso).
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308
homologia entre o romance e a sociedade de mercado, sendo que tal relação é
marcada pela reificação. Em suas palavras:
Com efeito, a forma romanesca parece-nos ser a transposição para
o plano literário da vida cotidiana na sociedade individualista
nascida da produção para o mercado. Existe uma homologia
rigorosa entre a forma literária do romance, tal como acabamos de
definir, nas pegadas de Lukács e de Girard, e a relação cotidiana dos
homens com os bens em geral; e, por extensão, dos homens com os
outros homens, numa sociedade produtora para o mercado.
(GOLDMANN, 1967, p. 16)
Nesse sentido, o autor defende que o valor de troca e a coisificação são
homólogos ao gênero romanesco. Conforme a coisificação avança, o romance
acompanha tal “evolução”. Mas o que efetivamente significa esta coisificação?
Ou, em termos lukacsianos, reificação?
A menção aos “poderes das coisas” (o que remete à coisificação) está
presente em Marx e Engels, em A ideologia alemã, estendendo-se,
posteriormente, à discussão sobre fetichismo da mercadoria, no capítulo “A
mercadoria”, de O capital. Nesses escritos é pontuado como as relações sociais
aparecem como relações entre coisas, sendo que a “saída” para este problema
seria a abolição da divisão do trabalho da sociedade capitalista. Vejamos o
seguinte trecho de A ideologia alemã:
A transformação dos poderes (relações) das pessoas em poderes das
coisas [sachliche] por meio da divisão do trabalho também não pode
ser abolida pelo fato de se banir da cabeça a sua representação geral,
mas apenas pelo fato de os indivíduos submeterem de novo a si esses
poderes das coisas e abolirem a divisão do trabalho. (MARX;
ENGELS, 2009, p. 94, grifo nosso)
o fetichismo da mercadora, conceito elaborado n’O capital, é
caracterizado pela transformação das relações sociais em relações entre coisas
que se manifesta quando o operário não reconhece o seu trabalho em sua
própria produção. E, assim, as mercadorias produzidas aparecem como se
tivessem vida própria, adquirindo um “caráter misterioso”, como pontuado
por Marx na conhecida passagem:
O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto,
simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres
sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos
próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são
naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social
dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre
os objetos, existente à margem dos produtores. (MARX, 2013, p.
147)
Lukács, sobre este fenômeno, enfatizando o ocultamento das “relações
entre os homens” (isto é, das relações sociais), afirma o seguinte:
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309
A essência da estrutura da mercadoria já foi ressaltada várias vezes.
Ela se baseia no fato de uma relação entre pessoas tomar o caráter
de uma coisa e, dessa maneira, o de uma objetividade
fantasmagórica que, em sua legalidade própria, rigorosa,
aparentemente racional e inteiramente fechada, oculta todo traço de
sua essência fundamental: a relação entre os homens. (LUKÁCS,
2012, p. 194)
Lukács aponta que no capitalismo a mercadoria penetra “no conjunto
das manifestações vitais da sociedade e remodela tais manifestações à sua
própria imagem” (2012, p. 196). Ou seja, o caráter fetichista perpassa toda a
sociedade capitalista, inclusive a consciência, que se torna coisificada ou, em
seus termos, reificada. Na consciência, as formas do capital aparecem como
verdadeiras e universais, como se as “coisas” existissem isoladamente. O
imediato é tomado como o universal pela consciência reificada. Assim, o ser
humano se torna um espectador em relação à realidade social.
Goldmann acrescenta este conceito de reificação à sua análise do
romance, associando as obras A teoria do romance e História e consciência de
classe. Mas não é apenas em Sociologia do romance que o autor discute sobre
a reificação. Em ensaio anterior
5
, de 1958, Goldmann expunha sua
interpretação sobre esse conceito, trazendo-nos exemplos bastante didáticos,
como podemos constatar no trecho a seguir:
“Um par de sapatos custa cinco mil francos”. É a expressão de uma
relação social e implicitamente humana entre o criador de gado, o
curtidor de couro, seus operários, seus empregados, o revendedor, o
negociante de sapatos e, finalmente, o último, consumidor. Mas
nada disso é visível; a maioria desses personagens não se conhece e
até ignoram sua existência mutuamente. Ficariam todos espantados
de saber da existência de um laço que os une. Tudo isso se exprime
por um só fato: “um par de sapatos custa cinco mil francos”.
Ora, isto não é um fato isolado; é, pelo contrário, o fenômeno social
fundamental da sociedade capitalista: a transformação das relações
humanas qualitativas em atributo quantitativo das coisas inertes, a
manifestação do trabalho social necessário empregado para
produzir certos bens como valor, como qualidade objetiva desses
bens; a reificação que consequentemente se estende
progressivamente ao conjunto da vida psíquica dos homens, onde
ela faz predominar o abstrato e o quantitativo sobre o concreto e o
qualitativo. (GOLDMANN, 1979, p. 122)
Considerando que a reificação é um “fenômeno social fundamental da
sociedade capitalista”, naturalmente Goldmann centralidade a este conceito
em seu estudo sobre romance e sociedade capitalista. O caráter social da
produção literária, portanto, é a essência da abordagem de Goldmann. Por isso
a sua preocupação com a reificação, que interfere nas relações sociais, vistas
5
Trata-se da transcrição de uma palestra que Goldmann proferiu em Tolouse.
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310
como relações entre coisas. Entendamos um pouco mais sobre tal caráter
social, que envolve outros conceitos importantes.
O caráter social da produção literária
Para Goldmann, o caráter social da produção literária se dá a partir da
associação entre literatura e consciência de determinado grupo ou classe
social. Segundo ele, a homologia entre o romance e a “consciência coletiva” não
é uma novidade no interior da sociologia da literatura de sua época, havendo,
neste ponto, uma afinidade entre a chamada “sociologia marxista” e as
sociologias da literatura não-marxistas. Mas, ainda em sua perspectiva, a
diferença entre estes dois campos (marxistas versus não-marxistas) se no
modo de conceber a consciência: no marxismo a consciência possível. Nesse
sentido, o autor afirma:
No fundo, o que separa, nesse domínio como em todos os outros, a
sociologia marxista das tendências sociológicas positivistas,
relativistas ou ecléticas, é o fato de ela ver o conceito fundamental
não na consciência coletiva real, mas no conceito construído
[zugerechnet] de consciência possível, o único que permite a
compreensão do primeiro. (GOLDMANN, 1967, pp. 18-19, grifo do
autor)
De forma mais aprofundada, a discussão sobre consciência possível es
presente em seu livro Ciências humanas e filosofia. Ao tratar sobre as ciências
humanas, Goldmann aponta que os positivistas concebem somente a
consciência real (isto é, aquela que enxerga o imediato, a aparência). No
entanto, em suas palavras, “parece-nos que o conceito fundamental em
ciências históricas é o de consciência possível, que tentaremos examinar a
partir dos trabalhos de Max Weber e dos marxistas” (GOLDMANN, 1980, p.
94)
6
.
Em sua discussão sobre sociologia da literatura, Goldmann relaciona
este conceito à literatura da seguinte maneira. As grandes obras literárias não
são homólogas “conteudisticamente” como um reflexo direto em relação à
consciência real, mas sim a partir de uma homologia de estruturas que não
necessariamente estão ligadas a esta consciência real. Considerando, então,
que Goldmann fala em consciência coletiva (seja real ou possível), outra
questão a ser pontuada é que o autor relaciona as obras filosóficas, literárias
6
Tal discussão apresentada por Goldmann vem de inspiração lukacsiana por meio do seu
conceito de consciência adjudicada. De acordo com Löwy e Naïr (2008, p. 43), “A expressão
‘consciência possível’ é a tradução de Goldmann para o conceito de Zugerechnetes Bewusstein
(literalmente, ‘consciência adjudicada’ ou ‘consciência atribuída’), definido por Lukács em
História e consciência de classe como a consciência que corresponde racionalmente à posição
de uma classe no processo de produção”.
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311
etc. não a um indivíduo, mas sim a um grupo. Em seus termos, uma obra é
expressão da visão do mundo de um grupo ou classe social. Este é o elemento
que faz com que as obras tenham um caráter social. Por isso, Goldmann
reitera que seu estudo se trata de sociologia, desvinculando-se de análises
puramente psicológicas. Para ele, o grupo social é o verdadeiro sujeito da ação
(GOLDMANN, 1967).
Tal discussão está vinculada à visão do mundo, que é definida da
seguinte maneira:
As visões do mundo são fatos sociais, as grandes obras filosóficas e
artísticas configuram expressões coerentes e adequadas dessas
visões de mundo; são como tais expressões individuais e sociais ao
mesmo tempo, sendo seu conteúdo determinado pelo máximo de
consciência possível do grupo, em geral da classe social, a forma
sendo determinada pelo conteúdo para o qual o escritor encontra
uma expressão adequada. (GOLDMANN, 1980, pp. 107-8, grifo do
autor)
Vemos aqui a dimensão coletiva, ou melhor, social, da concepção de
Goldmann em relação à produção literária. E, ainda, voltamos à questão da
consciência possível, que, na maioria das vezes, pode ser exprimida não em sua
totalidade, mas em seu potencial máximo. Isso porque, diferentemente de
Lukács (2012), Goldmann não considera a existência de uma identidade total
entre sujeito e objeto do conhecimento. Na verdade, para ele, uma
identidade parcial. Além disso, o autor romeno não se refere apenas ao
proletariado, mas a todos os grupos ou classes sociais que têm o potencial de
chegar ao seu máximo de consciência possível.
Esse modo de conceber a análise da literatura é chamado, em Sociologia
do romance, de “estruturalismo genético”
7
. O autor pontua que este método
parte do pressuposto de que as estruturas do universo da obra são homólogas
às estruturas mentais de certos grupos sociais (o que já pontuamos no caso do
romance e a sociedade capitalista). Assim, em sua concepção, o estruturalismo
genético contribuiu para o desenvolvimento da sociologia da literatura, pois
ele não concebe o conteúdo de forma anedótica ao estudar a relação entre a
obra literária e grupo social.
Desse modo, o último elemento que se deve considerar na sociologia do
romance de Goldmann é o de que “A consciência coletiva não é uma realidade
primeira, nem uma realidade autônoma; elabora-se implicitamente no
comportamento global dos indivíduos que participam na vida econômica,
social, política etc.” (GOLDMANN, 1967, pp. 18-9). Contudo, apenas
determinados grupos sociais conseguem constituir grandes obras, apenas
7
Antes dessa obra, Goldmann se utilizava dos termos “materialismo histórico” e “materialismo
dialético” para se referir à sua teoria e metodologia. Com o passar o tempo o autor passou a
incorporar o vocabulário estruturalista.
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312
aqueles “cuja consciência propende para uma visão global do homem”
(GOLDMANN, 1967, p. 209); sendo que “grupos sociais” não necessariamente
são classes sociais: “Do ponto de vista da investigação empírica, é certo que,
durante um período muito longo, as classes sociais foram os únicos grupos
desse gênero [isto é, que possui uma visão global]. (GOLDMANN, 1967, p.
209)
Mas no romance a questão da visão do mundo é concebida de forma
diferente, que o autor considera que o romance do herói problemático é
crítico e “oposicional” ao capitalismo, e expressa não a consciência de
determinada classe (nem a real, nem a possível), mas ao mesmo tempo está
relacionado à história e ao desenvolvimento da burguesia, pois se opõe
justamente ao mundo degradado burguês.
A forma romanesca que acabamos de estudar [isto é, aquela do herói
problemático, assim como concebido por Lukács] é, em sua
essência, crítica e oposicional. É uma forma de resistência à
sociedade burguesa em curso de desenvolvimento. /.../ O romance
de herói problemático define-se assim, contrariamente à opinião
tradicional, como uma forma literária ligada, sem dúvida, à história
e ao desenvolvimento da burguesia, mas que não é a expressão da
consciência real ou possível dessa classe. (GOLDMANN, 1967, p. 25,
grifo nosso)
Deve-se acrescentar, ainda, outra questão: aaqui falamos do romance
de herói problemático. Mas com a reificação cada vez mais crescente na
sociedade capitalista, Goldmann identifica nos romances contemporâneos a
ele uma associação entre obra literária e consciência reificada, sem passar pelo
herói problemático, pois este desaparece. A partir de toda essa discussão é que
o autor traça três fases marcantes de desenvolvimento do romance até chegar
ao “triunfo” da reificação. Nesse sentido, os diferentes momentos do modo de
produção capitalista acompanham diferentes “níveis” de coisificação. É o que
veremos a seguir.
A historicidade do capitalismo e do romance
No texto “Introdução a um estudo estrutural dos romances de Malraux”,
Goldmann lança a hipótese de que a evolução dos romances deste autor ao
longo da história transita na direção dos escritos em que o herói problemático
não aparece mais. Assim, vai da forma romance habitual (“clássica”) às
modificações históricas que chegam na dissolução do herói problemático. Tais
pontuações são sempre enfatizadas dando atenção ao contexto sócio-histórico.
Nesse sentido, as modificações dos romances não são explicadas por mudanças
individuais. O contexto específico de Malraux, de acordo com Goldmann, é o
da crise do individualismo, que colocou os problemas da ação e da morte. Além
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disso, também é apontada a influência proveniente do existencialismo e
marxismo, que estavam se adentrando na França. Nesse sentido,
trata-se de relembrar que o escritor não desenvolve ideias abstratas,
mas cria uma realidade imaginária, e que as possibilidades dessa
criação não dependem, em primeiro lugar, de suas intenções, e sim
da realidade social em cujo seio ele vive e dos quadros mentais para
cuja elaboração ele contribuiu (GOLDMANN, 1967, pp. 144-5).
É a realidade social que possibilita a criação de determinado universo
ficcional, e não as intenções do autor. Daí a importância de se compreender as
relações entre obra e contexto sócio-histórico, entre romance e capitalismo. A
historicização desta homologia está presente especialmente nos textos sobre
as análises das obras, sejam as de Malraux, sejam as de Robbe-Grillet.
Há a apresentação de três fases: 1) o início do romance até o século XX
(aqui temos, por exemplo, Cervantes, Stendhal, Flaubert, Goethe etc.); 2) o
período do início do século XX até a II Guerra Mundial (abordado nos estudos
de Goldmann sobre Malraux, por exemplo); 3) o momento da Segunda Guerra
Mundial em diante, considerando que Goldmann viveu até 1970 (aqui torna-
se representativo o estudo sobre o noveau roman). Exploraremos cada um
desses períodos.
A primeira fase compreende o início do romance até o século XX. De
acordo com Goldmann, tal período é caracterizado pela economia liberal e pela
apologia ao individualismo. O capitalismo liberal, para o autor, é marcado pelo
“seu progresso no decurso da segunda metade do século XIX e primeiros anos
do século XX, progresso que estava associado à possibilidade de uma
expressão colonial prolongada e contínua” (GOLDMANN, 1967, p. 167).
Nesse momento, a reificação é nascente e, portanto, não possui um
impacto muito intenso na literatura. O herói busca se adaptar a um mundo
degradado, marcado por uma reificação nascente; no entanto, este herói não
consegue a adaptação a esse mundo, daí a denominação herói problemático. É
o herói de Lukács em A teoria do romance, como vimos anteriormente. Nas
palavras de Celso Frederico, ao falar sobre essa fase apontada por Goldmann:
A literatura, nesse contexto, expressa o desconforto perante a
reificação nascente. No mundo desumanizado, os personagens se
debatem em busca de um sentido para a existência. O “herói
problemático” faz a sua aparição, inicialmente em Dom Quixote e,
depois, em Stendhal, Flaubert e Goethe. Romance, aqui, é crônica
social: é estudo das relações entre os personagens problemáticos e
os contextos sociais opressivos: essas relações nos contam a
tentativa de realização de valores autênticos num mundo hostil aos
valores; portanto, busca degradada de valores por personagens
desadaptados busca condenada ao fracasso, que assinala o caráter
precário e problemático da forma romance. (FREDERICO, 2005,
pp. 429-6)
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a segunda fase data do início do século XX seguindo até o fim da II
Guerra Mundial (aproximadamente de 1912 a 1945), denominada por
Goldmann como fase imperialista, em que há a formação de monopólios.
Trata-se de um período de crise estrutural do capitalismo. É o momento de
declínio da economia liberal e, por conseguinte, do herói problemático. O
comportamento humano torna-se central, especialmente na questão da ação e
da morte. A focalização se dá na exposição das dificuldades do ser humano em
se apresentar como indivíduo, diferentemente de como ocorria com as
filosofias individualistas da fase anterior. Ao caracterizar esse período
filosófico, Goldmann afirma:
Se o comportamento do indivíduo não pode, com efeito, fundar-
se nos valores transindividuais (pois o individualismo suprimira-os
todos), nem no valor incontestável do indivíduo (agora posto em
dúvida), o pensamento devia, necessariamente, centrar-se nas
dificuldades desse fundamento, nos limites do ser humano
enquanto indivíduo e na mais importante de todas seu
desaparecimento inevitável, a morte. /.../ Em resumo, privado de
dois fundamentos possíveis, o indivíduo e as realidades
transindividuais, o comportamento humano foi posto em questão,
e essa crise assumia, para o pensamento filosófico, a forma do duplo
problema da morte e da ão. (GOLDMANN, 1967, p. 191)
Para nosso autor, os dois primeiros romances de Malraux constituem
uma resposta a esses problemas apontados pela filosofia da época. Aqui, o
herói problemático não está presente como na fase anterior, pois nesse
momento a literatura é marcada pela dissolução dos personagens, tendo como
representantes Kafka, Joyce e algumas obras existencialistas, como A náusea
de Sartre e O estrangeiro de Camus. Estes autores ainda conservam uma
perspectiva humanista: “Kafka, Sartre, em A náusea, Camus, em O
estrangeiro, conservavam ainda perspectivas humanistas, implícitas ou
explícitas, que tornavam manifestamente seus livros obras de ausência”
(GOLDMANN, 1967, p. 191).
Este é o período no qual estão inseridas as obras de Malraux, que sofrem
uma mutação da forma romanesca. Com o tempo, o herói problemático se
direciona à dissolução dos personagens, especialmente com o tema da morte.
Nesse sentido, na concepção de Goldmann, a constituição de um gênero
intermediário. A “passagem” de um gênero a outro no caso de Malraux ocorre
a partir da obra Os conquistadores (1928) e A condição humana (publicada
em 1933, mas escrita anteriormente), direcionando-se a Tempo de desprezo
(1935) e, por fim, A esperança (1937) obras cujo herói não é problemático.
Desse modo, esta última obra “tem por tema a relação não problemática do
povo espanhol e do proletariado internacional com o partido comunista
disciplinado e oposto à espontaneidade revolucionária” (GOLDMANN, 1967,
pp. 116-7, grifo do autor). Por isso, Tempo de desprezo e A esperança não são
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romances no sentido estrito tal como se encontra na conceituação do herói
problemático.
André Malraux possui uma vasta produção textual. No entanto,
Goldmann finaliza seu estudo com a obra Os nogueirais de Altenburg (1943-
8), pois o autor francês começa a se dedicar a escritos teóricos e a partir de
então, após a II Guerra Mundial, há uma nova fase literária. Trata-se da
terceira fase do romance a qual mencionamos, caracterizada por uma
sociedade capitalista avançada, com intervenção estatal momento
denominado por Goldmann como “capitalismo de organização”. Em suas
palavras, após a II Guerra Mundial, “uma sociedade capitalista avançada
que, graças à criação de poderosos mecanismos de intervenção estatal e de
regulamentação da economia, pôde prescindir da exportação maciça de
capitais e investir no mercado interno” (GOLDMANN, 1967, p. 167).
Na visão de nosso autor, este último período é caracterizado pela vitória
definitiva da reificação, tendo o nouveau roman como o novo representante
do romance. Isso significa que elementos oriundos da reificação passam a se
expressar na obra literária. Nesse sentido, ao analisar os escritos de Robbe-
Grillet, um dos expoentes do noveau roman, Goldmann aponta que os
personagens possuem uma passividade que, como vimos no início de nosso
texto, faz parte do processo de reificação. Em suas palavras:
O que Robbe-Grillet constata, o que serve de tema aos seus dois
primeiros romances, é a grande transformação social e humana,
nascida do aparecimento de dois fenômenos novos e de capital
importância: de uma parte, as autorregulagens da sociedade e, de
outra parte, a passividade crescente, o caráter de “olheiros” que os
indivíduos adquirem, progressivamente, na sociedade moderna, a
ausência de participação ativa na vida social, aquilo que, na sua
manifestação mais visível, os sociólogos modernos chamam a
despolitização, mas que, no fundo, é um fenômeno muito mais
fundamental que se poderia designar, numa graduação progressiva,
por termos tais como: despolitização, dessacralização,
desumanização, coisificação. (GOLDMANN, 1967, p. 190, grifo
nosso)
Goldmann aponta que tais características podem se manifestar no
romance de maneira implícita, sendo que o seu criador não necessariamente é
engajado. Tal descrição da passividade pode ser vista como algo crítico, o que
não necessariamente pode ter sido intenção o autor. Robbe-Grillet é um
exemplo disso. Este autor se declarava distante do marxismo, dizendo que os
marxistas são aqueles que tomam posição, enquanto ele próprio buscava ser
realista e objetivo, no sentido de não inserir julgamentos em suas obras.
Enquanto a discussão se limitava aos seus três primeiros romances,
Robbe-Grillet ateve-se a sublinhar uma diferença importante entre
o seu mundo romanesco e toda a tentativa marxista para interpretá-
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lo como uma revolta contra a desumanização. Os marxistas, disse
ele, são pessoas que tomam posições. Eu sou um escritor realista,
objetivo; crio um mundo imaginário que não julgo, que não aprovo,
nem condeno, mas cuja existência registro, como realidade
essencial. (GOLDMANN, 1967, p. 191)
Considerando Robbe-Grillet um autor original, Goldmann também
aponta que este seu aspecto realista, tal como definido na citação anterior, é o
elemento característico da analogia entre os romances do noveau roman e a
estrutura social.
A obra de Robbe-Grillet equaciona, naturalmente, muitos outros
problemas propriamente estéticos e que dizem respeito, em
primeiro lugar, às modificações que o conteúdo fez introduzir na
forma romanesca. Contudo, parece-nos que esta simples análise do
conteúdo mais imediato dos escritos de Nathalie Sarraute e de
Robbe-Grillet, bem como do filme deste último, tal como acabamos
de o esboçar, é suficiente para mostrar que se dermos à palavra
realismo o sentido de criação de um mundo cuja estrutura é
análoga à estrutura essencial da realidade social, em cujo seio suas
obras foram escritas, Nathalie Sarraute e Robbe-Grillet contam-se
entre os escritores mais radicalmente realistas da literatura francesa
contemporânea. (GOLDMANN, 1967, p. 195, grifo nosso)
Evidentemente tal definição de realismo está longe de ser consensual e
é bastante diferente de outros autores que discutiram tal termo, como vemos
nas obras de Lukács dos anos 1930, por exemplo
8
. No entanto, não teríamos
espaço neste texto para abordar tais diferenças e as diferentes conotações de
“realismo” trazidas por diferentes autores influenciados pelo marxismo. O que
podemos constatar aqui é a relação feita entre noveau roman e a intensificação
da reificação, fechando a terceira fase que representa as relações entre
romance e capitalismo de acordo com nosso autor.
A utopia da comunidade humana autêntica versus o “triunfo da
reificação”
Goldmann defende a hipótese de que a forma romanesca é uma
resistência à sociedade burguesa, na medida em que ela não expressa nem a
consciência real nem a consciência possível da burguesia, mas, pelo contrário,
se opõe criticamente ao mundo burguês, degradado. O romance o tem um
herói positivo (isto é, que exalta a sociedade em que vive), mas problemático.
Assim, até mesmo quando chegamos ao terceiro período da sociedade
capitalista em que a reificação reina e o herói já está dissolvido, o que
8
Sobre isso, cf. o livro Marxismo e teoria da literatura (LUKÁCS, 2010). muitos outros
escritos em que Lukács aborda este assunto. A coletânea sugerida traz os textos de maior
destaque.
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Goldmann vê no romance de sua época é a descrição desta reificação, gerando
uma crítica implícita a ela (vide o seu exemplo dado com Robbe-Grillet). Dessa
perspectiva surge um problema: se o romance não é expressão da consciência
burguesa, então uma relação direta entre sociedade e literatura. Por isso
Frederico afirma que
Goldmann estuda o advento do nouveau roman sem referir-se a
nenhuma classe social. Aqui, estamos em pleno mecanicismo:
literatura é reflexo imediato que dispensa a mediação das classes
sociais e de suas lutas; o próprio autor, em seu desenraizamento
social, transformou-se num mero fotógrafo de uma realidade
estranha que não lhe diz respeito (2005, p. 439).
Parece-nos, porém, que para Goldmann o autor da obra literária pode
conseguir reproduzir a realidade em seu sentido objetivo, isto é, em sua forma
verdadeira, e não como apenas uma fotografia. O fato de Robbe-Grillet
descrever a passividade dos homens revela a reificação, tornando a obra
“realista”. Relembremos a seguinte afirmação: Nathalie Sarraute e Robbe-
Grillet contam-se entre os escritores mais radicalmente realistas da literatura
francesa contemporânea” (GOLDMANN, 1967, p. 195, grifo nosso) sendo que
realismo tem a ver com a captação da realidade essencial na definição trazida
por Goldmann a partir do próprio Robbe-Grillet: “Eu sou um escritor realista,
objetivo; crio um mundo imaginário que não julgo, que não aprovo, nem
condeno, mas cuja existência registro, como realidade essencial
(GOLDMANN, 1967, p. 191, grifo nosso). Como coloca Frederico (2005), isso
aparecerá de forma ainda mais evidente na produção pós-68 de Goldmann
9
.
Isso, no entanto, não resolve o problema, pois Goldmann acaba não explicando
por que essa visão crítica em relação à reificação (mesmo que não-intencional)
ocorre, que realmente nosso autor descarta aqui as classes sociais, dando
uma autonomia demasiada ao autor que conseguiria transpor diretamente a
“realidade” à obra literária.
Sem a presença de um sujeito criador transindividual (isto é, sem a
mediação da visão do mundo de determinada classe entre sociedade e
literatura), no fundo acaba havendo uma homologia direta entre estrutura
social (capitalismo) e o romance. Se essa homologia vai resultar numa visão
crítica à sociedade vigente, isso dependerá do realismo do autor (entendido tal
como apresentamos anteriormente). Toda essa discussão implica não apenas
uma visão mecanicista da criação literária nesse momento específico, como
9
Nesse momento, “O nouveau roman, portanto, não é mais interpretado como constatação da
reificação triunfante, mas sim como revolta. Mas essa literatura, ao contrário do realismo
crítico, encontra-se impossibilitada de elaborar uma história capaz de ser percebida de modo
imediato pelo leitor, que a realidade, sob a reificação, apresenta-se invertida” (FREDERICO,
2005, p. 442). Mas, como colocamos anteriormente, vemos essa característica do nouveau
roman já em Sociologia do romance, obra de 1964.
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também implica deixar de lado a dimensão histórica e utópica que era presente
no seu conceito de visão do mundo e de consciência possível. Nesse sentido,
poder-se-ia dizer que Goldmann recai naquilo que ele combate: a consciência
reificada, pois nosso autor não concebe mais as relações sociais e as múltiplas
determinações na criação literária, mas apenas as relações entre coisas, ou
melhor, entre estruturas. E mais: se há o triunfo da reificação, quais são então
as possibilidades de transformação social? E nesse aspecto Goldmann
realmente não é muito elucidativo, revelando uma brecha em sua teoria,
caindo em contradição também em relação à sua defesa de aposta numa
sociedade pós-revolucionária, anticapitalista.
Uma das características atribuídas ao pensamento de Goldmann é
justamente a centralidade que ele à historicidade (LÖWY, 1987; LÖWY;
NAÏR, 2008), o que significa conceber a história não apenas em relação ao
passado, mas também ao futuro. Ou seja, houve sempre em Goldmann uma
utopia que se direciona à comunidade humana autêntica, à superação do
capitalismo
10
. No entanto, essa dimensão da possibilidade da transformação
social parece se perder em Sociologia do romance. Löwy e Naïr (2008)
defendem que isso ocorreu devido ao contexto histórico no qual Goldmann
estava inserido, marcado por um refluxo das lutas operárias. De acordo com os
autores, os anos 1960 foram marcados por questionamentos, momento em que
nosso autor chega a defender um reformismo revolucionário.
Goldmann, contudo, revê sua posição após os acontecimentos em torno
do chamado “Maio de 1968”, chegando a participar das atividades deste
momento histórico: basta nos lembrarmos da atividade de Goldmann em
Maio de 1968, nos anfiteatros da Sorbonne ou na rua, ao lado dos
manifestantes, para concluir sobre o caráter revolucionário de suas
convicções” (LÖWY; NAÏR, 2008, p. 20). A partir desse momento, este autor
volta a considerar a revolução. No entanto, Goldmann falece no ano de 1970,
impossibilitando um maior desenvolvimento de seu pensamento.
O contexto sócio-histórico pode, evidentemente, ajudar a explicar as
motivações pelas quais Goldmann abandona a sua perspectiva de
transformação social, conformando-se com a ideia de “triunfo da reificação”.
No entanto, isso não tira o fato de que a obra Sociologia do romance apresenta
uma contradição que tem implicações teóricas importantes e por isso é
imprescindível questioná-las e criticá-las para então se avançar no
10
Goldmann estava longe [da Romênia]. Mas a visão do mundo e as categorias que ele
assimilou em Botoșani, especialmente aquelas do Ha-Shomer ha-Tsair (humanismo,
religiosidade secular, e socialismo vistos como a realização do individual-em-comunidade)
permaneceram com ele. Ou, mais precisamente, ele as reinventaria em várias formas durante
todos os trabalhos de sua vida, em sua insistência que uma “comunidade humana autêntica”
era a verdadeira preocupação do marxismo, e em sua crença de que o marxismo representava
uma aposta no futuro da humanidade semelhante à existência de Deus de Pascal.(COHEN,
1994, pp. 24-5)
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desenvolvimento de uma perspectiva mais rigorosa. A associação realizada
entre sociedade e literatura em Goldmann é necessária e traz elementos
interessantes, especialmente porque tem como fio condutor o fenômeno da
reificação, mas está longe de ser ausente de defeitos.
Considerações finais
Goldmann possui o mérito de conceber a literatura de um modo social,
apontando para uma perspectiva crítica na medida em que associa as mutações
do capitalismo e as consequentes diferenciações das manifestações literárias.
Demonstra-se como estes dois elementos são intrínsecos entre si. Além disso,
nosso autor também contribui para desmistificar a visão de arte sublime, como
se esta fosse completamente autônoma de qualquer esfera social. Apontar suas
contribuições, todavia, não significa isentá-lo de críticas.
Como vimos, uma das principais deficiências de sua concepção é que o
autor acaba recaindo naquilo que ele busca combater, a consciência reificada,
pois considera apenas as relações entre estruturas. Isso parece ser
consequência não apenas da sua inserção em uma sociedade marcada pelo
refluxo das lutas revolucionárias, como também de sua aderência parcial ao
estruturalismo (mesmo denominando-o de genético, isto é, histórico). Mas
isso já é assunto para um próximo texto.
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Como citar:
FERREIRA, Aline Cristina. As relações entre capitalismo e forma romanesca
em Lucien Goldmann. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências
Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 305-20 jul./dez. 2020.
Data do envio: 1 ago. 2020
Data do aceite: 20 out. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.571
Henrique Segall Nascimento Campos
321
A Profissão de fé do Vigário Saboiano
e a fundamentação do pensamento de Rousseau
Henrique Segall Nascimento Campos
1
Resumo: É sabido que Rousseau teria aberto debate os mais diversos, sobre
os mais diversos problemas em questão no seu tempo. Vemos o genebrino, por
conseguinte, questionar teses que reduziam as faculdades humanas à sensibi-
lidade física, a recusar o materialismo, preocupar-se com o funcionamento das
faculdades humanas subjetivas, rejeitar o otimismo de uma educação produ-
tora do homem e as consequências desta para o campo da moral e da política.
A partir desses indicativos, no presente artigo nos propomos explorar, com es-
pecial atenção, a Profissão de do Vigário Saboiano, acreditando, por isso,
que sua antropologia, por exemplo, passaria a ganhar contornos ainda mais
importantes e precisos, bem como as consequências para o campo da moral,
da política e da religião, se fossem organizadas em torno da busca por funda-
mentos teóricos, referentes, especificamente, aos pressupostos epistemológi-
cos envolvidos no processo de desenvolvimento do indivíduo e, em geral, refe-
rentes ao desenvolvimento de sua subjetividade. Nesse sentido, as “meditações
metafísicas” do Vigário Saboiano com a formulação do cogito, ao nosso ver,
fazem convergir o pensamento de Rousseau de modo geral, das quais o saber
sensível, a consciência, em respeito à natureza, funcionariam como elementos
decisivos para compreensão de seu esforço de fundamentação dos resultados
de suas principais pesquisas.
Palavras-chave: Fundamentos; conhecimento; sensibilidade; subjetividade.
The Profession of Faith of the Saboian Vicar and the foundation of
Rousseau's thought
Abstract: It is well known that Rousseau would have started several debates
over the most varied problems of his era. The Genevan, thus, could be seen
questioning theses like: the restriction of the human faculties to its physical
sensibility, the refuse of the materialism, the concern with the functioning of
the subjective human faculties, the rejection of the optimism of a productive
education and its consequences to the moral and political field. According to
this article, it is acknowledged the fact that both his anthropology theory would
1
Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da Faseh/Vespasiano-
MG. E-mail: henriquesegall@gmail.com.
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Henrique Segall Nascimento Campos
322
be more accurate and its consequences to the moral and political field would
be more structured if they were organized in terms of its theoretical back-
ground. Those findings would be more precise if based on the epistemological
assumptions of the subjective development of the individual being. Therefore,
the “metaphysical meditations” of the Vicar of Savoie when formulating its co-
gito, from our point of view, seems to converge the general thinking of Rous-
seau: the sensitive knowledge and the consciousness, related to nature, would
be key elements of understanding his efforts on establishing the grounds for
the main researches results.
Keywords: Theoretical grounds; knowledge; sensitivity; subjectivity.
Introdução
No presente trabalho nos debruçaremos sobre o livro IV de O Emílio no
qual aparece a fundamentação da filosofia de Rousseau. Isso é admitido, ao
nosso ver, a partir de um trabalho de justificação, do pensador genebrino, dos
saberes e da subjetividade do homem relativos à crítica a religião revelada. O
texto intitulado A profissão de do Vigário Saboiano
2
, localizado no livro IV
2
Parece que pelo seu teor, forma e conteúdo, muito se especulou e ainda se especula sobre as razões da
presença da Profissão de fé dentro da exposição geral de O Emílio. Essas especulações, talvez, tenham
surgido porque nunca, em outro lugar de sua obra, Rousseau se valeu de um modo de exposição do
pensamento em que a primeira pessoa fosse usada para fins tricos, ao lançar mão de uma personagem
que teria dito o que Rousseau pensava de fato. Verifica-se um estranhamento porque, além de outras
questões, o gênero do texto e a forma de exposição das ideias contidas diferem de sobremaneira do
modo com o qual trabalha Rousseau na redação das demais passagens e na composição geral da obra.
Por outro lado, que se destacar que a diferença de gênero textual, por si só, não configuraria uma
artificialidade de qualquer texto, que o próprio Emílio, como um todo, é entrecortado por formas
diversas de escrita: lições, narrativas, fábulas, ensaios. Todas essas formas, grosso modo, são
encontradas ao longo do texto e compõem, de uma maneira ampla, a estrutura formal e estilística, se
podemos dizer assim, do texto. Nesse sentido, pela razão da forma não existe justificativa para o
estranhamento e para achar que este trecho tenha sido inserido de modo abrupto dentro do livro IV de
O Emílio. quem diga, num outro âmbito, que o texto foi formulado e inserido por um propósito único:
responder ao sensualismo reducionista de Helvetius. De outra maneira, acreditamos que a razão da
redação desse texto e sua suposta inserção, na obra da qual faz parte, não se explica pela intenção de
dar resposta a um autor somente. O próprio Rousseau, em passagens discriminadas ao longo de sua
obra, indica o que pretendeu. Pode até ter querido se dirigir contra Helvetius. No entanto, o tema de um
suposto materialismo, ou de um sensualismo, não era praticado por Helvetius. O genebrino mesmo
o praticou num certo sentido e não o rejeitou de modo absoluto, tendo se aproximado, segundo alguns,
do sensualismo de Condillac, como pode ser identificado em passagens do livro II de O Emílio e ao
longo do Segundo discurso, nos quais estão indicadas a influência das sensações na formação do ideário
do homem no estado de natureza e de Emílio. Disse, ademais, em sua Carta a Christophe de Beaumont,
que o mal do texto em questão não seria chegar à vida sobre o duvidoso, uma vez que o bem se
encontraria na demonstração da verdade. De outro modo, com a passagem acima, pode-se perceber que
o debate sobre a religião é trazida à baila num contexto em que se discutem as condições a partir das
quais o pensamento sobre a religião e as condições de crença são abordadas. Nesse caso, associada à
rejeição do moderno materialismo, a Profissão de fé é marcada também pela temática religiosa e, de
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do referido estudo sobre educação, segundo seu próprio autor, contém elemen-
tos de acordo com os quais, também, são criticadas as teses sensualistas, ma-
terialistas e reducionistas do século XVIII (p. ex. a tese julgar é sentir de Hel-
vetius). Teria recorrido a este artifício, ainda, para consolidar sua posição filo-
sófica contrária à passividade da alma e para criticar o papel da religião oficial
na educação do cidadão.
Kuntz, ao criticar Cassirer, chegou a dizer que a política para Rousseau
seria o centro de gravidade da maioria de suas preocupações intelectuais, o que
não deixa de ser verdade face a presença constante dessa tópica ao longo de
seus textos filosóficos. Nem por isso, talvez, teria sido a política a única preo-
cupação do autor, ou o centro de gravidade de sua filosofia como um todo. Cas-
sirer chegou a afirmar que as formulações jurídicas de Rousseau teriam levado
o problema da salvação para fora da metafísica, privilegiando-o no interior da
ética e da política. Segundo o intérprete, ainda, a opinião do filósofo kantiano
"parece fundamentalmente incorreta, pois não como compreender nem a
ética, nem as soluções jurídicas de Rousseau sem uma referência à sua metafí-
sica” (KUNTZ, 2012, p. 67). Dito isso, nos parece de suma importância tratar-
mos do tema de uma possível "metafísica " no livro IV de O Emílio, com o in-
tuito de ressaltar em Rousseau, senão, a necessidade de fundamentação de seu
pensamento, seja em qual disciplina filosófica isso seja cabível, já que o termo
metafísica, dotado de campo semântico vastíssimo, pode gerar toda sorte de
equívocos teóricos. Como veremos mais abaixo, em passagens da referida me-
ditação filosófica, Rousseau, pela voz do Vigário sugere, na nossa visão, para
fugir dos dogmatismo dos partidos filosóficos e teológicos, mais uma “funda-
mentação do conhecimento”, com uma crítica do conhecimento, do que uma
“metafísica” para dar sustentação às teses morais, religiosas e políticas, por
mais que na composição do cogito estejam em questão temas da metafísica
acordo com isso, toda uma gama de teses e posições seriam examinadas. Do fato de estarem presentes
estas questões no alto do livro IV de O Emílio, por outro lado, não acreditamos serem elas abordadas
num contexto argumentativo equivocado ou incoerente com o que havia sido desenvolvido até então.
Talvez seja por isso que não vemos na Profissão de fé, e o possível problema de ter sido ela elaborada
fora do Emílio, como um problema que se deva levar em conta no pensamento de Rousseau. Inserir uma
passagem ou outra, de modo abrupto, se torna um problema se o que se coloca apresenta-se incoerente
com o pensamento do autor de um modo geral. Essa inserção, se ela foi abrupta, nos leva a dar ainda
mais crédito ao autor porque passamos a imaginar e olhar com bons olhos seu esforço intelectual para
defender seu pensamento e dar ainda mais sentido às teses defendidas até o momento. Esse problema
de ser autêntica ou não a inserção da Profissão de , em relação ao modo de exposição de seu
pensamento no Emílio como um todo, passa a ser para nós um falso problema. Isso acontece porque o
ponto de partida, então, para o estudo do texto em questão deve-se ao fato de que a religião tem no
Emílio uma abordagem antropológica e pedagógica - este texto inclusive assume em parte uma forma
semelhante àquela consagrada no Segundo discurso em comparação com o homem no estado de
natureza - quando Rousseau descreve a alteração gradual e qualitativa por que passa a criança quando
aprende algo valendo-se das faculdades e dos conteúdos com os quais trabalham estas mesmas
faculdades. O homem é levado a crer quando, por suas luzes, tiver condições para crer. Toda uma
dimensão espiritual, cognitiva, parece ser o ponto de partida de acordo com o qual Rousseau passa a
introduzir o problema da religião.
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tradicional, tais como Deus, alma, mundo.
Quando Rousseau redige a Profissão de fé e dá voz ao Vigário, e coloca-
a no meio do livro IV, o texto foi cercado e preparado por uma longa discussão
sobre a moral, o estágio da educação do Emílio adolescente, em que as paixões
sociais podem começar a fazer parte de si, e sobre a religião cuja origem pode
ter, de acordo com o estágio cognitivo do homem, uma dependência em relação
ao grau de relacionamento do homem com o mundo objetivo, suas necessida-
des, sua cultura, sua elaboração espiritual com as sensações as mais imediatas.
Se a posteriori a religião será objeto de investigação de Rousseau de modo mais
sistemático, isto só pode se dar quando houve cautela na introdução do ensino
religioso de Emílio, porque em fases anteriores de sua educação, exploradas ao
longo dos cinco livros de O Emílio, a educação sensível pode preparar o bom
uso do entendimento, dos juízos, no sentido de evitar que proposições irracio-
nais sejam responsáveis por arruinar uma crença com a qual a razão não po-
deria se associar. Numa passagem de ressonância pedagógica, Rousseau assim
se pronuncia sobre o tema:
Evitemos de anunciar a verdade àqueles que não estão em condição de
entendê-la, porque isso seria substituí-la pelo erro. Seria melhor não ter ne-
nhuma ideia da divindade do que ter dela ideias baixas, fantásticas, injuriosas,
indignas dela; seria um menor mal desconhecê-la do que ultrajá-la. /.../ Vimos
por qual caminho o espírito humano cultivado se aproxima desses mistérios e
eu concordarei voluntariamente que ele só chega até aí, naturalmente, no seio
da sociedade mesma numa idade mais avançada. Mas como na mesma so-
ciedade causas inevitáveis pelas quais o progresso das paixões é acelerado, se
acelerássemos da mesma forma o progresso das luzes que servem para regrar
estas paixões, então sairíamos verdadeiramente da ordem da natureza e o
equilíbrio estaria quebrado. (ROUSSEAU, v. 4, 1995, pp. 556-7)
Na esteira do que foi sugerido mais acima, nessas passagens vemos con-
firmar as razões de nossa suspeita. Ao nosso ver, a questão da religiosidade, a
crença em deus ou em qualquer outra divindade se passa por uma questão de
entendimento, de razão, pois um educando qualquer não conhece deus, porque
suas ideias tem um alcance limitado, pois a exigência de um tipo de pensa-
mento dessa natureza demanda uma abstração tal que os sentidos e as sensa-
ções produzidas, em determinado contexto prático e objetivo inclusive, são in-
capazes de fornecer. Desta feita, tanto as ideias de deus, potência, matéria e
espírito, tem, por isso, uma origem antropologicamente sustentada, porque se
encontra, para quem sobre estas noções elabora qualquer sentido, num deter-
minado grau de relacionamento com as coisas, e com as necessidades as quais
precisa satisfazer, vinculadas à uma produção ideal cujo referencial exclusivo
seriam as relações concretas, seja com as coisas, seja com seus pares. Deus, por
exemplo, poderia ser tão somente a expressão da diferença de potência entre o
indivíduo, a realidade objetiva constrangedora, ou até mesmo o pai, cujo poder
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prescritivo poderia sugerir a imagem de alguém poderoso acima de tudo e de
todos, no contexto familiar.
Emílio será educado em alguma religião qualquer necessariamente?
Será ele cristão? Será ele muçulmano? Rousseau admite que Emílio será edu-
cado na religião que teria condições de escolher, aquela segundo a qual a razão
é melhor empregada. Nesse sentido, a religião tem a função de ajudar a formar
os valores a partir dos quais o indivíduo vai agir e, por isso, consolidar sua po-
sição como agente em sociedade disposto a agir moralmente. Não faria sentido
ser crente numa religião cujo ordenamento escapasse do fiel, pois isso seria o
mesmo que condenar o mesmo fiel por uma fuga de seus preceitos quando os
ignora, porque não consegue alcançar suas imagens, seus ritos e suas regras.
Se uma religião fosse ensinada sem uma determinada preparação espiritual do
crente, do ponto de vista cognitivo, com um tipo de ideação abstrata o sufici-
ente para ser incompreensível, o mesmo fiel aderiria a uma crença por cons-
trangimento, por uma profunda falta de autonomia e por ignorância, ou seja,
estaria o fiel pronto para aceitar qualquer imagem, qualquer discurso, porque
sua alma não dispõe de defesas que o livrem do engano. A própria noção de
escolha, de levar Emílio a desejar no que acreditar, pretende compatibilizar a
clareza epistêmica das imagens religiosas espiritualmente compreendidas a se-
rem anunciadas, com o tipo de ordenamento que confere ao homem de a
chance de aderir-se livremente ao Deus sumamente bom que não permitiria
qualquer tipo de coerção
3
. Com isso, ficam vinculados, tua e coerentemente,
o momento do desenvolvimento educacional do aluno, com uma religião cuja
pretensão não pode levar ao homem a perverter ou alterar o curso natural de
sua formação. Antecipar certas regras, prescrever certas condutas, levar à
crença ilusória, teria o mesmo sentido da pré-maturação da qual pretende fugir
todo o propósito educacional de Rousseau com o qual trabalha, em especial,
com a prevenção do erro. Cabe-nos apontar, portanto, como a requisição de
uma educação religiosa e a necessidade de se apresentar uma religião que seja
Emílio capaz de praticar pode trazer à tona questões para a fundamentação
3
É importante dizer que dar chance ao indivíduo, em sua época de formação, de escolher uma
religião, quando foi preparada a alma desse mesmo indivíduo para que a razão não se dissocie
da crença é retirar qualquer possibilidade de coerção para a fé. Mas, ao mesmo tempo, com
isso, nos parece, a proposta feita aqui por Rousseau, como atestaram a recepção do Emílio em
geral e sua Profissão de em particular, foi revolucionária porque, fundamentalmente, era
uma proposta efetivamente exequível, e uma proposta que estabeleceria as bases para a secu-
larização, ao transferir para a esfera privada o lugar da escolha e prática da religião, sem que
qualquer intervenção de um poder religioso central pudesse se pronunciar. Na secularização
não existe uma religião em especial, exclusiva a qual os homens devem seguir, mas a religiosi-
dade privadamente cultivada pelo indivíduo, cujas bases se assentam a partir do que o indiví-
duo livremente considere fazer sentido, que seja razoável e que seja bom para si. Interferir na
consciência do homem de fé é trabalhar com o mesmo propósito da forma de governo absolu-
tista, no qual a consciência do súdito e/ou do fiel se submete à consciência do monarca, único
ser livremente consciente.
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filosófica. Se concepções de deus e a natureza fizerem parte das referências,
estão lançadas as pistas da modalidade de pensamento a qual buscamos em
Rousseau, por se tratar da expressão filosófica que consolidaria suas principais
teses.
1. A interioridade e o advento do cogito
Cabe agora debruçarmo-nos sobre o texto de Rousseau, Profissão de fé,
no sentido de extrair das passagens a argumentação de uma suposta "metafí-
sica" praticada pelo vigário (Rousseau) que pretende, dentre outras coisas, tra-
balhar com a fundamentação de seu pensamento, a sustentar a antropologia,
a moral, a política, a educação e a religião sobretudo. Preliminarmente, o dis-
curso proferido pelo Vigário destaca a precariedade do conhecimento humano
e que muitos filósofos recusaram-se a ignorar o que não se pode saber. Não
admitem o que não se pode conhecer e preferem usar para conhecer a desdi-
tosa imaginação, em detrimento da razão. Ainda que tenham condições de des-
cobrir a verdade, muitos deles não a buscam porque se apegam aos seus siste-
mas, porque os sistemas são defendidos propriamente, em nome da vaidade e
não da correção e da verdade. Alguns desses filósofos, em condições de desco-
brir o verdadeiro e o falso, preferem a mentira, defendem uma mentira por
vaidade, se a verdade tiver sido descoberta por outro. Impressionado com a
perfídia humana, limitou o vigário suas investigações àquilo que o interessava
de fato, a regozijar-se da ignorância de todo o resto e inquietar-se com a dúvida,
se ela o impedisse de conhecer o que era necessário e o que era útil. Consultou
dentro de si apenas a luz interior e fez dela seu guia como fonte de todo o pen-
sar, sem se orientar antes pela opinião alheia. Feito isso admitiria seu erro ser
apenas seu, ao invés de correr risco de partilhar de um erro alheio como seu.
Afastou de si o erro alheio, por adesão precipitada e constrangida, e limitou o
erro ao erro que surgia dentro de si. Dessa forma, o Vigário limita as chances
do erro, prevenindo-se quando se fecha à opinião alheia, ao consultar a honesta,
embora precária, luz interior solitária. A partir de então ele diz:
Levando comigo o amor à verdade como única filosofia e único método
uma regra fácil e simples que me dispensa da inutilidade dos argumentos,
retomo, com essa regra, o exame dos conhecimentos que me interessam, re-
solvido a admitir como evidentes todos aqueles os quais na sinceridade de meu
coração eu não poderia recusar meu consentimento, como verdadeiros todos
aqueles que me pareceriam ter uma ligação necessária com os primeiros e dei-
xar todos os outros na incerteza, sem rejeitá-los nem admiti-los e sem me ator-
mentar por esclarecê-los se eles não me levam à nada de útil para a prática.
(ROUSSEAU, v. 4, 1995, p. 570)
As primeiras meditações do vigário, como é possível notar, estão cheias
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de um estilo cartesiano de fazer filosofia. A necessidade de um exame da luz
natural, da subjetividade, a necessidade da prevenção contra o erro, o voltar-
se para si (a fala em primeira pessoa), o procurar fazer uma reforma do pensa-
mento praticado até então, prescindir das opiniões alheias duvidosas e, ainda,
estabelecer , não uma investigação apenas sobre o eu que pode conhecer, mas
sobre o conteúdo daquilo que há de ser conhecido. Praticará a filosofia da ver-
dade, cujo método é seguir a regra da sinceridade, a regra com estatuto não
epistêmico. Parece ter essa regra a função da dúvida, com critérios de clareza
e distinção, mas se vale da sinceridade, a qual, ao nosso ver, não guarda caráter
epistêmico, por mais que a proposta da meditação o indique, já que o exame se
pronuncia sobre o que se pode saber.
Pensamos, por outra via, que a sinceridade do coração pode ser o outro
nome dado à honestidade, dentro de uma orientação moral, não epistêmica
estritamente, pois, ao que tudo indica, o Vigário lança mão de uma chave afe-
tiva, para eliminar não possíveis saberes obscuros, mas as más intenções. An-
tes de ser uma regra da dúvida com uma proposta de fechamento ao indistinto,
a sinceridade não se fecha, mas realiza uma abertura, permite aquilo cuja ne-
cessidade e utilidade podem admitir como possível, pois o que se pretende não
é o pensar do conhecimento, mas o pensar do fazer prático-moral, ao serem
indicadas as condições do movimento e da ação. Tanto a regra do método da
sinceridade afetiva, quanto o resultado do saber que sobrevier à aceitação da
sinceridade, dado o assentimento, apontam para o que pode ser feito com
aquilo que se sabe. Mesmo aqueles saberes que ainda forem carentes de certeza
não são aceitos, nem rejeitados, mas suspensos pela utilidade prática que os
organiza, que os distingue, por serem eles sobreviventes ao uso do critério afe-
tivo. Desse modo, o procedimento de meditação e de exame desse eu, cuja re-
gra recai sobre a sinceridade afetiva, pretende dissociar qualquer conquista
epistêmica de uma identidade vazia, inútil, pretensiosa, ou vaidosa do saber
cuja verdade resultante pudesse servir para a decrepitude e o cio moral.
Tanto o saber quanto o fazer, nesse caso, são salvos de uma possível identidade
desvirtuada, pois o erro pode ser admitido sem o crivo de uma alma desonesta.
um desdobramento, portanto, moral deste método, porque o sentimento,
base da moralidade, como ponto de partida de uma moralidade, pode ser aci-
onado para garantir a clareza das necessidades de apreensão de determinado
conhecimento. Ocorre-nos que todo esse procedimento, cujas regras são deli-
mitadas pelo exame do sujeito não poderia se resumir a um contexto episte-
mológico apenas, as conquistas do Discurso sobre as ciências e as artes autori-
zam, porque não deve haver disjunção entre o saber e os benefícios do saber,
para quem sabe, ou para quem se beneficiará do sabido. A preocupação do
vigário com seu método é não obter uma verdade de um saber que se regozija,
mas ser honesto ainda que suscetível de erro. O que se quer não é evitar neces-
sária e primordialmente o erro, mas o vício, que ser mal é pior do que ser
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ignorante. Para isso, portanto, o homem de natureza é oferecido como a hipó-
tese exemplar.
Fixadas as regras de acordo com as quais pode-se pensar, admitir, recu-
sar e agir, o vigário busca investigar as condições do pensamento, sobre o que
se pode pensar e quem pode pensar, quando procura investigar o que se pensa.
O Vigário pronuncia-se assim:
Mas quem sou eu? Que direito tenho eu de julgar as coisas e o que de-
termina meus julgamentos? /.../ É preciso então voltar meus olhares para mim
para conhecer o instrumento do qual eu quero me servir e até que ponto con-
fiar em seu uso. Eu existo e tenho sentidos pelos quais sou afetado. Eis a pri-
meira verdade que me atinge e com a qual sou forçado a concordar. Tenho eu
um sentimento próprio de minha existência, ou só a sinto por meio de minhas
sensações? Eis a minha primeira dúvida que me é, até o presente, impossível
de resolver. que sendo continuamente afetado por minhas sensações, ou
imediatamente, ou pela memória, como posso saber se o sentimento do eu
[moi] é algo de fora dessas mesmas sensações e se ele pode ser independente
delas? (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 570-1)
Remetendo-se a uma busca interior, a pergunta pelo eu passa a ser, a
partir de então, o ponto em que se convergem as respostas às perguntas pela
existência, permitindo compreender, além das condições de conhecimento, do
uso das "ferramentas" a partir das quais se pode conhecer, aquilo que se pode
afirmar algo sobre si e sobre o mundo.
Ainda que a fala de desconfiança quanto ao uso, legitimidade e determi-
nação do juízo seja colocada em pauta, o que se pretende saber é quem [qui] é
o eu [le moi], tendo como ponto de partida o saber da coisa que não é o eu, que
parece ser indicado pela importância de uma resposta dada à segunda per-
gunta apresentada no trecho transcrito acima: a de se saber como são julgadas
as coisas, advindas objetivamente, segundo as informações das sensações. O
olhar do eu que se pergunta a si mesmo questiona os instrumentos a partir dos
quais é possível todo juízo, mas para isso admite, com a sinceridade que se
serviu de regra, a existência a partir do atributo da capacidade de sentir ". O eu
existe porque sente, logo o eu pode existir desde que seja capaz de ser afe-
tado e de valer-se dos sentidos. Desse modo, esse olhar que se volta a si, a per-
guntar a natureza e as condições do eu pode ser inteiramente reconhecido,
porque a primeira verdade que foi proferida pretende postular os sentidos,
portanto os instrumentos com os quais a projeção e a conexão com algo ex-
terno seja assumido. Diante disso, não cai o Vigário na tentação de um cogito
meramente solipsista, que reconhece os instrumentos com os quais admite
e reconhece o padecimento, a afetação e aquilo que, futuramente, pode ser re-
conhecido como aquilo que não é o eu, porque se abre a causalidades não ma-
nifestas apenas internamente. Feito isso, o eu não é simplesmente tomado
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como forma pura e substancial de pensamento, porque se abre para outros mo-
dos de ser que são marcados pela diferença com aquilo a partir do que são pro-
duzidas as sensações e toda a faculdade de sentir. Se a existência é marcada
pela afetação sensível, o eu afirma-se e identifica-se, preliminarmente, pelas
sensações as quais teriam condições de serem indicadas pelas diferenças per-
cebidas entre si, umas com as outras, cuja sensibilidade é capaz de fornecer
aquilo que está fora do eu. Mas o sentimento da existência ainda não é afir-
mado, nem se as sensações podem ser os feixes de informações a partir dos
quais é afirmada a "egoidade". Apenas o que foi reconhecido é o fato da exis-
tência do eu ser marcada pela condição de ser afetado e, com isso, acenar para
a origem não interna da sensação, que parece ser o conteúdo com o qual tra-
balha esta interioridade.
O passo seguinte a se afirmar, admitindo-se o contínuo de afetação sen-
sível, é, a partir de então, reconhecer o conteúdo do eu apenas se a sensação
imediatamente apresentada e a sensação relembrada são admitidas como sua
expressão. Nesse caso, até o presente momento de sua argumentação, os
sentidos e a capacidade de ser afetado foram apresentados como sendo cons-
titutivos desse eu, sem ainda afirmar o conteúdo desse eu e a causa formadora
das sensações. O Vigário diz que:
minhas sensações se passam em mim, porque elas me fazem sentir
a minha existência, mas sua causa me é estranha, posto que elas me
afetam ainda que eu não queira e que não depende de mim nem
produzi-las, nem anulá-las. Eu concebo, pois, claramente que minha
sensação que é eu [moi] e a sua causa ou seu objeto que está fora de
mim não são a mesma coisa. Assim, não somente eu existo, mas
existem outros seres, a saber: os objetos de minhas sensações, e
mesmo que esses objetos sejam apenas ideias, é sempre verdadeiro
que essas ideias não são eu [moi]. Ora, tudo o que sinto fora de mim
e que age sobre os meus sentidos eu chamo matéria e todas as
porções de matéria que eu concebo reunidos em seres individuais eu
os chamo de corpos. Dessa forma, todas as disputas entre idealistas
e materialistas não significam nada para mim; suas distinções sobre
a aparência e realidade dos corpos são quimeras (ROUSSEAU, v. 4,
IV, 1995, p. 571).
A partir do que foi destacado acima, o problema da identificação e da
definição do eu se porque a sensação pode conferir um lugar no qual ela
pode se expressar, no qual ela pode acontecer, num lugar que pode ser a
subjetividade. A metáfora espacial ajuda a entender o problema, porque a sen-
sação põe a necessidade de um receptáculo, de uma instância na qual seja aco-
lhida, ao mesmo tempo que se coloca como o meio a partir do qual a existência
do eu é admitida, porque esse não dispõe do poder de escolher não sentir. A
sensação, de um certo modo, e a capacidade de sentir também, impõe-se como
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algo que foge do controle daquele que sente. Nesses termos, ainda que a cau-
salidade das sensações seja desconhecida, a origem específica desta causali-
dade é admitida por um procedimento negativo, que se sabe e a regra da
sinceridade assegura a confiança do que se diz - que ela acontece mesmo que
o eu não queira, mesmo que o eu não seja responsável pela produção e extinção
de sua manifestação. A partir de então, da diferenciação do lugar em que a
sensação acontece e seu conteúdo originário (os objetos externos), por oposi-
ção, posto que não faz parte do eu extrair de si mesmo sensações, o eu é admi-
tido. A existência do eu é assegurada, resumidamente, a partir dos seguintes
passos argumentativos: i) o lugar, a interioridade, da manifestação das sensa-
ções; ii) as sensações como causa do sentimento de existência, porque a sensi-
bilidade é condição necessária para a identidade; iii) as sensações impõem-se
porque o eu é sensibilidade e não está no seu poder não sentir; iv) por oposição,
negativamente entendido, o eu é admitido porque as causas das sensações, o
conteúdo delas, não têm como causa uma expressão pura nesse eu, mas por
algo que pode vir de fora; v) se existe uma interioridade a partir da qual se
reconhece o eu, os objetos externos, por oposição, são admitidos, como conte-
údo das sensações. Ainda que sejam expressos apenas como ideias, por não
terem origem no eu, os objetos externos são reconhecidos. Desta feita, tudo
aquilo que atua sobre os sentidos, cuja origem sensorial seja apontada como
causalidade externa é chamado de matéria e o conjunto de sensações reunidas
comumente é reconhecido como corpos. Parece ficar claro, a partir desse
exame levado a cabo pelo Vigário, que ser um eu até o momento pode ser
admitido nos termos da sensibilidade. Se nada fosse possível sentir, nenhum
eu existiria. A sensação que se sente, num dado momento, inaugura o espaço
da interioridade porque ela acontece aí. Com isso, o lugar onde acontece a
sensação diferencia espacialmente, um lugar de dentro e um lugar de fora. A
sensação marca, então, o fato da diferença entre a informação do sentido e do
percebido e o estranhamento pela causação não interna. uma elaboração
da alma (ou do espírito) que permite o reconhecimento desse estranhamento,
com o qual apercebem-se todas as manifestações da sensibilidade. Das sensa-
ções são feitas associações pelo juízo, procedimento a partir do qual ocorrem a
atribuição e o reconhecimento do desigual, entre o eu e o não-eu, porque a de-
sigualdade originária da informação da sensação pode ser diferenciada por
esse procedimento que, em larga medida, funcionaria como um recurso lógico
da alma. A partir de então, o eu/dentro, por oposição ao não-eu/fora, realiza,
também, o reconhecimento de uma realidade com a qual o sujeito tem de se
relacionar para se afirmar. Na terminologia acima apresentada, ocorre a cer-
teza de que a matéria, ademais, se define na relação com o eu, que nada mais
é do que as informações que acontecem dentro, mas cuja origem informativa
pode ser admitida, negativamente, como aquilo que não vem de dentro, ori-
entada pela atividade de julgar. Vejamos ainda como Rousseau desenvolve
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mais o tema das sensações com o juízo:
Perceber é sentir; comparar é julgar: julgar e sentir não são a mesma
coisa. Pela sensação os objetos se oferecem a mim separados, isolados, tais
como eles são na natureza; pela comparação eu os reúno, eu os transporto, por
assim dizer, eu os coloco uns sobre os outros para pronunciar sobre sua dife-
rença ou sua semelhança e geralmente sobre todas as suas relações. Segundo
eu penso, a faculdade distintiva de um ser ativo e inteligente é poder dar um
sentido à palavra é. Eu procuro em vão no ser puramente sensitivo esta força
inteligente que superpõe e depois pronuncia, não saberia -la em sua natu-
reza. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 571)
Na passagem acima, o Vigário distingue dois procedimentos da alma, se
podemos dizer assim, o de sentir e o de julgar. Isso quer dizer que o conteúdo
com o qual trabalha a sensação é tomado diretamente, imediatamente, pelo
modo como são apresentados os objetos na natureza: separadamente. A expe-
riência sensível com a natureza não teria, imediatamente, qualquer contribui-
ção produtiva da alma. É a pura recepção de um dado informativo, com o qual
vai trabalhar posteriormente a função inteligente capaz de compor, atribuir re-
lação, associação e comparações a um dado que naturalmente pode não ter
essa conformidade ditada pelo julgamento. O ato de compor, associar, reunir
ou comparar é de outro nível, porque pode ser criador e, com isso, ser capaz de
indicar as verdadeiras relações dadas na objetividade. É capaz de ser coerente
com elas, ainda que possa, por essas funções, dar-se ao erro. Se a faculdade de
julgar é a inteligência, é ainda a inteligência que não é certa sempre como força
produtiva, porque mais do julgamento pode ser expresso do que a realidade da
sensação pode permitir. Com isso, podemos vislumbrar, a partir daqui, a pos-
sibilidade da experiência do erro. Por outro lado, se existe aqui um reconheci-
mento do modo como são apresentadas as informações apreendidas sensivel-
mente, naturalmente determinadas, quer dizer isoladas ou separadas, verifica-
se uma semelhança no plano epistêmico e do desenvolvimento do pensamento,
com o modo de ser do homem de natureza, no plano antropológico. Tanto o
homem como as sensações, naturalmente, são isolados. Nessa exposição do
Vigário, a antropologia rousseauísta, pelo menos naquela formulação do 2o
Discurso, e a epistemologia parecem ficar coerentes, pois o que uma indica,
sentir e pensar de modo imediato e estanque, a outra autoriza, que o homem
de natureza é firmado no isolamento e na relação direta com a realidade. Se-
gundo o genebrino, “tal foi a condição do homem ao nascer, tal fora a vida de
um animal limitado, inicialmente, às puras sensações, aproveitando com difi-
culdade os dons que lhe oferecia a natureza, longe de imaginar dela tirar algo,
mas tão logo as dificuldades se apresentaram era preciso aprender a vencê-las”
(ROUSSEAU, v. 3, 1989, p. 165). Ou seja,
errando nas florestas sem indústria, sem palavra, sem domicílio,
sem guerra e sem ligação, sem nenhuma necessidade de seus
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semelhantes assim como nenhum desejo de lhes prejudicar, talvez
até mesmo sem jamais reconhecer nenhum individualmente, o
homem selvagem sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo,
tinha apenas os sentimentos e as ideias próprias desse estado, que
sentia apenas suas verdadeiras necessidades, observava apenas
aquilo que acreditava ser interessante de se ver e que sua inteligência
não fazia mais progressos que sua vaidade (ROUSSEAU, v. 3, 1989,
pp. 159-60).
Um modo de vida, portanto, do homem de natureza pode se dar de
forma coerente se seu pensamento o acompanhar, nesse caso, a unidade em si
mesma do homem de natureza e seu modo de pensar, num plano de pensa-
mento limitado à percepção imediata, sem qualquer complexificação de facul-
dades, de memória ou de abstração, quando ainda não são elaboradas as con-
quistas próprias da alteridade social e do julgamento
4
.
Mais adiante o Vigário acrescenta: "Esse ser passivo sentirá cada objeto
separadamente, ou ainda, sentirá o objeto total formado pelos dois; não tendo
nenhuma força para dobrar um sobre o outro, ele não os comparará nunca,
nem os julgará" (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 571-2). A partir dessas pala-
vras existem, então, dois momentos em que o pensamento se dá, ou dois mo-
dos complementares com os quais se conhece: um passivo, o da sensação sen-
tida imediatamente, no sentido de ser a sensibilidade a capacidade de receber.
Não, por isso, se entende sensibilidade passiva no sentido de inativa, mas no
sentido de não ser capaz de produzir nada nem alterar nada. E um segundo
modo seria a capacidade de compor, ativa, que julga, no sentido de quem cria,
produz, altera, "perverte" e verifica as relações entre as sensações percebidas.
Nas passagens a seguir podemos ter a confirmação do que foi dito:
Ver dois objetos ao mesmo tempo não é ver suas relações, nem julgar
suas diferenças; perceber vários objetos uns fora dos outros não é enumerá-
los. /.../ Quando duas sensações a comparar são percebidas, sua impressão é
4
O homem, em seu estado original, basta-se a si próprio, ama-se a si mesmo satisfazendo as
necessidades de defesa, subsistência, sobrevivência e, ainda, comovendo-se com o sofrimento
alheio. Este ser se explica pelas leis da mecânica, porque tem força e pouca carência, que dirá
da carência do outro. Ao final do dia este ser adormece, no dia seguinte acorda e o se lembra
de quem foi no dia anterior, porque ele se esquece, porque não há a diferença dentro de si (o
outro). Nesse âmbito, o homem comporta-se num instante, num momento pontual. Como bem
salienta Goldschmidt “o homem selvagem resume nele toda a humanidade, porque ele é a uni-
dade numérica, o inteiro absoluto, que tem relação somente com ele mesmo e com seu seme-
lhante. Mas seu semelhante é ainda a humanidade inteira e, como ele, um universal abstrato”
(GOLDSHCMIDT, 1983, p. 378). Desse modo, num vel anterior à consciência de si, o eu é
simples, um universal simples no qual as diferenças não se acham. Conferir ainda passagem
análoga no texto do Emílio no qual o autor descreve a condição da criança: “Afirmo, pois, que
não sendo capazes de julgamento, as crianças não têm verdadeira memória. Retêm sons, figu-
ras, sensações, raramente ideias e mais raramente ainda as relações entre elas. /.../ Todo o seu
saber está na sensação, nada passa para o entendimento. Sua própria memória é pouca coisa
mais perfeita que suas outras faculdades, que quase sempre é preciso que reaprendam, ao
crescerem, as coisas cujos nomes aprenderam durante a infância.(ROUSSEAU, v. 4, II, 1995,
p. 345)
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feita, cada objeto é sentido, os dois são sentidos, mas sua relação não é, por
isso, sentida. Se o julgamento dessa relação fosse apenas uma sensação e me
viesse unicamente do objeto, meus julgamentos não me enganariam nunca,
porque nunca é falso que eu sinta o que sinto. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p.
572)
Afirmado isso, as sensações conferem apenas informações unitárias e
não fornecem por isso qualquer disposição para a comparação, são informa-
ções dadas sem qualquer preparação e elaboração por parte do espírito. Dessa
forma, ao que parece, não existe pela sensação qualquer informação sobre a
relação entre as impressões, uma vez que as impressões por si sós não dão a
noção de diferenciação. Quem faz o trabalho de diferenciar, equivocadamente
ou não, são os juízos, porque as informações sensíveis, se fossem suficientes
para o conhecimento, seriam sempre certas. Mas o problema está justamente
aqui: para conhecer não basta sentir, mas também saber das diferenças e dos
atributos que são mostrados pela ação (grifo nosso) do julgamento que se dis-
tancia do dado imediato ao mediatizá-lo. Sobre a capacidade de julgar ele rei-
tera:
Que se este ou aquele nome a esta força de meu espírito que
aproxima e compara minhas sensações: a qual damos o nome de
atenção, meditação, reflexão, ou como queiram; sempre é
verdadeiro que ela está em mim e não nas coisas, que sou eu que a
produz, ainda que eu a produza por ocasião da impressão que os
objetos fazem sobre mim. Sem ser senhor de sentir ou não sentir, eu
o sou de examinar mais ou menos o que eu sinto. (ROUSSEAU, v. 4,
IV, 1995, p. 573)
A partir de então pode-se entender um pouco melhor o status do juízo
em Rousseau, quando é identificado como capacidade produtora, ainda que
sua origem, ou a relação de determinação da sensibilidade com esse julga-
mento, mentalmente, seja pouco claro. O que parece ser mais claro é o fato de
o julgamento diferenciar as informações sensíveis estimulado pelos dados que
a sensibilidade fornece, o que não significa dizer que as sensações sejam, evi-
dentemente, causa do julgamento. É aceita como evidência, garantida pela re-
gra da sinceridade, o julgamento como força ativa, a qual se mostra no afasta-
mento do momento espontâneo sensível que o homem não tem o poder de re-
jeitar. Se não se pode rejeitar a sensação, cujo conteúdo é sempre o mesmo, o
ato que diz ser esse conteúdo relativo a um objeto ou a outro, certo ou errado,
é livre porque seu poder gera-se ativa e internamente, ou como queira, reati-
vamente, dada a estimulação sensível.
Embutido na discussão sobre a origem e função do juízo está o problema
da experiência do erro, pois uma vez identificada a inteligência com a capaci-
dade de julgar não se exclui a chance do engano, quando nos deparamos com
o ato livre de composição do espírito com a realidade sobre a qual esse ato pode
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ser propositivo. Manifesta-se a capacidade de julgar como instância espiritual
por meio da qual a atividade é posta, nem por isso a sua eficiência seria colo-
cada à toda prova, imune ao engano. Afinal, o momento em que o homem se
mostra na condição de senhor de si, e do seu entorno, ocorre quando ele ganha
o poder de diferenciar aquilo que o afeta, ou seja, a distinção entre o aspecto
formal da sensação e aquilo que ela é. Deve-se comparar, então, o conteúdo da
sensação com a causalidade não interna da sensação, a partir da qual ela pode
ser reconhecida. Para tanto, o poder de reflexão e identificação da origem da
sensação entra em ação porque ocorre apenas internamente. Em outro trecho,
dando seguimento a essa discussão, o autor assim conclui:
Não sou, então, simplesmente um ser sensitivo e passivo, mas um ser
ativo e inteligente; qualquer coisa que disserem da filosofia, ousarei pretender
a honra de pensar. Eu sei somente que a verdade está nas coisas e não em meu
espírito que as julga, e quanto menos eu colocar de meu nos julgamentos que
faço sobre elas, mais estou certo de aproximar-me da verdade; assim minha
regra de me entregar ao sentimento mais que à razão é confirmada pela razão
mesma. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 573)
A partir de então reafirma-se uma dupla dimensão cognitiva: i) uma
passiva cuja origem é dada pela natureza, uma vez que o poder de sentir e não
sentir não é adventício, mas dado imediatamente, porque as sensações são,
formalmente, sempre as mesmas e as informações sensíveis nos são dadas sem
qualquer alteração; ii) e uma dimensão ativa, pois o que se altera não são as
coisas, ou a sensação das coisas, mas a relação que se estabelece entre o sujeito
que conhece e as coisas. Num certo nível cognitivo, na natureza por exemplo,
quando inexiste a intervenção do juízo, as sensações têm uma relação formal
com o que ocorre efetivamente no mundo das coisas. Elas são expressão de
uma realidade para um sujeito que se comporta como se fosse possível um lu-
gar sem tempo, um mundo sem história, onde tudo é afirmado numa eterna
“mesmidade”. o juízo, a capacidade e função do homem que pensa racional-
mente, permite o engano, permite por isso a alteração, permite o engano e per-
mite o outro, o conhecimento de si como um outro, que a atribuição de ca-
racterísticas, propriedades, adjetivos, ocorrem na vigência de uma função
como a do juízo. Por isso, nos dizeres do Vigário, a verdade seria alcançada
quanto menos de si, quanto menos do que cada um "acha", opina, ou crê do
mundo interviesse como assentimento. Isso não quer dizer que todo juízo,
qualquer juízo porque pode expressar e marcar a diferença, possa ser encarado
como falso, mas que da capacidade de julgar nasce a possibilidade do erro,
posto que a natureza dada não erra. Comparada a um olho nu, ingênuo, talvez,
as impressões sensíveis imediatas são sempre certas, porque estão fora da es-
fera do registro, do campo epistemológico que se desloca do falso ao verdadeiro,
já que a necessidade de sobre elas intervir e sobre elas se diferenciar ocorre, e
a antropologia nos indica, com os seres humanos em dado estágio de seu
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desenvolvimento sócio-histórico.
Observando a argumentação do Vigário sobre o tema, não entendemos
que seja o julgamento um problema, como um sinal de lamentação pela capa-
cidade humana de conhecer; ao contrário, observa-se no recurso do julga-
mento o poder de diferenciação e de distanciamento da unidade numérica, do
inteiro absoluto, do universal abstrato de um homem no estado puro de natu-
reza, ou com os limites cognitivos da experiência sensível imediata no qual to-
dos os dias, todos os pensamentos, todas as coisas padecem, fixadas num
eterno presente, num tempo sem memória, sem futuro, sem amanhã, como se
as conquistas, ganhos e criações humanas tivessem de ser, sempre, relembra-
das em todo alvorecer.
Nesse contexto, nota-se a fixação de um cogito, com as funções por meio
das quais o eu pode ser pensado, ter consciência de si, pensar o que não está
em si. Já a regra do sentimento (a sinceridade, a honestidade, ou como quiser,
o bom senso), é evocada, é assegurada não porque serviu de escrutínio a cada
uma das etapas de constituição dessa interioridade, mas porque foi demons-
trado, numa estratégia argumentativa negativa, a falibilidade do procedimento
racional de conhecer quando associado ao juízo. O Bom Senso, portanto, indica
ser mais correto afirmar a incapacidade humana de conhecer verdadeira e se-
guramente a partir de sua capacidade de julgar, do que nela confiar leviana-
mente sem qualquer expectativa ou garantia de evidência. Por outro lado, a
confiança que se tem no sentimento não ocorre porque o sentimento é em si
mesmo seguro, correto, infalível, mas porque a razão
5
é falha e porque no sen-
timento se identifica o critério de diferenciação do conhecimento que pode ser
(grifo nosso) falho, ou digno de desconfiança. Afirma-se o sentimento porque
se desconfia da razão, pois é mais razoável não ser totalmente racional, não
confiar exclusivamente no juízo, mas ser verdadeiro na admissão do erro e ser,
por isso, honesto. Ocorre, aqui, em suma, o uso de uma "regra" do plano moral
para orientar exames epistemológicos com objetivos morais, que por meio
dela, ocorre a abertura para a localização dos problemas, da precipitação, das
antecipações e das perversões do relacionamento humano intersubjetivo e,
5
Para melhor compreensão da relação que se estabelece entre as distintas faculdades da alma
em Rousseau, ou como a razão relaciona-se com o sentimento sugerimos observar o texto de
Robert Derathé, Le rationalisme de J. J Rousseau. Entendemos que, por se tratar de um sen-
timento e no contexto da Profissão de estar associado a uma regra de inspeção do pensa-
mento para o estabelecimento de um cogito, seria importante detalharmos mais seu funciona-
mento ao buscarmos como ele se associa com as informações tratadas pelo juízo. Para tanto,
uma distinção entre sentimentos e sensações deve ser conhecida. Com relação a esse tema é
importante observar a distinção que Rousseau faz no seu Notes sur De esprit de Helvetius.
Nossa suspeita parece apontar para o fato de que existe, para a regulamentação do sentimento
e sua expressão no âmbito da chamada consciência moral, a necessidade da informação sensí-
vel pela sensação associada à capacidade de julgar, para que o sentimento diga se aquilo que
se conhece é bom ou ruim, verdadeiro ou falso, honesto ou desonesto, e o homem poder agir
na relação de si com as coisas e com outros homens.
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ainda, caso seja realizável, a prevenção destes problemas.
2. O cogito e o mundo exterior
A partir de então, assentado o cogito, marcados os contornos desse eu
pensante sensivelmente determinado, parte-se para a reflexão do mundo exte-
rior
6
, parte-se para as definições do que se entende ser a realidade objetiva,
fora e estranha ao eu sinto/penso. Assim o Vigário manifesta-se:
Tudo o que eu percebo pelos sentidos é matéria e eu deduzo todas as
propriedades essenciais da matéria das qualidades sensíveis que me fazem per-
cebê-la e que são inseparáveis dela. Eu a vejo ora em movimento, ora em re-
pouso, donde eu infiro que nem o repouso, nem o movimento lhe são essenci-
ais; mas o movimento sendo uma ação é um efeito de uma causa cujo repouso
é somente a ausência. Quando, então, nada age sobre a matéria, ela não se
move e por ela mesma é indiferente ao repouso ou ao movimento, seu estado
natural é de estar em repouso. Eu percebo nos corpos dois tipos de movimento,
a saber: movimento comunicado e movimento espontâneo ou voluntário. No
primeiro, a causa motriz é estranha ao corpo movido, e no segundo ela está
nele mesmo: eu não concluirei daí que o movimento de um relógio seja espon-
tâneo, pois se nada estranho à mola agisse sobre ela, ela não tenderia a se en-
direitar e não puxaria a corrente. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 573-4)
A partir do que foi dito nesse longo e importante trecho podemos ter
uma baliza do que o Vigário pensa sobre matéria e movimento porque: i) as
propriedades da matéria, em primeiro lugar, são reconhecidas pelos sentidos,
pelas sensações; ii) estas propriedades essenciais são qualidades sensíveis que
se apresentam inseparáveis da matéria percebida, pois todas as vezes que se
percebe um dado externo, tem-se uma propriedade, um atributo correlato que
acompanha a sensação de algo que advém de fora; iii) por experiência, ou me-
lhor, por experiência reiterada, infere-se que o movimento, sendo ocasionado,
ora ocorre na matéria, ora não, o que permite a conclusão, por generalização,
de que o movimento não faz parte das propriedades sensíveis da matéria, por-
6
Conferir o trecho a seguir, no qual aparece explicitamente a transição da argumentação,
quando o vigário parte do cogito para discutir a relação do eu penso/sinto com o mundo exte-
rior. “Tendo-me por assim dizer, assegurado de mim mesmo, começo a olhar para fora de mim,
e considero-me com uma espécie de frêmito, jogado, perdido neste vasto universo e como que
afogado na imensidão dos seres, sem nada saber sobre o que eles são, nem entre eles, nem
relativamente a mim. Estudo-os e observo-os, e o primeiro objeto que se apresenta a mim para
compará-los sou eu mesmo.” (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 573) O começo do exame do
mundo exterior, uma vez admitida as condições de conhecimento a partir do eu penso e o co-
nhecimento do próprio eu, permite, por comparação, por relação, por julgamento, colocar o
eu pensante como o par da diferenciação, da comparação, da relação a partir da qual o conhe-
cimento objetivo é admissível.
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que não é sempre que o movimento é percebido na matéria; iv) a crença assu-
mida, ao nosso ver, segundo a regra do sentimento ou do bom senso, de acordo
com a qual o assentimento
7
é dado ao movimento por ser resultado de uma
atividade, efeito de uma ação, o efeito de uma causa originária desconhecida,
mas pressuposta. Isso é dito porque se não houvesse essa atividade, haveria,
admitindo-se apenas a ocorrência do repouso, a ausência de movimento. Nesse
sentido, retira-se da substância material o movimento como atributo essencial,
com base na definição de repouso como ausência de movimento, que, por sua
vez, é gerado e ocasionado sobre a matéria externamente; v) a aceitação de dois
tipos de movimento, cuja diferenciação passa a ser definida pelo agente origi-
nário, ou responsável pela geração do movimento. Ou seja, se o movimento foi
ocasionado por um ser a gerar um efeito de uma causa, externamente, ou se
existe um ser do qual o movimento é gerado por si mesmo. Marcada essa dife-
renciação, abre-se caminho para se pensar a noção de passividade e atividade
geradora do movimento e, ainda, a noção de responsabilidade pelo movimento
e, decorrência disso, a noção de liberdade do agente por ser capaz de, volunta-
riamente
8
, gerar o movimento por si mesmo, sem o concurso de algo que lhe
seja estranho.
O que se viu até aqui foi toda uma argumentação orientada para retirar
7
Na nota apresentada por Rousseau no pé da gina aparece uma digressão sobre o assunto,
matéria e movimento, que pode ajudar a esclarecer ainda mais o raciocínio: Esse repouso
nada mais é, se quiserem, do que relativo; mas já que observamos o mais e o menos no movi-
mento, concebemos muito claramente um desses dois termos extremos que é o repouso e nós
o concebemos tão bem que somos inclinados mesmo a tomá-lo como absoluto o repouso que
é apenas relativo. Ora, não é verdadeiro que o movimento seja essencial à matéria, se ela pode
ser concebida em repouso.” (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 574) Dissemos mais acima que
poderia ser mais esclarecedor esta nota do autor porque o raciocínio, a explicação da ausência
de movimento na matéria, causa espanto por ser simples demais. Em linhas gerais, o vigário
pensa que à matéria não se atribui movimento porque ela é percebida em repouso, a partir da
informação com a experiência reiterada. Se há repouso, assim como o intervalo do movimento,
em relação àquilo a partir do qual houve movimento, é porque admite-se, por generalização, o
que o bom senso recomenda ser plausível, ou seja, assumir como inessencial o movimento na
matéria. Em suma, o que sobreviveu ao bom senso, à regra do sentimento, foi a plausibilidade,
apenas, da matéria não ter movimento, por experiência.
8
O Vigário admite nas passagens que se seguem do texto da Profissão de , a origem volun-
tária do movimento, o caráter ativo daquele que realiza o movimento, próprio daquele que
pensa e é consciente. Ao aceitar isso, a regra do sentimento entra em ão, pois o que é pro-
blemático do ponto de vista da justificação em termos estritamente racionais, passa a ser au-
torizado pelo sentimento, pela sinceridade, que é plausível, até autoevidente, o fato de o
movimento advir do querer, mexer um braço por exemplo, e ser originalmente espontâneo.
Não seria necessário, e seria até um absurdo, acionar todo um aparato racional e justificador
para dar assentimento ao movimento voluntário cuja origem se localiza no pensamento
mesmo num ato de vontade simples. Vejamos como ele se pronuncia especificamente a res-
peito disso: Vós me perguntais ainda como eu sei que movimento espontâneo; eu vos
direi que eu sei porque eu sinto. Eu quero mexer meu braço e eu o mexo, sem que o movimento
tenha outra causa imediata que minha vontade. É em vão que eu queira raciocinar para
destruir em mim esse sentimento; ele é mais forte do que toda evidência; portanto seria pro-
var a mim que eu não existo”. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 574)
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da matéria, ou do mundo material sensivelmente percebido, qualquer respon-
sabilidade e autoridade criadora do movimento. Se dois tipos de movimento
existem, o produzido e o comunicado, a matéria inanimada (uma molécula por
exemplo) não pode extrair movimento de sua natureza e dar-se a si mesma um
princípio de ação, pode no mais é receber a ação provocada por outrem e, como
consequência, ser movida. Não o Vigário qualquer capacidade autogeradora
da matéria de produzir em si e por si o movimento sem que algo lhe provoque
esse efeito. Isso é pensado porque a tarefa do Vigário é provar, ante a passivi-
dade material, o agente ou o princípio causador do movimento por produção.
Dessa maneira, ele indica, ou assinala a necessidade de uma outra instância, a
espiritual, marcada pela vontade como princípio cujo sinal é a responsabili-
dade, a partir da qual toda ação, ou efeito, se desenrola. Segundo o Vigário,
as primeiras causas do movimento não estão na matéria, ela recebe
o movimento e o comunica, mas ela não o produz (grifo nosso). /.../
Em uma palavra, todo o movimento que não é produzido por um
outro pode vir apenas de um ato espontâneo, voluntário; os corpos
inanimados agem somente pelo movimento e não há verdadeira
ação sem vontade. Eis o meu primeiro princípio. Eu creio que uma
vontade move o universo e anima a natureza. Eis o meu primeiro
dogma, ou meu primeiro artigo de fé. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p.
576)
Como a experiência o indica e o sentimento de sinceridade o confirma,
aparece o primeiro artigo de fé, que reza a crença na espiritualidade da vontade
como princípio do movimento e causa do mundo natural, sem que se tenham
provas, por outro lado, como isso seja feito, ou transmitido. Sabe-se que isso é
feito porque a experiência ordinária o indica, de modo autoevidente, a corre-
lação entre o querer, a responsabilidade, o início de qualquer ação e o movi-
mento compreendido como um efeito do querer. Se a vontade é conhecida pe-
los efeitos, a regressão indica, do efeito para causa, a atividade espiritual da
vontade atuando sobre a receptividade da matéria. Não há, portanto, ação cau-
sada sem vontade causadora. O raciocínio pode ser assim resumido: i) se o que
se conhece do movimento dos corpos são seus efeitos, se a matéria pode ser
concebida também em repouso, o faz parte da definição material o movi-
mento, apenas a sua comunicação, posto que a responsabilidade e origem do
movimento é atividade, ou espontaneidade; ii) a experiência ordinária
9
atesta
9
“Como uma vontade produz uma ação física e corporal? Não sei, mas experimento em mim
que ela produz. Quero agir e eu ajo; quero mover meu corpo e meu corpo se move, mas que
um corpo inanimado e em repouso venha a se mover por si mesmo ou produza o movimento
isso é incompreensível e sem exemplo. A vontade me é conhecida por seus atos, não por sua
natureza. Eu conheço essa vontade como causa motora, mas conceber a matéria produtora do
movimento é claramente conceber um efeito sem causa, é não conceber absolutamente nada.”
(ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 576) As consequências desse primeiro artigo de fé podem ser
vislumbradas a partir dessa noção de que existe uma vontade que governa as ações da natureza
e do universo quando: i) que toda ação verdadeira é voluntária e isso implica deter o poder de
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a relação entre vontade e origem do movimento, iii) logo a vontade anima a
matéria e é ela o princípio de qualquer movimento. Em suma, a vontade
10
é o
atributo espiritual ativo e produtor e a matéria passiva, porque é receptividade
e não causa a si mesma qualquer movimento.
Diante disso, colocada a vontade como causalidade, ela pode ainda ser
entendida enquanto uma fonte de expressão, como se fosse a manifestação de
um discurso, de um ordenamento, de um propósito, de uma intenção, sem a
qual nada no mundo se explica, ou pelo menos nada no mundo natural ani-
mado seria possível, nem que qualquer ser inanimado seja pensado, ainda que
de forma caótica. Dizer, portanto, que a matéria é movida por uma vontade
significa localizar uma origem desse movimento e, ainda, o propósito desse
movimento, sem o qual não haveria razão, sentido e ficaria incompreensível a
apresentação das porções mais íntimas de matéria, relacionando-as umas com
as outras e chocando-se umas com as outras. Algumas questões a partir desse
raciocínio podem ser levantadas: afinal, se a matéria é movida, existe sentido
ou direção nesse movimento? Existem tipos de movimento? Translação? Quer
dizer,
se cada molécula de matéria tem sua direção particular, quais serão as
causas de todas essas direções e de todas essas diferenças? Se cada átomo ou
molécula de matéria girasse apenas sobre seu próprio centro, jamais sairia de
seu lugar e não haveria movimento comunicado, ainda assim seria preciso que
esse movimento circular fosse determinado em algum sentido (ROUSSEAU, v.
4, IV, 1995, pp. 577-8).
A ideia, portanto, de indicar a origem do movimento pela vontade fora
da matéria, e a matéria ser com isso, "morta", porque não gera por si movi-
mento, mostra o estatuto que a vontade tem, a de conferir intencionalidade à
realidade objetiva. Se a vontade põe esse desígnio, coloca então o sentido, uma
direção, uma forma a partir da qual a realidade deve (grifo nosso) apresentar-
se. Esse propósito pode ser identificado, portanto, pela manifestação do movi-
mento por meio da qual os seres, ou porções dos seres, sejam eles átomos ou
moléculas, chocam-se, ou relacionam-se. Se os átomos, moléculas ou seres re-
lacionam-se, a manifestação dessa relação mostra não o porquê de isso acon-
tecer, mas da existência tanto de um movimento comunicado, então a capaci-
dade de transmitir movimento se dar na matéria, quanto o sentido que essa
transmissão adquire. Ou seja, ainda que a aparente aleatoriedade dos choques
agir ou de não agir; ii) disso resulta que todo agente de vontade se responsabiliza por aquilo
que quer; iii) se existe ação espontânea porque vontade, existe a dimensão espiritual, do
pensamento.
10
Vale a pena destacar que o motivo que leva o vigário a reconhecer o movimento ser gerado
por um ato de vontade passa pela sensação ocasionada no eu penso por uma intenção de mo-
vimento espontânea. Isso irá permitir, posteriormente, definir o autor do ato de criação do
mundo, deus. Será provado, a partir do cogito, o ato de vontade criadora de deus, garantido
pela evidência do sentimento ocasionado no cogito, por associação e semelhança.
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ou dos encontros sejam percebidos e não se possa, de imediato e como um todo,
captar todas as relações as quais as porções de matéria estabelecem, isso sig-
nifica ser possível compreender não o propósito originário de tudo isso, mas a
existência de uma intenção que orienta os seres como um todo. Com isso, se a
intenção pode ser percebida (grifo nosso), é admitida alguma racionalidade ou
alguma inteligência que emana por um ato de vontade e dirige os seres no
mundo natural de modo geral. Reconhecidos então, desta feita, tanto a origem
do movimento pela vontade, quanto o sentido que este movimento adquire
pela interação diversa das porções mais diminutas dos entes materiais, o Vigá-
rio afirma seu segundo artigo de fé: "se a matéria é movida segundo uma von-
tade, matéria movida segundo certas leis me mostra uma inteligência" (ROUS-
SEAU, v. 4, IV, 1995, p. 578).
Com isso, algumas consequências podem ser depreendidas destes dois
atos de até aqui apresentados: i) a matéria é passiva, não é ativa; ii) o caos,
a aleatoriedade das relações entre os seres, é inteligível porque existem senti-
dos que dirigem os fenômenos particulares; iii) o Vigário, por isso, entende que
a harmonia pode ser compreendida porque o homem, sendo inteligente, sendo
dotado de razão, ainda que sua razão seja limitada, é capaz de explicar os pro-
pósitos pelos efeitos dessa inteligência que governa o mundo. Não se compre-
ende, pelo limite dessa razão, a finalidade última que orienta o universo, ou o
porquê da origem do mundo, ou todos os propósitos que unificam a relação
entre os seres, mas das relações se depreende a existência de uma regra. Essa
regra, ou ordem é identificada quando o eu que julga a realidade sensível per-
cebe e compara partes da realidade, dimensões dos seres e as próprias relações
entre os seres. O que o juízo
11
alcança pela percepção - a partir do eu penso
estabelecido pelo caminho à interioridade pela pesquisa do Vigário - é a racio-
nalidade, as regras existentes na relação dos seres, pela interdependência deles,
ao passo que o sentimento o assentimento seguro quanto à existência de um
ser cuja vontade reguladora, a inteligência, governa o mundo. Esse propósito,
sua ordem, a vontade e o ser a ela relativo explica-se, intuído sensivelmente,
retroativamente, dos efeitos às causas; iv) pode-se dizer, ainda, que não existe
11
"Eu julgo a ordem do mundo, ainda que eu ignore seu fim, porque para julgar esta ordem me
é suficiente comparar as partes entre si, estudar seu concurso, suas relações, de observar o
concerto entre elas. Eu ignoro por que o universo existe, mas eu não deixo de ver como ele é
modificado, eu não deixo de perceber a íntima correspondência pela qual os seres que o com-
põem se prestam socorro mútuo. Eu sou como um homem que visse pela primeira vez um
relógio aberto e que não deixou de admirar a obra ainda que não conheça o uso da máquina e
que não tivesse visto o mostrador. Não sei, diria ele, por que tudo se serve, mas eu vejo que
cada peça é feita para as outras (grifo nosso), admiro o artista no detalhe de sua obra e eu
estou certo que todas as engrenagens funcionam assim em harmonia para uma finalidade
comum que me é impossível de perceber." (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 578) Aqui neste tre-
cho fica ainda mais evidente o caráter inusitado da argumentação, ou seja, do fato de relações
entre as coisas serem perceptíveis é permitido supor uma racionalidade e uma organização
específica ao mundo físico.
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causalidade da matéria
12
porque a partir dela mesma não existe harmonia, por-
que a partir dela mesma não se encontra o motivo que explica a interdepen-
dência mútua entre os seres (o Vigário usa o exemplo das peças de um relógio),
pois, graças às relações entre os seres, por fim, é que se depreende uma racio-
nalidade no mundo natural. Ao nosso ver, supor a chamada inteligência dire-
tora da realidade sensível permite retirar da matéria qualquer possibilidade de
produzir seres inteligentes. Isso significa, por um lado, desqualificar a termi-
nologia metafísica tradicional e, por um outro lado, permite atacar o fatalismo
material de um Diderot, por exemplo. Em seguida o Vigário resume:
Eu creio, então, que o mundo é governado por uma vontade poderosa e
sábia; eu o vejo, ou melhor, eu o sinto, e isso é o que me importa saber: mas
esse mundo é eterno ou criado? Há um princípio único das coisas? Ou haverá
dois ou mais, e qual é a natureza deles? Eu não sei nada disso, e o que me im-
porta? À medida que esses conhecimentos tornam-se a mim interessantes, eu
me esforçarei para adquiri-los; até eu renuncio às questões ociosas que po-
dem inquietar meu amor-próprio, mas que são inúteis à minha conduta e su-
periores à minha razão. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 580-1)
A afirmação feita acima da vontade inteligente ocorre por um senti-
mento, porque as funções da razão utilizadas para dizer qualquer coisa sobre a
realidade (percepção, comparação, abstração, juízo) limitam-se a afirmar o
percebido, orientado dentro de uma experiência possível. Esta pressuposição,
a entificação de uma vontade sábia, supera a capacidade humana racional,
feito o uso destas "ferramentas". O Vigário lança mão da crença, amparada
num tipo de "intuição" do sentimento, porque esse sentimento tem em sua
função o fato de ser critério, de ser a regra segundo a honestidade, a sinceri-
dade, a qual orienta a atividade intelectual cujos desdobramentos superam
questões epistêmicas apenas, ao orientar-se, também, por direcionamentos
éticos.
Os procedimentos racionais trabalham com comparações e, por meio
delas, a possibilidade do juízo, pois noções de igualdade e diversidade re-
sultantes dessas comparações podem ser atribuídas à informação retirada da
sensibilidade, que relações entre os seres podem ser notadas. O cogito isso é
capaz de perceber, mas, num outro âmbito, não é capaz de perceber o autor
supremo do mundo. Então, como é possível afirmar a existência do autor dessa
12
"Quantas absurdas suposições para deduzir toda essa harmonia do cego mecanismo da ma-
téria movida fortuitamente! Aqueles que negam a unidade de intenção que se manifesta nas
relações de todas as partes desse grande todo fazem bem cobrir suas galimatias de abstrações,
de coordenações, de princípios gerais, de termos emblemáticos; o que quer que façam, me é
impossível conceber um sistema de seres tão constantemente ordenados, que eu não conceba
uma inteligência que o ordene. Não depende de mim crer que a matéria passiva e morta tenha
podido produzir seres viventes e sensientes, que uma fatalidade cega tenha podido produzir
seres inteligentes, que o que não pensa tenha podido produzir seres que pensam." (ROUS-
SEAU, v. 4, IV, 1995, p. 580)
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obra? Por meio da crença regrada pelo sentimento de transparência e sinceri-
dade, porque a afirmação de vontade inteligente pela via sentimental é sufici-
entemente admissível, respeitados os limites da razão, quando o eu do cogito
deixa de afirmar as fantasmagorias da metafísica tradicional, que só aumen-
tam a perfídia humana, ao incorrer na leviandade de afirmar algo que o está
em condições de dizer. Nesse caso, o sentimento como regra
13
garante a licença
ao Vigário, quando ele passa a poder afirmar, mesmo que não disponha da evi-
dência, a vontade suprema. Essa licença é a autorização para afirmar algo que
supera possíveis precipitações racionais, mas que se orienta pela sinceridade
de quem não quer ser enganoso e quem não quer afirmar aquilo que sua razão
não tem condições de dizer.
Num certo sentido, um "ceticismo mitigado" aparece nas palavras do
Vigário quando os limites da razão são evocados para marcar a dificuldade que
a razão tem de afirmar algo muito além de sua capacidade, ainda que em outro
sentido existam condições para que a sinceridade do sentimento possa supor
a vontade inteligente. Proferir aquilo que a razão não pode provar é manifestar
uma mentira, sugerir o falso, ser desonesto, precipitado, quando o que se pro-
cura são indícios sobre os quais o bom senso e a sinceridade possam garantir
a vontade inteligente, no campo da fé. Nesses termos, a partir de então, dois
problemas parecem ter sido tratados até agora: a necessidade de afirmar, de
um lado, a vontade inteligente que ordena o mundo e, de outro, o modo como
isso é garantido, em suma, pela delimitação do alcance da razão, e pela atuação
do sentimento em sua transparência. Com isso, salta aos olhos toda uma dis-
cussão a partir da fonte de conhecimento com as quais trabalha o Vigário, to-
das as suas "ferramentas" de consulta por meio das quais pode crer
14
no que
13
No sentido de garantir uma conciliação dessa problemática com o racionalismo, Derathé
sugere: "Não poderíamos louvar o bastante M. Beaulavon por ter mostrado que em Rousseau
não há uma oposição, mas uma constante colaboração do sentimento e da razão. Mas nós não
estamos certos que esta colaboração se faça unicamente no sentido que ele indica, a razão es-
clarecendo o sentimento. O pensamento profundo de Rousseau será mais que não há uma ra-
zão em um coração corrompido e que a consciência ela mesma deve servir de princípio ou
de regra para a razão que, sem este guia, arrisca-se de vagar de erro em erro e de engendrar os
piores sofismas. Neste sentido a pureza do coração seria a condição da reta razão." (DERATHÉ,
1995, p. 7)
14
Na identificação que faz o vigário, da vontade inteligente com deus, é dito: "Lembre sempre
que eu não ensino meu sentimento, eu o exponho." (v. 4, IV, 1995, p. 581) Quer dizer que a
exposição do sentimento funciona num outro registro daquele da demonstração racional. Exi-
gem-se da razão, aqui em especial, sobre seres e características de seres dos quais não se tem
experiência, provas as quais ela não é capaz de fornecer, embora o sentimento fosse capaz de
afirmar. Nesse caso, em algum sentido existe um tipo de ceticismo de um lado, porque se eli-
mina a fiabilidade nas capacidades racionais do homem de conhecer, ao passo que se indica
um salto para a fé, cuja expressão pode ser convincente porque são expostas crenças com toda
a sinceridade e honestidade, sem que seja obrigado o ouvinte da exposição a aceitar o que se
diz. Parece que a prova racional, nesse caso, indicaria um constrangimento do qual quer se
livrar todo o homem de fé, em se tratando aqui, em grande parte, de um tipo de saber, o saber
religioso que quer ser ensinado para o Emílio, no caso, cujo conteúdo expressivo é fundamen-
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afirma crer, e o conteúdo mesmo dessa crença que pretende ter validade não
como conhecimento demonstrável exclusivamente, mas como determinação
do agir moral humano.
Como consequência do segundo artigo de fé, o Vigário refere-se ao ser
da vontade inteligente, Deus
15
, embora sua natureza, sua essência, seja impos-
sível de ser afirmada completamente. Afirma-se Deus como resultado da
crença no propósito e na regulamentação das coisas, dos seres, das leis, ou seja,
dos efeitos de uma causalidade geradora, cujo resultado ocorre em uma obra.
Num certo sentido, Deus não pode ser racionalmente afirmado porque, tam-
bém, as fontes de conhecimento e o conteúdo mesmo desse conhecimento, a
natureza divina, são insuficientes para se afirmar a sua essência. Epistemolo-
gicamente, o que seria exigido aqui é uma evidência, uma certeza, mas o campo
de exposição sobre o qual deus é abordado envolve aspectos sentimentais, o
"coração". Por este aspecto, ao se falar de Deus, fala-se não sobre Deus, mas de
um Deus suposto sem o qual a existência dos seres em geral e a do homem em
particular e, ainda, a validade do próprio cogito não teria sentido. Afirmando
Deus, sobre o qual o Vigário só pode supor, afirma-o tendo marcado os limites
humanos, sem incorrer em desonestidade e mentira, delimitado o equívoco
que outros poderiam cometer ao tentar falar sobre Deus sem ter condições de
fazê-lo e, por isso, falar mal de sua natureza. Dessa forma, o Vigário fala pouco,
mas fala o suficiente sobre a natureza divina. Furta-se ao erro e ao prejuízo que
incorrem determinadas doutrinas que tendem a afirmar mais do que podem.
O ato de honestidade intelectual permite realizar uma compatibilidade entre o
ato de crença, que afirma o Deus e o próprio Deus. Nesse sentido, não pode
haver equívoco do cogito, já que a subjetividade que afirma o deus deve sugeri-
lo de tal forma que seja tão boa, tão honesta, tão sincera, quanto a bondade
que emana de Deus, de acordo com um sentimento que impõe sua evidência
sobre qualquer possibilidade de evidência racional sujeita a falhas.
talmente misterioso. Acredita-se que a tarefa de Rousseau aqui seja, já, a de indicar uma reli-
gião, uma adesão pelos afetos, e pela consulta particular, privada e interna do homem de fé.
15
"Que a matéria seja eterna ou criada, que haja um princípio passivo ou não, sempre é certo
que o todo é uno e anuncia uma inteligência única, porque não vejo nada que não seja orde-
nado em um mesmo sistema e que não concorra para o mesmo fim, a saber, a conservação de
tudo na ordem estabelecida. Este ser que quer e que pode, este ser ativo por si mesmo, este ser
que, enfim, qualquer que seja, que move o universo e ordena todas as coisas eu chamo deus."
(ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 581) Sobre esse assunto, conferir a nota 48 à página 142 da
edição crítica da Profissão de fé de Bruno Bernardi. Lá ele se pronuncia no sentido de relativi-
zar, ou minimizar uma possível teologia do vigário nas passagens referidas do texto. Segundo
o comentarista, para se ter uma teologia deveria ser necessária a definição e determinação do
que seja deus, dado que, seguramente, falta aqui na exposição do texto. O que ocorre, por outro
lado, como foi destacado, é ausência ou renúncia de qualquer poder da razão de conhecer essa
natureza divina, ao passo que o sentimento assume esse papel, de evidência, e impõe à razão
a necessidade de se pensar sobre a relação do deus com o mundo e com os seres criados.
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3. O lugar do homem na ordem do mundo
Feito isso, o Vigário parte para a exposição do lugar que ocupa o homem
na ordem das coisas, no sentido de precisar qual o relacionamento, qual sen-
tido poderia fazer o homem nessa ordem providencial, bem como quais seriam
as condições a partir das quais o relacionamento direto com Deus acontece, a
ponto de sustentar uma religião. Diz o padre:
Posso observar, conhecer os seres e suas relações, eu posso sentir o que
é ordem, beleza, virtude, posso contemplar o universo, elevar-me até a mão
que o governa, eu posso amar o bem, fazê-lo; comparar-me-ia aos animais?
Alma abjeta, é tua triste filosofia que te torna semelhante a eles; ou, primeira-
mente, queres em vão te aviltar, teu gênio depõe contra os teus princípios, teu
coração benfazejo desmente tua doutrina e o abuso mesmo de tuas faculdades
prova tua excelência a despeito de ti. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 582)
Segundo foi dito, nota-se uma primazia da posição humana sobre os de-
mais seres e o mundo físico em especial, porque o homem é dotado de razão,
capaz de agir, de intervir sobre o mundo com uma vontade que o coloca na
condição de agente livre dos movimentos que inaugura. Destacada a habili-
dade humana de poder compreender e atuar na realidade, a tópica rousseau-
ísta também aparece: a decrepitude pelo abuso de suas faculdades e possi-
bilidade de ser livre apesar delas. Nesse caso, o problema do mal e do erro são
anunciados acima e, sobre isso, falaremos mais adiante. Por ora vale dizer que
desse retorno reflexivo sobre si mesmo o homem descobre a posição que as-
sume no universo e, em decorrência de seus atributos, de suas conquistas, des-
cobre o amor ao autor da espécie humana. Desse amor, ocorre uma adoração,
um culto que não foi, seguramente, transmitido (ensinado por qualquer dou-
trina), mas apreendido da própria natureza, da qual o homem descobre fazer
parte. Essa adoração traduz-se então por: "honrar o que nos protege e amar o
que nos quer bem" (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 583), expressões do amor-
de-si.
É importante destacar, a partir de então, que do lugar que ocupa o ser
humano no universo busca-se entender a relação a qual o homem estabelece
com esse Deus e o que ele tira dessa relação: como as atribuições divinas farão,
de algum modo, sentido para sua vida. Na observação da obra divina, são en-
contradas expressões da subjetividade humana que são amparadas pela antro-
pologia presente em outros textos do ideário rousseauísta. O amor-de-si aqui,
por exemplo, é evocado porque pode ser traduzido pelo querer o bem de si
mesmo, como expressão da bondade divina, de sua intencionalidade para o
mundo em geral e para interioridade humana em particular. O amor-de-si é
sempre bom porque deseja o que deus tenciona para o homem e para o mundo,
proteção, bem-estar e cuidado de si. No nível físico do Segundo discurso, o
amor-de-si podia mesmo ser reduzido a uma expressão meramente "biológica"
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(autopreservação), mas aqui a exposição é moral, cuja expressão de autocon-
servação é traduzida em querer e amar o bem a partir de deus, que bem en-
tende o mundo. Nesse ponto, um suporte, "ontológico", da bondade à qual
o homem se vincula por ser ela atributo divino, que orienta o mundo físico e a
vida humana. De outra maneira, há claramente aqui uma interface, uma asso-
ciação, ou uma interdependência, do campo moral, religioso e antropológico,
interface essa, ao nosso ver, está presente em outros momentos da exposição
da Profissão de fé. uma expressão antropológica da questão, porque se re-
conhece ser o amor-de-si o princípio da natureza humana segundo o qual as
ações têm explicação. A moral apareceria porque é com ele, o amor-de-si, que
a qualificação da ação e da vida humana é garantida, se o homem tiver o cui-
dado de não se esquecer, de consultá-lo mesmo no quadro de depravação social.
E, ainda, pode ser religioso porque é delimitada a condição a partir da qual a
relação do homem de fé com Deus acontece.
Na esteira da discussão até agora determinada, a consulta interior ga-
rante o acesso ao estatuto do homem no universo, sua relação de primazia em
relação aos demais seres, o entendimento a partir da ordem de Deus de suas
orientações e, também, o problema do erro, posto pelo abuso humano de suas
faculdades. O problema do mal parece ser espinhoso para o Vigário porque,
com ele, a natureza, a obra de Deus e o próprio Deus poderiam ser responsáveis
por sua presença no mundo. No entanto, quando é posto o erro como resul-
tante do abuso que o homem faz de suas faculdades, leia-se a razão, o entendi-
mento, o homem passa a ganhar a chance de, por si próprio, ser capaz de de-
terminar suas ações, ainda que sejam elas um equívoco de seu saber e, de
acordo com isso, ser livre. Por um outro lado, a liberdade pode se expressar:
como a origem da ruína entre os homens; por outro lado, graças à sua a razão,
o homem acha-se num estado de primazia em relação aos demais seres do
mundo porque escolhe e erra, tem a chance de se equivocar e pensar mal tanto
a si mesmo quanto à realidade sobre a qual atua
16
. De um outro lado, Deus
ocorre porque ocorrem, no homem, sentimentos de bondade, de cuidado e de
proteção, inscritos em sua natureza íntima e no mundo de modo geral. Se isso
acontece, o homem ganha, com isso, responsabilidade por seus atos e o pro-
blema do mal passa a fazer parte de sua condição e Deus, sumamente bom, é
salvo de ter ele contribuído para que o mal fizesse parte da realidade a qual
ordena. O homem torna-se mau porque, também, esqueceu-se de perceber, de
sentir, ou de escutar a simplicidade e a pureza de sentimentos tais como o
amor-de-si. Esse sentimento, pois, é sempre espontâneo, imediato, verdadeiro.
16
intérpretes que afirmam, a partir de então, que pode ser detectado, aqui, algumas aporias
que poderiam ser solucionadas com o advento da religião natural. quem diga que a "alma
é tensão entre dois movimentos que podemos chamar de elevação e queda, de atividade e pas-
sividade /.../. A nostalgia da unidade interior nos faz sentir a fraqueza, a paixão, a passividade
como um mal" (cf. Notas in ROUSSEAU, v. 4, 1995, p. 1.538).
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os conteúdos determinados pela razão e o entendimento, a faculdade de jul-
gar, são mediados, cujos resultados nem sempre são condizentes com a ordem
e a providência divina.
Vejamos agora como o autor torna ainda mais complexo o problema ao
localizá-lo na interioridade humana:
Nenhum ser material é ativo por si mesmo e eu o sou. Ainda que me
contradigam em relação a isso, sinto e esse sentimento que me fala é mais forte
que a razão que o combate. Tenho um corpo sobre o qual os outros agem e que
age sobre eles; esta ação recíproca não é duvidosa, mas minha vontade é inde-
pendente dos meus sentidos; consinto ou resisto, sucumbo ou sou vencedor, e
sinto perfeitamente em mim mesmo quando faço o que quis fazer ou quando
faço apenas ceder às minhas paixões. Tenho sempre o poder de querer, não a
força de executar. Quando me entrego às tentações ajo segundo os impulsos
dos objetos externos. Quando me reprovo por essa fraqueza, escuto apenas a
minha vontade; sou escravo pelos meus vícios e livre por meu remorso; o sen-
timento de minha liberdade só se apaga em mim quando eu me depravo e im-
peço enfim a voz da alma de se elevar contra a lei do corpo. Conheço a vontade
apenas pelo sentimento que tenho da minha e o entendimento não me é me-
lhor conhecido. Quando me perguntam qual é a causa que determina a minha
vontade eu pergunto de minha parte qual é a causa que determina meu julga-
mento, porque é claro que estas duas causas são apenas uma se compreende-
mos bem que o homem é ativo em seus julgamentos, que seu entendimento
nada mais é do que o poder de comparar e de julgar, veremos que sua liberdade
é um poder semelhante ou derivado daquele; ele escolhe o bom como julgou o
verdadeiro; se julga falsamente escolhe mal. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp.
585-6)
E no trecho seguinte ele resume seu terceiro artigo de fé;
O princípio de toda a ação está na vontade de um ser livre, não sabería-
mos remontar além disso. Não é a palavra liberdade que nada significa, mas a
palavra necessidade. Supor algum ato, algum efeito que não derive de um prin-
cípio ativo, é verdadeiramente supor efeitos sem causa, é cair num círculo vi-
cioso. Ou não um primeiro impulso, ou todo o primeiro impulso não tem
nenhuma causa anterior e, não verdadeira vontade sem liberdade. O ho-
mem é então livre em suas ações e como tal animado de uma substância ima-
terial: este é o meu terceiro artigo de fé. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 586)
Nesses longos e importantes trechos do texto da Profissão de Fé, a dis-
cussão ganha uma amplitude temática porque, de um lado, percebe-se um su-
posto dualismo, ou tensões que marcam a vida anímica do homem e oscilam
entre atividade/passividade, alma/corpo, em função da definição do problema
do bem e do mal. Um dos pontos que merecem atenção aqui, inicialmente, su-
gerida pelas edições críticas do texto em questão, é o nítido conhecimento da
vontade, do entendimento e da liberdade pelo sentimento que se tem delas em
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ação, como algo mais evidente do que qualquer raciocínio lógico. De um outro
modo, nota-se a mesma causalidade determinante tanto da vontade, quanto
do juízo, a saber: a capacidade ou potência de julgar, a partir da qual qualquer
atividade livre pode ser indicada. Desse modo, a liberdade aparece como prin-
cípio primeiro, o que mostra toda a espiritualidade da alma, a imaterialidade
de sua animação e a diferenciação na alma de qualquer dado que poderia ser
governada por impulsos ou informações originárias da objetividade corpórea,
de caráter passivo. Donde se segue que o reconhecimento pelo sentimento
dessa liberdade mostra que não existe nada além da liberdade, nada anterior a
essa capacidade livre de julgar. A capacidade livre de julgar, de ser racional, de
agir a partir de uma causalidade interna, de uma causalidade do eu (moi) que
procura o que lhe seja conveniente, independente de qualquer dependência,
sem qualquer constrangimento, pode contribuir ainda mais para isentar de
responsabilidade a divina providência, a intencionalidade colocada no mundo
pela vontade inteligente de Deus, quanto ao problema do mal. Para retirar de
Deus a responsabilidade pelo mal do homem, ainda que não o impeça de fa-
lo, pois isso seria contraditório com suas determinações, é preciso lançar mão
da liberdade como conatural ao homem que se aperfeiçoa. Num outro aspecto,
colocada a liberdade humana como princípio, o Vigário transfere a responsa-
bilidade do mal para a obra humana, indica a possibilidade do arrependimento,
do remorso e da realização do bem por escolha livre, também responsável. Di-
ante de tudo isso, da localização na alma humana em relação ao propósito di-
vino sobre o problema do erro, o que aparece é o tema da responsabilidade e
do mérito, como desiderato da moralidade, pois moralidade quando o
problema do mal surge no horizonte da vida humana e o homem pode ser re-
conhecido como virtuoso porque pode rejeitar o mal, arrepender-se e aceitar o
bem voluntariamente.
Seguramente, pode-se dizer que do uso abusivo
17
de suas faculdades o
homem tem a condição de dar explicação à origem do mal que pratica. Ber-
nardi na edição crítica da Profissão de fé assegura que a
noção de abuso, central na Antropologia de Rousseau, conta de
que uma natureza boa, no lugar de ser fixa é perfectível, pode conhe-
cer a depravação. O paralelismo entre os textos é surpreendente: li-
mitado ao instinto o homem terá permanecido como uma besta, a
razão faz dele um ser livre e um homem, entretanto o abuso dessas
faculdades o faz cair abaixo de sua condição primeira (ROUSSEAU,
1964, p. 145).
Dito isso, a tese do mal histórico, o mal da obra humana faz todo sentido
17
o abuso de nossas faculdades que nos torna infelizes e maus. Nossas tristezas, nossos
cuidados, nossas dificuldades vêm de nós mesmos. O mal moral é incontestavelmente obra
nossa e o mal físico não seria nada sem nossos vícios que nos tornaram sensíveis a eles." (RO-
USSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 587)
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na fórmula "onde tudo está bem nada é injusto". Por outro lado, o Vigário toma
toda a precaução, e a argumentação seguida até o momento trata desse caso,
de identificar o problema do mal na história humana, mas na ão humana em
particular, na vida humana de determinados eventos, não em todos eles. Isso
significaria dizer que toda a sua vida e os contornos e destinos dados por suas
habilidades, inclusive aquelas gravadas pela potência divina em nossos cora-
ções, sofre do mal irremediável porque ele é geral e se apresenta em tudo aquilo
que o homem realiza. Como Deus colocou o bem na ordem enquanto tal, a ex-
periência do mal é particular, causado ao homem por si mesmo e não pode
estar presente geralmente em toda atividade humana. A noção de bondade, de
justiça, seria o efeito dos anseios de um ser sumamente bom e poderoso sem
limites e essencial a todo ser sensitivo capaz de se orientar pela expressão do
amor-de-si (grifo nosso). A bondade passa a fazer parte, mais uma vez, de
forma perene, intrínseca da vontade de deus e passível de ser identificável na
ordem das coisas. Desse jeito, poder, bondade e força são aqui associados a
Deus, porque é o único ser plenamente poderoso e forte, pode tudo e por isso
é bom. Quer dizer, se Deus fosse um ser de desordem, seria fraco e autocontra-
ditório porque sua obra desordenada seria expressão de sua inteligência de-
sordenada. No homem, por sua vez, porque existe limitação e fraqueza, a mal-
dade se encontra justamente quando um descompasso entre seus anseios,
necessidades e poderes de realização, ou por colocar no horizonte mais proje-
tos do que teria condições de executar, como pode ser constatado ao longo da
argumentação do livro II de O Emílio.
Desse tema, do mal histórico da obra humana, decorrem outras ques-
tões, outros dilemas: a opressão dos justos pela dispersão do mal, o problema
do mérito, se o homem que quer ser feliz o merece de fato, a imortalidade da
alma, a "dualidade substancial" e como isso tudo justifica a providência divina.
Segundo os intérpretes (cf. nota 3 in ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 1.545) a
própria ideia de ordem divina seria responsável pela garantia da imateriali-
dade da alma e sua sobrevivência ao corpo. Se o corpo, ou as determinações
corpóreas que seriam, em tese, responsáveis pelo mal humano, se separa da
alma, corrompe-se porque é coisa extensa, material, divisível, passiva, que
não tem condições de por si mesmo provocar o movimento (aqui sustentado
pelos outros dois artigos de fé). Já a alma, potência ativa, tem garantido o seu
retorno ao sistema da ordem, porque é força e a força é indivisível, produz mo-
vimento, portanto sua morte é inconcebível. Tudo isso é afirmado não por ra-
zões, mas pelas crenças consoladoras, mesmo que amparadas por experiências
ordinárias a partir das quais têm-se a percepção da degradação do corpo, em
detrimento da integridade da parte pensante. Segundo entendemos, a estraté-
gia de lançar mão de uma dualidade substancial e, com isso, a ideia de imate-
rialidade e imortalidade da alma tem algumas razões de ser: uma delas deve-
se ao fato de ser necessário salvaguardar o sistema da ordem, e o próprio Deus,
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quando ao longo da história os justos são subjugados pelos ímpios. Dar a imor-
talidade da alma ao homem é marcar uma posição, a de que o indivíduo justo
não precisa pagar duas vezes pelo sofrimento por que passa na vida e depois
da metempsicose. Aquele que foi bom em vida retorna com sua alma imortal
ao sistema da ordem, pois tanto a justiça como a bondade, atributos divinos,
impõem a necessidade de ser restaurada a justiça depois da morte para aqueles
que sofreram em vida. Por outro lado, aquele que foi mau em vida não pode
sofrer a sina de ser mau duas vezes ainda, pois a bondade divina encarrega-se
de sua salvação na vida anímica. Deus não pode ser mau se concede o mal,
pune aqueles que se livraram de sua fonte, o homem livre do corpo, que deter-
minaria o mal pela perda da espontaneidade determinativa característica do
ser de vontade livre. Para a remissão dos pecados mundanos, portanto, bastam
as leis positivas. Ao se rejeitar as penas eternas, o mal fica restrito à obra hu-
mana, no mundo corpóreo, ao longo da existência, mas não para sempre, fora
da escala do tempo e da alteração e diferenciação típicas dos eventos históricos,
tampouco dentro do sistema ordenado cuja fonte primária é Deus. Outro mo-
tivo seria a manutenção da argumentação e da coerência entre os três artigos
de fé, pois aqui, no desenvolvimento das consequências que desembocam no
terceiro artigo de fé, exige-se a exposição da justificativa da imortalidade e ati-
vidade da alma. Essa alma, em sendo ela potência ativa de cuja vontade e inte-
ligência realizam o movimento da matéria corpórea, mantém-se a coerência
com a noção de a vontade ser a fonte produtora de movimento assegurada pe-
los outros artigos de fé, ainda que naquele momento a causalidade material
fosse determinada pela vontade divina. Desse modo, nota-se, mais uma vez, o
entrelaçamento entre os planos de uma fundamentação com o plano religioso,
pois as noções de Deus, vontade, inteligência e substância podem ser associa-
das a uma atitude a partir da qual o homem pode relacionar-se com Deus e
praticar sua fé.
A partir de então, justifica-se a necessidade de busca pelo conhecimento
(grifo nosso) de Deus, a começar por suas obras. Ao nosso ver, num primeiro
plano essa busca serve para a confirmação de certo estatuto da racionalidade
humana e a relação dessa com a crença e, essa por sua vez, reafirma-se como
mais capaz, epistemologicamente falando inclusive, de consolidar a aceitação,
entendimento e assimilação das noções até o momento discutidas. O Vigário,
para tanto, assim se pronuncia:
Nós só somos livres porque ele quer que o sejamos e a substância inex-
plicável está para nossas almas assim como nossas almas estão para nossos
corpos. Se ele criou a matéria, o corpo, os espíritos, o mundo, nada disso sei. A
ideia de criação me confunde e ultrapassa meu entendimento; creio sobre ela
tanto quanto posso concebê-la, mas eu sei que ele formou o universo e tudo o
que existe, que ele tudo fez e tudo ordenou. Deus é eterno, sem dúvida, mas
meu espírito pode abarcar a ideia de eternidade? Por que me contentar com
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palavra sem ideias? O que eu concebo é que ele existe antes das coisas, que ele
será enquanto elas subsistirem e que ele seria até mesmo depois, se tudo se
acabasse um dia. Que um ser que eu não concebo a existência a outros seres
isso é apenas obscuro e incompreensível, mas que o ser e nada transformem-
se eles mesmos um no outro, isso é uma contradição palpável, é um claro ab-
surdo. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 593)
Segundo se disse, então, há aqui uma necessidade de desqualificar, por
um lado, o entendimento/razão na tentativa de compreensão da natureza de
Deus e da criação; por outro lado, há a crítica, como um absurdo maior do que
o próprio limite racional, da possibilidade de a matéria ser autoprodutora, e se
do nada há a concepção do ser. Desse modo, o espírito humano sabe pouco,
conhece pouco e por isso encontra problemas para atingir quem seja Deus,
quando o próprio Deus, ao ser evocado, pressupõe a ideia do ilimitado. De um
outro modo, o levantamento de uma hipótese, a geração recíproca do nada
para o ser, é absurda e, por ser absurda, impossível, irrealizável, a hipótese
obscura do conhecimento de Deus e de seus poderes, e de seu ordenamento
ganha força. O procedimento, então, de qualificação da hipótese explicativa de
deus é admitida negativamente, quando não existem chances para admissão
da hipótese da criação recíproca do ser para o nada, ou seja, da exclusão de um
absurdo admite-se o que seria obscuro e incerto, que Deus fez o universo e
prescreveu todo seu ordenamento. Ao nosso ver, metodologicamente falando,
o procedimento aqui empregado usa o que a razão pode oferecer, determinada
sua função de limpeza da "insustentabilidade" do campo epistêmico no con-
fronto entre hipóteses (a fraqueza de uma hipótese se transforma em força pela
exclusão de uma outra) para usar a nos momentos mais espinhosos e mais
importantes na sustentação do sistema de crenças, os pressupostos lá empre-
gados e, toda a concepção de inteligência e atuação moral humanas decorrente
disso. Lançar mão dessa estratégia pode fazer todo sentido dentro da argumen-
tação do vigário, porque justamente nas passagens subsequentes o problema
da racionalidade humana e divina é trazido à baila no sentido de se dar conta
da correção e da incorreção da atuação humana no mundo.
Em comparação com o homem que se localiza no tempo e precisa da
experiência sensível e dos procedimentos delimitadores de qualquer razão,
Deus tudo sabe porque sua razão é intuitiva. A potência humana age por meios,
a divina por si mesma, a capacidade humana, por sua vez, carece da interven-
ção de propósitos, de motivadores, é, por isso, dependente. Em função dessa
demarcação, discute-se o modo como a bondade e a justiça humana se reali-
zam, da mesma forma, em comparação com Deus e na sua relação com ele. Se
Deus ama a ordem, as regras e a conformação determinada dos seres como
expressão, afinal, de sua vontade, o homem que pouco pode ver desse ordena-
mento, só pode amar a si, os outros, os demais seres do mundo e a justiça que
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pretende garantir se essa expressão do amor ao outro se mantém. Dada a li-
berdade humana, a capacidade de querer por determinações que podem ser
extraídas de si mesmo ou de fora de si, a desordem moral poderá ser obra
sua, como foi exposto mais acima. Na definição dessa relação, mais uma vez, o
Vigário fala da razão humana, sua insuficiência, de seu bom uso, marcados
seus limites numa atitude de humildade para supor e definir uma atitude bea-
tífica de contemplação e adoração (sentimentalmente sustentada) que garanta
efetivamente as características peculiares do homem e de Deus como possíveis,
para, a partir de então, aceitar um tanto de mistério e dizer que esse mesmo
Deus faz parte de nosso ser, ainda que o começo do universo, a origem de Deus
sejam para nós desconhecidos absolutamente.
4. Regras morais e ação humana: a noção de consciência
Em resumo, definidos os três artigos de fé, Rousseau precisa tirar deles
as regras que sejam consequentes para a conduta humana e que suas ações
sejam conformes aos pressupostos, fundamentos dos quais são postuladas sua
validade, sua verdade e correção morais. A verdade dessas regras, então, será
buscada não na especulação racional, mas no assentimento pelo sentimento
interior que lhe servirá de critério. Por fim, daqui, mais uma vez, são associa-
dos os planos moral e religioso e a consciência será para o Vigário o instru-
mento com o qual a universalidade de qualquer ação moral se sustenta. pre-
ciso o silêncio das paixões para que a voz da alma se faça ouvir e que a infali-
bilidade da consciência nos lembre de nosso bem, se é nocivo ao outro, torna-
se um mal. Isso é o que nos engaja pela via da universalidade moral" (cf. Nota
1, p. 596, ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 1.552). As regras serão procuradas,
extraídas, tendo percorrido o Vigário o caminho, o exame, no cogito e além
dele pelo resultado de sua investigação, de acordo com o qual a vida humana
como ser produtivo se justifica.
Nesse caso, as regras morais, em conformidade com a liberdade hu-
mana, servem para dar ao homem, no plano “metafísico”, no plano em que
ocorrem não mais os ditames das leis mecânicas, um retorno do homem a si,
quando as leis do corpo se calam e a voz da alma fala. Mas ao fazer esse
exame, a investigação de si, é preciso extrair da consulta da própria alma as
condições, as expressões, os discursos que passam a ser condição de possibili-
dade para se pensar uma ação moral, quanto à sua correção e honestidade.
Para o Vigário,
toda a moralidade de nossas ações está no julgamento que fazemos
nós mesmos sobre ela. Se é verdade que o bem esteja bem, deve ele
estar no fundo de nossos corações assim como em nossas obras, e o
primeiro prêmio da justiça é o de sentir que a praticamos. Se a
bondade moral é conforme à nossa natureza, o homem saberia
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ser são de espírito e bem constituído na medida em que é bom. Se
ela não o é, e o homem seja naturalmente mau, ele não pode cessar
de ser sem se corromper
e bondade é nele apenas um vício contra a
natureza (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 595-6).
Tendo em vista o texto destacado acima, parece que a condição para que
a moralidade de uma ação se processe dois procedimentos deveriam ser res-
peitados: em primeiro, a ação para ser executada ou posta em prática, deve,
antes, partir da definição e do conhecimento do que seja o bem, por ter indi-
cado o bem a ser feito; em segundo lugar, o bem só se torna de fato um bem se
sobreviver à avaliação, ou ao escrutínio do sentimento, pois a ação só se apre-
sentará como verdadeira, transparente ou honesta se fizer sentido àquele que
age. Quer dizer, a vontade refletida cuja determinação pelo julgamento define
qual seja o bem, põe em marcha a ação, a desenrola, mas ganhará aão o selo
da verdade, ou autenticidade, se for marcada pelas intenções as quais só o sen-
timento pode oferecer. Um outro dado pode ser percebido, a permanência da
consulta à natureza, o fundo "antropo-ontológico" da bondade natural que fala
à alma humana, pelo sentimento como uma disposição ao bem fazer. Associa-
se a isso, para questões morais, as funções da reflexividade e racionalidade ca-
pazes de diferenciar o ser humano de uma simples besta. A moralidade torna-
se possível porque pode haver humanidade conforme à natureza, porque a ra-
zão se associa à voz do sentimento perene e conatural ao homem. Por isso que
o desenvolvimento da experiência humana com o mal acontece pela surdez e o
descompasso entre aquilo que a natureza prevê ou predispõe e aquilo que o
homem pretende pois, de acordo com o 3o artigo de fé, é um ser de vontade
livre racionalmente determinada.
Tudo isso pode ser afirmado porque afinal "existe, pois, no fundo das
almas um princípio inato de justiça e de virtude, sobre o qual, malgrado nossas
próprias máximas, julgam-nos as nossas ações e as dos outros como boas ou
más, e é a esse princípio que eu dou o nome de consciência" (ROUSSEAU, v. 4,
IV, 1995, p. 598). A partir de então, esse princípio, identificado às vezes como
sentimento interno, passa a ser responsável pelo estabelecimento dos critérios,
das regras a partir das quais a capacidade de julgar, associada, como se disse,
ao entendimento e vontade, confere às ações morais sentido, identidade e valor,
define as dimensões de universalidade de que carece a moralidade.
Há, no entanto, por parte de Rousseau, uma rejeição da discussão sobre
metafísica, o que ao nosso ver sustenta tudo o que foi analisado e não invalida
a busca por uma fundamentação levada a cabo até o momento. Ele disse, por-
tanto, que o seu
plano não é entrar aqui em discussões metafísicas que ultrapassem
o meu alcance e o vosso e que no fundo não levam a nada. Eu vos
disse que não queria filosofar convosco, mas ajudar-vos a consultar
vosso coração. Quando todos os provarem que estou errado, se vós
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sentis que eu tenho razão, nada mais desejo (ROUSSEAU, v. 4, IV,
1995, p. 599).
O Vigário aqui se recusa a discutir questões metafísicas, embora, como
foi visto ao longo de nossa demonstração, teria tratado, em sua fundamentação
(qualquer que seja o nome que ela venha ganhar no escopo das disciplinas fi-
losóficas) de temas circunscritos àquilo que o coração autoriza e que o senti-
mento permite. É curiosa essa passagem porque o procedimento de consulta
investigativa a partir de um cogito, a afirmação da vontade e inteligência, de
Deus, por mais que não tenham sido gerados pelos filosofemas tradicionais,
foram gerados por um modo de fazer uma fundamentação peculiar, sustenta-
dos todos os conceitos, pelo recurso epistêmico-moral da sinceridade e hones-
tidade, em referência direta aos limites da razão e sua ultrapassagem pela
crença, com o objetivo de assegurar certos "dogmas", quando os conteúdos
destes não podiam ser "provados" ou demonstrados. Entendemos, como foi
assinalado em outro lugar, que essa fala do vigário permite-nos localizar a dis-
cussão, os temas, numa formulação tal, a partir da qual são articuladas diver-
sas áreas de saber: pelos conceitos, temas e procedimento metodológico um
certo racionalismo filosófico seria admitido; a religião seria tratada quando a
crença e o relacionamento com Deus são evocados pelos limites da razão de-
monstrativa; e a antropologia porque estabelece as estruturas e as caracterís-
ticas singulares do homem, assim como a moral, pois tudo o que se disse per-
mite definir o que o homem pode ou deve fazer e definir os valores que ganham
sua atuação no mundo.
Dado esse relevo ao problema da fundamentação, Rousseau trata agora
da articulação fina e complexa entre as instâncias da alma humana, no con-
curso de seus procedimentos com os quais a moral pode ser explicada. A tarefa
não é fazer exposição de uma análise da casuística das ações humanas e extrair
delas uma generalidade, mas explicar as condições determinantes da conduta
humana que seguem à exposição de sua vinculação com Deus, com a ordem e
mostrar que estão ligados estes pressupostos, como funcionam, o pensamento
humano inclusive, e pôr em marcha qualquer ação de valor moral no curso da
história e na associação societária. Para tanto, faz-se necessário compreender
a distinção na esfera do pensamento, da alma, o que sejam ideias, sentimentos,
sensações e mostrar como cada um desses fatos anímicos atuam quando um
outro agente humano poderia se interpor. Vejamos como o autor se pronuncia:
É preciso, para tanto, que vos faça distinguir nossas ideias adquiridas
de nossos sentimentos naturais, porque nós sentimos antes de conhecer e
como não aprendemos a querer o nosso bem e a fugir de nosso mal, mas rece-
bemos essa vontade da natureza, da mesma forma o amor ao bom e ódio ao
mal nos são tão naturais quanto o amor por nós mesmos. Os atos da consciên-
cia não são julgamentos, mas sentimentos, ainda que todas nossas ideias nos
venham de fora, os sentimentos que as apreciam estão dentro de nós e é por
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eles que conhecemos a conveniência e inconveniência que existe entre nós e as
coisas que devemos buscar ou fugir. Existir para nós é sentir; nossa sensibili-
dade é incontestavelmente anterior à nossa inteligência e tivemos sentimentos
antes de ter ideias. Qualquer que seja a causa de nosso ser, ela proveu à nossa
conservação dando-nos sentimentos convenientes à nossa natureza e não sa-
beria negar que pelo menos aqueles sejam inatos. Esses sentimentos, quanto
ao indivíduo, são o amor-de-si, o temor à dor, o horror à morte, o desejo de
bem-estar. Mas se, como não podemos duvidar, o homem é sociável por natu-
reza, ou pelo menos foi feito para tornar-se sociável, pode sê-lo por outros
sentimentos inatos, relativos à sua espécie, pois, considerando apenas a neces-
sidade física, que deve certamente dispersar os homens, ao invés de reuni-los.
Ora, é do sistema moral formado por essa dupla relação, de si mesmo e com
seus semelhantes, que nasce o impulso da consciência. Conhecer o bem não é
amá-lo; o homem não tem um conhecimento inato do bem, mas tão logo sua
razão o faz conhecer, sua consciência leva a amá-lo: este sentimento que é inato.
(ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 599-600)
A partir de então, ocorrem distinções entre os chamados sentimentos e
as ideias adquiridas, estas originadas da experiência sensível com as sensações
originárias de objetos; por generalização e por abstração, as ideias são forma-
das por sensações. O uso que se faz do juízo contribui para a generalização de
informações sensíveis, os sentimentos, antropologicamente estabelecidos,
atuam segundo uma dimensão diretiva, prescritiva, sobre o que deve ser feito,
não pelos conteúdos cujos elementos específicos são diferenciados na esfera
cognitiva. Aqui o trabalho da consciência se processa, portanto, com sentimen-
tos, não com juízos, embora sejam as informações sensíveis aspecto necessário
para o escrutínio do sentimento. A razão não teria esse poder orientador, dire-
tivo, mas é capaz de dar à consciência, aos sentimentos internos, conhecimen-
tos, informações que a levam a avaliar, rejeitar/aceitar o mal e o bem. Eviden-
cia-se que o Vigário está a se valer de elementos específicos da cognição, do
entendimento, que faz o acoplamento de um predicado a um sujeito, de uma
característica a um ser percebido. Por outro lado, o gostar e o rejeitar as carac-
terísticas das coisas, o ato de amor ou ódio sobre o percebido, ter a disposição
de sentir apreço ou não sobre as coisas, isso é inato, ou melhor, natural ao ho-
mem. Verifica-se, ainda, que o sentimento atua na dimensão existencial do ho-
mem, constituindo-se sua essência, ao passo que a cognição não conta dessa
essência e fica, ao nosso ver, restrita a uma condição de auxiliar em questões
de ordem moral. Segundo se disse, o sentido fundamental que se atribui ao eu
(moi) a partir do qual o indivíduo se afirma é marcado pela imediaticidade do
sentimento, que ora promove a conservação de si, a autopreservação, num
plano natural originário, ora faz o homem ser clemente à dor alheia, pois num
plano social amplamente desenvolvido, ser clemente com o outro está associ-
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ado ao temor de sofrer, o si mesmo, o que o outro sofre. Se num plano exclusi-
vamente físico-natural esses sentimentos são insipientes, ou que sejam funci-
onais apenas no registro "biológico", no desenvolvimento social, com eles,
pode-se compreender como a consciência se organiza, pois além de possibilitar
a realização da moralidade, permite definir os contornos, as fronteiras mais
precisas do que se entende ser o eu individual, o eu como um outro. Talvez seja
a partir daqui que ao se definir, na sociabilidade, o eu como um outro, no plano
"egóico", permite-se assentar as bases sobre as quais a moralidade seja possível
e possa ser justificada na sua universalidade.
Na nossa visão, a sociabilidade latente fica no homem como disposição,
capacidade, condicionamento, que pode ser usada, realizada, desde que o con-
curso das circunstâncias objetivas coloquem-na em marcha e ative sua história.
Mas qual seria, internamente, o resultado dessa sociabilidade desenvolvida? A
razão, bem se sabe, é constituída, não é inata, permite o saber; o amor ao
bem, ou o ódio ao mal, são definições dadas a posteriori pela avaliação dos
sentimentos. Poderíamos sustentar, a partir de então, que os sentimentos, ao
atuarem com as informações dos juízos, apontam uma direção, um sentido e
são, como foi dito, critérios, mas também a expressão da consciência, sendo
essa estrutura anímica, cuja forma de atuação se pela via sentimental e
dá ao homem uma vida, uma intenção.
A ação moral ao ser definida, posta como fenômeno, no tempo, na his-
tória, ganha a marca de seu valor e da intenção do agente, regulada pelos pre-
ceitos "inatos", originários e universais. Ao fazer isso, localizar a moralidade
na história, o autor coloca a consciência como prolongamento dos sentimentos
naturais dos homens, num momento em que ocorrem as complexificações do
aperfeiçoamento humano e a diversificação de seu processamento mental. A
consciência passa a ser sempre associada a um nível mais elevado da vida hu-
mana. Isso não significa que ela seja dependente dos procedimentos racionais
para desenvolver-se, mas deles precisa apenas os conteúdos, as informações as
quais só são dispostas na vida comum dos indivíduos, de modo que possa dar
à voz de natureza uma expressão social. Ela, a consciência,
é o instinto divino, imortal e celeste voz, guia seguro de um ser ignorante
e bom, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, que torna o ho-
mem semelhante a Deus; és tu que faz a excelência de sua natureza e a mora-
lidade de suas ações; sem ti nada sinto em mim que me eleve acima das bestas,
a não ser o triste privilégio de perder-me de erros em erros com a ajuda de um
entendimento sem regra e de uma razão sem princípio (ROUSSEAU, v. 4, IV,
1995, pp. 600-1).
Nesse instante, fica muito claro como, pela consciência, ficam justifica-
das: a moralidade humana, a qualidade de suas ações, bem como o posiciona-
mento que ganha o homem na ordem providencial divina. Se em outro mo-
mento, pelo terceiro artigo de fé, o homem era dotado de razão e liberdade,
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aqui com a consciência moral é confirmada a sua relação com Deus e seu lugar
de primazia no universo, determinado por atributos que superam as determi-
nações exclusivamente físicas comuns aos animais. A consciência, por outro
lado, fala a língua da natureza porque ela é sua expressão, ainda que o homem
social corra sempre o risco de, no aperfeiçoamento, ser surdo aos seus discur-
sos e de perder a qualificação correta que faz seus atos serem conformes aos
atributos divinos. Esse desvio de conduta ocorre porque o homem tem o privi-
légio do pensamento, de compreender, e ao fazer isso, associando-o com suas
paixões, erra, é míope e enxerga apenas as falsas impressões, as máscaras do
teatro das opiniões alheias.
Pressupor, então, desejar ou sonhar que o homem tivesse sido sempre
puro e livre absolutamente é um problema, por um lado, porque, na visão do
Vigário, não haveria qualquer mérito no alcance das virtudes. Dar ao homem
a liberdade que o arruína, pode levá-lo também a ter a chance de ser bom por
escolha, logo o bom uso de suas faculdades e de sua liberdade pode ser ao
mesmo tempo mérito e recompensa. A condição humana, o que ele tem de fa-
zer, que expressões de sua alma as quais utiliza para ganhar o prêmio de ser
bondosamente livre são sumamente importantes para que ele tenha condições
de superar os males que se impôs a si mesmo.
O papel da religião, a partir de então, pode ser apresentado porque
aponta o caminho, a relação que pode ser estabelecida com Deus e seu ordena-
mento no sentido de contribuir para superar os males e as antinomias huma-
nas. Mas essa função religiosa pode ser determinada porque houve definição
de fundamentos, a saber: i) os procedimentos investigativos de caráter racional
apoiados por um cogito amparado por regras e critérios de definição; ii) o con-
teúdo da pesquisa revelado pelos procedimentos, a saber, as noções de vontade,
Deus, matéria, alma, liberdade, sem as quais não poderíamos pensar conceitos
de ordem, de lei, bem como o papel do homem e sua definição antropológica;
iii) a distinção precisa das faculdades da alma a partir das quais a moralidade
se viabiliza. Desse modo, o tema da religião, consagrado na Profissão de fé, se
sustenta porque se apoiou em pressupostos de natureza fundamental; iv) esse
campo de investigação, ao nosso ver, contribuiu para consolidar e articular te-
mas diversos dos quais o próprio autor se vale em sua obra de uma maneira
ampla.
Considerações finais
Diante disso tudo, acreditamos ter considerado que Rousseau esforça-
se para elaborar uma fundamentação de seu pensamento dentro do vocabulá-
rio e da terminologia do período, no sentido de constituir um plano de trabalho
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que supere as posições teóricas dispersas: rejeitando o reducionismo sen-
tir/julgar para uma dimensão mais espiritualizada da alma humana, para dar
conta do problema da liberdade, do problema do erro e, consequentemente, do
problema do mal. Sem esse trabalho de teorização, a humanidade do homem
fica sem sentido porque não foi elaborada a liberdade, sem a qual a religião
não se afirma, sem a qual a moralidade não se funda, sem a qual a educação
não se processa e sem a qual a política não se legitima.
Os pressupostos epistemológicos de Rousseau, por sua vez, são trazidos
à baila não para consolidar uma teoria do conhecimento, preocupação que está
longe de ser aquela à qual o genebrino parece mais atento, mas para serem
auxiliares e darem as noções cognitivas necessárias e os conhecimentos e as
informações mais adequadas do mundo, sobre o qual os homens têm de se po-
sicionar para não serem constrangidos geralmente, em termos sociais, e, par-
ticularmente, em termos morais.
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Como citar:
CAMPOS, Henrique Segall Nascimento. A Profissão de fé do Vigário Saboiano
e a fundamentação do pensamento de Rousseau. Verinotio Revista on-line
de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 321-58,
jul./dez. 2020.
Data do envio: 30 jul. 2020
Data do aceite: 27 out. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.558
Guilherme Wagner
Everaldo Siqueira
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O silêncio ontológico na obra de Wittgenstein: crítica à filosofia da
educação matemática
Guilherme Wagner
1
Everaldo Siqueira
2
Resumo: O presente trabalho se insere numa discussão filosófica sobre a
linha de continuidade da obra de Wittgenstein, mais especificamente das obras
do Tractatus logico-philosophicus e das Investigações filosóficas. Nesse
sentido, desenvolvemos a tese de que a continuidade entre as duas obras é o
silêncio ontológico do autor frente as questões essenciais da mundanidade,
visto que para ele, adotando a doutrina do dizer e do mostrar, a essência do
mundo não pode ser desvendada, e somente contemplada. Prosseguindo
discutimos os impactos diretos desse silêncio ontológico em concepções sobre
a matemática e suas implicações para o ensino culminando numa referência
biologicamente determinante do autor com relação ao ensino como
treinamento e denunciando a possibilidade de o autor austríaco ser utilizado
como referencial para uma posição neotecnicista na educação matemática.
Palavras-chave: Filosofia da matemática; filosofia da linguagem; ontologia;
filosofia da educação matemática.
The ontological silence in Wittgenstein's work: criticism of
philosophy of mathematics education
Abstract: The work is inserted in a philosophical line on the line of continuity
of the work of Wittgenstein, more specifically the works of Tractatus logico-
philosoficus and the Philosophical Investigations. In this sense, an emergency
thesis developed between the two works is being considered as an essential
issue of worldliness, since for him, adopting a doctrine of scenery and
spectacle, an essence of the world can not be unraveled, and only
contemplated. To continue the discussions on the methods of formation of
ontological teaching in conceptions about mathematics and their implications
for the teaching of the formation of a determining biology of the author with
1
Doutorando na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da rede municipal
de educação de Florianópolis (SC). E-mail: guilhermewagn@gmail.com.
2
Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atua no Programa de
Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (UFSC). E-mail: derelst@hotmail.com.
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respect to teaching and to denounce a possibility of the Austrian author being
used as a reference to a neotechnist position in mathematics education.
Keywords: Philosophy of mathematics; philosophy of language; ontology;
philosophy of mathematics education.
Introdução
Em 1954 Russell (1995) definia a existência de três grandes movimentos
filosóficos sucessivos no mundo britânico do século XX. O primeiro oriundo
do livro Tractatus logico-philosophicus de Ludwig Wittgenstein, o segundo,
das obras do positivismo lógico e o terceiro oriundo dos trabalhos das
Investigações filosóficas também de Wittgenstein. Do primeiro Wittgenstein
uma geração do círculo de Viena fundará o neopositivismo. No entanto, a
maior influência de Wittgenstein está na sua segunda obra, aquela que
referendará a virada linguística do século XX (RORTY, 1993), fundamentará a
agenda pós-moderna (LYOTARD, 2009) e culminará como arcabouço teórico
fundamental do pensamento pós-estruturalista.
Não como falar em filosofia negligenciando Wittgenstein. Não seria
diferente no que concerne à educação matemática, ainda mais quando grande
parte de sua obra se dedica a observar e estudar a linguagem matemática.
Rorty (1994) radicalizará a posição de Wittgenstein e afirmaque não se pode
conhecer o mundo, somente a linguagem. O neopragmatismo rortyano
influenciará o final do século XX e mantém suas influências no início do século
XXI. Lyotard (2009) fazendo uso das categorias wittgensteinianas dirá que
nada pode ser compreendido fora dos jogos de linguagem, e que em verdade,
toda a realidade é somente um conjunto de sobreposições de diferentes jogos
de linguagem, de forma que se tornaram obsoletas as grandes narrativas, ou
metanarrativas, e que a pós-modernidade se opõem aos ideais modernos que
cultivavam o grande futuro do homem iluminista.
No que concerne aos estudos da educação matemática, sob o ponto de
vista da natureza do conhecimento matemático, os trabalhos de Gottschalk
(2002; 2004) caracterizam um novo movimento no campo de pesquisas da
educação matemática brasileira. Dessa nova visão serão iniciados os trabalhos
dos quais beberão todo um campo da educação matemática crítica
(SKOVSMOSE, 1999). E por outro lado, reforçarão o caráter pragmático do
ensino da matemática escolar.
Os estudos etnomatemáticos, em grande parte referenciados nos
trabalhos de Gelsa Knijnik (1996; 2018), inaugurarão um momento poderoso
na crítica da matemática dita universal, onipotente e onisciente, e em
consequência possibilitarão a compreensão da especificidade do campo da
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matemática escolar, e da importância cultural das outras diversas matemáticas
que existem na cotidianidade.
A tese defendida por Vilela (2007) onde analisa as semelhanças de
família entre a matemática de rua, do cotidiano, acadêmica, escolar etc.,
aponta os arcabouços teóricos para a consolidação da educação matemática
como um campo epistemologicamente diferenciado da própria matemática
enquanto atividade de pesquisa científica.
Em suma, a filosofia de Wittgenstein permitiu um movimento de
criticidade com relação ao próprio conhecimento matemático, questionando a
suposta neutralidade dos formalismos matemáticos defendida pelos
neopositivistas, evidenciando a influência cultural nas consolidações das
matemáticas dos diferentes povos. Se consolidou assim como fundamento
obrigatório da filosofia da educação matemática.
O presente trabalho se situa numa perspectiva de fazer filosófico que
busca se aprofundar com mais ênfase no pensamento de toda uma vida de
Wittgenstein. Portanto, o presente artigo analisa as duas obras principais de
Wittgenstein: o Tractatus logico-philosphicus e as Investigações filosóficas.
Existe uma espécie de consenso sobre a obra de Wittgenstein que afirma
existir uma ruptura epistemológica do Tractatus para as Investigações
filosóficas. O maior debate no campo hoje corresponde a discutir quais são as
características de continuidade do primeiro ao segundo Wittgenstein. Margutti
(2006) defende que essa continuidade é marcada por sua religiosidade mística
em que o fulcro de continuidade são suas concepções ético-religiosas. Wrigley
(2002) afirma que a continuidade se pela forma como Wittgenstein tratou
os problemas filosóficos, para o filósofo austríaco eles careciam de significado
mantendo assim a continuidade que a filosofia se reservaria à crítica da
linguagem, sendo, no entanto, a forma de compreender a linguagem
diametralmente oposta. Conant e Diamond (2010) defendem inclusive que
exista um único Wittgenstein. Em suma, a tese da continuidade é muito
controversa nas pesquisas sobre o pensamento wittgensteiniano. Nesse
aspecto, apontamos que uma das grandes dificuldades dessa discussão está na
procura interna de motivos, razões e significados para a continuidade, isto é,
naquilo que está presente no pensamento de Wittgenstein nos dois momentos
de sua filosofia. Advogamos que a continuidade se faz presente fatidicamente
não naquilo que está dito em sua obra, mas naquilo que não está, sobre o qual
inclusive se deveria calar. Defenderemos que a continuidade é seu grande
ausente, e que sua gênese se faz presente nas obras de cardeal Bellarmino
quando este advoga a separação entre ciência e religião, como sendo a
separação entre a gnosiologia e a ontologia. A tal característica denotamos de
silêncio ontológico.
Nesse artigo procuramos, assim, fazer uma exposição que evidencie o
silêncio ontológico como linha de continuidade entre o jovem Wittgenstein e a
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obra do autor maduro. Essa exposição se faz numa perspectiva de defesa do
pensamento teórico mais aprofundado no campo da educação matemática,
pois concordando com Moraes (2001) houve no campo da pesquisa
educacional um recuo da teoria e um aligeiramento das conclusões teóricas
sem a devida análise e questionamento da gênese das teses filosóficas
adotadas.
Num primeiro momento será feito uma exposição histórica da
ontologia
3
para em seguida situar a posição de silêncio ontológico de
Wittgenstein nessa história. Assim, pretendemos demonstrar que a filosofia
wittgensteiniana se estabelece numa linha contínua de tradições históricas da
filosofia e da ontologia. Em sequência delineamos o silêncio ontológico e sua
manifestação nas duas obras representantes de cada momento de maturidade
filosófica de Wittgenstein, para no final, analisarmos as consequências do
silêncio ontológico nas concepções teórico-filosóficos da educação
matemática.
Um breve excurso histórico da ontologia
Antes de podermos compreender o que se entenderá por “silêncio
ontológico” na obra de Wittgenstein é necessário que estabeleçamos um
traçado histórico do desenvolvimento da ontologia durante alguns períodos
importantes da sociedade humana.
Usualmente a ontologia é confundida com a metafísica, sendo a
metafísica uma perspectiva de se estudar ontologia. A ontologia, para a
metafísica, é a produção de metadiscursos que procuram elucidar o ser
enquanto ser. Em linhas gerais, é o estudo e a ciência do ser
4
. No decorrer
desse trabalho estaremos constantemente alertando para não confundirmos
esses dois campos. Em nossa perspectiva a ontologia não é um discurso
metacientífico que elabora reflexões que transcendem a ciência e assim
estruturam a dinâmica da realidade. Nessa perspectiva ontológico-metafísica,
afirma Lukács, são tomados
contínuos compromissos metodológicos que põem de lado o
problema ontológico fundamental da especificidade ontológica do
3
Essa exposição é diretamente interessada no sentido de evidenciar no movimento histórico
a gênese do chamaremos de silêncio ontológico, numa perspectiva lukacsiana. Não temos
interesse de dar conta de toda a história da ontologia, muito menos das diferentes perspectivas
de ontologia no decorrer histórico.
4
No pensamento ocidental vários são os autores que exploram a metafísica, entre os principais
estão Heidegger, Platão, São Tomás de Aquino e Santo Agostinho. Estes serão aqueles que
influenciarão mais profundamente a metafísica e sua hegemonia caracterizará a ontologia
como sinônimo de metafísica. Segundo Lukács (2012) um dos primeiros autores a romper com
essa hegemonia será Nicolai Hartmann cunhador da ideia de intentio recta tratada na primeira
seção.
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ser social e enfrentam as dificuldades cognitivas dos setores
singulares de modo puramente gnosiológico ou puramente
metodológico, epistemológico (2012, p. 19).
Compreendemos a ontologia, baseados em Bhaskar (2012; 2014) e
Lukács (2012; 2013), como um estudo do ser não direcionado necessariamente
pelos discursos intersubjetivos da ciência mesmo estes o influenciando-, mas
sim guiado pelo próprio objeto, pela realidade, pela materialidade. Portanto, a
visão de ontologia aqui defendida é materialista.
Para esse rápido excurso sobre a história da ontologia (ou então das
concepções que a sociedade teve sobre si e sobre o mundo, a realidade)
partiremos das sociedades primitivas ainda nômades onde imperava o
conhecimento mágico. Nessas sociedades a ontologia baseada em um
conhecimento mágico sobre o mundo acreditava que a sociedade era mais uma
parte da natureza assim como uma floresta ou uma caverna. Em suma, para o
pensamento mágico não havia uma diferenciação ontológica do ser social com
o ser orgânico e inorgânico (LUKÁCS, 1966).
Com o desenvolvimento das forças produtivas e consequente liberação
de tempo de trabalho novas concepções de mundo foram emergindo, e desta
forma a cosmovisão religiosa começa a se efetivar. No entanto, nestas
sociedades primitivas a ontologia em si ainda não havia se desenvolvido como
campo da filosofia. É na Antiguidade clássica grega, devido ao seu sistema
escravista e militarmente expansionista
5
, que a ontologia
6
passará a ser tratada
como campo relativamente autônomo. Lukács (2012) aponta para essa
tendência grega em grande parte devido a não existência de um poder
sacerdotal nem uma teologia dogmático-obrigatória visto que os mitos
estavam em constante mutação e eram continuamente reinterpretados.
A inexistência desse poder religioso se tornara fundamental dado que a
ontologia religiosa era uma via oposta à ontologia científico-filosófica. A
primeira, segundo Lukács (2012), move-se a partir das necessidades singulares
dos humanos frente aos seus comportamentos cotidianos buscando o sentido
da sua vida, e assim, construindo uma imagem de mundo que, quando
efetivada, poderia realizar os desejos manifestos nessas necessidades ou seja,
os paraísos
7
. Ao ponto que a segunda poderia investigar a realidade objetiva
tratando de compreender o espaço real da práxis humana real.
5
Cabe lembrar que na sociedade grega somente os gregos donos de escravos eram vistos como
seres humanos ao mesmo tempo que sentiam aversão ao trabalho e consequentemente
gozavam de ócio contínuo para as reflexões intelectuais, e por outro lado, o caráter
militarmente expansionista permitia aos gregos pilharem as cidades invadidas, escravizá-las e
roubarem suas riquezas materiais, e principalmente nesse caso, riqueza tecnológica e
científica.
6
Conforme tratada no escopo desse trabalho e definida nos parágrafos anteriores.
7
Para compreender de que maneira na sociedade grega helenística esses desejos religiosos não
se manifestavam tão fortemente ver Lessa (2007) e Tonet (2013).
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Por essa oposição de caminhos entre as ontologias científico-filosófica e
a stico-religiosa que as mesmas, nos seus embates, apelam para as
necessidades teóricas e práticas da vida sentimental dos seres humanos. Não
obstante, dependendo do hic et nunc histórico podem estabelecer relações de
aliança ou concorrência dependendo da estrutura social e da correlação de
forças envolvidas (LUKÁCS, 2012).
É, portanto, por não haver uma resistência teológica dogmática que a
ontologia, conforme mencionamos anteriormente, pode se desenvolver em
direção as questões mais essenciais do ser. São os pré-socráticos
8
até o período
de Sócrates, enquanto a sociedade grega se mantinha em ascensão, que melhor
desenvolveriam esse pensamento ontológico. Após o período helenista e o
início da decadência da pólis grega passa-se a procurar responder à pergunta
que fazer?. Platão é o primeiro filósofo que vai se propor esta tarefa de,
apesar da decadência da pólis, estabelecer uma imagem de mundo onde os
valores morais considerados imprescindíveis para a salvação grega se
tornassem realizáveis e possíveis. Não se trata aqui de delinear todos os
percursos da filosofia grega, mas de explicitar a importância de Platão e outros
para a aliança da ontologia místico-religiosa e científico-filosófica. Com Platão
se inaugura um dualismo ontológico onde, de um lado havia o mundo dos seres
humanos das quais emergem as necessidades religiosas e a ânsia por sua
realização, e do outro, um mundo transcendente que é invocado para fornecer
as garantias dessa realizabilidade do mundo dos homens e dos valores gregos
imprescindíveis (LUKÁCS, 2012; LESSA, 2007). Alguns filósofos, como
Plotino e Proclo irão radicalizar a visão religiosa, enquanto, Aristóteles pode
ser visto como um contragolpe a maior parte das teses platônicas sem,
contudo, romper com o dualismo ontológico
9
.
A gênese do cristianismo é dada nesse ambiente de dissolução da
cultura antiga em que o atendimento prioritário era o da satisfação dos desejos
de salvação da alma humana. Nesse contexto surgem várias seitas religiosas,
no entanto, não cabe a esse trabalho reiterar o passo a passo histórico pelo qual
o cristianismo alcança a hegemonia no império greco-romano, mas nos basta
elucidar a ideia cristã do retorno de Cristo ressuscitado, salvador e da redenção
das almas culminando naquilo que seria os fins dos tempos, o Apocalipse
bíblico, expressão religiosa, portanto, da dissolução da cultura antiga clássica
(LUKÁCS, 2012).
Assim, o cristianismo funda uma ontologia religiosa que marginaliza a
imagem de mundo científica em prol de uma realidade terrena desesperançosa
para a vida pessoal que esperava unicamente o Apocalipse. O juízo final não
8
Demócrito e Epicuro no período helenístico.
9
Em Aristóteles ocorre uma inversão em relação a Platão, trazendo a filosofia para o ambiente
terreno. Entretanto, sua filosofia se manteve fiel a uma visão transcendente e metafísica de
Platão caracterizada pela teleologia preponderante nos campos da realidade.
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ocorreu, mas a fé cristã se manteve apesar das tentativas puristas
10
de
Tertuliano, imperador romano, consideradas heresias subsequentemente.
Assim, aos poucos, o pensamento neoplatônico vai se incorporando a ontologia
cristã culminando na hegemonia religiosa do cristianismo sob Constantino.
Não obstante, as dificuldades encontradas, de um lado, pela Parusia que
não ocorreu e, de outro, pela radicalidade ética do Messias Jesus
constantemente se faziam presentes no cotidiano da Igreja que se via impelida
a rever suas compreensões dogmáticas dada a contradição imanente destes
dois postulados com a prática real e cotidiana. No entanto, apesar de todas
essas reformas de dogmas a visão ontológica essencial
11
se mantinha: de um
lado o mundo dos seres humanos que realizam o seu destino onde seu
comportamento define sua salvação e do outro um mundo cósmico-
transcendente, de Deus, que se constitui enquanto garantia ontológica última
do poder de Deus sobre a terra (LUKÁCS, 2012).
É nesse contexto constante de reformas da Parusia permitida pela falta
de futuro à vida social e consequente manutenção dos desejos cotidianos que
a ontologia religiosa se mantinha forte e resistente. Nesse escopo a teoria da
dupla verdade, como expressão do dualismo ontológico platônico, fornecia
refúgios intelectuais para o desenvolvimento da ciência. Isto é, a ciência teria
seu desenvolvimento permitido caso não atacasse a visão de mundo religiosa
que permitia a dominação moral sobre os indivíduos por parte da Igreja.
É com a derrubada científica do sistema geocêntrico, inicialmente
reprimida como heresia, na polêmica com Galileu que ocorre a inversão dos
objetivos da teoria da dupla verdade. Se antes ela servia para a proteção do
desenvolvimento científico às sombras da ontologia religiosa, agora ela passará
a servir como ideologia religiosa da Igreja para aquelas coisas as quais não
gostaria de renunciar, a saber, que no melhor domínio das forças da natureza
a ciência deveria ser permitida, mas com relação a tudo aquilo que transcende
a manipulabilidade cotidiana da natureza deveria ser mantido sob a custódia
da Igreja. Tal tese é atribuída a cardeal Bellarmino (LUKÁCS, 2012) que,
apesar de frear os impactos desses novos postulados científicos, que emergiam
no período da Renascença, na cosmovisão religiosa, não conseguiu blindar a
ontologia cristã dessas influências cada vez maiores. Brecht, na peça de teatro
que retrata a vida de Galileu, traz muito bem, pela arte, a fala de cardeal
Bellarmino quando este defende a teoria da dupla verdade ao cardeal
Barberini:
10
Para Paulo, apóstolo de Cristo, deveria existir a ontologia religiosa. Para compreender
melhor o desenvolvimento do cristianismo recomendamos Marx (2015), sobre a questão
judaica, e Mészáros (2017).
11
Nietzsche irá definir o cristianismo como platonismo para o povo, no entanto, essa visão
crítica não é favorável a humanidade e sim ao escravismo. Losurdo (2015; 2004) demonstra
como a crítica de Nietzsche era favorável ao escravismo.
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Vamos marchar com os tempos Barberini. Se os mapas celestes, que
dependem de uma hipótese nova, facilitam a vida de nossos
navegantes, eles que usem os mapas. O que nos desagrada são
doutrinas que tomam por erradas as Escrituras. (BRECHT, 1999, p.
111)
Ou seja, ao campo científico ficaria reservado os limites gnosiológicos
do conhecimento para a sua utilidade cotidiana, enquanto às Escrituras
deveriam se manter o trato e a explicação sobre a essência do mundo terreno
e sagrado.
Como dito, tal compromisso bellarminiano não conseguiria evitar o
avanço de uma ontologia científico-filosófica que, mesmo ainda sob o domínio
ideológico da Igreja, já se manifestava nos textos científicos de fervorosos
religiosos como Blaise Pascal e nas obras de arte como as de Michelangelo.
A tese bellarminiana será desenvolvida filosoficamente nos trabalhos de
Berkeley e Kant que procuram demonstrar gnosiologicamente não ser possível
atribuir significado ontológico ao conhecimento produzido sobre o mundo
material. Em Kant (2009) se institui a coisa-em-si incognoscível e em Berkeley
(2010) que todo conhecimento é produção subjetiva, sensível e solipsista. A
conclusão evidente dessas teses é que deveria ser devolvida a religião o direito
de determinar a ontologia do mundo (LUKÁCS, 2012).
Em grande medida aquilo que advogaremos ser o silêncio ontológico
em Wittgenstein é a manutenção e afirmação da tese bellarminiana.
O Tractatus logico-philosophicus e a exposição do silêncio
ontológico
No Tractatus Wittgenstein vai desenvolver uma fundamentação
filosófica que articula duas esferas: a estrutura essencial do mundo e a
estrutura essencial da linguagem. A mediação entre essas duas estruturas é
feita pela lógica
12
. Influenciado principalmente por Frege em sua obra
Conceitografia e por Russell no desenvolvimento logicista da matemática,
Wittgenstein desenvolverá um projeto filosófico único na linha daquilo que
Badiou (2013) chamará de antifilosofia.
Como afirmamos anteriormente, nosso interesse está em compreender
de que maneira a ontologia se faz presente nas duas obras wittgensteinianas,
demonstrando como a questão da ontologia constitui uma continuidade frente
a descontinuidade daquilo que se convencionou chamar de primeiro e segundo
Wittgenstein. É nessa direção que precisamos iniciar com a compreensão de
12
Segundo Condé (1998) existe uma polêmica nessa questão, para alguns comentadores a
lógica é a estrutura essencial das duas esferas que se articulam, enquanto para outros a lógica
é quem permite a mediação entre as duas esferas.
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mundo, e como essa compreensão se manifesta na linguagem para
Wittgenstein.
Para Wittgenstein (1968) um isomorfismo lógico entre mundo e
linguagem, e tal isomorfismo vai estar marcadamente presente durante toda a
obra do Tractatus. Compreender a ontologia do mundo de Wittgenstein é
compreender a essência da linguagem. Segundo Black:
É característico do pensamento de Wittgenstein que quase cada uma
de suas observações principais sobre linguagem ou lógico tem um
contraponto ontológico, enquanto, reciprocamente, cada
observação ontológica está refletida em alguma verdade sobre a
essência da linguagem. (Apud CONDÉ, 1998, p. 66)
Para o filósofo austríaco a linguagem afigura o mundo, pois as duas
esferas compartilham a forma lógica, de forma que, operar com rigor na
realidade é operar com rigor na forma lógica da linguagem (TLF, §2.18)
13
visto
que a lógica não é um mero instrumento para se conhecer, ela transcende, é a
“figuração especular do mundo” (TLF, §6.13). Em suma, a lógica é a essência
da realidade, uma categoria ontológica.
Os objetos constituem o fundamento ontológico, são os elementos
últimos e simples que compõe a estrutura do mundo, caracterizando-se como
uma existência lógico-transcendental. Carregam em si a condição de
possibilidade de um estado de coisas. Tais objetos são a substância do mundo
(TLF, § 2.02), o invariável (TLF, §2.03). Para além disso, sua existência não
pode ser pensada fora da combinação com outros objetos, isto é, pensada como
estado de coisas. Ou seja, há em Wittgenstein (1968) um atomismo ontológico
no qual os objetos, essências ontológicas do mundo, são impensáveis em suas
características particulares. O fundamento ontológico do mundo, os objetos,
não são pensáveis. Somente são pensáveis as suas combinações em um estado
de coisas. Aqui reside o primeiro problema ontológico de Tractatus: como
podemos pensar o múltiplo, o estado de coisas, se seus elementos constituintes
são impensáveis?
Por outro lado, há um segundo problema ontológico que Badiou (2013)
traz à tona. Refere-se a correlação entre a substância do mundo e o próprio
mundo. No §2.24 Wittgenstein (1968) afirma que a substância da realidade é
independente do que ocorre, no entanto, em §1 caracteriza a realidade do
mundo como tudo o que ocorre. Por conseguinte, não há relação entre os dois
dada sua independência? Ou a substância do mundo é externa ao mundo?
Ao primeiro problema ontológico Wittgenstein tenta resolver a partir da
designação ao nomear os objetos (TLF, §3.22). Designação que não é
13
Seguiremos com o uso de referenciação as obras de Wittgenstein utilizado pelos principais
interlocutores, onde aparecem inicialmente a abreviatura da obra correspondente, e em
sequência de qual aforismo ou proposição estamos referenciando.
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pensamento, proposição nem descrição. É em verdade uma representação em
um quadro (TLF, §2.13). Portanto, o acesso ou o pensar um objeto é dado na
nomeação deste num cenário, em um estado de coisas. Isto é, a nomeação fixa
o objeto em um estado de coisas e então se pensa com e a partir dele, mas não
o que é ele:
Posso nomear apenas objetos. Os signos os substituem. Posso
apenas falar sobre eles, não posso, porém, enunciá-los. Uma
proposição pode apenas dizer como uma coisa é, mas não o que é.
(WITTGENSTEIN, 1968, §3.221)
Noutra direção, este estado de coisas não pode ser nomeado, mas
somente descrito (TLF, §3.114). Esta disjunção entre o que se pode nomear e
descrever, é resultante direta da questão daquilo que só se pode dizer e do que
só se pode mostrar.
Condé (1998) apoiado em Stenius fala de um mostrar interno e de um
mostrar externo (descritivo) das proposições. Este mostrar externo descritivo
é que se diz sobre o estado de coisas. O mostrar interno seria dado pelo caráter
ontológico do mundo mostrando a realidade interna, aquela que não pode ser
dita. O que pode ser dito é o que pode ser descrito, enquanto o dizer sobre essas
questões internas (ontológicas, isto é, a lógica) é um absurdo, tal forma lógica
não é descrita pelas proposições, ela somente se mostra nelas. Portanto, o
ontológico se mostra. Assim, o objeto pode ser mostrado (denotado) e o
estado de coisas dito (proposição descritiva).
O estado de coisas, entretanto, se constitui como uma possibilidade de
acontecer no mundo, e seu acontecimento é sempre acidental casuístico,
fortuito. Portanto, uma proposição que descreve um estado de coisas, e carrega
em si o objeto pela sua denotação (nome), é sempre uma proposição de
possibilidade. Em uma direção paralela, podemos compreender que o papel da
ciência é o de expor o dizível, descrever todos os estados de coisas possíveis.
Como na proposição se descreve o estado de coisas e esta é sempre uma
justaposição de objetos conectados como quadros desconexos, também os
estados são atomizados (TLF, §2.061). É nessas proposições atômicas,
elementares, que estão concentrados de um lado a relação entre objeto e estado
de coisas, e de outro, a relação entre substância e mundo.
Há, portanto, um atomismo objetal e um atomismo entre estado de
coisas. Essas proposições de possibilidade terão sentido se forem
imediatamente compreensíveis, isto é, o sentido da proposição não está na
experimentação do mundo, mas em sua forma lógica compartilhada com o
mundo. É por isso que a proposição é sempre um pensamento com sentido.
Sentido sendo entendido como uma característica da substância do ser eterno,
invariável, imutável. Badiou (2013) chamará a tal ontologia de virtual em
contraposição ao real. As proposições sobre os estados de coisas são ditas
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verdadeiras se ocorrem no mundo, e falsas se não. Como tudo o que ocorre é
fortuito (TLF, §6.41), acidental, não razão para uma conexão, uma ligação,
entre o que ocorre e o ser possível da substância. A verdade é uma simples
constatação empírica (TLF, §2.223), apartada do sentido, casuística.
Como Wittgenstein opera nessa resolução do atomismo, no entanto, se
não sentido em dizer algo sobre os objetos, sobre a essência do mundo, mas
somente pode ser mostrada tal essência? Como Wittgenstein mostra a
essência ontológica do mundo?
Para Wittgenstein, com continuidade em toda a sua vida, e marcado de
maneiras caracteristicamente resolutiva em cada uma das obras aqui
estudadas, a filosofia estará enferma e tomada por problemas que seriam
pseudoproblemas, problemas mal postos e inefáveis, pois a maioria deles nem
se quer são “falsas mas absurdas” (WITTGENSTEIN, TLF, § 4.003). Para
Wittgenstein (1968) o absurdo é aquilo que é desprovido de sentido, e se é
desprovido de sentido não pode ser um pensamento (TLF, § 4.000). Assim, a
maior parte da filosofia não pode, se quer, ser considerada um pensamento.
Explica o filósofo austríaco que essa enfermidade filosófica surge quando algo
sem-sentido se expõe como sendo dotado de sentido, isto é, quando um não-
pensamento se expõe como forma de pensamento. Em grande parte, para
Wittgenstein (1968) a filosofia não repousa sobre a necessidade de produzir
teoria, mas é uma atividade (TLF, § 4.112) de forma tal que os problemas da
vida não seriam resolvidos se todos os problemas científicos fossem resolvidos
(TLF, § 6.52). Dessa forma, o que Wittgenstein (1968) está querendo dizer é
que não é tarefa da filosofia expor teorias para resolver os problemas da vida,
mas sim permitir que essas questões da vida se mostrem, de maneira que
aquilo que existe não pode ser expresso em proposições verdadeiras, mas
somente pode ser mostrado. Assim, a tarefa da filosofia deve ser de demarcar
os campos das coisas dizíveis (e consequentemente pensáveis) para assim
também demarcar o campo das coisas dadas que se caracterizam como
indizíveis e impensáveis destituídas de sentido (TLF, § 4.114, §4.115) donde
estas questões indizíveis que são dadas no mundo e consequentemente
informuláveis pela filosofia somente possam ser mostradas, e se mostradas
“são o que de místico” (TLF, §6.522). Esse elemento místico em
Wittgenstein é caracterizado por uma mistura de Evangelho com música
clássica, ao ponto de afirmar que “ética e estética são um só” (TLF, §6.421).
Quando Wittgenstein (1968) aborda que a enfermidade da filosofia são
proposições sem-sentido se apresentarem como dotadas de sentido ele está
elucidando o papel da linguagem na apresentação dessas proposições. É a
partir da linguagem que coisas sem sentido se mostram com sentido. Isso
ocorre, segundo o autor, pela falta de clareza entre os limites do dizível e do
indizível, daquilo que pode ser dito com aquilo que pode ser mostrado. O
elemento místico que marca o pensamento de Wittgenstein (1968) é o
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cristianismo. Dado que as proposições científicas, dotadas de sentido, nada
podem falar/resolver sobre os problemas da vida, para Wittgenstein, o
cristianismo clarifica o sentido da vida e consequentemente do mundo, visto
que “sou meu mundo” (TLF, §5.63).
Objetivamente, assim, o sentido do mundo não pertence ao dizível,
estando fora do alcance deste podendo ser compreendido como transcendente,
isto é, algo exterior ao mundo. “O sentido da vida, dito de outro modo, o
sentido do mundo, pode ser chamado de Deus” (WITTGENSTEIN, 1916 apud
BADIOU, 2013, p. 26), visto que Deus não se revela no mundo (TLF, § 6.432)
e o místico é o sentimento dos limites do mundo (TLF, §6.45). Assim, o místico
que define os limites do mundo, é Deus. Igualmente, na subjetividade o
cristianismo expressa o sentido da vida individual, da vida bela e plena que
conduz a felicidade, isto é, a vida com sentido conduz a felicidade, mas esse
sentido da vida está fora do mundo. Dessa forma, para Wittgenstein (1968) o
sentido do mundo está fora dele, mas não consegue elaborar proposições que
se querem dotadas de sentido dentro da linguagem, visto que o sentido do
mundo é indizível. É por esta razão que Wittgenstein escreverá a Ficker em
1919 dizendo que em seu livro conseguiu restituir as coisas ao seu devido lugar
sem falar sobre elas (BADIOU, 2013). Assim, apesar da ciência poder ter
resolvido todas as questões pertinentes a si, aquelas as quais ela pode dizer,
mesmo assim, para Wittgenstein os problemas mais fundamentais da vida
nem terão sido compreendidos.
Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis
tenham sido respondidas, os problemas da nossa vida não terão sido
se quer tocados. Nesse caso, é claro que não restará mais nenhuma
questão, e essa é precisamente a resposta. Percebe-se a solução do
problema da vida no desaparecimento desse problema. (Não é por
essa razão que as pessoas, para as quais, após longas dúvidas, o
sentido da vida se tornou claro, não puderam dizer em que consiste
esse sentido?) , entretanto, o inefável, ele se mostra, é o místico.
(Apud LUKÁCS, 2012, p. 56)
É assim que o silêncio ontológico se manifesta no Tractatus, ao pôr a
essência do mundo como externa a ele, como algo indizível, e por diversas
vezes somente sensível, num caráter estético, que Wittgenstein termina sua
obra afirmando que sobre aquilo que não se pode falar, ou dizer, deve-se calar
(TLF, §7). O silêncio ontológico é esse calar-se frente ao mundo,
compreendendo que o mesmo se entende numa contemplação místico-
religiosa.
No que concerne à matemática é esclarecedor a passagem §6.21 onde
afirma que as “proposições matemáticas não expressam pensamento algum”
(WITTGENSTEIN, 1968). Isto é, não são dotadas de sentido, se configuram
como pura tautologia. Se elas são impensáveis, sem sentido, não são dotadas
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de construto ontológico. Mas, se não é dotada de sentido é impensável
formular questões sobre ela, e ela sobre si mesma, tornando-se impossível que
seus problemas matemáticos sejam resolvidos. Em suma, Wittgenstein ignora
a história da matemática e de como o impensável/impossível se tornou
possível em muitas situações em que o sem sentido ganhou sentido, basta
lembrarmos do paradoxo dos incomensuráveis e da sua resolução por Eudoxo.
O silêncio ontológico se faz presente na matemática, e assim como a lógica -
pois ela é um simples método lógico (TLF, §6.2) , a mesma é usada para
carregar o silêncio ontológico às discussões filosóficas dado que usamos a
matemática somente para inferir (TLF, §6.211). Badiou (2013) afirma que não
no Tractatus uma filosofia da matemática, mas sim um ataque a
matemática e a sua constituição ontológica, visto que esta seria puro cálculo,
pura tautologia e se reservaria a ser usada nos artifícios da linguagem.
O silêncio ontológico nas Investigações filosóficas
Existe uma grande ruptura de modo de exposição filosófica do
Tractatus para as IF (Investigações filosóficas). Para Condé (1998) essa
diferença do modo de exposição é vinculada a ruptura do fazer filosófico do
primeiro para o segundo Wittgenstein, dado que no primeiro a linguagem
mostrava sua essência na forma lógica das proposições, e consequentemente a
essência do mundo se mostrava nessa linguagem ideal. Por outro lado, para o
segundo Wittgenstein (1991) a linguagem deixa de ter uma essência, algo
comum, sendo marcada exclusivamente por semelhanças e dissemelhanças
(IF, §65) e dessa forma rompe com as sucessivas tentativas de se aproximar da
realidade (IF, §130), de afigurá-la. Esta postura antiessencialista da linguagem
deriva, para Condé (1998), em uma visão antiessencialista do mundo.
Condé (1998; 2004) discute o caráter ontológico do mundo em
Wittgenstein a partir da relação linguagem-mundo, e trará as diferentes
perspectivas dos principais comentadores nacionais e internacionais sobre a
temática. No entanto, para todos estes comentadores e para o próprio Condé
(1998; 2004) a ontologia é entendida como metafísica, como uma essência que
transcende ao signo
14
. Nesse sentido, compreendendo ontologia como
metafísica, o próprio Wittgenstein (1991) esclarece ao afirmar que nas IF sua
tarefa, e a tarefa da filosofia, foi de reconduzir “as palavras do seu emprego
metafísico para seu emprego cotidiano” (IF, §116). Em diversas outras
passagens, que serão exploradas na sequência, o filósofo austríaco trata de
evidenciar essa postura antimetafísica. No entanto, em outro momento afirma
14
É devido a essa característica de divergência de fundamentação teórica do que vem a ser
Ontologia que a conversação contínua com tais interlocutores não é ponto-chave na discussão
que procuramos trazer.
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que a essência da linguagem, ou dos jogos de linguagem, está dada na
gramática (IF, §371), e como veremos a gramática é dada na cotidianidade das
formas de vida. Para Condé (1998) na verdade uma ampliação da
compreensão da lógica como essência do mundo, uma compreensão que se
distancia da lógica como transcendental aos signos, mas que se faz presente na
práxis da linguagem.
Em suma, por certos momentos defenderemos que não uma visão
antiessencialista da linguagem em Wittgenstein (1998), mas uma inversão
ontológica, que rompe com o idealismo e se aproxima do materialismo, ao
mesmo tempo que inaugura uma concepção essencial da linguagem muito
próxima das concepções dialéticas da linguagem como fenômeno social, mas
ainda assim insuficientes, em grande parte pelo autor austríaco não tomar a
historicidade da linguagem como parte necessária na compreensão da
gramática. A tese interpretativa que pretendemos apresentar se aproxima
muito de Rossi-Landi (1985).
No Tractatus a linguagem é compreendida como aquela que afigura ao
mundo, onde a representação dos objetos do mundo se pela denotação.
Assim, a significação dos nomes nas proposições sempre é dada por uma
existência extralinguística. Nas IF a significação está vinculada aos usos que
fazemos das palavras e expressões. No entanto, afirma Condé (1998), não é um
uso destas nas proposições lógicas, mas em diferentes contextos sociais de
práxis linguística que permite fazermos uma equiparação entre uso e
significação, visto que a “significação de uma palavra é seu uso na linguagem”
(IF, 1991, §43). Desta forma, as palavras e as expressões mudam suas
significações nos diferentes contextos em que são utilizadas. Monk (1997) nos
lembra dos gestos que foram feitos a Wittgenstein com denotação negativa (o
levantar do dedo médio). Rossi-Landi (1985) inclusive coloca essa importante
influência no colo de Sraffa que teria influenciado fortemente na inversão
filosófica de Wittgenstein, influência esta que o filósofo austríaco reconhece no
prefácio. Sraffa foi um marxista italiano, e sua influência é ignorada pela maior
parte dos biógrafos de Wittgenstein, principalmente por lançar luz para uma
visão materialista da linguagem em Wittgenstein, e rompendo com muitas
visões religiosas das IF (ROSSI-LANDI, 1985). Este mesmo autor, Rossi-Landi
(1985), questiona como seguidores de Wittgenstein mantiveram-se católicos
dada a sua visão materialista da filosofia, e comenta que a defesa de uma
impossibilidade de relacionar as diferentes passagens do livro das IF entre si,
por serem retratos apartados de um grande álbum, são para evitar evidenciar
essa compreensão materialista da linguagem, afinal, as essências das palavras
estão na cotidianidade (IF, §116).
Para compreender a significação de uma palavra é necessário que
compreendamos seu vínculo com os diferentes jogos de linguagem. Estes jogos
são mais do que simples usos de palavras, mas incorporam gestos, comandos,
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ordens, sendo assim o “conjunto da linguagem e das atividades com as quais
está interligada” (IF, §7), e existe uma multiplicidade de jogos de linguagem
que guardam entre si semelhanças de família. Não é simplesmente algo em
comum, mas somente semelhanças, como que traços mutáveis de um jogo a
outro. Wittgenstein (1991) procura discutir exaustivamente a gramática da
palavra jogo, onde os jogos modificam suas regras entre si de maneira
constante, não existindo princípios comuns a todos eles, no entanto, são
capazes de perceber traços característicos que marcam a todos eles. Essa
multiplicidade de jogos de linguagem (comandar descrever, desenhar, relatar,
conjecturar, inventar, cantar, traduzir, pedir etc.) não guardam semelhanças
com aquilo que os lógicos falavam da estrutura da linguagem.
Por outro lado, imaginar um jogo de linguagem é imaginar
15
uma forma
de vida (IF, §19). A forma de vida [Lebensform] é considerada uma das
dimensões mais importantes das IF, no entanto, aparece somente cinco vezes
durante todo o texto. Sua importância fundamenta-se no fato da linguagem
não ser algo que flutua sobre a forma de vida, sobre a cotidianidade, ela é
prática corrente dessa própria forma de vida, é uma atividade na e da forma da
vida (IF, §23), a linguagem emerge da forma de vida (CONDÉ, 1998). A forma
de vida pode ser compreendida como uma malha social extensiva e
intensivamente complexa, é a nossa cultura, algo característico dos seres
humanos, própria de nossa natureza (IF, §25).
Desta maneira, poderíamos nos questionar qual a relação entre
linguagem e forma de vida, ou melhor, a relação entre linguagem e mundo nas
IF? Condé (1998), apoiado em diversos comentadores, compreende que esse é
um falso problema, pois a linguagem é parte constituinte da forma de vida,
assim, não são esferas disjuntas que necessitam se relacionar. Por isso, a
discussão de relação entre linguagem e mundo é metafísica, pois sua resolução
já está dada na gramática.
A gramática
16
é quem regula os jogos de linguagem, as formas de vida.
Em grande parte, uma equiparação entre jogos de linguagem e formas de
vida, onde pensar uma forma de vida (o mundo, a cultura) é pensar um jogo
de linguagem. E assim, compreender a gramática dos jogos de linguagem
15
Do alemão Vorstellen, que pode ser compreendido como colocar algo frente a si, posicionar-
se frente a si para melhor compreender. Esse posicionar-se a sua frente tem conotação
conceitual e temporal, assim, sua tradução é complicada. Alguns tradutores a traduzem como
imaginar, outros como representar.
16
Os comentadores de Wittgenstein fazem uma distinção entre gramática superficial e
gramática profunda. A gramática superficial é aquela que se detém as características evidentes
das palavras, enquanto a gramática profunda engloba esta, mas se aprofunda nos diferentes
usos dessas palavras nos jogos de linguagem. Sempre que falarmos em gramática estamos nos
referindo a gramática profunda (CONDÉ, 2004; 1998).
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permite a compreensão daquela forma de vida da qual o jogo emerge
17
e
expressa (CONDÉ, 1998).
Para Wittgenstein (1991) a gramática deixa de ser aquela que analisa a
sintaxe lógica das proposições, e passa a compreender os diferentes usos das
palavras e expressões. Dessa maneira, uma expansão da compreensão de
significação, donde esta deixa de estar vinculada a um objeto fixo do mundo
extralinguístico, e passa a ser dado nos diferentes usos da linguagem fazendo
a significação surgir da práxis da linguagem. Por outro lado, uma ampliação
da noção de ter sentido, pois agora uma expressão terá sentido se estiver de
acordo com as regras gramaticais de determinado jogo de linguagem. Isto é, a
proposição, expressão fará sentido se fizer sentido para a forma de vida donde
age e atua.
A gramática não é simplesmente quem regula os discursos, ou os
normatiza. Ela verifica e expressa a pluralidade dos usos das palavras,
expressões etc., nos diversos modos de discurso. Em síntese, a gramática é
aquela que incorpora em si a regra a qual devemos seguir em um jogo. O seguir
a regra não é algo impositivo, mas ao mesmo tempo é aquele que regula o
sentido no jogo de linguagem. O deixar de seguir a regra, ou contradizê-la
também deve fazer sentido para o jogo de linguagem. Assim, a gramática que
incorpora em si essas regras não é simplesmente quem direciona, mas quem
expressa e detém as pluralidades.
É nesta direção que Wittgenstein (1991) afirma que a “essência está
expressa na gramática” (IF, §371). Para Condé (1998) essa essência não é
ontológica, mas sim uma ampliação da noção de lógica que é compartilhada
entre mundo e linguagem, pois “as regras gramaticais incorporam as
necessidades lógicas surgidas da prática efetiva de uma dada comunidade, isto
é, de uma forma de vida” (CONDÉ, 1998, p.173). Desta forma, para o
interlocutor de Wittgenstein a questão de relacionar linguagem e mundo é um
falso problema, pois surge de um mal-entendido gramatical, que assim como
nós nos cabelos, sua resolução é desmanchá-los a partir da análise gramatical.
A escolha de Condé (1998; 2004) para essa interlocução com as
tentativas resolutivas sobre a relação entre mundo e linguagem é em grande
parte pelas leituras metafísicas feitas por autores internacionais, e como essas
leituras aparecem discutidas e criticadas na obra supracitada. Em suma,
Condé realizou um trabalho crítico importante na área da ontologia em
Wittgenstein, e se aproxima de uma forma resolutiva mais abrangente e
coerente que outros comentadores. Portanto, criticamos partes das
17
Cabe compreender que o emergir para Condé (1998) é um emergir pragmático,
antiontológico, que se nos diferentes usos que surgem na forma de vida, assim se
distanciando da emergência bhaskariana como característica ontológica da realidade.
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compreensões de Condé, e procuramos uma interpretação materialista da
filosofia de Wittgenstein, compreensão esta que pode expressar os seus limites.
Para Condé (1998) esse falso problema de relacionar mundo e
linguagem surge da confusão entre proposições gramaticais e proposições
autênticas. As proposições autênticas são dotadas de sentido e conteúdo, isto
é, os usos das palavras se fazem presentes em determinada gramática, ao
mesmo tempo que representam uma forma de vida. Por outro lado, as
proposições gramaticais são aquelas que expressam regras de uso disfarçadas,
ilusões (IF, §111). Geralmente abstrações da própria gramática, que se
travestem de proposições autênticas, mas sem sentido e conteúdo, e naquilo
que Wittgenstein (IF, §251) condecora como sem representação contrária.
Quando falamos essa barra tem um metro”, nossa frase tem sentido, conteúdo
e pode ser negada, no entanto, quando falo “toda barra tem um comprimento”
estou em verdade colocando como proposição uma convenção gramatical. Isto
é, afirmar que toda barra tem comprimento é, em verdade, travestir uma
convenção gramatical de proposição autêntica que representa uma forma de
vida.
Relacionar mundo e linguagem é, assim, uma ilusão gramatical que
quer se travestir como proposta proposicional autêntica. Isto é, não como
existir uma proposição com sentido e conteúdo que expresse a relação de
linguagem e mundo, visto que essa relação é dada na gramática. Nesse aspecto,
afirma Condé (1998) que não há uma negação da metafísica em Wittgenstein,
mas que na verdade, é uma ilusão gramatical falar sobre ela, visto que a
linguagem é uma práxis do próprio mundo.
A negação ontológica em Wittgenstein é a dos termos tractatianos, pois
agora a lógica não é algo que paira sobre o mundo, mas fruto da necessidade
da gramática. A lógica se expressa nas regras da gramática: são lógicas,
consensos, convenções. Ela deixa de ser uma superordem da linguagem (IF,
§97), é nesse sentido que Wittgenstein propõe voltar a linguagem ao solo
áspero (IF, §107), uma defesa da materialidade da linguagem e da
compreensão do mundo. Condé (1998; 2004) crê resolver a questão ontológica
entre linguagem e mundo pulverizando a linguagem dentro do mundo.
Mesmo que a linguagem seja parte constituinte do mundo e que o
mundo exista a partir dos diferentes jogos de linguagem de forma a não existir
uma essência da linguagem, no entanto, como que uma substância tractatiana
que se mantém imutável, a relação entre mundo e linguagem ainda se mantém
aberta. Não se resolve essa problemática dissipando e pulverizando a
linguagem na práxis cotidiana como crê Condé (1998). A linguagem é um
complexo social que mantém autonomia relativa frente à realidade do mundo,
seja da natureza, seja da cultura. Essa autonomia é trazida pelo aforismo §371
das IF onde a essência está expressa na gramática, e não é a essência da
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linguagem ou da realidade, mas a essência dessa forma de vida donde emerge
a linguagem. Assim, a essência da realidade está na gramática.
Da mesma forma, quando Wittgenstein afirma trazer a linguagem de
volta ao solo áspero (IF, §107) está advogando a materialidade da essência que
se faz presente na gramática, pois o retornar ao solo áspero é uma resposta ao
não caminhar no solo ideal da lógica do Tractatus. Isto é, Wittgenstein não
está ampliando o conceito de lógica do Tractatus, está o negando como algo
que nos impede de caminhar, um perigo das sutilezas de querermos descrever
tudo aos mínimos detalhes (IF, §106). Portanto, a essência da realidade, dada
na gramática, se faz presente na materialidade do cotidiano, e negando a lógica
do Tractatus essa essência deixa de ser imutável e eterna, passa a ser dada
somente pelas semelhanças e dissemelhanças de família. Em suma,
Wittgenstein (1991) inicia um movimento em direção a compreensão da
essência como descontinuidade na continuidade, mas se mostra incapaz de
desenvolvê-la.
Durante todo o texto das IF a descrição, o desenrolar e destrinchar dos
fenômenos linguísticos cotidianos se fazem presentes, e a essência desses
fenômenos é invocada somente em um momento, com uma citação altamente
complexa no aforismo §371. Este constante destrinchar dos fenômenos
linguísticos cotidianos, da compreensão da gramática dos usos das palavras
nos diferentes jogos de linguagem chega a dar a ideia de uma relação
fantasmagórica entre os jogos de linguagem. Por vezes, as relações da realidade
das formas de vida parecem ser feitas por jogos de linguagem, regulados por
gramáticas, e não por sujeitos sociais. Rossi-Landi (1985) faz essa comparação
com a existência fantasmagórica da mercadoria, onde parece haver uma mão
invisível que fazem as mercadorias serem trocadas no mercado, quando em
verdade, em sua essência são sujeitos sociais, os humanos, que vão ao mercado
e fazem a troca. De modo semelhante podemos compreender os jogos de
linguagem, onde eles estão dados e as interrelações entre eles representam as
interrelações da cultura, como que a linguagem fosse pública e disposta a todas
as pessoas, bastando elas serem treinadas nesses jogos de linguagem.
A linguagem em Wittgenstein é, portanto, pública e não social, e isto fica
evidente nas passagens do ensino como treinamento (IF, §5 e §6). É pública,
pois rejeita-se uma linguagem privada visto que ela ocorre com no mínimo
duas pessoas, entretanto, não é social, pois está mais preocupada em descrever
os usos de uma linguagem dada, do que compreender sua gênese para a
formação social das individualidades e da humanidade. Isto é, a linguagem não
é social nas IF, pois não se analisa a essência da realidade presente na
gramática, não se interroga sua formação. Desta forma, as crianças estão
biologicamente formadas e precisam ser somente treinadas nas regras dos
usos dos jogos de linguagem, visto que a linguagem é um óculo que está sobre
nariz com o qual vemos o mundo e nem se quer pensamos em tirá-lo (IF, §103)
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e que compreender uma linguagem significa compreender uma técnica, na
qual os usos das palavras e expressões são hábitos (IF, §199). Assim, a criança
e o adulto não estão de acordo com as opiniões expressas pela linguagem, mas
sim com o modo de vida ao qual estão sendo treinados (IF, §241). Portanto, o
materialismo presente das IF é predominantemente empirista e biologizante
(IF, §158).
Por mais que deixar de seguir a regra seja possível, não é consciente,
pois seguir a regra da gramática é uma ação cega (IF, §219), assim transformar
um jogo em outro se põe como possibilidade essencial presente na gramática.
No entanto, por que não se faz presente em Wittgenstein a análise mais detida
de como se essa transformação de determinadas regras gramaticais de um
jogo de linguagem em outras regras gramaticais, a partir das formas de vida?
É pela falta da história e do desejo de compreender a descontinuidade na
continuidade da essência que não se cogita a ideia da importância da
linguagem para a formação social da humanidade.
Durante toda a sua vida Wittgenstein esteve preso a uma visão
cosmológica cristã, de contemplação místico-religiosa do que está dado, razões
pelas quais a filosofia deveria, para ele, deixar tudo como está. Essa
contemplação é marcadamente presente em suas cartas e nas relações com a
família e o mundo. Perder irmãos para o suicídio, ver o mesmo sempre como
possibilidade em sua vida, ter relações sexuais homossexuais e se condenar
posteriormente, faziam da sua vida uma constante contradição entre a
materialidade cotidiana e a cosmologia místico-religiosa
18
, é essa cosmovisão
que evitará os avanços de Wittgenstein no campo de uma teoria materialista
da linguagem, fazendo-o parar em visões empiristas e biológicas.
Esta cosmovisão, que marcadamente se faz presente na negação da
constituição de uma teoria, onde a filosofia deixa tudo como está que faz Rossi-
Landi (1985) afirmar que, apesar da inversão ontológica da linguagem em
direção a materialidade, ainda lhe falta uma teoria da sociedade e da história,
isto é, uma concepção ontológica do ser social (que não fosse a místico-
religiosa), de forma que sua ontologia materialista virtual e ingênua congrega
a forma de vida como materialmente dada com uma essência de teor místico.
Portanto, a filosofia em Wittgenstein (1991) não deve dar uma visão de
totalidade, uma autêntica ontologia, negando assim qualquer produção teórica
por parte da filosofia como sendo doentia (IF, §109).
A doutrina do dizer e do mostrar continua presente nas IF, portanto,
pois “diga o que quiser dizer, contanto que isso não o impeça de ver o que
ocorre. (E quando ver isto, deixará de dizer muita coisa)” (IF, §79). Isto é, o
18
Pensamos que Monk (1997) é uma boa referência. No entanto, a vida material de
Wittgenstein foi explorada em diversos meios (cinema, livro, teatro), mas ironicamente as
pontes entre suas contradições pessoais e sua obra teórica dificilmente são feitas. Rossi-Landi
(1985) chama isso de um vazio historiográfico na obra de Wittgenstein.
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contemplar a vida cotidiana como algo dado de maneira místico-religiosa
impede e, ao ver de Wittgenstein, evidencia que muitas coisas não precisam e
não devem ser ditas. Assim, o silêncio ontológico se expressa pela negação da
teoria, em prol de uma contemplação do que está dado nesses usos descritos
dos significados já existentes. O silêncio ontológico se mantém a partir de uma
visão místico-religiosa da essência do mundo, assim como no Tractatus.
A matemática e a educação matemática
No que concerne à matemática e a educação matemática, importante
salientar, que não se trata de discutir as contribuições de Wittgenstein para a
filosofia da educação matemática, mas de compreender e explicitar os
impactos do silêncio ontológico numa compreensão wittgensteiniana da
filosofia da matemática ou da educação matemática
19
.
A matemática pode ser compreendida nesse ínterim de discussões da
linguagem e da ontologia do mundo como formada por proposições
gramaticais que trazem em si abstrações das regras de uso da cotidianidade
das formas de vida. Essa abstração se a partir das convenções lógicas nos
seus emaranhados usos da cotidianidade, como que fibras que torcidas juntas
a outra formam a continuidade de um fio, que aparenta ter uma essência que
se conduz por todo o fio, mas em verdade, é uma conexão constante de regras
que se convencionam a partir dos usos. Assim, a matemática, como abstração
tautológica das regras de uso da gramática, normatiza os jogos de linguagem
(que são equivocadamente equiparados a realidade cultural do mundo em
Wittgenstein).
A filosofia quando pensa a matemática também deixa tudo como está
(IF, §125), de maneira que a matemática expressa pura tautologia, proposições
inautênticas sobre o mundo, isto é, nada dizem sobre o mundo, e somente se
expressam como regras gramaticais. Como podem tais regras gramaticais
expressas pela matemática mudar a partir das transformações das formas de
vida, descontinuar-se numa continuidade, não é discutido por Wittgenstein.
Não por não querer, mas por crer que se deve ignorar, visto que a essência
presente na gramática era produto de sua reflexão. Mas, esse ignorar é por crer
que seria um problema mal posto, pois é puramente gramatical de fato, e
assim, nada pode se dizer sobre ele, a não ser mostrá-lo nas diferentes formas
de vida. Assim, silencia-se frente ao caráter ontológico da matemática por
compreendê-la somente como regras gramaticais dos jogos de linguagem. Em
suma, além de silenciar também esvaziou ontologicamente a matemática, não
19
Não obstante, essa é a razão para não analisarmos a obra em que Wittgenstein se debruça
sobre a matemática, visto que lá não se constitui o silêncio ontológico como continuidade nas
descontinuidades.
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obstante, que os teóricos que usam Wittgenstein atualmente sempre o fazem a
partir de uma teoria social externa ao seu pensamento (WAGNER; SILVEIRA,
2019).
A matemática ao ser compreendida desta forma abre as portas a
possibilidade de uma defesa tecnicista de seu ensino. Quando vista como um
jogo de linguagem, ou então, vários jogos de linguagem que se relacionam por
semelhanças de família, a matemática, ou as matemáticas, são consideradas
como públicas e não sociais: as mudanças nas regras do jogo podem ocorrer
para Wittgenstein, e cada regra do jogo de linguagem matemático é a
cristalização de relações sociais de determinada forma de vida da qual emerge,
entretanto, como isso ocorre? Por que isso pode ocorrer? Como os sujeitos
históricos e sociais agem sobre e nas formas de vida se tornando capazes de
transformar as regras dos jogos de linguagem matemáticos? Isto é, mesmo
admitindo a possibilidade da mudança, a negação de Wittgenstein com o
questionar-se o porquê das mudanças culmina numa defesa ostensiva da
aceitação das regras do jogo de linguagem matemático compreendendo seu
ensino como um treinamento.
Assim, no ensino da matemática sob a perspectiva wittgensteiniana o
professor deve convencer e treinar o estudante em novos conceitos e ampliar
os anteriores (GOTTSCHALK, 2007; 2008). Para além disso, essa
compreensão de ensino da matemática como ensino dos seus mais diversos
usos, no treinamento em uma técnica, num jogo de linguagem existente, sem
questionar ou problematizar tais jogos de linguagem, culmina numa defesa
biologicamente determinista do ato de aprender: Wittgenstein quando refletia
sobre como seria possível saber que alguma outra pessoa tenha aprendido uma
palavra, e nesse sentido, conceitos, gestos, ações etc., compreende que esse
processo seria melhor compreendido conquanto compreendêssemos os
processos biológicos das sinapses cerebrais, pois
se os conhecêssemos mais exatamente veríamos quais ligações são
produzidas pelo treinamento e, poderíamos, então dizer, quando
olhássemos no seu cérebro: agora ele leu essa palavra, agora a
ligação da leitura foi produzida (IF, §158).
Nesse sentido, a filosofia da (linguagem) matemática numa perspectiva
wittgensteiniana, quando tomada em direto diálogo com a obra do autor,
advoga uma visão utilitarista da matemática, uma concepção biologizante dos
processos de aprendizagem e, sendo estes, consequência direta de uma
concepção da linguagem pública e não-social.
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Considerações finais
No que toca ao campo da filosofia da educação matemática, como um
campo que emerge da filosofia e da educação matemática, o presente artigo
buscou uma discussão mais aprofundada das teses filosóficas
wittgensteinianas antes de compreendê-las no campo da educação
matemática. Portanto, um fazer filosófico, tocado pela busca de um diálogo
honesto com a obra do autor austríaco, se fez mais presente que um fazer de
interrelação entre os campos.
Essa falta de relação, entretanto, não prejudica a compreensão primária
de que o silêncio ontológico da obra wittgensteiniana carrega consequências
importantes para o campo da educação matemática, consequências estas por
diversas vezes ignoradas ou aceitas com grande passibilidade. Nesse sentido,
o fazer filosófico com a obra de Wittgenstein é a defesa de retomar teórico mais
aprofundado e menos aligeirado nas pesquisas do campo da educação
matemática, assim como (MORAES, 2001) diversas vezes denunciou no
campo da pesquisa em educação.
Nessa direção, o silêncio ontológico como característica inicial e direta
da filosofia wittgensteiniana traz a possibilidade, sem expressamente
defender, uma compreensão tecnicista do ensino da matemática ao expor que
este deva ser um treinamento nas técnicas dos jogos de linguagem
matemáticos ignorando o processo dinâmico de produção e reprodução do
conhecimento matemático, o tomando como dado, como algo blico, sob o
qual os seres humanos deveriam se apropriar para fazer melhor uso.
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Como citar:
WAGNER, Guilherme; SIQUEIRA, Everaldo. O silêncio ontológico na obra de
Wittgenstein: crítica à filosofia da educação matemática. Verinotio Revista
on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 359-
82, jul./dez. 2020.
Data do envio: 27 abr. 2020
Data do aceite: 24 out. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.560
Gabriel Martins Furquim
Mauro Cardoso Simões
Milena Pavan Serafim
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Gaudemar encontra Pachukanis: breve ensaio sobre a mobilidade
do sujeito de direito e migrações
1
Gabriel Martins Furquim
2
Mauro Cardoso Simões
3
Milena Pavan Serafim
4
Resumo: Gaudemar e Pachukanis construíram compreensões marxistas que
podem ser complementadas para compreender as migrações, como
fenômeno social captado pelo direito, constituindo os migrantes também
como sujeitos de direito, e que se movem em decorrência da necessidade da
circulação da mercadoria força de trabalho, como condição da reprodução do
capital. Objetiva-se inter-relacionar as duas compreensões. Para tanto,
utiliza-se de método bibliográfico, abordando as obras dos dois autores e de
seus comentadores, visando demonstrar que a mobilidade do sujeito de
direito pode ser uma categoria para pensar as migrações.
Palavras-chave: mobilidade do trabalho; sujeito de direito; migrações.
Gaudemar meets Pachukanis: brief essay on the mobility of the
subject of law and migrations
Abstract: Gaudemar and Pachukanis built Marxist understandings that can
be complemented to understand migration, as a social phenomenon captured
by law, constituting migrants as subjects of law, and who move due to the
need for the circulation of the labor force merchandise, as a condition of
reproduction of capital. The objective is to interrelate the two
understandings. For this, it uses a bibliographic method, addressing the
works of the two authors and their commentators, aiming to demonstrate
that the mobility of the subject of law can be a category to think about
migrations.
Keywords: labor mobility; subject of law; migrations.
1
Agradecemos as considerações dos avaliadores da Revista Verinotio Revista on-line de
Filosofia e Ciências Humanas, cujas argutas pontuações contribuíram sobremaneira para o
aprofundamento deste artigo e da pesquisa.
2
Mestre pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Centro
Universitário Unimetrocamp. E-mail: g.furquim1@gmail.com.
3
Pós-Doutor pela Università degli Studi di Roma La Sapienza (2019-2020), Universität de
Barcelona (2014-2015), National University of Singapore (2008) e pela University of
Cambridge (2009). Professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Núcleo Geral Comum (NGC) e no Mestrado
Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (ICHSA) da Unicamp. E-mail:
mcsimoes1973@gmail.com.
4
Doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora da Faculdade de
Ciências Aplicadas e dos Programas de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências
Humanas e Sociais e em Política Científica e Tecnológica da Unicamp. E-mail:
milenaserafim@gmail.com.
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Mauro Cardoso Simões
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Introdução
A crítica marxista do direito foi impulsionada por Evgeni
Bronislavovich Pachukanis e, em seguida, por outros teóricos
contemporâneos, pelo desenvolvimento do método de Karl Marx
5
, presente
de modo aprofundado na essencial obra de maturidade, O capital. Esta
abordagem pode ganhar outras tonalidades e fazer avançar abordagens
teóricas, a partir das análises marxistas
6
, em particular sobre as migrações e
suas relações com a estrutura social.
As migrações devem ser compreendidas em termos de mercadoria
(BEHRMAN, 2014a, p. 2) cuja característica é a sua mobilidade, e assim
dotadas de funcionalidade para o modo de produção capitalista. Pensar essa
questão exige promover um encontro entre Jean-Paulo Gaudemar (1947) e
Pachukanis, para esboçar uma perspectiva que relacione o sujeito de direito e
a mobilidade do trabalho. O que se move são os sujeitos de direito, que
portam força de trabalho enquanto mercadoria, cuja mobilidade decorre das
determinações do capital, para extração ampliada de valor.
Desta forma, este encontro, que se objetiva neste breve artigo, exige
percorrer alguns caminhos, que partem das compreensões de Gaudemar à
Pachukanis, para alcançar uma interrelação ao final. Disto, decorre a
necessidade de explicar, no primeiro item, o conceito mobilidade do trabalho,
que visa analisar como a força de trabalho se produz e circula onde se faz
necessária. No segundo item, compreender o conceito de sujeito de direito,
como o outro lado da mercadoria, é importante para, no item posterior, fazer
Gaudemar encontrar Pachukanis, constituindo a categoria mobilidade do
sujeito de direito. No final, mostra-se como nisso se imbrica as migrações,
que não são senão a mobilidade de sujeitos de direitos, coordenada pela
necessidade de ampliação e de reprodução do capital.
5
O método de Marx autoriza a compreensão da totalidade concreta do modo de produção
capitalista, e isso a partir de suas formas sociais e suas combinações, assim como de suas
relações e determinações (BALIBAR, 1975, p. 206). Marx parte, especialmente, da forma
social mais elementar: a mercadoria. Da mesma forma, Pachukanis caminha do abstrato ao
concreto (NAVES, 2000, pp. 40-1). Isso significa que Pachukanis constrói sua análise “da
forma jurídica em seu aspecto mais abstrato e puro, passando gradualmente, por meio de
complexificação, ao historicamente concreto” (PACHUKANIS, 2017, p. 96). Para tanto, o
jurista russo parte do sujeito de direito, o outro lado da mercadoria que é o ponto de
partida de Marx , para compreender a totalidade do fenômeno jurídico. E isso não em seu
conteúdo, mas enquanto forma social histórica e determinada, porquanto o direito “não é um
sistema de pensamento, mas // um sistema específico de relações, no qual os homens
ingressam não porque o tenham escolhido conscientemente, mas porque a isso são coagidos
pelas condições de produção” (PACHUKANIS, 2017, p. 92).
6
Esta é uma preocupação expressa pelo jurista russo, por ocasião do prefácio à segunda
edição de sua principal obra, que é justamente fazer avançar as análises marxistas do
fenômeno jurídico para os mais variados ramos (PACHUKANIS, 2017, p. 56).
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O conceito de mobilidade do trabalho em Gaudemar
Impulsionado pela análise marxista sobre a constituição e a
consequente consolidação do modo de produção capitalista, Gaudemar
objetiva compreender como este produz e, sobretudo, controla a força de
trabalho, uma mercadoria específica que tem a capacidade enigmática de
criar valor e, por consequência, essencial a acumulação ampliada do capital.
Para tanto, o autor constitui uma categoria analítica, mobilidade do
trabalho, para desvelar como a mercadoria, força de trabalho, e
consequentemente seu portador, se submete aos imperativos do capital, na
esfera da circulação estruturada pelas exigências das relações de produção.
Isto é, visa analisar a produção da força de trabalho como mercadoria, seu
consumo de forma intensiva e extensiva, bem como essa força de trabalho é
mobilizada em termos espaciais, setoriais e profissionais” (GOMES, 2009, p.
38). Significa que, a partir do objetivo de ampliar a exploração e a produção de
excedente, ou seja, a valorização do valor, tal categoria serve para analisar e
explicar o deslocamento espacial da força de trabalho uma de suas formas,
são as migrações, assim como o controle no local onde, ou na forma em que, é
exercido o trabalho, inclusive para que o trabalhador busque outras
qualificações profissionais.
Institui, assim, a partir da preocupação de como se produz, circula e se
emprega a força de trabalho, uma visão de movimento e elasticidade,
porquanto “o processo da produção e por conseguinte, a criação da mais-valia
só são possíveis se se une a força de trabalho com os instrumentos e meios de
produção” (LAPIDUS; OSTROVITIANOV, 1978, p. 141), empregando-as onde
necessárias sob a perspectiva da valorização do valor. A isto se relaciona o
fato de o sistema capitalista ser dinâmico e expansível (HARVEY, 2005, p.
43).
Desta forma, Gaudemar assim estrutura sua pergunta:
uma interrogação da teoria da mais-valia: por que razão se presta
/.../ a força de trabalho /.../ a todas as variações de duração, inten-
sidade, produtividade, que levam ao nascimento da mais-valia tan-
to sob a sua forma absoluta como relativa? /.../ de que natureza é
então esta força de trabalho que se presta a tal uso tanto extensivo
como intensivo /.../ Esta qualidade é precisamente aquilo que eu
designo como mobilidade do trabalho (GAUDEMAR, 1977, pp. 14-
5).
Esta ideia pode ser resumida a partir de uma passagem de Marx, em
que se pontua a necessidade não apenas da reprodução da força de trabalho,
senão também a manutenção de um patamar adequado à exploração
capitalista, cujo controle da mobilidade do trabalho visa a compreender:
A grande beleza da produção capitalista consiste em que ela não
apenas reproduz constantemente o assalariado como assalariado,
mas, em relação à acumulação do capital, produz sempre uma su-
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perpopulação relativa de assalariados. Desse modo, a lei da oferta e
demanda de trabalho é mantida em seus devidos trilhos, a oscila-
ção dos salários é confinada em limites adequados à exploração ca-
pitalista e, por fim, é assegurada a dependência social, tão indis-
pensável, do trabalhador em relação ao capitalista, uma relação de
dependência absoluta que o economista político, em sua casa, na
metrópole, pode disfarçar, com um mentiroso tartamudeio, numa
relação contratual livre entre comprador e vendedor, entre dois
possuidores de mercadorias igualmente independentes: o possui-
dor da mercadoria capital e o da mercadoria trabalho. (MARX,
2017, p. 839)
Como visto, o capital exerce forte controle sobre as relações de
produção, capacidade que permite não apenas a produção da força de
trabalho enquanto mercadoria, senão também a sua utilização e,
simultaneamente, criação de condições de domínio e controle desta
mercadoria específica (GOMES, 2009, p. 36), vital no modo de produção
capitalista, pois permite produzir e circular o trabalho abstrato. Atribuindo o
papel de instrumento para tal finalidade, Gaudemar pontua:
Tornando-se a mobilidade explicitamente um instrumento de
adaptação da mão-de-obra, as deslocações espaciais não são aqui
os únicos em causa mas, juntamente com eles, todos os modos de
passagem da mão-de-obra disponível para as esferas de valorização
do capital e todos os modos de intensificação e produtivização des-
ta mão-de-obra. (GAUDEMAR, 1977, p. 21)
Outra compreensão é a de David Harvey que, analisando a acumulação
flexível, afirma que “o controle do trabalho, na produção e no mercado, é vital
para a perpetuação do capitalismo” (HARVEY, 1992, p. 166), na medida em
que é essencial para a intensificação da extração da mais-valia, fundamental
na sustentação da acumulação do capital.
O processo de produção da força de trabalho mercadoria dotada de
uma especificidade essencial ao capitalismo, ou seja, a sua extraordinária
capacidade de gerar valor
7
e consequentemente ser o agente real da produção
depende de uma característica essencial: ela deve ser livre. E esta liberdade,
como aponta Marx em sua obra de maturidade
8
, é constituída de dois
sentidos, a partir dos quais se edifica um concerto em que o trabalhador é
livre para dispor de sua força de trabalho como sendo algo que lhe pertence,
7
“Para poder extrair valor do consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de dinheiro
teria de ter a sorte de descobrir no mercado, no interior da esfera da circulação, uma
mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse a característica peculiar de ser fonte de valor,
cujo próprio consumo fosse, portanto, objetivação de trabalho e, por conseguinte, criação de
valor. E o possuidor de dinheiro encontra no mercado uma tal mercadoria específica: a
capacidade de trabalho, ou força de trabalho. (MARX, 2017, p. 242)
8
“Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem, portanto, de encontrar
no mercado de mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois sentidos: de ser uma pessoa
livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de, por outro lado, ser
alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de
todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho. (MARX, 2017, p. 244)
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mas, simultaneamente, não outro modo senão vender a si mesmo
enquanto mercadoria. Desenha-se, assim, um sentido positivo e negativo, que
foram definidos por Gaudemar:
Liberdade positiva: a força de trabalho é uma mercadoria que per-
tence, como bem particular, ao trabalhador, que pode dela dispor à
sua vontade; o trabalhador é então considerado como ator da sua
própria liberdade. Liberdade negativa: o trabalhador não tem dian-
te de si outra hipótese que não seja vender ou não a sua força de
trabalho; não tem mais nada para vender, e na prática, ou vende a
sua força de trabalho para viver, ou não a vende e morre. (GAU-
DEMAR, 1977, pp. 189-90)
E é nesta relação, segundo este mesmo autor, que se engendra a
mobilidade capitalista do trabalho, uma mobilidade forçada, porquanto esta
deve ser “apta as deslocações e modificações do seu emprego, no limite, tão
indiferente ao conteúdo do seu emprego como o capital o é de onde investe,
desde que o lucro extraído seja satisfatório” (GAUDEMAR, 1977, p. 190).
E, nesse sentido, Marx, discorrendo sobre a maquinaria e a grande
indústria antevê algo essencial a Gaudemar, que é a reprodução das
condições necessárias ao capital, de um lado, e a produção, a fluidez e o
controle da força de trabalho, de outro, conforme tais exigências:
Desse modo, ela revoluciona de modo igualmente constante a divi-
são do trabalho no interior da sociedade e não cessa de lançar mas-
sas de capital e massas de trabalhadores de um ramo de produção a
outro. A natureza da grande indústria condiciona, assim, a variação
do trabalho, a fluidez da função, a mobilidade pluridimensional do
trabalhador. Por outro lado, ela reproduz, em sua forma capitalista,
a velha divisão do trabalho com suas particularidades ossificadas.
(MARX, 2017, p. 557)
Significa isso ter a capacidade de garantir a produção das forças de
trabalho, a sua utilização no processo de produção e a sua circulação em
diferentes esferas e espaços, elementos indispensáveis ao modo de produção
capitalista. Sua valorização e reprodução (LIZARAZO, 2017, p. 62) são
capazes de mover os portadores desta mercadoria específica, conforme às
exigências do capital, assim como também garantir a sujeição real deste
trabalhador.
Desta forma, a mobilidade da força de trabalho, de acordo com a
construção de Gaudemar, a partir de Marx, é condição necessária para a sua
mercantilização (GAUDEMAR, 1977, p. 198), não apenas na sua dimensão de
uso que cria mais-valor, mas também que possibilita o sujeito de se levar ao
mercado enquanto mercadoria
9
. Portanto, trata-se da forma móvel da força
9
A isto Gaudemar atribui uma dupla função particular da força de trabalho enquanto
mercadoria, comandada pela mobilidade da força de trabalho: “São os homens que, pela sua
mobilidade, alimentam o mercado das suas forças de trabalho. A força de trabalho é assim
uma mercadoria duplicamente particular: não o seu uso produtivo cria um valor superior
ao seu valor de troca, mas também se apresenta ela própria no mercado, como única
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de trabalho e de seu portador, o sujeito de direito, como será analisado
adiante.
Esta operação ocorre na esfera de circulação, determinada pela de
produção, e é marcada por uma divisão territorial do trabalho, ou seja,
realiza-se “no mercado que materializa os movimentos e processos pelo
espaço geográfico, desde a esfera da produção de mercadorias até a realização
do seu valor de troca” (LIZARAZO, 2017, p. 61). No entanto, ao operar nesta
esfera de circulação, “ao mesmo tempo, pelo carácter particular da
mercadoria trocada, passa-se da esfera da circulação para a esfera da
produção” (GAUDEMAR, 1977, p. 199). Desta forma, é o uso desta específica
mercadoria que origina a mais-valia e, consequentemente, garante a
acumulação capitalista.
A partir desta análise, constata-se que esta liberdade, constitutiva da
mercadoria criadora de valor quando empregada na produção, não existe
senão em relação com a mobilidade do trabalho, que, por sua vez, “participa
na determinação específica da economia capitalista no seio das
determinações gerais de toda a economia mercantil” (GAUDEMAR, 1977, pp.
195-6). Desmitificado, portanto, uma “ideia de um homem livre e soberano,
egoísta e promotor do progresso de uma humanidade compreendida
abstratamente” (GOMES, 2009, p. 40).
A despeito de o conceito desenvolvido por Gaudemar ser mais amplo
abordando três planos e compreender a produção das forças de trabalho e a
sua utilização na produção, no sentido de intensidade e de tempo, o foco do
presente artigo, e a consequente relação proposta, é com a dimensão da
circulação das forças de trabalho (GAUDEMAR, 1977, pp. 193-4), enquanto
deslocamento espacial dos trabalhadores ou, como se pretende demonstrar,
dos sujeitos de direito no espaço, o que alguns tem chamado de mobilidade
territorial (LIZARAZO, 2017). E é justamente esse recorte que permitirá
construir uma relação entre migrações, mobilidade do trabalho e as
compreensões pachukanianas quanto ao direito, como se verá a seguir.
O sujeito de direito e Pachukanis
Uma das argutas contribuições de Karl Marx é que no modo de
produção capitalista a liberdade e a igualdade, oriundas da relação
econômica, constituem uma subjetividade jurídica. Tais atributos, a liberdade
e a igualdade, são necessários à subsunção real do trabalhador ao capital, e
assim garantidores da constituição não apenas dos sujeitos portadores da
mercadoria 'livre' de se deslocar, de se dirigir ao local de venda da sua escolha. Esta dupla
particularidade é comandada pela mobilidade da força de trabalho, dela desenha as
diferentes formas, espaciais ou setoriais, profissionais ou categoriais etc.” (GAUDEMAR,
1977, p. 201)
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mercadoria de si mesmo e que se levam ao mercado (ou para a própria
despela no curtume), sujeitos de direito, mas também, e por consequência, da
relação jurídica de circulação da força de trabalho enquanto mercadoria, de
modo a garantir a produção (EDELMAN, 1976, p. 125). Aqui é importante
citar uma passagem de Marx sobre estes deslocamentos, atribuindo papel
importante do jurídico:
As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-
se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus
guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por is-
so, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram so-
lícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavrar, tomá-las à
força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como mer-
cadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os
outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de
modo tal que um pode se apropriar da mercadoria alheia e alie-
nar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do
outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos.
Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietá-
rios privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja
ela desenvolvida legalmente ou não, é uma relação volitiva, na qual
se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica
ou volitiva é dado pela própria relação econômica. Aqui, as pessoas
existem umas para as outras apenas como representantes da mer-
cadoria e, por conseguinte, como possuidores de mercadorias.
(MARX, 2017, pp. 159-60)
O processo do capital em sua fase inicial, denominada, por Marx, de
acumulação primitiva ou acumulação originária é basicamente a separação
do trabalhador dos meios de produção. Portanto, o produtor direto é expulso
do ambiente em que vive e produz e é transformado em operário livre,
despojado, por consequência, dos meios de sua subsistência, o que implica no
surgimento de uma nova circulação mercantil, a circulação da força de
trabalho enquanto mercadoria (NAVES, 2014, p. 46), a qual não se realiza
sem a indispensável liberdade e igualdade para a efetivação deste processo e
as quais serão interiorizadas, ou seja, tais atributos realizam-se, apenas e tão-
somente, de acordo com as exigências do capital.
Após este processo, marcado com apoio do estado, seus aparelhos e
uma legislação sanguinária contra os expropriados, a liberdade e a igualdade
não são mais exteriores ao homem, mas uma condição natural
10
,
possibilitando, então, a operação mercantil (NAVES, 2014, p. 48), a própria
subordinação do trabalhador ao capital, realizada e mantida por meio do
direito, enquanto dentro da produção, em seu interior, impera a servidão e a
desigualdade.
10
“Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no outro como
pessoas que não têm nada para vender, a não ser sua força de trabalho. Tampouco basta
obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção capitalista desenvolve-se
uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências
desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas. (MARX, 2017, p.
983)
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O sujeito de direito, portanto, apenas pode aparecer plenamente na
medida em que as relações de troca se generalizem e se tornem dominantes.
Isto, por conseguinte, somente pode acontecer quando todos os produtos do
trabalho sejam reduzidos à forma mercadoria, ou seja, quando a
mercadoria força de trabalho se torna dominante, o que depende da
subsunção real do trabalhador ao capital, por meio da separação entre força
de trabalho e meios de produção. Por consequência, o proprietário da
mercadoria força de trabalho estará obrigado a vendê-la ao proprietário dos
meios de produção. O que quer dizer vender a si mesmo através de sua força
de trabalho como mercadoria (KASHIURA JR., 2012, p. 131; EDELMAN,
1976, p. 100). De maneira mais específica, isso ocorre através de uma relação
simultânea de ser portador de sua mercadoria (força de trabalho) e
mercadoria de si mesmo, característica eminentemente capitalista
(MASTRODI NETO; FURQUIM, 2014, pp. 161-3).
Segundo Pachukanis, Para que os produtos do trabalho humano [as
mercadorias] possam relacionar-se entre si como valores, os homens devem
relacionar-se entre si como pessoas independentes e iguais” (PACHUKANIS,
2017, p. 183) e essa igualdade, mais precisamente essa equivalência viva,
ocorre quando tudo é reduzido a “trabalho humano igual, trabalho humano
abstrato” (MARX, 2017, p. 116), quando os produtos se tornam indiferentes,
mais precisamente destituídos de sua diversidade concreta, a fim de se
relacionarem umas nas outras.
E, de acordo com Naves, essa “relação de equivalência na qual os
homens estão reduzidos a uma mesma unidade comum de medida em
decorrência de sua subordinação real ao capital” (NAVES, 2014, p. 87) é que
determina o direito. Neste ponto que ocorre o movimento do sujeito de
direito na esfera da circulação mercantil, a qual é determinada pela produção
capitalista, que se pode falar em forma jurídica (KASHIURA JR., 2014, pp.
205-17). Especificamente, o direito realiza a circulação, tornando, então,
possível a produção (EDELMAN, 1976, p. 125).
Desse modo, a redução dos produtos do trabalho a mercadoria é a
transformação de todos os homens a sujeitos de direitos
11
, sem eles, mais
precisamente sem a subjetividade jurídica equivalente que é necessária, não é
possível realizar a troca mercantil e, em última instância, a produção. O que
decorre do fato de o trabalhador se levar ao mercado e, em uma relação igual
e livre, essa equivalência viva de igualdade absoluta, vende-se a si mesmo ao
11
“O homem torna-se sujeito jurídico devido à mesma necessidade pela qual o produto
natural torna-se mercadoria com sua enigmática propriedade de valor” (PACHUKANIS,
2017, p. 93). Sobre a redução dos produtos do trabalho em mercadoria, conferir a seguinte
passagem: “a forma de relação voluntária entre sujeitos abstratos, é a origem do direito. /.../
O modo de produção capitalista se caracteriza exatamente pela conversão de todos os
produtos do trabalho em mercadorias e de todos os indivíduos em sujeitos de direitos, ou
seja, é o reino do valor e do voluntarismo jurídico” (KASHIURA JR., 2009, p. 56).
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capitalista, que lhe paga o salário pela aquisição da força de trabalho
enquanto mercadoria. Ela, por conseguinte, será utilizada para a cristalização
de valor nas mercadorias produzidas, que por meio da circulação
intermediada pelo direito, pela subjetividade jurídica, realizarão o mais-
valor.
O que se quer dizer é que a relação de troca de mercadorias, da qual
emerge a relação jurídica, tem “dois aspectos distintos, porém inseparáveis: o
econômico relação entre coisas e o jurídico relação entre sujeitos”
(KASHIURA JR., 2009, p. 56).
É justamente esse movimento do sujeito de direito na esfera da
circulação mercantil, a qual é determinada pela produção especificamente
capitalista, que se pode falar em forma jurídica (KASHIURA JR., 2014, pp.
205-17).
Sujeito de direito e mobilidade do trabalho
Se Gaudemar estrutura a mobilidade do trabalho a partir das
dimensões da liberdade dispor de si mesmo como mercadoria, mas que não
tem outra hipótese senão esta como condição de mercantilização e de
garantia da produção, isto se relaciona com a forma que Pachukanis pensa o
fenômeno jurídico, para o qual a liberdade e a igualdade têm centralidade,
enquanto fiador da circulação e, por consequência, da produção capitalista.
A partir da aproximação proposta das teorias de Pachukanis e
Gaudemar, é possível estruturar uma categoria analítica mais ampla, por ora
designada como mobilidade do sujeito de direito, que engloba e transforma
as contribuições da mobilidade do trabalho e do sujeito de direito, de
maneira a construir uma interseção das teorias. Fazer isto, apesar das
dificuldades e de possíveis fissuras teóricas, permitiria olhar para a questão
dos fluxos migratórios a partir de uma perspectiva, ampla, precisa e marxista,
para compreender como o fenômeno jurídico garante o deslocamento da
força de trabalho enquanto mercadoria, a criadora de mais-valor, que tem
como suporte o sujeito direito.
Não se move, em todas as dimensões propostas por Gaudemar, a força
de trabalho (atributos
12
) sem o seu sujeito. E isto não se realiza sem as
determinações do direito e as consequências de sua violação que constitui a
forma-jurídica (UCHIMURA; COUTINHO, 2019, p. 280), assim como a
ideologia jurídica, que tem um papel central na mobilidade dos sujeitos,
12
Edelman (1976) utiliza da categoria sujeito/atributos para designar o aparente paradoxo do
sujeito que, sob o manto da liberdade (e, portanto, que não coloca em risco sua condição de
sujeito), aliena seus atributos, ou seja, sua força de trabalho. Designa, assim, a relação dual
em ser sujeito e mercadoria.
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como se pretende explicar a frente.
Enquanto Gaudemar reflete as formas de utilização, controle e
emprego no concerto da produção capitalista, Pachukanis pondera que a sua
utilização demanda a constituição de uma subjetividade jurídica como o
outro lado da relação de troca de mercadoria a garantir, igualmente, a
reprodução. Ambos partem da circulação da mercadoria força de trabalho
como condição necessária à reprodução. E se complementam, na medida em
que um afirma a importância da mobilidade e o outro, a necessidade do
fenômeno jurídico na constituição da relação mercantil. Assim, a circulação
de mercadoria - força de trabalho, a criadora de mais-valor quando
empregada na produção e cuja circulação das mercadorias revela o valor
nelas cristalizado, não seria dominante se não fosse a subjetividade jurídica e
sua mobilidade volátil às necessidades do capital.
O encontro entre trabalhador e capitalista na esfera da circulação não
apenas se dá a partir da mobilidade desta específica e enigmática mercadoria,
mas também se realiza, como condição necessária, pela relação jurídica entre
sujeitos de direitos
13
, no sentido de convergir relação econômica e jurídica.
Isso porque o direito se origina justamente da relação entre sujeitos abstratos
engendra pela produção capitalista, em que tudo se converte em mercadoria e
os indivíduos em sujeitos de direito (KASHIURA JR., 2009, p. 56), que são os
possuidores da mercadoria força de trabalho. As condições de domínio,
controle e circulação como propõe Gaudemar desta mercadoria específica
atravessa, portanto, o sujeito de direito e a subjetividade jurídica.
A aproximação proposta aponta que a circulação da força de trabalho
(mobilidade) se realiza, em última instância, pela juridicidade em termos
pachukanianos. O trabalhador, como visto, é constituído em sujeito de
direito, porquanto guardião da força de trabalho enquanto mercadoria a que
ele próprio leva ao mercado, ou seja, leva a si mesmo como mercadoria.
Como pontua Kashiura:
O trabalhador é elevado à condição de sujeito de direito precisa-
mente para que realize, de forma plenamente voluntária, numa re-
lação jurídica de igualdade e liberdade, a sua própria submissão ao
capital, isto é, a entrega voluntária de si próprio, das suas próprias
forças, à exploração pelo capital. (KASHIURA JR., 2015, p. 56)
Desta forma, de nada adiantaria a mobilidade se em sua concretização
não se operasse o fenômeno jurídico pressuposto da relação social de troca
de mercadorias, relação mercantil e os sujeitos de direitos não fossem
postos em movimento pelo imperativo da circulação e sua consequente
apresentação no mercado onde necessário para garantir a ampliação do
capital. Se para Gaudemar é a liberdade que engendra a mobilidade para a
13
Cf., embora não faça relação com Gaudemar, mas estrutura uma aproximação entre sujeito
de direito e ideologia: Kashiura Jr. (2015, pp. 54-5).
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realização da circulação mercantil da força de trabalho, é a liberdade e a
igualdade, para Pachukanis, que garantem a efetivação da circulação
mercantil e consequentemente, como ambos se preocupam em suas teorias, a
reprodução ampliada do capital.
Mas para que os sujeitos andem por si mesmos ou, em outros termos,
para que a força de trabalho se mova por seus guardiões, é necessário a
ideologia jurídica para que estes se submetam livremente a tais imperativos.
Noutras palavras, as relações sociais de produção fazem com que os sujeitos
se subordinem à lógica da produção capitalista, com vistas a garantir e a
recompor a circulação e a produção. Para tanto, seriam necessários os
deslocamentos da força de trabalho, através de seus guardiões, e legar aos
sujeitos seus atributos de liberdade e igualdade.
A proposta de Althusser de reconstrução do marxismo sobre um novo
patamar
14
e retorno à Marx que, a partir de aquisições deste sistema teórico e
da perspectiva da psicanálise francesa
15
, possibilitou uma inédita teoria da
ideologia; esta que, a partir de uma análise do filósofo francês, faz com que os
sujeitos de direito mantenham uma relação imaginária com suas relações
reais de existência (ALTHUSSER, 1978a, pp. 81-2). E a ideologia jurídica
revela-se como importante ferramenta em razão da compreensão que lhe
atribui uma existência prática, além de compreendê-la enquanto elemento
inscrito materialmente em um construto que delimita o papel do sujeito com
o seu entorno e sua prática
16
. Não apenas porque obedece a uma dinâmica
inconsciente, senão também porque tem uma função de coesão social para
garantir as tarefas determinadas pelo sistema social, dentre as quais se
insere, como aqui se conjectura, os deslocamentos da força de trabalho e seus
guardiões, os sujeitos de direitos. Embora não aluda sobre a mobilidade, a
relação entre ideologia e sujeito direito traçada por Kashiura permite
ampliação, para sobrepor a categoria mobilidade do trabalho:
indivíduo é, antes de tudo, constituído como sujeito de direito para
que realize por conta própria isto é, por meio da autonomia ine-
rente à subjetividade jurídica , através da circulação mercantil de
si mesmo como mercadoria, a sua submissão ao capital (KASHIU-
RA JR., 2015, p. 66).
E, com isso, a ideologia jurídica, sobrepondo aos sujeitos os atributos
da igualdade e da liberdade, faz com seja retirado de cena o vínculo que os
sujeitos mantêm com o modo de produção e a realidade de seus movimentos
14
Um (re)começo do materialismo dialético, assim se referiu Alain Badiou em um
importante artigo, cf. Badiou (1979).
15
Althusser coloca a estrutura da psicanálise, mais precisamente Freud e Lacan, como
elemento central na pesquisa da ideologia, porquanto o sujeito é constituído nas formações
ideológicas em que ele se reconhece, cf. Althusser (1978b, p. 129).
16
Essas três teses fundamentais da existência prática da ideologia podem ser observadas em
Sampedro (2010, pp. 37 ss).
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na estrutura social.
Desta forma, a ideologia, que é uma concepção jurídica de mundo
(KASHIURA JR., 2014, p. 218), não é contingente, mas sim inerente a
estrutura social e por isso determina a mobilidade dos sujeitos de direito
fazendo com que eles se movam livremente por si mesmos, na medida em
que “toda a ideologia burguesa consiste em ocultar a contradição imanente
desta liberdade e desta igualdade, que se transmudam no seu contrário: a
escravidão e a exploração” (EDELMAN, 1976, p. 134).
Assim, é a ideologia que faz com que os sujeitos andem por si mesmos
e se submetam às ordens do Sujeito (em outros termos, das determinações do
capital) (ALTHUSSER, 1978a, p. 97-98)
17
, o que torna possível a assunção
livre do próprio assujeitamento e, por consequência, possibilita a mobilidade
dos sujeitos e, por consequência, do trabalho. Desta forma, a ideologia
jurídica, o sujeito de direito e a mobilidade do trabalho guardam uma íntima
conexão.
A ideologia jurídica se articula, portanto, interpelando os migrantes,
sujeitos de direitos aos que se exige a mobilidade, para que se sujeitem ao
disciplinamento e às condições do mercado de trabalho (BIONDI, 2009, p.
9).
Mobilidade do sujeito de direito, portador da mercadoria força de
trabalho, e migrações
Não seria exagero dizer que “os movimentos migratórios constituíram,
em certo sentido, o útero no qual todos os tipos de classe trabalhadora se
originaram” (MELOSSI, 2013, p. 277) e com isto se relaciona o conceito de
mobilidade do trabalho e, agora, sua reconfiguração a partir da interpelação
entre sujeito de direito, mobilidade e ideologia jurídica. Neste concerto social,
que ela se coloca, como uma de suas diversas formas de manifestação,
fomentando movimentos migratórios para aumentar as polarizações
espaciais para a intensificação do capitalismo, assim como desenvolver
camadas de classe trabalhadora mais móveis, sob as quais recai o controle da
17
De maneira mais detalhada, esclarece Althusser: “Sim, os sujeitos ‘caminham por si’. Todo
o mistério deste efeito está contido nos dois primeiros momentos do quádruplo sistema de
que falamos, ou, se o preferirmos, na ambiguidade do termo sujeito. Na acepção corrente do
termo, sujeito significa 1) uma subjetividade livre: um centro de iniciativas, autor e
responsável por seus atos; 2) um ser subjugado, submetido a uma autoridade superior,
desprovida de liberdade, a não ser a de livremente aceitar a sua submissão. Esta última
conotação nos o sentido desta ambiguidade, que reflete o efeito que a produz: o indivíduo
é interpelado como sujeito (livre) para livremente submeter-se às ordens do Sujeito, para
aceitar, portanto (livremente) sua submissão, para aceitar, portanto (livremente) sua
submissão, para que ele ‘realize por si mesmo’ os gestos e atos de sua submissão. Os sujeitos
se constituem pela sujeição. Por isso é que ‘caminham por si mesmos’” (1978a, pp. 97-8).
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migração. Assim, é uma relação dialética entre migrações e desenvolvimento
capitalista.
Justamente porque, “a imigração estrangeira é uma das formas mais
importantes política, social e economicamente, da mobilidade capitalista do
trabalho" (GAUDEMAR, 1977, p. 40), porquanto engendra em si uma força
de trabalho móvel, que é movida pela conjuntura e coordenada pela ideologia
jurídica, movimentos para os quais inexistem grandes tensões ou gastos, ou
seja, essa divisão global do trabalho constitui uma estratégia de
substitutibilidade benéfica ao mercado. Exemplo disso é a atração de
trabalhadores, espacial e setorial, para novos postos, o que é movida pela
necessidade de sobrevivência com a venda das mercadorias que são
portadores (os sujeitos de direito), a força de trabalho constituída como
mercadoria. Marx, cuja análise enfatiza Gaudemar, já havia exposto, com um
enfoque mais histórico, sobre a circulação da força de trabalho enquanto
mercadoria:
É verdade que, em algumas épocas de prosperidade fabril, o mer-
cado de trabalho mostrou falhas preocupantes, como em 1834. Mas
então os senhores fabricantes propuseram aos Poor Law Commis-
sioners [comissários da Lei dos Pobres] deslocar para o Norte o
excesso de população dos distritos agrícolas, com o argumento de
que lá os fabricantes os absorveriam e consumiriam. (MARX,
2017, pp. 339-40)
Na verdade, os sujeitos são colocados, deslocados e realocados sob o
arnês da acumulação do capital e coordenados pela ideologia jurídica. Assim,
“não acumulação, especialmente de capital adicional, sem mobilidade do
trabalho" (GAUDEMAR, 1977, p. 278). O controle da mobilidade do trabalho
ou, como proposto, da mobilidade do sujeito de direito tem o atributo de
instituir ou inscrever nos sujeitos estes deslocamentos, concretizando-se a
mobilidade da força de trabalho no espaço, a fim de garantir as condições de
uma melhor circulação, que visa exclusivamente a garantir a produção, como
aponta Gaudemar:
a força de trabalho adquire a capacidade de domesticar os grandes
espaços, todo o espaço geonómico, e por este facto não se deslo-
ca, mas cria os meios das suas deslocações posteriores ou da deslo-
cação dos meios necessários à sua existência. A mobilidade da força
de trabalho torna-se mobilidade no espaço (geonómico), enquanto
cria uma melhoria das condições de circulação das mercadorias, de
todas as mercadorias (incluindo ela própria) (GAUDEMAR, 1977,
p. 228).
Com isto, coordenam-se os processos de restrição ou de promoção das
migrações, porquanto se teria garantido as condições de trabalho e a
demanda de trabalhadores, senão também o controle da força de trabalho de
forma global, além da manutenção do valor da força de trabalho em melhores
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condições para a exploração. O que quer dizer que, “induzindo e promovendo
as migrações, o capital estaria produzindo e controlando a oferta de força de
trabalho em mercados distintos” (GOMES, 2009, p. 42). Até porque o
desenvolvimento da acumulação capitalista depende de instrumentos para
aumentar ou diminuir a oferta de força de trabalho, entre os quais o controle
migratório, como sustenta, de forma mais ampla, David Harvey:
O progresso da acumulação depende e pressupõe: 1) a existência de
um excedente de mão-de-obra, isto é, um exército de reserva in-
dustrial, que pode alimentar a expansão da produção. Portanto,
devem existir mecanismos para o aumento da oferta de força de
trabalho, mediante, por exemplo, estímulo ao crescimento popula-
cional, a geração de correntes migratórias, a atração de elementos
latentes força de trabalho empregada em situações não-
capitalistas; mulheres, crianças etc. para o trabalho, ou a criação
de desemprego pelo uso de inovações que poupam trabalho.
(HARVEY, 2005, p. 44)
As formas de controle e de restrições aos fluxos migratórios, portanto,
que determinam a mobilidade dos sujeitos de direito, suportes da mercadoria
força de trabalho, são funcionais à dinâmica do capitalismo. Significa isso que
são uma condição estrutural, implicada pela força de trabalho e pela
acumulação do capital, “da qual emerge a mobilidade populacional”
(BRUMES; SILVA, 2011, p. 125).
Há, nesse sentido, a constituição de um excedente que, por
conseguinte, favorece melhores condições para exploração, como a
manutenção de salários baixos, comprimindo-o “dentro dos limites
favoráveis à produção de mais-valor” (MARX, 2017, p. 809).
Mantém-se, desta forma, uma superpopulação, um exército de reserva,
ou seja, “um excesso de população em relação às necessidades momentâneas
de valorização do capital, embora esse fluxo populacional seja formado por
[sujeitos, em nossa leitura] que se substituem uns aos outros rapidamente”
(MARX, 2017, p. 341), com objetivo de manter as condições de exploração,
senão também na manutenção do nível dos salários. Com isso, esta população
trabalhadora excedente é indispensável, como condição de existência, para
acumulação e desenvolvimento do capital, na medida em que “fornece a suas
necessidades variáveis de valorização o material humano sempre pronto para
ser explorado" (MARX, 2017, p. 707)
Em última instância, a mobilidade do trabalho tende a minimizar a
queda da taxa de lucro, o que garante o funcionamento do capital. Significa
isto a sustentação de uma contratendência desta queda, na medida em que
possibilitaria uma crescente taxa de exploração do trabalho, redução dos
custos dos meios de produção, aumento do exército industrial de reserva de
mão de obra e novas formas de produção com trabalho intensivo (HARVEY,
2011, p. 82). Discorrendo sobre este papel de enfrentamento da queda
tendencial da taxa de lucro, Gaudemar pontua que a “mobilidade do trabalho
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/.../ permite uma baixa relativa do valor da força de trabalho, a redução da
mão-de-obra permanente, a submissão efetiva do trabalho às exigências
sempre novas do capital” (GAUDEMAR, 1977, p. 279). Desta forma, a questão
migratória, uma das formas da mobilidade do trabalho, tem importância
como contratendência às crises do capital (MAGALHÃES, 2011, p. 475).
Assim sendo, a distribuição da força de trabalho e de seus portadores,
os sujeitos de direito, ocorre por mecanismos de controle de acordo com a
dinâmica do capital. Como consequência, pode-se sustentar a ocorrência, de
certa maneira, de uma espécie de especulação da força de trabalho. Isso
porque “capital não só provoca a procura de trabalho de que tem necessidade,
mas produz também a oferta, pela criação ininterrupta de operários”
(GAUDEMAR, 1977, p. 277). Mas estes movimentos não são independentes,
são simultâneos, reflexos de um mesmo processo do capital.
Como consequência desta valorização do material humano para ser
explorado, como pontua Marx, encontra-se as mais variadas restrições das
migrações, aparentes forças limitativas, que produzem marginalização e
pauperização, mas que não impedem o movimento migratório, colocando em
mobilidade os sujeitos de direito. A síntese disso, contraditoriamente, é a
constituição de um melhor cenário de exploração e de maior rentabilidade
(BIONDI, 2009, p. 9), pois estes óbices engessam estas condições e levam a
uma melhor utilização no mercado (BIONDI, 2009, p. 9), pelo modo de
produção capitalista, baseado no imperativo de valorização do valor. Assim, a
finalidade é equilibrar a acumulação capitalista.
Somando a isto as contribuições de Simon Berhman, depreende-se que
as migrações, a mobilidade do sujeito de direito, devem ser reconhecidas em
termos de mercadorias (BEHRMAN, 2014a, p. 2). Não se trata apenas de
mobilidade espacial destes sujeitos jurídicos cujo fomento das condições de
migração é determinado pelo capital, mas o fenômeno jurídico produz uma
existência mais degradada pelos impeditivos (BIONDI, 2009, p. 9),
estruturalmente necessários, que produzem condições de exploração nas
localidades para ondem foram movidos, levando, por consequência, ao
mercado a força de trabalho enquanto mercadoria. E o direito, sob as
determinações do modo capitalista de produção, engendra processos de
exclusão e de marginalização destes sujeitos (BEHRMAN, 2014a, p. 2;
BEHRMAN, 2014b, p. 258), porquanto necessário ao melhor funcionamento
da valorização do valor. Com isso, os migrantes foram apreendidas pelo
direito e submetidos às normas de troca de mercadorias (BEHRMAN, 2014a,
p. 2); são sujeitos jurídicos que se movem como reflexo das determinações da
mobilidade do trabalho, e assim coordenados pelas determinações do capital.
Desta forma, a mobilidade dos sujeitos de direito são funcionais ao modo de
produção capitalista.
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Mauro Cardoso Simões
Milena Pavan Serafim
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Conclusão
Com limitações que decorre deste encontro entre autores, Gaudemar e
Pachukanis, que produziram suas obras em épocas distintas e, cada qual, a
sua leitura marxista sobre seus objetos de estudo, demonstrou-se que a
mobilidade do trabalho, categoria explicativa do controle e da mobilidade da
força de trabalho, mercadoria enigmática que produz mais-valor e garante a
reprodução ampliada do capital, deve-se relacionar com o seu detentor, o
sujeito de direito, que se coloca no mercado, como fenômeno que determina,
em certo sentido, as migrações.
No entanto, a conexão estruturada entre sujeito de direito e
mobilidade da força de trabalho pode apresentar certas fissuras, e assim não
contemplar, em sua totalidade, a complexidade do fenômeno migratório, que
é atravessado por diversos elementos determinantes, os quais se articulam
necessariamente com o econômico.
O que se quer dizer é que a categoria aqui estruturada pode ser uma
das formas para compreender a contemporaneidade, marcada por alterações
não apenas nos processos produtivos, mas também nos fluxos migratórios,
que atingiram uma dimensão sem precedentes (WENDEN, 2016, p. 18) e
que tem se diversificado, especialmente no contexto latino-americano
(BAENINGER, 2016, p. 2).
Aliás, não se teve qualquer pretensão de constituir apenas uma
categoria para analisar a realidade das migrações, mas um outro olhar
combinando outras categorias importantes para captar a totalidade concreta.
O texto, portanto, almejou ser modesto e aberto a eventuais fissuras, mas, de
todo modo, teve o propósito de contribuir com a crítica marxista do direito
nos estudos das migrações, ainda que de maneira tímida.
A despeito disso, algumas outras observações são importantes, pois
figuram como questões que foram abertas ao longo do texto.
Ainda que diversos fatores possam produzir a mobilidade, como
questões climáticas ou ambientais, bem como os conflitos regionais, a
questão é que a migração é captada pela estrutura social, na exata
convergência da relação econômica e jurídica, e voltadas a cumprir um papel
na reprodução capitalista. Isso porque estas pessoas serão reconhecidas em
termos de mercadorias. Assim será, ainda que elas não consigam ultrapassar
os muros e as fronteiras que, cada vez mais, se erguem contra esta
mobilidade, e mesmo sofrendo com os mais variados processos de
criminalização ou permanecendo em centros de detenção para imigrantes ou
campos de refugiados formas atuais do poder de controle do excedente (DE
GIORGI, 2006, p. 85), que servem de suporte ao modo de produção do
capital, porquanto gerenciam a mobilidade. A questão de autorização de
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ingresso e de sua vedação também “repousa sobre certas características
inerentes à troca de mercadorias” (BEHRMAN, 2014a, p. 2019).
Como visto, estas pessoas serão apreendidas pela esfera econômica e
jurídica, pois devem ser submetidos às normas da circulação e da produção,
independente dos fatores que os levaram aos processos migratórios.
Desta forma, a categoria proposta neste artigo, apesar das limitações
para explicar fatores específicos que levam a migração, permite compreender,
de certa maneira, como essas pessoas serão captadas quando ingressam em
outras paragens, especialmente para compreender os processos de
exploração. E, mesmo constituam uma massa marginalizada ou um
excedente, eles foram ambiguamente ‘acolhidos’ para garantir melhores
condições de exploração.
Assim, estas massas não são acidentais ou aleatórias, mas resultado da
mobilidade do trabalho, engendrada pelo movimento do capital e articulada
pelo direito. A mobilidade do sujeito de direito, portador da mercadoria força
de trabalho, movimenta não o proletariado precarizado e empobrecido,
mas também serve como forma de controle dos excessos, da miséria e da
multidão, que cresce na atualidade, visando a fornecer sustentação das
condições da produção capitalista.
De todo modo, demonstrou-se que os movimentos determinados
destes sujeitos permitem condições equilibradas de ampliação do capital,
que, a um só tempo, produz as condições da mobilidade e sua restrição, como
concerto necessário para uma melhor exploração, como forma de maior
extração de valor. Ainda que não tenha se produzido as condições da
mobilidade, as restrições cumprem funções neste concerto do controle da
mobilidade do trabalho e dos sujeitos. Assim, não são contingências, mas
determinadas pela estrutura social. O que se demonstrou é o capital “a um
tempo, fomenta as condições objetivas para os processos migratórios e cria
impedimentos jurídicos para que tais processos se realizem por completo”
(BIONDI, 2009, p. 1). Este movimento aparentemente contraditório funciona
como imperativo para satisfação imediata ou futura da força de trabalho
enquanto mercadoria, no sentido de uma reserva construída que se soma à
precariedade das relações sociais.
Não se pode, no entanto, deixar de pontuar a necessidade de
aprofundamentos e desdobramentos, particularmente para compreender
situações concretas
18
.
Não obstante, a pesquisa permitiu refletir que existe, como reflexo da
estrutura social, uma mobilidade dos sujeitos jurídicos, pois são portadores
da mercadoria força de trabalho que deve circular onde se faz necessária, e
18
Nesse sentido, remetemos os leitores a dissertação desenvolvida por um dos autores, em
que se almejou empregar a análise proposta neste artigo (FURQUIM, 2020).
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isso estaria coordenado pela ideologia jurídica, interpelando estes sujeitos
migrantes para que sejam captados em termos de mercadoria. E isso nos
coloca a tarefa de pensar alternativas, que não são senão a superação das
determinações deste conjunto, as relações de produção capitalistas.
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Como citar:
FURQUIM, Gabriel Martins; SIMÕES, Mauro Cardoso; SERAFIM, Milena
Pavan. Gaudemar encontra Pachukanis: breve ensaio sobre a mobilidade do
sujeito de direito e migrações. Verinotio Revista on-line de Filosofia e
Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 383-402, jul./dez. 2020.
Data do envio: 4 maio 2020
Data do aceite: 29 nov. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.518
Thais Hoshika
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Crítica marxista do estado e do direito:
Nicos Poulantzas em debate
Thais Hoshika
1
Resumo: O presente artigo propõe-se a analisar criticamente os pressupostos
teóricos da teoria política desenvolvida por Nicos Poulantzas na fase
intermediária de sua trajetória intelectual. Partindo da problemática da
autonomia relativa do político, procura-se evidenciar as potencialidades e
limites da exposição de Poulantzas e os contrapor aos resultados obtidos com
a derivação sistemática da especificidade do direito e do estado das categorias
econômicas estruturantes da sociabilidade capitalista.
Palavras-chave: autonomia relativa; superestrutura jurídico-política;
estado-sociedade civil; normatividade; derivação.
Marxist critique of the state and law: beyond Nicos Poulantzas
Abstract: This article aims to critically analyze the theoretical assumptions
of the political theory developed by Nicos Poulantzas in the middle phase of
his intellectual trajectory. Starting from the problem of the relative autonomy
of the political, we seek to highlight the potentialities and limits of Poulantzas'
exposure and oppose them to the results obtained with the systematic
derivation of the specificity of the law and the state from the structuring
economic categories of capitalist sociability.
Keywords: relative autonomy; juridical-political superstructure; State-
civil society; normativity; derivation.
Introdução
Poulantzas representa, ainda hoje, uma das principais correntes do
marxismo responsáveis por apresentar um estudo sistemático da problemática
concernente ao estado capitalista, dedicando-se na construção de uma teoria
política capaz não apenas de identificar a especificidade do político no
capitalismo, mas, sobretudo, de passar para as etapas seguintes do processo de
abstração com a construção de categorias específicas à região do político, na
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Mestranda pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: thaishoshika@gmail.com.
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medida em que a análise do modo de produção capitalista em geralpassa
para investigações mais concretas de formações sociais determinadas.
Considerando as diferentes fases do pensamento de Poulantzas,
marcados, respectivamente, pela aproximação do existencialismo de Sartre, o
marxismo estruturalista e a teoria do poder de Foucault (MOTTA, 2010, p.
368); o debate a que se propõe a presente investigação tem como objeto o
ponto mais alto de sua trajetória intelectual, qual seja, aquelas obras nas quais
a influência do pensamento de Althusser está mais presente, momento em que
desenvolve sua principal obra: poder político e classes sociais.
Pretende-se, com isto, analisar criticamente as implicações da teoria
política desenvolvida por Poulantzas, sobretudo no que se refere a suas
proposições basilares, sobre as quais construiaquilo que ficou denominado
de teoria regional do político, colocando em questão a problemática da
autonomia relativa do estado e da economia enquanto separação real e
exigência de ordem epistemológica como ponto nodal a partir do qual
Poulantzas desenvolve suas considerações sobre o estado e,
consequentemente, sobre o direito; e a partir do qual proceder-seà ruptura
com o pensamento de Poulantzas na tentativa de contribuir com a construção
de uma teoria materialista do estado e do direito que supere algumas das
limitações de sua teoria.
Para tanto, a exposição divide-se em três momentos. Em primeiro lugar,
busca-se apresentar o pensamento de Poulantzas partindo de sua proposta de
análise científica do estado capitalista, com a exposição da base a partir da qual
constrói a teoria regional do político e, consequentemente, seus traços gerais,
caracterizado a partir do lugar que ocupa na totalidade que determina a
extensão e os limites dessa região e a função que exerce de ser seu princípio
organizador. O direito, nesse processo, ocupa importante papel para
Poulantzas como uma região do político, como ideologia e como norma
jurídica, na medida em que permite a produção dos indivíduos-sujeitos
abstraídos de suas classes através daquilo que denominará de efeito de
isolamento, base da própria separação real existente entre estado e sociedade
civil, entre público e privado.
Com isso, busca-se em um segundo momento apresentar os limites de
sua teoria regional, tecendo críticas estruturais com base nos apontamentos de
Holloway e Picciotto, quanto as limitações de Poulantzas em decorrência da
falta de precisão ao estabelecer uma relação entre o econômico e o político, que
revela-se impossibilitado de explicar (por conta do estabelecimento inicial do
problema) os limites impostos à ação estatal bem como a reorganização
periódica de suas instituições pelo processo de acumulação de capital (cujas
contradições produzem transformações nas condições de produção), com a
apresentação da corrente marxista que tem o mérito de se voltar para esses
problemas como determinantes para a análise do estado: o debate da
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derivação, cujo método consiste em derivar sistematicamente, das categorias
econômicas estruturantes da sociabilidade capitalista, a especificidade
histórica da forma política.
Por fim, analisa-se o direito a partir desse mesmo método, com base nas
contribuições de Evguiéni Pachukanis, para além da identificação do direito
em Poulantzas a uma região do político, tanto em seu caráter normativo
superestrutural como em seu caráter ideológico, apontando para a
construção de uma teoria materialista do fenômeno jurídico com a
identificação da relação social específica que a expressa em sua forma mais
simples, porém suficientemente determinada, permitindo que o direito
assim como o estado seja analisado a partir de uma especificidade que lhe é
própria.
1. A autonomia relativa do político em Poulantzas e a separação
entre estado e sociedade civil
Poder político e classes sociais, publicado por Poulantzas em 1968,
corresponde a uma das maiores obras de teoria política marxista escritas,
responsável por apresentar como o ponto mais alto da segunda fase de sua
trajetória intelectual, sob influência do pensamento de Louis Althusser uma
teoria regional do político capaz de oferecer não apenas uma teorização das
estruturas políticas de um modo de produção e de uma formação social
específicos, ou seja, do político; como também da relação entre este e as classes
sociais no processo de sua transformação e manutenção, da prática política
(POULANTZAS, 1977, pp. 40-1).
Para tanto, Poulantzas sustenta que uma análise científica do estado
capitalista deve ter como ponto de partida a inter-relação específica que se
estabelece entre as diferentes estruturas regionais de um determinado modo
de produção, compreendido não como o conjunto das relações de produção,
mas sim como a combinação específica de diversas estruturas e práticas que
/.../ aparecem como outras tantas instâncias ou níveis” (POULANTZAS, 1977,
p. 13) o econômico, o político, o ideológico etc. que ocupam lugares nessa
totalidade.
A definição de modo de produção, como primeiro ponto de investigação
adotado por Poulantzas tem, acima de tudo, uma importante implicação de
ordem epistemológica na medida em que possibilita a análise dos modos de
produção em geral inclusive o capitalista a partir da combinação específica
que se estabelece entre suas regiões.
O fato de a instância econômica e política estarem presentes em modos
de produção pré-capitalistas como o escravista antigo e o feudal não
significa, entretanto, que tais estruturas regionais apresentem essências
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imutáveis a todos os modos de produção. Muito pelo contrário, é a combinação
específica desses níveis, diferentes a cada modo, que dará a eles suas
especificidades (POULANTZAS, 1980, p. 21).
As regiões de cada modo de produção “têm suas próprias estruturas e
efeitos e, nesse sentido, são autônomas na medida em que é possível fixá-las
como objetos separados de estudo, “mas são organizadas em uma hierarquia
específica” (JESSOP, 1985, p. 131), formando uma estruturação com
dominante de uma totalidade complexa, na qual uma das regiões ocupa a
posição de determinação em última instância, um invariante estrutural
(ALTHUSSER, 2015, p. 171), sobre a qual as demais regiões sobredeterminam
reflexivamente, de forma que a relação estabelecida entre as regiões é de
autonomia relativa. Trata-se, portanto,
de um tipo de relação, no interior do qual a estrutura com
determinação do todo comanda a própria constituição - a natureza -
das estruturas regionais, atribuindo-lhes o lugar respectivo e
distribuindo-lhes funções: por conseguinte, as relações que
constituem cada nível nunca são simples, mas antes
sobredeterminadas pelas relações dos outros níveis (POULANTZAS,
1977, p. 14).
O desenvolvimento da teoria geral de uma investigação materialista
histórica dos diferentes modos de produção permite que Poulantzas
desenvolva uma “teoria particular do modo de produção capitalista”
enquanto objeto abstrato formal , a segunda etapa em direção à construção
teórica do estado capitalista, “que determina o lugar e a função do estado e da
política na matriz estrutural geral do capitalismo” (JESSOP, 1985, p. 60) para,
então, proceder à análise de conjuntura, “o ponto estratégico onde se fundem
as diversas contradições enquanto reflexos da articulação que especifica uma
estrutura com valor dominante” (POULANTZAS, 1977, p. 39) em uma
determinada formação social objeto real concreto.
De modo que o desenvolvimento das categorias políticas próprias da
instância econômica e o nível de complexidade delas vai depender do nível de
particularidade dado. É apenas caminhando em direção a análises mais
concretas que os conceitos adquirem maior riqueza de determinações teóricas.
Poulantzas afirma, portanto, que uma teorização adequada do estado
capitalista apenas é científica “se conseguir explicar a reprodução e as
transformações históricas de seu objeto nos lugares em que essas
transformações estão ocorrendo, nas diversas formações sociais”
(POULANTZAS, 1980, pp. 29-30).
Por formação social entende-se uma realidade particular
historicamente determinada, com a combinação de diversos modos de
produção na qual um deles ocupa a posição dominante (POULANTZAS, 1973,
p. 145). Sendo essa estrutura particular com dominante que permite explicar o
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desenvolvimento desigual, “a complexidade contraditória dos fatos empíricos
observáveis em toda a formação social concreta e também as tendências
contraditórias que se enfrentam nela, e se traduzem através de sua história”
(ALTHUSSER, 1999, pp. 42-3).
Assim, em se tratando da caracterização da teoria particular do modo
de produção capitalista, Poulantzas parte da intepretação do capital de Marx
como um estudo da região econômica, compreendida como as relações de
produção em sentido estrito em seu papel de determinação e dominante do
todo complexo estruturado (POULANTZAS, 1977, p. 28) , com as demais
regiões.
Para Poulantzas são as relações de produção compreendidas em sentido
estrito isto é, as relações de exploração (ALTHUSSER, 1999, p. 52)
estabelecidas na esfera da produção entre proprietários e não proprietários dos
meios produtivos na geração de mais valor que compõem a invariante
estrutural da unidade complexa do modo de produção capitalista, a região do
econômico, sobre a qual as demais instâncias não penetram, mas cuja posição
de determinação em última instância deve-se justamente a sua relação com a
função desempenhada pelas demais instâncias ou níveis. Sendo essa inter-
relação que determinará a extensão e os limites de cada região. Portanto,
dizer que em uma certa estrutura o econômico é predominante em
última instância, é indicar que ocupa tal lugar somente em função
da especificidade e da eficácia própria dos outros níveis que
constituem a estrutura social como unidade complexa /.../. Esta
unidade consiste em uma descentralização dos diversos níveis, em
um deslocamento originário das instâncias em um todo complexo
no interior do qual o econômico detém o predomínio em última
instância (POULANTZAS, 1973, p. 143).
Desse modo, nesse todo complexo estruturado, o político ocupa o lugar
especial, na sua materialização em poder institucionalizado, de coesão dos
diversos níveis ou instâncias do modo de produção capitalista nas diversas
formações sociais (POULANTZAS, 1977, p. 42), na medida em que se trata do
ponto de condensação da prática política, da luta política de classes,
responsável por gerir as contradições da sociedade dividida em classes sociais,
assegurando a sua reprodução. E, nesse sentido, corresponde aos interesses da
classe dominante não como uma ferramenta de dominação direta e consciente,
mas devido a sua função de promover a manutenção da unidade de uma
formação social na qual o modo de produção capitalista é dominante.
Justamente por cumprir essa função de coesão e ser a região, em
decorrência dessa função, que concentra o maior número de contradições, é
que o estado se torna o objeto da prática política, concentrando nele o local da
disputa e das transformações da formação social, uma vez que a luta política
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de classe constitui o verdadeiro “motor da história” (POULANTZAS, 1977, p.
43).
Disso decorre que o político, em sua caracterização como o princípio
organizador da totalidade, exerce papel indispensável na reprodução das
relações de produção, sobredeterminando o econômico e o ideológico as
duas regiões, além do político, que, de acordo com Poulantzas, são centrais no
modo de produção capitalista e compreendendo, como parte da estrutura
política, todas as funções que não estão diretamente ligadas ao conflito de
classes imediato, mas que são políticas na medida em que cumprem o papel de
promover a unidade da formação social. Ou seja:
Este conceito de sobredeterminação, aplicado aqui às funções do
estado indica portanto duas coisas: que as diversas funções do
estado constituem funções políticas pelo papel global do estado
como fator de coesão de uma formação dividida em classes; e que
estas funções correspondem assim aos interesses políticos da classe
dominante. (POULANTZAS, 1977, p. 52)
Na definição das características centrais do estado capitalista, além do
papel de promover a unidade da estrutura de uma formação, Poulantzas
aponta para outras duas dimensões igualmente importantes do estado
pertencentes a momentos distintos de abstração que forma o quadro
completo de sua teorização, arcabouço teórico necessário a partir do qual
permite que proceda à análise de conjuntura o objetivo final do
desenvolvimento de sua teoria regional do político.
A primeira delas está relacionada ao fato de que a possibilidade do
político atuar como fator de coesão das diversas regiões deve-se ao seu
aparecimento como um estado democrático popular nacional, isto é, como o
representante da junção dos interesses de um corpo político atomizado em
indivíduos-cidadãos (JESSOP, 1985, p. 119). Portanto, do interesse público-
geral, como será visto a seguir com a apresentação do processo de
individualização dos sujeitos e autonomia relativa real do político e do
econômico.
Isso permite que a segunda dimensão do estado seja analisada por
Poulantzas que, contudo, não será objeto de tratamento da presente
investigação. Dimensão na qual a autonomia relativa entre as instâncias, que
foi tratada até o momento como uma separação entre as regiões do modo de
produção econômica, política e ideológica , desdobra-se como uma
autonomia relativa no seio do desenvolvimento interno do estado, referindo-
se àquela existente a nível político-institucional com relação às classes e
frações da classe dominante na manutenção da hegemonia do bloco no poder.
Procedendo a um exame mais aprofundado das implicações teóricas da
autonomia relativa entre o político e o econômico, Poulantzas sustenta um
detalhe fundamental: a separação entre as regiões de um modo de produção
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não se trata apenas de um pressuposto de ordem epistemológica, de modo a
permitir um tratamento teórico do político como objeto autônomo de estudo,
mas representa “de um modo adequado a autonomia real das instâncias na
prática social total” (SAES, 1998, p. 55).
O que significa que, se em modos de produção pré-capitalistas as regiões
que compõem a totalidade estruturam-se de forma imbricada, aparecendo
como “mistas”, no modo de produção capitalista uma separação radical e
específica entre a instância política e a econômica (POULANTZAS, 1977, p. 28)
em razão da estrutura do econômico, que o engloba em sua organização
nas relações de produção em sentido estrito o exercício da coerção
extraeconômica.
Apesar de Poulantzas reconhecer que um dos traços distintivos do
estado capitalista é o fato dele aparecer como a encarnação do interesse geral
do corpo político, isso não pode ser tomado como o ponto de partida e nem a
centralidade da compreensão do político, e sim uma produção ideológica
proveniente do processo de individualização dos agentes da produção,
tratando-se do substrato real por trás de todas as construções na teoria política
marxista e mesmo não marxistas que tomam como base a separação entre
estado e sociedade civil; dado que isso mascara o problema central do estudo
do estado, inviabilizando a análise de sua estreita relação com o processo
político da luta de classes na medida em que produz, através dessa separação,
indivíduos-sujeitos-políticos indiferenciados, e não agentes da produção
pertencentes a uma determinada classe (POULANTZAS, 1977, pp. 120-1),
sendo este o aspecto determinante da formação da superestrutura política.
Mas no que consiste o processo real, econômico, de individualização dos
agentes da produção? Poulantzas parte da colocação de Marx nos Grundrisse
sobre o pressuposto do trabalho livre assalariado e condição histórica do modo
de produção capitalista, que, antes da transformação do dinheiro em capital,
pressupõe “a separação do trabalho livre das condições objetivas de sua
realização do meio de trabalho e do material do trabalho” (MARX, 2011, p.
388), produzindo, desse modo, o “trabalhador nu” enquanto produto histórico.
O trabalhador em sua nudez, com a separação dos produtores diretos
de seus meios de produção, constitui o substrato histórico real da aparente
individualização dos sujeitos na medida em que o dissocia de seus laços
“naturais” de produção social, de modo que esta passa a ser executada a partir
da organização de uma série de trabalhos individuais-privados. Nesse sentido:
O termo "indivíduo nu" como condição histórica não indica, pois, de
forma alguma, que certos agentes, anteriormente integrados
"organicamente" em unidades, apareçam na realidade como
indivíduos atomizados os quais, em seguida, se teriam inseridos
nas combinações das relações de produção capitalistas, ou que
teriam, em seguida e progressivamente constituído classes sociais: o
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que esse termo indica é que certas relações se desintegram sich
aufloesen , o que, nos seus efeitos, aparece como uma "nudez" e
uma "libertação", e mesmo uma "individualização" Vereinzelung
dos agentes. (POULANTZAS, 1977, p. 122)
A compreensão do processo de libertação e aparente individualização
dos agentes da produção permite não apenas concebê-los a partir do lugar de
classe aos quais eles pertencem, enquanto “suportes de uma estrutura do
processo de trabalho” (POULANTZAS, 1977, p. 125) e, consequentemente, a
relação entre a luta de classes e o desenvolvimento do estado como também
permite compreender a formação da ideologia jurídico-política dominante e
sua materialização naquilo que Poulantzas passará a denominar de
superestrutura jurídico-política, o estado de direito, formando uma
caracterização da autonomia relativa do político mais rico em determinações.
O direito cumpre, assim, papel indispensável para Poulantzas na
medida em que sua caracterização está diretamente relacionada as regiões
política e ideológica, não sendo tratado como uma região autônoma de estudo
com o desenvolvimento de categorias jurídicas próprias, mas produto direto
da ideologia dominante que opera através do processo de ocultação-inversão
na qual os agentes da produção agem como “sujeitos jurídicos, isto é,
indivíduos-pessoas políticos” (POULANTZAS, 1977, p. 124), materializado na
superestrutura jurídico-política e legitimado através das normas jurídicas
estatais que instituem a propriedade jurídica formal, o contrato da compra e
venda da força de trabalho, a manutenção das relações de troca etc.
A ideologia, portanto, cumpre no modo de produção capitalista o papel
particular de coesão e, nesse sentido, é político de uma formação social,
tratando-se de um conjunto relativamente coerente de representações a partir
das quais os homens vivem suas condições materiais de existência, não apenas
relações imaginárias, mas relações reais que se reproduzem através desse
conjunto de representações. Assim sendo, sua “função social não é de oferecer
aos agentes um verdadeiro conhecimento da estrutura social, mas
simplesmente inseri-los de algum modo nas suas atividades práticas que
suportam esta estrutura” (POULANTZAS, 1977, p. 201).
A principal função da ideologia jurídico-política é aquela exercida sobre
a luta econômica de classes, contribuindo de forma definitiva para uma
separação real específica entre o econômico e o político na qual se a luta
política de classes , com o efeito de isolamento produzido na esfera
comumente designada por sociedade civil, privada, responsável por isolar os
agentes da produção em suas relações de classe, ocultando o conteúdo de
classes das relações sociais e a dominância real do econômico sob a máscara
do indivíduo-sujeito jurídico, desmobilizando a luta econômica de classes e
concentrando através do efeito unificador essa luta na esfera política. Ou
seja,
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as estruturas jurídicas e ideológicas, as quais, determinadas em
última instância pela estrutura do processo de trabalho, instauram,
ao nível os agentes de produção distribuídos em classes sociais, na
qualidade de "sujeitos" jurídicos e ideológicos, têm como efeito,
sobre a luta econômica de classe, a ocultação, de forma particular,
aos agentes, das suas relações enquanto relões de classe
(POULANTZAS, 1977, p. 126).
A superestrutura jurídico-política, por sua vez, materializa a ideologia
dominante através do sistema jurídico normativo, elevando o estado à posição
de único horizonte possível de realização do interesse público, supraindividual.
Do mesmo modo que o efeito de isolamento faz com que os agentes da
produção vivenciem as relações econômicas de exploração como relações de
competitividade entre indivíduos-sujeitos isolados, o “mesmo efeito ocorre no
campo da luta de classes política. Pois o direito e a ideologia jurídico-política
duplicam o ‘fraturamento’ da esfera ‘privada’ ao constituir o público como
‘cidadãos’ individuais” (JESSOP, 1985, p. 63, tradução minha).
Assim, Poulantzas sustenta que a superestrutura jurídico-política
exerce uma dupla função, responsável pela instituição da diferenciação entre
estado e sociedade civil, público e privado: em primeiro lugar, a produção do
efeito de isolamento através do sistema de normas jurídicas na região do
econômico e; em segundo lugar, em razão desse efeito que ela mesma institui
com a instauração em indivíduos-sujeitos abstratos os agentes da produção -,
autorreferenciar-se como a unidade desses indivíduos isolados. “O que, por
outras palavras, quer dizer que o estado representa a unidade de um
isolamento o qual, em grande parte dado o papel ideológico que
desempenha é o seu próprio efeito.” (POULANTZAS, 1977, pp. 129-30)
Apesar de reconhecer o processo real na esfera da produção de
atomização dos sujeitos em decorrência da separação dos produtores diretos
dos meios de produção, atribuindo a esse pressuposto do modo de produção
capitalista a base real do desenvolvimento da ideologia jurídico-política,
Poulantzas afirma que mesmo essa dimensão do econômico, na qual a
divisão social do trabalho enquanto trabalhos individuais, não se trata de uma
esfera privada na medida em que os trabalhos são sociais, apenas organizados
a partir de trabalhos individuais. De modo que a separação entre estado e
sociedade civil que, no campo da superestrutura jurídico-política traduz-se
como uma relação entre público e privado, é produzido pela própria região
jurídico-política. Ou seja, Poulantzas
abandona a distinção entre sociedade civil e estado e não mais o
antagonismo entre os interesses privados como fundamentado no
egoísmo do i. Mas ele transpõe a distinção anterior para a distinção
jurídico-política entre "privado" e "público" e interpreta o
individualismo como um "efeito de isolamento", igualmente
produzido pela região jurídico-política (JESSOP, 1985, p. 64).
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É o estado que produz o individual-privado e se autorrepresenta como
seu oposto, o espaço público, tratando-se de uma separação segundo
Poulantzas que revela a manifestação do estado nas relações econômicas
(POULANTZAS, 1980. p. 80). Sendo essa relação de réplica entre público-
privado e, portanto, da possibilidade do exercício do poder do estado em todas
as esferas da vida social, que em O estado, o poder e o socialismo Poulantzas
atribuirá as raízes do totalitarismo (POULANTZAS, 1980, p. 83). É no seu
“caráter unificador que a tida liberdade do indivíduo privado dissipa-se,
perante a autoridade do estado que encarna a vontade geral”, não havendo,
para a ideologia jurídico-política, “nenhum limite de direito e de princípio à
atividade e às invasões do estado na chamada esfera do individual-privado”
(MOTTA, 2010, p. 383).
Uma vez estabelecidos os pressupostos teóricos a partir dos quais
Poulantzas constrói sua teoria política, com a apresentação do tratamento
temático dado à problemática concernente à autonomia relativa do político e
seus desdobramentos na inter-relação estabelecida entre o estado e as regiões
do econômico e do ideológico, com a caracterização de sua forma a partir da
função que exerce de coesão e conformação dos interesses das classes e
frações dominantes sobre a unidade de uma formação social; bem como a
relação estabelecida entre o político e o jurídico, nas duas dimensões
ideológica e superestrutural a partir das quais influi na luta econômica de
classes e, em decorrência disso, a atribuição da separação entre estado e
sociedade civil, público e privado, como produto do jurídico-político; é possível
passar para a apuração das possíveis limitações encontradas em sua
compreensão do fenômeno político e jurídico no capitalismo, sobretudo na
investigação de sua especificidade histórica em direção à construção de uma
teoria materialista do direito e do estado em sua relação sistemática com as
categorias determinantes do modo de produção capitalista a mercadoria, o
valor etc. , questionando a possibilidade de proceder à uma teorização
completa dessas duas esferas apenas com o desenvolvimento de seus próprios
termos.
2, O abstracionismo-estruturalista de Poulantzas e o
derivacionismo
A primeira tarefa na investigação dos limites da teoria política
desenvolvida por Poulantzas ainda que inegável seu mérito no oferecimento
de termos médios para análise de conjuntura consiste em questionar a
potencialidade de expansão de suas análises ao partir, na definição do estado
capitalista, da divisão da totalidade em regiões relativamente autônomas, de
modo que o político enquanto uma dessas regiões passa a constituir objeto
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autônomo de estudo; considerando que “uma coisa é sugerir que existe uma
relativa separação institucional real de diferentes regiões no modo de
produção capitalista” e, neste ponto, trata-se de uma questão incontroversa, e
outra coisa diferente é afirmar que cada região pode ser analisada
inteiramente em seus próprios termos” (JESSOP, 1985, p. 72).
Não dúvidas de que Poulantzas não se enquadra neste último caso,
dado que ele parte do estabelecimento de uma relação intrínseca entre a região
econômica e a região política, compartilhando da tese marxiana de que as
relações que engendram “as formas do estado não podem ser explicadas por si
mesmas”, e apenas podem ser analisadas com a investigação da “anatomia da
sociedade burguesa (MARX, 2008, p. 49), na totalidade das condições
materiais de existência do modo de produção capitalista. De sorte que a inter-
relação estabelecida entre o político e o econômico defendida por Poulantzas
está fundamentada na famosa passagem dO capital [Livro III], de Marx, na
qual:
A forma econômica específica em que o mais-trabalho não pago é
extraído dos produtores diretos determina a relação de dominação e
servidão, tal como esta advém diretamente da própria produção e,
por sua vez, retroage sobre ela de modo determinante. Nisso se
funda, porém, toda a estrutura da entidade comunitária econômica,
nascida das próprias relações de produção; simultaneamente com
isso, sua estrutura política peculiar (2017b, p. 852).
Ao tomar como ponto de partida as relações de produção em sentido
estrito, “a base oculta de todo o arcabouço social e, consequentemente,
também da forma política das relações de soberania e de dependência, isto é,
da forma específica do estado(MARX, 2017b, p. 852), Poulantzas é capaz de
identificar o político como força coercitiva extraeconômica, em sua função de
ser fator de coesão da unidade da estrutura com dominante (da totalidade),
uma vez que a específica forma de apropriação do mais-trabalho produz
“formas sociais determinadas de consciência” (MARX, 2008, p. 49), o que
significa dizer o efeito de isolamento produzido pela ideologia jurídico-política
na luta econômica de classes, ou seja, na região econômica.
Essa inter-relação estabelecida entre o político e econômico por
Poulantzas leva, portanto, à conclusão de que “tal relação é de
intervencionismo (recíproco); jamais, de não-intervencionismo” (SAES, 1998,
p. 57). Inclusive, em O estado, o poder e o socialismo, obra pertencente à
última fase do pensamento do autor, observa-se um abandono da teoria
regional do político e do esquema estrutura com dominante, e a região do
econômico, político e ideológico deixam de ser tratados como regiões distintas
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do modo de produção capitalista
2
e passam a ser investigadas como momentos
das relações de produção (JESSOP, 1985, p. 108).
A crítica, no entanto, que se estabelece à teoria política marxista de
Poulantzas, reside no fato de que não obstante a pressuposição em suas teses
das relações e estruturas objetivas do processo de trabalho (POULANTZAS,
1977, p. 125) nas quais se encerram as leis de movimento econômico; não
uma formulação precisa sobre qual, exatamente, é a relação objetiva entre as
categorias desenvolvidas por Marx no capital (mercadoria, valor, mais-valor,
acumulação etc.), que compõem o quadro teórico necessário para que se
proceda a uma compreensão da “anatomia da sociedade burguesa” e a forma
política correspondente a esse modo de produção (CALDAS, 2015, p. 60).
De fato, verifica-se em Poulantzas uma rica caracterização da origem
histórica do estado, “a natureza de suas partes constitutivas, as funções a que
presumivelmente serve, e as consequências (programas de governo, políticas
diversas) às quais pode dar origem” (EASTON, 1982, p. 133), mas a relação
estrutural entre o político e o econômico que é estabelecida em termos gerais,
ainda que se tratando de pressupostos fundamentais faz com que Poulantzas
apenas consiga analisar o estado no nível da prática política e da materialização
do político nas instituições, de sorte que uma tendência observável em suas
obras é um direcionamento cada vez maior de suas análises à caracterização
do estado com base nas funções que este assume em decorrência das
contradições entre as classes e suas frações, deslocando a definição do estado
para suas estruturas observáveis (EASTON, 1982, p. 141).
Ao empurrar o econômico para segundo plano na crítica ao
economicismo, Poulantzas acaba “proporcionando bastante espaço para o
‘voluntarismo’ e o oportunismo político que sua teoria supostamente havia
afastado” (CLARKE, 1991, p. 19). Ou, dito de outro modo, acaba fazendo com
que o político seja analisado com base na reconstrução descritiva, a nível das
instituições, da prática política.
Ainda que reconheça e pressuponha em suas obras a existência das leis
de movimento econômico e as contradições que elas implicam no curso do
desenvolvimento do capitalismo, Poulantzas restringe-se em analisar como
essas contradições vão influenciar e determinar o próprio desenvolvimento do
estado.
De um lado, tem-se a forte reação crítica ao determinismo econômico e
o reducionismo que a todo momento reiterava. De outro lado, a
desconsideração de Poulantzas das categorias econômicas na construção da
2
/.../ um modo de produção não é o produto de uma combinação entre diversas instâncias
em que cada uma possuiria previamente, ao se relacionar, uma estrutura intangível. É o modo
de produção, unidade de conjunto de determinações econômicas, políticas e ideológicas, que
delimita as fronteiras desses espaços, delineia seus campos, define seus respectivos elementos”
(POULANTZAS, 1980, p. 21).
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teoria regional do político deve-se à interpretação atribuída à extensa
investigação de Marx sobre a sociabilidade capitalista. Interpretação que trata
sobretudo a sua crítica à economia política, O capital como um estudo
específico da região econômica, cujas implicações, pelo esquema das
estruturas regionais, não seriam diretamente aplicáveis para a construção de
uma teoria particular do estado capitalista mas que, contudo, forneceria o
quadro geral da estrutura com dominância da região econômica.
Isso acaba levando-o a uma investigação do estado estritamente com
base em seus próprios termos, ou seja, com base em categorias próprias da
região do político, desembocando no seguinte efeito imunizador fatal”: o de
tomar como certas as leis de movimento do capital, mas atribuí-las à esfera
econômica, e “a análise do político procede com independência em relação às
necessidades e limitações impostas a ele precisamente por essas leis de
movimento” (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 6). Como consequência,
os problemas centrais da teoria marxista do estado, os problemas do
desenvolvimento da forma estatal, dos limites estruturais e as
possibilidades de ação estatal, que podem ser abordados através
de uma análise da relação entre o estado e as contradições da
acumulação capitalista, são omitidos no trabalho de Poulantzas,
aparentemente em virtude de um maior rigor científico
(HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 6).
Isso fica claro na obra seguinte a Poder político e classes sociais, na
qual Poulantzas procura investigar a etapa
3
do fascismo em duas formações
sociais específicas, a saber, a alemã e a italiana. Assim, em Fascismo e
ditadura, Poulantzas procura investigar, na dinâmica das classes sociais, o tipo
de crise da qual emerge o fascismo analisado nos termos de uma crise de
hegemonia e a forma específica de estado de exceção (o estado fascista) que
se desenvolve como resposta a essa crise (LACLAU, 1986, p. 102).
Parte-se, portanto, da identificação da Alemanha e da Itália como países
que ocupam posições de elos mais fracos da cadeia imperialista, ou seja, países
que devido as condições históricas específicas de desenvolvimento desigual
das formações sociais concentram profundas contradições internas, que
irrompem em crises de hegemonia
4
na transição para o capitalismo
monopolista.
3
Por etapa ou período em Poulantzas, entende-se: “periodização concreta de uma formação
social, recobrindo mais particularmente o campo da luta de classes” (POULANTZAS, 1972a, p.
19, nota de rodapé 5).
4
O conceito de hegemonia /.../ existe justamente para designar a classe ou fração de classe
que tem, dentro do bloco no poder, a capacidade de representar, necessariamente, duas
características possíveis da dominação política de classes dentro das formações sociais
capitalistas: a) capacidade de representar o interesse do povo/nação e; b) a competência de
garantir a sua dominância específica, dentre as próprias classes e frações de classe dominantes,
na sua relação com o estado capitalista(DEL PASSO, 2019, p. 95; cf. POULANTZAS, 1977,
pp. 136-7).
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Assim, o processo de fascistização e a consolidação do fascismo no
poder é teorizado de modo extenso e detalhado, como um processo de
reorganização do bloco no poder (POULANTZAS, 1972a, p. 79), em uma “série
de discussões sobre a relação entre fascismo e classes sociais /.../ a força
dirigente, a base social, as determinações sociais que tornam certas classes
mais vulneráveis à interpelação da política e da ideologia fascistas”
(MARTUSCELLI; BRAGA; GUILMO, 2019, p. 11) etc.
De fato, não se trata de negar a riqueza de determinações teóricas
apresentadas ao analisar concretamente a dinâmica de classes, sem as quais as
especificidades do estado fascista não podem ser compreendidas. No entanto,
o que as proposições de Poulantzas não revelam é até que ponto as
contradições da acumulação de capital impõem uma reorganização necessária
das instituições políticas.
Decerto, afirma-se que os “dados ‘econômicos’ determinam,
rigorosamente, uma nova articulação do conjunto do sistema capitalista”
(POULANTZAS, 1972a, p. 16), mas essas “contradições econômicas
subjacentes ao fascismo” são discutidas “no contexto das classes dominantes
contradições entre grande e médio capital, entre capitalistas e proprietários
fundiários etc. /.../ toda a questão é discutida em termos de uma crise ‘político-
ideológica’” (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 8).
Observa-se, portanto, a colocação de Poulantzas “à margem da
principal fonte de transformação da sociedade capitalista (HOLLOWAY;
PICCIOTTO, 1978, p. 6), isto é, a contradição crescente entre capital-trabalho
(MARX, 2017a, p. 720), imanente ao processo de valorização do valor
5
. Diante
disso, Poulantzas revela-se limitado em analisar sistematicamente o
desenvolvimento da forma política e as funções que o estado vai assumindo
historicamente nas diversas fases de acumulação de capital.
Em certa medida, cabe neste ponto a crítica à Poulantzas elaborada
primeiramente por Miliband (2008) em Poulantzas e o estado capitalista, mas
desenvolvido de modo mais completo por Laclau (1986), de que a teoria
política de Poulantzas é caracterizada por um abstracionismo estruturalista.
Tal abstracionismo, diferentemente do que Poulantzas entende em resposta
apresentada no artigo O estado capitalista: uma resposta a Miliband e Laclau
6
,
refere-se a específica forma com que são estabelecidas as conexões lógicas
entre os elementos iniciais de seu processo de análise, sobre os quais erige todo
o processo de abstração na apreensão do real como concreto pensado, que
5
“O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo
de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado põe o tempo de trabalho como
única medida e fonte de riqueza” (POSTONE, 2014, p. 51)
6
Poulantzas compreende a crítica do abstracionismo à suposta “ausência /.../ de análises
concretas ou referência a fatos empíricos e históricos” (2008, p. 107) em seus escritos. No
presente artigo, nega-se crítica nesse sentido.
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Laclau apontará como sendo “um tipo de abstração que conduz a um crescente
formalismo” (LACLAU, 1986, p. 75). Assim,
a origem dessa tendência formalista no processo de abstração reside
no fato de que o contato mútuo entre os elementos iniciais no
processo de análise foi estabelecido de maneira puramente
descritiva; o resultado é que, nas etapas ulteriores do processo de
abstração, é impossível estabelecer vínculos lógicos entre eles. A
saída desse dilema é, para Poulantzas, a postulação de relações
puramente formais entre os objetos de análise e um crescente uso de
metáforas (LACLAU, 1986, p. 77).
Para Laclau, Poulantzas parte de uma definição imprecisa do que
significa a determinação em última instância do econômico, e a ausência de
critério no estabelecimento da região econômica, política e ideológica como as
únicas regiões articuladas na compreensão do modo de produção capitalista
(LACLAU, 1986, p. 79). Uma vez que se estabelece que as regiões não são
vinculadas logicamente entre si, essa relação passa a ser caracterizada com
base em conceitos descritivos ou de proximidade (LACLAU, 1986, p. 76).
Certamente, não se trata de defender integralmente a crítica de Laclau,
mas ela caracteriza bem uma insuficiência e lança luz sobre um outro método
de superá-la. A insuficiência está tanto na negligência em identificar como as
leis do movimento do capital afetam a prática política e impõem limites à ação
estatal e a necessidade da reorganização das instituições políticas, como no
fato de que justamente devido a isso, a diferença entre estrutura como
princípio organizador das instituições é dissolvida nas próprias instituições,
fazendo com que “sua análise do estado burguês não ultrapasse o nível da
descrição perceptiva” (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 7), ou seja, no nível
da dinâmica imediata da prática política.
Diante desses limites, apresenta-se outra corrente teórica de
pensamento marxista que se incumbe da tarefa de analisar o estado em sua
materialidade histórica, a qual será a seguir apresentada na tentativa de
fornecer uma via de teorização do político que supere as deficiências apontadas
no pensamento de Poulantzas, cujo método contrapõem aquele definido por
Laclau como formalista
7
e consiste no estabelecimento de uma relação lógica
sistemática entre as categorias determinantes do modo de produção capitalista
para, então, desenvolver as categorias políticas dessas derivadas.
Por relação lógica sistemática entende-se organizar a totalidade do
modo de produção capitalista como um “sistema de categorias em uma
sequência definida, derivando logicamente uma da outra” (ARTHUR, 2016, p.
7
Para Laclau, a relação entre os conceitos que caracterizam o modo de produção capitalista
não são formalistas quando “uma relação que vincula logicamente os conceitos entre si e
tende a enfatizar sua natureza teórica: teremos então um processo de retorno por meio do qual
a função teórica dos conceitos tende a ser acentuada em razão do caráter lógico das relações
que os ligam” (1986, p. 76).
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81). Assim, a problemática da derivação da forma do estado em detrimento
de sua função e da luta de classes é colocada como centro e ponto de partida
de sua teorização. Sendo possível apresentar, desse modo, os limites
estruturais da forma política, sua intrínseca relação com o processo de
acumulação do capital, e como este impõem processos de transformação das
instituições.
Ainda que não se trate de uma corrente de pensamento unificada, o
debate alemão da derivação do estado nome pelo qual ficou conhecida essa
corrente teórica
8
diferencia-se de modo determinante do tratamento de
Poulantzas sobre o problema do político pelo fato de que os teóricos da
derivação “não enxergam na grande obra de Marx” – O capital “uma análise
do ‘nível econômico’, mas uma crítica materialista da economia política, isto é,
uma crítica materialista das tentativas burguesas de analisar a ‘economia’ de
maneira isolada das relações de produção” (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978,
p. 4). Disso decorre que as categorias econômicas apresentadas por Marx a
mercadoria, o valor, o dinheiro, o capital etc. não são específicas à região do
econômico, mas sim categorias que operam na totalidade das relações sociais
e perpassam pelo político dando a ele determinação. O conceito forma social:
expressa tanto o problema básico como a característica essencial do
método materialista histórico: a investigação da conexão entre o
processo material de produção e reprodução da vida de pessoas
socializadas e as relações entre essas pessoas que se constituem
nesse processo material de reprodução /.../. O método materialista
consiste em examinar as formas nas quais as relações particulares
entre os homens são expressas (BLANKE; JÜRGENS;
KASTENDIEK, 1978, p. 118).
O político, em vista disso, passa a ser teorizado a partir da mesma
totalidade de relações sociais que produzem as formas sociais econômicas que,
por se tratarem das relações objetivas que inauguram um modo específico de
interdependência social, produzirão, por sua vez, a especificidade da forma
política. Sendo esta composta por um conjunto de relações sociais específicas
que se reproduzem independentemente da vontade dos sujeitos dessas
relações (HIRSCH, 2007, p. 14), de modo que as instituições políticas que
compõem o estado e as respectivas funções que assumem campo em que
Poulantzas centraliza sua investigação do estado capitalista não são o ponto
de partida e, sim, as categorias econômicas que estão na base da determinação
histórica do estado.
8
Composto pelo debate iniciado entre o final da década de 1960 e início da década de 70 com
as sucessivas crises que irromperam nos países de capitalismo central, que revelaram uma
inadequação das correntes políticas marxistas até então predominantes, em explicar os limites
estruturais do estado no gerenciamento das crises do capitalismo, os limites de suas ações no
processo de transformação da sociedade etc.
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Desse modo, a tarefa colocada é desvendar o que, na totalidade das
relações sociais, constitui o político como uma forma social essencial para a
reprodução dessas relações. A resposta para essa pergunta, segundo Hirsch,
encontra-se na específica forma de apropriação do sobreproduto no
capitalismo (2015, p. 28), isto é, na específica forma de constituição das
relações de dominação capitalistas que, no processo histórico de separação dos
agentes diretos da produção de seus meios produtivos engendra o trabalhador
livre, despossuído de suas condições materiais de existência e obrigado a
livremente dispor da única mercadoria da qual é proprietário, sua força de
trabalho.
Diferentemente dos modos de produção que precederam, o capitalismo
constitui-se historicamente como uma dominação abstrata e impessoal, uma
dominação mediada pela qualidade abstrata do valor e, portanto, uma forma
de dominação indireta na qual o poder econômico separa-se do poder político
uma vez que as relações sociais que regulam a vida social no processo de
reprodução do capital não estão fundadas na violência direta de classe, mas
num processo em que a exploração é mediada pela troca de mercadorias
(HIRSCH, 1978, p. 59) entre sujeitos que se apresentam como seus
proprietários seus reflexos subjetivados.
Desse modo, o processo de constituição e generalização de um circuito
de relações mercantis suficientemente abrangentes engendra, juntamente com
o desenvolvimento do mercado, uma separação realmente existente entre “o
individual e o social, entre o privado e o público”, contradição que “constitui o
fundamento vital da própria sociedade burguesa como uma sociedade
produtora de mercadorias” (PACHUKANIS, 2017, p. 164). Uma vez que o
caráter social da mercadoria apenas se realiza por intermédio da troca entre
valores a “coerção como prescrição de uma pessoa sobre outra, sustentada pela
força, contradiz a premissa fundamental da relação entre os possuidores de
mercadorias” (PACHUKANIS, 2017, p. 146)
9
.
A separação entre a esfera pública e privada da vida social, portanto,
não deve ser pensada partindo-se do efeito produzido pela superestrutura
política com a finalidade de desmobilizar a luta econômica de classe, garantir
a coesão da unidade da formação social e legitimar-se como o representante da
vontade geral isto é, uma separação produzida pela finalidade de
desempenhar determinadas funções , como faz Poulantzas, mas, antes,
9
Note-se que, com isso, não se exclui a necessidade de compreender historicamente a
formação do estado capitalista, cuja estruturação nas diversas formações sociais contou com
“desencadeadores múltiplos, não se restringindo apenas às formas capitalistas de exploração
e de luta contra os privilégios feudais”. Além disso, “não apenas o surgimento do capitalismo
e do estado moderno não é consequência de uma lógica estrutural, como o seu
desenvolvimento e o seu futuro ficam condicionados, nesse sentido, à ação, através de lutas e
estratégias políticas, e por isso permanecem, em princípio, abertos” (HIRSCH, 2010, pp. 67;
69).
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pensar essa separação como aquilo que dá especificidade ao político, resultado
de um processo objetivo de relações sociais e práticas que se autonomizam no
seio da sociedade.
Estabelecer esse vínculo inicial permite compreender como “a crescente
acumulação do capital” e a contradição inerente as modificações na
composição orgânica do mesmo, “desenvolve-se de maneira cada vez mais
gritante e implica a /.../ transformação das condições de produção em gerais,
coletivas, sociais” (MARX, 2017b, p. 303) e, com isso, a necessidade de
reorganização, em vista do “choque com o sistema de regulação existente”, das
“formas institucionalizadas de relações de classe e forças sociais” (HIRSCH,
2010, p. 131) vigentes em determinada formação social.
Isso, no entanto, não significa uma transposição automática da lei geral
do valor e a queda tendencial da taxa de lucro como um resultado sempre
necessário à dinâmica da luta de classes. Muito pelo contrário, é preciso
considerar que a própria lógica do capital é a expressão dessa luta, e como a
tendência definida pelo processo de valorização do valor é um processo
contraditório que deve reproduzir constantemente as relações de produção.
Nesse sentido:
A particularização do estado deve se restabelecer continuamente e
se manter nesse processo de conflito e colisão de interesses. Não
menos importante das consequências disso é a imperfeição,
incompletude e inconsistência da atividade do estado, mas também
ao mesmo tempo a contingência relativa do processo político, uma
contingência que não pode ser derivada das determinações gerais da
relação de capital. (HIRSCH, 1978, pp. 65-6)
Com isso, esboça-se uma teoria materialista do estado cujo mérito
consiste em dar centralidade para o problema da forma política na dinâmica
de acumulação que está na base de sua transformação. Considerando que as
“condições sociais gerais de produção não se adaptam automaticamente à
acumulação de capital, a crise se manifesta quando o processo de acumulação
atinge seus limites” (HIRSCH, 1978, p. 74). Essas condições gerais, por sua vez,
incluem um contexto de regulação composta por instituições políticas que
garantem a estabilidade da acumulação (HIRSCH, 2010, p. 108), daí que a
crise não é apenas econômica, mas também política.
Apesar de apontar para o derivacionismo como o caminho para a
superação de limitações determinantes da teoria política de Poulantzas
sustenta-se na presente investigação não apenas a possibilidade, mas uma
articulação real por parte de alguns teóricos do debate da derivação (como
Joachim Hirsch
10
e Bob Jessop) de algumas categorias políticas (como
10
A proximidade entre Hirsch e Poulantzas é reconhecida pelo próprio Poulantzas, sobretudo
a respeito do tratamento das contradições internas de classe que perpassam e são inerentes à
estrutura do estado (cf. POULANTZAS, 2008, p. 119).
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‘hegemonia’ e ‘bloco no poder’) desenvolvidas por Poulantzas, dado que elas
possibilitam como categorias intermediárias explicar nas diversas
formações sociais os atores sociais envolvidos na dinâmica das crises, e em que
lugar do tecido social elas irrompem.
3. A superestrutura jurídico-política de Poulantzas e a forma
jurídica
A tarefa de fornecer elementos para a construção de uma teoria
materialista do estado que supere os limites da teoria política desenvolvida por
Nicos Poulantzas não se dá, no entanto, por encerrada. É preciso também
chamar atenção para outro problema: o da teoria do direito, cuja dimensão e
implicações uma vez reduzida à esfera política merecem igualmente um
tratamento teórico específico ao lado do estado e, neste sentido, passível de ser
configurada como um objeto próprio de estudo, que possui especificidade e
categorias próprias (como o sujeito de direito e a norma jurídica).
Ressalta-se, nesse sentido, que o filósofo responsável por apresentar
uma investigação marxista do fenômeno jurídico no capitalismo, cujo mérito
até hoje insuperado foi o de identificar a relação social objetiva específica que
determina a forma jurídica a partir do qual proceder-seao apontamento
de uma teoria jurídica para além da abordagem de Poulantzas trata-se de
Evguiéni Pachukanis que, apesar de não pertencer à corrente do
derivacionismo, é utilizado por alguns de seus autores como o filósofo que
colocou pela primeira vez o problema da forma jurídica e da forma política
11
,
incumbindo-se de “derivar a forma do direito e a forma estreitamente
relacionada do estado da natureza da produção capitalista de mercadorias”
(HOLLOWAY; PICCIOTO, 1978, p. 18).
No pensamento de Poulantzas, o fenômeno jurídico não é
compreendido a partir de uma especificidade que lhe é própria, mas como uma
instância pertencente tanto a região econômica como a região ideológica
diretamente associada à estrutura jurídico-política, como sua materialização.
Além disso, identifica-se inclusive uma certa indistinção entre o estado e a
ordem jurídica (JESSOP, 1985, p. 74) que coincide com a normatividade
estatal que, na medida do desenvolvimento de sua teoria política, passam a
serem tratados como instância ou superestrutura jurídico-política.
Em parte, a identificação imediata do direito com a norma deve-se ao
fato de que Poulantzas, ao se concentrar na região do político, analisa o direito
11
Fato reconhecido por Holloway e Picciotto (1978, p. 18), que inauguraram o debate da
derivação na Inglaterra, e utilizado como um filósofo chave para a colocação do problema da
forma política (cf. PACHUKANIS, 2017, p. 143; HIRSCH, 1978, p. 58; BLANKE; JÜRGENS;
KASTENDIEK, 1978, p. 121).
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da forma como ele aparece: como a própria norma jurídica produzida pelo
estado
12
, de sorte que suas análises sobre o direito após colocada a nível da
estrutura em Poder político em classes sociais passam a se concentrar
somente no momento normativo do fenômeno jurídico, evidenciando seu
conteúdo de classe. Dessa maneira, constrói-se uma teoria do direito que,
apesar de incorporar os interesses “das diversas classes sociais, não conta
de explicar a própria regulamentação jurídica como tal, ou seja, não é capaz de
explicar por que determinado interesse de classe é tutelado precisamente sob
a forma do direito” (NAVES, 2008, pp. 45-6).
A compreensão do direito em Poulantzas, no entanto, não se revela
imutável ao longo de suas obras. Nas obras iniciais de sua trajetória intelectual
é demonstrada uma aproximação da compreensão estrutural do fenômeno
jurídico, com o apontamento do núcleo de determinação central da forma
jurídica, qual seja, as relações de troca que produzem os sujeitos de direito,
ainda que sob a égide da normatividade estatal, conforme a passagem a seguir
apontada:
Os homens concretos, determinados pelo universo jurídico (estado
e sociedade civil) em sua reificação social, são considerados
entidades numéricas abstratas /.../. A liberdade e a igualdade desses
homens, ambas entidades fantasmas, são abstratas e formais, pois
constituem valores simplesmente postulados como necessários para
a estruturação de normas que regulam a propriedade privada
moderna (absoluta, isto é, liberdade e igualdade), o valor de troca de
um trabalho totalmente quantificado (igualdade), circulação
universalizada e reprodução ampliada de bens (liberdade e
igualdade). (POULANTZAS, 1973, p. 23)
Na última fase de seu pensamento, contudo, essa aproximação é
gradativamente abandonada assumindo um caráter cada vez mais normativo,
alegando que “o direito capitalista é específico no que forma um sistema
axiomatizado, composto de conjunto de normas abstratas, gerais, formais e
estritamente regulamentadas” (POULANTZAS, 1980, p. 97) a ponto de não
fazer distinção entre lei e direito voltando-se proeminentemente a atenção
em o estado, o poder, o socialismo para a função exercida pela norma na
organização pública da violência e dominação de classe, não obstante ter
anteriormente criticado a abordagem juspositivista do direito, afirmando que
12
Engels e Kautsky denunciavam que as bases reais do fenômeno jurídico deveriam ser
encontradas nas próprias relações econômicas, e não nos comandos normativos estatais.
“Visto que o desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social isto é,
por meio da concessão de incentivos e créditos engendra complicadas relações contratuais
recíprocas e exige regras universalmente válidas, que só poderiam ser estabelecidas pela
comunidade normas jurídicas estabelecidas pelo estado , imaginou-se que tais normas não
proviessem dos fatos econômicos, mas dos decretos formais do estado” (ENGELS; KAUTSKY,
2012, pp. 18-9).
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o mesmo deve ser analisado a partir de “esquemas reais ao invés de modelos
normativos” (POULANTZAS, 1973, p. 30).
Mas, apesar dos diversos contornos que assumem as proposições de
Poulantzas sobre o direito, pretende-se aqui refutar criticamente as
considerações elaboradas pelo pensador naquilo que de comum, qual seja,
o fato do direito ser caracterizado como parte da região política tanto em seu
caráter normativo como em seu caráter ideológico devido a função de classe
que exerce ao promover a coesão da unidade de uma formação social cujo
modo de produção dominante é o capitalista.
Assim, conforme já apresentado, a dimensão jurídica do político é
analisada por Poulantzas em duas esferas que se fundamentam
reciprocamente com base na função de classe que as caracterizam, ou seja, a
função de servirem como fator de coesão ao desmobilizar a luta econômica de
classes e refletir no estado a unidade da atomização dos sujeitos da produção,
transformando a luta de classes em luta necessariamente política, garantindo
a reprodução das relações de exploração capitalistas com a regulamentação
tanto das relações de troca como do exercício e organização do poder do
estado. Nesse sentido, afirma Poulantzas:
Por um lado, o sistema jurídico consagra as relações de propriedade
e de troca e assegura a reprodução das condições de produção,
segundo modalidades que lhe são próprias. Por outro lado, assume
um papel diretamente político: desempenha um papel direto na luta
política de classes. (1972b, pp. 110-1)
A primeira delas, portanto, é a análise do direito como a própria
ideologia jurídico-política dominante do modo de produção capitalista, cuja
característica central é produzir a separação do estado e da sociedade civil com
a transformação dos agentes da produção em sujeitos econômicos livres e
iguais, produzindo um efeito de isolamento no seio da sociedade civil com a
função de garantir a coesão da unidade complexa do todo social ao
desmobilizar a luta econômica de classes (POULANTZAS, 1977, p. 126), na
medida em que esta passa a aparecer como o terreno da concorrência entre
sujeitos representando seus interesses particulares, e não como a própria
exploração de uma classe sobre a outra.
A segunda dimensão do direito, por sua vez, está relacionada à base
material dessa ideologia, do efeito de isolamento na superestrutura jurídico-
política que produz formalmente, através das normas jurídicas, não apenas os
indivíduos-sujeitos econômicos garantindo, desse modo, “o contrato de
trabalho /.../ a propriedade privada capitalista /.../ a generalização das trocas,
a concorrências etc.” (POULANTZAS, 1977, p. 208); como também sua
representação na esfera política, com a produção dos cidadãos livres e iguais,
autorreferenciando-se como a unidade dessa fragmentação (POULANTZAS,
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1977, pp. 129-30) enquanto único horizonte possível de realização do interesse
supraindividual.
O estado, para Poulantzas, através do papel exercido pelo direito na luta
econômica de classes e, ao mesmo tempo, na luta política de classes, produz
seu próprio fundamento ao garantir, através desse processo, sua própria
autonomia relativa real e sua realização como poder de classe.
O resultado disso é que o jurídico se torna tanto o traço distintivo do
estado capitalista, como também a função que o caracteriza; de modo que
Poulantzas não consegue oferecer nem uma teoria do político com uma
determinação central, como também não apresenta uma teoria jurídica capaz
de explicar o motivo pelo qual: a) a ideologia jurídica corresponde à
transformação dos agentes da produção em sujeitos abstratos de direitos e; b)
tanto o conteúdo básico das normas jurídicas que assume a forma da norma
abstrata e geral quanto a organização das instituições estatais são aquelas
presididas pela liberdade e igualdade dos sujeitos.
De modo geral, verifica-se em Poulantzas uma falta de clareza quanto a
definição atribuída ao direito, que ora é tratado como uma característica da
região do nível ideológico (MOTTA, 2010, p. 383), ora é abordado como uma
região do político em termos de aparelho institucional sem, no entanto,
explicar por que o jurídico manifesta-se apenas nessas duas “regiões”; bem
como o que, exatamente, existe nas relações de produção em, segundo
Poulantzas, sua determinação em última instância que faz com que os
indivíduos no capitalismo sejam constituídos em suas relações sociais como
sujeitos de direito livres e iguais.
Embora sustente que é no processo de separação dos agentes diretos da
produção de seus meios produtivos a base real da aparente individualização
dos sujeitos na medida em que são abstraídos de seus “laços naturais” de
produção (POULANTZAS, 1977, p. 122), isso ainda não explica como o
sujeito econômico livre e igual e seu desdobramento em sujeito-cidadão
político é engendrado, dado que na esfera da produção a qual Poulantzas se
refere, não há algo como a autonomia da vontade e a equalização dos sujeitos
que apenas pode ser estabelecida de forma relacional, ou seja, em uma relação
social entre sujeitos. Isso o leva a afirmar que:
de fato, os agentes de produção não aparecem como indivíduos a
não ser nessas relações superestruturais que são as relações
jurídicas. É destas relações jurídicas, e não das relações da produção
em sentido estrito, que decorrem o contrato de trabalho e a
propriedade formal dos meios de produção (POULANTZAS, 1977, p.
124).
Além disso, a própria identificação imediata entre direito e a norma
jurídica padece de um detalhe fundamental: é certo que Poulantzas identifica
ser na atribuição aos agentes da produção “independentemente do lugar /.../
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que ocupam no processo de produção, a condição de sujeitos individuais de
direitos, fixando-os todos como indivíduos ‘livres’ e ‘iguais’” (SAES, 1998, p.
49) a qual denominará de efeito de isolamento uma caracterização central
ao fenômeno jurídico; entretanto, isso não o impede de inverter a ordem das
relações e afirmar que a relação jurídica é engendrada pela norma.
Mas se o traço fundamental do direito, mesmo para Poulantzas
13
, é a
manutenção desse sujeito-indivíduo tanto nas relações econômicas entre
proprietários como nas relações políticas entre cidadãos e o estado então
não estaria nesse sujeito, e não nas normas jurídicas, a chave para a
compreensão da especificidade do fenômeno jurídico?
É esta a tarefa a que se propõe Pachukanis em sua obra teoria geral do
direito e marxismo. Ao proceder a uma análise da forma jurídica partindo da
identificação da relação social específica que é sua expressão na forma mais
simples, derivando-a das categorias econômicas que determinam o modo de
produção capitalista, é possível compreender o fenômeno jurídico a partir de
uma especificidade que lhe é própria em sua articulação com todas as esferas
da vida social não condicionada à sua existência normativa, como parte do
político. Pelo contrário, é partindo da categoria elementar da forma jurídica
que é possível compreender a norma jurídica como um de seus momentos
14
,
na relação intrínseca que se estabelece a posteriori com a própria forma
política.
O sujeito de direito, portanto, “é o átomo da teoria jurídica, o elemento
mais simples e indivisível, que não pode mais ser decomposto”
(PACHUKANIS, p. 2017, p. 117) que, ao contrário do indivíduo produzido na
esfera da produção que Poulantzas apresenta, não se refere a um sujeito
considerado isoladamente, mas uma categoria que corresponde a uma
relação social qual seja, a relação jurídica que se estabelece no momento da
troca mercantil; na medida em que é na relação social que o sujeito adquire
13
Armando Boito Jr. sustenta uma influência de Pachukanis no pensamento de Poulantzas a
respeito do tratamento do direito em Poder político e classes sociais: “Na década de 1960,
Nicos Poulantzas /.../ retomou a análise de Pashukanis e chegou a uma caracterização
inovadora da estrutura do estado capitalista /.../. Foi esse tipo de análise que Poulantzas
explorou, destacando que o direito formalmente igualitário e as instituições de estado
aparentemente universalistas produzem efeitos ideológicos muito importantes. A igualdade
formal produz um efeito de isolamento, que oculta dos agentes sociais o seu pertencimento de
classe e os induz a se pensarem como indivíduos atomizados e singulares. (BOITO Jr., 2007,
pp. 26-7)
14
A abordagem que se faz aqui ao tratar da norma jurídica como momento da forma jurídica é
diferente da análise de Pazello sobre a questão que trabalha a categoria do sujeito de direito
e da norma jurídica em termos de momento essencial/aparente (PAZELLO, 2015, pp. 137-8).
Aqui, a conexão entre relação jurídica e norma jurídica é analisada do ponto de vista da
dialética sistemática (cf. ARTHUR, 2016, pp. 80-1), de sorte que a categoria da norma jurídica
inclui em si a realização dos momentos fundamentais da forma jurídica (PACHUKANIS,
2017, p. 64).
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suas determinações centrais da igualdade e da liberdade e que, portanto,
independe da chancela formal do estado.
Mas, afinal, por que é no momento da troca mercantil, e não na esfera
em que se a exploração direta do trabalhador no processo produtivo, a
origem da forma jurídica? Ou, ainda, por que o direito assume a forma do
sujeito livre e igual? A resposta encontra-se na derivação da forma jurídica da
forma elementar da sociabilidade capitalista: a mercadoria (PACHUKANIS,
2017, p. 119), que institui uma forma completamente nova de dominação
social, um processo objetivo de dominação não direta com a exploração da
força de trabalho livre, assalariada.
Marx, nO capital, ao apresentar a mercadoria como a forma elementar
da sociabilidade capitalista, afirma que a sua dimensão social isto é, sua
constituição enquanto uma forma de relação social é justamente aquela que
permite um processo no qual a universalidade concreta das mercadorias
diferentes qualitativamente umas das outras seja abstraída, dando lugar a
uma universalidade abstrata, de modo que a sua qualidade passa a ser sua
própria quantidade, caracterizada a partir de uma substância social que lhes é
comum, a de serem produtos do trabalho humano indiferenciado a de serem,
portanto, valores (MARX, 2017, p 117).
Enquanto forma de relação social, a mercadoria apenas adquire suas
determinações quando contraposta a outra mercadoria, isto é, no processo da
troca. Entretanto, não são as mercadorias que agem, mas os sujeitos, seus
proprietários, que passam a atuar como as próprias mercadorias e
relacionarem-se uns com os outros como seus reflexos subjetivados. Portanto:
Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias,
seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como
pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de modo tal que um
pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria
mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por
meio de um ato de vontade comum a ambos. Têm, portanto, de se
reconhecer mutuamente como proprietários privados. (MARX,
2017, p. 159)
É nesse mesmo ato de constituição da mercadoria em sua dimensão
social que dá origem, portanto, à própria forma do sujeito de direito com suas
determinações centrais: da igualdade, “pois eles se relacionam um com o outro
apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por
equivalente” (MARX, 2017, p. 251), da liberdade, “pois os compradores e
vendedores de uma mercadoria, por exemplo, são movidos apenas por seu
livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos
direitos” (MARX, 2017, p, 250).
Do mesmo modo que um produto, em sua particularidade concreta, na
forma da mercadoria transforma-se em mero suporte material do valor,
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também o sujeito concreto pertencente a uma classe, uma raça, uma cultura
etc. na complexidade de suas relações sociais, é abstraído de suas qualidades
específicas e transforma-se em mero suporte do homem abstrato, livre e igual
o sujeito de direito. Nesse sentido,
um produto apenas aparece na forma de mercadoria apenas como
um simples invólucro do valor, e os aspectos concretos do trabalho
humano diluem-se no trabalho humano abstrato como criador de
valor do mesmo modo que a diversidade concreta de relações do
homem com as coisas surge como uma vontade abstrata do
proprietário e todas as particularidades concretas que diferenciam
um representante da espécie de homo sapiens de outra diluem-se na
abstração do homem em geral como sujeito de direito
(PACHUKANIS, 2017, p. 121).
O processo de generalização das trocas mercantis com a passagem da
etapa de manufatura para a da maquinaria e grande indústria consolida
definitivamente as relações capitalistas. Assim, altera-se substancialmente o
processo de trabalho, de modo que não apenas os agentes da produção são
expropriados de suas condições objetivas de trabalho, mas também das
condições subjetivas (NAVES, 2014, p. 85).
A consequência disso é que esse processo de subsunção real do trabalho
ao capital (MARX, 2017, p. 578) não apenas consolida a forma mercadoria
como abstração tornando-a um processo objetivo que passa a se reproduzir
independentemente da vontade consciente dos sujeitos como também a
“capacidade de ser um sujeito de direito finalmente se destaca da
personalidade concreta viva, deixa de ser uma função de sua vontade
consciente ativa e se torna pura propriedade social” (PACHUKANIS, 2017, p.
122).
O direito, assim, adquire um caráter indispensável na medida em que
“todo homem torna-se um homem em geral /.../ todo indivíduo torna-se um
sujeito de direito abstrato” (PACHUKANIS, 2017, p. 127) que, apesar de em
sua forma mais simples corresponder à própria relação jurídica da troca
mercantil, não se esgota nessas relações, mas, assim como as demais categorias
como a forma mercadoria e a forma política , perpassa pela totalidade das
relações sociais.
Desse modo, explica-se o substrato histórico real a partir do qual é
possível compreender a própria formação da ideologia dominante do modo de
produção capitalista a que Poulantzas se refere. Ainda que o “efeito de
isolamento” produzido seja proveniente de um processo real de abstração dos
sujeitos e que não foi produzida pelo estado com o intuito de isolar os agentes
da produção de suas relações reais de classe, e sim trata-se de um processo
objetivo de constituição dos sujeitos em decorrência da própria dinâmica das
relações capitalistas no processo de valorização do capital.
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Além disso, é possível identificar a relação existente entre o sujeito de
direito e a forma dele derivada do sujeito político; dado que o estado assume a
forma de um poder público, abstrato e impessoal, de modo que a extensão da
subjetividade jurídica no político produz o cidadão livre e igual (MASCARO,
2013, p. 85), capaz de exercer os atos da vida política.
Do mesmo modo em resposta ao segundo questionamento cuja
resposta Poulantzas não foi capaz de oferecer é possível compreender o
motivo pelo qual a norma jurídica assume a forma da lei abstrata e impessoal,
uma vez que decorre da própria forma do sujeito de direito e que não pode, por
ter mais determinações, ser analisada tão somente como um
desmembramento do jurídico. Trata-se, na verdade, de um processo de
“conformação ou, do mesmo modo, uma consubstanciação ou uma derivação
secundária recíproca –” (MASCARO, 2013, p. 34) entre forma jurídica e forma
política.
Justamente devido a especificidade da forma política, que se materializa
mais expressamente no aparelho de estado situado fora das leis do mercado,
deve como mediação necessária de sua atuação aparecer não como uma
coerção direta de classe, mas como coerção de uma pessoa abstrata e
impessoal, como um sujeito representando a vontade geral impessoal. Deve
aparecer, portanto, “como o poder do próprio direito, ou seja, como o poder de
uma norma objetiva e imparcial” (PACHUKANIS, 2017, p. 146).
Partindo das contribuições de Pachukanis, oferece-se elementos que
tornam possível a análise do direito a partir de categorias jurídicas próprias,
apontando-se para uma compreensão do direito mais rico em determinações
do que a fornecida por Poulantzas, a despeito de suas críticas endereçadas a
Pachukanis
15
, e cujas implicações em última análise são indispensáveis
para se pensar a superação da forma jurídica. “Ora, do mesmo modo que a
extinção, na fase de transição, das categorias econômicas /.../ não implica a
constituição de novas categorias ‘proletáriasdo valor, do capital etc.”, não
o que se falar em “novas categorias jurídicas ‘proletárias’ ou ‘socialistas’”
(NAVES, 2008, p. 89).
Além disso, colocar em evidência a determinação burguesa do direito
não significa anular as conquistas da classe trabalhadora, uma vez que apesar
15
Em Hegemonia y dominación en el estado moderno, Poulantzas classifica o pensamento de
Pachukanis como economicista, criticando-o por reduzir o nível jurídico a instância econômica
(POULANTZAS, 1973, p. 136). Pontua-se, no entanto, que embora Pachukanis “seja acusado
de economicista por derivar o direito das relações de produção /.../. Não vê, Poulantzas, que
embora o conteúdo da legislação e das instituições estatais possam variar conforme a dinâmica
das classes, não escapam, todavia, aos limites estruturais do nível político do modo de
produção capitalista, limites que ele próprio identifica quando analisa o estado a estrutura
de igualdade que nivela, individualiza e isola os agentes e que corresponde ao despojamento
dos produtores diretos face aos meios de produção e às relações de dependência pessoal”
(BARISON, 2014, p. 427).
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Thais Hoshika
428
de ser possível derivar logicamente a forma jurídica da lógica do capital, o
resultado da luta de classes não é. Trata-se, portanto, não de sustentar um
fatalismo ou reformismo para a conquista de direitos, mas de colocar em
evidência que, não obstante o cumprimento das tarefas e necessidades
imediatas, o horizonte da luta deve ser além dos estritos horizontes do direito
burguês. Nesse sentido, Pachukanis deixa claro o ponto de partida da análise
do direito, e os limites intrínsecos impostos pelo direito a luta de classes:
Não posso concordar que meu trabalho contenha qualquer falta de
entendimento no sentido de concessão ao economicismo ou
distorção fatalista do ensino marxista sobre o desenvolvimento
social. Eu estava levantando dois pontos. Em primeiro lugar, eu
alertei contra confundir as possibilidades reais de poder do estado e
os resultados realmente alcançados por ele, com o que está contido
nas leis emitidas pelo estado /.../. Além disso, afirmei que a divisão
social do trabalho e, consequentemente, a aparência de sujeitos
econômicos como participantes dessa troca, são fatos que não estão
ligados em sua origem aos imperativos do estado /.../. No entanto,
esses fatos contêm os pré-requisitos básicos e principais da relação
jurídica. (PASHUKANIS, 1980, p. 198)
Conclusão
Com isso, delineia-se um quadro geral de compreensão das
proposições centrais do pensamento de Poulantzas sobre o estado e o direito
naquilo que corresponde a suas caracterizações mais gerais, deixando de fora,
contudo, uma análise detalhada de suas contribuições ímpares para análise
dos contornos que o estado capitalista assume nas diversas formações sociais
como fração de classe, bloco no poder, hegemonia etc. Além disso, o fato de
se propor, na presente investigação, a questionar as bases teóricas a partir das
quais Poulantzas desenvolve sua teoria regional de modo algum significa o
abandono das categorias políticas desenvolvidas para a análise de conjuntura.
Estas correspondem a instrumentos teóricos fundamentais, enquanto
termos médios conectando a teoria particular do estado no modo de
produção capitalista à dinâmica concreta de uma formação social específica
que permitem pensar a dinâmica da luta política de classes no seio dos
aparelhos institucionais do estado, enquanto ponto de condensação imediata
das contradições proveniente do choque dos interesses imediatos das classes e
suas frações.
Buscou-se, portanto, no presente artigo, através da crítica à teoria
jurídico-política de Poulantzas, apontar para horizontes teóricos do estado e
do direito que a nosso ver superam as limitações decorrentes do não
estabelecimento de uma relação precisa entre o político e o econômico , cujo
potencial se revela pela capacidade de compreender os limites da ação estatal
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Thais Hoshika
429
(sobretudo no gerenciamento das crises estruturais do capitalismo), até que
ponto o processo de acumulação do capital engendra transformações nas
condições de produção e as estruturas políticas correspondentes; bem como os
limites impostos pela forma jurídica às conquistas da classe trabalhadora e o
caminho para se pensar a superação da forma jurídica.
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Como citar:
HOSHIKA, Thais. Crítica marxista do estado e do direito: Nicos Poulantzas em
debate. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das
Ostras, v. 26, n. 2, pp. 403-31, jul./dez. 2020.
Data do envio: 2 jul. 2020
Data do aceite: 8 set. 2020
DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.588
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
432
Capitalismo periférico: do desenvolvimento atrofiado à
reiteração das desigualdades globais
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
1
Resumo: Após a II Guerra Mundial, parte importante do eixo industrial dos
países centrais deslocou-se do Ocidente para o Japão, Tigres asiáticos e, mais
recentemente, China. Nesse período, países como Argentina, México, Brasil e
África do Sul também passaram por forte industrialização. Porém, eles nunca
foram centrais como o Japão e nem experimentaram as condições excepcionais
que permitiram aos Tigres asiáticos ascenderem a essa posição. Igualmente,
também não se tornaram, como a China, um misto de atraso e modernidade
permeado por muitas indústrias de alta tecnologia e pesquisa de ponta. Por
meio da apresentação e análise de algumas informações econômicas e sociais
obtidas em bancos de dados de organismos internacionais, objetiva-se
demonstrar como a imensa maioria dos países de industrialização hipertardia
continua ocupando posições desfavoráveis na divisão mundial do trabalho, na
hierarquia de poder dos estados e reproduzindo enorme desigualdade interna
entre seus cidadãos. Nesse sentido, por subvalorizar as lutas de classes
nacionais e a força econômica inibidora que é a concorrência das empresas dos
países centrais, considera-se que, cultivando expectativas de desenvolvimento
sem rupturas revolucionárias, as ideias reformistas precisam ser
definitivamente enterradas.
Palavras-chave: capitalismo; sistema-mundo; países centrais; países
periféricos; China.
Peripheral capitalism: from stunted development to the
reiteration of global inequalities
Abstract: After the II World War, an important part of the industrial axis of
the central countries moved from the West to Japan, Asian Tigers and, more
recently, China. During this period, countries like Argentina, Mexico, Brazil
and South Africa also underwent strong industrialization. However, they were
1
Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor da
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Autor de John Stuart Mill: apontamentos críticos
às relações entre propriedade, liberdade e poder político (Charleston, USA: CreateSpace, 2014)
e co-organizador de Cem anos da Revolução de Outubro (1917-2017): balanços e perspectivas
(Londrina: Eduel, 2020). E-mail: ronaldogaspar@uel.br.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
432
never as central as Japan, nor did they experience the exceptional conditions
that allowed Asian Tigers to rise to that position. Nor have they, like China,
become a mixture of backwardness and modernity permeated by many high-
tech and cutting-edge research industries. Through the presentation and
analysis of some economic and social information obtained from databases of
international organizations, the objective is to demonstrate how most
countries with hyper late industrialization continue to occupy unfavorable
positions in the world division of labor, in the hierarchy of power of the States
and reproducing enormous internal inequality among its citizens. In this
sense, by underestimating the struggles of national classes and the inhibiting
economic force that is the competition of companies from central countries, it
is considered that, cultivating expectations of development without
revolutionary ruptures, reformist ideas must be definitively buried.
Keywords: capitalism; world-system; central countries; peripheral
countries; China.
Capitalismo periférico: del desarrollo atrofiado a la
reiteración de las desigualdades globales
Resumen: Después de la II Guerra Mundial, una parte importante del eje
industrial de los países centrales se trasladó de Occidente a Japón, Tigres
asiáticos y, más recientemente, China. Durante este período, países como
Argentina, México, Brasil y Sudáfrica también experimentaron una fuerte
industrialización. Sin embargo, nunca fueron tan centrales como Japón, ni
experimentaron las condiciones excepcionales que permitieron a los Tigres
asiáticos llegar a esa posición. Tampoco, como China, se han convertido en una
mezcla de atraso y modernidad permeada por muchas industrias de
investigación de alta tecnología y de vanguardia. A través de la presentación y
análisis de alguna información económica y social obtenida en bases de datos
de organismos internacionales, el objetivo es demostrar cómo la gran mayoría
de países con industrialización muy tardía continúan ocupando posiciones
desfavorables en la división mundial del trabajo, en la jerarquía de poder de
los estados. y reproducir una enorme desigualdad interna entre sus
ciudadanos. En este sentido, al subestimar las luchas de clases nacionales y la
fuerza económica inhibidora que es la competencia de las empresas en los
países centrales, se considera que, cultivando expectativas de desarrollo sin
rupturas revolucionarias, las ideas reformistas deben ser definitivamente
enterradas.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
433
Palabras clave: capitalismo; sistema-mundo; países centrales; países
periféricos; China.
Introdução
Nas décadas imediatamente subsequentes à II Guerra Mundial, em
meio à guerra fria e à descolonização da África e da Ásia, a industrialização de
alguns países periféricos (na linguagem da época, atrasados) surpreendeu e
criou expectativas em relação à diminuição da distância econômica e social
ante os países centrais
2
(industrializados). Inspirados nas experiências de
intervenção estatal ocorridas na Alemanha, Japão, Estados Unidos e na União
Soviética, e influenciados pelas elaborações teóricas keynesianas, muitos
intelectuais se dedicaram a analisar os motivos pelos quais a maioria dos países
se mantinha em condição de atraso. O próprio objeto de análise, porém, os
impulsionava a se afastarem de uma visão meramente contemplativa dos
problemas; por isso, a maioria tinha por objetivo contribuir para que os países
periféricos iniciassem ou intensificassem a sua industrialização e superassem
os seus mais graves problemas econômicos e sociais
3
. Entre os estadunidenses,
a busca pela compreensão da nova realidade também visava a orientar ações
de modo a consolidar a recém-conquistada posição do país como potência
hegemônica do mundo capitalista
4
e modelo para as outras nações (ROSTOW,
1964).
Como lembra Immanuel Wallerstein, “em 1945, o mundo mudou de
maneira decisiva, e como resultado de tal configuração as ciências sociais se
viram submetidas a importantes desafios” (WALLERSTEIN, 2005, p. 23).
Sendo que, naquele momento, o desenvolvimento passou a ser o novo assunto
centralizador do trabalho intelectual (2002, p. 123). Para Arndt, importante
historiador da ideia de desenvolvimento, este era entendido basicamente como
“sinônimo de crescimento da renda per capita nos países menos
desenvolvidos” (ARNDT, 1981, p. 485). Mesmo um marxista como Paul Baran
2
Centro e periferia são “nomes que na verdade refletem a estrutura geográfica dos fluxos
econômicos” (WALLERSTEIN, 2001, p. 30).
3
Dentre os muitos intelectuais da época, o engajamento científico e político do brasileiro Celso
Furtado foi certamente um caso exemplar: “a análise dos processos econômico-sociais não tem
outro objetivo senão produzir um guia para a ação. Em verdade, essa mesma análise aponta
para a ação” (FURTADO, 1962, p. 16).
4
Segundo Immanuel Wallerstein (2015, p. 24), “o estado ‘mais desenvolvido’ podia ser
oferecido como modelo para os estados ‘menos desenvolvidos’, exortando-os a iniciarem um
certo tipo de ação mimética que prometesse encontrar uma melhor qualidade de vida e uma
estrutura governamental mais liberal (‘desenvolvimento político’) ao final do arco-íris. Isso era
obviamente uma ferramenta intelectual útil para os Estados Unidos, e seu governo e suas
instituições fizeram todo o possível para incentivar a expansão dos estudos de área em grandes
(e até pequenas) universidades”.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
434
(1986, p. 132) assim o definia: “o que caracteriza todo país subdesenvolvido, o
que na realidade responde pela sua classificação como subdesenvolvido, é a
exiguidade de seu produto social per capita”. Mas, com abordagens e matizes
variadas, o termo desdobrou-se em novas dimensões social, política,
ambiental, cultural etc. (MOREIRA, CRESPO, 2012). Surgiram campos de
conhecimento próprios no interior de ciências sociais, como a economia do
desenvolvimento (AGARWALA, SINGH, 2010; BRANDÃO, 2018) e a
sociologia do desenvolvimento (FERREIRA, 1993). Contudo, apesar das
especificidades e ênfases, a industrialização era (e, em geral, ainda é) vista
como cerne do desenvolvimento e “um imperativo no processo de catch up
dos países periféricos em relação aos centrais (NAYYAR, 2013, p. 98).
Por décadas, sob governos mais à direita ou mais à esquerda, de feições
mais autocráticas ou democráticas, muitos países periféricos se urbanizaram e
desenvolveram alguma produção industrial. Em certos aspectos, alguns países
“atrasados” se “modernizaram”. Poucos, porém, construíram um parque
industrial com elevado grau de complexidade, conjugando indústrias de bens
de consumo não-duráveis, duráveis e até mesmo de bens de capital. Embora
em novas condições, a divisão axial do trabalho numa economia-mundo
capitalista [continuou a dividir] a produção em produtos centrais e produtos
periféricos” (WALLERSTEIN, 2005, p. 43). Dentre os periféricos que
alcançaram uma industrialização mais complexa estão Argentina, Brasil,
México, Índia, África do Sul e poucos outros. Segundo Wallerstein,
o que todos os países não-centrais membros das Nações Unidas da
URSS à Argentina, da Índia à Nigéria, da Albânia a Santa Lúcia
tinham em comum era o objetivo público geral de aumentar a
riqueza da nação e modernizar a sua infraestrutura. Também era
compartilhado o otimismo subjacente a esse objetivo. A isto se
somava a ideia de que seria mais fácil atingir o objetivo com a plena
participação no sistema internacional (2002, p. 122).
Para a economista Alice Amsden (2009, p. 29), “a ascensão do ‘resto’ foi
uma das mudanças fenomenais da segunda metade do século XX”. E ela tem
razão. Mas, qual o saldo econômico e político dessa ascensão/modernização
para a resolução dos problemas estruturais desses países? Diminuiu a
diferença da renda per capita ou eliminou a dependência tecnológica e
financeira em relação aos países centrais (governos, empresas e bancos)? Suas
estruturas econômicas se tornaram mais homogêneas? Foram criadas
condições socioeconômicas compatíveis com sociedades menos desiguais e
mais democráticas? E mais, é racional manter a expectativa de superação
desses problemas sob o domínio do capital? Essas são algumas questões que
permitem avaliar os resultados dessas últimas décadas e refletir sobre o
desenvolvimento econômico e social dos países periféricos.
Com base em algumas reflexões de Wallerstein (2001; 2002; 2005),
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
435
Arrighi (1997; 2013) e Amin (2006) sobre a articulação entre os estados
nacionais e o sistema-mundo, de Duménil e Levy (2014) sobre a crise
estrutural do capital e de István Mészáros (2002) também sobre este tema e a
necessidade de superação do capital (e não apenas do capitalismo), objetiva-
se investigar alguns dados sobre a evolução e a atual situação econômica e
social de diversos países, procurando avaliar se a industrialização tem efetuado
(NAYYAR, 2013) ou não (REINERT, 2016) a redução do gap dos países
periféricos ante os países centrais
5
e, de algum modo, contribuído para a
construção de regimes políticos mais democráticos. Para essa avaliação, serão
analisados livros, artigos, jornais e bancos de dados de instituições
multinacionais e governamentais. Não se trata de uma reflexão sobre as ideias
e políticas econômicas (com acertos e erros de governos) efetivadas em cada
país ao longo do período, mas de investigar num olhar de médio prazo e num
contexto de condicionamentos econômicos globais alguns aspectos do saldo
econômico e político daquele período decisivo (e esperançoso) de efetivação e
consolidação da indústria em alguns países periféricos.
Capitalismo global: uma “economia-mundo” dividida e desigual
uma vasta literatura que questiona as análises de desenvolvimento
econômico assentadas na priorização das características étnico-raciais,
5
Como veremos, a linha básica das diferenças entre os grupos de países está relacionada ao
modo de integração ao mercado mundial e, portanto, ao capitalismo , bem como ao
desenvolvimento industrial. Obviamente, toda classificação implica em escolhas assentadas
em certas características dos objetos classificados. Sendo assim, utilizando como referência
(mas não reproduzindo literalmente) a classificação utilizada por Wallerstein (2001; 2002;
2005) e Arrighi (1997; 2013), consideram-se centrais os países que primeiro se
industrializaram e/ou passaram por profundas transformações econômicas e políticas que os
alçaram a veis elevados de renda per capita, certo bem-estar de suas populações (acesso a
bens de consumo, educação, saúde etc.) e, em geral, direitos civis e políticos consolidados
(Estados Unidos, Canadá, Europa Central e do Norte, Japão e Oceania). Por países
semiperiféricos, entende-se aqueles que não foram colônias, mas chegaram a meados do
século XX com industrialização ainda frágil, renda per capita bem abaixo dos países centrais
(Europa do Sul) e/ou passaram por revoluções ou guerras (civis ou não) que levaram a
transformações profundas em sua configuração social e política (Europa do Leste e Rússia).
Por periféricos, os países não industrializados ou de industrialização hipertardia, baixa renda
per capita, regimes políticos de feições fortemente autocráticas ou, quando existem,
democracias frágeis (de modo geral, países que foram colônias ou sofreram processos de
colonização/espoliação econômica: África, América Latina e Ásia excetuando Japão, Tigres
asiáticos e China). Quanto aos Tigres asiáticos, são países de industrialização hipertardia, mas
que, por motivos históricos excepcionais (ARRIGHI, 2013), alcançaram renda per capita e
condições gerais de vida (acesso a bens de consumo, saúde, educação, complexidade
tecnológica etc.) muito próximas ou iguais às dos países centrais. Por fim, há o caso da China,
que, embora tenha sido economicamente espoliada por mais de um século, nunca foi
propriamente uma colônia e, além disso, passou por uma revolução social e transformações
dela decorrentes que criaram uma potência econômica global com características simultâneas
dos diversos grupos de países.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
436
geográficas, culturais ou institucionais. E, embora o institucionalismo ainda
seja muito presente no pensamento político e econômico (como demonstra o
imerecido sucesso de Por que as nações fracassam, de Daron Acemoglu e
James Robinson, 2012), as análises mais consistentes sobre o desenvolvimento
consideram que os traços essenciais dos países do mundo contemporâneo
remontam às suas relações capitalistas originárias, estabelecidas no período
mercantilista e vigorosamente consolidadas com a industrialização. Isso não
significa negar a relevância das particularidades sejam elas econômicas,
políticas ou culturais que atuam na conformação de países e regiões, mas
considerar que as suas diferentes histórias de desenvolvimento estão
prioritariamente relacionadas ao modo de constituição e integração ao
capitalismo especialmente a articulação de interesses (e conflitos) entre as
classes dominantes centrais e as periféricas e suas consequências. Por isso,
não é casual que, com raras exceções, a despeito da grande variedade de
situações específicas de cada país (população, território, recursos naturais,
perfil das atividades econômicas e, claro, dinâmica da luta de classes), a
polarização originária entre, de um lado, os colonizadores (dos ingleses aos
japoneses) e suas colônias de povoamento (dos Estados Unidos e Canadá à
Austrália e Nova Zelândia) e, de outro, as colônias de exploração (América
Latina, África e Ásia excetuando Rússia) corresponda em larga medida à
atual divisão centro-periferia, países desenvolvidos e em desenvolvimento
6
.
Outrossim, com a Revolução Industrial e a industrialização pioneira
(Inglaterra, França, Bélgica, Países Baixos, Estados Unidos) ou tardia
(Alemanha, Itália, Japão) dos atuais países centrais, essa polarização tornou-
se muito mais tenaz e facilmente identificável pela divisão do trabalho
(existente sob a vigência das manufaturas, e que foi amplamente reforçada)
entre industrializados e atrasados (exportadores de matérias-primas agrícolas
e minerais). Portanto, com modos e ritmos distintos de desenvolvimento
capitalista, configurou-se um mundo marcado pelo desenvolvimento desigual
e combinado (LÖWY, 1998; NOVACK, 1998).
Ocorre que, a partir dos anos 1930, por caminhos muito diversos (por
exemplo, URSS e Brasil), alguns países “atrasados” passaram por um rápido
desenvolvimento industrial e trouxeram novos desafios práticos e teóricos,
como demonstra a explosão da literatura sobre desenvolvimento e
dependência nas décadas de 1950-60.
Num recente estudo sobre as “sociedades em desenvolvimento”, no qual
avaliza a ideia de que a industrialização tem contribuído para o catch up dos
países periféricos em relação aos países centrais, o economista indiano Deepak
6
Inclusive, essa compreensão antecede marxistas e cepalinos. Num artigo recente, Monastério
e Ehrl (2019) apresentaram uma sintética e competente explanação da evolução dessa tese da
colonização como condicionante do tipo de evolução da sociedade, que, segundo eles, remonta
a Adam Smith e a pensadores alemães e franceses.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
437
Nayyar (2013, p. 50) sustenta que 1950 talvez tenha sido um importante
momento da viradana corrida pela industrialização e pelo desenvolvimento,
com significativas implicações geopolíticas. E, de fato, alguns países periféricos
tiveram um importante incremento de seus parques industriais nesta década e
nas posteriores. Inclusive, por um bom tempo, o Brasil foi “o caso mais típico
de subdesenvolvimento industrializado” (PEREIRA, 1986, p. 63). Nele, a
segunda metade da década de 1950 efetivamente demarcou a transição do
período de substituição de importações para a constituição de uma economia
industrializada com forte presença de empresas estatais e multinacionais, “o
Brasil transformara-se em um país industrializado, ainda que permanecesse
notoriamente subdesenvolvido” (FURTADO, 1975, p. 33)
7
. E mais, “depois do
extraordinário surto industrial ocorrido nele, as oposições e as dúvidas de
caráter fundamentalmente ideológico quanto às possibilidades de
industrialização do Brasil desapareceram. A crença na vocação agrícola do
Brasil perdeu qualquer substância” (PEREIRA, 1976, p. 53). A industrialização
avançou e, como proporção da composição das atividades econômicas, o ápice
da indústria brasileira ocorreu em 1985, quando correspondeu a 48% do PIB
(IBGE).
No entanto, se realmente houve um importante crescimento da
produção industrial de alguns países periféricos, deve-se frisar também que,
em 1970, a produção dos países centrais ainda correspondia a 72,6% do total
mundial.
PIB
Nas décadas seguintes, como se pode observar no Gráfico 1, algumas
mudanças significativas realmente ocorreram. Dentre elas, chamam muito a
atenção: 1) o forte declínio proporcional da produção industrial dos países
centrais de 72,6% para 40,2% e dos países semiperiféricos (sul e leste da
Europa e Rússia) de 14,3% para 7,1%; 2) o baixo crescimento da produção
dos países periféricos, de 14,3% para 20,5%; 3) e a forte presença da produção
industrial chinesa no século XXI, cujos dados disponíveis demostram
corresponder a 28,6% da produção mundial em 2018. Hoje, a produção
industrial chinesa é maior do que a soma da produção industrial dos países
periféricos e semiperiféricos.
7
Não cabe aqui indicar um ou outro livro, pois vasta literatura sobre o tema, com especial
relevo as obras de Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, Maria da Conceição Tavares e
Francisco de Oliveira.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
438
Fonte: United Nations Statistics Division. 2020. Elaboração própria
Junto com a produção industrial, a participação dos países no PIB
mundial também sofreu forte modificação no referido período. Há, porém,
algumas diferenças. No Gráfico 2, também se observa o declínio proporcional
do PIB dos países centrais, mas relativamente menor do que o industrial,
passando de 68,1% para 50,1%. No caso dos países semiperiféricos, os números
do PIB total foram muito próximos daqueles do PIB industrial
respectivamente, de 13,6% para 8,2%. Os números dos Tigres asiáticos foram
idênticos aos do Gráfico 1, de 0,4% para 3,7%.
Com números um pouco diferentes, a trajetória dos países periféricos
também repetiu a pequena ascensão industrial, de 14,3% para 20,5%. Se, como
o faz Deepak Nayyar (2013), incluirmos a China entre eles, o crescimento
realmente se demonstra bastante significativo. Dentre as 10 maiores
economias em 2018, 3 não eram dos países centrais (China (2º), Índia (5º) e
Brasil (9º)). Em 1970, apenas o Brasil (10º) estava entre elas. Porém, se
motivos que justificam a inclusão da China como um país periférico, há outros
tantos que não; e o principal deles é: a China é um país de proporções
continentais e gigantesca população que passou por uma revolução social, os
outros não. Isso trouxe enormes consequências para todas as dimensões da
vida naquele país. Daí que a inclusão da China como mais um país entre os
40,2%
7,1%
20,5%
28,6%
3,7%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
1970
1972
1974
1976
1978
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
2010
2012
2014
2016
2018
Gráfico 1. Participação dos países na produção mundial da
indústria (%) - 1970-2018
Países centrais Países semiperiféricos Países periféricos
China Tigres asiáticos
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
439
periféricos distorce os dados e os fatos. Por maiores que sejam as economias
de Brasil e Índia, ambas possuem características próprias dos países
periféricos (na classificação de Arrighi (1997), o Brasil é um país
semiperiférico). Este não é caso da China, cuja excepcional trajetória resultou
num país que conforma um híbrido de centrais e periféricos não encontrado
em nenhum outro lugar. Por isso, não é o catch up dos periféricos e nem a
“ascensão do resto” o fato fenomenal das últimas décadas, mas o enorme
crescimento da economia chinesa, que passou de 1,3% para 16,3% do PIB
mundial em 50 anos (Gráfico 2). Isso a tornou, na atualidade, a segunda
potência econômica e política global, capaz de rivalizar com em alguns casos,
superar os Estados Unidos e outros países centrais. Como salientou Perry
Anderson (2018, s. p.): pela primeira vez em sua história o Reino do Meio se
tornou uma verdadeira potência mundial, estendendo sua presença a todos os
continentes.
Fonte: United Nations Statistics Division. 2020. Elaboração própria
muitas controvérsias sobre a natureza da formação social chinesa e
os motivos de sua ascensão (JABBOUR, 2010; ANDERSON, 2013; CHAOHUA,
50,1%
8,2%
22,6%
38,9%
16,3%
2,8%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
1970
1972
1974
1976
1978
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
2010
2012
2014
2016
2018
Gráfico 2. Participação dos países no PIB mundial (%) - 1970-
2018
Países centrais Países semiperiféricos
Países periféricos (sem a China) Países periféricos (com a China)
China Tigres asiáticos
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
440
2013; KROEBER, 2016). Mas, a despeito delas, fato é que a China alterou
abruptamente a sua participação no PIB global. E se mudanças significativas
(positivas ou negativas) nessa participação não implicam em alterações
imediatas no equilíbrio geopolítico (basta pensar na falta de correlação entre
economia e poderio bélico, em sentidos opostos, da Alemanha e da Rússia na
atualidade
8
), elas podem, pela alteração na capacidade produtiva e no
potencial de investimento dos estados em forças militares, incentivar
tentativas de recomposição dos poderes e interesses econômicos regionais ou
globais.
Os estados situam-se numa hierarquia de poder que não pode ser
medida nem pelo tamanho e a coerência das suas burocracias e
exércitos nem por suas formulações ideológicas sobre si mesmos,
mas sim por sua capacidade efetiva, ao longo do tempo, de promover
a concentração do capital acumulado dentro das suas fronteiras, em
comparação com a capacidade dos estados rivais /.../ No médio
prazo, o que mede realmente a força dos estados é o resultado
econômico. (WALLERSTEIN, 2001, pp. 48-9)
No caso da China, o fortalecimento econômico tem sido acompanhado
(não no mesmo ritmo) do aumento do seu poderio bélico e, tendo alcançado o
posto de terceira maior potência militar
9
, do movimento de reestruturação da
ordem geopolítica internacional.
Por outro lado, a hierarquia de poderes dos estados não é simétrica à
hierarquia das condições de vida de suas respectivas populações. Com histórias
e rendas per capitas muito diversas, essas características podem estar na razão
inversa uma em relação à outra: economias pequenas com elevadas renda per
capita e boas condições (materiais e educacionais) de vida para a imensa
maioria da população (caso extremo da Islândia) e grandes com rendas per
capitas baixíssimas e precárias condições de vida para a maioria (por exemplo,
Índia).
Num mundo integrado e com referências econômicas (produção e
consumo) e culturais globais (ideias, modos de vida), esses
desencontros/descompassos podem intensificar competições e conflitos
internos (entre as classes) e entre os estados
10
. Portanto, a ascensão de
8
Respectivamente, e 1 PIB (World Bank), mas e 13ª maior capacidade bélica
(GlobalFirepower GFP. In: https://www.globalfirepower.com/countries-listing.asp).
9
GlobalFirepower GFP.
10
Para os cepalinos, com ênfase especial na obra de Celso Furtado, o consumo supérfluo ou
conspícuo por parte das classes dominantes e da alta classe média, especialmente por aquelas
frações beneficiárias das atividades integradas (e subordinadas) ao mercado mundial,
constitui um importante componente da manutenção do “subdesenvolvimento”. Isso porque,
baseando-se nos padrões de consumo (tipos, marcas e preços de produtos) das classes
congêneres dos países “desenvolvidos”, as dos países periféricos desviam para o exterior
recursos que poderiam ser utilizados para a acumulação de capital (novas instalações e o
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
441
economias periféricas grandes (China, Brasil, Índia, México, Indonésia) e
novos estados com elevada capacidade militar (China, Índia) constitui um
aspecto importante das mudanças econômicas e políticas ocorridas nas
últimas décadas.
Outro aspecto relevante que afeta de modo desigual os países (índices
de crescimento, posições em escala global) é a vulnerabilidade aos movimentos
cíclicos da economia. Em outras palavras, todos os países passam por períodos
de crescimento e crise e, ainda que desigualmente, o afetados pelo
movimento mais amplo da economia mundial. Como vimos, excetuando os
países semiperiféricos, os outros grupos e a China tiveram crescimento do PIB
maiores do que os países centrais nessas décadas. Porém, em razão de sua
posição nas relações econômicas e de poder mundial, os países semiperiféricos
e periféricos são mais reativos do que condicionantes das crises globais e estão
mais sujeitos às flutuações externas e suas consequências isto é, os efeitos
internos delas tendem a ser mais drásticos do que os sofridos pelos países
centrais.
No Gráfico 3, observemos as taxas de crescimento do PIB dos grupos de
países. Nele, impressiona quão sustentados são o crescimento chinês e, apesar
da crise asiática de 1997, o dos Tigres asiáticos, o declínio dos países
semiperiféricos nos anos 1990 e a forte correlação entre o movimento cíclico
das economias dos países centrais e periféricos até final dos anos 1980 e, da
economia mundial, até fim da década seguinte. Igualmente, é visível como na
década de 1990 excetuando os semiperiféricos, com índices fortemente
impactados pela ruína da URSS e dos ditos regimes socialistas ou pós-
capitalistas
11
, mas sobretudo a partir dos anos 2000, o crescimento médio
das economias dos outros grupos de países e da economia mundial colocou-se
acima da média dos países centrais. Esse crescimento foi claramente
impulsionado pela economia chinesa. De caudatária dos países centrais
incremento tecnológico) das empresas instaladas no país. Tal fato não apenas expressa como
reforça a concentração de renda, agravando os empecilhos à industrialização desses países
(FURTADO, 1974; 1975).
11
Na economia política tradicional, seja (neo)liberal ou keynesiana, o capital é tratado como
coisa. Mesmo um intelectual considerado progressista como Piketty (2014, p. 51) afirma que
em seu livro “capital é definido como o conjunto de ativos não humanos que podem ser
adquiridos, vendidos e comprados em algum mercado”. Em contraposição, na esteira de Marx,
Mészáros define capital como uma relação social. Em suas palavras: o capital “é, em última
análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico(MÉSZÁROS, 2002, p. 96
itálicos do autor). Uma relação sociometabólica que implica numa estrutura de comando que
sujeita os produtores a uma lógica implacável de autovalorização, cujas personas que a
representam podem ser tanto “capitalistas privados” quanto, nas sociedades pós-capitalistas,
“funcionários públicos do estado de tipo soviético” (MÉSZÁROS, 2002, p. 98). Portanto, o
capital preexiste ao capitalismo e pode sobreviver à sua destruição. Isso significa que, em
sentido socialista, uma transformação social radical não demanda apenas a superação do
capitalismo, mas a superação do capital como modo de controle sociometabólico. Obviamente,
algo ainda nunca realizado.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
442
situação dos países periféricos , a China tornou-se o polo mais dinâmico da
economia mundial.
Fonte: United Nations Statistics Division. 2020. Elaboração própria
No entanto, tratar das contradições do desenvolvimento do capital e sua
concretização desigual implica não ficarmos presos somente aos grandes
números do PIB, pois estes são muito influenciados, por exemplo, por fatores
demográficos. Inclusive, no período em questão (1970-2018), a distribuição da
população mundial entre os países passou por significativas mudanças. Na
Tabela 1, vemos declínio populacional nos grupos dos países centrais,
semiperiféricos, Tigres asiáticos e China. Acréscimo proporcional de
população ocorreu apenas no grupo dos países periféricos.
-6%
-4%
-2%
0%
2%
4%
6%
8%
10%
12%
14%
16%
Gráfico 3. Taxa de crescimento do PIB - 1971-2017
Países centrais Países semiperiféricos
Países periféricos China
Linear (Países centrais) Linear (Países semiperiféricos)
Linear (Países periféricos) Linear (China)
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
443
Tabela 1 População por grupos de países
1970
2018
Países centrais
609.122.625
16,5%
833.060.638
10,9%
Países semiperiféricos
403.640.119
10,9%
446.427.832
5,9%
Países periféricos
1.821.709.826
49,2%
4.859.022.213
63,7%
China
827.601.394
22,4%
1.427.647.786
18,7%
Tigres asiáticos
38.363.082
1,0%
64.932.571
0,9%
Fonte: United Nations Statistics Division. 2020. Elaboração própria
Quando relacionados aos PIB totais, esses números fornecem dados
relevantes para analisarmos com mais cuidado não apenas a grande distância
que separa os países centrais dos periféricos que, há tempos tem sido
analisada e denunciada , mas também os resultados dos esforços em prol do
desenvolvimento feitos nesses últimos, os quais, ao longo do tempo, tiveram
governos e políticas econômicas de matizes distintas no espectro político.
Renda per capita
Na Tabela 2, os dados demonstram o crescimento da renda per capita
dos grupos de países ao longo de quase meio século. Como vemos, apesar da
industrialização e do aumento do PIB proporcional dos países periféricos no
PIB mundial, o percentual da renda per capita teve ligeira queda em relação
àquela dos países centrais, passou de 8,1% para 7,7% em outras palavras, a
população dos países periféricos se tornou proporcionalmente mais pobre do
que a dos países centrais. Novamente, com imensa diferença em relação aos
outros países, os destaques ficaram com a China, que teve um crescimento de
3.252% ao longo de período, e os Tigres asiáticos, com 1.159%. Com esse
crescimento absoluto, as respectivas rendas per capita proporcionais à média
dos países centrais passaram de 1,3% para 19% e de 14% para 73%. Portanto,
mesmo com esse crescimento vertiginoso, a renda per capita dos chineses não
chega a 1/5 daquela dos países centrais. O que nos faz pensar sobre as
consequências ambientais e, por conseguinte, econômicas e sociais se a
renda per capita dos chineses e, com isso, o consumo chegar ao nível dos
países centrais, cuja população total corresponde a 58,4% da população da
China. E, mais do que isso, sobre a própria viabilidade de um modo de
produção e organização da vida social cuja acumulação incessante de capital e
a proliferação de consumo supérfluo e destrutivo com o simultâneo não
atendimento das necessidades básicas de muitos são suas características
estruturais e inelimináveis (MÉSZÁROS, 2002, pp. 605-74).
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
444
Tabela 2 Renda per capita por grupos de países
1.970
1.980
1.990
1.995
2.000
2.010
2.018
Cresc.
Países centrais
20.193
25.762
32.988
35.309
40.298
44.018
49.262
144%
Países
semiperiféricos
6.092
8.736
10.414
9.490
10.935
13.681
14.958
146%
Países periféricos
1.626
2.165
2.196
2.345
2.550
3.299
3.802
134%
China
280
423
873
1.477
2.147
5.509
9.369
3.252%
Tigres asiáticos
2.844
5.723
11.747
16.090
19.368
29.182
35.820
1.159%
Fonte: United Nations Statistics Division. 2020. Elaboração própria
Importa salientar que a renda per capita pode obscurecer aspectos
importantes para o entendimento dos poderes de compra distintos das
populações dos países e, igualmente, grandes diferenças internas entre as
classes sociais, populações regionais, grupos profissionais etc. Mas, como
esclarece Arrighi (1997, p. 221, n. 5), essa informação também nos permite
uma medida de comparação sobre o comando econômico “exercido pelos
residentes de uma dada jurisdição sobre os recursos possuídos pelos residentes
de todas as outras jurisdições, em relação ao comando exercido pelos últimos
sobre os recursos possuídos pelos primeiros”, além de fornecer um importante
instrumento de comparação de cada país a longo prazo
12
. E, além disso, essa
comparação é feita em dólares constantes e não em Paridade de Poder de
Compra (PPC) porque, como salienta Nayyar,
não é apropriado ou correto, mesmo que esteja na moda, somar o
PIB em termos de PPC nos países, para estimar o PIB mundial em
termos de PPC, porque essas estimativas são baseadas em um ajuste
ascendente artificial no preço de bens e serviços não
comercializáveis nos países em desenvolvimento. Isso leva a um viés
ascendente nas estimativas do PIB PPC para os países em
desenvolvimento, as quais não são comparáveis com outras
variáveis macroeconômicas, como comércio exterior, investimentos
internacionais ou produção industrial, avaliados a preços de
mercado e taxas de câmbio de mercado (2013, p. 56).
De qualquer modo, para não incorrer em equívocos, o crescimento
proporcional da renda per capita não pode ser utilizado como dado isolado,
mas precisa ser analisado com um olhar sobre outros indicadores econômicos
e sociais. Por exemplo, a renda per capita dos Tigres asiáticos tem uma
correlação com as condições de vida e os direitos civis e político das suas
populações muito diferente daquela dos chamados “estados petroleiros”
13
.
12
Na análise da desigualdade mundial, Piketty (2014, pp. 69-72) explica os motivos de sua
preferência pelos dados em formato PPC, mas ressalva que “isso em nada afeta as ordens de
grandeza” (2014, p. 72).
13
De acordo com dados do site World Inequality Database, em 2016, os 10% mais ricos da
população da Arábia Saudita ficaram com 62,18% da renda nacional. No Oriente Médio, o
percentual foi de 58,26%, enquanto na Coreia do Sul foi de 43,32%.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
445
Complexidade econômica
Sobre outro aspecto importante nas distinções entre os países e nas
possibilidades de superação das condições que caracterizam os países
periféricos, afirma-se que a industrialização e o crescimento absoluto e
proporcional do PIB podem resultar em (ou serem impulsionados pelo)
aumento da complexidade econômica. No século passado, muito se chamou a
atenção para o fato de que os países periféricos que se industrializaram não
conseguiram o domínio sobre a produção de bens de capital (sendo muito
dependentes da importação de máquinas e equipamentos) e, com raras
exceções, nem sobre as tecnologias de ponta da produção industrial. E, de fato,
excetuando a China e os Tigres asiáticos, a tendência geral das últimas décadas
tem sido a manutenção das diferenças de complexidade das estruturas
econômicas entre os países centrais e periféricos, as quais se expressam nos
distintos níveis de investimentos em pesquisa e desenvolvimento técnico-
científico e, portanto, no domínio tecnológico pelas empresas e governos
dos respectivos grupos de países, bem como no perfil das trocas comerciais e
do fluxo de investimentos.
Um modo bastante eficiente de analisar a complexidade das estruturas
econômicas foi desenvolvido pelos pesquisadores César Hidalgo (MIT) e
Ricardo Hausmann (Harvard). Segundo a explicação do principal entusiasta
brasileiro do uso da complexidade como ferramenta de análise econômica,
Paulo Gala (2017, p. 20), os dois conceitos sicos utilizados para aferir se um
país é complexo economicamente são a ubiquidade e a diversidade de produtos
encontrados em sua pauta exportadora
14
. Produtos ubíquos e pauta
exportadora pouco diversificada significam economia pouco complexa.
Produtos não ubíquos e pauta exportadora diversificada significam economia
de alta complexidade. Correlacionados com o tamanho da população e da
economia, esses dados fazem com que a complexidade seja tratada como índice
relativo, permitindo a comparação entre uma grande economia como a indiana
(4lugar) ou a brasileira (47º) e a pequena economia finlandesa (12º). Por
conseguinte, o ranking de complexidade das estruturas produtivas dos países
organizado pelo Observatório da complexidade econômica
15
reflete, em linhas
gerais, a classificação aqui adotada, com predomínio dos países centrais e dos
14
Embora problemático por incorrer num voluntarismo apologista das virtudes da
gestão/intervenção política corretiva e orientadora da economia capitalista, subvalorizando
assim os condicionantes estruturais da economia sobre a política, diferenças e conexões
estruturais entre países centrais e periféricos e a relevância da luta de classes por
conseguinte, naturalizando a sociedade capitalista , o livro de Paulo Gala (2017) é
interessante por explicar, em linguagem bastante acessível, o que é a complexidade econômica
e seus modos de aferição, bem como frisar com diversos exemplos a correlação entre
complexidade econômica e renda per capita.
15
Fonte: <https://oec.world/en/rankings/eci/hs4/hs12>.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
446
Tigres asiáticos nas primeiras posições, alguns pequenos semiperiféricos entre
as 20 economias mais complexas e os periféricos (em número muito maior)
ocupando as posições intermediárias e inferiores da tabela. Dentre as maiores
economias, destacam-se o Japão (1º), a Alemanha (4º), a Coreia do Sul (5º), o
Reino Unido (11º), os Estados Unidos (14º) e a China (21º).
Pesquisa e desenvolvimento científico-tecnológico
Para o capital, a complexidade econômica é relevante porque indica que
o investimento em P&D tem resultado em desenvolvimento científico-
tecnológico e, assim, com novos (ou inovações em) serviços, bens de consumo
ou meios de produção, ele possibilita às empresas inovadoras (ou, no caso de
terceiras, das beneficiárias imediatas de uma inovação na estrutura produtiva),
a conquista (novos produtos) ou ampliação (melhoria, barateamento) da
participação no mercado, o aumento da produtividade do trabalho e, por
conseguinte, o incremento da mais-valia e do lucro. Inclusive, não custa
lembrar que o lucro (e o aumento da taxa de lucro) “é a força motriz que impele
a produção capitalista”. E, ademais, como “o preço das mercadorias é
determinado por seu valor de mercado, as empresas que têm alto nível de
tecnologia e produtividade do trabalho encontram-se forçosamente numa
posição favorável. Recebem lucro adicional, ou superlucro(NIKITIN, 1967,
p. 111 grifos do autor). Essa posição torna-se ainda mais favorável para os
oligopólios e monopólios. Em ambos os casos excetuando o monopólio
assentado em condições alheias ao mercado (políticas, geográficas) , o
domínio da tecnologia mais avançada tem enorme importância.
Componente fundamental da complexidade econômica, o domínio
técnico-científico demanda elevados investimentos em pesquisa e
desenvolvimento (P&D). E, quanto a isso, dois aspectos chamam bastante a
atenção. Primeiro, a enorme distância dos investimentos em P&D entre as
empresas sediadas nos respectivos grupos de países. Segundo, a forte
correlação entre elevado percentual de investimento privado em P&D nos
países centrais e, inversamente, baixo nos países periféricos. De acordo com
estudo da Comissão Europeia, as 2.500 maiores empresas classificadas de
acordo com os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) têm sede
em 44 países. Em 2018, cada uma investiu mais de 30 milhões em P&D para
um total de € 823,4 bilhões, o que equivale a aproximadamente 90% da P&D
financiada por empresas [e não governos] no mundo (HERNÁNDEZ et al.,
2019). Dentre elas, 1709 estão sediadas nos países centrais, 507 na China, 165
nos Tigres asiáticos, 71 nos países semiperiféricos, 48 nos periféricos (Tabela
3). Na América Latina, o país representado com o maior número de empresas
é o Brasil, com seis e investimento total de 1,01 bilhão. Não bastasse essa
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
447
enorme discrepância, também chama a atenção o fato de que em apenas 10
países os investimentos das empresas sediadas ultrapassam € 10 bilhões.
Tabela 3 2500 maiores empresas em investimentos em P&D (grupos de
países) 2018
Nº de empresas
%
Países centrais
1709
68,4%
Países semiperiféricos
71
2,8%
Países periféricos
48
1,9%
Brasil
6
0,2%
China
507
20,3%
Tigres asiáticos
165
6,6%
Total
2500
100%
Fonte: HERNÁNDEZ et al., 2019. Elaboração própria
Com algumas exceções, dentre elas os casos do Brasil (7º) e da ssia
(8º) países que têm populações e PIB grandes , os investimentos
governamentais em P&D reproduzem a situação dos investimentos das
empresas privadas sediadas nos respectivos países, com ampla liderança dos
Estados Unidos, China, Japão e outros países centrais (especialmente
europeus), bem como da Coreia do Sul. Na Tabela 4, tomando como referência
o número de sedes das maiores empresas investidoras em P&D, temos os
seguintes valores absolutos dos 44 maiores investimentos governamentais.
Nela, destacam-se os elevados valores absolutos dos países mais bem
colocados em relação ao restante, especialmente os dois primeiros, e a maior
presença proporcional de países semiperiféricos e periféricos no conjunto. Isso
demonstra que, tal como nas implicações políticas do descompasso entre o PIB
total e o per capita, o tamanho da economia também influencia na capacidade
de investimento estatal em P&D, eis porque países que não sediam
nenhuma empresa dentre as 2.500 maiores em investimento e estejam entre
os 44 maiores investidores estatais. São esses os casos da Argélia, Chile,
Colômbia, Egito, Eslováquia, Indonésia, Paquistão, República Tcheca,
Romênia, Tailândia e Vietnã.
Tabela 4. Os 44 maiores investimentos estatais em P&D (em mil US$ PPP, preços
constantes de 2005) 2017
1
Estados
Unidos
102.559.859
16
Turquia
4.777.697
31
Finlândia
1.483.552
2
China
80.062.692
17
Países Baixos
4.466.527
32
Israel
1.382.828
3
Índia
32.719.367
18
México
4.425.422
33
Portugal
1.346.068
4
Alemanha
26.828.439
19
Polônia
3.323.628
34
Hong Kong
1.345.329
5
Japão
21.107.572
20
Suíça
3.291.562
35
Paquistão
1.289.819
6
Coreia do
Sul
17.236.210
21
Suécia
3.287.891
36
Tailândia
1.228.203
7
Brasil
16.559.041
22
Cingapura
3.191.219
37
Grécia
974.271
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
448
8
Rússia
16.326.745
23
Argentina
2.924.455
38
Hungria
859.910
9
França
15.613.013
24
Áustria
2.861.125
39
Vietnã
745.269
10
Reino
Unido
10.159.954
25
Argélia
2.585.022
40
Nova
Zelândia
679.519
11
Canadá
7.773.487
26
Noruega
2.545.381
41
Ucrânia
593.170
12
Itália
7.608.275
27
África do Sul
2.410.380
42
Romênia
553.206
13
Espanha
6.306.437
28
Bélgica
2.197.642
43
Chile
516.460
14
Egito
5.842.014
29
Rep. Tcheca
1.818.498
44
Eslováquia
426.288
15
Indonésia
5.159.240
30
Dinamarca
1.730.633
Fonte: UNESCO. Institute for Statistics (UIS). Elaboração própria
Por sua vez, ao analisar o investimento governamental como proporção
do investimento total, vemos que, numa lista de 85 países aqueles cujos
dados estavam consolidados em 2017 , os primeiros 31 fazem parte dos
grupos de países periféricos ou semiperiféricos. No Gráfico 4, vemos o
Tadjiquistão com 100% do investimento em P&D feito pelo governo. Porém,
quinze países cujo investimento governamental ultrapassa os 75%. De um
lado, isso demonstra como o baixo nível de acumulação de capital das
empresas desestimula o investimento em P&D, tornando-as dependentes da
tecnologia (ou apêndices) das empresas de outros países e incapazes de
disputar mercados em âmbito global, limitando a possibilidade de obtenção de
lucro adicional e a sua expansão. De outro, em razão dessa situação, como o
investimento estatal em P&D é fundamental para o desenvolvimento
científico-tecnológico (ainda que muito limitado) das empresas nos países
periféricos
16
. Quanto aos países centrais, o primeiro da lista é a Noruega (32º),
com 47%. Os investimentos estatais de Estados Unidos e China, os dois
maiores orçamentos absolutos para P&D, correspondem a 23,1% e 19,8% dos
gastos totais das pesquisas realizadas nos respectivos países.
16
No Brasil, este é o caso da relação entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Embrapa e a expansão do agronegócio nas últimas décadas.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
449
Fonte: UNESCO. Institute for Statistics (UIS). Elaboração própria
Outrossim, embora seja condição necessária, o investimento em P&D
não é condição suficiente para a superação do atraso e da dependência
científico-tecnológica, seja porque a raiz do problema é de natureza social e
não propriamente tecnológica ou, ainda, pelo motivo mais prosaico de que
ciência não se faz apenas com investimento nos meios materiais, mas também
em força de trabalho altamente qualificada, em pesquisadores. Sobre este
aspecto, outra informação relevante para a compreensão desta situação de
dependência dos países periféricos é a quantidade de pesquisadores por
milhão de habitantes. Em primeiro lugar nesse quesito, a Dinamarca possui
quase 12 vezes mais pesquisadores por milhão de habitantes do que o Brasil
(55º): 7.925 x 686. Enquanto isso, na 44ª posição em números relativos, o
primeiro lugar da China em números absolutos (4.381.443) expressa tanto o
tamanho de sua imensa população quanto o esforço recente de formação da
força de trabalho. Como em outros aspectos, a vantagem quantitativa aqui se
transmuta em vantagem qualitativa.
100
98,6
93,8
93,6
93,1
91,4
89,5
85,3
82,3
78,7
77,4
77,4
76,8
75,8
75,0
73,4
72,6
67,2
66,2
66,0
49,7
46,7
41,2
23,1
19,8
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
Tajiquistão
Iraque
Egito
Burkina Faso
Argélia
Armênia
Quirguistão
Mongólia
Indonésia
Maurícia
Myanmar
Paraguai
México
Moldávia
Trinidad e Tobago
Etiópia
Argentina
Azerbaijão
Rússia
Cuba
Brasil
Noruega
Bósnia e Herzegovina
EUA
China
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 29 32 44 76 80
Gráfico 4. Investimentos governamentais em P&D 2017
(% do investimento total realizado no país)
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
450
Fonte: UNESCO. Institute for Statistics (UIS). Elaboração própria
Para o capital, esses investimentos só fazem sentido se tiverem retorno
financeiro. Um dos modos de mensurar os resultados econômicos dos
investimentos em P&D (governamental e privado) e força de trabalho é por
meio da comparação referente à quantidade de patentes registradas em cada
país. Sobre isso, vemos que a concentração dos registros de patentes por
origem do proprietário (Tabela 5) reproduz amplamente o padrão da origem
dos investimentos em P&D. Talvez, a mais significativa exceção seja a inversão
de posições entre Estados Unidos e China quando comparados os resultados
em patentes com os respectivos investimentos totais, pois o país asiático passa
da segunda para uma distante primeira posição.
Tabela 5. Total de patentes por residência (país) do proprietário
do registro
País
1980
% total
País
2018
% total
1
Japão
165.766
31,3%
China
1.460.244
42,9%
2
União Soviética
164.852
31,1%
Estados Unidos
515.180
15,1%
3
Estados Unidos
62.561
11,8%
Japão
460.369
13,5%
4
Alemanha
28.973
5,5%
Coreia do Sul
232.020
6,8%
5
Reino Unido
19.713
3,7%
Alemanha
180.086
5,3%
6
França
11.181
2,1%
França
69.120
2,0%
7
Checoslováquia
7.606
1,4%
Reino Unido
56.216
1,6%
8
Rep. Democrática Ale
6.599
1,2%
Suíça
46.659
1,4%
9
Austrália
6.593
1,2%
Países Baixos
36.539
1,1%
7.925
7.498
7.383
6.803
6.722
6.350
6.131
5.530
5.450
5.401
5.388
5.304
5.077
4.960
4.887
4.730
4.561
4.479
4.412
4.368
1.475
1.225
1.192
691
686
494
0
1.000
2.000
3.000
4.000
5.000
6.000
7.000
8.000
Dinamarca
Coreia do Sul
Suécia
Cingapura
Finlândia
Noruega
Islândia
Nova Zelândia
Suíça
Irlanda
Áustria
Japão
Alemanha
Luxemburgo
Países Baixos
Bélgica
França
Eslovênia
EUA
Portugal
Irã
China
Argentina
Uruguai
Brasil (2010)
Chile
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 40 44 46 54 55 63
Gráfico 5. Pesquisadores por milhão de habitantes 2017
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
451
10
Itália
6.484
1,2%
Itália
32.286
0,9%
11
Polônia
6.199
1,2%
Rússia
30.696
0,9%
12
Suíça
4.164
0,8%
Índia
30.036
0,9%
13
Suécia
4.123
0,8%
Suécia
25.310
0,7%
14
Bulgária
3.303
0,6%
Canadá
24.483
0,7%
15
África do Sul
3.102
0,6%
Israel
15.482
0,5%
16
Romênia
2.569
0,5%
Bélgica
14.587
0,4%
17
Áustria
2.345
0,4%
Áustria
14.561
0,4%
18
Brasil
2.150
0,4%
Dinamarca
13.385
0,4%
19
Espanha
1.890
0,4%
Austrália
12.261
0,4%
20
Países Baixos
1.879
0,4%
Irã
12.074
0,4%
Subtotal
512.052
96,5%
Subtotal
3.281.594
96,3%
Outros países
18.350
3,5%
Outros países
126.165
3,7%
Total
530.402
100%
Total
3.407.759
100%
Fonte: WIPO Statistics database. Elaboração própria
Cabe também destacar a perda de fôlego do Japão, que havia
ultrapassado os Estados Unidos na década de 1970 (perda resultante da
generalização do toyotismo/acumulação flexível, que subtraiu o diferencial de
produtividade das empresas japonesas ante as dos outros países, e da pressão
dos Estados Unidos para mudanças na política cambial), e o ocaso dos países
do ex-bloco socialista com a conversão ao capitalismo (mais próximos dos
países periféricos do que dos centrais). Em 1980, enquanto o Japão ocupava a
dianteira, seis países do bloco socialista respondiam por 39% das patentes
registradas (por residência do proprietário) no mundo; mas, em 2018,
contando apenas com a Rússia entre os 20 primeiros, esse número caiu para
ínfimo 0,9%. Quanto aos países periféricos, em 1980, com 1% do total, apenas
Brasil e África do Sul; em 2018, com 1,3%, Índia e Irã. Enfim, aqui observa-se
uma presença chinesa ainda mais espetacular do que nos investimentos e a
manutenção da baixíssima participação dos países periféricos.
Esses e outros dados demonstram que, mesmo que Mészáros tivesse
motivos para suspeitar daqueles que, nos anos 1980, em razão do avanço
econômico dos países europeus e principalmente do Japão, anunciavam o
declínio dos Estados Unidos como potência hegemônica (MÉSZÁROS, 2002,
pp. 1.087-9), a situação atual é diferente, pois, de fato, a China tornou-se uma
ameaça real à hegemonia estadunidense
17
. É verdade que o gigante asiático
ainda possui uma estrutura econômica marcada por muitas desigualdades no
17
E mais, a China tornou-se o centro da região mais dinâmica do capitalismo global: o leste
asiático. Um fenômeno cujas origens remontam à ascensão japonesa nas décadas posteriores
à II Guerra Mundial. Como diz Arrghi (2013, p. 345), “a arrancada do grande salto à frente
japonês antecedeu e liderou a arrancada regional”. Por sua vez, em conjunto com os Tigres
asiáticos e, last but not least, a China, “no que concerne à expansão material da economia
mundial capitalista, o capitalismo do leste asiático passou a ocupar [nos anos 1990] uma
posição de liderança” (ARRIGHI, 2013, p. 351 grifo do autor).
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
452
ritmo e alcance do desenvolvimento, com alguns setores/regiões atrasadas e,
outro/as, onde o avanço é muito rápido, rivalizando ou mesmo ultrapassando
os Estados Unidos. Um exemplo dessa desigualdade é que os quase 200% a
mais no registro de patentes nos últimos anos ainda não se manifesta nos
valores recebidos pelo uso de propriedade intelectual pelas suas empresas. Isso
porque, pelo caráter fortemente mimético de sua industrialização que, como
visto, resultou no maior parque industrial do mundo , as inovações de maior
valor comercial ainda pertencem aos países centrais especialmente aos
Estados Unidos
18
, o que expressa também a poderosa hegemonia cultural
deste país (ver Tabela 6). Embora seja claro que, pela velocidade das
transformações que ocorrem na China, nada impede que o competente uso do
hard e do soft power mude essa situação nas próximas décadas (DUARTE,
2012; STUENKEL, 2019).
Tabela 6. Valores recebidos pelo uso de propriedade intelectual (US$ 2019)
1970
1980
1990
2000
2010
2019
1
Estados
Unidos
2.330,0
7.080,0
16.640,0
51.807,0
107.522,0
128.931,0
2
Japão
0,0
0,0
0,0
10.227,4
26.680,3
46.853,1
3
Países Baixos
99,7
418,3
1.085,7
2.170,5
24.971,6
38.367,6
4
Alemanha
0,0
606,1
1.987,0
2.535,8
8.276,5
36.170,6
5
Reino Unido
340,8
1.135,1
3.055,0
6.748,8
14.202,6
25.289,4
Suíça
0,0
0,0
0,0
2.204,0
13.358,2
23.906,3
7
França
0,0
495,7
1.294,7
3.974,0
13.625,1
15.370,8
8
Irlanda
0,0
0,0
0,0
0,0
2.920,5
11.090,5
9
Cingapura
0,0
0,0
0,0
65,0
1.933,4
8.472,8
10
Suécia
15,5
89,9
563,0
1.414,4
5.813,0
8.189,3
11
Coreia do Sul
0,0
23,2
37,1
701,5
3.188,4
7.742,0
12
China
0,0
0,0
0,0
80,3
830,5
6.604,7
23
Rússia
0,0
0,0
0,0
91,3
386,2
1.013,7
25
Índia
0,0
0,0
1,3
82,5
127,4
871,6
28
Brasil
0,0
12,0
12,0
125,2
189,6
641,1
33
Argentina
0,0
4,0
4,0
36,8
152,2
270,4
41
África do Sul
4,2
16,7
18,9
49,1
114,0
108,1
64
México
0,0
21,0
73,0
43,1
8,8
7,3
Fonte: World Bank. Elaboração própria
Seja como for, os Estados Unidos ainda são a maior potência global. Por
isso, ainda que percam no número de patentes registradas, as empresas
estadunidenses possuem larga dianteira nos investimentos em P&D nos dois
setores que possuem os maiores gastos nesse quesito: farmacêutica e
biotecnologia e equipamentos de hardware. Neles, os investimentos em P&D
18
As empresas estadunidenses receberam 32,4% do valor contabilizado pelo Banco Mundial
em 2019.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
453
das empresas americanas correspondem respectivamente a 48,5% e 56,1%
19
.
Portanto, ainda é árduo (e incerto) o caminho chinês para a preponderância
econômica, política e cultural global.
Desigualdade
Nesse momento, importa salientar que a desigualdade que divide as
nações conforme o perfil do desenvolvimento capitalista, e as hierarquiza em
razão disso, também divide a população mundial claro, com situações
específicas em cada país em condições muito diversas de renda e acesso a
bens materiais e culturais, bem como quanto aos direitos civis e políticos. Sob
esses aspectos, a desigualdade também é muito significativa em alguns casos,
quase inacreditável, como é o caso de indivíduos com fortunas maiores do que
a maioria dos PIB dos países ou empresas cujo valor em Bolsa as colocariam
entre as maiores economias do mundo.
Em O capital no culo XXI, Thomas Piketty (2014, p. 26) afirma, de
modo controverso, que a desigualdade não é necessariamente um mal em si:
a questão central é decidir se ela se justifica e se razões concretas para que
ela exista”. Se entendermos razões como motivos, causas, a afirmação está
certamente correta. Porém, não motivo algum para concordar com
qualquer traço finalístico que ela contenha, qualquer espécie de justificativa,
nem mesmo “que seja ‘fundada na utilidade comum’” (PIKETTY, 2014, p. 37).
Dizer que a desigualdade não é um mal em si pode ser racional para quem
ocupa uma posição social confortável na hierarquia da distribuição de riqueza
e poder, assim como se pode avaliar (geralmente a posteriori) seus efeitos
positivos para a totalidade social o caso, por exemplo, da relação entre o ócio
proporcionado aos senhores pelo trabalho escravo e o surgimento da filosofia),
mas dificilmente o é para quem sustenta com o seu trabalho e a sua submissão
o edifício social. Por isso, algumas páginas adiante no mesmo texto, o próprio
Piketty se trai com a seguinte (e, se a circunscrevermos à relação-capital,
correta) afirmação: “a questão da repartição da produção entre a remuneração
do trabalho e a do capital sempre constituiu a principal dimensão do conflito
distributivo” (PIKETTY, 2014, p. 45). Ademais, a própria preocupação
manifesta em suas obras sobre o tema e o monumental trabalho do seu grupo
de pesquisadores visando sistematizar dados da desigualdade em muitos
países demonstram a importância dessa questão para ele e para qualquer um
que cultive alguma expectativa de justiça, paz e estabilidade social. Mas, de
qualquer modo, à luz do que foi tratado até aqui, é inevitável perguntar: será
que a industrialização de alguns países periféricos e o desenvolvimento pelo
19
Fonte: European Commission. Economics of Industrial Research and Innovation.
<https://iri.jrc.ec.europa.eu/scoreboard/2019-eu-industrial-rd-investment-scoreboard>.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
454
qual passaram diminuíram as suas marcantes as desigualdades sociais? Em
outras palavras, internamente, esses países se tornaram menos desiguais? A
concentração de renda diminuiu e/ou se aproximou das taxas prevalecentes
nos países centrais? Pois bem, a resposta para essas questões é: não.
Numa visão panorâmica sobre a distribuição da renda entre frações da
população mundial isto é, tomada como um todo indiferenciado em relação
a regiões e países , o Gráfico 4 mostra o aumento da concentração da renda
tanto no 1% (de 16,2% para 20,4%) quanto nos 10% (49% para 52,1%) mais
ricos da população. Os 50% da base tiveram um pequeno incremento da sua
renda proporcional, passando de 7,9% para 9,7% o; mas, mesmo assim, em
2016 ficaram com menos da metade da renda total apropriada pelo 1% do topo.
No entanto, os ganhos das três faixas de renda (topo e base) ocorreram às
custas dos 40% da faixa intermediária, que passaram de 26,9% para 17,8%.
Fonte: WID WORLD Database. Elaboração própria
No Gráfico 5, vê-se como os países periféricos continuam a ser os mais
desiguais. Na liderança, os países da América Latina, com o 1% mais rico da
população se apropriando de 27,9% da renda nacional. Na sequência, Oriente
Médio e Índia, com 24,3% e 21,3%. Por sua vez, os menos desiguais são os
países europeus, com média de 10,4%. Também chama a atenção o
7,9%
9,7%
49,0%
52,1%
16,2%
20,4%
26,9%
17,8%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Gráfico 4 - Distribuição da renda entre topo e base da população
mundial - 1980-2016
50% da base 10% do topo 1% do topo 40% restantes
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
455
crescimento da desigualdade na China (13,9%), Estados Unidos (20,2%) e,
com muita rapidez, na Rússia e Ucrânia, que, entre 1980 e 2015, viram a fração
da riqueza nacional do 1% passar de 3,4% para 20,2%.
Fonte: WID WORLD Database. Elaboração própria
Por essas informações, a aproximação que, em alguns casos, m
ocorrido nos níveis de desigualdade interna entre os países periféricos e os
centrais parecem dever muito mais ao crescimento da desigualdade nestes
sobretudo nos Estados Unidos do que à diminuição da desigualdade
naqueles.
10,4%
27,9%
19,1%
13,9%
21,3%
20,2%
24,3%
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
Gráfico 5 - Percentual da renda nacional apropriada pelo 1% mais
rico - 1980-2015
União Europeia América Latina Rússia e Ucrânia África
China Índia Estados Unidos Oriente Médio
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
456
Fonte: WID WORLD Database. Elaboração própria
Como o sistema do capital é inerentemente polarizado e desigual, seu
incontrolável impulso de autovalorização não o leva a se expandir por novas
localidades, regiões, de modo suave e homogeneizante. Muito pelo contrário,
o seu processo de expansão é tortuoso, violento, com uma tendência altamente
concentradora de riqueza, processos, pessoas etc. Mesmo que haja tendências
que atuam em sentido oposto, estas são temporal e espacialmente circunscritas
e não estabelecem um impedimento absoluto às tendências de concentração
(MÉSZÁROS, 2002). Nesse sentido, com suas características peculiares, o
neoliberalismo é mais um momento de intensificação das forças que atuam em
prol da concentração da riqueza isto é, da recuperação do poder e da renda
das classes capitalistas” (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 63). E não são apenas aos
marxistas que reconhecem a inevitabilidade dessas tendências concentradoras
(que, é melhor dizer, não implica na falsa tese da tendência à “pauperização
absoluta” do proletariado). Segundo Piketty (2014, p. 33), as “forças de
convergência [que diminuem as desigualdades] /.../ em alguns países e
determinados momentos /.../ podem predominar; contudo as forças de
divergência têm sempre a capacidade de se restabelecer, como parece estar
acontecendo no mundo agora, neste início do século XXI”. Nesse sentido, a
tendência concentradora de riqueza e, portanto, disseminadora da
desigualdade não é um problema secundário, circunscrito e controlável das
sociedades assentadas na relação-capital, mas uma característica inextirpável,
49,0%
54,6%
55,6%
63,7%
64,3%
82,5%
50,8%
66,4%
66,5%
54,5%
62,8%
67,2%
67,9%
88,9%
51,9%
73,9%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
China França Índia Coreia do
Sul
Federação
Russa
África do
Sul
Reino
Unido
Estados
Unidos
Percentual da riqueza líquida pessoal apropriada pelos 10% mais
ricos (países selecionados) - 2002-2012
2002 2012
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
457
que, podendo ser constrangida num certo marco temporal e espacial, tende
sempre a retornar e em níveis cada vez mais elevados.
Democracia
Dentre as expectativas de muitos daqueles que não circunscreviam o
desenvolvimento à sua dimensão econômica industrialização ou crescimento
do PIB e da renda per capita , a constituição de estados democráticos era um
dos mais importantes objetivos. Para Celso Furtado, por exemplo, a liberdade
somente poderia ser estabelecida como um componente fundamental da vida
nacional com a eliminação da pobreza, a diminuição das desigualdades sociais
e regionais e com o “acesso às formas superiores da vida pública” (FURTADO,
1962, p. 22), sem as quais as massas populares jamais poderão dar-lhe o devido
valor. Em outras palavras, tanto quanto a melhoria das condições de vida
material, uma forma de “vida mais plena” exige a consolidação da forma de
organização político-social [que] constitui o marco dentro do qual se afirmam
as manifestações superiores da vida humana” (FURTADO, 1962, p. 27), a
saber, para ele, o estado liberal democrático ou seja, a democracia burguesa.
Mas, a despeito dessas ilusões sobre a profundidade das democracias nos
países centrais e a possibilidade de desenvolvimento de regimes políticos
congêneres nos países periféricos (ilusões presentes nele e em outros autores
ditos desenvolvimentistas ou progressistas), a crise do capital e o
neoliberalismo têm significado a erosão das democracias não apenas nestes
donde são recentes e pouco consolidadas , mas também naqueles.
No caso dos periféricos, os motivos da fragilidade das democracias são
conhecidos: no contexto de manutenção ou reconfiguração da polarização e
das desigualdades econômicas globais, tem-se o aprofundamento da
dependência econômica (técnico-científica e financeira) e política, a
incompletude da reprodução do capital e as consequentes contrafaces
objetivas e subjetivas de suas respectivas classes dominantes
20
, as enormes
desigualdades econômicas internas, além da acentuada pobreza material e
educacional de amplos segmentos das massas populares. Quanto aos países
centrais, também se observa neles o enfraquecimento das conquistas
democráticas do século XX, sejam elas formais (direitos civis e políticos) ou
materiais (perda de direitos trabalhistas e sociais, desmonte dos serviços
públicos). Domenico Losurdo considera que um processo que, diga-se,
não é novo, mas recorrente de des-emancipação” dos cidadãos nas
20
Nas palavras de Chasin (1977, pp. 44-5), “é numa configuração desta ordem que se põe o
capital industrial no Brasil, tendo por suporte, então, uma burguesia especialmente despojada
de ‘ilusões humanitárias’, e especialmente tolhida por fronteiras objetivas e subjetivas que
demarcam seu estreito espaço histórico”.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
458
democracias burguesas contemporâneas. Na teoria, ele encontra
demonstrações da “redução e redefinição da democracia” em autores como
Popper, Dahrendorf e até em um liberal bem quisto entre os progressistas
como Bobbio (LOSURDO, 2004). Para a cientista política estadunidense
Wendy Brown, a ruína da democracia está relacionada ao fato de que o
neoliberalismo é mais do que um processo de natureza política e econômica,
constituindo uma “ordem normativa da razão” que “transforma cada domínio
humano e cada empresa junto com os próprios seres humanos em
conformidade com uma imagem específica do econômico”, cuja “tarefa é
melhorar o seu posicionamento competitivo e fazer uso dele(BROWN, 2017,
s. p.). Mas, se ela tem razão em demonstrar a abrangência da hegemonia
neoliberal e suas conexões com a ruína da democracia, nunca é demais frisar
que o neoliberalismo é primariamente um complexo de ideias e práticas cujo
cerne é a desregulamentação das relações econômicas e das instituições com o
objetivo de aumentar a mobilidade do capital especialmente do capital
financeiro , a sujeição da força de trabalho e, com isso, recompor a taxa de
lucro das empresas as quais, tendo crescido nas duas primeiras décadas do
pós-guerra, começaram a declinar a partir de meados da década de 1960 e a
renda dos capitalistas (DUMÉNIL, LÉVY, 2014, pp. 63-79). E mais do que isso:
A desregulamentação, que é absolutamente uma política desejada e
conscientemente posta em ação e não um fato natural que se impõe
por si mesmo, permite às estratégias das grandes firmas escaparem
às obrigações que poderiam representar as políticas de estado, em
sua ausência. Entretanto, os fatos mostram que essas estratégias
independentes das firmas privadas não constituem um conjunto
coerente que garante a estabilidade de uma nova ordem. Elas, ao
contrário, geram o caos e, por isso, revelam a exatamente a
vulnerabilidade dessa mundialização que, por esse motivo, será
recolocada em questão. (AMIN, 2006, p. 135)
Embora afete duramente todos os países, o impacto político da ascensão
neoliberal é sentido com muito mais intensidade nos periféricos. Decerto,
partidos de direita e extrema-direita cresceram em todo o mundo. Em alguns
países centrais, representantes desses partidos ocupam posições de crescente
importância nos parlamentos (Áustria, Itália, Alemanha, França); em outros,
elegeram presidentes, cujo caso mais emblemático é o da mais consagrada
democracia ocidental, os Estados Unidos, que, em 2016, elegeu um presidente
que flerta abertamente com ideias segregacionistas e autocráticas. O mesmo
presidente que, mesmo tendo sido agora eleitoralmente derrotado por Joe
Biden e sua tradicional plataforma liberal, conseguiu uma votação expressiva
e mantém o país sob a espreita da extrema-direita. No leste europeu, Hungria
e Polônia têm governos de extrema-direita que impuseram uma ampla
regressão nos direitos civis e políticos. Nas franjas da Europa, a Turquia está
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
459
na mesma condição. Rússia e outras ex-repúblicas soviéticas têm democracias
com fortes traços autocráticos, nas quais os direitos civis e políticos são
bastante restritos. Na América Latina, na qual muitos países amargaram
décadas de regimes militares (1960/80), os últimos anos foram marcados pelo
fim da chamada “onda progressista” (anos 2000). Por meio de eleições
(Argentina, Uruguai, Chile, Peru), golpes jurídico-parlamentares (Honduras,
Paraguai, Brasil) ou militares (Bolívia), houve a substituição de governantes de
centro ou centro-esquerda por representantes das frações mais truculentas da
direita tradicional (Macri, Piñera) ou da extrema-direita (Bolsonaro, Jeanine
Áñez). E, embora sejam um alento, as recentes eleições de Hernández
(Argentina) e Luís Arce (Bolívia) e as mobilizações populares chilenas que
culminaram numa Assemblei Constituinte não foram suficientes para reverter
a conjuntura política e, muito menos, o quadro de retrocesso social da América
do Sul. Portanto, em meio a idas e vindas eleitorais, nada indica a abertura de
uma conjuntura política favorável às forças populares e à efetivação de suas
demandas.
Esse contexto de predomínio de neoliberais e da extrema-direita é um
gravíssimo problema para a esquerda e as massas populares. Porém, se a sua
gravidade não pode ser negligenciada, ela também não pode ser sobrestimada
e, muito menos, motivo para a criação de ilusões em saídas de composição com
forças políticas comprometidas com a eliminação das conquistas democráticas
substantivas. A necessidade de articulação das liberdades formais com
conquistas materiais é o motivo pelo qual as democracias liberais nunca foram
a forma dominante dos estados burgueses nos países periféricos e
semiperiféricos. Neles, estados democráticos são, com raríssimas exceções,
relativamente recentes e muito instáveis, tendo se generalizado como forma
política somente dos anos 1990 para cá. Ou seja, justamente com o fim da
guerra fria e da “ameaça socialista”.
Na verdade, se formos rigorosos, estados democráticos também são
exceções na história dos próprios países capitalistas centrais, basta lembrar
que a tão celebrada democracia estadunidense aceitava o tratamento dos
negros como cidadãos de segunda classe até os anos 1950/60. Nesse sentido,
se, como lembra Wendy Brown (2017, s. p.), o momento atual é de ocaso das
democracias ocidentais “ao final da Guerra Fria, enquanto os especialistas
celebravam o triunfo mundial da democracia, se desatava uma nova forma de
razão governamental no mundo euroatlântico que inauguraria a demolição
conceitual da democracia e sua evisceração substantiva” , é certo também
dizer que as democracias foram (e são) uma forma política excepcional na
história das sociedades capitalistas e, pelo curso dos acontecimentos recentes,
não nenhum motivo para crer que algum dia elas serão globalmente
dominantes ou temporalmente duradouras. Como o neoliberalismo parece
indicar, sem um outro que as ameacem no caso, os movimentos e forças
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
460
socialistas , as classes dominantes das sociedades capitalistas centrais
sentem-se suficientemente fortes para minar os aspectos mais universalistas e
substantivos das democracias burguesas e, com isso, aprofundar o seu caráter
primordialmente instrumental isto é, mantê-las de modo mais aparente do
que real. Inclusive, o espetacular crescimento econômico da China pode ser
não a esperança (cultivada pelos democratas) de democratização do país aos
moldes dos países capitalistas centrais, mas, para as classes dominantes
destes, a mais reluzente expressão da possibilidade de compatibilização entre
acumulação, crescimento da complexidade econômica e social e predomínio
de formas autocráticas de governo.
Enfim, não apenas a esperança econômica dos desenvolvimentistas dos
anos 1950-60 não se realizou com a industrialização como a reação neoliberal
ainda expôs completamente os simulacros de democracia burguesa dos países
periféricos e despedaçou as ilusões na consistência econômica e nas tendências
democratizantes e redutoras da desigualdade do capitalismo dos países
centrais. Com isso, foram corroídos os atributos das democracias burguesas
concernentes com certas liberdades e direitos civis e, assim, com qualquer
compromisso e ilusão que, sob força das circunstâncias, elas tenham nutrido
em relação a ideias e práticas de justiça social. Eis o que a esquerda teima em
não enxergar ou teme fazê-lo.
Considerações finais
Se a industrialização de alguns países alimentou as expectativas dos
teóricos do desenvolvimento no imediato pós-guerra sobre o futuro dos países
periféricos e a possibilidade de superação da desigual divisão mundial do
trabalho, a qual condenava alguns a exportadores de matérias-primas e,
outros, a usufruírem as benesses da produção e exportação de produtos
industrializados, o esgotamento do “ciclo sistêmico de acumulação norte-
americano” (ARRIGHI, 2013), o deslocamento do eixo industrial e econômico
global para o leste asiático, a crise dos anos 1970/80 e a reação neoliberal os
levaram à estagnação da industrialização ou, no máximo, ao crescimento de
indústrias de baixo incremento tecnológico ou de montagem de produtos sem
o correspondente domínio da produção dos componentes mais complexos.
Fora do novo centro da acumulação do capital (o leste asiático), países como
Argentina, Brasil, México, África do Sul e outros, mesmo que o crescimento
econômico absoluto tenha ampliado a sua participação na economia mundial,
estagnaram ou regrediram, em termos proporcionais e qualitativos, ante o
pouco conquistado no ciclo industrializante. E mais, também tiveram esse
decepcionante desempenho quando a renda per capita é comparada àquela
dos países centrais.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
461
Não bastasse essa modernização” reprodutora das fragilidades
econômicas portanto, da dependência tecnológica e financeira em relação
aos países centrais , outros problemas estruturais também foram apenas
reciclados, mas não resolvidos. Para mais ou para menos, esses países
mantiveram praticamente inalteradas as suas enormes desigualdades internas
na distribuição da renda e do patrimônio, assim como, em países como o
Brasil, pouco ou nada mudaram em relação às desigualdades regionais.
Igualmente, as expectativas de construção de sociedades mais democráticas
não se realizaram com o fim as ditaduras militares e, mais recentemente,
também naufragaram com a ruína da “onda progressista” sul-americana, a
eclosão dos golpes jurídico-parlamentares, a permanência de regimes civis e
militares autocráticos e a ascensão da extrema-direita em diversos países.
Mesmo num país de desempenho econômico excepcional, que o alçou à
condição de potência global, como é o caso da China, as desigualdades não
foram resolvidas e nem amenizadas; ao contrário, foram agravadas. Esses,
portanto, são apenas alguns exemplos de como aqueles graves problemas
econômicos, sociais e políticos denunciados nos anos 1950/60 não foram
eliminados, mas reproduzidos em nível superior isto é, não em países
agrários, mas industriais e urbanos. E mais, continuam a sê-lo com intensidade
num contexto em que a reação neoliberal tem ampliado as desigualdades e
arruinado a democracia nos próprios países centrais.
Diante disso, uma questão feita no início precisa ser recolocada: é
racional manter a expectativa de superação desses graves problemas dos países
periféricos sob o império do capital?
Num posicionamento radical ante o problema e sendo fiel às
contribuições teóricas de Marx, István Mészáros sustenta que não há qualquer
possibilidade de enfrentar os graves problemas das sociedades capitalistas
(centrais ou periféricas) e pós-capitalistas sem que uma real alternativa
socialista” se imponha e, com ela, ocorra a superação de três contradições
fundamentais da relação-capital: “entre produção e controle, produção e
consumo, produção e circulação” (MÉSZÁROS, 2002, p. 115). E, embora não
possa surgir pronta das entranhas dessa relação, essa superação constitui o
âmago e, portanto, objetivo a ser permanentemente buscado de qualquer
mudança social radical. Todas as alternativas a esta podem implicar/induzir
mutações nas formas e dinâmica na reprodução do capital, inclusive com
deslocamentos em seu centro geográfico, como demonstram as pesquisas de
Wallerstein e Arrighi sobre os ciclos sistêmicos de acumulação de Gênova à
Holanda, desta à Inglaterra, aos Estados Unidos e, agora, ao leste asiático.
Ocorre que, deslocando-se de um lado a outro e alternando as suas
configurações sociais e políticas (do capitalismo ao pós-capitalismo, passando
pelas diversas articulações entre livre-comércio e intervenção estatal), as
experiências socialdemocratas e pós-capitalistas do século XX demonstram
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
462
que, apesar de algumas restritas e agora cambaleantes “ilhas de prosperidade
(Europa do norte), os efeitos deletérios do domínio do capital permanecem em
âmbito global da desigualdade à crise ambiental, passando pela colossal
dilapidação de riquezas materiais e humanas sob a regência de seu infinito e
incontrolável processo de autovalorização. Sendo assim, em oposição ao lema
da dama de ferro do neoliberalismo There is not alternative! , Mészáros
considera que alternativa. Porém, essa alternativa não passa pela ilusão
desenvolvimentista de controlar o capital, mas por sua supressão. Como? Eis
a questão.
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Como citar:
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Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2,
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Data do envio: 9 set. 2020
Data do aceite: 2 dez. 202