A questão do estranhamento entre a superação e o passo de volta
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 442-451 - jan./jun. 2021 | 449
as próprias relações sociais concretas
(expressas no espírito objetivo), não só vêm a
deixar de construir o essencial quando se
trata de superar o estranhamento. A
superação do estranhamento se dá ao custo
da mistificação da realidade objetiva, que
passa a ser, sob este aspecto, um mero
momento da realização – marcadamente
teleológica – do espírito absoluto (SARTORI,
2019, p. 109).
Diante do exposto é que se pode aferir o
caráter materialista e histórico da ontologia do
ser social lukácsiana. Seguindo o itinerário
marxiano, Lukács compreende o ser como
entificação concreta, complexo de
determinações objetivas que existe
independentemente da consciência e que, a
partir da emergência da subjetividade,
constitui-se em uma relação indissociável com
ela. Há, pois, uma autarquia relativa da
realidade objetiva sobre as formas de
consciência. Autarquia porque “as categorias
expressam formas de ser, determinações de
existência” (MARX, 2016, p. 59), isto é, partes
constitutivas de uma objetividade externa aos
indivíduos e que se impõem sobre eles,
interferindo efetivamente em seu campo de
possibilidades de ação; relativa porque a
relação dos homens no e para com o mundo
não somente é inalienável para a manutenção
da vida humana, mas também porque mediante
a sua atividade altera-se de modo concreto a
própria objetividade. Para Lukács, a ontologia
é, portanto, “a modalidade real e concreta da
existência do ser, a sua estrutura e movimento”
(NETTO, 1978, p. 70).
Ou ainda, como diz Sartori:
[...] em Lukács, quando se trata de conjunto
de “todo o existente” e do ser, percebe-se
que se busca uma apreensão adequada da
realidade social, a qual teria consigo
determinações históricas e objetivas,
tratando-se sempre não de um ente
apreendido imediatamente, mas do processo
pelo qual as determinações do ser se
desenvolvem (SARTORI, 2019, p. 117).
Heidegger, por sua vez, apresenta uma
concepção ontológica muito distinta da de
Lukács. De rompante, já é possível dizer que o
filósofo alemão rechaça a concepção de Marx,
também integrada às formulações lukácsianas,
de que “as categorias expressam formas de ser,
determinações de existência” (MARX, 2016, p.
59). Uma vez que, como levantado na seção
anterior, o próprio estranhamento é, para
Heidegger, indissociável da perda de si diante
da indiferenciação do mundo, qualquer esforço
intelectivo que almeje a apreensão do ser-
propriamente-assim da realidade objetiva cairia
nos limites intrínsecos à cotidianidade e,
portanto, sucumbiria ao império do impessoal
(
das Mann
).
A esse respeito, esclarece Sartori:
O modo como o homem se relaciona com o
mundo tendo por base a última seria
essencialmente agressivo, dominador – e,
como visto, isso teria deixado resquícios em
Hegel, Marx e, seguindo o pensamento
heideggeriano, Lukács. A noção de
adequação criticada pelo autor de
Ser e
tempo
traria consigo não só a
impossibilidade de se pensar aquilo de mais
digno, “isso determina para o futuro como
uma consequência da nova transformação da
essência da verdade, o caráter tecnológico do
moderno, isso é, da técnica da máquina”. Se
o autor da
Ontologia do ser social
busca o
ser-propriamente-assim da objetividade, a
percepção correta da realidade objetiva,
tratar-se-ia, em verdade, seguindo o autor de
Ser e tempo
, de uma “ontologia tradicional”
(SARTORI, 2019, p. 118)
Para Heidegger, o próprio esforço
intelectivo de se buscar uma verdade objetiva
está atado aos limites da
metafísica
e da
cotidianidade dos tempos modernos. Tratar-se-
ia, antes, de adotar a postura do “passo de
volta” (
Schritt zurück
) para re-pensar (
er-
denken
) a constituição do homem no mundo,
que subjaz à própria objetividade do real,
constituindo-se como elemento originário, e,
assim, buscar
descobrir
o fundamento (
Grund
).
Fundamento (
Grund
) este, como visto na seção
anterior, que não é base racional ou resposta
aos moldes do
pensamento conceitual
, mas o
próprio caminho de se desvelar,
desencobrir
, os
fenômenos.
Assim, estaria colocada a ontologia
fenomenológica de Heidegger. Fenomenologia
justamente porque parte dos fenômenos da
cotidianidade dos tempos modernos a fim de se
atentar para a forma pela qual eles mesmos se
mostram, não em busca de uma lógica ou razão
de ser desses fenômenos, mas antes da
transcendência que se poderia alcançar ao ter
como enfoque as questões originárias. Em
outras palavras, a objetividade enquanto
objetividade seria inessencial à teorização
heideggeriana, pois as coisas não constituem
por si mesmas objetos. A questão central está
no deixar-ser proposital, em manter-se aberto
para aquilo de extraordinário, para um
acontecimento (
Ereigniz
).
Contudo, até mesmo o enfoque na
subjetividade, para Heidegger, está vinculado à
cotidianidade dos tempos modernos e ao
estranhamento engendrado pela “ditadura” do
impessoal (
das Mann
) e pela
metafísica
. Pensar
de acordo com a dicotomia entre sujeito e
objeto, mesmo que de maneira indissociável, é
um resquício do
pensamento conceitual
próprio
da modernidade. Em outras palavras, é manter-
se atado ao plano ôntico, no qual jaz o
estranhamento na indiferenciação do