REVISTA VERINOTIO  
NOVA FASE  
VERINOTIO  
29.2  
novembro  
2024  
VERINOTIO REVISTA ON-LINE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS  
ISSN 1981-061X v. 29 n. 2 - novembro 2024  
As opiniões emitidas em artigos ou notas assinadas são de responsabilidade  
exclusiva dos respectivos autores.  
CURSO DE SERVIÇO SOCIAL DA  
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE  
Rua Recife, Lotes 1-7 Jardim Bela Vista, Rio das Ostras28895-532RJ–  
Brasil. E-mail:revistaverinotio@gmail.com  
EXPEDIENTE  
Equipe editorial  
Editora-chefe: Dra. Vânia Noeli Ferreira de Assunção, UFF  
Editora-chefe adjunta: Dra. Ester Vaisman, UFMG  
Editor-associado: Dr. Vitor Bartoletti Sartori, UFMG  
Editor-associado: Dr. Ronaldo Vielmi Fortes, UFJF  
Editora-associada: Ms. Gabriella M. Segantini Souza, UFMG  
Equipe técnica  
Gabriella M. Segantini Souza Capista, diagramadora  
Ronaldo Vielmi Fortes - diagramador  
Roger Filipe Silva Web designer, programador e suporte técnico  
Conselho Editorial  
Dr. Alexandre Aranha Arbia, UFJF, Juiz de Fora, Brasil; Dra. Ana  
Laura dos Reis Corrêa, UnB, Brasil; Dra. Ana Selva Castelo Branco  
Albinati, PUC-MG, Brasil; Dr. Antônio José Romera Valverde, PUC-  
SP, Brasil; Dr. Antônio José Lopes Alves, UFMG, Brasil; Dr. Antônio  
Rago Filho, PUC-SP, Brasil; Dr. Carlos Eduardo O. Berriel, UNICAMP,  
Campinas, Brasil; Dr. Celso Frederico, USP, Brasil; Dra. Cristina Lontra  
Nacif, UFF-Niterói, Brasil; Dr. Eduardo Ferreira Chagas, UFC, Brasil;  
Dr. Elcemir Paço Cunha,UFJF, Brasil; Dra. Fabiana Scoleso, UFT,  
Brasil; Dr. Francisco Garcia Chicote, CONICET/UBA, Argentina; Dr.  
Guilherme Leite Gonçalves, UERJ, Brasil; Dr. Juarez Duayer, UFF,  
Brasil; Dr. Leonardo Gomes de Deus, UFMG, Brasil; Dra. Lúcia  
Aparecida Valadares Sartório, UFRRJ, Brasil; Dr. Marco Vanzulli,  
Università degli Studi di Milano Bicocca, Itália; Dr. Mario Duayer, in  
memoriam; Dr. Mauro Castelo Branco de Moura, UFBA, Brasil; Dr.  
Miguel Vedda, UBA, Argentina; Dra. Mônica Hallak Martins Costa,  
PUC-MG, Brasil; Dr. Nicolas Tertulian, in memoriam; Dr. Paulo  
Henrique Furtado de Araujo, UFF, Brasil; Dr. Ricardo Gaspar  
Müller, UFSC, Brasil; Dr. Ricardo Lara, UFSC, Brasil; Dr. Ricardo  
Prestes Pazello, UFPR, Brasil; Dr. Ronaldo Rosas Reis, UFF, Brasil; Dr.  
Vinícius Gomes Casalino, PUC-Campinas, Brasil.  
Veritonio 29.2  
SUMÁRIO  
Editorial: Temas em torno de Marx e Lukács.............................. IX  
Ronaldo Vielmi Fortes  
O problema da eficácia das formações ideais:  
o pensamento econômico como ideologia ............................................ 01  
Elcemir Paço Cunha  
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx: Materialismo,  
subjetividade e o debate com Hegel ..................................................... 24  
Maurício Vieira Martins  
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos  
juristas analíticos ................................................................................ 68  
Ana Carolina Marra de Andrade  
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no  
Livro III de O capital.......................................................................... 103  
Ana Clara Passos Presciliano  
O direito sem história e o Estado como comunidade ilusória: Marx e  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social........................... 134  
Lucas Parreira Álvares  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do  
existente ............................................................................................. 172  
Murilo Leite Pereira Neto  
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” dos  
Grundrisse e a centralidade do valor ............……….....……..........220  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos  
matemáticos...................................................................................... 244  
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias  
gerais da arte .........………................................................................ 269  
Ronaldo Vielmi Fortes  
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de  
Santa Maria del Fiore ……………………............................................….. 297  
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini ………….....….. 335  
João Paulo Galhardo Brum  
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo …………….…….. 361  
Paula Alves  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da  
ontologia de György Lukács………………………………………..……..……….. 394  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx ………...........................…. 431  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de  
partida …………………………………………………….…….......................…….. 458  
Vitor Bartoletti Sartori  
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma a ……................ 504  
Vladmir Luís da Silva  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a  
redistribuição do capital …………..…….............................................529  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza  
Sabadini  
Entrevista  
Das velhas às novas formas de irracionalismo..................................... 558  
Entrevista de John Bellamy Foster sobre Georg; Lukács e A destruição da razão, por  
Daniel Tutt  
Tradução  
Correspondência inédita entre Karl Marx e Jules Guesde, 1879........... 574  
Apresentação de Jean-Numa Ducange  
Willian-Adolfe Bougueraux  
Orestes perseguido pelas Fúrias  
Óleo sobre tela [231,1 x278,4 cm]  
1864  
EDITORIAL  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.744  
Editorial  
_____  
Temas em torno das obras de Marx e Lukács  
Embora este volume da revista não se dedique a uma temática específica, os  
artigos que o compõem versam particularmente acerca de dois autores: Karl Marx e  
Gyögy Lukács. A Verinotio tem se notabilizado por difundir pesquisas, teses, reflexões  
relativas à conjuntura econômica, política e social, cujos temas recaem sobre aspectos  
importantes da história humana e da atualidade, com uma fundamentação crítica da  
sociabilidade; nessa medida, não por acaso Marx e Lukács são presenças marcantes  
nas edições deste periódico, seja por meio da tradução de textos inéditos1, seja  
disponibilizando espaço para artigos que se amparam nas grandes contribuições de  
ambos os autores.  
Este volume da revista não foge a esse desenho mais geral que sempre norteou  
os conteúdos dos artigos que compõem a linha editorial de nosso periódico. Em  
termos gerais os textos aqui presentes poderiam ser classificados em duas partes. A  
primeira volta-se à Marx abordando temas que se direcionam à análise de elementos  
importantes de sua obra, por vezes, malversados e deformados pela tradição dos  
marxismos que preponderam no decorrer do último século seja em sua vertente  
stalinista, seja nas adequações interpretativas próprias do revisionismo das obras de  
Marx, pensamento pós-moderno, existencialismos etc.  
O texto que abre esse volume de nosso periódico é emblemático nesse sentido.  
O artigo “O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como  
ideologia” (p. 1-23), de autoria de Elcemir Paço Cunha, põe em foco uma das teses  
centrais do pensamento marxiano ao tomar como centro de suas reflexões o problema  
da determinação social do pensamento e a função das formações ideais na condução  
dos processos da realidade social. A questão decisiva cuja finalidade é compreender  
1 A propósito das traduções, ver nesse volume (p. 574-579), “Correspondência inédita entre Karl Marx  
e Jules Guesde, 1879”, traduzida por Gabriella M. S. Souza, precedido pela apresentação de Jean-Numa  
Ducange.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Ronaldo Vielmi Fortes  
como as ideias tornam-se ideologia, como formações do pensamento econômico –  
conforme o recorte sugerido pelo artigo em questão são capazes de intervir de  
maneira eficaz nos caminhos ou nos descaminhos das trajetórias da história social. Ao  
leitor atento da obra marxiana não escapa esse aspecto decisivo de seu pensamento,  
que toma por centro o problema da gênese e função social das ideias, sempre  
confrontando o papel das teorias, do ideário político, das ideações religiosas etc., com  
as condições histórico-sociais que dão curso e fornecem as condições para a difusão  
e eficácia para o bem ou para o mal das ideias.  
Sem querer ancorar em considerações típicas de um economicismo mecânico  
matrizador, vale insistir na tese segundo a qual as ideias são produtos de um campo  
de possibilidades postas pelo âmbito da necessidade material do modo de produção  
da vida. A economia não é apenas a relação do metabolismo entre homem e natureza,  
mas consiste na forma como os homens se organizam socialmente para levar a cabo  
as condições de produção da vida social. O que não significa a irrelevância das outras  
dimensões das esferas sociais, contudo como momento preponderante, a reprodução  
da vida, a economia em seu sentido mais amplo consiste em um âmbito não passível  
de ser negligenciado no curso das ideias e das formas efetivas da cotidianidade  
humano-social.  
As palavras de Marx a respeito de uma possível e necessária história da  
tecnologia, servem de maneira adequada para ilustrar o que aqui se quer dizer:  
A tecnologia desvela a atitude ativa do homem em relação à natureza.  
o processo imediato de produção de sua vida e, com isso, também de  
suas condições sociais de vida e das concepções espirituais que delas  
decorrem. Mesmo toda história da religião que abstrai dessa base  
material é acrítica. De fato, é muito mais fácil encontrar, por meio da  
análise, o núcleo terreno das nebulosas representações religiosas do  
que, inversamente, desenvolver, a partir das condições reais de vida  
de cada momento, suas correspondentes formas celestializadas. Este  
é o único método materialista e, portanto científico. O defeito do  
materialismo abstrato da ciência natural, que exclui o processo  
histórico, pode ser percebido já pelas concepções abstratas e  
ideológicas de seus porta--vozes, onde quer que eles se aventurem  
além dos limites de sua especialidade.2  
As ideias econômicas em sua dimensão ideológica devem também ser  
compreendidas a luz do que Marx designa como método materialista, como o único  
método científico. Como e de que modo as formações ideais podem se pôr como  
eficazes e duradouras, como elementos determinantes da própria realidade. Nessa  
2 MARX, K. O capital, livro I, São Paulo: Boitempo, 2013; nota da p. 446.  
Verinotio  
X |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. IX-XVI jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Editorial: Temas em torno da obra de Marx e Lukács  
medida, afirmar a economia como momento preponderante, não significa dizer que as  
formulações ideais sejam meros epifenômenos, na realidade cumprem também o papel  
de condutoras de rumos, encontram-se face às condicionantes da economia em uma  
relação de determinação de reflexão. Essa linha de raciocínio é seguida no artigo em  
questão, cabe desenvolver “o critério prático-concreto para a análise do pensamento  
econômico como ideologia”.  
Contra as afirmações que se tornaram comuns em torno da obra de Marx, em  
sua grande maioria imbuídas de interpretações deformadoras, é preciso voltar às  
fontes primárias, ler de forma rigorosa seus escritos, para trazer à luz a natureza  
própria de seu pensamento. É preciso colocar em evidência aspectos de suas  
elaborações quase sempre negligenciados pelas tendências que se hegemonizaram ao  
longo do século XX; essas se prestaram muito mais a estorvar a riqueza do pensamento  
do filósofo alemão. Segue essa linha, por exemplo, pelo menos dois artigos que  
compõem esse volume, em que são retomados temas importantes, tais como o  
problema do complexo da subjetividade tal como se apresenta em Manuscritos  
econômico-filosóficos (ver p. 24-67, “Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx”,  
Maurício Vieira Martins) e as relações de Marx com Hegel no período ainda juvenil de  
sua vida, anos em que o autor se aproxima do filósofo idealista, para logo em seguida  
romper com os elementos centrais da especulação comum ao idealismo (ver p. 172-  
219, “O caminho de Marx para Hegel”, de autoria de Murilo L. Pereira Neto).  
Desnecessário insistir na importância desses debates, uma vez que a voga pós-  
moderna, insistentemente, negou a questão da individualidade/subjetividade em Marx  
e quando chegou a considerar a possibilidade de tal tema em sua obra, o atribuiu a  
resquícios de uma antropologia feuerbachiana e até mesmo à presença de um  
idealismo hegeliano não superado. O primeiro artigo, demonstra a presença do tema  
do complexo da subjetividade em Marx, momento em que já se encontra marcada a  
ruptura com Feuerbach e Hegel, o segundo artigo, contribui para compreender o  
momento da aproximação de Marx com Hegel, e a radicalidade de sua crítica ao  
idealismo de Hegel e dos jovens hegelianos.  
Sobre as obras econômicas de Marx são dois os textos, cujos conteúdos  
retomam temas importantes do pensamento do autor: “Crise, capital portador de juros,  
capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital”, de Ana Clara Passos  
Presciliano (ver p. 103-133); “Notas sobre As formas que precederam a produção  
capitalistados Grundrisse e a centralidade do valor” (p. 220-243), da dupla de autores  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. IX-XVI jul.-dez., 2024 | XI  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
Paulo Henrique Furtado de Araujo e Mariana Pacheco de Araujo. Não se trata,  
evidentemente, de analisar a realidade de nossos dias a partir das categorias  
econômicas que vigoraram no século XIX, porém, uma vez que a obra econômica de  
Marx revela as linhas tendenciais da sociabilidade do capital, cabe retomar suas  
investigações e considerar os desdobramentos históricos que se fizeram presentes nas  
figuras dos processos de acumulação capitalista dos últimos dois séculos.  
Nessa mesma diretriz de trazer “Marx a partir de Marx”, cabe salientar três  
artigos que se debruçam sobre manuscritos de Marx ainda não devidamente estudados  
e discutidos. As recentes publicações da MEGA, associadas ao esforço de vários  
pesquisadores e instituições, trazem à luz estudos do pensador alemão que mostram  
a dimensão ainda pouco conhecida de suas preocupações investigativas. Dois deles  
se dedicam a prescrutar os ainda inéditos em português Cadernos etnológicos. Cada  
um dos artigos em questão considera aspectos distintos dos materiais de estudo de  
Marx. No artigo “Marx e a crítica ao assim chamado métododos juristas analíticos”,  
de Ana Carolina Marra de Andrade (p. 68-102), a autora expõe a crítica marxiana ao  
jurista Henry Summer Maine, em que são apresentados elementos decisivos das  
investigações do pensador alemão que conduzem a uma “crítica à teoria do direito  
como um todo”. Já no artigo “Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social” (p.  
134-171), de Lucas Parreira Álvares, ganha evidência os materiais de estudos em que  
foram tratadas “questões relativas ao que Morgan tratou como pertencente ao campo  
da organização social, como direito, parentesco, religião e política.” A preocupação,  
como demonstra o autor, não parece ser de modo algum um suposto interesse por  
uma ciência antropológica, mas volta-se à questão decisiva de buscar na história das  
civilizações e de determinadas sociedades elementos para se pensar o modo da  
produção da vida.  
Também sobre outros manuscritos recentemente tornados públicos de Marx, o  
artigo “A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos” –  
de Antônio Valverde e Maria Helena Soares de Souza (p. 244-268) , como o próprio  
título informa, aborda os estudos feitos pelo pensador alemão acerca do cálculo  
diferencial. Cabe demonstrar como “a solução marxiana oferece a possibilidade de  
desenvolvimento de métodos adequados para melhor compreensão dos fins da  
educação matemática”. Trata-se de um esforço de grande relevância empreendido  
pelos autores, na busca de pôr em evidência aspectos das investigações marxianas,  
pouco considerados pela tradição marxista. Muita dedicação ainda é necessária para  
Verinotio  
XII |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. IX-XVI jul.-dez., 2024  
nova fase  
Editorial: Temas em torno da obra de Marx e Lukács  
trazer à luz pontos chaves do pensamento de Marx, tarefa que muito contribuiria para  
desfazer os entendimentos apressados, as más compreensões, e por que não dizer, a  
má vontade em relação a seu pensamento.  
Assoma-se a esse esforço dois outros artigos, que apesar de não se dirigirem  
diretamente à obra marxiana, procuram extrair consequências de sua letra para debater  
temas decisivos de nosso tempo. É o caso do artigo Sobre Pachukanis, pachukanianos  
e o esgotamento de um ponto de partida” (ver p. 458-503), de autoria de Vitor  
Bertoletti Sartori, em que o problema do lugar do direito no pensamento marxista  
entra em tela, insistindo na necessidade de se constituir uma crítica ao direito e não  
uma crítica do direito à sociedade do capital. A consideração crítica a autores muito  
lidos na terra brasilis é o mote necessário para livrarmo-nos de velhos vícios no  
tratamento da função social do direito. Outro que figura nessa mesma linha é “A  
relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital”  
de autoria de Rossi Chaves, Deise Ferraz, Maurício Sabadini (cf., p. 529-557) , em  
que os autores a partir das categorias econômicas analisadas por Marx, consideram o  
papel e o mecanismo do setor de seguros na economia capitalista brasileira, quiçá  
mundial.  
A classificação sugerida de uma segunda parte igualmente não titulada no  
corpo da revista confere atenção central a diversos aspectos da obra lukácsiana.  
Embora tal conjunto de artigos não tenham sido elaborados com a intensão de  
constituir um todo devidamente articulado, é possível identificar uma linha de  
tratamento que estabelece relação entre temas tratados pelo pensador magiar, em  
particular em sua obra A peculiaridade do estético. No ensejo da primeira edição  
brasileira dessa que constitui uma das mais importantes obras de Lukács –  
recentemente publicada pela Boitempo (lançado o volume 1 de um projeto de 4  
volumes) , três artigos voltam-se para temas debatidos nesta obra. O primeiro deles,  
sobre o problema do meio homogêneo da arte (ver “Das formas particulares do meio  
homogêneo à inerência das categorias gerais da arte”, Ronaldo V. Fortes, p. 269-296)  
traz aspectos gerais da determinação do sistema das mediações categoriais do estético  
tal elaborados pelo pensador pelo filósofo. Este artigo é seguido por dois outros; neles  
as artes particulares são postas em evidência, em uma trajetória de reflexões que  
acompanha capítulos e seções específicas da obra lukácsiana, a saber a “arquitetura”  
(cf. Vinicius R. R. Morais; A resolubilidade técnica como unidade formal arquitetônica”,  
p. 297-334) e o “filme” (“O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini”, escrito  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. IX-XVI jul.-dez., 2024 | XIII  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
por João Paulo Brum, p. 335-360) ambas formas peculiares do meio homogêneo  
estético. Esse último, embora não mencione em seu título o autor húngaro, comporta  
o debate fecundo feito por Guido Oldrini com as reflexões de Lukács sobre o cinema,  
tomando como foco a análise da cinematografia de Chaplin. Já o primeiro se debruça  
sobre uma referência importante mencionada por Lukács no curso de suas reflexões,  
ao ressaltar o exemplo do domo construído por Bruneleschi, na igreja de Santa Maria  
del Fiore, como um dos ápices da exemplaridade do estético no âmbito da arquitetura.  
Demonstra a originalidade técnica de seu idealizador, e como sua obra reflete ao  
mesmo tempo em uma dupla mimesis a forma e o conteúdo específicos da  
edificação efetivada sobre os cânones dos princípios estéticos.  
Outros temas em torno do autor presentes neste volume versam sobre suas  
reflexões acerca da religião (conferir “A função da ideologia e a dinâmica das  
religiosidades a partir da ontologia de György Lukács”, de Sérgio Luiz G. G. Romero,  
p. 394-430), acerca dos limites de sua crítica à obra kafkiana (“Lukács, Coutinho e  
Kafka: dois críticos e um enigma”, p. 504-528, por Vladmir Luís da Silva) e um terceiro  
artigo que se debruça sobre elementos biográficos de Lukács (“Retorno a Budapeste:  
Lukács, democracia e realismo”, Paula Alves, ver p. 361-393). Respectivamente, o  
primeiro traz à luz as reflexões sobre a religião em Para uma ontologia do ser social,  
obra em cujas páginas a religião é apresentada em sua dupla vertente, ideológica e  
como fonte de estranhamentos. Consiste em uma rica contribuição sobre a tematização  
construída pelo filósofo húngaro, uma vez que tal tratamento ainda carece de reflexões  
mais depuradas, lembrando aqui a presença de tal tematização em momentos  
importantes de sua obra tardia, vale lembrar o capítulo XVI de sua Estética. O artigo  
que trata das considerações de Lukács sobre Kafka, com as devidas e corretas críticas  
de Carlos Nelson Coutinho, retoma o debate de décadas atrás, permitindo o resgate  
importante dos limites lukácsianos na compreensão da relevância da obra kafkiana. Há  
de se considerar, no entanto, para além dos limites das observações de Lukács em  
relação Kafka, tão bem retratados no artigo em questão, as mudanças posteriores nas  
análises lukácsiana. Em momentos bem pontuais de sua obra tardia, claramente vemos  
a posição do filósofo húngaro assumir ares mais positivos em relação à obra kafkiana  
como demonstra essa pequena passagem de sua obra Estética, ao confrontar O  
processo de Kafka, com Molloy de Beckett:  
Em O processo, o incógnito absoluto do homem particular aparece  
como uma anormalidade ultrajante e evocativa da indignação da  
existência humana, ou seja, - embora negativamente - com base no  
Verinotio  
XIV |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. IX-XVI jul.-dez., 2024  
nova fase  
Editorial: Temas em torno da obra de Marx e Lukács  
destino do gênero, enquanto Beckett se acomoda complacentemente  
na particularidade fetichizada e absolutizada. Como o reconhecimento  
espontâneo da identidade do interior e do exterior é um pressuposto  
elementar da vida humana, da coexistência humana em geral, esse  
contraste confirma mais uma vez o conceito de Goethe de núcleo e  
casca. A aparente profundidade de um Beckett nada mais é do que  
um apego estático a certos sintomas de uma superfície imediata que  
o capitalismo de nossos dias apresenta.3 (Lukács, 757-8)  
Há vestígios importantes da nova posição de Lukács em outras passagens de  
sua obra tardia; decerto estudar esses elementos posteriores de suas ponderações é  
uma tarefa considerável ainda a ser realizada. O artigo de Wladimir permite vislumbrar  
um momento das elaborações de Lukács e nos incita a prosseguir no trabalho de  
análise em que se considere as mudanças de seus posicionamentos em relação a obra  
de Kafka.  
O retorno de Lukács à Hungria, em seus dois regressos ocorridos nos anos de  
1918 e 1945, abordados por Paula Alves, revelam fases diferentes de sua trajetória  
intelectual. Autora do artigo, “partindo dessa constatação” (p. 461), considera as  
mudanças de posição de Lukács em relação à importância da democracia para o  
socialismo contra as posições anteriores do autor. Lukács, opondo-se à stalinização  
da Hungria, mas ao mesmo tempo destacando a “incompatibilidade entre capitalismo  
e democracia”, reformula suas teses de juventude de forma a abordar de maneira mais  
rigorosa o problema da “natureza da democracia popular” em sua relação “à ditadura  
do proletariado” vigente no período do socialismo real. As considerações de Alves,  
destacam como a trajetória do pensamento lukácsiano sempre se fundaram sobre a  
necessidade premente da teoria acompanhar os movimentos da própria realidade. O  
artigo expõe aspectos importantes da biografia intelectual do pensador húngaro, ainda  
não devidamente tratados pela literatura que se dedica à tarefa da discussão sobre a  
construção de seu pensamento.  
Compõe esse quadro dedicado ao pensamento de Lukács, a entrevista  
concedida por John Bellamy Foster sobre György Lukács e sua polêmica obra A  
destruição da razão – “Das velhas às novas formas de irracionalismo” (p. 558-573).  
Realizada em 10 de fevereiro de 2023, em um diálogo com Daniel Tutt, publicada em  
uma edição especial da revista Historical Materialism, assiste-se, nessa entrevista, a  
retomada deste impactante livro de Lukács, enfatizando como as teses nele contidas  
3
LUKÁCS, György; Die Eigenart des Ästhetischen - Band I; Berlin und Weimar, Aufbau-Verlag, 1987,  
757-8.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. IX-XVI jul.-dez., 2024 | XV  
nova fase  
 
Ronaldo Vielmi Fortes  
fornecem indicativos importantes para a compreensão dos desdobramentos  
posteriores no âmbito do pensamento ocidental. Foster, a partir de Lukács, insiste em  
destacar os caminhos do irracionalismo derivado diretamente na derrocada da razão  
professada por filósofos como Nietsche, Heidegger, dentre outros. O curso da filosofia  
de esquerda contemporânea, com suas predominantes teses irracionalistas, segue os  
rumos estabelecidos do pensamento anti-humanista prevalente na filosofia erguida  
sobre a crise das guerras imperialistas.  
Por fim mas não menos importante a retomada do texto sobre o pensamento  
do filósofo brasileiro, J. Chasin, outrora publicado como prefácio a seu livro4, repõe  
elementos investigativos confluentes com a necessidade do retorno a Marx. No Brasil,  
Chasin é provavelmente o estudioso que contribuiu de modo efetivo e rigoroso para  
a “redescoberta” do pensamento marxiano, seguindo de maneira bem própria o  
caminho aberto pelo filósofo magiar György Lukács. O artigo contribui para fixar e  
divulgar teses chaves que vinham sendo desenvolvidos por Chasin, cujo legado traz  
elementos inovadores relativos a aspectos negligenciados da obra de Marx, tais como:  
a análise imanente; o significado do estatuto ontológico marxiano propriamente dito,  
que inclui a afamada tese das “três fontes”, como modo tradicional de atribuir às origens  
do pensamento de Marx. Os estudos de Chasin contribuem de maneira decisiva para a  
redescoberta do pensamento de Marx. Contribui para suplantar o “destino trágico do  
pensamento marxiano” – tal como denuncia Vaisman em outro contexto posto ao  
longo da larga tradição do marxismo que prevaleceu nos anos vindouros a sua morte,  
que levou sua obra à deformante condição de “quanto mais [...] evocada, menos [...]  
conhecida”.  
A tarefa da Verinotio sempre foi e continuará sendo, expor investigações,  
estudos, de rigor, que permitam a crítica mais do que necessária dos descaminhos  
de nosso tempo. Para isso, o ímpeto que nos move, baseia-se na convicção segundo  
a qual o retorno a Marx, assim como a outros importantes expoentes do pensamento  
crítico da sociabilidade do capital, é tarefa crucial para prospectivar soluções para as  
crises contemporâneas, na busca pela edificação de uma nova sociedade, capaz de pôr  
condições concretas para a necessária emancipação do gênero humano.  
Ronaldo Vielmi Fortes  
Juiz de Fora, novembro de 2024  
4 CHASIN, José; Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica; São Paulo: Boitempo, 2009.  
Verinotio  
XVI |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. IX-XVI jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.725  
O problema da eficácia das formações ideais:  
o pensamento econômico como ideologia  
The problem of the efficacy of ideal formations:  
economic thought as ideology  
Elcemir Paço Cunha*  
Resumo: O artigo desenvolve o critério prático-  
concreto para a análise do pensamento  
econômico como ideologia. Para tanto,  
Abstract: The paper develops the practical-  
concrete criterion for the analysis of economic  
thought as ideology. To this end, it establishes  
the nature of this form of scientific  
consciousness and the deviations from the  
Marxist tradition regarding the relationship  
between economic thought and ideology.  
Finally, it recovers some of Marx's guidelines on  
this subject that allow to establish that analysis.  
It is concluded that there is a need to deepen  
the details of the historical process of  
conversion of economic thought into ideology.  
estabelece  
a
natureza dessa forma de  
consciência científica e os desvios da tradição  
marxista a respeito da relação entre pensamento  
econômico e ideologia. Por fim, recupera alguns  
lineamentos de Marx a respeito que permitem  
estabelecer aquela análise. Conclui-se pela  
necessidade de aprofundamento a respeito dos  
detalhes do processo histórico de conversão do  
pensamento econômico em ideologia.  
Palavras-chave:  
ideologia; tradição marxista.  
Pensamento  
econômico;  
Keywords: Economic thought; ideology; Marxist  
tradition.  
I.  
Uma das vulgatas mais repetidas dentro e fora da tradição marxista é aquela  
que retira toda a potência do plano das formas de consciência. No interior dessa  
tradição, a vulgata se alimentou do sempre renovado terror à contaminação idealista.  
Fora dela, deu-se a repisada acusação de mecanicismo econômico. Todos já estão  
familiarizados com tais espantalhos que grassaram principalmente as ciências sociais.  
Essa vulgaridade alimentou diferentes empreitadas aproximadamente naquela  
tradição. Houve quem buscasse complementações exógenas diante de uma suposta  
insuficiência em reconhecer o papel do plano das ideias. Formaram-se escolas inteiras  
nessa direção, a exemplo daquela encabeçada por Adorno e Horkheimer. Houve  
*
Doutor em administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Programa  
de Pós-Graduação em Administração na Universidade Federal de Juiz de Fora PPGAdm/UFJF. E-mail:  
paco.cunha@ufjf.br  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Elcemir Paço Cunha  
também o louvável esforço de retorno aos textos de Marx com o fito de estabelecer o  
lugar da potência das ideias. Como se sabe, Gramsci, aprisionado pelo então regime  
italiano, não encontrou as melhores condições para a tarefa. Lukács, comparativamente  
em melhores circunstâncias, pode ser visto, desde História e consciência de classe pelo  
menos, como uma expressão da necessidade de estabelecer a retidão da questão e  
obteve resultados destacáveis em suas obras de maturidade, sobretudo em Para uma  
ontologia do ser social.  
Esse material do último Lukács registrou que “a mais pura das verdades  
objetivas pode ser manejada como meio para dirimir conflitos sociais”. Para o filósofo,  
“ser ideologia de modo algum constitui uma propriedade social fixa das formações  
espirituais” uma vez que ela é determinada objetivamente, como uma “função social”  
(LUKÁCS, 2013, p. 564), isto é, por seus efeitos trata-se aqui de um critério prático-  
concreto que fundamenta a análise. A questão central se revela no fato de que “não  
decorre nem que a correção científica deva inibir o poder de persuasão da ideologia  
como ideologia, nem que algo surgido de modo puramente científico não possa  
desempenhar um grande papel ideológico” (p. 565) de maneira a influir na realidade  
social. Em suma, “nem um ponto de vista individualmente verdadeiro ou falso, nem  
uma hipótese, teoria etc., científica verdadeira ou falsa constituem em si e por si só  
uma ideologia”. Então, o arremate: “eles podem vir a tornar-se uma ideologia”. De tal  
maneira, formações ideais tornam-se ideologia “só depois que tiverem se transformado  
em veículo teórico ou prático para enfrentar e resolver conflitos sociais, sejam estes  
de maior ou menor amplitude, determinantes dos destinos do mundo ou episódicos”  
(p. 467).  
Depreende-se daí a determinação ontológica da ideologia (VAISMAN, 2010)  
como elemento fulcral desses resultados referentes à potência do plano das ideias. O  
sublinhado sob a transformação das formas de consciência em veículo “teórico ou  
prático” ocupa lugar especial nessa determinação. Sobretudo quando estamos  
especialmente interessados no aspecto mais “desmaterializado” (VAISMAN; FORTES,  
2010, p. 25) da questão (quando comparado à estrutura jurídica e política), nos  
exemplos da filosofia e da ciência, em cujo âmbito incluímos aqui o pensamento  
econômico como nosso objeto básico de atenção.  
Nesse âmbito, e ao contrário da tendência predominante no que toca o tema, a  
ideologia (ou, no caso, as ideias filosóficas, científicas e, pois, econômicas) não pode  
ser encarada a partir da teoria do conhecimento que a estabeleceu como falsidade,  
Verinotio  
2 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como ideologia  
ilusão, distorção e terminologias semelhantes. A teoria do conhecimento “não é o  
órgão apropriado à diferenciação entre ideologia e não ideologia”, explicou Lukács  
(2013). A “função social decide se algo se torna ideologia, e sobre isso a gnosiologia,  
por sua essência, não pode dispor” (pp. 568-9). Por não ser, essencialmente, um  
problema de natureza gnosiológica, a ideologia deve ser apreendida por seus efeitos  
histórico-concretos, e isso, em termos fundamentais, independentemente da falsidade  
ou verdade de seu conteúdo, como os argumentos anteriores de Lukács dão os  
fundamentos. O cerne está registrado no critério prático-concreto, que diz respeito  
aos efeitos das formações ideias tornadas ideologia.  
Cabe, portanto, isolar esse critério, dos efeitos históricos e concretos, para a  
determinação da ideologia. Por meio dele ilumina-se que a ideologia não nasce como  
tal, como indicado. As formas de consciência são vertidas em ideologia e, de modo tal,  
que “essa transformação depende de vir a desempenhar uma função precisa junto às  
lutas sociais em qualquer nível destas” (VAISMAN, 2010, p. 51). Essa função, no  
sentido de seus efeitos, tem por objeto as consciências e as condutas, ambas  
informadas pelo conflito social em suas variadas formas de expressão teórica e prática.  
Cabe, nesse sentido, encarar o fenômeno em tela “essencialmente pela função social  
que desempenha, ou seja, enquanto veículo de conscientização e prévia-ideação da  
prática social dos homens” (p. 51). Vemos, assim, que a angulação essencial se reflete  
no “momento ideal da ação prática dos homens”, da práxis histórica. Isso porque:  
qualquer reação ou resposta sejam elas produzidas pela ciência,  
pela filosofia, pela religião, pela tradição, etc. construídas pelos  
indivíduos como forma de atuar sobre os problemas postos pelas  
situações histórico-sociais, pode tornar-se ideologia, quando fornece  
elementos e condições para conscientizar, orientar e operacionalizar  
a prática social (FORTES, 2013, pp. 262-3).  
A acentuação sobre os efeitos das formas de consciência tornadas efetivas não  
surge como raio num céu sem nuvens. Essa posição de Lukács não parece ser idêntica  
aos lineamentos de Marx o que caberia à uma análise dedicada , mas é inadequado  
cortar qualquer lastro que de fato tem naquilo que ficou registrado como “critério  
ontoprático” (CHASIN, 2009, p. 106) que guarda sala, no materialismo consequente,  
à mediação entre as condições objetivas de possibilidade e as formas ideológicas, que  
converte uma na outra. Para o filósofo húngaro, e isso é decisivo, a vida cotidiana, isto  
é, a práxis objetiva sobre as condições materiais desempenha um “papel decisivo como  
mediação entre a condição econômica e a ideologia dessa decorrente” (LUKÁCS, 2013,  
p. 481).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024 | 3  
nova fase  
Elcemir Paço Cunha  
Essa mesma posição encontra fundamentação especial (não exclusivamente) no  
Prefáciode Para a crítica da economia política. Lá, como se sabe, Marx registrou  
achados que passou a orientar em termos gerais as suas investigações. Entre eles,  
sumariamente apresentada, encontra-se a relação entre a “estrutura econômica”, a  
“superestrutura jurídica e política” e as “formas sociais determinadas de consciência”.  
Insistiu na distinção entre as “condições econômicas de produção” e as “formas  
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas  
pelas quais os homens tomam consciência deste conflito [social] e o conduzem até o  
fim” (MARX, 1974, pp. 136-7). Esse é o sentido primário de ideação da práxis e com  
efeito sobre a realidade social, isto é, a conversão das condições objetivas nas formas  
ideológicas e destas naquelas por mediação da práxis. Obteve ele considerável  
replicação em materiais que reportaram extensivamente o poder da ideologia, pois  
neste está o “imperativo de se tornar praticamente consciente do conflito social  
fundamental (...) com o propósito de resolvê-lo através da luta”, de maneira que as  
“várias formas ideológicas de consciência social acarretam (...) diversas implicações  
práticas de longo alcance” (MÉSZÁROS, 2005, p. 11).  
Lukács recorreu aos materiais juvenis de Marx para indicar a potência que  
guarda o plano das ideias em influenciar a realidade objetiva. Ocupou lugar importante  
a colocação extraída da dissertação de Marx, segundo a qual o louco tem a  
possibilidade de contrair dívidas e se arruinar caso acredite que carrega moedas em  
seu bolso vazio. Recorreu também às propriedades do trabalho humano e o papel da  
prévia ideação tal como aparece em O capital. Tudo isso é bem conhecido, embora  
ignorado pelos contumazes portadores endógenos e exógenos daquela vulgata. Aliás,  
são abundantes ainda que teimosamente não admitidas as exemplificações  
possíveis a partir dos materiais de Marx. Se bem que salpicados ao longo de seu  
itinerário, não termina vão o exercício de extração de exemplos da influência objetiva  
da religião, da tradição, da evocação das ideias pregressas etc., como testemunham  
diferentes materiais tais como A ideologia alemã, 18 Brumário, Grundrisse, O capital,  
para citar alguns entre os mais notórios.  
Em termos objetivos, seria incompreensível a desconsideração da parte que  
jogou e joga o pensamento econômico no processo histórico de desdobramento da  
economia capitalista, porquanto sabemos que, em termos gerais, impregnou-se da  
missão social socialmente informada de apresentar a “ordem capitalista como a forma  
última e absoluta da produção social, em vez de um estágio historicamente e  
Verinotio  
4 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como ideologia  
transitório de desenvolvimento” (MARX, 2013, p. 85). Dado o predomínio daquela  
vulgata, de exclusão da potência do plano das ideias econômicas, tudo se passa como  
se nada disso estivesse registrado.  
Diante desse predomínio, vem imediatamente à baila pelo menos uma  
consequência muito importante. Surgiria daí uma aparente contradição: os abundantes  
materiais econômicos de Marx, desde pelo menos 1844, não conteriam qualquer  
apreciação da influência das ideias econômicas sobre a realidade objetiva. É  
consequência que demanda atenção. No bojo de sua resolução, está a determinação  
do pensamento econômico como ideologia nos próprios materiais de Marx. Essa é a  
tarefa para qual devemos nos voltar. ainda que de modo aproximado para avaliar sua  
medida e retirar desdobramentos.  
Mas, para tanto, é preciso reconhecer de partida que isolar o critério do efeito  
prático das formas de consciência para tratamento dedicado, esteve longe de ser algo  
para o quê Marx esteve integralmente dedicado. Poderíamos mesmo dizer que o  
pensamento econômico foi tomado principalmente para a demonstração dos  
condicionantes objetivos sobre as ideias e para estabelecer a retidão ou desvio de tais  
ideias econômicas em relação às propriedades e funcionamento da economia  
capitalista. No caso, nos interessa a primeira tendência, isto é, a de explicar as  
formações ideais a partir de sua base terrena. Essa sempre foi a tônica de Marx, aliás,  
como prova a nota reivindicatória em O capital de uma então inexistente “história  
crítica da tecnologia”, isto é, “a história da formação dos órgãos produtivos do homem  
social, da base material de toda organização social particular”. Argumentou que a  
“tecnologia desvela a atitude ativa do homem em relação à natureza, o processo  
imediato de produção de sua vida e, com isso, também de suas condições sociais de  
vida e das concepções espirituais que delas decorrem”. A investigação evocada não  
deve, por coerência, abstrair o “processo histórico” da análise. Marx recorreu ao  
exemplo da religião. Escreveu ele que:  
mesmo toda história da religião que abstrai dessa base material é  
acrítica. De fato, é muito mais fácil encontrar, por meio da análise, o  
núcleo terreno das nebulosas representações religiosas do que,  
inversamente, desenvolver, a partir das condições reais de vida de  
cada momento, suas correspondentes formas celestializadas. Este é o  
único método materialista e, portanto, científico (MARX, 2013, p.  
446).  
Certo caráter tópico e de natureza “desmaterializada” iguala categorias como  
decorrentes “concepções espirituais” e “correspondentes formas celestializadas” as  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024 | 5  
nova fase  
Elcemir Paço Cunha  
quais não expressam, obviamente, apenas o exemplo da religião. Refletem o plano das  
ideias, das formas de consciência, entre as quais figuram a filosofia, a ciência e, pois,  
o pensamento econômico. O método materialista está voltado para a relação entre as  
condições objetivas e tais formas de consciência, explicando as segundas por médio  
de procedimento histórico-genético a partir das primeiras. Nisso se encontra a  
cientificidade do método materialista e sua contribuição diante das tendências  
puramente idealistas ou vulgares do materialismo a-histórico.  
Mas, de fato, não encontramos nenhuma obra de Marx orientada exclusivamente  
para aquela tarefa de isolar o critério prático, nem partes claramente delimitadas a  
isso. Mesmo no material conhecido como Teorias da mais-valia, no qual enfrenta mais  
diretamente o pensamento econômico em suas variantes na figura da “economia  
política clássica” e da “economia vulgar”, não podemos encontrar algum  
desenvolvimento integralmente dedicado à problemática em tela. E isso ocorre, não  
obstante, diante de lineamentos lapidares a respeito das reciprocidades existentes  
entre as condições objetivas e o plano das ideias. Vemos essa questão na tomada  
crítica de Storch na qual Marx destacou que “se não se concebe a própria produção  
material na forma histórica específica, é impossível entender o que é característico na  
produção intelectual correspondente e a interação entre ambas” (MARX, 1980, p.  
267). É decisivo sublinhar o elemento interativo, de relação de correspondência e de  
reciprocidade entre os fatores relacionados. Explica-se o plano das ideias dada a  
correspondência às condições objetivas habilitadoras, que torna possível o conteúdo  
dessas ideias. Mas isso não elimina o movimento existente entre tais ideias e suas  
condições de possibilidade. Ao contrário, disso resulta a solar compreensão do lado  
ativo dessa “produção intelectual”, seus efeitos sobre a vida econômica da sociedade.  
Aqui jaz, pois, a vulgata.  
Com efeito, o método materialista, decorrente das investigações próprias das  
formações ideais, expressa de modo complexo a estrutura própria dos materiais de  
Marx. Seria sem propósito razoável considerar toda essa estrutura aqui, aliás, muito  
rica em seus fundamentos à investigação das formas sociais de consciência, mas vale  
a indicação em esboço sumário: a) admissão da predicação ativa do pensamento, b)  
determinação da natureza das formações ideais, c) a gênese e, pois, a explicação  
histórica a partir das suas condições objetivas de possibilidade, d) verificação da  
objetividade dessas formações, e) a conversão delas em ideologia e seu  
correspondente deságue na realidade social pela práxis, f) as eventuais alterações  
Verinotio  
6 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como ideologia  
profundas e duradouras provocadas por elas, por mediação da práxis, sobre a  
estrutura econômica da sociedade. É o reconhecimento, como vemos, das  
reciprocidades entre estrutura econômica, superestrutura ideológica e as formas de  
consciência mediadas pela práxis das classes sociais e grupos humanos. É, ao cabo, a  
extração do movimento próprio da realidade histórica.  
Podemos mesmo dizer, e sem receios, que a cientificidade desse método está  
na descoberta e na demonstração desse movimento, na descoberta da dialética entre  
a genética histórico-concreta das formações ideias e sua eventual efetividade ao  
desaguar nas próprias condições objetivas pressupostas, eventualmente modificando  
essa base por meio da atuação das classes e grupos humanos em meio aos conflitos  
socialmente informados. Vemos, pois, que a mediação desse movimento está contida  
no próprio critério prático antes referido, isto é, o conflito, decorrente das contradições  
da estrutura econômica, cria as condições de acionamento das formações ideias  
vertendo-as em ideologia com o fito de influir nas próprias lutas sociais (teóricas e  
práticas), dirigindo então os conflitos sociais e influindo nos rumos da vida econômica  
da sociedade.  
Nosso interesse, portanto, está no isolamento analítico do critério prático com  
vistas a determinar a potência das ideias econômicas e sua transformação em  
ideologia. Há evidências muito instrutivas nos materiais de Marx desse critério prático,  
dos efeitos das ideias econômicas. Para tanto, convém estabelecer a natureza do  
pensamento econômico e a colocação do problema da ideologia na tradição marxista  
mais dedicada a essa forma de consciência em particular.  
II.  
Dissemos anteriormente que o pensamento econômico pode ser topicamente  
considerado entre aquelas formas de consciência social como a filosofia e a ciência. É  
necessário estabelecer algumas considerações a esse respeito, incluindo certa  
comparação com a política que auxilia na determinação das diferenças específicas  
envolvidas. Por isso, importa destacar sinteticamente a distinção entre filosofia e  
política, de um lado, e, de outro, a relação geral entre filosofia e ciência, com o fito de  
melhor posicionar o pensamento econômico.  
Sem rodeios, devemos admitir que a “ideologia política visa apreender de modo  
real, prático, os momentos de cada complexo de crises, cuja decisão pode levar mais  
ou menos espontaneamente ao deslindamento prático do complexo global”. Por seu  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024 | 7  
nova fase  
Elcemir Paço Cunha  
turno, “toda filosofia significativa”, como exemplar das “ideologias puras” (mais  
“desmaterializadas”), está “empenhada em oferecer um quadro geral do estado do  
mundo, que da cosmologia até a ética, procura sintetizar todas as conexões de tal  
maneira que, a partir delas, também as decisões atuais se revelam como momentos  
necessários das decisões que determinam o destino do gênero humano” (LUKÁCS,  
2013, p. 555). Obviamente que existem reciprocidades entre elas enquanto fatores  
extraeconômicos, mas o propósito no momento é destacar a natureza essencial das  
coisas para as quais estão voltadas. Isso será auxiliar para a caracterização do  
pensamento econômico.  
Nessa precisa direção, devemos complicar o quadro com a relação entre  
filosofia e ciência. Podemos partir da comparação muito resumida entre ciências  
naturais e ciências sociais. Entre elas se encontra um campo comum, ou seja, a  
tendência “por conhecer a realidade objetiva, como ela é em si” (LUKÁCS, 2013, p.  
567). Essa é, em essência, a tarefa científica. Ainda que não haja segurança derradeira  
para o sucesso dessa tarefa, encontramos continuamente nas ciências da natureza um  
“modo socialmente espontâneo, visto que seus resultados só podem desempenhar um  
papel ativo e positivo em caso de execução aproximadamente bem-sucedida de tal  
intenção na reprodução material do ser social” (p. 567). Isso obviamente não quebra,  
embora abrande, os vínculos das ciências da natureza com “posicionamentos quanto  
ao respectivo estado das forças produtivas, quanto ao respectivo estado da sociedade”  
(p. 568).  
Encontramos algo igualmente válido para as ciências sociais, porém, com  
particularidade importante. Em termos historicamente constitutivos, genéticos, as  
ciências sociais visam “provocar modificações na consciência dos homens” (p. 563),  
quer dizer, influir de modos variados na apresentação de alternativas, no  
condicionamento das escolhas e dos comportamentos diante das questões que  
emergem da ação em meio às condições materiais da vida cotidiana. Na medida em  
que o homem é “por natureza um ser que responde” (p. 303) às questões  
objetivamente postas, as ciências sociais são uma espécie de resposta voltada para  
afetar o conjunto das possibilidades das condutas humanas. Ao mesmo tempo, o  
“papel desempenhado por toda ciência social na divisão social do trabalho  
simultaneamente também propõe a tarefa de retratar, ordenar, expor etc. os fatos e as  
conexões por ela tratados assim como eles de fato atuaram e atuam na totalidade do  
ser social” (p. 563), em suma, realizar a tarefa científica. Desnecessário dizer que as  
Verinotio  
8 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como ideologia  
duas tarefas simultâneas e relacionadas das ciências sociais apresentam ocorrência em  
meio às diferentes posições sociais, classes sociais, em contextos de continuidades e  
mudanças societais etc. Isso informa as ciências sociais como exercício do impulso  
científico e simultaneamente de resposta aos conflitos sociais postos.  
Essas diferenciações resultantes da análise, por mais importantes que sejam,  
não eliminam as complexas reciprocidades tendenciais como no exemplo da relação  
entre ciência e filosofia. Na verdade, as diferenciações aqui pressupõem a unidade  
existente entre tais fatores relacionados em que a ciência “geralmente controla “a partir  
de baixo” se as generalizações ontológicas nas sínteses filosóficas se encontram em  
consonância com o movimento real do ser social, se elas não se distanciam do ser  
social de modo abstrativo”. Trata-se de controle a partir do plano imediato, singular e  
regulador da filosofia. Por seu lado, a filosofia, ensinou Lukács:  
exerce uma crítica ontológica permanente das ciências “a partir de  
cima”, ao controlar continuamente em que medida cada questão  
singular é tratada, tanto no plano estrutural como no plano dinâmico,  
ontologicamente no lugar correto, no contexto correto, se em que  
medida a submersão na riqueza das experiências concretas singulares  
não confunde, mas aumenta e aprofunda o conhecimento das  
tendências contraditórias e desiguais de desenvolvimento da  
totalidade do ser social (LUKÁCS, 2013, p. 570).  
Dito de modo direto, no caso o controle funciona para que não se perca na  
vastidão das singularidades que preenchem a miríade empírica.  
O pensamento econômico, tomado de modo abrangente, coloca-se no quadro  
desses fatores extraeconômicos relacionados no qual política, filosofia e as ciências  
natural e social diferenciam-se, mas também alimentam implicações importantes. É  
terreno repisado reconhecer, por exemplo, a influências das ciências naturais sobre  
importantes tendências do pensamento econômico (sobretudo entre os séculos XIX e  
XX, notadamente a física e a biologia). De outro lado, essa forma de consciência social  
não é reconhecível sem os aportes que toma no amplo campo da filosofia. Igualmente  
importante são as conexões entre política e esse pensamento econômico. Na medida  
em que aquela busca capturar os “momentos de cada complexo de crises” (p. 555) e  
acionar contingentemente os elos que “influem efetivamente nas tendências  
econômicas decisivas que entraram em crise” (p. 507), testemunhamos o pensamento  
econômico continuamente voltado a explicar o funcionamento da economia capitalista  
e a contribuir para a caixa de ferramentas frente às mesmas crises para as quais a  
política procura respostas. Quer dizer, o pensamento econômico também procura  
influir em termos práticos nos mesmos complexos. Talvez por isso, desde sua  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024 | 9  
nova fase  
Elcemir Paço Cunha  
constituição, a expressão “economia política” capture melhor as coisas do que a  
artificialmente árida Economics dos nossos tempos.  
Esse último problema não é acessório. O reto entendimento da natureza do  
pensamento econômico é condição para sua compreensão como ideologia. E isso  
porque esse reto entendimento é permanentemente abalado pelas convicções que  
funcionam como espécie de expurgo artificioso das contradições existentes e que  
informam aquela forma de consciência. É o caso da genérica posição quanto à  
“economia das trocas” que vemos como algo constante desde o movimento crescente  
do marginalismo do século XIX. É emblemático o posicionamento de Robbins  
(1932/1984), para quem aquele pensamento deveria estar voltado para os  
comportamentos derivados das avaliações subjetivas frente à escassez da economia  
das trocas no mercado. A questão é bem mais complicada do que isso.  
Aqui é decisivo o procedimento genético empregado nas investigações do autor  
de Trier. A gênese da economia política ocorreu quando ela se “separa como ciência  
autônoma” (MARX, 1974, p. 160) em relação à então “filosofia política”. Encontrou  
palco clássico na “Inglaterra, com William Petty, e na França, com Boisguilebert” (p.  
160). Indo direto ao ponto, essa gênese tem por pressuposto básico a generalização  
da produção de mercadorias que caracteriza o modo capitalista de produção. Não é  
acaso que a determinação do valor ocupou lugar especial. O fato de a mercadoria se  
tornar a principal e generalizada forma da riqueza informou aquele pensamento  
econômico nascente como espelhamento científico aproximado frente a um modo  
histórico de produção. Não por menos, as categorias da economia política se  
apresentam como representações das condições concretas, mas que, por obra das  
mesmas condições históricas, derivam da maneira como as coisas se apresentam, isto  
é, das formas acabadas da própria economia capitalista. Essas formas acabadas,  
prontas, “possuem a solidez de formas naturais da vida social”, sobretudo a “forma  
acabada a forma-dinheiro do mundo das mercadorias que vela materialmente, em  
vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, com isso, as relações sociais  
entre os trabalhadores privados” (MARX, 2013, p. 150). Dito de outro modo, “são  
justamente essas formas [acabadas] que constituem as categorias da economia  
burguesa”, que ela se liga às “formas de pensamento socialmente válidas e, portanto,  
dotadas de objetividade para as relações de produção desse modo social de produção  
historicamente determinado, a produção de mercadorias” (p. 151). Em suma, são  
espelhamentos aproximados desse modo de produção, de impulso científico, mas  
Verinotio  
10 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como ideologia  
também limitados em seu alcance por condicionantes tanto na gênese quanto nos  
desdobramentos consequentes assunto para outro momento, entretanto.  
Nesse ponto surge o interesse das fortes vinculações do pensamento  
econômico e aqueles fatores político, filosófico e científico do complexo  
extraeconômico antes aludido. Há vários aspectos que permitem identificar no  
pensamento econômico a aspiração de explicar as tendências globais e o destino do  
gênero humano ao passo que procura regularidades singulares por seu ímpeto de  
cientificidade. Ao mesmo tempo, também está voltado para respostas práticas às  
crises, procurando influir no seu direcionamento. Como dissemos anteriormente, a  
expressão “economia política” reflete muito bem essa caracterização. E é importante  
reconhecer uma linha de desenvolvimento dessa forma de consciência científica desde  
sua gênese, sobretudo porque é parte da questão a tarefa geral do pensamento  
econômico, e em vínculo com as ciências sociais, “provocar modificações na  
consciência dos homens” (LUKÁCS, 2013, p. 563), como já dissemos. Dito isso, é  
muito difícil ignorar o “papel crescente dessa ciência [economia política] como  
instrumento de controle social” (LANGE, 1964, p. 527) desde o século XIX pelo menos,  
isto é, como veículo teórico e prático de influir na dinâmica da economia capitalista –  
algo que possui passagem, em graus variados e circunstâncias diversas, pelo  
convencimento de extensas cadeias de classes sociais e grupos humanos. Dobb  
escreveu que exemplares desse pensamento, “ao serem examinados, acabam por  
exprimir de maneira surpreendentemente direta a realidade econômica” e, cabe a  
ênfase, que esse mesmo exame revela que “exerceram influência considerável na  
política real (quando não a alteraram)” (DOBB, 1977, p. 27). Essa linha de  
desenvolvimento sugere que a economia política ou pensamento econômico tem de  
fato importância como respostas a “certas questões de tipo essencialmente prático –  
questões relativas à natureza e ao comportamento do sistema econômico que  
conhecemos como capitalismo”. Dobb completou em seguida ao sugerir “que esse  
tipo de questão é crucial tanto para qualquer compreensão completa do  
desenvolvimento do pensamento econômico quanto para a relação entre pensamento  
econômico e a prática” (DOBB, 1937, p. vii).  
Esse objeto ideal para o qual estamos aqui voltados, portanto, é, em sentido  
tópico, mais bem apreendido como um feixe que se estende entre a política, a filosofia  
e a ciência como fatores extraeconômicos pelo menos entre esses mais importantes  
que aqui consideramos. Sua face mais aparente, entretanto, é como forma de  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024 | 11  
nova fase  
Elcemir Paço Cunha  
consciência científica. E sua nem sempre evidente gênese histórica está ligada à  
generalização da produção de mercadorias e ao desenvolvimento desse modo de  
produção, alcançando o próprio plano das respostas a respeito dos métodos mais  
adequados à administração da economia capitalista. Isso se revela muito claramente  
na conexão aludida entre pensamento econômica e a prática, caso seja considerado  
que o maior alcance do primeiro pressupõe a mediação política para sua efetivação  
prático-concreta, depende, pois, de o príncipe dar-lhe ouvidos aos seus sussurros.  
Evidencia-se, com isso, a coisa ao fundo para a qual se volta, em termos gerais,  
o pensamento econômico em tela a despeito de suas ramificações especializadas, qual  
seja, as relações sociais de produção e distribuição da riqueza social sob uma dada  
modalidade histórica e particular de organização das necessidades sociais (reais ou  
ilusórias) e das capacidades sociais (subjetivas e objetivas, incluindo os meios de  
produção) sob a lógica da generalização das mercadorias. Essa modalidade traz em  
seu seio o assédio concretamente posto pela questão a ser dirimida em torno da qual  
se arqueiam os conflitos essenciais: como produzir e distribuir a riqueza socialmente  
formada. É uma marcação do pensamento econômico responder de diferentes  
maneiras, direta ou indiretamente, tanto ao deciframento das condições e modos pelos  
quais a riqueza social é produzida e apropriada quanto ao conflito que emerge do  
problema fundamental, até aqui sempre reposto, de estabelecer as condições e modos  
de organização da vida econômica da sociedade nos limites da produção generalizada  
das mercadorias.  
A especificação da natureza do pensamento econômico, aqui colocada de modo  
meramente aproximado, é condição para o entendimento de sua conversão em  
ideologia. Mas essa conversão nem sempre compareceu com clareza para os mais  
argutos analistas na tradição marxista e que se debruçaram mais dedicadamente a  
essa forma de consciência científica. A trilha correta parece não ter sido tomada.  
Reputados estudiosos exógenos a essa tradição também seguiram caminho adverso e  
sucumbiram à forma mais corrente de entendimento da questão envolvida na relação  
entre pensamento econômico e ideologia.  
Não é propósito aqui tratar o assunto extensamente, mas é importante  
demarcar alguns dos esforços mais respeitados fora e dentro da tradição marxista que  
nos interessa mais de perto como demonstração do problema. E isso porque é notório  
que a ideologia é um problema sempre candente e generalizado nas ciências sociais e  
especialmente na economia (BACKHOUSE, 2010, MEEK, 1967). A luta principal parece  
Verinotio  
12 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como ideologia  
ser a de evitar suas implicações na construção de uma ciência “livre de ideologia”.  
Tornou-se um empreendimento central de afastamento de emoções, valores  
intelectuais, preconceitos, política, interesses de classe e do tipo de referência mais  
remota que pudesse dar a aparência ideológica. Então, a ideologia foi historicamente  
tomada como um fator interveniente em sentido negativo, algo exógeno que age sobre  
o esforço intelectual.  
No campo da economia, essa posição é dominante. Mesmo analistas  
aparentemente mais distantes de tal posição estéril e crua, mantêm tais características  
fundamentais atribuídas à ideologia. Podemos citar, por exemplo, Schumpeter  
(1954/2006) para quem tanto a "economia política" quanto o "pensamento  
econômico" não podem ser inteiramente salvos da influência exógena e interferente  
da ideologia. Apenas a "análise econômica" (equipada com uma “caixa de ferramentas”  
pura e formal) poderia ser comprovada como tendo um grau relativo de insulamento.  
Ao mesmo tempo, a ideologia parece ser para ele uma interferência que não pode ser  
completamente extraída porque também é uma espécie de expressão de nossos  
pressupostos fundamentais ou “visão” geral das coisas do mundo.  
Robinson (1962/2021) sustentou uma atitude semelhante. Para ela, a ideologia  
se mistura com o esforço de investigação científica e tende a ser identificada com a  
“metafísica”. Parece não ser possível decantar tal mistura. Mais do que isso, a ideologia  
é, em suas palavras, “certamente indispensável no mundo da ação na vida social” (p.  
4). Na medida em que a “principal característica da ideologia que domina nossa  
sociedade hoje é sua extrema confusão”, a tarefa central no horizonte então seria a de  
“resolver da melhor maneira possível essa mistura de ideologia e ciência” (p. 23) como  
coisas, pois, diferentes então misturadas. Essa é uma expedição sem fim contra um  
tipo de mal necessário, segundo a autora.  
Vemos que, em essência, para esses analistas, enquanto a ideologia parece ser  
exógena, um fator diversionista que não pode ser totalmente banido, ela pode ou deve  
ser diluída em alguns campos da economia ou pelo menos controlada em todos os  
seus ramos.  
Os estudiosos marxistas parecem ser algo diferente, mas não totalmente  
antagônicos aos referidos intelectuais. Dobb (1977), por exemplo, não admitiu a  
ideologia tomada apenas como “elemento enganador em pensamento” (p. 9). Mais  
explícito do que seus colegas citados acima, ele parece exigir uma “relatividade  
histórica” na qual a ideologia se refere a:  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024 | 13  
nova fase  
Elcemir Paço Cunha  
um sistema completo de pensamento, ou a um conjunto coordenado  
de convicções e ideias que formam uma estrutura, ou grupo, a nível  
superior, de conceitos relacionados, para chegar a noções, análises,  
aplicações e conclusões mais específicas e particulares. Deste modo,  
a palavra relacionar-se-á geralmente com certas atividades e políticas,  
mas não necessariamente em termos simples e imediatos; e para  
aqueles que conduzem a discussão ao nível mais elevado (ou mais  
genérico), a relação pode não ser sempre inteiramente consciente, e  
ainda menos explícita. Na acepção mais geral, uma ideologia constitui  
ou implica uma posição filosófica, no nosso contexto atual uma  
filosofia social, desde que a isto se não dê um significado  
excessivamente formal ou metodológico. (DOBB, 1977, p. 10)  
Nessa consideração já vemos certo distanciamento entre pensamento  
econômico e ideologia como “filosofia social” que age junto ao primeiro. Isso parece  
se aprofundar quando o autor inglês considerou que na “história real do pensamento  
econômico há provas abundantes do condicionamento histórico da teoria econômica”  
(DOBB, 1977, p. 27). Dobb estava primariamente interessado em elucidar a maneira  
e os modos desse condicionamento social e histórico do pensamento abstrato no  
campo da economia. No tratamento de tal condicionamento do pensamento  
econômico, no entanto, Dobb inadvertidamente admitiu “a introdução de uma  
influência de ordem ideológica. Quando ela existe, quase nunca é fácil de notá-la, e  
menos fácil ainda combatê-la e anulá-la” (p. 32). Assim, ao contrário de seu ponto de  
partida, Dobb reintroduziu o caráter exógeno e interferente. A ideologia aparece  
novamente como um “elemento enganador em pensamento”, embora essa posição  
tenha sido criticada no início de sua análise.  
O caráter não autônomo do pensamento econômico é um aspecto fundamental  
do estudo marxista das teorias nessa área. Rubin o enfatizou tanto quanto Dobb,  
ensinando que “as ideias econômicas não nascem no vácuo. Muitas vezes, eles surgem  
diretamente da agitação e da luta dos conflitos sociais, no campo de batalha entre  
diferentes classes sociais” (RUBIN, 1979, p. 9). O autor também sublinhou que, de “um  
ponto de vista histórico, as doutrinas e ideias econômicas podem ser vistas como se  
estivessem entre as formas mais importantes e influentes de ideologia” (p. 9), mas,  
como Dobb, o autor russo não desenvolveu tal proposição importante, com as  
demonstrações que ela exige. Rubin procurou não se limitar ao estudo das “raízes  
sociais e econômicas”, examinando essas ideias como um sistema, isto é, “como uma  
totalidade orgânica de conceitos e proposições logicamente interconectados” (p. 10).  
Sugeriu, por exemplo, que a “primeira coisa que devemos descobrir é a estreita  
conexão entre a teoria econômica dos fisiocratas e sua visão geral de mundo,  
Verinotio  
14 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como ideologia  
especialmente sua filosofia social”, porque a última pode afetar esse sistema, trazendo  
“contrações lógicas” (p. 10) para dentro dele. Novamente, a ideologia (na forma de  
“filosofia social”) parece ser um elemento diferente do pensamento econômico como  
tal e sobre ele negativamente interferente.  
Sopesadas as decisivas e ramificadas diferenças entre os analistas aqui  
brevemente considerados, há um terreno comum entre eles. Vemos isso nas  
dificuldades relacionadas em tratar o pensamento econômico em si mesmo como uma  
forma científica de consciência, por um lado, e potencialmente como uma ideologia,  
por outro. Dobb e Rubin estavam mais perto de entender essa determinação histórico-  
objetiva, mas parecem ter trazido de volta pela janela aquilo que dispensaram pela  
porta. Em muitos aspectos, essas dificuldades prestam homenagem à noção de  
ideologia como algo inerentemente falso. Cria forçosamente espaço para a  
compreensão da ideologia como um fator externo, um engodo que leva ao malogro.  
O problema retorna, assim, ao antigo campo da teoria do conhecimento e seus flertes  
historicamente conhecidos com a crueza do formalismo e, de outro lado, com formas  
do relativismo. Esse campo, como já dito, não oferece o terreno apropriado para  
resolver a questão. A solução da questão está no critério prático antes referido, que  
permite determinar o pensamento econômico como forma de consciência científica  
com dupla tarefa (explicar e influenciar) que pode tornar-se ideologia em certas  
circunstâncias históricas. É esse critério prático que cabe avaliar nalguns materiais do  
próprio Marx na análise de exemplares do pensamento econômico.  
III.  
Já dissemos que os elementos do nosso assunto não receberam a atenção  
exclusiva por parte de Marx, mas também não estiveram fora de qualquer  
consideração. Pelo contrário. Há momentos de clareza solar sobre o tema.  
Nesse sentido, é consideravelmente repetido que, desde muito cedo, Marx  
admitia a possibilidade de conversão da “teoria” em “força material” (MARX, 2005, p.  
151). Há também a sua sugestão a respeito da economia política de Adam Smith que,  
como “produto da indústria moderna”, também atuou como força real que “acelera e  
enaltece a energia e o movimento dessa indústria” (MARX, 1974, p. 9). Igualmente  
conhecidas são as considerações a respeito das “ideias dominantes” e sua  
apresentação como interesse universal, tal como registraram as páginas de A ideologia  
alemã. Também são notórias as linhas de O 18 Brumário a respeito de como a  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024 | 15  
nova fase  
Elcemir Paço Cunha  
superestrutura flui inclusive sobre o indivíduo isolado por meio da tradição e da  
educação. São elementos conhecidos que especificam o lado ativo das ideias, exceto  
pela vulgata que combatemos.  
Tal como apareceu em o 18 Brumário, é preciso dizer que os fatores  
extraeconômicos representados, por exemplo, na figura da tradição, da educação,  
colocam em primeiro plano a potência das formas de consciência no contexto de luta  
social. Também n’O capital, tais fatores compareceram na indicação dessa potência no  
próprio processo histórico de forja da classe trabalhadora adequada à economia  
capitalista em desenvolvimento. Claramente é um processo que vai além do contexto  
inglês como caso clássico estudado com maior atenção por Marx e reforça a potência  
do aspecto extraeconômico que estamos destacando. No desdobrar do modo de  
produção capitalista, explicou Marx:  
Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como  
capital e no outro como pessoas que não têm nada para vender, a não  
ser sua força de trabalho. Tampouco basta obrigá-las a se venderem  
voluntariamente. No evolver da produção capitalista desenvolve-se  
uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito,  
reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais  
e evidentes por si mesmas. (MARX, 2013, p. 808)  
Não é algo menor. As formas de consciência fluem e alcançam classes inteiras,  
habituando-as, frise-se, tanto às exigências de um modo histórico de produção e  
circulação de mercadorias quanto aos requisitos de suas consequências cotidianas.  
Tais formas de pensamento produziram efeitos constatáveis na mistificação de um  
produto em si histórico, encarado, contrariamente, como “natural”. O critério prático  
está colocado em evidência precisamente na eficácia historicamente realizada em  
provocar o reconhecimento das exigências da economia capitalista evidentes em si  
mesmas. Estão envolvidos nisso grande profundidade e longo alcance de seus efeitos  
notadamente duradouros no desdobramento desse modo de produção. É tentador  
perguntar pela parte que jogou o pensamento econômico nesse mesmo processo  
histórico.  
Isso remete diretamente à tarefa histórica ou missão social de determinadas  
formações ideias. Marx escreveu em O capital que a economia política clássica,  
representada por Adam Smith e por David Ricardo, buscou apresentar o modo de  
produção capitalista como superior ao feudalismo. Abriu-se naquele contexto  
condições favoráveis ao exercício de cientificidade por meio da verificação da correção  
de seus teoremas. Desnecessário dizer que esse impulso de objetividade científica  
Verinotio  
16 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como ideologia  
coincidiu com o caráter dessa formação enquanto prolongamento ideal a partir da  
posição social da então ascendente burguesia industrial. Configurou-se assim a missão  
social de apresentar a “ordem capitalista como a forma última e absoluta da produção  
social, em vez de um estágio historicamente e transitório de desenvolvimento” (MARX,  
2013, p. 85).  
É muito difícil afirmar que essa missão social ou tarefa histórica tenha  
esmorecido no pensamento econômico dali em diante, sobretudo frente do decréscimo  
de potência científica ao longo do século XIX. A missão histórica e revolucionária no  
enfrentamento das reminiscências do feudalismo foi substituída pela pura defesa do  
capitalismo. O crescimento do conflito classista entre capital e trabalho produziu,  
assim, uma modificação importante no pensamento econômico. Marx (2013, p. 86)  
sugeriu que o “lugar da investigação desinteressada foi ocupado pelos espadachins a  
soldo, e a má consciência e as más intenções da apologética substituíram a  
investigação científica imparcial”. O pensamento econômico, ainda que cindido, não  
deixou de perseguir a tarefa histórica de convencer amplas cadeias de classes sociais  
de que a economia capitalista seria a última forma da produção social. Os meios desse  
convencimento variaram. Marx sublinhou alguns deles. Importa considerar apenas os  
mais focalizados: a “economia vulgar” e o “sincretismo”.  
Em termos muito gerais, a “economia vulgar” (tendo Bastiat como um de seus  
protagonistas) apresentou-se como pura apologia do capital, cujo esforço foi o de  
expurgar, concreta e teoricamente, as contradições por todos os malabarismos  
conhecidos e que não erguessem empecilhos à posição dos agentes práticos como  
personificações imediatas de interesses econômicos dominantes. Apresentando a  
economia capitalista como algo natural a ser defendido das críticas circulantes,  
trabalhou para bloquear a emergência das contradições materiais ao plano teórico,  
banindo-as “à força de charlas”, procurando “exorcizar as ideias que encerram as  
contradições” (MARX, 1980, p. 1.539). É praticamente impossível contrariar o fato de  
que, de muitas formas, essa posição foi e ainda é bastante efetiva no evitamento a que  
historicamente se dispôs. Nisso se vê o critério dos efeitos pretendidos e realizados.  
Continua hodierna a tarefa de impedir a conclusão de que os problemas  
epidermicamente identificados derivam das propriedades essenciais da economia  
capitalista.  
Algo semelhante pode ser afirmado sobre o “sincretismo”, tendo S. Mill como  
exemplar clássico. Marx explicou que:  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024 | 17  
nova fase  
Elcemir Paço Cunha  
A revolução continental de 1845-1849 repercutiu também na  
Inglaterra. Homens que ainda reivindicavam alguma relevância  
científica e que aspiravam ser algo mais do que meros sofistas e  
sicofantas das classes dominantes tentaram pôr a economia política  
do capital em sintonia com as exigências do proletariado, que não  
podiam mais ser ignoradas. Daí o surgimento de um sincretismo  
desprovido de espírito, cujo melhor representante é Stuart Mill.  
(MARX, 2013, p. 86)  
Uma vez que as contradições emergem incessantemente das mais básicas  
propriedades de uma produção generalizada de mercadorias, o tipo de resposta da  
posição social de J. S. Mill (incluindo suas aspirações pessoais) teve a missão de  
remediar as forças em conflito. Tratava-se de resposta peculiar aos conflitos  
decorrentes da própria essência da economia capitalista, mas de conflitos que  
aparentemente poderiam ser ao menos remediados. Teve lugar especial nesse  
esquema as “funções governamentais necessárias e optativas” (MILL, 1848/1996, p.  
369). O sincretismo foi muito além de Mill no século XX, incorporando diferenciados  
aspectos sem, contudo, modificar certo núcleo. Em parte, são admitidas as  
contradições da economia capitalista e seus efeitos mais óbvios ao mesmo tempo em  
que são focalizadas as medidas necessárias para harmonizar as forças postas em  
conflito. Surge um tipo de intervencionismo calculado que fará época, consagrando-se  
como administração macroeconômica no século seguinte. A tarefa histórica desse  
sincretismo que remonta a Mill é, como escreveu Marx (2013, p. 87), a “tentativa de  
conciliar o inconciliável”. Assim, as ameaçadoras contradições da economia capitalista  
são confrontadas a métodos diferentes e de eficácia e temporalidade variadas, com o  
fito de administrar essa economia, de conduzir os rumos da vida econômica da  
sociedade. Se bem-sucedidos ou não, jamais revelarão, pelo menos em suas  
pretensões, “na atual organização da sociedade [...] a razão das mazelas sociais”  
(MARX, 2010, p. 40), como disse o autor de Trier em outro lugar. De efeitos em geral  
notórios, essa posição procura convencer classes sociais e agrupamentos humanos de  
que as contradições dessa economia podem ser acomodadas, bastando, para isso,  
aperfeiçoar os métodos falhos de sua administração. Quão efetiva não é essa formação  
ideal em sua qualidade como ideologia também nos dias que correm? E é precisamente  
nisso que se avalia pelo critério prático o pensamento econômico como ideologia, por  
sua potência historicamente efetivada.  
Em variados momentos relativamente negligenciados pelos analistas, Marx  
também tematizou o lado ativo do pensamento econômico, como já sabemos, e que  
se mostra no impulso de direcionar as condutas humanas. Na cena pública, por  
Verinotio  
18 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como ideologia  
exemplo, em que se discutia a reação dos trabalhadores frente às circunstâncias  
salariais desfavoráveis, personalidades ligadas às classes econômicas dominantes  
defendiam haver consequências indesejáveis da “sindicalização”, sobretudo no caso  
inglês de meados do século XIX. Nesse contexto, Marx sublinhou que tais  
personalidades argumentavam, em jornais e pronunciamentos públicos, que a  
coligação operária criaria óbices à “marcha natural da indústria”, obrigando os  
trabalhadores a aceitarem salários ainda mais baixos. A reivindicação de salários mais  
altos seria, como insistiam esses intelectuais, um “esforço tão ridículo quanto  
perigoso”, de “revolta contra as leis eternas da economia política” (MARX, 1985a, p.  
157). Com isso, pretendiam atuar sobre o conflito então existente, dissuadindo a  
coligação pelo aumento dos salários. Sabemos pouco, é verdade, a respeito da  
realização dos efeitos pretendidos. De todo modo é um aspecto que reforça o critério  
prático na consideração do pensamento econômico como ideologia.  
A temática da renda reflete com muita clareza o conflito social acerca da  
produção e apropriação da riqueza. Salário, preço e lucro, de 1865, expressa muito  
bem isso. É material auxiliar na explicitação da aspiração das ideias econômicas diante  
da tarefa de conduzir as ações de classes sociais. Discutia-se, naquele ano, se os  
trabalhadores organizados deveriam ou não pleitear aumentos salariais em sua  
atuação política. Uma das teses defendia que o aumento dos salários provocaria subida  
dos preços dos produtos de primeira necessidade. Era uma tese frequentada por  
personalidades ligadas às classes dominantes. Isso não impediu que ecoasse no  
interior do movimento dos trabalhadores. O socialista Weston foi expressão disso,  
especificamente nos debates da Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores.  
Nesses tais debates, Marx colocou do púlpito que a tese difundida por Weston, do  
condicionamento dos preços dos produtos pelo nível dos salários, já contava com  
embates anteriores. Ricardo, disse Marx (1982), merece o “grande mérito de haver  
destruído até os fundamentos, com a sua obra sobre os Princípios da economia  
política, publicada em 1817, o velho erro, tão divulgado e gasto de que “os salários  
determinam os preços””. Explicou que se tratava de uma “falácia já rechaçada por  
Adam Smith e seus predecessores franceses na parte verdadeiramente científica de  
suas investigações, mas que, não obstante, eles reproduziram nos seus capítulos mais  
superficiais e de vulgarização” (p. 152). O caso concreto era que um aumento dos  
salários tinha impacto nas taxas de lucro e não nos níveis dos preços dos produtos de  
primeira necessidade eis a verdadeira expressão do conflito essencial ao fundo.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024 | 19  
nova fase  
Elcemir Paço Cunha  
Verdadeira ou falsa, a força daquela ideia econômica em direcionar a ação dos  
trabalhadores organizados, fica anunciada pelo alcance que obteve no seio da Primeira  
Internacional. Ainda que tenha alcançado efetividade muito relativa, como tudo indica,  
seu alcance não pode ser ignorado como evidência de sua tarefa em direcionar os  
conflitos por meio da condução das condutas humanas. Estamos, em essência, diante  
do critério prático que determina tais ideias como ideologia.  
Talvez em nenhum outro lugar dos materiais de Marx compareceu de maneira  
tão elucidativa o critério prático quanto naquele sobre o livre-comércio. Tratou-se de  
um tema no qual podemos identificar o critério aludido, mas de uma maneira peculiar  
pela qual ficam evidentes tanto os efeitos quanto o processo pelo qual um exemplar  
do pensamento econômico tornou-se ideologia. Nesse processo compareceram os  
agentes atuantes e suas alianças, além do papel da mediação política. Com efeito, Marx  
fez discurso a respeito das ideias livre-cambistas em 1848, na Associação Democrática  
de Bruxelas. Um argumento bastante difundido à época sugeria que as tarifas  
incidentes sobre a importação de cereais forçavam os salários para baixo. Marx  
colecionou as teses conflitantes. Registrou que a National Anti-corn-law League, de  
1838, financiou a publicação e publicização de textos que “mostrassem a influência  
salutar da abolição das leis sobre os cerais na agricultura inglesa” (MARX, 1985b, p.  
185). Foram concedidos prêmios a Arthur Morse, George Hope e W. R. Greg, cujos  
textos foram publicados em um único livro em 1842, com o título The Three Prize  
Essays on Agriculture and the Corn law (ANTI-CORN-LAW LEAGUE, 1842). Os textos  
receberam distribuição “nas zonas rurais em milhares de exemplares”, como assegurou  
Marx. As teses favoráveis ao livre-comércio alcançaram grande presença pública,  
contagiando o parlamento inglês, não sem a atuação de políticos como Bright e  
Bowning. Este último, “conferiu a todos estes argumentos uma consagração religiosa,  
exclamando numa reunião pública: ‘Jesus Cristo é o free-trade; o free-trade é Jesus  
Cristo’” (MARX, 1985b, p. 187).  
São muito bem conhecidos os efeitos desdobrados por meio da influência das  
ideias livre-cambistas no desenvolvimento do modo de produção capitalista. E o caso  
concreto anterior demonstra o papel dos agentes, tanto teóricos quanto práticos, na  
conversão da específica formação ideal em uma ideologia de amplas repercussões.  
Demonstra igualmente a dependência que as ideias econômicas apresentam em  
relação à mediação política para que sua efetividade tenha certo alcance mais global  
da vida econômica da sociedade.  
Verinotio  
20 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como ideologia  
*
* *  
As considerações apresentadas não poderiam de modo algum exaurir o  
problema. Mesmo porque há um conjunto de questões associadas (PAÇO CUNHA,  
2023). Nesse sentido, o objetivo não poderia ser outro senão o de sublinhar o critério  
prático na conversão do pensamento econômico em ideologia, dadas as tarefas  
históricas a que as expressões dessa forma de consciência científica vieram aspirar e  
eventualmente cumprir. Dito de modo direto, trata-se de extração de elemento  
essencial da estrutura própria dos materiais de Marx. Em seus próprios termos,  
reconhece as relações recíprocas entre estrutura econômica, superestrutura ideológica  
e as formas de consciência cuja mediação pela práxis verte uma na outra com  
resultados variados no movimento histórico-concreto. Nesse movimento comparece o  
lado ativo das ideias entre as quais localizam-se o pensamento econômico como forma  
de consciência científica que se transforma propriamente em ideologia em  
circunstâncias favoráveis a isso.  
Ao focalizar assim o problema da ideologia, de partida ao largo do campo da  
teoria do conhecimento, ilumina-se um aspecto pouco desenvolvido e que diz respeito  
ao processo objetivo por meio do qual ocorreu a conversão de certas ideias  
econômicas em ideologia. Foi algo entrevisto nas considerações anteriores sobre o  
livre-comércio principalmente. Temos clareza que o critério prático enquadra todos os  
exemplos anteriormente resumidos, mas a ênfase, como vimos, mais recaiu sobre o  
reconhecimento de seus efeitos potenciais, mesmo muito difíceis de serem ignorados  
no desdobramento histórico das missões sociais envolvidas, do que sobre o processo  
efetivo de sua realização (os agentes, as articulações etc.) tal como exige o rigor da  
demonstração. Mais uma vez, é preciso dizer que esse não era, de todo modo, o  
intento de Marx, ocupado sobretudo em desbravar a lógica essencial do movimento  
da economia capitalista. Não deixa de ser algo importante, apesar disso.  
É preciso admitir também que a tradição marxista comentada igualmente não  
dedicou atenção sobre esse aspecto do processo em particular. Rubin, Dobb e Lange,  
por exemplo, não deixaram de registrar a potência do pensamento econômico em  
influenciar a vida econômica da sociedade. Mas a despeito da vantagem do tempo  
histórico, que facultou a acumulação de muitos exemplares adicionais que obtiveram  
claros efeitos, os processos específicos desse movimento de conversão e eficácia  
parecem pouco explorados. Valemo-nos aqui de um outro exemplo importante, ainda  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024 | 21  
nova fase  
Elcemir Paço Cunha  
que paralelo, mas nesse exato sentido e com o propósito de reforçar a constatação. O  
processo histórico específico, em suas minudências, no qual desempenharam algum  
papel as “universidades, as conferências, os jornais e outros meios de difusão”  
(LUKÁCS, 2020, p. 77), papel este no movimento da filosofia reacionária na Alemanha  
imperialista e que auxiliou na preparação do terreno à elevação da atuação  
nazifascista, é algo a ser necessariamente aprofundado. Isso vale para as ideias  
econômicas referidas anteriormente e outras tantas que se aglutinam como  
pensamento econômico. Nossa conclusão principal, aportada com as iluminuras dos  
materiais aqui tratados, é que muito trabalho ainda há de ser feito nessa ceara com o  
fito de avançar sobre a trilha escarpada. E isso porque as minudências não são  
menores quando não se tem estrada real ao cume luminoso.  
Referências bibliográficas  
ANTI-CORN-LAW LEAGUE. The three prize essays on agriculture and the corn law. J.  
Gadsby, 1842. Disponível em:  
<https://archive.org/embed/threeprizeessays333hope>.  
BACKHOUSE, R. E. The puzzle of modern economics. Science or ideology? Cambridge:  
Cambridge University Press, 2010.  
CHASIN, J. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,  
2009.  
DOBB, M. Political economy and capitalism. George Routledge & Sons, 1937.  
DOBB, M. Teorias do valor e distribuição desde Adam Smith. São Paulo: Editorial  
Presença/Martins Fontes, 1977.  
FORTES, R. V. As novas vias da ontologia em György Lukács: as bases ontológicas do  
conhecimento. Saardbrüeken: Novas Edições Acadêmicas, 2013.  
LANGE, O. Note on ideology and tendencies in economic research. International Social  
Science, Unesco, v. XVI, n. 4, 1964.  
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social v. 2. São Paulo: Boitempo, 2013.  
LUKÁCS, G. A destruição da razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020.  
MARX, K. Glosas críticas ao artigo “’O rei da Prússia e a reforma social’. De um  
prussiano”. In: Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010.  
MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.  
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural,  
1974.  
MARX, K. Salário, preço e lucro. Os Economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1982.  
MARX, K. Miséria da filosofia. São Paulo: Global, 1985a.  
Marx, K. Discurso sobre o problema do livre·câmbio. In: Miséria da filosofia. São Paulo:  
Global, 1985b.  
MARX, K. Teorias da mais-valia: história crítica do pensamento econômico v. III. São  
Paulo: Civilização Brasileira, 1980.  
MARX, K. O capital v. 1. São Paulo: Boitempo, 2013.  
MEEK, R. L. Economics and ideology and other essays. London: Chapman and Hall,  
1967.  
MÉSZÁROS, I. The power of ideology. London: Zed Books, 2005.  
MILL, J. S. Princípios de economia política v. 2. Os Economistas. São Paulo: Nova  
Verinotio  
22 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento econômico como ideologia  
Cultural, 1996.  
PAÇO CUNHA, E. Problemas selecionados em determinação social do pensamento.  
VerinotioRevista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, v. 28, n. 1, pp. 123-46,  
2023.  
ROBINSON, J. Economic philosophy. Routledge, 2021.  
RUBIN, I. A history of economic thought. Ink Links, 1979.  
SCHUMPETER, J. A. History of economic analysis. Taylor & Francis, 2006.  
VAISMAN, E. A ideologia e sua determinação ontológica. Verinotio Revista on-line de  
Filosofia e Ciências Humanas, n. 12, ano VI, 2010. Disponível em:  
<https://verinotio.org/conteudo/0.49365995032122.pdf>.  
VAISMAN, E.; FORTES, R. V. Apresentação”. In: LUKÁCS, G. Prolegômenos para uma  
ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2010.  
Como citar:  
PAÇO CUNHA, Elcemir. O problema da eficácia das formações ideais: o pensamento  
econômico como ideologia. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 01-23; jul.-  
dez., 2024.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 01-23 jul.-dez., 2024 | 23  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.733  
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx:  
Materialismo, subjetividade e o debate com Hegel*  
180 Years of Marx’s 1844 Manuscripts: Materialism,  
subjectivity and the debate with Hegel  
Maurício Vieira Martins**  
Resumo: Em 2024, comemoram-se os 180 anos  
da redação dos Manuscritos econômico-  
filosóficos de 1844 de Marx. Diferentemente da  
escola althusseriana, a hipótese do presente  
artigo é que os Manuscritos - mesmo com seus  
limites apresentam vetores que elucidam certos  
traços filosóficos do pensamento de Marx. Com  
este intuito, foram destacados três aspectos do  
texto: a tomada de posição materialista por parte  
de Marx (que envolve uma crítica de fundo ao  
pensamento religioso); no âmbito desta posição,  
Abstract: This article revisits Marx’s Economic  
and Philosophic Manuscripts of 1844, marking  
its 180 years. Contrary to Althusserian  
interpretations, the article argues that the  
Manuscripts - despite their limitations present  
valuable  
insights  
that  
clarify  
certain  
philosophical traits of Marx's thought. With this  
aim, three key themes have been explored:  
Marx's adoption of a materialist position (which  
involves a fundamental critique of religious  
thought); within this position, the emergence of  
a subjectivity that is uniquely human (which  
a
emergência  
de  
uma  
subjetividade  
propriamente  
humana  
(que supera  
progressively  
surpasses  
its  
natural  
progressivamente sua determinação natural). E o  
debate com a filosofia de Hegel, debate  
necessário tendo em vista o surgimento de uma  
bibliografia contemporânea que parece não ter  
compreendido adequadamente a distância entre  
os dois pensadores. O artigo se encerra  
localizando em O capital algumas marcas (por  
certo complexificadas) da investigação realizada  
nos Manuscritos de 1844.  
determination); and the debate with Hegel's  
philosophy, arguing that a renewed debate is  
crucial in light of contemporary interpretations  
that seem not to have sufficiently understood  
the distance between the two thinkers. The  
article concludes by locating in Marx’s Capital  
echoes (certainly complexified) of the  
investigation presented in the Manuscripts of  
1844.  
Palavras-chave: Marx; Manuscritos econômico-  
filosóficos de 1844; materialismo; subjetividade;  
Hegel.  
Keywords:  
Economic  
and  
philosophic  
manuscripts of 1844; Marx; materialism;  
subjectivity; Hegel.  
Em 1806, Ludwig van Beethoven concluiu a composição dos três quartetos de  
cordas do opus 59 de sua obra, que ficaram conhecidos como os quartetos  
Razumovsky. Seus estudiosos relatam que os músicos profissionais encarregados da  
primeira execução destas peças tiveram grande dificuldade na apreensão de sua  
*
Este artigo absorve e atualiza a reflexão desenvolvida pelo autor no capítulo 6 de seu livro Marx,  
Espinosa e Darwin: pensadores da imanência (MARTINS, 2017). Contudo, a seção inicial, a final, bem  
como a dedicada a Hegel do presente artigo são inteiramente novas. As demais passaram por um  
processo de atualização e revisão.  
**  
Doutor em Filosofia. Professor aposentado do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da  
Universidade Federal Fluminense. Membro em atividade do Niep-Marx/UFF.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
sonoridade: conversando entre si, supunham inicialmente que, ao invés de tratar-se da  
realização da encomenda comissionada pelo conde Andreas Razumovsky ao  
compositor, estavam apenas diante de um jogo musical aleatório feito por ele (o que  
aliás provocou uma das conhecidas explosões de raiva de Beethoven)1. Contudo, no  
nosso século XXI, os quartetos Razumovski ocupam um lugar privilegiado entre os  
píncaros da produção musical do Ocidente: marcam uma revolução sobre a estrutura  
clássica dos quartetos de cordas, elaborada por músicos da estatura de Haydn e  
Mozart2.  
Pouco menos de 40 anos depois do episódio envolvendo Beethoven e a  
execução de seus quartetos, Marx redigiu o texto que veio a ser conhecido como os  
Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 (doravante referido apenas como  
Manuscritos de 44). Aqui, pouco importa saber se Marx tinha ou não conhecimento do  
referido episódio: interessa é frisar que nos Manuscritos de 44 encontram-se vários  
elementos para o que se costuma hoje nomear como uma teoria da subjetividade. Com  
efeito, é ali que podemos ler que “A formação dos cinco sentidos é um trabalho de  
toda a história do mundo até aqui.” Razão pela qual, prossegue o texto, “para o ouvido  
não musical a mais bela música não tem nenhum sentido” (MARX, 2004, p. 110). As  
considerações de Marx procuram colocar em evidência que, uma vez constituído, o  
aparato sensorial humano (“ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber,  
querer, ser ativo, amar”, nos termos do texto [MARX, 2004, p. 108]) intervém  
ininterruptamente sobre a realidade. Contra os que enxergavam neste aparato apenas  
um legado da natureza (sem dúvida sua base incontornável), Marx evidencia o sentido  
ativo que está nele presente, decerto em profunda interação com um mundo objetivo  
progressivamente alterado. Destarte, se levarmos em conta que por volta de 1806 a  
surdez de Beethoven já avançava e motivava grande angústia no compositor,  
precisaremos concordar com Marx que, mais do que fazer apenas uma reprodução do  
mundo circundante, nossos sentidos dispõem também de uma atividade própria,  
remanejam material adquirido previamente na história dos sujeitos: não apenas  
reproduzem a realidade, mas criam sobre ela.  
1 O relato mais minudente deste episódio pode ser encontrado em: GREENBERG, Robert. Music History  
Monday: M’Lord Falstaff. 2020. Disponível em: <https://robertgreenbergmusic.com/music-history-  
monday-mlord-falstaff/>.  
2 Vale dizer que a execução dos quartetos de cordas mais tardios de Beethoven, compostos em 1825  
e 1826 (também conhecidos como os quartetos Galitzin), é ainda mais complexa, demandando grande  
concentração de seus músicos e ouvintes. Neles, o compositor prossegue em sua exploração dos confins  
de uma subjetividade musical.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 25  
nova fase  
   
Maurício Vieira Martins  
Por uma dessas injunções curiosas que por vezes ocorrem na história do  
pensamento, esse texto em que Marx desenvolve uma concepção da subjetividade  
humana é também onde ele afirma o primado da objetividade que não deve ser  
confundido como um objetivismo, conforme veremos adiante , entendido como o  
primado das condições objetivas, que antecedem e moldam nossa entrada nas relações  
mundanas. Cabe então investigar mais de perto o denso entrelaçado entre categorias  
objetivas e subjetivas que os Manuscritos de 1844 apresentam. No nosso 2024,  
completados 180 anos da escrita do texto, vale revisitá-lo, num esforço de evidenciar  
suas aquisições mas, adiantemos desde já, também os seus limites.  
Quem conhece o debate marxista sabe que esta retomada dos Manuscritos de  
44 não é uma tarefa fácil: desde sua publicação tardia ocorrida apenas em 1932,  
anos após a morte de Marx o texto provocou os mais ásperos debates entre seus  
leitores. De início, eles foram saudados como uma reflexão que mostrava um Marx bem  
diferente daquele já conhecido, pois mais preocupado com questões fortemente  
filosóficas e humanistas. Pensemos em Herbert Marcuse, que já num ensaio da década  
de 1930 elogiou o texto de modo superlativo, por conseguido colocar “toda a teoria  
do ‘socialismo científico’ numa nova base” (MARCUSE, 1972, p. 3).  
Mas ao longo do século XX esta avaliação positiva foi se transformando, sendo  
o exemplo mais famoso desta mudança o juízo emitido por L. Althusser e pelos  
intelectuais reunidos ao seu redor. Para eles, os Manuscritos de 44 padeciam de males  
irremediáveis: texto pré-científico, comprometido com um humanismo burguês, a ser  
definitivamente superado na maturidade de Marx (ALTHUSSER, 2005, pp. 220-41).  
Entretanto, note-se que o próprio Althusser, a rigor, nem sempre observou suas teses  
referentes à periodização da história da ciência quando analisou a obra de outros  
autores. Apenas como exemplo, o filósofo francês valorizava positivamente o  
pensamento de Espinosa que viveu no século XVII , o que em termos estritos  
contradizia as afirmações dos textos althusserianos referentes à instauração de uma  
racionalidade propriamente científica apenas em meados do século XIX (sendo a  
produção anterior condenada em bloco como pré-científica e ideológica). Restaria  
indagar-nos por que razão Althusser não lançou mão desta concepção mais matizada  
do pensamento a que nos parece mais interessante ao analisar os textos do jovem  
Marx.  
No presente artigo, a opção adotada foi a de pesquisar a vertente mais  
produtiva dos Manuscritos de 44. Seus limites serão devidamente mencionados, mas  
Verinotio  
26 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
a hipótese adotada foi a de que o texto apresenta um excesso de significação,  
propriedade de uma obra densa, que apresenta uma estratificação categorial em seu  
interior, sendo possível uma apropriação e um trabalho sobre algumas de suas  
categorias, mesmo não endossando sua totalidade. A ênfase aqui recairá em três  
tópicos distintos, mas a nosso ver interligados: a tomada de posição materialista por  
parte de Marx (que envolve uma crítica explícita ao pensamento religioso); no âmbito  
desta tomada, a constituição de uma subjetividade propriamente humana (que supera  
progressivamente sua determinação natural) e, finalmente, o debate com aspectos da  
filosofia de Hegel, tendo em vista tanto a posição materialista como a formação da  
subjetividade.  
Ao final do artigo, serão apresentadas algumas marcas dos Manuscritos de  
1844 nos textos da maturidade de Marx. O intuito será demonstrar que a reflexão de  
sua juventude embora não só enriquecida como alterada ao longo da vida do autor  
conseguiu deixar traços visíveis também na economia política marxiana.  
A crítica ao pensamento religioso  
Tendo em vista estes objetivos, iniciemos abordando brevemente um texto  
anterior aos Manuscritos de 44, a Introduçãoà Crítica da filosofia do direito de Hegel,  
de 1843. Nela, Marx escreve que “a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica”  
(MARX, 1977, p. 1). Afirmação forte, que deve ser assumida em toda sua extensão: o  
pensamento religioso é o principal obstáculo a uma tomada de posição materialista,  
tendo em vista sua afirmação da existência de um Deus, que criou o homem à sua  
imagem e semelhança, com as várias consequências teóricas e práticas que um  
pressuposto desta ordem acarreta.  
O texto prossegue registrando os avanços então obtidos pela crítica da religião  
(que havia encontrado na Alemanha da época um representante de destaque em L.  
Feuerbach):  
O homem, que na realidade fantástica do céu, onde procurava um  
super-homem, encontrou apenas o reflexo de si mesmojá não estará  
inclinado a encontrar somente a aparência de si mesmo, o não-  
homem, onde procura e deve procurar a sua verdadeira realidade.  
(MARX, 1977, p. 1)  
Seguindo rota oposta a do senso comum, Marx sustenta que o super-homem  
afirmado pela religião é na verdade o reflexo ampliado de características humanas. Tal  
é o procedimento antropomórfico recorrente no pensamento religioso, que atribui uma  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 27  
nova fase  
Maurício Vieira Martins  
forma humana reconhecível àquilo que na verdade desconhece e provoca temor na  
vida cotidiana. O resultado final desta projeção antropomórfica será a afirmação de um  
Deus que habita nos céus, e que passa a governar imaginariamente a vida humana. O  
texto marxiano de 1843 impressionou seus leitores ao formular a religião como “o  
ópio do povo”, imagem sem dúvida forte, apontando para o anestesiamento  
provocado por ela diante de uma realidade hostil e difícil de ser suportada3. Menos  
comentada, porém, é a referência do texto ao “espírito da situação sem espírito”  
(MARX, 1977, p. 2) [der Geist geistloser Zustände], metáfora particularmente nítida ao  
designar a contraditoriedade complementar existente entre o mundo real e uma  
religião agora esvaziada de sentido.  
Marx lembra também que o homem4 não é um ser abstrato, na verdade ele é  
“o mundo dos homens”. Tal qualificação é decisiva: ela indica o distanciamento de uma  
concepção atemporal de essência humana, direcionando a análise para as  
características do mundo terreno responsáveis pelas projeções antropomórficas  
cotidianas. A “crítica do céu” deve se transformar em “crítica da terra” (MARX, 1977,  
p. 2), crítica do direito e da política; será preciso então ultrapassar o recinto do  
discurso religioso para buscar o solo mundano onde ele lança raízes. Não por acaso,  
a sequência da Introduçãopassa a fazer uma análise ainda que com os limites  
conceituais deste texto da juventude de Marx das diferentes classes e frações de  
classe existentes na Alemanha naquele momento.  
Já estas breves indicações evidenciam que a investigação de Marx, mesmo em  
1843, apesar de iniciar-se invocando algumas aquisições da crítica religiosa  
feuerbachiana, finda por apontar para um rumo algo distinto daquele trilhado por  
Feuerbach (pensador que lhe permitiu, num momento inicial de sua formação, formular  
3
Mas Marx certamente não foi o primeiro a associar a religião a um anestésico opiáceo. Dentre os  
pesquisadores que rastrearam os antecedentes desta associação, Michael Löwy aponta para os textos  
de, pelo menos, Heinrich Heine, Moses Hess e Ludwig Feuerbach (LÖWY, 2007, pp. 299-300).  
4 Acompanhando a terminologia marxiana de 1843-1844, a expressão o homem é usada aqui sem uma  
qualificação mais explícita. Já em A ideologia alemã, no âmbito da polêmica com Feuerbach, podemos  
ler: “ele [Feuerbach] diz ‘o homem’ em vez de os ‘homens históricos reais’” (MARX; ENGELS, 2007, p.  
30). Trata-se de um claro esforço para melhor circunscrever uma singularidade histórica: a generalidade  
‘o homem’ foi questionada, rumo às suas determinações temporais e sociais. Por outro lado, é uma  
conquista inegável do movimento feminista reivindicar, com toda a justiça, uma maior precisão dessa  
designação, convocando-nos a invocar homens e mulheres históricos e reais (bem como aqueles que  
não se reconhecem numa sexualidade binária). Se neste artigo a terminologia de Marx foi mantida, tal  
ocorreu pela razão evidente de que não nos cabia modificar a escrita de um texto produzido num outro  
momento histórico. Dito isso, talvez não seja excessivo lembrar que Eleanor Marx, filha de Marx, foi uma  
das muitas intelectuais e ativistas que aliaram produtivamente marxismo e feminismo (ao invés de vê-  
los como conflitantes).  
Verinotio  
28 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
uma primeira crítica a Hegel). Sintetizando um longo trajeto, é correto afirmar que,  
embora mantendo o núcleo mais produtivo da categoria feuerbachiana do  
estranhamento religioso duplicação do homem numa projeção antropomórfica, Deus,  
que passa a dominá-lo , Marx progressivamente se afasta do naturalismo de  
Feuerbach, que concebe o homem demasiadamente imerso em sua fundação natural.  
É o que nos dirá, em 1845, a I Tese ad Feuerbach: “o principal defeito de todo o  
materialismo é que “o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, só é apreendido  
sob a forma do objeto [Objekt] ou da contemplação, mas não como atividade humana  
sensível, como prática; não subjetivamente”5. Em outras palavras, Marx nos convida a  
captar a dimensão ativa e subjetiva que existe no objeto, por mais que isso contrarie  
a imagem vulgarizada que posteriormente se formou de seu pensamento.  
Nos Manuscritos de 44, a necessidade da crítica religiosa é retomada. Momento  
relevante da argumentação é quando o texto se indaga pelas razões da prolongada  
permanência das representações religiosas em boa parte da população. Sua resposta  
aponta para a alienação mundana em que ela está mergulhada: “Um homem que vive  
dos favores de outro se considera como um ser dependente” (MARX, 2004, p. 113).  
O pano de fundo onde o discurso religioso exerce seu apelo encontra-se entrelaçado  
com as relações de trabalho do cotidiano, marcadas pelo estranhamento e pela  
hostilidade. Dito de outro modo: o estranhamento religioso encontra raízes no  
estranhamento vigente na própria sociedade civil.  
A criação é, portanto, uma representação [Vorstellung] muito difícil de  
ser eliminada da consciência do povo. O ser-por-si-mesmo  
[Durchsichselbstsein] da natureza e do homem é inconcebível para ele  
porque contradiz todas as palpabilidades da vida prática. (MARX,  
2004, p. 113)  
As palpabilidades da vida prática, longe de oferecerem uma experiência de  
autonomia para homens e mulheres, são o retrato vivo de uma heteronomia: perda do  
sentido de autoria da própria vida, que surge como um joguete movido por forças  
impessoais. Nesta última citação, Marx defende o ser-por-si-mesmo da natureza e do  
homem; uma concepção não intuitiva da realidade, que a enxerga em sua imanência  
própria. Este ser-por-si-mesmo envolve uma ruptura com a doutrina da criação  
5
As Teses ad Feuerbach marcam uma mudança na postura de Marx diante de Feuerbach, autor  
explicitamente criticado nelas. Pois antes disso, em sua maior parte, as referências ao autor de A  
essência do cristianismo eram elogiosas. Contudo, a pesquisa textual nos escritos marxianos mesmo de  
1843 e 1844 já evidencia núcleos temáticos no mínimo ausentes em Feuerbach. (MARX; ENGELS, 2007,  
p. 533)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 29  
nova fase  
 
Maurício Vieira Martins  
religiosa, que mesmo um pensador da estatura de Hegel como veremos mais adiante  
abraçava sem hesitação. Para se contrapor a esta doutrina criacionista, o passo  
seguinte do texto invoca uma categoria oriunda das ciências da vida da época, que é  
hoje manifestamente equivocada, a generatio aequivoca: “A generatio aequivoca  
[geração espontânea] é a única refutação prática da teoria da criação.” (MARX, 2004,  
p. 113)  
Conforme é sabido, a geração espontânea supunha ser possível o surgimento  
de seres orgânicos a partir de inorgânicos. Foram apenas os experimentos de Louis  
Pasteur, num momento mais avançado do século XIX, que conseguiram infirmar a  
aceitação desta hipótese. Para quem se indaga sobre o motivo da invocação, por parte  
de Marx, de uma categoria da biologia, há que se ter em conta que, mesmo com seus  
equívocos, a geração espontânea era uma resposta disponível na época para aqueles  
que se opunham ao criacionismo religioso. Na década de 1840, embora alguns  
precursores proeminentes como Lamarck e Geoffroy Saint Hilaire já houvessem  
fornecido indicações preciosas, ainda não estava disponível a teoria da evolução das  
espécies publicada por Darwin em 1859 (e recepcionada positivamente, de um modo  
geral, por Marx6). Esta lacuna do conhecimento da década de 1840 gerava uma  
situação difícil para todos aqueles que detectavam os flagrantes equívocos da doutrina  
criacionista: a dificuldade em apresentar uma teoria afirmativa, que contrastasse os  
postulados religiosos do criacionismo. Sintomaticamente, em seus Manuscritos de 44,  
embora invoque a geração espontânea para contrapor-se à teologia, Marx na  
sequência do texto se interdita o prosseguimento de uma pesquisa sobre a origem do  
homem, afirmando que a própria pergunta é “um produto da abstração” (MARX, 2004,  
p. 114). Foi apenas em 1859, com a publicação darwiniana de A origem das espécies  
e, mais ainda, em 1871, com A descendência do homem que o milenar criacionismo  
teve sua ontologia religiosa consistentemente demolida em bases científicas.  
Feito este percurso, seria possível concluir que hoje, no nosso século XXI, falar  
na imanência da espécie humana ao cosmos seria apenas uma trivial obviedade para  
os pesquisadores e pesquisadoras com uma formação materialista? A resposta é  
negativa, e os exemplos são vários. Dentre os mais famosos, podemos citar o teólogo  
Roland Boer, vencedor do Deutscher Prize de 2014 (considerado o mais importante  
6
Abordei o tema da recepção de Marx da teoria darwiniana seu elogio a ela, mas também suas  
restrições em meu livro Marx, Espinosa e Darwin: pensadores da imanência (MARTINS, 2017, pp. 243-  
58).  
Verinotio  
30 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
prêmio na área teoria marxista), que em seus livros busca aproximar o marxismo da  
teologia (BOER, 2013). Mereceria um comentário à parte o fato do júri do Deutscher  
Prize optar por premiar, dentre a volumosa bibliografia marxista produzida  
internacionalmente a cada ano, precisamente a obra de um teólogo. Já na América  
Latina, temos nomes como o de Enrique Dussel, uma das referências da Teologia da  
Libertação (DUSSEL, 1999), e filósofo com várias obras publicadas também sobre  
Marx. Entretanto, apenas estas considerações iniciais do presente artigo já evidenciam  
que tal aproximação do marxismo com a teologia é francamente equivocada: ela não  
encontra amparo nos textos do próprio Marx. Ultrapassando o contexto histórico  
alemão em que foi produzida, a crítica marxiana à religião tem uma espessura filosófica  
incontornável: há questões ontológicas de fundo na afirmação marxiana da  
antecedência do ser material sobre as categorias ideais. É uma incompreensão do seu  
pensamento promover um amálgama entre filosofia e teologia que os textos de Marx  
explicitamente recusam.  
A tomada de posição materialista  
Estabelecida a distância de Marx em face da concepção religiosa, cabe abordar  
de modo mais explícito no que consiste sua posição materialista. Como já mencionado  
anteriormente, os Manuscritos de 44 texto que desenvolve elementos fecundos para  
uma antropologia e para uma teoria da subjetividade é também onde se afirma o  
primado da objetividade, conjunto de circunstâncias que nos antecedem e que  
determinam um espaço para a ação subjetiva. Este ponto historicamente deu margem  
a vários mal entendidos. De imediato, cabe esclarecer que tal primado em nada se  
assemelha a objetivismo, no pior sentido da categoria, aquele esvazia as capacidades  
humanas, transformando os sujeitos em receptáculos passivos de determinações  
oriundas de uma exterioridade monolítica. Nada mais distante do intento de Marx. Na  
verdade, a antropologia marxiana sua concepção peculiar do humano inscreve-se  
numa perspectiva mais geral que merece ser aqui previamente explicitada: o  
aprofundamento do estudo dos Manuscritos evidencia que é mesmo uma ontologia que  
está sendo ali afirmada. Em vários momentos do texto, o leitor se depara com  
proposições formuladas num nível alto de abstração e generalidade, proposições que  
têm a pretensão de referir-se não apenas ao ente humano, mas ao ser em geral7.  
7
O leitor observará que estamos nos referindo aos conceitos de ser e ente como denominações  
alternativas, a serem especificadas de acordo com o contexto em que são utilizadas. No século XX, é  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 31  
nova fase  
 
Maurício Vieira Martins  
Não sendo nosso intento enveredar pela ontologia marxiana tarefa que  
demandaria um inteiro livro forneceremos sobre ela algumas indicações que balizam  
um campo de debate. Foi György Lukács quem apontou para uma passagem de fun-  
damental importância a este respeito, aquela em que Marx afirma que um ser não-  
objetivo é um não-ser(LUKÁCS, 2012, p. 303). Antes de examinarmos a passagem no  
interior do próprio texto marxiano, sublinhemos que ela é desconcertante quando se  
tem em conta que boa parte da tradição filosófica anterior operava no sentido oposto de  
desvencilhar o ser do domínio da objetividade. Para tal tradição não seria o mundo  
objetivo, sensorial, o local mais apropriado para se perquirir as características do ser:  
aparência fugaz, domínio do mutável e do contingente, a sensorialidade deveria ser  
ultrapassada pela interpretação filosófica. Só através de uma elaboração que  
intencionalmente se punha como finalidade superar aquilo que o mundo objetivo nos  
apresenta é que seria possível ascender à região mais elevada do ser; eis a tarefa  
primordial da metafisica, essa modalidade de especulação que em sua própria etimologia  
traz as marcas de uma preocupação em ultrapassar a physis.  
Entretanto, nos diz Marx, “Um ser não-objetivo é um não-ser”8 (MARX, 2004, p.  
127), enunciado que afirma com decisão a firme tessitura em que todos os entes estão  
intimamente entrelaçados. Os exemplos desta tessitura são os mais abrangentes, como  
se pode ver a seguir: “O sol é o objeto da planta, um objeto para ela imprescindível,  
confirmador de sua vida, assim como a planta é objeto do sol, enquanto externação  
da força evocadora de vida do sol, da força essencial objetiva do sol.(MARX, 2004,  
p. 127)  
Sol e planta, homem e natureza; os seres estão imersos numa tessitura movente.  
Contra aqueles que enxergam na realidade apenas uma pulverização, uma fragmentação  
aleatória, Marx aponta para as relações fundantes em que os múltiplos seres estão  
postos. Daí a ênfase que o texto atribui a ter objetos fora de si mesmo e ser “objeto para  
um terceiro” como condições basilares para a emergência de qualquer ser. É uma trama  
de relações ontológicas que vai se tornando visível para quem se dispõe a investigar as  
conexões de alteridade nas quais se entrelaça um ente. Este é o pano de fundo em que  
bem conhecida a crítica de M. Heidegger à equiparação dos dois conceitos, que segundo ele  
caracterizaria um esquecimento do ser. Por sua vez, G. Lukács polemiza explicitamente com o que  
pareceu-lhe ser uma partição categorial excludente entre ser e ente feita por Heidegger: o filósofo  
húngaro sustenta que há trânsito, interpenetração, entre os entes e o ser mais geral que os constitui  
(LUKÁCS, 2012, pp. 82-100).  
8 “Ein ungegenständliches Wesen ist ein Unwesen” (MARX, 1968, p. 578).  
Verinotio  
32 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
se desenha a crítica àqueles que acreditam ser possível a vigência de um ser não objetivo:  
Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é nenhum ser  
natural, não toma parte na essência da natureza. Um ser que não tenha  
nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo. Um ser que não  
seja ele mesmo objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser para  
seu objeto, isto é, não se comporta objetivamente, seu ser não é  
nenhum [ser] objetivo. Um ser não-objetivo é um não-ser. [...] Mas um  
ser não objetivo é um ser não efetivo, não sensível, apenas pensado,  
isto é, apenas imaginado, um ser da abstração. (MARX, 2004, pp.  
127-8)  
Quando se desconhece tais considerações, quando implicitamente se acredita,  
por exemplo, que os sucessivos processos de abstração levados a cabo pelo  
pensamento podem engendrar entes reais, incorre-se numa metafísica que confunde a  
atividade do pensamento com a gênese do mundo real. Como se pode observar na  
última passagem citada, neste momento de sua obra Marx alimenta uma desconfiança  
em relação aos seres não-sensíveis, nomeando-os em contexto algo pejorativo como ser  
da abstração. Isso faz pensar que estamos diante de uma ontologia que associa o  
domínio da objetividade ao da sensorialidade9; um ser objetivo é também um ser  
sensorial, que manifesta sua presença no mundo real.  
Poderíamos acusar esta concepção de estar ainda sob a influência de Feuerbach,  
tendo em vista que ela acaba por tacitamente equiparar os seres não-sensíveis ao status  
de não-seres. Mais do que isso: poderíamos também legitimamente lembrar que o  
próprio Marx, anos mais tarde, vai empreender uma construção teórica que torna visível  
um ente que não tem características sensoriais, o mais-valor, que só pode ser  
determinado mediante um procedimento teórico que, com o auxílio de abstrações,  
compara grandezas heterogêneas. Quando tais questões são levantadas, torna-se  
transparente que existiram aquisições categoriais obtidas por Marx apenas num  
momento mais avançado de seu trajeto, particularmente a partir das décadas de 1850  
e 1860.  
Contudo, neste momento da presente exposição, talvez seja mais produtivo  
examinar o conteúdo polêmico existente na formulação de 1844. É um certo conceito  
de essência [wesen10] que Marx está interessado em questionar. Pois aquela ontologia  
9 A partir da palavra sinn (sentido), Marx compõe vários derivados, como Sinnlichkeit (“sensorialidade”),  
ou ainda “sinnliche, konkrete Tätigkeit” (“atividade sensorial e concreta”). Aqui, a opção foi traduzir  
Sinnlichkeit preferencialmente por “sensorialidade”. Alternativamente, seria possível optar por  
“sensibilidade”, ou “sensualidade”, palavras que carregam na língua portuguesa, contudo, ressonâncias  
algo distintas do debate em tela. Em tempo: as notas 11, 14, 15, 18 e 31 deste artigo também  
explicitam algumas opções de tradução aqui adotadas.  
10  
A depender do contexto filosófico, a palavra alemã wesen admite a tradução por essência, mas  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 33  
nova fase  
   
Maurício Vieira Martins  
que define o ente a partir de sua essência (entendida como coisa sua, determinação  
inalienável, que preexiste à existência) acaba supondo que ele prescinde de relações  
objetivas sensíveis, sustenta-se a si mesmo em sua essência, donde as características de  
perenidade e atemporalidade que lhe eram associadas. E não é apenas o platonismo o  
destinatário desta crítica; mesmo na Alemanha no século XIX era possível identificar  
elaborações teóricas de maior ou menor sofisticação que afirmavam um ser que habita  
apenas no “céu brumoso da fantasia filosófica11, desde o Único de Max Stirner,  
chegando até ao Eu autônomo. Temos então aqui uma primeira indicação de que, já na  
ontologia marxiana, encontram-se prefigurados os traços que repercutirão no  
entendimento do sujeito humano; a ênfase em seu caráter relacional desde a sua gênese,  
a recusa, portanto, em pensá-lo como realidade autocontida.  
Esta crítica a um determinado conceito de essência nos obriga a fazer um  
esclarecimento terminológico, tendo em vista que os Manuscritos de 44 utilizam  
largamente tal categoria: o texto faz alusão às “forças essenciais humanas”, à “essência  
humana”, à “essência humana efetiva” etc. Se, por um lado, este uso cria problemas para  
a afirmação de que ali se veicula uma crítica a uma concepção essencialista do ser, por  
outro lado, é preciso ter em vista que é sempre melhor determinar o sentido de uma  
categoria no interior da argumentação em que ela se insere (ao invés de adotar  
aprioristicamente seu sentido clássico). A este respeito, vale citar a oportuna observação  
de István Mészáros: “Marx rejeitou categoricamente a ideia de uma ‘essência humana’.  
Mas manteve o termo, transformando seu sentido original tornando-o irreconhecível”  
(MÉSZÁROS, 1986, pp. 13-4).  
Isso significa que em Marx a categoria essência (que de fato comparece inúmeras  
vezes nos Manuscritos) tem um sentido bem distinto daquele formulado pela filosofia  
clássica. Pois o que dizer de uma essência que se transforma, ou, em alguns casos, se  
constitui ao longo da história? O que dizer de uma essência que depende  
estruturalmente das relações objetivas em que está posta (o que implica que uma  
modificação de tais relações acarreta uma modificação da própria essência)? O que dizer  
de uma essência que tem sua “natureza fora de si”? E estas são algumas das  
características do ser (ou da essência, como visto anteriormente) que os Manuscritos  
nos apresentam. Não se tratando pois de uma realidade autocontida, o ser se objetiva,  
se exterioriza nas relações que o confirmam.  
também por ser. Este ponto será retomado mais adiante.  
11 Esta formulação é de um texto posterior, o Manifesto comunista (MARX; ENGELS, 2010, p. 63).  
Verinotio  
34 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
Entretanto, estas relações não são dadas, de forma alguma, de uma vez por  
todas; elas se transformam ao longo do tempo. Chegamos aqui a uma segunda  
característica nodal da ontologia de 1844: o mundo do ser, o mundo da objetividade,  
é formulado como processo, como fluxo que altera incessantemente sua malha  
constitutiva. É dessa transformação que o basilar conceito de atividade [Tätigkeit] dá  
conta.  
Nunca é demais frisar que a atividade é afirmada como o processo que caracteriza  
o ser vivo: “O que é vida senão atividade” (MARX, 2004, p. 83). Na trilha de um  
pensamento que sem dúvida tem raízes longínquas, ao se debruçar sobre o mundo  
objetivo, Marx acentua o caráter processual ali se fazendo. O ser é fluxo, atividade,  
transformação incessante que reflexiona seus pressupostos. Sua objetividade em nada  
se assemelha à da estrutura de um cristal: também a coisa é processo, ancestral vir-a-  
ser da efetividade. Porém, a partir da emergência da espécie humana, transformações  
reais e categoriais marcarão em profundidade o planeta. Já não estamos mais lidando  
com uma natureza originária; e nem são apenas as sucessivas transformações sofridas  
por ela o que aqui nos interessa prioritariamente. Pois este ser que a experiência hoje  
nos apresenta e no qual estamos imersos, este mutante conjunto de relações entre entes  
desiguais porém interdependentes, há muito se distanciou daquilo que coube  
originariamente como natureza à humanidade. E, conjuntamente à ação dos próprios  
fenômenos naturais, entrelaçou-se a decisiva presença do homem como coautor do  
referido distanciamento.  
Este é o momento adequado para ingressar na antropologia marxiana,  
estabelecida a sua necessária relação com a ontologia abrangente. O homem é  
concebido por Marx como um conjunto de capacidades, de aspirações, de necessidades  
e, talvez mais do que tudo, de “forças essenciais humanas” (MARX, 2004, p. 110),  
capacidades que só se desenvolvem mediante uma interação com os objetos do mundo  
sensível. “Objetos” no sentido mais geral do termo, no sentido de tudo o que está fora  
do eu, definição que certamente abrange não apenas os utensílios de forma  
determinada, mas também todo o perímetro da realidade, aí incluídos os outros homens  
e a própria natureza.  
O homem é formulado por Marx, num primeiro momento, como parte da natureza  
(MARX, 2004, p. 84) o que explica as referências que os Manuscritos fazem a ele como  
um ser natural. Mas ocorre que este ser posto pela natureza tem a peculiar capacidade  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 35  
nova fase  
Maurício Vieira Martins  
de interagir sobre ela e modificá-la. Estamos diante de uma singular automediação12: a  
natureza, através do homem (produto seu) interage sobre si mesma, passando por  
sucessivas modificações. Ali onde havia, inicialmente, apenas um mesmo, vai lentamente  
emergir uma diferença, uma separação entre objetividade e subjetividade (subjetividade:  
aquilo que cabe ao homem e à sua ação, uma “determinação do sujeito”, em sentido  
preciso). E o homem, agora parte distinta da natureza originária, não para de se  
automediar. Ele simultaneamente transforma a natureza (e é transformado por ela), a si  
mesmo e a seus semelhantes. A atualização contínua deste mediador de primeira ordem,  
a atividade - que medeia a relação entre sujeito e objeto provoca alterações radicais  
na “essência” da natureza e do homem. É uma história em aberto que vai se fazendo.  
Falar na relação entre sujeito e objeto, em nossa época de predomínio das  
abordagens epistemológicas sobre as ontológicas, pode ter algumas ressonâncias que  
estariam aqui deslocadas. Clarificando: não é do sujeito epistêmico que se está  
tratando neste momento, e nem é primordialmente o ato do conhecimento que está  
sob análise. Deve-se entender a afirmação anterior de que a atividade medeia a relação  
entre sujeito e objeto no seu sentido mais geral, que diz respeito a um sujeito  
produtivo na verdade, um agrupamento humano que, tomando a natureza como  
objeto de sua atividade, transforma-a incessantemente. É claro que esta mediação vital,  
produtiva, tem também repercussões cognitivas: os homens adquirem conhecimento  
na medida em que interagem com a objetividade. Mas separar o ato do conhecimento  
da situação histórica onde ele se enraíza é um procedimento alheio à ontologia  
marxiana e, mais do que isso, por ela criticado. Basta lembrar um passo da polêmica  
de Marx com Hegel, quando o primeiro afirma que o segundo, ao enfatizar em demasia  
a autoconsciência como a determinação fundamental do humano, finda por tacitamente  
expropriá-lo dos seus atributos corporais e sensíveis. A partir daí, ficaram dadas as  
condições para acreditar-se que “o ser humano mesmo só vale como ser abstrato  
pensante, como consciência-de-si” (MARX, 2004, p. 132).  
Distanciando-se desta perspectiva, Marx assume o pressuposto de uma  
corporeidade como base incontornável da atividade humana. É apenas mediante este  
12  
Para o conceito de automediação, remetemos o leitor ao estudo de lstván Mészáros: “A  
relação entre o homem e a natureza é ‘automediadora’ num duplo sentido. Primeiro, porque é a natureza  
que medeia a si mesma no homem. Segundo, porque a própria atividade mediadora é apenas um  
atributo do homem, localizado numa parte específica da natureza. Assim, na atividade produtiva, sob o  
primeiro desses dois aspectos ontológicos, a natureza faz a mediação entre si mesma e a natureza; e,  
sob seu segundo aspecto ontológico em virtude do fato de ser a atividade produtiva inerentemente  
social – o homem medeia a si mesmo com os homens.” (MÉSZÁROS, 1986, p. 82)  
Verinotio  
36 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
pressuposto que podemos melhor qualificar tal atividade:  
O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se  
distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um  
objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital  
consciente. Esta não é uma determinidade [Bestimmtheit] com a qual  
ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o  
homem imediatamente da atividade vital animal. (MARX, 2004, p. 84)  
Não deixa de ser curioso verificar que, nas palavras daquele a quem seus críticos  
se referem como o defensor de um “materialismo reducionista”, o atributo da  
consciência singulariza a atividade humana encarnada em face da atividade animal. Na  
verdade, um dos contrastes que atravessam os Manuscritos é o do humano que vai  
superando aquilo que era apenas natureza (no sentido amplo de uma Aufhebung,  
superação que conserva algo do que está sendo superado). Neste processo, a  
formação da consciência imprime sua marca inequívoca, mas, insistimos, ela depende  
da corporeidade do sujeito para se desenvolver. Mediante sua interação com os  
objetos que o cercam, o homem adquire consciência, faz da própria atividade e dos  
outros homens, objetos de sua ação e de seu pensamento, diferencia-se deles. É este  
o sentido do progressivo desprendimento do humano em face ao que lhe coube  
originariamente como natureza (tanto externa como interna), face a tudo que foi  
recebido sem a sua intervenção e que ele, precisamente em sua condição de ativo ser  
consciente, se encarrega de profundamente modificar.  
Precisemos mais este basilar conceito de atividade. Já sabemos que ele se refere  
a uma mediação de primeira ordem, propriamente ontológica, entre o homem e a  
natureza. Sabemos também que, graças à sucessiva atualização deste mediador, o  
homem passa da condição de ser posto pela natureza para a de um ser que interage  
com ela e a transforma, adquirindo então as características de um sujeito ativo e  
consciente. A constituição do sujeito humano se processa, portanto, entrelaçada a uma  
forma de objetivação: todas as capacidades humanas, todas as forças e aptidões do  
homem são exteriorizadas, objetivadas mediante seu agir no mundo. Isso dá origem  
ao que Marx chama de “natureza humanizada” (MARX, 2004, p. 110), natureza que  
sofreu a intervenção do homem. Se em Manchester existem hoje “fábricas e máquinas  
onde cem anos atrás se viam apenas rodas de fiar e teares manuais” (MARX; ENGELS,  
2007, p. 31) conforme nos lembra um texto posterior, A ideologia alemã , tal  
ocorreu devido a uma gigantesca transformação do mundo sensorial operada pela  
atividade humana. Trata-se de uma simultânea exteriorização e atualização de  
capacidades humanas, é isso que o processo de objetivação desencadeia: trasladar da  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 37  
nova fase  
Maurício Vieira Martins  
potência do sujeito para o mundo real.  
Modificação da exterioridade, portanto (e vemos agora que exterioridade não  
é, a rigor, um conceito absoluto, pois existe trânsito, interpenetração, entre aquilo que  
existe no homem e o que vigora no mundo sensorial), e modificação também da  
interioridade, é assim que o sujeito humano se constitui. Entretanto, tal constituição  
se dá de forma particularmente problemática devido à vigência hegemônica de um  
certo tipo de atividade: o trabalho estranhado [Die entfremdete Arbeit13].  
O trabalho estranhado  
Até o momento, não nos referimos ao conceito de trabalho [Arbeit], mas apenas  
ao de atividade [Tätigkeit], concebida como uma forma progressiva de objetivação.  
Embora em autores posteriores a Marx os dois conceitos sejam utilizados  
frequentemente de forma intercambiável, um exame atento dos Manuscritos de 44  
mostra que existe uma distinção entre eles que merece comentário. Na verdade,  
atividade é uma categoria bem mais ampla do que a de trabalho, ela recobre um campo  
semântico mais extenso. Forma ampla de intercâmbio em que o sujeito interage com  
um objeto, a atividade se processa nas mais variadas manifestações da existência  
humana. E os exemplos dela que comparecem no texto atestam sua pluralidade: ouvir  
uma música é uma atividade vital consciente, assistir a um espetáculo também, bem  
como “sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar...” (MARX, 2004, p. 108).  
Quanto ao trabalho, ele é o particular modo de atividade que se exerce sob a  
pressão cotidiana para satisfazer as progressivas necessidades humanas; relaciona-se  
à luta da espécie para assegurar sua sobrevivência, com todas as consequências daí  
advindas. É o que sinaliza uma breve mas muito esclarecedora passagem dos  
Manuscritos de 44 quando eles afirmam que “toda a atividade humana até agora era  
trabalho, portanto, indústria, atividade estranhada de si mesma” (MARX, 2004, p. 111).  
Ligando-se esta afirmação com aquela outra em que pouco depois se enuncia que “O  
trabalho é apenas uma expressão da atividade humana no interior da alienação  
13  
A tradução da palavra alemã Entfremdung para o português é objeto de uma polêmica infindável e,  
a nosso ver, na verdade indecidível (inclusive por razões históricas e filológicas). No presente artigo,  
alternamos entre as duas traduções mais frequentes: estranhamento e alienação. O próprio Marx em  
diversas passagens dos Manuscritos de 44 aproxima fortemente os sentidos de Entfremdung e  
Entäußerung: “In der Entfremdung des Gegenstandes der Arbeit resümiert sich nur die Entfremdung,  
die Entäußerung in der Tätigkeit der Arbeit selbst” (MARX, 1968, p. 514). Recordemos que fremd, em  
alemão, significa “estranho” “estrangeiro”, “alheio”, o que reforça o sentido do “não se sentir em casa”  
por aquele que exerce o trabalho estranhado (ou alienado).  
Verinotio  
38 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
[Entäusserung], a externação da vida [Lebensäusserung] enquanto alienação da vida  
[Lebensentäusserung]” ilumina-se a distinção entre as duas categorias” (MARX, 2004,  
p. 149)14. O trabalho é entendido por Marx (por mais que isto se choque com a imagem  
que posteriormente se formou de seu pensamento) como uma atividade que envolve  
também uma alienação, que ocorre quando o homem se perde de si mesmo, não se  
reconhecendo nem em seu transcurso nem em seu produto15. Já a “atividade vital  
consciente” (MARX, 2004, p. 84), em contrapartida, é o conceito explicativo mais  
amplo: é ele, em seu alto grau de abstração e generalidade, que nos permite pensar  
sobre as suas modalidades particulares de efetivação. O trabalho é uma delas, especial  
porque predominante ao longo da história da humanidade, mesmo antes do  
surgimento da sociedade capitalista.  
É certo que para se chegar a uma configuração histórica que reúna as  
características precisas do trabalho estranhado que os Manuscritos de 44 descrevem,  
foi necessária a ocorrência de uma série de pressupostos objetivos que o texto alude  
apenas brevemente. Mas quando se conhece os escritos posteriores de Marx, fica claro  
que, já em 1844, ele está iniciando as determinações do sistema do trabalho  
assalariado, que é a contrapartida do “valor que se valoriza”, nas palavras de sua  
maturidade, o próprio capital. Sistema se caracteriza pelo engendramento de uma  
expressiva maioria da população que, a fim de assegurar sua sobrevivência cotidiana,  
se vê constrangida a vender sua força de trabalho para a classe minoritária de  
indivíduos detentora dos meios de produção. Ao invés da ênfase produtiva recair sobre  
os valores de uso (objetos consumidos preferencialmente no interior da própria  
unidade econômica, a exemplo do que ocorria em formações sociais anteriores),  
generaliza-se agora a produção de valores de troca, mercadorias, artigos que devem  
14  
Citação corrigida de acordo com o original em alemão: “[...] die Arbeit nur ein Ausdruck der  
menschlichen Tätigkeit innerhalb der Entäußerung, der Lebensäußerung als Lebensentäußerung ist [...]”  
(MARX, 1968, p. 557). A correção foi necessária devido à tradução brasileira dos Manuscritos de 1844  
aqui utilizada normalmente cuidadosa – adotar neste passo “exteriorização da vida” como tradução  
de Lebensentäußerung, o que torna a frase de Marx incompreensível. Embora o núcleo desta última  
palavra Entäußerung em alguns contextos determinados seja de fato passível de ser traduzido por  
exteriorização, na passagem acima a ênfase de Marx recai claramente sobre a alienação resultante do  
processo. A este respeito, vale o cotejo com as pertinentes observações de Mônica Hallak (HALLAK,  
2018, pp. 64-7).  
15  
A ideologia alemã reitera o entendimento do trabalho como atividade alienada. Basta lembrar que  
quando Marx e Engels apresentam seu projeto político de uma revolução comunista, eles afirmam que  
esta última “volta-se contra a forma da atividade existente até então, suprime o trabalho e supera  
[aufhebt] a dominação de todas as classes ao superar as próprias classes” (MARX; ENGELS, 2007, p.  
42). A situação social almejada por este projeto é aquela onde os indivíduos alternam suas atividades  
produtivas, não ficando restritos apenas a uma delas.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 39  
nova fase  
   
Maurício Vieira Martins  
ser vendidos no mercado. A própria força de trabalho ingressa no circuito das trocas,  
passa a ser objeto de uma negociação em que é vendida temporariamente pelo seu  
possuidor ao proprietário dos meios de produção. Esta é a alienação da força de  
trabalho (ou, simplesmente, alienação do trabalho, pois os Manuscritos de 44 ainda  
não fazem a importante distinção entre trabalho e força de trabalho, elaborada apenas  
posteriormente), processo através do qual o trabalho humano ingressa num circuito já  
não mais controlado pelo sujeito que trabalha, que se vê subordinado ao capital.  
Os referidos Manuscritos analisam pelo menos quatro níveis simultâneos de  
alienação ou de estranhamento. Em primeiro lugar, ocorre a subjugação do trabalhador  
pelo produto do seu próprio trabalho. O homem passa a ser dominado pelos objetos  
que ele criou; o que é bem atestado pela ofuscadora onipresença das mercadorias na  
sociedade burguesa, que eclipsa o trabalho vivo dos produtores, responsável por seu  
surgimento. Este é o fenômeno que Marcello Musto nomeia de modo preciso como  
alienação objetiva (MUSTO, 2021, p. 12), fundada no mundo da produção e  
determinante para a existência da alienação subjetiva16. Em segundo lugar, produz-se  
um estranhamento do homem diante de sua própria atividade, que é experimentada  
como mortificação, como coisa alheia a quem a exerce. Ou seja, ao invés de um ser  
que se produz mediante a efetivação de sua atividade hipótese fundamental na  
ontologia marxiana , o que passa a ocorrer é antes o esvaziamento, o encolhimento  
de um sujeito que, por uma série de injunções históricas, já não consegue manter uma  
relação afirmativa com sua própria atividade.  
Uma das razões para o estranhamento diante da atividade é a perda do seu  
caráter múltiplo. Na medida em que o homem é concebido por Marx como o portador  
de um conjunto diferenciado de forças essenciais, cada uma dessas forças (o olhar, o  
ouvir, o degustar etc., nos exemplos do texto) demanda uma atividade que a expresse.  
Por isso, é a multiplicidade e também a possibilidade de variação , o atributo que  
melhor possibilita a renovação do agir humano. Para haver uma efetiva apropriação  
da realidade humana, sua condição de multiplicidade deve ser satisfeita: “seu  
comportamento para com o objeto é o acionamento da efetividade humana (por isso  
ela é precisamente tão multíplice [vielfach] quanto multíplices são as determinações  
essenciais e atividades humanas)” (MARX, 2004, p. 108).  
16  
M. Musto chama atenção para o fato de que a ênfase interpretativa dos Manuscritos de 1844 por  
parte de autores como Erich Fromm recai unilateralmente sobre a alienação subjetiva, procedimento  
que finda por comprometer o entendimento dos esteios objetivos que a determinam. Este alerta vale  
também para toda uma tradição psicologizante sobre a alienação.  
Verinotio  
40 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
Ora, o trabalho alienado é precisamente o oposto disso tudo, ele se caracteriza  
pelo encolhimento drástico de uma atividade que é potencialmente plural. Sob a égide  
da divisão do trabalho, cada grupo de indivíduos, cada classe social, passa a interagir  
com um segmento muito limitado da realidade. Perdendo seus atributos de  
multiplicidade, o trabalho na sociedade burguesa se caracteriza pela repetição, pelo  
confinamento a uma rotina massacrante que esvazia seus agentes. É por isso que ele,  
o trabalho é, nas palavras do texto, a “abstração de qualquer outro ser” (MARX, 2004,  
p. 94); abstração tem aqui o sentido de separação real, pois aquele que cai na esfera  
do trabalho alienado está separado de todas as outras formas de existência humana.  
Premidos pelas necessidades cotidianas, homens e mulheres se veem obrigados a  
amputar inúmeras de suas potencialidades em favor de uma atividade repetitiva,  
unilateral, separada das demais (abstrata, neste sentido) e mediante a qual eles criam  
um mundo que lhes é hostil.  
Voltando agora aos níveis do estranhamento, o terceiro deles é o que passa a  
viger entre o trabalhador e o capitalista que rege sua atividade; é uma dominação que  
caracteriza esta relação social:  
Considere-se ainda a proposição colocada antes, de que a relação do  
homem consigo mesmo lhe é primeiramente objetiva, efetiva, pela sua  
relação com o outro homem. Se ele se relaciona, portanto, com o  
produto do seu trabalho, com o seu trabalho objetivado, enquanto  
objeto estranho, hostil, poderoso, independente dele, então se  
relaciona com ele de forma tal que um outro homem estranho [fremd]  
a ele, inimigo, poderoso, independente dele, é o senhor deste objeto.  
(MARX, 2004, pp. 86-7)  
A relação de um homem consigo mesmo expressa, portanto, também as  
relações que ele mantém com outros homens. De novo aqui, não cabe a ideia de um  
sujeito autônomo: mais preciso é discernir a intersubjetividade que lastreia as relações  
humanas. Os diferentes sujeitos encontram sua referência não só em sua atividade mas  
também nos outros homens. Quando estão mergulhados no estranhamento, quando  
não se reconhecem nem naquilo que fazem nem no transcurso deste fazer, vamos  
encontrar a contrapartida deste alheamento nas relações intersubjetivas prevalecentes.  
Isso nos leva um outro nível de estranhamento, o que se processa com relação ao ser  
genérico: ao invés de cada homem reconhecer a si e ao outro no seu pertencimento  
mútuo a um gênero, a um conjunto maior que lhes dá a possibilidade de uma existência  
consciente, o que predomina é o cultivo da vida individual, tomada como a finalidade  
principal da existência. No reino da guerra de todos contra todos, da escaramuça social  
generalizada, a vida genérica surge apenas como um meio contingente para o homem-  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 41  
nova fase  
Maurício Vieira Martins  
mônada, ser que gravita sobretudo na órbita de seus interesses privados.  
Seria este, em síntese, o conjunto de inversões desencadeadas pelo trabalho  
alienado: o produto passa a dominar seu produtor; a atividade vital, afirmação da  
existência, é experimentada como sua negação; o outro ser humano surge como um  
ser alheio e as relações intersubjetivas transcorrem sob o signo do estranhamento e  
da hostilidade; finalmente, a vida genérica passa a ser subordinada à vida individual.  
Tudo isso indica que, já num texto da juventude de Marx, encontramos uma teorização  
que captura o trabalho em sua ambivalência. De um lado, atividade que modifica  
incessantemente o perfil da realidade sensorial, responsável pela monumental  
transformação da natureza originária e também pela objetivação das capacidades  
humanas, por seu desdobramento no ato laboral. Por outro lado e simultaneamente,  
o trabalho faz isso sob a égide do estranhamento: a objetivação se dá sob a forma da  
alienação. As capacidades humanas são exteriorizadas e surgem à luz da efetividade:  
o desenvolvimento da ciência nos dá mostras inequívocas daquilo que os homens  
podem transformar do seu meio e de si mesmos. Mas a ambivalência do trabalho, sua  
contraditoriedade dialética, é que, mediante sua subordinação à lógica capitalista, as  
referidas capacidades efetivam-se apenas para um número muito restrito de  
indivíduos; para o restante da população elas surgem como um poder alheio, que nem  
de longe mantêm um vínculo afirmativo com seu trabalho cotidiano.  
Marx foi acusado por seus críticos de haver incorrido numa espécie de  
glorificação do trabalho erro de interpretação de Hannah Arendt que tristemente fez  
escola na literatura posterior , de haver ingenuamente suposto que, pelo desabrochar  
do ato laboral, seria possível chegar a algo semelhante a uma redenção da  
humanidade. Porém, quando se examina com atenção os textos de Marx, ele se  
apresenta como um crítico arguto do Arbeit, do trabalho realizado sob a pressão da  
necessidade. O que é valorizado pelo autor é a atividade [Tätigkeit] consciente, que  
permite a expansão da vontade e não renuncia à interação com segmentos mais  
diferenciados da realidade. É neste âmbito que se entendem as restrições do autor  
diante da visão parcial de Hegel e dos economistas:  
Hegel se coloca no ponto de vista dos modernos economistas  
nacionais. Ele apreende o trabalho como a essência, como a essência  
do homem que se confirma; ele vê somente o lado positivo do  
trabalho, não seu [lado] negativo. O trabalho é o vir-a-ser para si  
[Fürsichwerden] do homem no interior da alienação [Entäusserung] ou  
Verinotio  
42 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
como homem alienado [entäusserter]. (MARX, 2004, p. 124)17  
A distância que Marx estabelece em face aos seus contemporâneos propicia a  
ocasião adequada para o esclarecimento do modo de abordagem adotado no presente  
artigo. Propositalmente, alterou-se aqui a sequência categorial que é apresentada nos  
Manuscritos. O referido texto se abre com um debate acerca de determinadas  
categorias da Economia Política (como ganho do capital, renda da terra etc.); a partir  
de sua exposição, Marx elabora também uma crítica às deformações que tais categorias  
produzem no homem. Em contrapartida, optou-se aqui por pesquisar quais são os  
conceitos filosóficos subjacentes que norteiam a crítica marxiana. Começou-se com a  
análise do que é a atividade, categoria para a qual não é dedicada nenhuma seção dos  
Manuscritos (só garimpando bastante o texto, por assim dizer, é que o leitor se dá  
conta da sua decisiva importância), uma efetivação humana que transforma a realidade  
e o seu agente. Apenas depois disso é que se chegou ao trabalho estranhado,  
entendido como um modo parcializado da atividade humana. Esta alteração expositiva  
foi necessária para evidenciar que existem conceitos paradigmáticos organizando a  
argumentação dos Manuscritos de 44: se o trabalho alienado pode ser criticado, isso  
se deve à suposição da existência de um trabalho não-alienado, que fornece o  
parâmetro adequado para se cotejar o primeiro. Fique então registrada a presença de  
um subjacente enunciado paradigmático na formulação de 1844, que possivelmente  
será retificado no trajeto posterior de Marx, rumo a uma apreensão mais estritamente  
imanente de seu objeto18.  
Um materialismo que acolhe a subjetividade  
A possibilidade de gênese da subjetividade humana se situa precisamente no  
interior desta discussão: só quando articulada aos seus esteios ontológicos mais gerais  
tal gênese pode ser corretamente visualizada. Pois o fato é que o trabalho humano  
17  
Tradução corrigida de acordo com o original em alemão, pelos mesmos motivos apontados na nota  
15. “Die Arbeit ist das Fürsichwerden des Menschen innerhalb der Entäußerung oder als entäußerter  
Mensch” (MARX, 1968, p. 574). Dito de outro modo: Hegel só enxerga o lado positivo do trabalho, mas  
não o seu lado alienado [entäußerter]. Não caberia traduzir aqui entäußerter como exteriorizado, ainda  
que em outros contextos tal opção seja aceitável.  
18  
Não obstante as inegáveis conquistas dos Manuscritos de 44, eles ainda não alcançam o intento de  
uma crítica imanente tout court à economia política. Tal intento foi anunciado por Marx em várias ocasiões,  
como por exemplo numa carta a F. Lassalle de 1858. Nela podemos ler: “O trabalho que me ocupa  
atualmente é a crítica das categorias econômicas ou, if you like, uma exposição crítica do sistema da  
economia burguesa. É ao mesmo tempo uma exposição e, pela mesma razão, uma crítica do sistema.”  
(MARX, 2010, p. 270) Reunir num só movimento a exposição de um sistema de categorias e sua crítica  
(sem recorrer a conceitos normativos) é um procedimento complexo, só alcançado por Marx em sua  
maturidade. Mas esta ressalva não deve esvaziar a produtividade própria do texto de 1844.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 43  
nova fase  
   
Maurício Vieira Martins  
produz, ao longo da história, um sujeito decupado, que consegue diferenciar-se dos  
laços comunitários predominantes em formações sociais mais antigas (tema enfatizado  
por Marx em escritos posteriores, como nos Grundrisse). Mas é de um sujeito  
encarnado que estamos tratando, que tem necessidades, desejos e carece de objetos  
reais para se produzir em sua individualidade; o surgimento desta última pressupõe  
que o estabelecimento de suas relações mundanas seja consciente. Quando tal não  
ocorre, o que vigora é: ou o enfraquecimento do sujeito em sua rede de relações (que  
ocorre quando a força da comunidade é por demais onipresente), ou sua regressão à  
“grosseira necessidade prática” (na predominância do trabalho alienado), mas não a  
sua emergência como agente consciente.  
É neste âmbito que cabe afirmar que os Manuscritos de 44 apresentam uma  
análise sobre a constituição da subjetividade, sobre a formação dos atributos  
especificamente humanos de homens e mulheres. Cabe aqui um esclarecimento  
terminológico, já que falar em constituição da subjetividade, no século XXI, gera  
ressonâncias teóricas distintas das que estamos tratando. É amplamente sabido que  
desde o início do século passado a psicanálise desenvolveu uma teorização consistente  
acerca da gênese e estruturação da subjetividade humana. Quando Freud apresentou  
suas sucessivas hipóteses acerca do funcionamento do aparelho psíquico, ele  
demonstrou persuasivamente como transcorre a constituição do sujeito psíquico,  
indicando sua divisão por meio do recalque primário, assim como a origem do  
inconsciente e a aquisição da linguagem. A exposição freudiana sobre o psiquismo  
humano deveria ser, aliás, um convite aos filósofos da consciência pura para retificar  
algumas das suposições alimentadas ao longo da história do pensamento. É difícil  
acreditar que ainda existam hoje, por exemplo, neokantianos que sustentem uma  
filosofia da vontade livre, mesmo após o impacto e as consequências da contribuição  
psicanalítica. Freud foi materialista o suficiente para sempre apontar para a presença  
estruturante da realidade na constituição do sujeito psíquico, presença claramente  
ilustrada em textos como A perda da realidade na neurose e na psicose, um exemplo  
entre muitos (FREUD, 2011).  
No entanto, a contribuição psicanalítica não será aqui discutida: ela  
ultrapassaria em muito os limites do debate em tela. Além disso, esta decisão se deve  
adicionalmente a uma avaliação que merece ser explicitada: se certos tópicos  
relacionados à constituição da subjetividade devem de fato dialogar com a teoria  
Verinotio  
44 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
psicanalítica19, isso não significa que só se seja possível falar de subjetividade  
recorrendo a Freud e a Lacan. Tudo dependerá do preciso escopo de uma dada  
investigação. Se tal afirmação pode parecer trivial, ela é hoje necessária devido ao  
dogmatismo de alguns setores da psicanálise, que presumem que sua disciplina  
autoriza a progressiva fagocitose, por assim dizer, de outros campos do conhecimento.  
Repetindo: o estatuto da subjetividade é uma área muito vasta que comporta várias  
abordagens. Discutiremos aqui principalmente um aspecto: as modificações da  
subjetividade humana mediante o trabalho e a atividade a superação/conservação  
[Aufhebung] das determinações naturais , bem como seu efeito de retroação sobre  
homens e mulheres no devir histórico. Vertente de análise que manteve sua  
integridade categorial mesmo após o advento da psicanálise (diferentemente do que  
ocorreu com a vontade livre kantiana).  
No que diz respeito a Marx, e por mais paradoxal que possa parecer, talvez seu  
pressuposto mais básico a este respeito seja aquele encontrado na Crítica da filosofia  
do direito de Hegel: “A subjetividade é uma determinação do sujeito” (MARX, 1983,  
p. 30). Formulação apenas aparentemente truística, mas que se tornou necessária  
diante da tácita pressuposição hegeliana de uma subjetividade pura, que finda por  
operar para além de seu suporte nos sujeitos humanos reais e dotados de uma  
corporeidade.  
Assim é que em seu sentido mais básico, a subjetividade tal como formulada  
por Marx se reporta a tudo aquilo que está locado no sujeito humano (suas forças  
essenciais ativas, seus sentimentos, suas paixões etc.), por contraste às condições  
externas de existência, objetivas, que precedem à entrada do(s) sujeito(s) na interação  
mundana. Ainda que saibamos que exterioridade e interioridade são conceitos que se  
interpenetram, colocar simplesmente um sinal de igual entre eles é procedimento  
problemático e distante do pensamento de Marx. Pois mesmo que seja característica  
de sua abordagem a ênfase que ela atribui ao primado da objetividade, das condições  
objetivas de existência com as quais cada sujeito tem que necessariamente lidar, isso  
não impede antes delineia melhor o contorno do estatuto histórico da  
subjetividade. É por aí que se entende a afirmação marxiana de uma determinação das  
condições econômicas, pressão ininterrupta que o mundo real com as suas  
necessidades exerce sobre o campo subjetivo em permanente mudança. Aliás, a crença  
19  
Diálogo atestado pelas contribuições de W. Benjamin, T. Adorno e, mais recentemente, F. Jameson,  
autores marxistas que incorporaram produtivamente categorias da psicanálise.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 45  
nova fase  
 
Maurício Vieira Martins  
numa possível identidade entre interioridade e exterioridade, entre sujeito e objeto, é  
marca do hegelianismo20 e de suas ramificações, tendo recebido críticas de Marx que  
nela enxergou uma exaltação desmedida das capacidades subjetivas. Contra a ideia de  
uma subjetividade demiúrgica, cabe atestar sua dependência em face do objeto: só  
assim os diferentes sujeitos e isso vale também para as classes sociais têm  
condições de se reconhecer na sua inserção histórica real. Ouçamos um passo decisivo  
de Marx em A sagrada família, na sua severa crítica a Franz Szeliga:  
No senhor Szeliga também se mostra de um modo brilhante como a  
especulação de um lado cria seu objeto a priori, aparentemente livre  
e a partir de si mesma, mas de outro lado, precisamente ao querer  
eliminar de maneira sofista a dependência racional e natural que tem  
em relação ao objeto, demonstra como a especulação cai na servidão  
mais irracional e antinatural sob o jugo do objeto, cujas determinações  
mais casuais e individuais ela é obrigada a construir como se fossem  
absolutamente necessárias e gerais. (MARX; ENGELS, 2011, p. 90)  
Devido à sua cegueira com relação aos seus vínculos objetivos, a (pretensa)  
subjetividade autônoma acaba por sucumbir precisamente àquilo que ela não  
reconhece: sua determinação pelo mundo real. Já sabemos que a subjetividade em  
Marx abarca todas as forças essenciais humanas; mas é preciso reiterar que a  
formulação de 1844 não se limita a isso, pois até aqui estaríamos ainda num terreno  
próximo ao do sensorialismo feuerbachiano. O que os Manuscritos de 44 apresentam  
de novo é uma construção que evidencia que mesmo o domínio da subjetividade é  
inequivocamente ativo: longe de ser dado originariamente ao homem, ele se constitui  
pela via de um sistema complexo de mediações históricas:  
[é] apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da essência  
humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva, que um  
ouvido musical, um olho para a beleza da forma, em suma as fruições  
humanas todas se tornam sentidos capazes, sentidos que se  
confirmam como forças essenciais humanas, [...] A formação dos cinco  
sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui. (MARX,  
2004, p. 110)  
Trata-se então de uma subjetividade que se constituiu apenas ao longo da  
história: “para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum sentido”  
(MARX, 2004, p. 110). Iniciamos este artigo comentando a dificuldade dos primeiros  
executores dos quartetos de cordas ditos intermediários de Beethoven: o exemplo não  
foi escolhido ao acaso. Tratavam-se de músicos profissionais, sendo que o primeiro  
20  
Mesmo reconhecendo as inegáveis contribuições de Hegel para uma concepção dialética, G. Lukács  
diverge vigorosamente da tese hegeliana do sujeito-objeto idêntico (LUKÁCS, 2012, pp. 204-12).  
Verinotio  
46 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
violino do grupo era Ignaz Schupanzigh, amigo de Beethoven que acompanhava bem  
de perto a produção do compositor. Mas mesmo para estes qualificados músicos a  
sonoridade produzida pelos novos quartetos gerava desconforto. Se adicionarmos a  
isso o fato de que a surdez de Beethoven já comprometia seu relacionamento com o  
mundo exterior, abrimos caminho para o reconhecimento do caráter ativo do aparato  
sensorial, que possibilitava que ele criasse suas composições em níveis  
progressivamente mais elaborados. Aqui, torna-se patente a pobreza das concepções  
da arte como apenas uma mimese fiel da realidade concepção contra a qual um G.  
Lukács tanto se bateu, diferenciando com vigor realismo de naturalismo, por exemplo.  
Este alargamento ativo das faculdades humanas originárias tem como um de  
seus resultados a possibilidade de formas de interação e captação da realidade  
sensível que simplesmente não existiam em outros períodos históricos. Os Manuscritos  
de 44 são pródigos em exemplos que visam atestar a emergência de uma apropriação  
singularizada das diferentes dimensões da realidade. Seja referindo-se à formação do  
olho estético, que consegue descortinar a beleza da forma, seja na observação de que  
o “homem faminto” desconhece a forma humana da comida (aguilhoado que está pela  
pressão da necessidade), seja no que diz respeito ao homem “cheio de preocupações”  
que não consegue aceder ao senso apropriado para um “o mais belo espetáculo”  
(MARX, 2004, p. 110), o que o texto busca tomar mais visível é a capacidade de gozo  
do sujeito historicamente constituída. O que hoje nomeamos como sensibilidade  
(utilizando a palavra agora no sentido de aptidão para o exercício de alguma atividade  
criativa) é o resultado de uma extensa cadeia de mediações simultaneamente objetivas  
e subjetivas que não se evidenciam para o observador desavisado. O sujeito dito  
moderno, que dispõe da capacidade de estabelecer uma relação afirmativa,  
interiorizada, com uma “bela música”, este sujeito que já se desprendeu da “carência  
prática” imediata (nos termos de 1844) só existe mediante um processo histórico que  
atualiza na efetividade os potenciais atributos humanos. E o fato que de que pode  
haver uma regressão destas capacidades pensemos nas teses de T. Adorno sobre a  
regressão da audição acarretada pela indústria cultural de forma alguma anula seu  
caráter histórico, apenas confirma-as em seu caráter construído e mediado.  
Estamos diante de uma retroação da atividade sobre o próprio sujeito que a  
exerce. Não é apenas a realidade exterior que se modifica: também o homem se  
diferencia de sua determinação natural mais arcaica. Anos mais tarde, quando da  
redação de O capital, Marx retornará a este tema: “Agindo sobre a natureza externa e  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 47  
nova fase  
Maurício Vieira Martins  
modificando-a por meio desse movimento, ele [o homem] modifica, ao mesmo tempo,  
sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete  
o jogo de suas forças a seu próprio domínio (MARX, 2013, p. 255)21. Temos aqui a  
gênese de um processo de subjetivação. E, adendo fundamental, tais modificações na  
subjetividade são perfeitamente passíveis de serem transmitidas para as gerações  
humanas posteriores. Diferentemente da evolução biológica em sentido estrito, onde  
a modificação ao longo da vida de um indivíduo de certos caracteres dificilmente é  
herdada por sua prole, as transformações culturais apresentam um caráter mais  
plástico e cumulativo. Atento a isso, um biólogo com conhecimento de marxismo como  
Stephen Jay Gould pôde escrever, com uma ponta de ironia, que “a evolução cultural  
humana, em forte oposição à nossa história biológica, é de caráter lamarckiano”  
(GOULD, 1990, p. 71).  
Retornando aos Manuscritos de 44, neles aprendemos que uma subjetividade  
se desenvolve quanto maior é também o campo das relações objetivas no qual ela é  
capaz de diferencialmente se afirmar. Prova adicional de que o devir da atividade não  
transforma apenas o mundo objetivo, ele também constitui uma nova subjetividade,  
que comporta os sentidos humanos modificados. Se começamos enfatizando o caráter  
de objetivação da atividade humana, vemos agora que ela também envolve uma  
subjetivação, um retroagir sobre si em seu transcurso. Tal é a emergência de uma  
natureza humana que de originária já não tem mais nada: trata-se do resultado do  
processo autorreflexivo que a atividade desencadeia. Tanto na interação com a música,  
como no espetáculo, ou mesmo no gosto com a própria alimentação, obtém-se um  
alargamento do campo de existência do sujeito quando ele, pela via da sucessiva  
exteriorização das suas forças essenciais, desprende-se do domínio da necessidade e  
consegue alcançar o específico desfrute daquele objeto.  
Torna-se então patente a relação entre a capacidade subjetiva e o objeto  
singular com o qual ela interage, até porque “o sentido de um objeto para mim (só  
tem sentido para um sentido que lhe corresponda) vai precisamente tão longe quanto  
vai o meu sentido” (MARX, 2004, p. 110). Esta observação muito geral ganha sua  
referência empírica quando Marx lembra que:  
Ao olho um objeto se torna diferente do que ao ouvido, e o objeto do  
olho é um outro que o do ouvido. A peculiaridade de cada força  
21  
Adicionalmente, há que ressaltar que O capital desenvolve de modo substantivo a importância e as  
consequências da teleologia (atividade orientada para fins) ao longo de um processo de trabalho. Tais  
considerações são ainda incipientes nos Manuscritos de 1844.  
Verinotio  
48 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
essencial é precisamente a sua essência peculiar, portanto também o  
modo peculiar da sua objetivação, do seu ser vivo objetivo-efetivo.  
(MARX, 2004, p. 110)  
Retornamos ao tema da multiplicidade, ao entendimento do homem como um  
conjunto múltiplo de forças, impulsos, desejos e capacidades singulares que  
demandam uma atividade polimorfa, não fixa, para que esta pluralidade possa se  
expressar. Só assim é possível o desenvolvimento de uma interação efetiva entre cada  
sentido humano e o objeto com o qual ele interage. Se o olho goza de forma distinta  
da do ouvido, se o tato estabelece uma relação objetal distinta da do paladar, tal  
ocorre porque a subjetividade humana encontra, afinal, sua necessária contrapartida  
no campo da diversidade objetiva real. Fora disso, ela é pura abstração, pura criação  
daqueles filósofos que acreditam na possibilidade de uma subjetividade desencarnada,  
“sem olhos, sem dentes, sem ouvidos, sem nada” (MARX, 2004, p. 135).  
O reconhecimento do potencial caráter múltiplo das capacidades humanas faz  
aparecer de outro modo a concepção do que seja a riqueza humana, tendo em vista  
que o “homem rico é simultaneamente o homem carente de uma totalidade da  
manifestação humana de vida” (MARX, 2004, pp. 112-3). Esta subjetividade pede,  
portanto, para se exteriorizar, para ver atualizadas suas diferentes capacidades.  
Exteriorização que é sentida como necessidade, como urgência da essência que  
demanda seu desdobramento como existência. É uma concepção afirmativa de  
subjetividade que é defendida por Marx, o que explica também sua repulsa à sociedade  
burguesa. Pois esta última, ao invés de propiciar as condições para a expansão do ser,  
ao invés de engendrar o “homem nesta total riqueza da sua essência” (MARX, 2004,  
p. 111) produz, ao contrário, indivíduos impedidos de uma exteriorização de vida  
humana. O trabalho alienado, forma degradada da atividade vital consciente, confina  
o indivíduo a uma interação com um número muito restrito de objetos; a rígida divisão  
do trabalho estanca de forma mortal o fluxo da atividade, o que era produção da vida  
põe-se agora como sua atrofia22.  
Este trabalho alienado e parcelado encontra seu corolário na propriedade  
privada. Originalmente um produto do trabalho humano, ela acaba se constituindo,  
devido à alienação da atividade, como uma entidade que subjuga os indivíduos que a  
22  
“Em que consiste, então, a exteriorização [Entäusserung] do trabalho? Primeiro, que o trabalho é  
externo [äusserlich] ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em  
seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia  
física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito.” (MARX, 2004, pp. 82-3)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 49  
nova fase  
 
Maurício Vieira Martins  
criaram. E, ao vincular egoisticamente a coisa ao indivíduo, ficam dadas as condições  
para o surgimento de uma subjetividade que só consegue enxergar a interação com  
os objetos sob a forma da posse, do ter:  
A propriedade privada nos fez tão cretinos e unilaterais que um objeto  
somente é o nosso [objeto] se o temos, portanto, quando existe para  
nós como capital ou é por nós imediatamente possuído, comido,  
bebido, trazido em nosso corpo, habitado por nós etc., enfim, usado.  
[…] O lugar de todos os sentidos físicos e espirituais passou a ser  
ocupado, portanto, pelo simples estranhamento de todos esses  
sentidos, pelo sentido do ter. (MARX, 2004, p. 108)  
O ter utilitário, que reduz a interação humana com os objetos à sua simples  
posse, é duramente criticado por Marx, que enxerga nele a amputação de outras  
formas de interação com a realidade. Trabalho alienado, propriedade privada e  
utilitarismo tem seu representante mais visível no prestígio universal do dinheiro,  
mediador objetificado que tem o poder de comprar não só mercadorias, mas também  
serviços que representam capacidades humanas. Chegou-se à paradoxal situação em  
que mesmo aquele indivíduo particularmente desprovido de aptidões humanas pode  
ter acesso a várias delas mediante sua compra: “O que eu qua homem não consigo, o  
que, portanto, todas as minhas forças essenciais individuais não conseguem, consigo-  
o eu por intermédio do dinheiro” (MARX, 2004, p. 159). Se mesmo “um ser humano  
mau, sem honra, sem escrúpulos” pode receber a aprovação da sociedade, tal não se  
deve ao desenvolvimento de sua subjetividade, mas antes ao quantum de meio  
monetário que consegue acumular: venalidade geral do homem e do que é humano,  
rebaixamento das capacidades a objetos de uma barganha monetária, eis o quadro  
oferecido pela sociedade burguesa. Enquanto seus apologistas afirmam que ela  
promoveu a produção de um sujeito autônomo por oposição às relações de  
dependência pessoal vigentes na sociedade feudal Marx aponta para a estreiteza  
desta concepção, que glorifica as distorções do modo de vida burguês e apresenta-as  
como emancipação humana.  
Vemos então que, na elaboração teórica de 1844, é pela via de uma  
autoposição do homem no mundo sensível que a sua subjetividade se constitui.  
Sabemos que, na maturidade de Marx, esta análise se complexificará enormemente, a  
ponto dele escrever anos mais tarde “meu método analítico [...] não parte do homem,  
mas de períodos sociais economicamente dados” (MARX, 2017, p. 267). Contudo,  
suspendendo aqui provisoriamente tal consideração (até para podermos encetar uma  
relação produtiva com os Manuscritos de 44), levemos em conta o caráter polêmico  
Verinotio  
50 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
da tomada de posição de Marx em sua juventude. É contra as diferentes formas de  
idealismo, que ao fim e ao cabo expropriavam o sujeito de suas capacidades  
encarnadas (ao enfatizar no mundo sensorial a corporificação de uma entidade  
abstrata, a Ideia) que nosso autor vai sustentar que é sempre o homem o verdadeiro  
produtor de si mesmo e de sua realidade. Mas nenhum deles, nem o ser humano nem  
o mundo objetivo, comparece de forma estabilizada no cenário da história: é mesmo  
um partejamento que torna possível seu aparecer:  
Consequentemente, nem os objetos humanos são os objetos naturais  
assim como estes se oferecem imediatamente, nem o sentido humano,  
tal como é imediata e objetivamente, é sensibilidade humana,  
objetividade humana. A natureza não está, nem objetiva nem  
subjetivamente, imediatamente disponível ao ser humano de modo  
adequado. E como tudo o que é natural tem de começar, assim  
também o homem tem como seu ato de gênese a história [...]. (MARX,  
2004, p. 128)  
Simultaneamente ser natural e humano, o homem é natural naquele mencionado  
sentido de ser uma parte, um produto da natureza; humano porque, através de sua  
ativa automediação, distingue-se progressivamente de sua determinação originária e  
adquire características singularizadas que fundam a sua história. A contradição da  
época atual, nos termos de 1844, é que a forma hegemônica de automediação, o  
trabalho, criou as condições para a constituição de uma subjetividade da qual, por um  
lado, podem-se vislumbrar suas imensas potencialidades, mas que simultaneamente  
ameaça submergir a todo momento diante da expansão generalizada da alienação.  
Então, a afirmativa de que o trabalho produz o homem deve ser imediatamente  
articulada àquela outra que esclarece que isso é feito sob a forma do homem  
estranhado, que não consegue estabelecer uma relação afirmativa com sua própria  
atividade. A gigantesca transformação da natureza (que se corporifica na “indústria  
material, comum” (MARX, 2004, p. 111), imenso conjunto de artefatos, equipamentos  
e construções erigidos pela objetivação dos poderes sociais do trabalho) coexiste com  
sujeitos humanos que estão numa relação de alheamento face àquilo que eles mesmos  
criaram. A possibilidade de constituição de uma rica e elaborada subjetividade cuja  
veracidade é atestada pela existência de brilhantes individualidades que atuam em  
segmentos muito restritos da sociedade, notadamente nas ciências e nas artes –  
encontrou seu contraditório complemento na degradação das condições de vida,  
objetivas e subjetivas, da maioria da população.  
A sociedade burguesa é então apreendida em sua contraditoriedade: momento  
histórico de um desenvolvimento inédito das capacidades produtivas do ser humano,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 51  
nova fase  
Maurício Vieira Martins  
ela é também o cenário de uma violenta expropriação. A duplicidade de atributos nela  
presentes fornece a ocasião para Marx defender seu projeto político: fim do trabalho  
alienado e da propriedade privada, entes interpostos entre o homem, sua atividade e  
seus semelhantes. Se é certo que os Manuscritos ainda não dispõem de uma teoria do  
valor limite bem real do texto , isso não deve nos impedir de reconhecer seus  
momentos mais fecundos, a serem incorporados no trajeto posterior de Marx23. Pois a  
crítica à propriedade privada não é só apenas às distorções econômicas mais visíveis  
que ela produz (sua enorme concentração nas mãos de alguns em flagrante contraste  
com a pauperização da maioria da população), mas comporta também uma outra  
dimensão fundamental. É a crítica a uma forma de sociabilidade que impede homens  
e mulheres de se autoproduzirem como tais, limitados que estão a um modo de  
efetivação da vida extremamente unilateral. Potencialmente, o homem é uma  
pluralidade de capacidades e de forças objetivas essenciais, mas a lógica capitalista  
restringe estas capacidades e prende cada indivíduo a apenas um predicado seu.  
Quanto ao modo próprio de a concepção liberal se opor a este contexto  
degradante, ele consiste em apresentar a promessa de uma emancipação humana pela  
via do progresso individual e meritocrático de cada um de seus membros. Subjacente  
a esta concepção, está uma ideia estreita de individualidade, que entende que sua  
meta consiste em lutar diuturnamente pela posse de dinheiro. A riqueza humana, nesta  
concepção, é algo que tem sua contrapartida no montante de dinheiro, bens e capital  
que cada indivíduo consegue acumular.  
Situando-se na outra extremidade do debate, Marx prefere demonstrar que a  
pobreza gerada pelo capitalismo pode ser investida de um novo significado: de sua  
negatividade é possível surgir uma contestação de fundo àquela sociedade. Desde  
1843 a classe trabalhadora oprimida é identificada por Marx como o sujeito social  
capaz de negar e subverter a estreita racionalidade burguesa. Os Manuscritos reiteram  
que a expropriação deve também ser vista como um vazio a partir do qual se pode  
arrancar significado:  
Não só a riqueza, também a pobreza do homem consegue na mesma  
medida -sob o pressuposto do socialismo - uma significação humana  
e, portanto, social. Ela é o elo passivo que deixa sentir ao homem a  
23  
A conferir a síntese particularmente feliz feita por José Paulo Netto em sua Apresentação ao texto:  
“Isso significa dizer que os Manuscritos perderam importância, substancialidade, atualidade? A resposta  
é um rotundo e categórico não. Os Manuscritos permanecem um documento que insistimos: tomado  
nos seus limites históricos e teóricos mantém intacta e integralmente a sua grandeza (a mesma palavra  
que Marx usou para caracterizar a Fenomenologia)” (NETTO, 2015, p. 103).  
Verinotio  
52 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
maior riqueza, o outro homem como necessidade. (MARX, 2004, p.  
113)  
Hegel como interlocutor, mas também como objeto de crítica  
Uma das seções de leitura mais estimulantes dos Manuscritos de 44 é aquela  
que ficou conhecida com o nome de “Crítica da dialética e da filosofia hegelianas em  
geral”. Nela, podemos encontrar uma explicitação bastante nítida da posição de Marx  
diante de Hegel, notadamente da Fenomenologia do Espírito. O tema merece ser aqui  
abordado, tendo em vista a existência de uma longa tradição na literatura marxista  
que busca encontrar no mestre de Jena as credenciais filosóficas mais duradouras para  
o pensamento de Marx. Na década de 2000, ficou conhecido o exemplo de Christopher  
Arthur que, em seu A nova dialética e O capital de Marx, supôs encontrar uma  
correspondência direta entre a Ciência da lógica de Hegel e O capital. Assim é que no  
Capítulo 5 do livro de Arthur somos informados que:  
[...] o movimento de troca de mercadorias pelo valor é paralelo à sua  
[de Hegel] “Doutrina do Ser”; a duplicação do dinheiro e das  
mercadorias é paralela à “Doutrina da Essência”; e o capital,  
postulando a sua atualização no trabalho e na indústria, como “forma  
absoluta”, reivindica todas as características do “Conceito” de Hegel.  
(ARTHUR, 2004, p. 79)  
No limite, segundo esta perspectiva, cada uma das três partes da Ciência da  
lógica respectivamente, a Doutrina do Ser, da Essência e do Conceito encontraria  
uma contrapartida na obra magna de Marx. Tal suposição de Arthur finda por visualizar  
a monumental pesquisa e crítica de Marx à economia política como sendo passível de  
uma assimilação às categorias hegelianas da Ciência da lógica. Hipótese problemática,  
que homogeneíza um vasto campo especializado do conhecimento para que ele seja  
enquadrado numa espécie de fôrma que já estaria previamente constituída nos escritos  
de Hegel. O fato deste último ter tido um interesse real pela economia política (Hegel  
foi um leitor de Adam Smith) não nos autoriza dar o passo seguinte que consiste em  
supor que suas categorias lógicas teriam o poder - demiúrgico? - de plenamente  
elucidar questões e momentos categoriais do modo de produção capitalista que só se  
desdobraram décadas após seu falecimento  
Já a década de 2010 presenciou uma radicalização deste Hegel revival. Agora,  
o filósofo alemão forneceria não só a chave explicativa mais duradoura para o  
pensamento de Marx como, além disso, situar-se-ia em alguns aspectos mais além da  
obra deste último. É o que sustenta o eminente pesquisador Michael Heinrich - autor  
de uma cuidadosa biografia em curso sobre Marx -, que protesta contra o que lhe  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 53  
nova fase  
Maurício Vieira Martins  
parece ser uma simplificação excessiva do pensamento de Hegel feita por Marx. Mais  
especificamente, Heinrich afirma que a categoria idealismo não é adequada para  
designar o pensamento do filósofo alemão.  
Não deveríamos categorizar tão prontamente a filosofia de Hegel  
como “idealismo”, pelo menos não com base na definição de  
“idealismo” que surgiu na segunda metade do século XIX e que é  
frequentemente projetada para o início do século XIX. Para Hegel,  
“idealismo” significava trabalho conceptual e não aquilo que o  
entendimento comum de hoje pensa que é: uma contrafilosofia ao  
materialismo. (WITTER, 2020)  
Para corroborar sua hipótese, Heinrich menciona que pesquisou em duas  
enciclopédias de Filosofia da década de 1840, e ambas qualificam explicitamente Kant  
e Fichte como idealistas, mas não Schelling e Hegel. Num outro momento de sua  
argumentação, Heinrich afirma que idealismo tem um sentido diferente do usual nos  
escritos de Hegel, e que a sua qualificação como tal por parte de Marx e Engels se  
deveria a um “déficit tanto da concepção marxiana quanto da engelsiana sobre Hegel”  
(HEINRICH, 2021, p. 19). Idealismo hegeliano, segundo a interpretação de Heinrich,  
seria uma projeção feita pelos fundadores do materialismo histórico sobre um  
pensamento anterior, projeção que simplifica e caricatura a fisionomia distintiva do  
hegelianismo.  
Com todo o respeito que um pesquisador da seriedade de Heinrich merece, é  
preciso dizer que esta sua incursão na história da filosofia área distinta da de sua  
especialização enreda-se numa falsa questão, e isso por mais de um motivo24. O  
primeiro deles é que, diferentemente do que o autor afirma, o contraste entre  
materialismo e idealismo não surgiu na segunda metade do século XIX. Os exemplos  
seriam vários. Já no início do século XVIII, podemos mencionar Gottfried Leibniz, autor  
bem familiarizado com a história da filosofia. Em 1702, na sua polêmica com Pierre  
Bayle, Leibniz escreve orgulhosamente sobre sua própria filosofia:  
Isso mostra que nossa visão combina o que há de bom nas hipóteses  
tanto de Epicuro como de Platão, tanto dos maiores materialistas  
como dos maiores idealistas, e que não há nada de surpreendente  
aqui, exceto a suprema perfeição do princípio governante que se  
revela agora em suas obras bem acima de tudo que nós tínhamos  
acreditado até o momento. (LEIBNIZ, 1989, p. 578)  
Ou seja, Leibniz se remete explicitamente a um contraste entre materialismo  
24  
Para aqueles que se interessem por uma crítica a M. Heinrich dentro de seu próprio campo de  
especialidade a teoria do valor marxiana remetemos ao livro de Fred Moseley: Marx’s theory of value  
in chapter 1 of Capital: a critique of Heinrich’s value-form interpretation (MOSELEY, 2023).  
Verinotio  
54 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
(por ele atribuído a Epicuro) e idealismo (representado pelo platonismo) já no século  
XVIII. Se examinarmos agora a contemporaneidade de Marx, na primeira metade do  
século XIX, podemos citar o exemplo de Ludwig Feuerbach que em 1841, em A  
essência do cristianismo (texto bem conhecido por Marx), afirma em termos explícitos  
e programáticos: “Eu me vinculo, em oposição direta à filosofia hegeliana, apenas ao  
realismo, ao materialismo no sentido acima indicado” (FEUERBACH, 1989, p. XIV).  
Estes simples exemplos bastariam para demonstrar que não se sustenta a  
afirmação de Heinrich de que a definição de idealismo como oposta ao materialismo  
“surgiu na segunda metade do século XIX”, na pena de Marx e Engels, e foi projetada  
sobre Hegel. Indo mais longe, diríamos que a datação precisa do surgimento da  
categoria idealismo no sentido mencionado não é na verdade a questão fundamental  
aqui. Mais importante do que isso é perceber o forte sentido autoral da tomada de  
posição materialista de Marx. Dito de outro modo: não importa tanto como os  
contemporâneos de Hegel o viam, mas sim como Marx o via: como um pensador  
próximo da teologia que se infiltra em momentos decisivos de sua filosofia , a forma  
clássica de idealismo. Tomadas de posição que nomeiam alguns interlocutores com  
categorias não-consensuais são encontráveis em vários momentos da história do  
pensamento. Basta lembrar a crítica de Espinosa a Descartes, ou a de Darwin a  
Lamarck. Examinemos isso mais de perto.  
Quando afirmamos que Marx identifica na filosofia de Hegel uma forma refinada  
de teologia, apenas sublinhamos a centralidade nos textos hegelianos da existência de  
um Deus uma entidade pensante , que comparece em seus textos também com o  
nome de Ideia, dispondo de uma existência prévia ao mundo material. Será este um  
juízo excessivamente severo por parte de Marx? A pesquisa textual em Hegel evidencia  
que não. Ouçamos uma passagem de A ciência da lógica, onde é apresentado o objeto  
do texto:  
Assim, a lógica deve ser entendida como o sistema da razão pura,  
como o domínio do pensamento puro. Este reino é a verdade revelada,  
a verdade como é em si e para si mesma. Portanto, pode-se dizer que  
esse conteúdo é a exposição de Deus como Ele é em sua essência  
eterna antes da criação da natureza e de um espírito finito. (HEGEL,  
2010, p. 29)  
Eis aqui a doutrina da criação divina enunciada e assumida com todas as letras  
por Hegel. É por esta razão que o filósofo defende a criação a partir do nada (HEGEL,  
2010, p. 61), tradicional crença da doutrina cristã que afirma que do nada pode advir  
o ser, avaliada por Hegel como a melhor resposta para o surgimento da Natureza e do  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 55  
nova fase  
Maurício Vieira Martins  
homem.  
Para o leitor do nosso século, pode gerar surpresa esta defesa tão aberta de  
uma doutrina da criação por parte de Hegel, pois já circulavam à sua época concepções  
que apontavam para um modo distinto de investigação. Mas tal surpresa diminui  
quando se leva em conta que o pensamento hegeliano lança raízes, assumidas por ele  
próprio, no luteranismo dentro do qual o filósofo fez seus estudos como seminarista.  
Assim, em suas Lições sobre a história da filosofia, ele afirma com convicção: “nós  
luteranos - eu sou luterano e continuarei assim - temos apenas esta fé original” (HEGEL,  
1995, p. 73).  
Longe de ser uma afirmação que se esgota em si mesma, ser um luterano  
envolve a aceitação de uma extensa série de pressupostos correlatos, dentre os quais  
o mais óbvio é a aceitação de um Deus voluntarioso que criou a Terra e os seres que  
nela vivem. Esta decidida assunção do luteranismo é também o que explica a  
necessidade do culto religioso, aparato institucional e de conduta assumido por Hegel  
como indispensável para o pleno exercício da 25. Seguramente, o pensamento de  
Hegel não deve ser reduzido apenas a uma teologia: ele produziu com brilho em  
inúmeras áreas: lógica, ontologia, estética, fenomenologia, antropologia, Direito etc.  
Sua obra veicula uma densa oferta de sentido, manancial que ainda hoje nos atinge e  
não foi exaurido. Contudo, para o específico tema aqui sob exame a categoria  
idealismo , sua proximidade com uma perspectiva religiosa é incontornável, e Marx  
incidiu fortemente sobre ela. Proximidade que, como vimos, o próprio Hegel não tinha  
problemas em admitir. É apenas esta a razão da ênfase do presente artigo no tema.  
Apenas a título de contraste: enquanto Hegel aproxima a filosofia da teologia,  
quase dois séculos antes, Baruch Espinosa fez o percurso argumentativo oposto. Pois  
um dos gestos filosóficos mais contundentes do Tratado teológico-político espinosano  
foi separar a filosofia da teologia, evidenciando que se trata de dois discursos  
qualitativamente diversos26. Ao seu modo próprio, Marx estava no rastro do Tratado  
teológico-político27 quando já no Prefáciodos Manuscritos de 44 polemizando  
25 Nas palavras de Charles Taylor: “É por isso que Hegel defende [...] a visão luterana da Eucaristia não  
apenas contra a interpretação católica, mas também contra a concepção da Igreja Reformada” (TAYLOR,  
1977, p. 489).  
26  
“[...] entre a fé, ou teologia, e a filosofia não existe nenhuma relação nem nenhuma afinidade”  
(ESPINOSA, 2003, p. 222).  
27  
Em 1841, o jovem Marx estudou e reescreveu parte do Tratado teológico-político, alterando partes  
da sequência argumentativa original. O resultado deste trabalho ficou conhecido com o nome de  
Caderno Espinosa (MARX, 2012).  
Verinotio  
56 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
com os jovens hegelianos de então, que sequer alcançavam a inegável grandeza de  
Hegel - refere-se asperamente à teologia como o “lado putrefato da filosofia” (MARX,  
2004, p. 21) do qual é preciso adquirir distância.  
Resta ver qual é, dentro da concepção hegeliana, o significado de idealismo.  
Sabemos que M. Heinrich enfatiza na categoria sobretudo sua referência ao trabalho  
conceitual filosófico. Ocorre que esta definição, por operar no interior do arcabouço  
conceitual de Hegel, demanda considerações adicionais. Primeiramente, ouçamos o  
próprio filósofo:  
A afirmação de que o finito é uma idealização define o idealismo. O  
idealismo da filosofia consiste apenas no reconhecimento de que o  
finito não é verdadeiramente um existente. Toda filosofia é  
essencialmente idealismo ou pelo menos tem o idealismo como  
princípio, e a questão então é apenas até que ponto este princípio é  
realizado. Isto se aplica tanto à filosofia quanto à religião, pois  
também a religião, não menos que a filosofia, não admitirá a finitude  
como um ser verdadeiro, um último, um absoluto, ou como algo não-  
posto, incriado, eterno. (HEGEL, 2010, p. 124)  
“Toda filosofia é essencialmente um idealismo”, escreve Hegel. Isso se dá por  
ela, a filosofia, não se contentar com o finito, buscando ultrapassá-lo em direção ao  
infinito. Ora, na medida em que avançamos no pensamento hegeliano, fica claro que  
ele articula a infinitude precisamente à Ideia, entendida como o mais genuíno objeto  
da filosofia (“exposição de Deus como Ele é em sua essência eterna antes da criação  
da natureza e de um espírito finito”, como visto). Já o finito é associado ao mundo  
sensorial, que nesta perspectiva é precisamente aquilo que deve ser ultrapassado.  
Hegel aceita a concepção de Schelling da natureza como inteligência petrificada.  
Petrificação, impotência, exterioridade: estas são algumas das características da  
Natureza para nosso filósofo. Por isso é que toda filosofia é para ele idealismo: ao  
invés de se contentar com o finito da Natureza, ela a ultrapassa e mostra seu  
desenvolvimento interno rumo ao divino.  
Em síntese, o que é preciso tornar aqui transparente é que quando Marx enuncia  
sua crítica a Hegel, ele o faz por assumir uma tomada de posição materialista que  
diverge, em profundidade: 1) da referida junção da filosofia com a teologia; 2) do  
rebaixamento da Natureza à condição de um mero predicado, finito, da Ideia. Nas  
palavras dos Manuscritos de 44, referindo-se à Fenomenologia do Espírito:  
este resultado, o sujeito que se sabe enquanto consciência-de-si  
absoluta, é, por isso, o Deus, o espírito absoluto, a ideia que se sabe  
e aciona. O homem efetivo e a natureza efetiva tornam-se meros  
predicados, símbolos deste homem não efetivo oculto, e desta  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 57  
nova fase  
Maurício Vieira Martins  
natureza inefetiva. Sujeito e predicado têm assim um para com o outro  
a relação de uma absoluta inversão, sujeito-objeto místico ou  
subjetividade que sobrepuja o objeto... (MARX, 2004, p. 133).  
A crítica de Marx tem como alvo a crença numa entidade abstrata, a Ideia, motor  
ativo do hegelianismo, que tem prioridade sobre os sujeitos humanos reais. Certo é  
que, como um bom dialético, Hegel captura o movimento de reversão das categorias  
ideais em materiais, mas isso transcorre dentro do referido arcabouço conceitual, onde  
“A natureza no tempo é o primeiro termo, mas o prius absoluto é a ideia, este prius  
absoluto é o termo último, o verdadeiro princípio, o Alfa e o Ômega” (HEGEL, 2002, §  
248, Ag, p. 96).  
Examinemos agora uma afirmação adicional de Michael Heinrich, quando ele  
sustenta que o contraste vigente na interpretação de Marx sobre a relação entre o  
idealismo e o materialismo se baseia “sobre uma metáfora geográfica. É como se você  
tivesse duas cidades, a cidade do idealismo e a cidade do materialismo, e viajasse de  
uma cidade para outra e perguntasse: até onde você chegou?” (ROSO, 2018)  
Esta é sem dúvida uma interpretação muito idiossincrática, para dizer o mínimo,  
acerca do materialismo e do idealismo como duas posições filosóficas distintas. Onde  
está a metáfora geográficana afirmação de que o ser material precede e é o  
pressuposto para o surgimento do ser ideal? Aqui não há, rigorosamente, metáfora  
geográfica alguma. O que existe é a afirmação da anterioridade da matéria sobre o  
pensamento; afirmação confirmada por quase dois séculos de pesquisa em ciências da  
vida. O pensamento não provém de Deus ou da Ideia: ele é sobretudo um produto  
tardio na evolução das espécies, está encarnado num cérebro que pertence  
inapelavelmente a um corpo material. Notemos, ainda, que enfrentar com seriedade  
este debate envolve em algum momento aprofundar questões referentes à ontologia  
material e social. Entretanto, este é precisamente o caminho que Heinrich recusa de  
modo explícito. Em suas palavras: “quando Marx fala de materialismo, seu objetivo é  
discutir o comunismo, e não a relação ontológica entre a mente e a matéria” (WITTER,  
2020). De novo aqui, uma interpretação extremamente discutível, até porque é  
perfeitamente possível discutir teoricamente a posição materialista sem fazer  
referência a um projeto comunista - e a história da filosofia apresenta pensadores que  
ilustram bem esta possibilidade. Em contrapartida, a relação entre a mente e a matéria  
é um tópico incontornável em qualquer debate sobre o materialismo. Já György Lukács  
havia alertado que a desqualificação sumária de questões ontológicas traço  
recorrente de nossa época - finda por interditar um extenso segmento do debate  
Verinotio  
58 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
filosófico (LUKÁCS, 2012, pp. 25-43).  
* * * *  
Quando visualizamos com maior nitidez o teor da crítica de Marx a Hegel, torna-  
se possível, aí sim, resgatar a grandeza de outras dimensões da filosofia do segundo  
pensador; tal possibilidade foi afirmada tanto nos Manuscritos de 44 como em  
momentos bem mais avançados da obra marxiana, como veremos a seguir. No que diz  
respeito aos Manuscritos de 44, há um elogio inequívoco:  
A grandeza da “Fenomenologia” hegeliana e de seu resultado final -  
a dialética, a negatividade enquanto princípio motor e gerador é  
que Hegel toma, por um lado, a autoprodução do homem como um  
processo, a objetivação [Vergegenständlichung] como desobjetivação  
[Entgegenständlichung], como exteriorização [Entäusserung] e  
suprassunção [Aufhebung] dessa exteriorização; é que compreende a  
essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque  
homem efetivo, como o resultado de seu próprio trabalho. (MARX,  
2004, p. 123)  
A autogeração do homem como um processo, esta é uma conquista teórica  
hegeliana devidamente valorizada por Marx. Hegel soube captar a processualidade  
que é própria à constituição humana. Só por isso, só por ter fornecido os meios para  
se visualizar nossa espécie como o resultado de seu próprio trabalho, Hegel já teria  
garantido seu lugar como um dos expoentes da história da filosofia. A própria  
categoria de essência [wesen] se vê profundamente alterada, como mencionado em  
seção anterior deste artigo. Ao invés de ser pensada como um substrato atemporal, a  
essência passa a ser concebida como transformada e atravessada pelo decurso  
histórico. É a importância da mediação [Vermittelung] que reclama seus direitos  
também nos Manuscritos de 44: “Somente por meio da suprassunção desta mediação  
que é, porém, um pressuposto necessário - vem a ser o humanismo positivo, que  
positivamente parte de si mesmo” (MARX, 2004, p. 132)  
Neste sentido, se é verdade que Marx lança mão de aquisições de Feuerbach  
em sua polêmica com Hegel, seria errôneo postular uma identidade entre o primeiro e  
o segundo. Acabamos de ler: a mediação não foi recusada por Marx, diferentemente  
do que ocorria com o autor de A essência do cristianismo. Não é possível iniciar-se um  
trajeto filosófico a partir do positivo imediato, há que reconhecer as mediações  
históricas - com destaque para o trabalho humano - responsáveis pela configuração  
assumida pelo próprio mundo sensorial.  
Assim é que a concepção do que seja a atividade, a dialética da negatividade,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 59  
nova fase  
Maurício Vieira Martins  
a “objetivação como alienação” sofre a influência de Hegel, bem como o entendimento  
do caráter processual do ser, sua transitoriedade. Contudo, enquanto na  
Fenomenologia do Espírito o responsável pelo engendramento de uma subjetividade  
singularizada era antes de tudo o trabalho intelectual, realizado pela consciência que  
reflexiona seus pressupostos, já em Marx trata-se de um trabalho que interage com  
objetos reais, e não apenas com objetos do pensamento. Este resgate da  
sensorialidade desempenha um papel crucial no entendimento marxiano dos sujeitos  
humanos. Em tal revalorização da sensorialidade sem dúvida existe a marca de L.  
Feuerbach, reconduzindo a análise ao campo da objetividade, e apontando para a  
origem terrena do pensamento. Porém, Feuerbach faz isso pagando o alto custo de  
mutilar a própria compreensão acerca da atividade, e é precisamente esta  
compreensão que os Manuscritos de 44 pretendem formular, realizando uma original  
síntese entre aquisições conceituais distintas de Hegel e Feuerbach. Pronunciamentos  
posteriores de Marx dão conta de que, em sua maturidade, o influxo de Feuerbach em  
seu pensamento pouco deixou marcas, ao passo que Hegel permaneceu como um  
interlocutor bem mais duradouro.  
Na verdade, nem é aqui o interesse primordial identificar “o que é de Hegel” ou  
“o que é de Feuerbach” no Marx de 1844. Mais produtivo é reconhecer a torção que  
ele imprimiu em suas fontes, gerando um enunciado novo, com feição própria.  
Aprofundando a questão, é correto dizer que, “de Hegel a Marx”, não foi apenas o  
campo teórico que mudou: a realidade histórica era outra. Além da possibilidade de  
uma crítica categorial, havia a própria realidade viva agindo na formulação da teoria.  
A sociedade burguesa que Hegel havia estudado ao início do século XIX acabou  
manifestando seus conteúdos mais contraditórios e explosivos. Em termos  
propriamente marxianos, o circuito do valor alcançou patamares mais elevados bem  
como a luta de classes a ele associada , possibilitando explicações que melhor  
espelhavam a realidade como contradição processual.  
Ainda em relação à Fenomenologia do Espírito é preciso dizer que ela possui  
uma dimensão subterrânea, por assim dizer, que merece ser escavada para trazer à  
luz seus conteúdos mais inovadores:  
A “Fenomenologia” é, por isso, a crítica oculta [verborgene], em si  
mesma ainda obscura e mistificadora; mas na medida em que ela  
retém [hält fest] o estranhamento do homem ainda que também  
este último apareça apenas na figura do espírito , encontram-se nela  
ocultos todos os elementos da crítica, muitas vezes preparados e  
elaborados de modo que suplantam largamente o ponto de vista  
Verinotio  
60 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
hegeliano. (MARX, 2004, p 122)  
A referência a suplantar “largamente o ponto de vista hegeliano” dá conta da  
acuidade de Marx em discernir, dentro do próprio hegelianismo, elementos que o  
ultrapassam. Na sequência da passagem, encontraremos o reconhecimento textual de  
que as figuras da consciência tal como elaboradas por Hegel (“consciência infeliz”,  
“consciência honesta” etc.) conseguem capturar traços relevantes do estranhamento,  
ainda que no interior do idealismo hegeliano28.  
Por fim, aqueles que acreditam numa relação de completa exclusão entre o  
jovem Marx e o Marx da maturidade se surpreenderão com o reaparecimento de temas  
da juventude, muitas vezes de forma quase literal, na obra da maturidade. No  
Posfácioà edição alemã de O capital, reencontraremos o mesmo movimento duplo:  
o reconhecimento dos limites de Hegel, mas também de sua grandeza. E mais: a  
incorporação de categorias de origem hegeliana sempre passa por uma reelaboração  
do próprio Marx, onde sua autoria vai se afirmando de forma cada vez mais nítida.  
A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em  
absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e  
consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra  
de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne  
racional dentro do invólucro místico. (MARX, 2013, p. 91)  
Chama a atenção a recorrência nos textos marxianos do significante “místico”  
[mystische] e de seus derivados [Mystifikation] para designar a filosofia de Hegel:  
amálgama da filosofia com a teologia muito precocemente recusado por Marx. No  
nosso século XXI, que nos apresenta o modo de produção capitalista em sua face mais  
mortífera, pode ser um procedimento tentador inflar a importância de Hegel como  
pensador e afirmar que ele foi mal compreendido por Marx. Contudo, um exame textual  
deste último nos mostra que foi precisamente por ter bem entendido os limites do  
hegelianismo que Marx conseguiu alcançar seu campo próprio de expressão.  
Categorias dos Manuscritos de 44 nas obras posteriores de Marx  
Ao longo deste artigo, apontamos para as conquistas conceituais dos  
Manuscritos de 1844, mas também para alguns de seus limites. Quanto a estes  
últimos, eles poderiam ser sintetizados como: um conhecimento ainda muito incipiente  
das categorias da economia política por parte de Marx; consequentemente, a ausência  
28 Outras vertentes do pensamento hegeliano recepcionadas positivamente por Marx foram abordadas  
em meu artigo: “Hegel, Espinosa e o marxismo: para além de dicotomias” (MARTINS, 2020, pp. 2946).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 61  
nova fase  
 
Maurício Vieira Martins  
de uma teoria do valor, cuja pesquisa consumirá literalmente décadas da vida do autor;  
a utilização abundante de uma categoria como “o homem”, que pode ser criticada por  
veicular uma concepção essencialista (embora o próprio texto ofereça elementos para  
ultrapassar-se esta interpretação). Relacionada a esta última característica, está aquilo  
que um autor como G. Márkus nomeou como o individualismo metodológico presente  
nos Manuscritos de 44 (MÁRKUS, 1974, p. 39)29: a suposição de que é possível  
derivar-se o conjunto das relações sociais (propriedade privada, estado, religião etc.)  
a partir da objetivação de o homem.Sabemos que os textos da maturidade de Marx  
como que invertem este percurso argumentativo. Mas em 1844, estamos distantes da  
formulação marxiana da maturidade que afirma: “meu método analítico [...] não parte  
do homem, mas de períodos sociais economicamente dados” (MARX, 2017, p. 267)  
Mencione-se ainda, no Manuscritos, uma invocação ao mundo sensorial como  
fundamento adequado para o conhecimento científico: “A sensibilidade (vide  
Feuerbach) tem de ser a base de toda ciência” (MARX, 2004, p. 112)30. Uma  
formulação como esta, na maturidade de Marx, necessitaria de uma série de  
qualificações. Mantido o reconhecimento do concreto como “o ponto de partida  
efetivo” (MARX, 2011b, p. 54) – nas palavras da célebre Introdução aos Grundrisse ,  
todo um denso debate se fez necessário sobre o papel das abstrações razoáveis na  
elaboração do conhecimento. Apenas como exemplo: uma categoria como o mais valor  
não é detectável mesmo mediante uma apurada inspeção do mundo sensorial; ela  
necessita de abstrações para poder ser demonstrada.  
Registrados esses limites, ainda assim o texto de 1844 consolida e desenvolve  
aquisições que se revelarão duradouras. Talvez a mais evidente seja a espessura  
teórica e filosófica da Entfremdung, categoria que costuma ser traduzida por  
estranhamento ou alienação. Ao longo de sua obra, Marx prossegue explorando as  
diferentes dimensões do estranhamento: com relação ao produto do trabalho, à  
própria atividade vital, ao outro ser humano, à espécie como um todo. Na sua  
maturidade, Marx oferecerá uma radiografia mais precisa do capital como realidade  
29  
Infelizmente, não foi bom o devir filosófico do próprio G. Márkus: após um início promissor, migrou  
progressivamente para posições cada vez mais distantes do marxismo.  
30  
Sinnlichkeit pode ser traduzido também como “sensorialidade”, “mundo sensorial”, como já  
mencionado. Incidentalmente, notemos que devido à concepção dialética de Marx não é possível traçar  
uma linha divisória definitiva (anseio presente em algumas traduções) entre as diferentes categorias  
engendradas pelo desdobramento da argumentação. Neste específico aspecto, também em Marx vemos  
operar - a seu modo próprio - o que Hegel nomeava como Umschlagen, o reverter, o revirar recíproco  
de categorias distintas. Aqui, a distância em relação ao cartesianismo é imensa.  
Verinotio  
62 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
estranhada, que adquire um automatismo peculiar. Citemos uma passagem mais  
extensa de O capital, em seu Capítulo XXI, “Reprodução simples”; nela veremos  
enunciado, mais uma vez, o tema do estranhamento:  
Como antes de entrar no processo seu próprio trabalho já está  
alienado dele [ihm selbst entfremdet], apropriado pelo capitalista e  
incorporado ao capital, esse trabalho se objetiva continuamente, no  
decorrer do processo, em produto alheio. Sendo processo de  
produção e, ao mesmo tempo, processo de consumo da força de  
trabalho pelo capitalista, o produto do trabalhador transforma-se  
continuamente não só em mercadoria, mas em capital, em valor que  
suga a força criadora de valor, em meios de subsistência que compram  
pessoas, em meios de produção que se utilizam dos produtores. Por  
conseguinte, o próprio trabalhador produz constantemente a riqueza  
objetiva como capital, como poder que lhe é estranho, que o domina  
e explora[...]. (MARX, 2013, p. 645-6)  
Qualquer leitor desprovido de preconceitos vê-se obrigado a reconhecer nesta  
análise da maturidade a retomada do tema do estranhamento, que já havia merecido  
a atenção de Marx pelo menos desde 1843/1844. É por esta razão que a afirmação  
de um corte epistemológico entre o jovem e o velho Marx concepção tão apreciada  
por pesquisadores de formação althusseriana revela-se manifestamente precária para  
nomear a complexificação adquirida por Marx ao longo de seu trajeto. A noção de  
“corte” reifica e congela a produção da juventude de Marx, impedindo o discernimento  
da produtividade existente em algumas de suas categorias.  
No que diz respeito a um dos temas examinados mais de perto neste artigo, a  
formação de uma subjetividade humana, é de se notar também a persistência da crítica  
de Marx às consequências dos imperativos de produtividade capitalista vinculados à  
divisão do trabalho. Imperativos que fixam cada indivíduo a um ramo muito unilateral  
da produção, impedindo a exteriorização da pluralidade de suas forças essenciais. Tal  
crítica de Marx à unilateralidade do desenvolvimento humano na sociedade capitalista  
prosseguirá firme durante a redação de O capital. Em seu Capítulo XII, intitulado  
“Divisão do trabalho e manufatura”, é enunciada uma divergência de fundo quanto às  
deformações trazidas pela manufatura em seus trabalhadores:  
Ela aleija o trabalhador, converte-o numa aberração, promovendo  
artificialmente sua habilidade detalhista por meio da repressão de um  
mundo de impulsos e capacidades produtivas, do mesmo modo como,  
nos estados de La Plata, um animal inteiro é abatido apenas para a  
retirada da pele ou do sebo. (MARX, 2013, p. 434)  
O substrato filosófico destas contundentes palavras de Marx é precisamente  
sua concepção das capacidades humanas como sendo potencialmente plurais –  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 63  
nova fase  
Maurício Vieira Martins  
conforme enfatizado anteriormente , necessitando de um conjunto variado de objetos  
para poderem ser exercidas. Sempre que se confina um indivíduo a um ramo unilateral  
da produção, está-se amputando um conjunto de outras capacidades suas. Marx  
manteve viva sua sensibilidade para esta deformação e, também em O capital, recupera  
depoimentos de trabalhadores estadunidenses que conseguiam circular entre  
diferentes atividades num país que, no século XIX, não havia ainda cristalizado em  
definitivo as ramificações da divisão do trabalho. Ouçamos o depoimento de um deles:  
Jamais eu teria acreditado que seria capaz de exercer todos os ofícios  
que pratiquei na Califórnia. Estava convencido de que, salvo a  
tipografia, eu não servia para nada [...]. Certa vez, em meio a esse  
mundo de aventureiros, que trocam mais facilmente de profissão do  
que de camisa, agi e juro que assim o foi! como os outros. Como  
a mineração não se mostrou suficientemente rentável, abandonei-a e  
me dirigi à cidade, onde trabalhei sucessivamente como tipógrafo,  
telhador, fundidor de chumbo etc. Depois de ter tido essa experiência  
de ser apto para todo tipo de trabalho, sinto-me menos molusco e  
mais homem. (MARX, 2013, p. 558, n. 308)  
Se sentir “menos como um molusco e mais como um homem” deixa entrever as  
possibilidades plurais da atividade humana, quando ela ainda não ingressou  
plenamente no circuito do trabalho alienado. Apenas para evitar mal entendidos: o  
projeto político de Marx não era, por óbvio, a instauração na Europa do capitalismo  
norte-americano, mas sim de uma sociedade socialista. Aqui, o contraste foi feito  
apenas para evidenciar diferenças temporais no desenvolvimento do modo de  
produção capitalista. Pois o estranhamento do trabalho é, há mais de um século,  
fenômeno gritante também nos Estados Unidos.  
Razões como estas evidenciam que um conhecimento seguro dos Manuscritos  
de 44 se somará ao de O capital e de outros textos para um melhor entendimento  
da extensão e da ramificação da crítica de Marx à sociedade capitalista. Crítica que  
ultrapassa a denúncia da concentração da riqueza desta última certamente uma  
aberração a ser cotidianamente combatida , atingindo também os fundamentos  
mesmo da produção da vida e de subjetividades no mundo contemporâneo. Certo é  
que o conhecimento da obra de Marx não é um fim em si mesmo: ele deve ser  
continuamente cotejado com a situação contemporânea dos séculos XX e XXI. Nas  
palavras de Vitor Sartori:  
A atitude diante do capitalismo de determinada época depende da  
apreensão de sua particularidade, bem como da diferença específica  
existente entre as categorias econômicas de determinado momento  
diante daquelas das análises de Marx e dos clássicos do marxismo [...].  
(SARTORI, 2022, p. 341)  
Verinotio  
64 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
Com efeito, há todo um trabalho a ser cotidianamente realizado de atualização  
do legado marxiano para a nossa época, sem o qual estaríamos interditando a  
possibilidade de uma compreensão adequada da contemporaneidade em que vivemos.  
Dito isso, e retornando ainda uma vez à pertinência da crítica de Marx sobre a  
alienação do trabalho, sabemos que a partir da terça parte do século XX surgiram  
teorias que prognosticavam um crescente declínio do uso da força de trabalho  
humana31. Mesmo com diferenças significativas, partilhavam da ideia de que a  
automação crescente dispensaria cada vez mais o seu uso. O fascínio promovido pela  
revolução eletrônica teve sua contrapartida cultural na produção de filmes onde é  
recorrente o tema de robôs que produzem outros robôs, tornando acessória a  
presença humana. Mesmo alguns teóricos ligados ao marxismo endossaram a avaliação  
de que se caminhava para um declínio inexorável da utilização da força de trabalho. O  
grupo alemão Krisis, que teve em Robert Kurz um de seus participantes de maior  
projeção, usou palavras provocativas para referir-se a tal suposto declínio: “A venda  
da mercadoria força de trabalho será no século XXI tão promissora quanto a venda de  
carruagens de correio no século XX” (GRUPO KRISIS, 1999).  
Forçoso é reconhecer que o transcurso histórico não confirmou tal previsão.  
Longe disso. O que temos no século XXI é uma configuração histórica portadora de  
um desenvolvimento tecnológico inaudito, convivendo com multidões de  
trabalhadores precarizados e mal remunerados. Ao invés do fim da sociedade do  
trabalho, o que vigora é uma expansão da jornada de trabalho mesmo sobre aqueles  
períodos que tradicionalmente se constituíam como tempo livre: fins de semana,  
feriados, turnos da noite. Isso para não mencionarmos aqueles que mergulham no  
desemprego puro e simples, constituindo o que alguns cientistas sociais designam  
com o incômodo nome de refugo humano: são os sobrantes de uma sociedade que  
não encontram condições para viver e exercer suas potencialidades de vida.  
As considerações sobre a dura atualidade do trabalho estranhado fazem pensar  
que o retorno a certos textos fundadores de Marx aliado à sua atualização nos  
permitem examinar a gênese de uma configuração sócio-histórica que hoje atinge seu  
paroxismo. Pois o fato é que em 1844, aos 25 anos de idade e ainda muito distante  
de suas grandes obras da maturidade , o jovem Marx num primeiro contato com a  
Economia Política dispôs-se a revisar sua herança filosófica para melhor visualizar a  
31 Em 1844, Marx não havia ainda formulado a importante distinção entre trabalho e força de trabalho,  
característica de sua maturidade.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 65  
nova fase  
 
Maurício Vieira Martins  
hidra que se formava diante de si. O leitor contemporâneo que percorrer, sem  
preconceitos, estes densos Manuscritos de 1844, mesmo com seus limites reais,  
poderá presenciar ali, no nascedouro, a força de um pensamento que se ergue. Será  
excessivo afirmar que este encontro pavimentado por Marx entre a Filosofia e a  
Economia Política mudou parte da história do pensamento?  
Referências bibliográficas  
ALTHUSSER, Louis. For Marx. London: Verso, 2005.  
ARTHUR, Christopher J. The new dialectic and Marx’s Capital. Leiden-Boston: Brill,  
2004.  
BOER, Roland. In the Vale of Tears: on Marxism and Theology V. Leiden: Brill, 2013.  
DUSSEL, Enrique. Teologia da libertação: um panorama de seu desenvolvimento.  
Petrópolis: Vozes, 1999.  
ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.  
FEUERBACH, Ludwig. The essence of Christianity. New York: Prometheus Books, 1989.  
FREUD, Sigmund. “A perda da realidade na neurose e na psicose”. In: FREUD. Sigmund.  
Obras completas v. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.  
GOULD, S. J. The Panda’s thumb. London: Penguin Books, 1990.  
GREENBERG, Robert. Music history monday: M’Lord Falstaff. 2020. Disponível em:  
<https://robertgreenbergmusic.com/music-history-monday-mlord-falstaff/>.  
GRUPO  
KRISIS. Manifesto  
contra  
o
trabalho.  
1999.  
Disponível  
em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7829978/mod_resource/content/1  
/Manifesto%20contra%20o%20Trabalho%20-%20Grupo%20Krisis.pdf>.  
HALLAK, Mônica. Alienação do trabalho em Marx: dos Manuscritos de 1844 a O capital.  
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, ano XIII, n. 1, v. 24,  
abr./2018.  
HEGEL, G. W. F. Enciclopedia delle Scienze Filosofiche in Compendio v. 2: Filosofia  
della Natura. Torino: Unione Tipografico - Editrice Torinese, 2002.  
HEGEL, G. W. F. Lectures on the history of philosophy 1: Greek Philosophy to Plato.  
Lincoln: University of Nebraska Press, 1995.  
HEGEL, G. W. F. The phenomenology of Spirit. Cambridge: Cambridge University Press,  
2019.  
HEGEL, G. W. F. The science of logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.  
HEINRICH, M. Reler Engels: sua resenha de para a crítica da economia política, de Marx.  
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Philosophical papers and letters. Dordrecht: Kluwer  
Academic Publishers, 1989.  
LÖWY, Michael. “Marxismo e religião: ópio do povo?” In: BORÓN, A. et. al. (Ed.). A  
teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. Buenos Aires: Clacso, 2007.  
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social v. I. São Paulo: Boitempo, 2012.  
MARCUSE, Herbert. Studies in critical philosophy. Boston: Beacon Press, 1972.  
MÁRKUS, György. A teoria do conhecimento no jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra,  
1974.  
MARTINS, Maurício Vieira. “Hegel, Espinosa e o marxismo: para além de dicotomias”.  
Revista Novos Rumos, 57, n. 1, pp. 2946. 2020.  
MARTINS, Maurício Vieira. Marx, Espinosa e Darwin: pensadores da imanência. Rio de  
Janeiro: Consequência, 2017.  
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Lisboa: Editorial Presença, 1983.  
Verinotio  
66 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx  
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução. Temas de Ciências  
Humanas, São Paulo, Editorial Grijalbo, v. 2, pp. 1-14, 1977.  
MARX, Karl. Cuaderno Spinoza. Barcelona: Montesinos Ediciones de Intervención  
Cultural, 2012.  
MARX, Karl. Glosas marginais ao Manual de economia política de Adolph Wagner.  
Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 23,  
n. 2, ano XII, pp. 252-279, nov./2017.  
MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. São Paulo/Rio de  
Janeiro: Boitempo/Ed. UFRJ, 2011b.  
MARX, Karl. “Letter to Ferdinand Lassalle, February 22, 1858”. In: Karl Marx &  
Frederick Engels Collected Works, v. 40. London: Lawrence & Wishart, 2010.  
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.  
MARX, Karl. O capital Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.  
MARX, Karl. “Ökonomisch-philosophische Manuskripte aus dem Jahre 1844”. In: MARX,  
Karl; ENGELS, F. Werke Band 40. Berlin: Dietz Verlag, 1968.  
MARX, K. & ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.  
MARX, K. & ENGELS, F. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2011.  
MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.  
MÉSZÁROS, István. Marx’s theory of alienation. London: Merlin Press. 1986.  
MOSELEY, F. Marx’s theory of value in chapter 1 of Capital: a critique of Heinrich’s  
value-form interpretation. Cham: Palgrave MacMillan, 2023.  
MUSTO, Marcello. “Alienation redux: Marxian perspectives”. In: MUSTO, Marcello (Ed.).  
Karl Marx’s writings on alienation. Cham: Palgrave Macmillan, 2021.  
NETTO, José Paulo. “Marx em Paris”. In: Marx, K. Cadernos de Paris & Manuscritos  
Econômico-Filosóficos de 1844. São Paulo: Expressão Popular, 2015.  
ROSO, Darren. Interview with Michael Heinrich. Berlin, 2018. Disponível em:  
<https://www.historicalmaterialism.org/interviews/interview-with-michael-  
heinrich>.  
SARTORI, V. A obra madura de Lukács: sobre a correlação entre ética e ontologia.  
Revista Katálysis, v. 25, n. 2, pp. 337-345, maio-ago. 2022.  
TAYLOR, Charles. Hegel. Cambridge: Cambridge University Press. 1977.  
WITTER, Kathrin. Marx and the birth of modern society: An Interview with Michael  
Heinrich, 2020. Disponível em: <https://www.jhiblog.org/2020/11/25/marx-and-  
the-birth-of-modern-society/>.  
Como citar:  
MARTINS, Maurício Vieira. Os 180 anos dos Manuscritos de 1844 de Marx:  
materialismo, subjetividade e o debate com Hegel. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29,  
n. 2, pp. 24-67; jul.-dez., 2024.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 24-67 jul.-dez., 2024 | 67  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.736  
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos  
juristas analíticos  
Marx and the criticism of the so-called “method” of the  
analytical jurists  
Ana Carolina Marra de Andrade*  
Resumo: No presente artigo, iremos analisar a  
crítica feita por Karl Marx em seus Cadernos  
Etnológicos ao assim chamado “método” dos  
juristas analíticos. Para isso, passaremos pelos  
comentários de Marx ao jurista Henry Sumner  
Maine, fazendo um exame extenso de um trecho  
específico, no qual essa crítica aparece de forma  
mais direta. Ao longo de nossa exposição,  
pretendemos demonstrar que a crítica ao  
“método” dos juristas analíticos está inserida na  
perspectiva de uma crítica à teoria do direito  
como um todo. Então, dissecaremos a associação  
feita por Marx entre a economia política e a teoria  
do direito, em especial a de John Austin,  
passando pela crítica ao método da economia  
política com base nos Grundrisse: Manuscritos  
econômicos de 1857-1858, e também pela  
diferenciação entre economia política, economia  
vulgar, e apologética conforme exposta em obras  
anteriores do autor de O capital. O que Maine  
chama de “método” dos juristas analíticos é, para  
Marx, um dogmatismo formalista comum à teoria  
do direito, que traz elementos distorcidos da  
economia política de modo cabalmente  
apologético. A temática perpassa discussões que  
acompanharam Marx por toda sua vida, como a  
relação entre burguesia e a produção científica,  
bem como o papel da teoria do direito na defesa  
de interesses burgueses. Ademais, acreditamos  
que uma leitura dedicada dos Cadernos  
etnológicos tem muito a oferecer para o  
pensamento marxista, e nosso artigo fornece  
algumas pontuais contribuições nesse sentido.  
Abstract: In this article, we will analyze the  
criticism made by Karl Marx in his Ethnological  
Notebooks to the so-called “method” of  
analytical jurists. To do this, we will go through  
Marx's comments to the jurist Henry Sumner  
Maine, making an extensive examination of a  
specific passage, in which this critique appears  
more directly. Throughout our exposition, we  
intend to demonstrate that the criticism of the  
“method” of analytical jurists is inserted in the  
perspective of a critique of the theory of law as  
a whole. Then, we will dissect the association  
made by Marx between political economy and  
the theory of law, especially that of John Austin,  
going through the criticism of the method of  
political economy based on the Grundrisse:  
foundations of the critique of political economy,  
as well as the differentiation between political  
economy, vulgar economics and apologetics as  
exposed in previous works by the author of  
Capital. What Maine calls the “method” of  
analytical jurists is, to Marx, a formalistic  
dogmatism common to legal theory, which  
brings distorted elements of political economy  
in a completely apologetic way. The theme  
permeates discussions that accompanied Marx  
throughout his life, such as the relationship  
between the bourgeoisie and scientific  
production, as well as the role of legal theory in  
defending bourgeois interests. Furthermore, we  
believe that a dedicated reading of the  
Ethnological notebooks has a lot to offer for  
Marxist thought, and our article provides some  
specific contributions in this sense.  
Palavras-chave: Karl Marx; método; juristas  
analíticos; teoria do direito; economia política.  
Keywords: Karl Marx ; method ; analytical jurists;  
theory of law ; political economy.  
*
Mestranda em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail:  
anamarra7@gmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
Introdução  
No presente artigo, trataremos da crítica feita por Karl Marx ao assim chamado  
método dos juristas analíticos em seus Cadernos etnológicos, mais especificamente na  
parte em que traça comentários à obra Lectures on the early history of institutions  
(1875) de Henry Sumner Maine. Os Cadernos etnológicos de Marx são um conjunto  
de notas deixadas por Marx escritas entre os anos 1879 a 1882, que foram  
compiladas e editadas por Lawrence Krader quase um século depois, sendo publicadas  
somente em 1972. No recorte feito por Krader, estão expostos os comentários, além  
de Maine, acerca dos autores Lewis Henry Morgan, John Budd Phear e John Lubbock.  
Não obstante, nos documentos originais consta um material muito mais  
abrangente, incluindo comentários sobre os autores Maksim Kovalévski, o qual foi  
publicado por Krader separadamente em 1975 (KRADER, 1975, pp. 343-412), e  
outros que ainda não vieram à público, acerca de Karl Bücher, Ludwig Friedländer,  
Ludwig Lange, Rudolf Jhering, Rudolf Sohm e J. W. B. Money. A previsão para a  
publicação integral dos comentários marxianos é até 2025 no volume IV/27 da Marx-  
Engels-Gesamtausgabe (Mega) com o título Antropologia, sociedades não-ocidentais,  
gênero e história da propriedade da terra1.  
Henry Sumner Maine (1822-1888) foi um jurista inglês muito notório na Europa  
do século XIX. Ao longo de sua vida, ocupou os cargos de professor da Universidade  
de Cambridge e da Universidade de Oxford, bem como de conselheiro do governador-  
geral da Índia no período de 1863 a 1869. Maine teve uma grande importância na  
formação do código de leis colonial do Raj britânico, e até hoje é muito retomado ao  
lado dos juristas analíticos John Austin e Jeremy Bentham como um dos expoentes da  
teoria do direito anglosaxã. Sua obra mais renomada é Ancient Law (1861). As  
Lectures on the early history of institutions (1875) comentadas por Marx tratam-se de  
aulas lecionadas pelo jurista nas quais expõe alguns desdobramentos de suas teses  
desenvolvidas em Ancient Law.  
Os Cadernos de Marx são um texto muito negligenciado pela tradição marxista  
ao longo dos anos, especialmente no âmbito da crítica ao direito. Isso pode ser  
entendido como consequência de sua publicação tardia, quando alguns outros textos  
já haviam sido consolidados como cânones do pensamento marxiano, além da  
dificuldade da leitura em razão de seu formato, e por se tratarem de meras anotações  
1 Cf. Marx-Engels-Gesamtausgabe (Mega). Disponível em: <https://mega.bbaw.de/de>. Acesso em: 14 nov.  
2023.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 69  
nova fase  
 
Ana Carolina Marra de Andrade  
cuja finalidade original era um estudo pessoal, não sendo destinadas à publicação. No  
entanto, acreditamos que muitas contribuições relevantes podem ser extraídas de uma  
análise atenta dos textos, sobretudo entendendo-os não como um texto a parte, mas  
inserido dentro de uma gama de produções elaboradas ao longo de toda a vida do  
autor. Nesse sentido, ainda que o nosso foco central seja os Cadernos, traremos  
também outros textos de Marx, bem como de alguns comentadores, para auxiliar na  
compreensão de determinados temas mencionados ao longo da exposição.  
Diante disso, é evidente que nosso objetivo não é fazer uma análise detalhada  
do pensamento de Maine, mas das contribuições concretas do próprio Marx nestes  
excertos. Nosso interesse primordial é a crítica marxiana ao assim chamado “método”  
dos juristas analíticos, a qual pressupõe uma crítica à teoria do direito, mais  
especificamente a defendida por Austin, Bentham e, até certo ponto, pelo próprio  
Maine. Conforme veremos ao longo da exposição, não se trata de um método  
propriamente dito, razão pela qual optamos por ressaltar o caráter de assim chamado,  
na medida em que Maine o chama de método.  
Antes de passar para a análise do texto propriamente dito, cabe fazer algumas  
considerações acerca da tradução e do formato das citações que iremos utilizar. Em  
suas notas, Marx sinaliza boa parte de suas intervenções originais, utilizando  
indiscriminadamente parênteses “()” ou colchetes “[]” para indicá-las. No entanto, para  
facilitar a leitura, em nosso trabalho seguiremos a padronização feita por Ripalda na  
edição espanhola com tradução para o castelhano, na qual todas as interpolações  
marxianas são colocadas com colchetes e os parênteses são reservados para frases do  
texto que Marx comenta. Também seguindo a organização de Ripalda, as interpolações  
entre colchetes e colchetes angulares (símbolos de maior/menor que) “<[> <]>”  
indicam uma intervenção de Marx que ele próprio não sinalizou, mas que os editores  
decidiram ressaltar para que não passasse despercebida.  
Na falta de uma edição com tradução para o português, faremos uma tradução  
livre das citações diretas baseada sobretudo na tradução de Ripalda, do castelhano.  
Não obstante, colocaremos em rodapé após todas as citações o trecho em castelhano,  
bem como o original, no qual Marx alterna entre inglês e alemão.  
Maine e os juristas analíticos  
Para trabalhar a crítica de Marx ao chamado método dos juristas analíticos,  
trataremos, primeiramente, de uma visão mais geral da crítica aos juristas analíticos  
Verinotio  
70 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
conforme exposta em seus Cadernos etnológicos, de modo a colocar o contexto no  
qual a crítica ao método se coloca. Nesse sentido, não abordaremos de todos os  
aspectos referentes à crítica aos juristas analíticos, mas àqueles que culminam na crítica  
ao método. Retomaremos, também, alguns outros textos do autor para auxiliar na  
interpretação do trecho em que ela aparece, sem, é claro, extrapolar os limites  
objetivos do próprio texto que consiste em nosso objeto de análise.  
Desse modo, conforme exposto, nosso objeto central são os Cadernos  
etnológicos, em especial a parte reservada para os comentários acerca da obra  
Lectures on the early history of institutions, do jurista inglês Henry Sumner Maine, na  
qual está contida a crítica aos juristas analíticos em geral. As elaborações teóricas de  
Maine detêm grande influência dessa escola de pensamento. Como o próprio Marx  
ressalta, no cap. XII de suas Lectures ele chega a expressar que “a Inglaterra possui o  
privilégio dos <<juristas analíticos>>, como lá os chamam, cujos representantes mais  
ilustres são Jeremy Bentham e John Austin” (MARX, 1988, p. 287 – tradução livre)2.  
Para Maine, o grande descobrimento de Austin é sua teoria da soberania. Escreve  
Marx, expondo as ideias de Maine sobre “o imenso” John Austin, referindo-se  
ironicamente a sua relevância na obra do autor das Lectures:  
<<Se (diz <[> o imenso John <]>Austin) um determinado superior  
humano que não está em estado de obediência em relação a outro  
superior como ele, é habitualmente obedecido por toda uma  
sociedade, este determinado superior é soberano nessa sociedade e  
a sociedade, incluindo o superior, é uma sociedade política  
independente.>> <<Os restantes membros da sociedade são súditos  
deste superior ou, igualmente, os outros membros da sociedade  
dependem deste superior específico. A posição dos restantes  
membros da sociedade em relação a este determinado superior é um  
estado de sujeição ou um estado de dependência. A relação mútua  
que existe entre aquele superior e eles pode ser chamada de relação  
de soberano e súdito ou relação de soberania e submissão>> (Citado  
em Maine, pp. 348 349 <: 312, 313>). O <<superior humano  
determinado>>, ou soberano, é <<um soberano individual ou  
colegiado. (esta frase para uma pessoa individual ou um grupo é <de  
acordo com Maine> outra invenção de Austin) (349 <: 313>). (MARX,  
1988, pp. 287-8 tradução livre)3  
2 lnglaterra posee el privilegio de los <<juristas analíticos>>, como allí les llaman, cuyos representantes  
más ilustres <son> Jeremy Bentham y John Austin (343 <: 308>). (MARX, 1988, p. 287)  
dass England d. Privileg d. s. dort g. “Analytical Jurists" besitzt, wovon d. bedeutendsten Jeremy  
Bentham u. John Austin. (343). (MARX, 1974, p. 327)  
3
<<Si (dice <[> el inmenso John <]>Austin) un superior humano determinado que no se halla en un  
estado de obediencia respecto de otro superior como él, es habitualmente obedecido por el conjunto  
de una sociedad, este superior determinado es soberano en esa sociedad y la sociedad, incluido el  
superior, es una sociedad política independiente.>> <<Son súbditos de este superior los restantes  
miembros de la sociedad o, lo que es igual, los demás miembros de la sociedad dependen de este  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 71  
nova fase  
   
Ana Carolina Marra de Andrade  
Ou seja, a soberania estaria colocada, aqui, como um fato que ocorre quando  
um indivíduo ou um coletivo de indivíduos que não costuma(m) obedecer a nenhum  
outro é(são) habitualmente obedecido(s) por um outro grupo de indivíduos, que estão  
em estado de dependência. O(s) soberano(s) é(são) um ser(es) humano(s) superior(es)  
aos demais, e a junção soberano e súditos conforma uma sociedade política  
independente. O soberano é determinado visto que os súditos devem obedecer  
unicamente a ele (ou ao grupo) e a nenhum outro. Sendo mais de um, os soberanos  
somente podem se constituir enquanto grupo se forem capazes de atuar de forma  
corporativa ou colegiada.  
A concepção austiniana de soberania é de fato um dos corolários de sua  
elaboração teórica, e está diretamente relacionada com sua noção de direito positivo.  
Não nos deteremos, no presente artigo, em explicitar todos seus elementos, mas em  
ressaltar aqueles que são destacados por Maine conforme ele o concebeu. Segundo  
Marx:  
O senhor Maine continua explicando assim as opiniões de Austin: Se  
a comunidade, violenta ou voluntariamente, divide-se em vários  
fragmentos distintos, no momento em que cada um recupere seu  
equilíbrio talvez depois de um intervalo de anarquiahaverá um  
soberano, que poderá ser descoberto, em cada uma das novas frações  
independentes (H9, 350 <: 313>). Seja o soberano uma pessoa ou  
um grupo de pessoas, a característica comum a todas as formas de  
soberania é que possui um poder irresistível, que não tem necessidade  
absoluta de exercer, mas que pode ser exercido. Se o soberano é uma  
única pessoa, chama-se, segundo Austin, monarca; se um pequeno  
grupo, oligarquia; se um grupo considerável, aristocracia; se <o grupo  
é> muito amplo e numeroso, democracia. [...] A característica comum  
a todas as formas de soberania é o poder (mas não necessariamente  
a vontade) de exercer uma coação ilimitada sobre os súditos ou  
cosúditos (350 <: 314>). Onde não se pode discernir um soberano  
deste tipo, anarquia (351 <: 314>). Determinar seu caráter (do  
superior determinado. La posición de los restantes miembros de la sociedad respecto de este  
determinado superior es un estado de sujeción o estado de dependencia. La relación mutua que existe  
entre ese superior y ellos puede llamarse relación de soberano y súbdito o relación de soberanía y  
sumisión>> (Citado en Maine, pp. 348 349 <: 312, 313>). El <<superior humano determinado>>, o  
soberano, es <<un soberano individual o colegial (esta frase para una persona individual o un grupo  
es <según Maine> otro invento de Austin) (349 <: 313>). (MARX, 1988, pp. 287-8)  
“If (says the immense John Austin) a determinate human superior, not in the habit of obedience to a like  
superior, receive habitual obedience from the bulk of a given society, that determinate superior is  
Sovereign in that society, and the society, including the superior, is a society political and independent.”  
“To that superior the other members of the society are subject; or on that determinate superior the  
other members of the society are dependent. The position of its other members towards that  
determinate superior is a state of subjection or a state of dependence. The mutual relation which subsists  
between that superior and them, may be styled the relation of Sovereign and Subject, or the Relation of  
Sovereignty and Subjection” (citirt bei Maine p. 348, 349) D. “determinate human superior” so der  
Sovereign is “an individual or a collegiate Sovereign” (diese Phrase für single person or group auch eine  
Erfindg d. Austin) (349). (MARX, 1974, pp. 327-8)  
Verinotio  
72 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
soberano) [em uma sociedade específica] é sempre uma questão de  
fato, nunca uma questão de direito ou de moral (loc.dr.). (MARX, 1988,  
p. 288 tradução livre, grifos nossos)4  
Um estado de anarquia é um estado, para Austin, de inexistência de soberano.  
Ela pode ocorrer, por exemplo, no momento em que uma sociedade se divide, no qual,  
em razão de um desequilíbrio, passa-se por um período de anarquia momentâneo, de  
modo que ao retornar o equilíbrio poderão ser identificados diferentes soberanos para  
cada fração dessa sociedade, tornando-se um conjunto de sociedades independentes.  
Austin, então, explica as diferentes formas de governo, ou, como as chama, formas de  
soberania, de modo quantitativo: “Se o soberano é uma única pessoa, chama-se,  
segundo Austin, monarca; se um pequeno grupo, oligarquia; se um grupo considerável,  
aristocracia; se <o grupo é> muito amplo e numeroso, democracia”. Ademais, para  
ele, determinar o soberano é uma questão de fato, não de direito ou de moral, até  
porque o direito seria posterior à soberania. A soberania que dá legitimidade ao  
direito, e não o contrário; as leis devem ser determinadas pelo soberano para serem  
válidas, e somente o direito positivo atende a este critério. As leis positivas tratam-se,  
então, de ordens advindas do soberano.  
Consequentemente, duas características são essenciais ao soberano: ser  
obedecido pela maioria da comunidade e ser imune à fiscalização de qualquer outro  
ser humano. O próprio Maine admite que o essencial das ideias de Austin e de  
4
El señor Maine sigue explicando así las opiniones de Austin: Si la comunidad, violenta o  
voluntariamente, se divide en varios fragmentos distintos, en el momento en que cada uno recupere su  
equilibrio quizá después de un intervalo de anarquíahabrá un soberano y será reconocible en cada  
una de las nuevas fracciones independientes (H9, 350 <: 313>). Sea el soberano una persona o un  
grupo de personas, la característica común a todas las formas de soberanía es que se halla en posesión  
de un poder irresistible, que no hay necesidad absoluta de ejercer, pero que puede ser ejercido. Si el  
soberano es una persona única, se llama según Austin monarca; si un pequeño grupo, oligarquía; si un  
grupo considerable, aristocracia; si <el grupo es> muy amplio y numeroso, democracia. [...] La común  
característica de todas las formas de soberanía es el poder (pero no necesariamente voluntad) de ejercer  
una coacción ilimitada sobre los súbditos o cosúbditos (350 <: 314>). Donde no se puede discernir un  
soberano de este tipo, anarquía (351 <: 314>). Determinar su carácter (del soberano) [en una sociedad  
precisa] es siempre una cuestión de hecho ... nunca una cuestión de derecho o de moral (Ioc. dr.). (MARX,  
1988, p. 288)  
Herr Maine erklärt d. Aussichten d. Austin weiter dahin: If the community be violently or voluntarily  
divided into a number of separate fragments, then, as soon as each fragment has settled down (perhaps  
after an interval of anarchy) into a state of equilibrium, the Sovereign will exist and will be discoverable  
in each of the now independent portions. (349, 350) Das gemeinsame Charaktermal aller shapes of dr  
Sove<r>eignty - whether the Sovereign a person or a combination of persons - ist, dass er has* the  
possession of irresistible force, not necessarily exerted but capable of being exerted. Ist d. Sovereign a  
single person, so nennt ihn Austin a Monarch; if a small group - Oligarchy; if a group of considerable  
dimensions, an Aristocracy; if very large and numerous, a Democracy. [...] Was alle forms of Sovereignty  
gemein haben is the power (but not necessarily the will) to put compulsion without limit on subjects or  
fellow-subjects. (350) Wo kein solcher sovereign erkennbar - Anarchie. (351) The question of  
determining his (the Sovereign’s) character [in a given society] is always a question of fact... never a  
question of law or morals. (I.c.). (MARX, 1974, p. 328)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 73  
nova fase  
 
Ana Carolina Marra de Andrade  
Bentham (na medida em que coincidem com Austin) são retiradas de Hobbes:  
O soberano deve ser habitualmente obedecido pela maioria da  
comunidade (353 <:316>). Outra característica dele: sua imunidade à  
inspeção de qualquer outro superior humano (loc. cit. <: 317>).  
(Como o próprio Maine confessa, o essencial dessas ideias de Austin  
e, na medida em que coincidem com ele, de Bentham <vem> de  
Hobbes Leviatã, cap. De cive, publicado pela primeira vez em latim  
nos Elementa Philosophiae ). (MARX, 1988, p. 288 tradução livre)5  
Apesar do reconhecimento de sua influência direta, o autor das Lectures  
entende que a teoria de Hobbes era limitada por sua perspectiva política, a de Austin  
é engrandecida por seu propósito exclusivamente científico. Marx ironiza essa  
constatação:  
Mas Maine diz: Hobbes tinha um propósito político; o propósito de  
Austin era <<estritamente científico>> (355 <: 317 ss.>). [Científico!  
Seja qual for o significado que esta palavra pode ter para os estúpidos  
juristas britânicos, entre os quais são consideradas ciência a  
ultrapassada classificação, a definição, etc. Cf. para o resto, 1º  
Maquiavel e 2º Linguet.] Além disso, Hobbes refletiu sobre as origens  
do Estado (governo e soberania); este problema não existe para o  
jurista Austin; para ele esse fato existe de certa forma a priori. Isso é  
o que Maine diz na. p. 356 <: 318 e segs.>. <[>Nem o infeliz do  
Maine tem ideia de que onde existe um Estado (depois da comunidade  
primitiva, etc.), isto é, uma sociedade politicamente organizada, o  
Estado não é de forma alguma o príncipe, apenas o parece <]>.  
(MARX, 1988, pp. 288-9 tradução livre, grifos nossos)6  
5
El soberano debe ser obedecido habitualmente por el grueso de la comunidad (353 <:316>). Otra  
característica del mismo: su inmunidad a la fiscalización por cualquier otro superior humano (loc. cit. <:  
317>).  
(Como confiesa el mismo Maine, lo esencial de estas ideas de Austin y, en cuanto coinciden con él, de  
Bentham <proviene> de Hobbes Leviatán, cap. De cive, publicado por primera vez en latín en los  
Elementa Philosophiae ). (MARX, 1988, p. 288)  
The Sovereign must receive an habitual obedience from the bulk of the community. (353) Ferneres  
characteristic desselben: is immunity from the control of every other human superior. (I.c.)  
[Dies d. Grundtext nach, wie Maine selbst zugiebt, v. Austin, wie so weit damit identisch, von Bentham  
aus Hobbes (Leviathan: Ch. De Cive, first published in Latin, in the Elementa Philosophiae). (MARX, 1974,  
p. 328)  
6
Pero Maine dice: Hobbes tenía un propósito político; el propósito de Austin era <<estrictamente  
científico>> (355 <: 317 ss.>). [¡Científico! Ya será en el significado que puede tener esta palabra para  
los estúpidos juristas británicos, entre los cuales se tiene por ciencia la anticuada clasificación, la  
definición, etc. Cf. por lo demás 1º Maquiavelo y 2.° Linguet.] Además Hobbes razonaba sobre los  
orígenes del Estado (gobierno y soberanía); este problema no existe para el jurista Austin; para él ese  
hecho existe en cierto modo a priori. Es lo que dice Maine en la. p.356 <: 318 ss.>. <[>Tampoco el  
infeliz de Maine tiene ni idea de que allí donde hay Estado (después de la comunidad primitiva. etc.), es  
decir una sociedad organizada políticamente, el Estado no es de ningún modo el príncipe, sólo lo parece.  
<]>. (MARX, 1988, pp. 288-9)  
Aber sagt Maine: Hobbes’ Object war politisch; das des Austin “strictly scientific” (355) [Scientific! doch  
nur in d. Bdtg, dies dies Wort im Kopf of blockheadish British lawyers haben kann, wo altmodische  
Classification, Definition etc als scientific gilt. Vgl. übrigens I) Machiavelli u. 2) Linguet.] Ferner: Hobbes  
will origin of Staat (Government u. Sovereignty) ergründen; dies Problem existirt für lawyer Austin nicht;  
für ihn dies fact gewisser- massen a priori vorhanden. Dies sagt Maine p. 356. D. unglückliche Maine  
Verinotio  
74 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
Desse modo, Marx ridiculariza a concepção de ciência trazida por Maine com  
base em Austin e Bentham, associando-a “a ultrapassada classificação, a definição  
etc.”. Hobbes seria, ainda, superior aos juristas analíticos, ao menos refletindo sobre  
as origens do Estado, do governo e da soberania, enquanto os demais se escondem  
em um suposto propósito científico, mas o tomam como algo dado. Logo em seguida,  
veremos que o critério de cientificidade é relacionado com a existência de um método,  
que se trata, em geral, de um conjunto de dogmas e de suas consequências.  
Vale ressaltar que Marx, com base nas afirmações das próprias Lectures, expõe  
que Maine, assim como Austin, toma a origem do estado como um fato que “existe de  
certa forma a priori”. O “de certa forma” não pode ser desconsiderado. Ambos tratam,  
ainda que brevemente, dessa origem, ainda que considerem que tal reflexão não seja  
de grande relevância. O próprio Maine expõe:  
Outra diferença considerável é esta. Hobbes, é bem sabido, especulou  
sobre a origem do Governo e da Soberania. É o único fato que  
algumas pessoas parecem ter aprendido sobre ele, e parecem pensar  
que sua filosofia é suficientemente condenada por isso. Mas Austin  
mal entra nisso investigação; e de fato ele ocasionalmente, embora  
talvez inadvertidamente, usa uma linguagem que quase parece  
implicar que a Soberania e as concepções dela dependentes têm uma  
existência a priori. Agora, neste assunto eu mesmo defendo que o  
método de Hobbes estava correto. É verdade que nada pode ser mais  
inútil em si mesmo do que a explicação conjectural de Hobbes sobre  
a origem da sociedade e do governo. A humanidade, afirma ele, estava  
originalmente em estado de guerra. Eles então fizeram um pacto sob  
o qual cada homem abandonou seus poderes de agressão, e o  
resultado, era a Soberania, e através da Soberania a lei, a paz e a  
ordem. A teoria está aberta a todo tipo de objeção. Não há evidência  
de qualquer fase da suposta história, e o pouco que sabemos do  
homem primitivo contradiz isso. [...] Mas ainda assim eu acho que  
Hobbes agiu corretamente ao dirigir o problema a si mesmo, embora  
ele tenha feito pouco para resolvê-lo. O dever de perguntar, se não  
como surgiu a Soberania, em todo o caso, por que fases passou, é,  
para mim, indispensável. Somente assim podemos assegurar em que  
grau os resultados da análise austiniana coincidem com os fatos.  
(MAINE, 1914, pp. 356-7 tradução livre)7  
selbst hat keine Ahnung davon, dass da wo Staaten existiren (after the primitive Communities etc) i.e.  
eine politisch organisirte Gesellschaft, der Staat keineswegs d. Prinz ist; er scheint nur só (MARX, 1974,  
pp. 328-9).  
7
Another considerable difference is this. Hobbes, it is well known, speculated on the origin of  
Government and Sovereignty. It is the one fact which some persons seem to have learned about him,  
and they appear to think his philosophy sufficiently condemned by it. But Austin barely enters on this  
enquiry; and indeed he occasionally, though perhaps inadvertently, uses language which almost seems  
to imply that Sovereignty and the conceptions dependent on it have an a priori existence. Now in this  
matter I myself hold that the method of Hobbes was correct. It is true that nothing can be more worthless  
in itself than Hobbes's conjectural account of the origin of society and government. Mankind, he asserts,  
were originally in a state of war. They then made a compact under which every man abandoned his  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 75  
nova fase  
 
Ana Carolina Marra de Andrade  
Ou seja, Maine coloca que as reflexões de Hobbes sobre a origem do estado  
são meras especulações, de modo que Austin teria o mérito de, ao não se ocupar  
demasiadamente com este tópico, não cair em conjecturas fantasiosas. Assim, tomando  
o soberano como uma existência até certo ponto apriorística, o jurista analítico  
conseguiria fornecer à sua teoria um critério maior de cientificidade. Para Hobbes, em  
linhas gerais, o estado de guerra de todos contra todos é a condição natural do  
homem, e somente através de um contrato social com transmissão mútua de direitos  
entre uma multidão forma-se um corpo político e é criada a figura do soberano,  
excluído do contrato, do qual os demais indivíduos são súditos. O soberano, então,  
age em nome do povo, sendo dotado de plenos poderes para tal.  
Maine, ainda que defenda que o método geral de Hobbes esteja correto, critica  
a compreensão do autor de Leviatã sobre a origem do estado, alegando que o dito  
estado de guerra nunca existiu na realidade, e a pouca evidência sobre as sociedades  
primitivas que surgiu desde então estaria em desacordo com essa compreensão. Não  
cabe a nós, no presente artigo, entrar em detalhes acerca interpretação dada por Maine  
a Hobbes, mas vale pontuar que é questionável a tese de que, o contratualista, ao se  
referir ao estado de guerra, estaria tratando de uma época necessariamente existente  
da história humana8.  
Não obstante, ao mesmo tempo que Maine crítica o caráter a-histórico e  
powers of aggression, and the result, was Sovereignty, and through Sovereignty law, peace, and order.  
The theory is open to every sort of objection. There is no evidence of any stage of the supposed history,  
and the little we know of primitive man contradicts it. [...] But still I think that Hobbes did correctly in  
addressing himself to the problem, though he did little to solve it. The duty of enquiring, if not how  
Sovereignty arose, at all events through what stages it has passed, is in my judgment indispensable. It  
is only thus that we can assure ourselves in what degree the results of the Austinian analysis tally with  
facts. (MAINE, 1914, pp. 356-7)  
8
Para Maine, o conhecimento sobre as sociedades primitivas de sua época direciona para a ideia de  
que Hobbes estava errado ao falar sobre a origem do estado a partir do estado de natureza. No entanto,  
Hobbes não identifica o estado de natureza como um estágio histórico, mas como um exercício da  
razão. Para Renato Janine Ribeiro (2001), Maine comete um grande erro ao inferir que o homem natural  
de Hobbes é um “selvagem”: “Ao iniciar uma interpretação sociológica do direito, na metade do século  
XIX, Sir Henry Maine por exemplo criticou-os asperamente: seria impossível (dizia) selvagens que  
nunca tiveram contato social dominarem a tal ponto a linguagem, conhecerem uma noção jurídica tão  
abstrata quanto a de contrato, para que pudessem se reunir nas clareiras das florestas e fazerem um  
pacto social. Na verdade (continuava), o contrato só é possível quando há noções que nascem de uma  
longa experiência da vida em sociedade” (RIBEIRO, 2001, p. 53). Ribeiro explica que “Raro, ou nenhum,  
contratualista pensou que selvagens isolados se juntam numa clareira para fazer um simulacro de  
constituinte. [...] Para Hobbes, como para a maior parte dos autores de antes do século XVIII, não existe  
a história entendida como transformando os homens. Estes não mudam”, de modo que o homem natural  
hobbesiano “é o mesmo homem que vive em sociedade” (RIBEIRO, 2001, p. 54). Logo, “o que Hobbes  
pede é um exame de consciência: ‘conhece-te a ti mesmo’” (RIBEIRO, 2001, p. 57), ou seja, o exercício  
de entender como seria um homem em seu estado de natureza é, para Hobbes, olhar para nós mesmos,  
e não para um outro momento histórico ou para indivíduo de outra sociedade, como entende Maine.  
Verinotio  
76 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
especulativo das considerações hobbesianas sobre a origem do soberano, ele,  
trazendo como base o próprio Austin e o elogiando por tomar o soberano como uma  
existência até certo ponto a priori, não deixa completamente de lado algum tipo de  
reflexão sobre a origem do estado. Na verdade, toma-o como sinônimo de uma  
aglomeração de patriarcas, vejamos a opinião de Maine, a partir da citação feita por  
Marx:  
Austin admite, além disso, a possibilidade teórica de um estado de  
natureza. Não lhe atribui tanta importância como Hobbes e outros;  
mas reconhece sua existência onde vários homens ou vários grupos,  
muito pouco numerosos para serem um conjunto político, não estejam  
submetidos a uma autoridade em comum ou habitualmente em  
exercício (378 <: 339>).  
Austin diz, p. 237, tomo I da 3ª edição:  
“Suponhamos que uma única família de selvagens viva absolutamente  
alienada de qualquer outra comunidade. E suponhamos que o pai,  
chefe dessa família isolada, receba a obediência habitual da mãe e dos  
filhos. Ora, como não é um membro de outra comunidade maior, a  
sociedade formada pelos pais e filhos é claramente uma sociedade  
independente e, como o resto de seus membros obedece  
habitualmente ao seu chefe, essa sociedade independente formaria  
uma sociedade política, caso o número de seus membros não fosse  
extremamente pequeno. Mas como o número de seus membros é  
extremamente pequeno, seria, creio eu, considerada uma sociedade  
em estado de natureza”9; isto é, uma sociedade composta por pessoas  
que não estão em estado de sujeição. Sem a aplicação dos termos,  
que teriam um toque de ridículo, dificilmente poderíamos qualificar a  
sociedade de sociedade política e independente, o pai e chefe  
imperativos monarca ou soberano, ou a mãe obediente e filhos  
súditos”. [muito profundo!]  
[Até aqui tudo vai muito bem para o Maine]: <<pois como diza  
forma de autoridade que concede, a do patriarca ou pater familias  
sobre sua família, é, ao menos de acordo com uma teoría moderna [de  
Maine e companhia] o elemento ou germe a partir do qual se  
desenvolve gradualmente todo poder permanente do homem sobre o  
homem>>. (MARX, 1988, pp. 292-3 tradução livre)10  
9 Ver Austin (1995, p. 177).  
10  
Austin admite, además, la posibilidad teórica de un estado de naturaleza. No le atribuye tanta  
importancia como Hobbes y otros; pero reconoce su existencia dondequiera que varios hombres o  
varios grupos, muy poco numerosos para ser políticos, no se han puesto todavía bajo una autoridad  
común o habitualmente en ejercicio (378 <: 339>).  
Austin dice, p. 237, tomo I de la 3ª edición:  
“Supongamos que una sola familia de salvajes vive en un aislamiento absoluto de cualquier otra  
comunidad. y que el padre, jefe de esta familia aislada, sea habitualmente obedecido por la madre y los  
hijos. Puesto que no forma parte de otra comunidad mayor, la sociedad formada por los padres y los  
hijos es evidentemente una sociedad independiente; y, puesto que todos sus miembros obedecen  
habitualmente al jefe. esta sociedad independiente constituiría una sociedad política, si el número de  
sus miembros no fuera sumamente reducido. Pero puesto que el número de sus miembros es  
sumamente limitado, yo creo que se la debería considerar como una sociedad en el estado de naturaleza,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 77  
nova fase  
   
Ana Carolina Marra de Andrade  
Desse modo, aqui Maine ressalta que, ainda que a origem do estado não tenha  
uma importância muito grande em suas reflexões, Austin admite a possibilidade teórica  
da existência de um estado de natureza, única hipótese em que a inexistência de um  
soberano não seria a anarquia, de cunho transicional. Este estado existiria onde “vários  
homens ou vários grupos, muito pouco numerosos para serem um conjunto político,  
não estejam submetidos a uma autoridade em comum ou habitualmente em exercício”.  
Ele se caracterizaria como um conjunto de famílias chefiadas pelo pai, dada a  
submissão natural da mulher e dos filhos ao homem. Nele, não há soberano e não há  
estado de sujeição. Se o grupo se expandisse numericamente, ou seja, se mais famílias  
se juntassem, da subordinação familiar original seria naturalmente criada a  
subordinação ao poder governante, de modo que a família é o “germe a partir do qual  
se desenvolve gradualmente todo poder permanente do homem sobre o homem”.  
Logo, não obstante a crítica feita por Maine pelo suposto caráter especulativo  
da teoria do estado de natureza hobbesiano, ele, baseado em Austin, adota uma  
concepção de estado de natureza ainda mais ilusória na medida em que é uma mera  
derivação da sujeição familiar natural. Austin e Maine fazem uma “robinsonada”11 para  
esto es, como una sociedad compuesta de personas que no se hallan en el estado de sumisión. Pese a  
que la aplicación de estos términos toca de algún modo en lo ridículo, sólo así podemos llamar a esta  
sociedad una sociedad política e independiente, al padre y jefe que manda, monarca o soberano, y a la  
madre e hijos que obedecen, súbditos” [¡Muy profundo!]  
Hasta aquí todo le viene muy bien a Maine, <<pues como dicela forma de autoridad que concede,  
la del patriarca o paterfamilias sobre su familia, es, al menos según una teoría moderna [de Maine y  
compañía] el elemento o germen a partir del qual se ha desarollado gradualmente todo poder  
permanente del hombre sobre el  
hombre>>. (MARX, 1988, pp. 292-3)  
Austin further admits the theoretical possibility of a state of nature; giebt ihm nicht d. Wichtigkeit wie  
Hobbes u. andre, aber allows his existence, wherever a number of men, or of groups not numerous  
enough to be political, have not as yet been brought under any common or habitually acting community.  
(378)  
Austin sagt, p. 237, 1st vol., 3d ed.:  
“Let us suppose that a single family of savages lives in absolute estrangement from every other  
community. And let us suppose that the father, the chief of this isolated family, receives habitual  
obedience from the mother and children. Now , since it is not a limb of another and larger community,  
the society formed by the parents and children, is clearly an independent society, and, since the rest of  
its members habitually obey its chief, this independent society would form a society political, in case the  
number of its members were not extremely minute. But since the number of its members is extremely  
minute, it would, I believe, be esteemed a society in a state of nature” ; that is, a society consisting of  
persons not in a state of subjection. Without an application of the terms, which would somewhat smack  
of the ridiculous, we could hardly style the society a society political and independent, the imperative  
father and chief a monarch or sovereign, or the obedient mother and children subjects” Dies so far  
Wasser auf d. Mühle Maine’s, “since, wie er sagt, the form of authority about which it is made, the  
authority of the Patriarch or Paterfamilias over his family, is, at least according to one (Maine’s u.  
consorts) modern theory, the element or germ out of which all permanent power of man over man has  
been gradually developed” (MARX, 1974, p. 333).  
11 Em linhas gerais, entendemos “robinsonadas”, expressão utilizada pelo próprio Marx em um contexto  
análogo (cf. MARX, 2011, p. 54), como o procedimento de transpor elementos da sociedade civil-  
burguesa até um mundo místico e abstrato. No caso, esse procedimento é feito com a família inglesa, a  
Verinotio  
78 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
explicar a origem do Estado, e então tomam o problema como resolvido, partindo para  
a reflexão sobre o soberano. A “robinsonada” se trata justamente da transposição da  
família inglesa até uma mística ilha remota que deveria representar as sociedades  
chamadas de “primitivas” (sem estado), mas são apenas a própria sociedade inglesa  
naturalizada. Austin e Maine não percebem que em sua ilha imaginária não se encontra  
ninguém além de uma transposição deles mesmos. Aí reside a suposta superioridade  
dos juristas analíticos diante de Hobbes: na compreensão de que o Estado surge da  
aglomeração de patriarcas. Por esse motivo, como vimos, a teoria da soberania é  
colocada até certo ponto (mas não completamente) de modo apriorístico, dado que o  
soberano é tomado como um ponto de partida, mas há essa breve consideração acerca  
de sua origem.  
Feitas essas considerações acerca das curtas reflexões de Austin e Maine sobre  
a origem do Estado, e portanto do soberano (que, para eles, são sinônimos), voltemos  
à análise da teoria da soberania. Maine sugere que o soberano não é um mero reflexo  
da sociedade. Ele, de fato, tem o papel de direcionar as forças da sociedade, mas não  
o faz por livre e espontânea vontade (como afirmariam alguns sucessores dos juristas  
analíticos), mas seria afetado por diversas forças, as quais detém um caráter sobretudo  
moral:  
É evidente que uma proposição da qual não são responsáveis os  
grandes <<juristas analíticos>>, mas que alguns dos seus discípulos  
não estão longe de afirmar, não está de acordo com os fatos: que o  
soberano individual ou coletivo põe efetivamente em ação, através do  
livre exercício da sua vontade, a força latente da sociedade.  
<<Múltiplas influências, que por brevidade, chamaremos de morais  
[este <<morais>> mostra quão pouca ideia Maine tem do assunto; na  
medida em que essas influências (acima de tudo econômicas) têm um  
modus <<moral>> existência é sempre sobre um modus derivado,  
secundário e nunca prioritário] constantemente modifica, delimita e  
impede o direcionamento efetivo das forças da sociedade pelo  
soberano (359 <: 321>). A teoria da soberania de Austin de fato é  
resultado de uma abstração. (MARX, 1988, p. 289 tradução livre,  
grifos nossos)12  
qual é transportada para uma ilha imaginária e conforma, assim, o estado de natureza. Para entender  
melhor acerca da crítica marxiana às “robinsonadas” feitas por Maine, ver Marra de Andrade (2023).  
12 Desde luego no está de acuerdo con los hechos una proposición de la que no son responsables los  
grandes <<jurisconsultos analíticos>> (Bentham y Austin), pero que algunos de sus discípulos no están  
muy lejos de enunciar, a saber; que el soberano individual o colectivo pone efectivamente en acción,  
mediante el libre ejercicio de su voluntad, la fuerza latente de la sociedad. <<Múltiples influencias, que  
para abreviar, llamaremos morales [este <<morales>> muestra la poca idea que tiene Maine del asunto;  
en cuanto estas influencias (ante todo económicas) poseen un modus <<moral>> existencia se trata  
siempre de un modus derivado, secundario y nunca prioritario] modifican, delimitan e impiden  
constantemente la dirección efectiva de las fuerzas de la sociedad por el soberano (359 <: 321>). La  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 79  
nova fase  
 
Ana Carolina Marra de Andrade  
Logo, o que impede o soberano de exercer sua vontade, que coincide com a  
“força latente da sociedade”, são influências morais. Então, Marx explicita que Maine  
não tem ideia de como funciona o estado. Contenta-se não só com explicar a existência  
do estado a partir da teoria da soberania de Austin, mas também entende a política a  
partir da moral. Para Marx, no entanto, o que influencia o rumo da política é, sobretudo,  
a economia, enquanto a moral detém no máximo um caráter secundário. Nosso autor  
escreve uma grande intervenção a esse trecho:  
[Maine ignora algo muito mais profundo: que mesmo a existência  
aparentemente suprema e independente do estado nada mais é do  
que uma aparência, e que o estado em todas as suas formas é uma  
excrescência da sociedade. Mesmo sua aparência não se revela até  
que a sociedade tenha atingido um certo nível de desenvolvimento, e  
desaparece<rá> novamente assim que a sociedade atingir um nível  
até então inalcançado. Primeiro, a individualidade é separada dos  
laços que originalmente não eram despóticos (o oposto de como o  
tolo do Maine os entende), mas antes satisfatórios e agradáveis que  
reinavam no grupo, nas comunidades primitivas; assim a  
individualidade passa a ser destacada unilateralmente. Mas a  
verdadeira natureza desta individualidade não é demonstrada até que  
analisemos <<seus>> interesses. Depois descobrimos que estes  
interesses, por sua vez, são interesses comuns a certos grupos sociais  
e característicos deles, interesses de classe, etc., e todos estes são  
baseados, em última análise, em condições econômicas. O estado se  
constrói sobre estas bases e as pressupõe.] (MARX, 1988, p. 289 –  
tradução livre)13  
teoría de Austin sobre la soberanía es realmente... que resulta de la abstracción. (MARX, 1988, p. 289)  
Die assertion which the great “Analytical Jurists” (Bentham u. Austin) cannot be charged with making,  
but which some of their disciples go very near to hazarding, that the Sovereign person or group actually  
wields the stored-up force of society by an uncontrolled exercise of will, is certainly never in accordance  
with fact. The vast mass of influences, which we may call for shortness moral, [dies “moral” zeigt wie  
wenig Maine von der Sache versteht; so weit diese influences (economical before everything else)  
“moral” modus of existence besitzen, ist dies immer ein abgeleiteter, secundärer modus u. nie das prius]  
perpetually shapes, limits, or forbids the actual direction of the forces of society by its Sovereign. (359)  
The Austinian view of Sovereignty really is - that it is the result of Abstraction. (MARX, 1974, p. 329)  
13  
[Maine ignora algo mucho más profundo: que incluso la existencia, aparentemente suprema e  
independiente, del Estado, no es más que una apariencia, y que el Estado en todas sus fonnas es una  
excrecencia de la sociedad. Incluso su apariencia no se presenta hasta que la sociedad ha alcanzado un  
cierto grado de desarrollo, y desaparece<rá> de nuevo en cuanto la sociedad llegue a un nivel hasta  
ahora inalcanzado. Primero la individualidad se escinde de los vínculos originariamente no despóticos  
(al revés de como los entiende el zoquete de Maine) sino satisfactorios y agradables que reinaban en el  
grupo, en las comunidades primitivas; así llega a destacarse unilateralmente la individualidad. Pero la  
verdadera naturaleza de esta individualidad no se muestra hasta analizar <<sus>> intereses. Entonces  
nos hallamos con que estos intereses a su vez son intereses comunes a ciertos grupos sociales y  
característicos de ellos, intereses de clase, etc., y éstos se basan todos, en última instancia, en  
condiciones económicas. Sobre éstas como sus bases se edifica el Estado y las presupone.] (MARX,  
1988, p. 289)  
[Maine ignores das viel Tiefere: dass d. scheinbare supreme selbständige Existenz des Staats selbst nur  
scheinbar u. dass er in allen seinen Formen eine excrescence of society is; wie seine Erscheinung selbst  
erst auf einer gewissen Stufe der gesellschaftlichen Entwicklung vorkömmt, so verschwindet sie wieder,  
sobld d. Gesellscft eine bisher noch nicht erreichte Stufe erreicht hat. Erst Losreissung der Individualität  
von d. ursprünglich nicht despotischen Fesseln (wie blockhead Maine es versteht), sondern  
Verinotio  
80 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
Aqui Marx deixa bem claro sua compreensão acerca do estado, absolutamente  
distinta do que pregam Austin e Maine. Novamente nosso autor comenta que o jurista  
britânico somente consegue se manter na dimensão das aparências, e assim acaba  
ocultando as bases reais da política, fundadas no interesse de classe, ou seja,  
interesses comuns a certos grupos de indivíduos baseados em condições econômicas.  
Marx, então, ressalta a relevância de voltar-se para uma análise da história e  
compreender o estado a partir de sua gênese real. O estado pressupõe a existência  
de classes sociais e é construído com base nelas, e acrescentamos de modo a  
assegurar o domínio de uma classe sobre a outra. Ele somente desaparecerá quando  
desaparecerem também a base que o conforma, ou seja, as próprias classes sociais,  
um estado que ainda não foi alcançado.  
Continua, então, sua crítica à teoria da soberania de Austin como aderida por  
Maine:  
<<Austin> chegou em <sua teoria da soberania: afastando todas as  
características e atributos do governo e [!] da sociedade com exceção  
de uma só, e relacionando todas as formas de dominação política por  
sua comum disposição de poder [Este não é o fracasso principal, mas  
sim tomar a dominação política, qualquer que seja a sua forma  
característica e qualquer que seja o conjunto dos seus elementos,  
como algo acima da sociedade, baseado em si mesma.] (MARX, 1988,  
p. 289 tradução livre, grifos nossos)14  
Desse modo, o procedimento utilizado por Austin para chegar até sua teoria da  
soberania é: afastar os atributos que ele considera “não essenciais” de todo governo,  
chegando no que seria comum a todos sua disposição pelo poder. Para Maine,  
Austin fracassou ao não considerar também outros elementos na dominação do  
soberano (sobretudo aqueles de cunho moral). Já Marx considera que o principal  
befriedige(ti)den u. gemüthlichen Banden der Gruppe, der primitiven Gemeinwesen, - damit d. einseitige  
Herausarbeitung der Individualität. Was aber die wahre Natur der letzteren zeigt sich erst wenn wir d.  
Inhalt - d. Interessen dieser “letzteren” analysiren. Wir finden dann, dass diese Interessen selbst wieder  
gewissen gesellscftlichen Gruppen gemeinsame u. sie charakterisirende Interessen, Klasseninteressen  
etc sind, also diese Individualität selbst Klassen- etc Individualität ist u. diese in letzter Instanz haben  
alle ökonomische Bedingungen zur Basis. Auf diesen als Basen baut sich der Staat auf u. setzt sie  
voraus.] (MARX, 1974, p. 329)  
14 <<<Austin> ha llegado a <su teoría de la soberanía> apartando todas las características y atributos  
del gobierno y [!] de la sociedad a excepción de uno solo y relacionando conjuntamente todas las formas  
de dominación política por su común disposición del poder. [No es éste el fallo principal, sino tomar  
dominación política, cualquiera que sea su forma característica y cualquiera que sea el conjunto de sus  
elementos, como algo por encima de la sociedad, basado en sí mismo.] (MARX, 1988, p. 289)  
It is arrived at by throwing aside all the characteristics and attributes of Government and (!) Society  
except one, and by connecting all forms of political superiority together through their common  
possession of force. [Das ist nicht der Grundfehler; dieser ist, dass d. political superiority, whatever its  
peculiar shape, and whatever the ensemble of its elements, is taken als etwas über d. Gesellschaft  
stehendes, auf sich selbst beruhendes.] (MARX, 1974, p. 329)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 81  
nova fase  
 
Ana Carolina Marra de Andrade  
fracasso da teoria da soberania de Austin é tomá-la como algo acima da sociedade,  
de modo que, ao fazê-lo, confunde a aparência do estado com a sua essência. O estado  
aparece como o príncipe, mas não o é. Ao deliberadamente se recusar a compreender  
a gênese real da política, Austin, assim como Maine, acaba preso em sua dimensão  
mais superficial. Por isso, o próprio Maine não consegue reconhecer nem mesmo o  
caráter fundamental da dimensão econômica na política.  
Então, continua o jurista inglês acerca do procedimento utilizado por Austin  
para chegar até sua teoria da soberania:  
Este procedimento desconsidera sempre elementos importantes, por  
vezes de importância capital, porque incluem todos os elementos que  
orientam a ação humana, com exceção da força diretamente aplicada  
ou diretamente percebida. [o melhor armamento já é um elemento  
diretamente baseado no progresso dos meios de produção (que, por  
exemplo, na caça e na pesca são idênticos aos meios de destruição,  
de guerra).] Mas a operação de separá-los para fins de classificação é  
perfeitamente legitimado (359 <: 321 ss.>) Por este procedimento de  
abstração que leva à noção de soberania, deixamos de lado... toda a  
história de cada comunidade... a forma como o resultado foi alcançado  
(360 < :322>). (MARX, 1988, pp. 289-90 tradução livre, grifos  
nossos)15  
Maine está criticando Austin por desconsiderar, além da influência da moral,  
uma série de elementos particulares de cada comunidade para alcançar a soberania,  
com exceção da força diretamente aplicada, a qual reconhece como um elemento geral.  
Porém, o que Maine deixa de considerar, segundo Marx, é que a existência de  
armamento, base material da força diretamente aplicada, já pressupõe um certo nível  
de desenvolvimento dos meios de produção, seja para a subsistência através da caça  
e pesca, ou diretamente para a guerra e destruição. Para Marx, a crítica de Maine a  
Austin é muito superficial. Expõe em seguida:  
15  
Este procedimiento desdeña elementos siempre importantes, algunas veces de importancia capital,  
porque comprenden todos los elementos que dirigen la acción humana a excepción de la fuerza  
directamente aplicada o directamente percibida. [el mejor armamento es ya un elemento directamente  
basado en el progreso de los medios de producción (que, v.g. en la caza y la pesca son idénticos a los  
medios de destrucción, de guerra).] Pero la operación de separarlos con un fin clasificatorio se legitima  
perfectamente (359 <: 321 ss.>) Por este procedimiento de abstracción que conduce a la noción de  
soberanía, dejamos fuera ... la historia entera de cada comunidad... el modo como se ha alcanzado el  
resultado. (360 <:322>) (MARX, 1988, pp. 289-90)  
The elements neglected in the process are always important, sometimes of extreme importance, for they  
consist of all the elements controlling human action except force directly applied or directly  
apprehended. [Z.B. die bessere Bewaffnung ist schon ein direct auf Fortschritt in d. Productionsmitteln  
(diese fallen z.B. bei Jagd u. Fischfang direct zusammen mit Zerstörungsmitteln, Kriegsmitteln)  
berühendes Element.] but the operation of throwing them aside for purposes of classification is ...  
perfectly legitimate.” (359) We reject in the process of abstraction by which the conception of  
Sovereignty is reached ... the entire history of each community ... the mode in which the result has been  
arrived at. (360) (MARX, 1974, p. 330)  
Verinotio  
82 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
<[>A superficialidade de sua crítica, escondida sob uma fraseologia  
parcialmente boa, começa a se desdobrar na seguinte frase:<]> <<É  
a sua história (da comunidade), toda a soma de seus antecedentes  
históricos, que determina em cada comunidade como o soberano deve  
exercer, ou deixar de exercer, seu irresistível poder coercitivo>> (360  
<: 322>); Mas toda essa história é reduzida no Maine, como ele diz,  
a <<elementos morais>>, já que, seja como jurista ou como ideólogo,  
ele imediatamente continua assim: <<Os juristas analíticos não levam  
em conta todos esses elementos: o enorme amontoado de opiniões,  
sentimentos, crenças, superstições e preconceitos de toda espécie,  
hereditários ou adquiridos, alguns provenientes de instituições, outros  
da própria natureza humana; Parece que, dentro das restrições  
contidas na sua definição de soberania, a rainha e o parlamento do  
nosso país poderiam ordenar que todas as crianças fracas fossem  
condenadas à morte ou estabelecer um sistema de lettres de cachet  
(ordens secretas). (360 <: 322>). [Como os ingleses acabaram de  
estabelecer através de sua coercion bill <lei de repressão> na Irlanda;  
anotado em junho de 1881.] [Um bom exemplo é o meio louco Ivan  
IV. Quando ele se enfurece contra os boiardos e também contra a  
plebe de Moscou, ele tenta e tem que fazê-lo apresentar-se como  
um defensor dos interesses do campesinato.] (MARX, 1988, p. 290 –  
tradução livre, grifos nossos)16  
Logo, a crítica de Maine se resume ao fato de que os juristas analíticos deveriam  
considerar, em sua noção de soberania, “o enorme amontoado de opiniões,  
sentimentos, crenças, superstições e preconceitos de toda espécie, hereditários ou  
16  
<[>La superficialidad de su critica, oculta bajo una fraseología en parte biensonante, comienza a  
desplegarse en la siguiente frase:<]> <<Es su historia (de la comunidad), la suma entera de sus  
antecedentes históricos, la que determina en cada comunidad cómo tiene que ejercer el soberano, o  
dejar de ejercer, su irresistible poder coercitivo>> (360 <: 322>); pero toda esta historia se reduce en  
Maine, como dice, a <<elementos morales., toda vez que, sea como jurista o como ideólogo, continúa  
acto seguido así: <<Los juristas analíticos no tienen nada en cuenta todos estos elementos: el enorme  
montón de opiniones, de sentimientos, de creencias, de supersticiones y de prejuicios de toda especie,  
hereditarios o adquiridos, procedentes unos de las instituciones, otros de la misma naturaleza humana;  
de suene que, ateniéndonos a las restricciones contenidas en su definición de la soberanía, la reina y el  
parlamento de nuestro país podrían ordenar que se diera muerte a todos los niños débiles o establecer  
un sistema de lettres de cachet <órdenes secretas>. (360 <: 322>). [Como los ingleses acaban de  
establecer por su coerción bill <ley de represión> en Irlanda; anotado en junio de 1881.] [Buen ejemplo  
el medio loco lván IV. Cuando <se pone> furioso contra los boyardos, y también contra la plebe  
moscovita, intenta y tiene que hacerlopresentarse como defensor de los intereses del  
campesinado.] (MARX, 1988, p. 290)  
Seine flache Kritik,89 die er unter zum Theil richtig klingender Phraseologie verbirgt, windet sich ab  
erstens in folgender Phrase: “It is its history (des Gemeinwesens), the entire mass of its historical  
antecedents, which in each community determines how the Sovereign shall exercise or forbear from  
exercising his irresistible coercive power,” (p. 360) aber diese ganze Geschichte löst sich bei Maine in  
so called “moral elements” auf, denn er fährt wieder, als either Jurist od. Ideolog unmittelbar fort: “All  
that constitutes this - the whole enormous aggregate of opinions, sentiments, beliefs, superstitions, and  
prejudices of all kinds, hereditary and acquired, some produced by institutions and some by the  
constitution of human nature - is rejected by the Analytical Jurists. And thus it is that, so far as the  
restrictions contained in their definition of Sovereignty are concerned, the Queen and Parliament of our  
own country might direct all weakly children to be put (to) death or establish a system of lettres de  
cachet” (p. 360) (such as the English now have established by their coercion bill in Irld. Dies geschrieben  
Juni 1881)92 [Gutes Beispiel d. halb verrückte Iwan IV. Whd wüthend gegen Bojaren u. auch gegen  
rabble in Moskau, sucht er, u. muss er, sich halten als Vertreter d. Bauerninteressen.] (MARX, 1974, p.  
330)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 83  
nova fase  
 
Ana Carolina Marra de Andrade  
adquiridos, alguns provenientes de instituições, outros da própria natureza humana”,  
ou seja, o que ele define como elementos de cunho moral. Marx então coloca que para  
o jurista inglês a história se reduz a esses elementos morais, o que revela o caráter  
ideológico de sua elaboração teórica. Ideológico, aqui, parece ser colocado de modo  
pejorativo, remetendo para uma defesa insustentada, e até certo ponto hipócrita, das  
instituições burguesas. Não obstante suas (superficiais) críticas à Austin pautada na  
suposta falta de consideração dos elementos de cunho moral na constituição do  
estado, Maine adere fortemente à teoria da soberania. Chega a dizer que a  
determinação de soberania deve preceder necessariamente ao direito é uma das  
afirmações de Austin que são “proposições evidentes por si mesmas” por ser obtida  
agrupando todas as formas de governo e destruindo-as de seus atributos específicos  
(exceto a força coercitiva, comum a todos eles):  
Por outro lado, as <<afirmações>> de Austin tornam-se  
<<proposições evidentes por si mesmas>> na medida em que se  
reconheceu que <<em seu sistema a determinação da soberania deve  
necessariamente preceder ao Direito>>, quando se entendeu < << >  
que a ideia de soberania de Austin é obtida agrupando mentalmente  
todas as formas de governo depois de despojá-lo de todos os outros  
atributos, exceto a força coercitiva>> e [aqui as orelhas do burro  
aparecem novamente] < << >quando alguém compreendeu  
completamente a ideia de que, pela própria natureza do caso, as  
deduções extraídas de um princípio abstrato nunca se mostram  
completamente realizadas nos fatos. (362 <: 323 ss.>) (MARX, 1988,  
p. 290 tradução livre, grifos nossos)17  
As “orelhas de burro” de Maine aparecem no momento que diz: “quando  
alguém compreendeu completamente a ideia de que, pela própria natureza do caso,  
as deduções extraídas de um princípio abstrato nunca se mostram completamente  
realizadas nos fatos”. Para Maine, as situações concretas nas quais a teoria da  
17  
En cambio las <<afirmaciones>> de Austin se convienen en <<proposiciones evidentes por sí  
mismas>> en cuanto se ha reconocido que <<en su sistema la determinación de la soberanía debe  
preceder necesariamente a la del Derecho>>, cuando se ha comprendido < << >que la idea que tiene  
Austin de la soberanía se obtiene agrupando mentalmente todas las formas de gobierno después de  
haberlo despojado de todo otro atributo menos la fuerza coactiva>> y [aquí asoman de nuevo las orejas  
de burro] < << >cuando uno se ha penetrado bien de la idea que, por la misma naturaleza del caso,  
las deducciones sacadas de un principio abstracto no se muestran nunca completamente realizadas en  
los hechos. (362 <: 323 ss.>) (MARX, 1988, p. 290)  
Daggen werden d. “assertions” des Austin “self evident propositions”, sobld man weiss dass “in his  
system the determination of Sovereignty ought to precede the determination of Law”, it being once  
understood that the Austinian conception of Sovereignty has been reached through mentally uniting all  
forms of Government in a group by conceiving them to be stripped of every attribute except coercive  
force”, and (hier zeigt sich wieder der Eselsfuss) when it is steadily born(e) in mind that the deductions  
from an abstract principle are never from the nature of the case completely exemplified in facts.” (362)  
(MARX, 1974, p. 330)  
Verinotio  
84 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
soberania não se aplica não a invalidam, pois um princípio abstrato não precisa se  
realizar na realidade. Essa afirmação é absurda, de modo que o que define a validade  
de uma abstração é sua razoabilidade conforme a realidade concreta, do contrário  
tenta-se moldar a realidade para fazê-la caber em princípios abstratos, distorcendo-a.  
Assim, ao admitir que a teoria da soberania é insuficiente para explicar certas  
conformações sociais, Maine não percebe que está expondo sua própria fragilidade  
em sua falta de capacidade de explicar a realidade em sua complexidade.  
Em suma, a teoria da soberania é uma das proposições autoevidentes que  
conformam o que Marx chama ironicamente de dogmas de Austin, conforme exposto  
no seguinte trecho:  
<[>Outros dogmas de Austin:<]> <<Jurisprudência é a ciência do  
direito positivo (Positive Law). As leis positivas (Positive Laws) são  
ordens dirigidas pelos soberanos aos seus súditos, impondo-lhes um  
dever, ou uma condição de obrigação, e ameaçando-os com sanção  
ou punição em caso de desobediência às suas ordens. Um direito  
(Right) é a faculdade ou poder conferido pelo soberano a certos  
membros da comunidade para aplicar a sanção a outro sujeito que  
não cumpre um dever>> (362 <: 324). (MARX, 1988, p. 290 –  
tradução livre, grifos nossos).18  
Ressaltamos a diferença entre direito como law que denota um caráter mais  
objetivo do direito, vinculado à lei (law também pode significar lei dependendo do  
contexto); e direito como right, que destaca seu caráter subjetivo. O conjunto desses  
dogmas e de suas consequências seriam o que o autor das Lectures chama de  
“método” dos juristas analíticos:  
<[>Todas essas trivialidades pueris a autoridade suprema é quem  
tem o poder de se impor, as leis positivas são ordens da autoridade  
aos seus súditos; com ele impõe obrigações a esses súditos e isso é  
um dever, e ameaça com punições a desobediência às ordens; a lei é  
o poder que transfere autoridade a certos membros da sociedade para  
que eles castiguem os membros da sociedade que agem contra o seu  
dever essa infantilidade e muito mais, nem mesmo um Hobbes foi  
capaz de extrair da mera teoria do poder soberano. E esse  
dogmatismo seriamente pregado por John Austin é chamado por  
18  
<[>Otros dogmas de Austin:<]> <<La jurisprudencia es la ciencia del Derecho positivo. Las leyes  
positivas son órdenes dirigidas por los soberanos a sus súbditos, imponiéndoles un deber o la condición  
de obligados a  
una obligación, y amenazándoles con una sanción o castigo, caso de desobediencia a sus órdenes. Un  
derecho es la facultad o poder conferido por el soberano a ciertos miembros de la comunidad para  
aplicar la sanción a otro súbdito que no cumple un deber>>. (362 <: 324) (MARX, 1988, p. 290)  
Weitere Dogmen des Austin: “Jurisprudence is the science of Positive Law. Positive Laws are Commands,  
addressed by Sovereigns to their Subjects, imposing a Duty, or condition of obligedness, or obligation,  
on those Subjects, and threatening a Sanction, or Penalty, in the event of disobedience to Command. A  
Right is the faculty or power conferred by the Sovereign on certain members of the community to draw  
down the sanction on a fellow-subject violating a Duty.” (362) (MARX, 1974, pp. 330-1)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 85  
nova fase  
 
Ana Carolina Marra de Andrade  
Maine de <<método>> dos juristas analíticos, muito análogo àquele  
seguido pela matemática e economia política e estritamente científico!  
Em tudo isso se trata apenas do aspecto formal, que sempre <é>  
naturalmente o principal para um jurista <]>. (MARX, 1988, p. 290 –  
tradução livre)19  
Os dogmas são, em linhas gerais, os pressupostos e as consequências da teoria  
da soberania, sejam eles: “a autoridade suprema é quem tem o poder de se impor, as  
leis positivas são ordens da autoridade aos seus súditos; com tal poder impõe  
obrigações a esses súditos e isso é um dever, ameaçando com punições a  
desobediência às ordens; o direito [right] é o poder que transfere autoridade a certos  
membros da sociedade para que eles castiguem os membros da sociedade que agem  
contra o seu dever”. Ou seja, todos os aspectos que vinham sendo desenvolvidos  
acerca da explicação austiniana para a existência do Estado e para a legitimidade do  
direito.  
Marx traz que o que Maine chama “método” dos juristas analíticos não são mais  
que trivialidades pueris, dogmatismos pregados por Austin, e seria então “muito  
análogo àquele seguido pela matemática e economia política e estritamente científico”.  
Conforme exposto anteriormente, apesar de Maine frequentemente reforçar o caráter  
supostamente científico das elaborações dos juristas analíticos, Marx não vê nada de  
científico em suas proposições, criticando inclusive a concepção que eles apresentam  
de ciência. Temos, então, que “estritamente científico”, aqui, está colocado de forma  
irônica, ao menos no que diz respeito especificamente ao método dos juristas  
analíticos.  
Nesse sentido, Marx parece apontar que tanto os economistas políticos quanto  
19 <[>Todas estas trivialidades pueriles la suprema autoridad es quien tiene el poder de imponerse,  
las leyes positivas son órdenes de la autoridad a sus súbditos; con ello impone a estos súbditos  
obligaciones y esto es un deber, y amenaza con castigos la desobediencia a las órdenes; el derecho es  
el poder que transfiere la autoridad a ciertos miembros de la sociedad para que castiguen a los  
miembros de la sociedad que obren contra su deberesta puerilidad y mucho más no se la ha podido  
sacar ni siquiera un Hobbes de la mera teoría del poder soberano. ¡Y este dogmatismo seriamente  
predicado por John Austin lo llama Maine el <<método>> de los juristas analíticos, muy análogo al que  
siguen las matemáticas y la economía política y estrictamente científico! / En todo esto sólo se trata del  
aspecto formal. que siempre <es> naturalmente, lo principal para un jurista <]>. (MARX, 1988, p. 290)  
Alle diese kindischen Trivialitäten - Höchste Obrigkeit ist wer d. Macht hat zu zwingen, Positive Gesetze  
sind Befehle der Obrigkeit an ihre Unterthanen; sie legt dadurch diesen Unterthanen Verpflichtungen  
auf, u. dies ist Pflicht, u. droht mit Strafe für Ungehorsam gegen d. Befehl; Recht ist die Macht welche d.  
Obrigkeit gewissen Gliedern der Gesellscft überträgt pflichtwidrig handelnde Gesellscftsglieder zu  
strafen - dies Kindische, u. viel mehr kann selbst ein Hobbes aus der blossen obrigkeitlichen  
Gewaltstheorie nicht herausklauben - dies von John Austin ernsthaft doctrinair gepredigte nennt Maine  
eine “Procedur” der analytischen Juristen, die closely analog sei mit der in Mathematik u. d. Politischen  
Oekonomie befolgten u. "strictly scientifick”! | Alles dreht sich hier nur um d .formelle Seite, die natürlich  
für einen Juristen überall d. Hauptsache. (MARX, 1974, p. 331)  
Verinotio  
86 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
os juristas analíticos pretendiam trazer um caráter de cientificidade para suas  
elaborações teóricas, que não necessariamente se realiza de fato (ou, ao menos, não  
no último caso). Os juristas analíticos ainda dão destaque para os aspectos formais,  
ou seja, para o papel do próprio direito. Além de que, conforme exposto anteriormente,  
tomariam como ciência a mera classificação e a definição. A aproximação de ambos os  
métodos com a matemática também parece ter a ver com o critério de cientificidade  
da matemática, que funciona para a matemática, mas não necessariamente para outras  
áreas em linhas gerais, trata-se de partir de axiomas gerais para chegar a conclusões  
lógicas particulares de modo dedutivo. Para entender melhor a aproximação por  
analogia entre o método dos juristas analíticos e o método da economia política,  
traremos alguns elementos da crítica ao método da economia política conforme  
elaborados por Marx em seus manuscritos econômicos de 1857-58.  
O método da economia política e o método dos juristas analíticos  
Nos manuscritos econômicos de 1857-1858, ou esboços da crítica da  
economia política que ficaram conhecidos como Grundrisse, Marx traz uma crítica ao  
método da economia política, começando por uma crítica a um de seus pontos de  
partida, mais comum no século XVII, a população:  
Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo  
pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da economia, por exemplo,  
começarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato  
social de produção como um todo. Considerado de maneira mais  
rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é uma  
abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é  
constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se  
desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho  
assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço  
etc. O capital, p. ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o  
valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. Por isso, se eu começasse pela  
população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio  
de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a  
conceitos cada vez mais simples; do concreto representado [chegaria]  
a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que tivesse  
chegado às determinações mais simples. Daí teria de dar início à  
viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população,  
mas desta vez não como a representação caótica de um todo, mas  
como uma rica totalidade de muitas determinações e relações. (MARX,  
2011, p. 54)  
Para Marx, parece ser necessário um ponto de partida real e concreto, um  
pressuposto efetivo. Logo, alguns economistas políticos tomam, por exemplo, a  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 87  
nova fase  
Ana Carolina Marra de Andrade  
população20 como um conceito base, como sujeito do ato social de produção, o que  
parece coerente com a ideia do ponto de partida concreto. No entanto, a população  
não é uma categoria tão simples quanto aparenta ser, mas uma abstração grotesca,  
irrazoável, uma “representação caótica do todo”, de modo que pressupõe uma série  
de outras categorias que são ocultadas quando a tomamos como ponto de partida,  
fazendo com que as conclusões tomadas com esta base incidam em erro.  
Partindo da população, duas vias se colocam: ou percorre-se um caminho até  
conceitos cada vez mais abstratos até que chegue novamente a determinações simples,  
ou vai além e retorna novamente à população, sendo forçado a explicar as  
determinações que a conformam enquanto totalidade. A primeira via corresponde ao  
método da economia política, enquanto a segunda é o método cientificamente correto:  
A primeira via foi a que tomou historicamente a economia em sua  
gênese. Os economistas do século XVII, p. ex., começam sempre com  
o todo vivente, a população, a nação, o estado, muitos estados etc.;  
mas sempre terminam com algumas relações determinantes, abstratas  
e gerais, tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc., que  
descobrem por meio da análise. Tão logo esses momentos singulares  
foram mais ou menos fixados e abstraídos, começaram os sistemas  
econômicos, que se elevaram do simples, como trabalho, divisão do  
trabalho, necessidade, valor de troca, até o estado, a troca entre as  
nações e o mercado mundial. O último é manifestamente o método  
cientificamente correto. O concreto é concreto porque é a síntese de  
múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa  
razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese,  
como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o  
ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de  
partida da intuição e da representação. (MARX, 2011, p. 54)  
O concreto é a síntese de múltiplas determinações, a unidade da diversidade, e  
como o pensamento é um processo de síntese, o concreto aparece no pensamento  
como um resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida  
efetivo, justamente na medida em que “o todo como um todo de pensamentos, tal  
como aparece na cabeça, é um produto da cabeça pensante que se apropria do mundo  
do único modo que lhe é possível, um modo que é diferente de sua apropriação  
artística, religiosa e prático-mental” (MARX, 2011, p. 79). Ou seja, em geral o todo  
aparece como produto do pensamento, como resultado, não como início, de modo que  
a economia política se mantém presa a este modo superficial de olhar para a  
20  
O exemplo escolhido por Marx é uma referência aos fisiocratas (antecessores da economia política  
em seu sentido clássico, e neste textos também considerados parte da economia política) que não raro  
tomavam a população (dentre outros conceitos, como: o todo vivente, a nação, o estado etc.) como  
ponto de partida.  
Verinotio  
88 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
totalidade.  
Nesse sentido, J. Chasin expõe acertadamente que:  
assim, é arguido que partindo do todo imediato, manifesto por seus  
complexos parciais (cidade, campo, produção, população, classes etc.),  
desemboca-se numa “representação caótica do todo”, pois a  
totalidade ou cada parte abordada redunda em simples abstração, se  
desconsiderados os vetores que a integram, por exemplo, a população  
sem as classes (CHASIN, 2009, pp. 126-7).  
Consequentemente, partindo do concreto como síntese de múltiplas  
determinações, desembocamos em uma representação da totalidade caótica, que não  
compreende todos os fatores que a integram. O que Marx denomina como “método  
cientificamente exato” toma as abstrações (razoáveis) como ponto de partida da  
elaboração teórica, e concreto como resultado (cf. CHASIN, 2009, p. 127), de modo  
antagônico ao que é feito pela economia política. As abstrações, é claro, não surgem  
do nada, elas partem do não-abstrato, do concreto, que é o “ponto de partida efetivo,  
e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação”. Ou  
seja, Marx defende aqui dois movimentos essenciais: do concreto imediato e caótico  
chega-se às abstrações razoáveis, e delas, então, retornamos ao concreto em toda a  
sua multiplicidade de determinações evidenciadas, e assim o concreto imediato se  
torna concreto mediado (pelas categorias abstratas) e não mais caótico.  
A razoabilidade das abstrações se coloca na medida em que destaca aspectos  
reais “comuns às formas temporais de entificação dos complexos fenomênicos  
considerados” (CHASIN, 2009, p. 124), a saber, revela aquilo que é comum ao todo  
do que se refere, sem obscurecer a diferença específica dos complexos que o compõe.  
A produção em geral, por exemplo, é, para Marx, uma abstração razoável:  
A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável,  
na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum,  
poupando-nos assim da repetição. Entretanto, esse Universal, ou o  
comum isolado por comparação, é ele próprio algo multiplamente  
articulado, cindido em diferentes determinações. Algumas  
determinações pertencem a todas as épocas; outras são comuns  
apenas a algumas. [Certas] determinações serão comuns à época mais  
moderna e à mais antiga (MARX, 2011, p. 56).  
E sua razoabilidade expressa aquilo que há em comum à produção universal,  
mas não pode ser sinônimo de tomar a produção capitalista como uma produção  
eterna, como fazem os economistas modernos:  
As determinações que valem para a produção em geral têm de ser  
corretamente isoladas de maneira que, além da unidade decorrente  
do fato de que o sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são os  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 89  
nova fase  
Ana Carolina Marra de Andrade  
mesmos , não seja esquecida a diferença essencial. Em tal  
esquecimento repousa, por exemplo, toda a sabedoria dos  
economistas modernos que demonstram a eternidade e a harmonia  
das relações sociais existentes. (MARX, 2011, p. 57)  
Marx reforça a historicidade dos fenômenos sociais ao se contrapor ao método  
da economia política, a partir dos economistas do século XVII, explicitando que “as  
próprias categorias mais abstratas, apesar de sua validade para todas as épocas –  
justamente por causa de sua abstração , na determinabilidade dessa própria  
abstração, são igualmente produto de relações históricas e têm sua plena validade só  
para essas relações e no interior delas” (MARX, 2011, pp. 83-4). Os economistas  
políticos, tomando como exemplo aqueles do século XVII, como Marx coloca, não  
compreendem que “categorias expressam formas de ser, determinações de existência,  
com frequência somente aspectos singulares, dessa sociedade determinada, desse  
sujeito” (MARX, 2011, p. 59).  
Desse modo, Marx, ao criticar o método da economia política, defende um  
procedimento oposto, que parte de abstrações razoáveis até o concreto como  
resultado, podendo então voltar-se para a articulação entre as diferentes categorias,  
de modo a verificar a compatibilidade a partir de suas diferenças específicas. Nas  
palavras de Chasin:  
Desde logo porque a articulação, fase conclusiva do processo  
analítico, é também uma exigência de delimitação, levando em conta  
que as abstrações razoáveis, umas em face das outras, têm de ser  
compatibilizadas entre si, o que implica recíprocas determinações  
delimitadoras, pelas quais são estabelecidas as proporções com que  
integram a reprodução final do objeto investigado. (CHASIN, 2009, p.  
130)  
Não iremos mais além no debate acerca da existência ou inexistência de uma  
questão do método no pensamento de Marx21, apenas pontuando elementos de sua  
crítica ao método da economia política, que é importante para nós na justamente  
medida em que é comparada ao chamado “método” dos juristas analíticos.  
De uma forma semelhante aos economistas políticos em geral, os juristas  
analíticos partem de categorias irrazoáveis, que pressupõem uma série de outras  
categorias, ocultando-as, ainda que os primeiros consigam chegar a resultados  
científicos, por mais que limitados ao horizonte burguês, e os segundos não só não  
conseguem como representam, no máximo, uma repetição apologética dos primeiros.  
21 Para aprofundar no debate, ver Chasin (2009).  
Verinotio  
90 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
Se os economistas políticos do século XVII, partem, por exemplo, da população; os  
segundos partem de uma ideia de príncipe ou soberano que possui súditos obedientes  
e emana ordens que preveem sanções. A população deixa de fora as classes, que  
deixam de fora o trabalho assalariado e o capital, que pressupõem troca, divisão do  
trabalho, preço, além de trabalho assalariado e valor. Vale mencionar que Smith e  
Ricardo, representantes da economia política clássica, não deixam essas categorias  
específicas de lado. Ao contrário, estabelecem certas relações históricas próprias da  
sociedade civil-burguesa como naturais. No próximo tópico, desenvolveremos as  
diferenças específicas entre fisiocracia, economia política clássica e economia vulgar,  
de modo a esclarecer o caráter de vulgarização presente na analogia com o método  
dos juristas analíticos.  
De modo semelhante ao exemplo, o soberano (que, para Marx, trata-se do  
estado em sua aparência), pressupõe a existência de relações de poder, de mando e  
obediência, que também pressupõem a separação dos interesses individuais do  
interesse comum, que também pressupõe a existência de classes sociais nas quais são  
colocados indivíduos com interesses em comum que se contrapõem entre si, e as  
classes pressupõem a divisão do trabalho, dentre outras condições econômicas em  
geral, considerando a historicidade das formas de apropriação, as quais estão expostas  
de forma mais detalhada nos Grundrisse.  
A teoria da soberania está, ainda, aquém da economia política, ocultando a  
gênese do estado e sua relação com as classes sociais e, portanto, também a produção  
e os fatores econômicos em geral. Para Marx, a teoria da soberania de Austin  
compreende o estado a partir de sua aparência, de sua dimensão mais superficial, e  
então coloca o soberano como algo acima da sociedade, de modo a inverter sujeito e  
predicado na relação entre estado e sociedade. Como em 1844 Marx já anunciava, do  
mesmo modo que na religião cristã o ser humano aparece como criatura e Deus como  
seu criador, sendo que esta relação decorre exatamente do oposto, a sociedade  
também cria o Estado, e não o contrário — e então “A crítica do céu transforma-se,  
assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a crítica da teologia,  
na crítica da política” (MARX, 2013, p. 146). O ser humano é fundamento de si mesmo,  
e “não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem,  
o estado, a sociedade” (MARX, 2013, p. 145). Os juristas analíticos incorrem neste  
mesmo erro, tratando o soberano como uma entidade quase religiosa, sobre-humana,  
ocultando suas bases sociais.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 91  
nova fase  
Ana Carolina Marra de Andrade  
Não satisfeito, Maine tenta resolver as deficiências da teoria da soberania  
adicionando elementos de cunho moral como influências determinantes na atuação do  
soberano, ao que Marx acrescenta que são influências no máximo secundárias,  
derivadas, tratando-se sobretudo de influências econômicas que podem ter um modus  
moral existência. Além de que, conforme vimos no tópico anterior, o destaque da moral  
para explicar o desenvolvimento do estado demonstra o caráter ideológico, no sentido  
pejorativo, de sua elaboração teórica, de modo que reduz toda a história do Estado e  
seu desenvolvimento a elementos morais.  
Como já tratamos, Marx também traça raciocínio semelhante ao que elabora  
nos Grundrisse ao tratar da forma como a teoria da soberania de Austin depende da  
existência de uma força que o jurista chama de diretamente aplicada ou diretamente  
percebida. Para nosso autor, essa noção pressupõe a existência de armamento, o qual  
pressupõe um progresso dos meios de produção tal que a produção não se volta  
somente para a subsistência, que já deve estar garantida (como meios para a pesca e  
para a caça), mas para a destruição e para a guerra. Assim, oculta-se também que a  
própria existência do soberano já pressupõe um estágio de desenvolvimento humano  
no qual foram criadas armas de guerra, as quais só são desenvolvidas após a  
elaboração de armas utilizadas para encontrar alimentos.  
Como vimos, Maine ainda tenta defender que as abstrações não precisam se  
adequar à realidade concreta, admitindo a existência de sociedades em que a teoria  
da soberania não se aplica. Então, ao invés de tomar isso como uma falha, Maine se  
vangloria por naturalizar aspectos do estado que aparecem em um determinado  
momento histórico por se tratar de um princípio abstrato que, portanto, não precisa  
se adequar à realidade como tal, eximindo-se da necessidade de explicar por que eles  
não se colocam em outras formas de sociedade.  
Diferente do realizado tanto pelos juristas analíticos quanto pelos economistas  
políticos, o mais próximo de um “método cientificamente exato” seria, então, o caminho  
no qual se toma o concreto enquanto ponto de partida efetivo até as abstrações  
razoáveis, a partir das quais se retorna ao concreto, só então ocupando-se da  
articulação entre as diferentes categorias; e não se trata, portanto, de um método em  
seu sentido rígido e estrito.  
Além da analogia entre o método dos juristas analíticos e aquele da economia  
política, temos também uma aproximação de ambos com a matemática, a qual  
podemos entender melhor após compreender também qual é suposto método da  
Verinotio  
92 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
economia política. Diz Marx, conforme exposto: “E esse dogmatismo seriamente  
pregado por John Austin é chamado por Maine de <<método>> dos juristas analíticos,  
muito análogo àquele seguido pela matemática e economia política e estritamente  
científico!” (MARX, 1988, p. 290 – tradução livre). A partir de nossas reflexões,  
podemos inferir que a aproximação entre esses três métodos é a seguinte: todos  
partem, em geral, de um conceito (que se coloca enquanto um axioma) para então  
tomar conclusões de caráter dedutivo, ou seja, partir de um princípio, que é um dogma,  
do qual, a partir dele, tira-se um conjunto de derivações e conclusões.  
Nesse sentido, também é interessante pontuar uma aproximação com o que  
Marx trata no Livro III de O capital, “Aqui é válido o que diz Hegel com referência a  
certas fórmulas matemáticas, a saber, que aquilo que o senso comum considera  
irracional é racional, e o que ele considera racional é a própria irracionalidade” (MARX,  
2017a, p. 839). Aqui, Marx está falando como que, na efetividade, há categorias  
irracionais que operam em nosso cotidiano; vejamos o que ele diz logo antes para  
entender melhor seu contexto:  
A relação entre uma parte do mais-valor, a renda em dinheiro pois  
este é a expressão autônoma do valor e o solo é absurda e irracional,  
pois aqui se medem entre si grandezas incomensuráveis: por um lado,  
um valor de uso determinado, um terreno com tantos pés quadrados;  
por outro, valor, especialmente mais-valor. De fato, isso expressa  
apenas que, sob as condições dadas, a propriedade desses pés  
quadrados de solo capacita o proprietário a apoderar-se de uma  
quantidade determinada de trabalho não pago, que o capital realizou  
nos pés quadrados como um porco entre as batatas {neste ponto do  
manuscrito, lê-se entre parênteses, porém riscado: “Liebig”}. Prima  
facie, no entanto, a expressão é a mesma que se empregaria para falar  
da relação entre uma cédula de £5 libras e o diâmetro da Terra. As  
mediações das formas irracionais em que se apresentam e se resumem  
determinadas condições econômicas não importam nada aos agentes  
práticos dessas condições econômicas em sua atividade cotidiana, e  
estes, por estarem acostumados a se mover no interior delas, não  
ficam nem um pouco escandalizados com isso. Uma absoluta  
contradição não tem nada de misterioso para eles. Dentro das formas  
de manifestação que, abstraídas de seu contexto e tomadas  
isoladamente, são absurdas, eles se sentem tão à vontade quanto um  
peixe na água. Aqui é válido o que diz Hegel com referência a certas  
fórmulas matemáticas, a saber, que aquilo que o senso comum  
considera irracional é racional, e o que ele considera racional é a  
própria irracionalidade. (MARX, 2017a, p. 839)  
Nesse sentido, ao tratar da renda da terra e sua relação com o preço da terra,  
Marx chega até categorias que são irracionais, mas efetivas, ou seja, que medem  
grandezas incomensuráveis, não podendo ser expressas pela matemática, tal qual a  
relação entre uma cédula de £ 5 e o diâmetro da Terra, mas que atuam sobre a  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 93  
nova fase  
Ana Carolina Marra de Andrade  
realidade. A relação entre a renda em dinheiro e o solo é absurda, contraditória e  
irracional, mas é real e trata de categorias com as quais lidamos em nosso cotidiano.  
Nesse sentido, o senso comum não se escandaliza quando um proprietário de terra  
pode se apropriar de determinada quantidade de trabalho não-pago (uma parcela do  
mais-valor, expressa pela renda em dinheiro), somente por ser um proprietário passivo  
de determinado terreno com determinada quantidade de metros quadrados, mas isso  
não torna esta relação racional, muito menos passível de ser mensurada. Então, o que  
é considerado racional, muitas vezes é irracional; e o considerado irracional (como  
algumas fórmulas matemáticas), pode ser racional. De modo semelhante, para nós, em  
seus Cadernos, Marx não está traçando uma crítica à matemática ou a sua posição  
enquanto ciência, mas questionando o uso de determinações típicas de uma ciência  
não-empírica para uma análise da sociedade, na qual vigoram categorias que são  
irracionais, o que já impossibilita que a matemática compreenda relações sociais  
efetivas, sem retirar seu mérito para tratar daquelas que são, de fato, racionais.  
Não pretendemos nos estender, aqui, acerca de questões relativas à filosofia da  
matemática e a seus estudos doutrinais, como a discussão se os axiomas são ou não  
evidentemente verdadeiros (questionada sobretudo a partir do século XIX).  
Pretendemos demonstrar tão somente que a aproximação feita por Marx parece levar  
em consideração justamente o modo como tanto os economistas políticos quanto os  
juristas analíticos parecem tentar trazer uma forma de raciocínio matemática para a  
análise da sociedade, no sentido de partir de axiomas, os últimos inclusive utilizando-  
a para reforçar um caráter supostamente científico de sua elaboração teórica.  
Considerações finais  
Passaremos, agora, para algumas considerações finais, que não se colocam,  
rigorosamente, enquanto uma conclusão. Conforme coloca Chasin, neste momento  
“não caberia o que tradicionalmente é entendido por uma conclusão; no caso seria  
uma redundância empobrecida, pois não seria mais do que um simples resumo,  
enquanto a análise imanente propriamente dita, a seu plano, é conclusiva no seu  
próprio decurso” (CHASIN, 1978, p. 604). Nesse sentido, entendemos que as  
conclusões são elaboradas no curso da argumentação, e que cabe agora acrescentar  
apenas algumas observações que se relacionam com o texto, sem meramente resumi-  
lo.  
Ao longo de nossa exposição, demonstramos de que maneira existe, para Marx,  
Verinotio  
94 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
uma analogia entre o método da economia política e o método dos juristas analíticos,  
conforme exposto nos Cadernos, a qual se coloca tendo em vista as categorias que  
são utilizadas enquanto ponto de partida efetivo em cada caso específico. Não  
obstante, acreditamos que há uma decadência na teoria dos juristas analíticos que não  
existe na economia política, ao menos em sua forma clássica. Conforme vimos, os  
juristas analíticos partem de categorias que pressupõem muito mais do que as  
categorias que são o ponto de partida da economia política, nem mesmo reconhecendo  
a influência dos fatores econômicos na formação do soberano. Ao tomar como  
fundamento a aparência do Estado já autonomizado ocultam não só todos os fatores  
econômicos, mas também diversos fatores da própria ordem política. Ou seja, ainda  
que o método dos juristas analíticos e o dos economistas políticos seja essencialmente  
o mesmo: partir de conceitos que se colocam enquanto dogmas para traçar conclusões  
dedutivas, os juristas analíticos utilizam este método partindo de uma representação  
caótica do todo mais geral que a economia política do século XVII, e mais próxima da  
economia vulgar, conforme veremos em seguida.  
Em A ideologia alemã, Marx e Engels tratam do jurista analítico Bentham como  
o primeiro filósofo que se coloca como defensor do modo de vida burguês como  
universal:  
pela primeira vez, em Bentham, no momento em que a burguesia,  
depois da Revolução Francesa e do desenvolvimento da grande  
indústria, não aparece mais como uma classe particular mas como a  
classe cujas condições são as condições de toda a sociedade. Depois  
de criadas as paráfrases sentimentais e morais que, nos franceses,  
formavam todo o conteúdo da teoria da utilidade, para o  
desenvolvimento ulterior dessa teoria faltava apenas saber como os  
indivíduos e as relações seriam utilizados, explorados. A resposta a  
essa questão já havia sido dada, nesse meio tempo, pela economia  
política; o único progresso possível se encontrava na incorporação do  
conteúdo econômico. Bentham consumou esse progresso. Na  
economia, porém, já se havia declarado que as principais condições  
da exploração, independentemente da vontade dos indivíduos, eram  
determinadas pela produção em geral e encontradas já prontas pelos  
indivíduos isolados. À teoria da utilidade não restava, assim, nenhum  
outro campo de especulação a não ser o da posição ocupada pelos  
indivíduos nessas grandes relações: o da exploração privada, por  
indivíduos isolados, de um mundo encontrado pronto (ENGELS; MARX,  
2007, pp. 398-9).  
Ou seja, para Marx e Engels, em Bentham o desenvolvimento burguês é tomado  
como o desenvolvimento da sociedade em geral, como um mundo encontrado pronto.  
Isso se dá a partir de um momento histórico em que a burguesia, após a Revolução  
Francesa, já está consolidada enquanto classe dominante. O jurista analítico traz,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 95  
nova fase  
Ana Carolina Marra de Andrade  
assim, o ponto de partida do indivíduo atomizado, que se torna o ponto de partida da  
teoria burguesa. Nesse sentido, Bentham, em sua teoria da utilidade (ou utilitarismo),  
incorpora os elementos da economia política de modo a enfatizar o caráter da  
exploração privada, por indivíduos isolados. Os indivíduos aparecem como objetos a  
serem utilizados, maximizando o caráter da exploração a nível particular.  
Em O capital: crítica da economia política parte I: o processo de produção do  
capital, Marx explica o que é a teoria da utilidade de Bentham. Em suas palavras:  
Jeremy Bentham é um fenômeno puramente inglês. Mesmo sem  
excetuar nosso filósofo Christian Wolf, em nenhuma época e em  
nenhum país o lugar-comum mais simplório se difundiu com tanta  
convicção. O princípio da utilidade não é uma invenção de Bentham.  
Este se limitou a reproduzir, sem espírito, o que Helvetius e outros  
franceses do século XVIII haviam dito espirituosamente. Se, por  
exemplo, queremos saber o que é útil a um cachorro, temos de  
investigar a natureza canina. É impossível construir essa natureza a  
partir do “princípio da utilidade”. Aplicado ao homem, isso significa  
que, se quiséssemos julgar segundo o princípio da utilidade todas as  
ações, movimentos, relações etc. do homem, teríamos de nos ocupar  
primeiramente da natureza humana em geral e, em seguida, da  
natureza humana historicamente modificada em cada época. Bentham  
não tem tempo para essas inutilidades. Com a mais ingênua aridez,  
ele parte do suposto de que o filisteu moderno, e especialmente o  
inglês, é o homem normal. O que é útil para esse homem exemplar e  
seu mundo é útil em si e para si. De acordo com esse padrão, Bentham  
julga, então, o passado, o presente e o futuro. Por exemplo, a religião  
cristã é “útil” porque repudia religiosamente os mesmos delitos que o  
código penal condena juridicamente. A crítica da arte é nociva porque  
perturba o deleite que as pessoas honestas encontram em Martin  
Tupper etc. E foi com todo esse lixo que nosso bom homem, cuja  
divisa é nulla dies sine linea, encheu montanhas de livros. Tivesse eu  
a coragem de meu amigo H. Heine, chamaria o sr. Jeremy de gênio na  
arte da estupidez burguesa. [Nulla dies sine linea (nenhum dia sem  
uma linha): frase atribuída ao pintor Apeles (IV a. C.), que colocara  
para si a obrigação de trabalhar todos os dias em suas pinturas. (N.  
T.)] (MARX, 2017, p. 685)  
Ou seja, o princípio da utilidade parte do filisteu individual, em especial o inglês,  
e o toma como padrão de ser humano individual, e então toma este paradigma, tido  
como a natureza humana universal, para julgar tudo que é útil ou inútil, dado que o  
que é útil ao indivíduo, seria também útil em si. É nesse sentido que Bentham traz o  
ponto de partida do indivíduo atomizado, o qual posteriormente se popularizou na  
filosofia burguesa, e assim consuma o processo ideológico que vinha se conformando  
desde o nascimento da emergente sociedade civil-burguesa, o qual, já com a burguesia  
como a classe dominante, solidifica a defesa da burguesia enquanto como a classe  
cujas condições são as condições de toda a sociedade.  
Verinotio  
96 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
Marx chega a chamar Bentham de “oráculo insipidamente pedante e fanfarrão  
do senso comum burguês do século XIX” (MARX, 2017, p. 684). Não iremos nos  
aprofundar na crítica feita por Marx a Bentham. O que nos interessa aqui é que,  
primeiramente, a história não é colocada na teoria do direito dos juristas analíticos,  
seja em Bentham ou em Austin. A escola analítica do direito já nasce trazendo uma  
naturalização do modo de vida burguês, no caso de Bentham, ao partir do filisteu  
individual; de Austin, com sua teoria da soberania e do estado como aglomeração de  
patriarcas; e de Maine, como sucessor destas ideias. Ainda que a jurisprudência  
analítica tenha um método análogo ao da economia política, já pressupõe um horizonte  
muito mais limitado de análise da realidade. Se a economia burguesa nasce, em seu  
período clássico, com uma análise genuína, ainda que limitada, da realidade, chegando  
a uma série de conclusões válidas, após a tomada do poder político pela burguesia na  
Inglaterra e na França, ela abandona seu caráter científico:  
Na França e na Inglaterra, a burguesia conquistara o poder político. A  
partir de então, a luta de classes assumiu, teórica e praticamente,  
formas cada vez mais acentuadas e ameaçadoras. Ela fez soar o dobre  
fúnebre pela economia científica burguesa. Não se tratava mais de  
saber se este ou aquele teorema era verdadeiro, mas se, para o capital,  
ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, se contrariava ou não  
as ordens policiais. O lugar da investigação desinteressada foi  
ocupado pelos espadachins a soldo, e a má consciência e as más  
intenções da apologética substituíram a investigação científica  
imparcial. (MARX, 2017, p. 86)  
Ou seja, há um processo de deterioração contínua da economia política, na qual  
a apologética vai substituindo a cientificidade. Para Vitor Sartori, nesse sentido, o  
método dos juristas analíticos partiria, a rigor, da economia política já vulgarizada:  
O tom de Marx é bastante duro, portanto: [...] Austin, por sua vez,  
traria somente o “método dos juristas analíticos”, e este, em verdade,  
seria “muito análogo” àquele da economia política; mas com um  
detalhe importante: ele se voltaria somente a seu elemento  
apologético, já que a gênese tratada por meio de robinsonadas  
pelos economistas políticos (cf. MARX, 2011) nunca chega a ser uma  
preocupação do autor que se coloca como alguém central à teoria do  
direito. Ou seja, para que sejamos rigorosos, pode-se dizer que, de  
acordo com Marx, a economia política que fornece o seu procedimento  
a Austin já é apologética, tratando-se da economia vulgar. [...] Trata-  
se, portanto, do desenvolvimento de uma teoria em consonância com  
o pior das formas ideológicas que aparecem como centrais ao  
desenvolvimento da sociedade capitalista: o caráter a-histórico seria  
patente, bem como o procedimento “vulgar” e unilateral. (SARTORI,  
2018 p. 203)  
Para entender um pouco mais essa afirmação, e de que modo “a economia  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 97  
nova fase  
Ana Carolina Marra de Andrade  
política que fornece o seu procedimento a Austin já é apologética, tratando-se da  
economia vulgar”, devemos primeiro entender a diferença traçada pelo próprio Marx  
entre economia política clássica, economia vulgar e apologética. A primeira,  
representada pelos economistas clássicos como Adam Smith e Ricardo, detém um  
caráter científico, ainda que restrito ao horizonte burguês. As demais não são  
científicas. A economia vulgar, representada principalmente por Bastiat, já contém em  
si um elemento apologético, ainda que não se restrinja à pura e simples apologia da  
sociedade civil-burguesa. A economia apologética em seu sentido estrito é  
representada por Thomas Robert Malthus.  
Acerca da diferença entre economia política e economia vulgar, Marx expõe:  
Para deixar esclarecido de uma vez por todas, entendo por economia  
política clássica toda teoria econômica desde W. Petty, que investiga  
a estrutura interna das relações burguesas de produção em  
contraposição à economia vulgar, que se move apenas no interior do  
contexto aparente e rumina constantemente o material há muito  
fornecido pela economia científica a fim de fornecer uma justificativa  
plausível dos fenômenos mais brutais e servir às necessidades  
domésticas da burguesia, mas que, de resto, limita-se a sistematizar  
as representações banais e egoístas dos agentes de produção  
burgueses como o melhor dos mundos, dando-lhes uma forma  
pedante e proclamando-as como verdades eternas. (MARX, 2017, p.  
156)  
Isto é, enquanto a economia política clássica investiga a estrutura interna das  
relações burguesas de produção, a economia vulgar se mantém meramente no âmbito  
das aparências, de modo que perde seu caráter científico. A economia vulgar  
pressupõe a existência da economia política e representa uma deterioração da  
produção burguesa, que destaca elementos fornecidos pela economia política, e os  
transforma em dogmas, apresentando representações medíocres e sistematizadas dos  
agentes de produção burgueses como um mundo ideal. Logo, como coloca Cotrim,  
Marx critica a economia política, mas sua crítica “reconhece o estatuto científico da  
economia política no interior de seu limite ou, o que é o mesmo, do patamar de  
possibilidade delimitado pela perspectiva de classe, pelo horizonte burguês” (COTRIM,  
s/d, p. 13).  
Nesse sentido, nem toda defesa da sociedade civil-burguesa é meramente  
apologética. Ricardo, por exemplo, defende o capitalismo a partir do interesse do  
desenvolvimento das forças produtivas, que coincide com o interesse da burguesia  
industrial:  
Marx escreve: “Com razão para seu tempo, Ricardo considera o modo  
Verinotio  
98 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
de produção capitalista o mais vantajoso para a produção em geral, o  
mais vantajoso para a geração de riqueza. Quer a produção pela  
produção, e está certo” (TMV I, p. 549). A razão e a correção de  
Ricardo, restritas historicamente, expressam que seu ponto de partida,  
o princípio ao qual subordina sua investigação, é científico, na visão  
de Marx. Na medida em que desenvolve o seu princípio, a investigação  
de Ricardo produz resultados científicos, ainda que estes expressem  
uma defesa dos interesses capitalistas. Por exemplo, quando Ricardo  
justifica a exploração da classe trabalhadora em nome da ampliação  
da riqueza em geral (mas que de fato é apropriada pelas classes  
dominantes), isto é parte de sua ciência, não de qualquer tese vulgar  
ou apologética (COTRIM, s/d, p. 14).  
O procedimento adotado por Ricardo, então, ainda que limitado e passível de  
críticas, detém um caráter científico. Ele se diferencia não somente da economia vulgar,  
que se mantém no nível das aparências e dogmatiza contribuições de seus  
predecessores, mas também da mera apologética, que apresenta uma defesa do  
capitalismo como finalidade.  
Por outro lado, vale mencionar que já Malthus, por exemplo, é nada mais que  
um plagiador e um apologeta, que frequentemente faz uso de malabarismos teóricos  
para “tirar conclusões agradáveis a seus protetores” (MARX, 1980, p. 1.069). Malthus  
representa um retrocesso para a economia, procurando “fazer a economia recuar às  
ideias anteriores a Ricardo e mesmo a Smith e aos fisiocratas” (MARX, 1980, p. 1.071).  
Diz Marx:  
O livro de Malthus On Population, de caráter panfletário, atacava a  
revolução francesa e as ideias de reforma na mesma época na  
Inglaterra (Godwin etc.). Era uma apologia da miséria das classes  
trabalhadoras. Teoria plagiada de Townsend etc.  
Seu Essay on Rent, de tom panfletário, era a favor dos donos as terras  
e contra o capital industrial. Teoria de Anderson. Em seus Princ. of Pol.  
Ec. polemizava em defesa dos interesses dos capitalistas, contra os  
trabalhadores, e em prol dos interesses da aristocracia, da Igreja, dos  
devoradores de impostos, dos serviçais, etc., contra os capitalistas.  
Teoria extraída de A. Smith. É lamentável o que ele mesmo cria. Ao  
desdobrar a teoria tem por base Sismondi. (MARX, 1980, p. 1.116).  
É nesse sentido que Cotrim explica a diferença entre as teorias vulgares  
daquelas meramente apologéticas:  
As teorias vulgares não constituem conhecimento científico por não  
romperem o nível da aparência; as apologéticas, mais do que simples  
expressões sem conteúdo científico, são elaboradas em prol da defesa  
de classes sociais específicas, subordinando a pesquisa científica a  
interesses alheios a ela. (COTRIM, s/d, p. 1)  
Logo, retomando nosso raciocínio anterior, é a partir deste processo de  
derrocada do pensamento econômico, conforme colocado por Marx, que devemos  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 99  
nova fase  
Ana Carolina Marra de Andrade  
entender a associação feita por Sartori entre o método dos juristas analíticos e a  
economia vulgar, mais ainda que a economia política entendida em seu período  
clássico. Nesse sentido, acrescenta, com base nos trechos analisados por nós dos  
Cadernos etnológicos:  
Segundo Marx, o caso dos “juristas analíticos” é, porém, muito pior:  
conforma-se como uma teoria em que a ausência de um  
desenvolvimento histórico, seja ele mistificado ou unilateral, é tido  
como a quintessência da “cientificidade” e, deste modo, há um  
elemento apologético calcado na ausência total de crítica diante da  
historicidade da atual sociedade bastante consciente e que se  
manifesta de modo direto em autores como Austin.  
De acordo com Marx, eles deixam de lado “elementos importantes”,  
por vezes, “de importância capital” e, com isso, isolam de modo  
abstrato e arbitrário um elemento da sociabilidade, no caso, “aquilo  
de comum no uso do poder”, e vêm a tratar do estado e do direito  
como algo que, tanto em relação à sociedade quanto no que diz  
respeito ao desenvolvimento histórico, aparecem como por si  
subsistentes. Austin e Bentham desenvolvem seu método  
“estritamente científico” deixando de lado “todos os elementos que  
dirigem a ação humana, com exceção da força diretamente aplicada”  
e, para Marx, isto é justamente o que caracteriza a apologia do  
existente.  
Para o autor de O capital, a “força diretamente aplicada” – que é  
isolada de modo abstrato pelos “juristas analíticos” –, certamente, não  
poderia ser deixada de lado. No entanto, ela não é tanto o “princípio”  
de uma ciência ou o ponto de partida para a compreensão da real  
tessitura da sociedade; antes, ela é o ponto terminal de complexas  
relações entre a sociedade civil-burguesa e o estado e, neste sentido,  
não pode ser desconsiderada, mas, para compreendê-la, é necessário  
fazer o oposto do que fazem Bentham e Austin. Ou seja, o  
procedimento destes autores, como um todo, é rechaçado por Marx.  
Eles, é verdade, estão bastante relacionados à tradição inglesa, de que  
provêm grandes autores da economia política (Smith e Ricardo, por  
exemplo), mas também grandes expoentes da filosofia política.  
(SARTORI, 2018 p. 204)  
Essa compreensão está de acordo com o que vínhamos analisando até então,  
isto é, de que a analogia entre o método da economia política e dos juristas analíticos  
já pressupõe uma economia vulgarizada. Ou seja, ainda que o método, em si, seja o  
mesmo, os juristas analíticos ocupam um posto já inferior aos economistas políticos,  
pois já há neles um elemento apologético que não existia nos economistas políticos  
(incluindo os fisiocratas) quando partiam, por exemplo, da população para analisar a  
sociedade. Tal percepção também corrobora o fato de que a categoria da qual parte  
Austin, o soberano, oculta muito mais determinações do que as categorias das quais  
partem os economistas políticos. Assim, toma-se o estado e o direito como entidades  
permanentes e superiores à própria sociedade.  
Verinotio  
100 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos juristas analíticos  
Desse modo, há uma diferença entre a teoria dos economistas políticos  
e a teoria dos juristas analíticos, a qual não pode ser explicada por uma diferença de  
método, que é o mesmo. A depender do momento histórico em que o pensador está  
inserido e de sua perspectiva de classe, o mesmo método (em seu sentido mais  
abrangente) pode estar envolvido em teses com caráter científico ou teses meramente  
apologistas de certos grupos da classe dominante (no caso de Maine, também da  
nação inglesa).  
Ou seja, o mesmo método em conjunturas diversas, para objetos diversos, pode  
gerar conclusões díspares (uma científica, outra não), e os juristas analíticos já estão  
em um momento no qual burguesia ocupa o poder político, em que “o lugar da  
investigação desinteressada foi ocupado pelos espadachins a soldo, e a má consciência  
e as más intenções da apologética substituíram a investigação científica imparcial”  
(MARX, 2017, p. 86). Se Ricardo, por exemplo, defende o capitalismo, pois o considera  
vantajoso para a produção em geral (e, como Marx disse, nesta perspectiva está  
correto), Maine e os juristas analíticos defendem as instituições burguesas como um  
fim em si mesmo, já num momento histórico em que não cabem mais ilusões sobre o  
domínio da burguesia, que já se efetivou, somente uma má-intenção apologética.  
Desse modo, estão mais próximos da economia vulgar, que já é apologética, do que  
da economia política clássica, que é científica. Isto corrobora a afirmação de Marx de  
que Bentham, e estendemos também para Austin e Maine, é nada mais que um “gênio  
na arte da estupidez burguesa”, como coloca Marx; ele não tem tempo para as  
“inutilidades” das quais se ocuparam os economistas políticos clássicos ao elaborar  
um pensamento propriamente científico, ainda que com as restrições do horizonte  
teórico burguês, e resolvem as lacunas de suas teses com “robinsonadas” mais ou  
menos elaboradas, na melhor das hipóteses.  
Ao longo de nosso artigo, procuramos demonstrar como a crítica marxiana à  
teoria do direito leva em consideração todos esses elementos, diretamente  
relacionados com o curso da ciência burguesa na história. Nesse sentido, acreditamos  
que os Cadernos são um texto altamente rico, e retornar a eles pode contribuir muito  
para a tradição de crítica marxista ao direito ainda hoje.  
Referências bibliográficas  
CHASIN, J. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,  
2009.  
______. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024 | 101  
nova fase  
Ana Carolina Marra de Andrade  
hiper-tardio. São Paulo: Ciências Humanas, 1978.  
COTRIM, Vera Aguiar. Ciência, vulgaridade e apologia na crítica de Marx à economia  
política, no prelo.  
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia  
alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão  
em seus diferentes profetas (1845-1846). Trad. Rubens Enderle et al. São Paulo:  
Boitempo, 2007.  
KRADER, L. The asiatic mode of production. Ed. Van Gorcum y Comp. B.V.- Assen, The  
Netherlands, 1975, pp. 343-412.  
MAINE, Henry Sumner. Lectures on the early history of institutions. London: John  
Murray, Albemarle Street, 1914.  
MARRA DE ANDRADE, Ana Carolina. Marx contra “robinsonadas”: a crítica a Maine nos  
assim chamados Cadernos etnológicos. Núcleo Interdisciplinar de Estudos e  
Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (Niep-Marx): Niterói, set. 2023. Disponível em:  
<https://niepmarx.blog.br/anais2021/>. Acesso em: 12 dez. 2023.  
MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858; esboços da crítica  
da economia política. Trad. Mário Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo,  
2011.  
______. Los apuntes etnológicos. Org. Lawrence Krader. Trad.: José María Ripalda.  
Madrid: Editorial Pablo Iglesias, 1988.  
______. O capital: crítica da economia política Livro I: o processo de produção do  
capital. Trad.: Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.  
______. O capital: crítica da economia política Livro III: o processo global da produção  
capitalista. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017a.  
______. Teorias da mais-valia: história crítica do pensamento econômico. Rio de  
Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.  
______. The ethnological notebooks (studies of Morgan, Phear, Maine, Lubbock)  
Transcribed and edited with an introduction by Lawrence Krader. 2. ed. Assen: Van  
Gorcun & Comp. B. V., 1974.  
RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In.: WEFFORT, Francisco  
(Org.). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau,  
“o federalista”. São Paulo: Editora Ática, 2001.  
SARTORI, Vitor Bartoletti. Marx e Hegel: três momentos da crítica marxiana ao direito.  
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, ano XIII,  
v. 24, n. 1, abr./2018.  
Como citar:  
ANDRADE, Ana Carolina Marra de. Marx e a crítica ao assim chamado “método” dos  
juristas analíticos. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 68-102; jul.-dez., 2024.  
Verinotio  
102 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 68-102 jul.-dez., 2024  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.734  
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a  
função do direito no Livro III de O capital  
Crisis, interest-bearing capital, fictitious capital, and the  
role of Law in Book III of Capital  
Ana Clara Passos Presciliano*  
Resumo: O objetivo do presente artigo é  
examinar os desdobramentos que as  
Abstract: The aim of this article is to examine  
the implications of economic crises on the  
general level of capital within the global process  
of capitalist production, as addressed in Karl  
Marx's Book III of Capital. This examination  
encompasses the understandings related to the  
tendency of the falling rate of profit and cyclical  
overaccumulation of capital, as well as the  
concepts of interest-bearing capital and  
fictitious capital. The ultimate goal is to  
comprehend the dynamics exerted by legal  
forms within this context.  
determinações das crises econômicas no nível do  
capital em geral adquirem no processo global da  
produção capitalista tratada no Livro III d’O  
capital de Karl Marx, passando pelas  
compreensões relativas à lei tendencial da queda  
da taxa de lucro e à sobreacumulação cíclica de  
capital, bem como pelas figuras do capital  
portador de juros e do capital fictício, a fim de  
culminar na compreensão da dinâmica exercida  
pelas formas jurídicas nesse contexto.  
Palavras-chave: Marxismo; direito; crises  
econômicas; economia.  
Keywords: Marxism; Law; economic crises;  
economics.  
Considerações iniciais  
O capital portador de juros aparenta ser, na imaginação popular, o capital par  
excellence (MARX, 2017, p. 367). Ele é notado em uma série de transações cotidianas,  
gerando efeitos bastante conhecidos, como o endividamento, que é ainda mais  
premente em épocas de crises econômicas. A sua aparência a olho nu é “mágica”,  
tendo em vista a dificuldade de explicar de onde advêm os tais juros.  
Porém, abaixo da superfície de figuras como essa, nota-se a ligação com outras  
categorias ainda mais complexas, além de uma série de determinações de fundo, que  
se bem compreendidas, permitem compreender que essa mágica que lhe aparenta ser  
intrínseca, na verdade, é apenas um reflexo daquele que em suas diversas formas é  
habilidoso em aparentar ser o exato oposto do que realmente é: o capital.  
É um vislumbre desse cenário de fundo que o presente trabalho intenta  
*
Mestre e doutoranda em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail:  
anaclarapresciliano@gmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Ana Clara Passos Presciliano  
apresentar, partindo das determinações que contribuem para as crises econômicas,  
como a lei tendencial da queda da taxa de lucro e a sobreacumulação periódica de  
capital, passando por categorias como os capitais portador de juros e fictício, bem  
como por algumas espécies de títulos jurídicos, como ações e títulos da dívida pública,  
além de considerações acerca do capital bancário e a autonomização do preço dos  
títulos jurídicos, a fim de culminar no cerne da questão a ser debatida, qual seja, o  
papel desempenhado pelo direito, na forma de títulos jurídicos, no desenrolar das  
crises econômicas.  
As principais determinações por detrás das crises econômicas  
Uma das dificuldades que cercam o estudo da categoria de crise ao longo da  
obra do Marx é a sua aparente dispersão e diversidade de definições1. Conforme  
elucida Roman Rosdolsky (cf. ROSDOLSKY, 2001), nosso autor realizou uma série de  
alterações no projeto formulado em 1857 até a publicação d’O capital em 1867. Ela  
seria abordada conjuntamente com o mercado mundial no último dos seis livros  
planejados em 1857, como síntese conclusiva, mas acabou sendo diluída nos três  
livros da versão definitiva2.  
Porém, isso não implica na redução de sua relevância dentro da obra, ou que  
seja impossível delinear o seu conteúdo. É importante levar em consideração que a  
crise está diretamente ligada ao mercado mundial, razão pela qual o próprio Marx  
pretendia abordá-los conjuntamente no último volume do projeto original, então  
mesmo que esse projeto não tenha se concretizado, a relação entre ambos se mantém3.  
As crises se alastram pelo mercado mundial e possuem abrangência universal  
na medida em que o próprio capital também o faz. Nos termos tratados por Jorge  
Grespan, ao estudar a categoria de crise na obra marxiana, “a crise do mercado mundial  
é o correspondente negativo do capital neste ponto último de sua expansão e o  
1 No que se refere à organização dos três volumes d’O capital e até mesmo uma divergência em relação  
à existência da lei tendencial da queda da taxa de lucro conferir (HEINRICH, 2004) e as respostas a ele  
formuladas por (COTRIM, 2015). Sobre o tema conferir ainda (REICHELT, 2011) e os debates  
apresentados por (DEUS; SILVA, 2023).  
2 Deus (2015) propõe uma leitura do projeto d’O capital que vai além daquela proposta por Rosdolsky,  
tendo em vista que considera publicações mais recentes da Mega, defendendo a unidade da obra e a  
existência de um plano consistente para o seu desenvolvimento a partir dos anos de 1861 a 1863.  
3
Temos ao longo dos três volumes d’O capital diferentes graus de abstração, partindo das formas  
altamente abstratas expostas no Livro I, referentes ao processo de produção capitalista, e progredindo  
gradualmente ao passar pelo Livro II, que trata da circulação de mercadorias, até culminar no Livro III  
na concretude das formas na superfície da sociabilidade capitalista. Esse processo é exposto no capítulo  
1 do Livro III d’O capital (MARX, 2017).  
Verinotio  
104 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
conceito de crise respectivamente é o mais complexo e abrangente” (GRESPAN, 2012,  
p. 28). Ou seja, se o capital se expande pelo globo no decorrer do seu processo de  
autovalorização, a crise pode ser vista como o seu negativo, e é nesse ponto extremo  
da sua expansão, no âmbito do processo global de produção, que ela se mostra mais  
complexa e abrangente, o qual justamente será o enfoque do presente trabalho4.  
Considerando então a crise a face negativa e necessária da dinâmica expansiva  
do capital, a categoria de crise se mostra inerente a de capital, e como não poderia  
deixar de ser, é derivada da sua dinâmica contraditória, e se coloca enquanto uma  
manifestação privilegiada da contradição imanente capital-trabalho. Isso faz com que  
ela assuma uma importância central na compreensão do funcionamento do modo de  
produção capitalista e na crítica a ele5, propiciando compreender as contradições  
fundamentais dos processos que o capital realiza, dos limites que ele alcança ao buscar  
exceder as suas potencialidades, bem como das aparências criadas por ele e que ele  
mesmo cuida de negar, desvelando o conteúdo das categorias econômicas que estão  
por detrás da aparência criada na superfície da sociedade.  
Se temos então que a análise da crise vai se tornando mais complexa e precisa  
no decorrer da apresentação categorial de Marx, é no Livro III d’O capital que ele atinge  
o seu auge. É nele que são abordados com maior desenvoltura fatores imprescindíveis  
na compreensão das determinações que contribuem ou não para a eclosão das crises,  
como a lei tendencial da queda da taxa de lucro e a sobreacumulação periódica, os  
quais serão abordados adiante.  
4 Jorge Grespan explica que Marx aborda o conceito de crise não apenas na esfera do mercado mundial,  
mas também nas etapas anteriores da expansão, histórica e sistematicamente considerada, como o  
negativo do impulso expansivo do capital. Consequentemente, “não é necessário aguardar o fim da  
obra para só então estudar as crises, porque a determinação delas já se encontra desde o início e ao  
longo de toda a apresentação do conceito de capital, embora muitas vezes de modo implícito - como o  
negativo presente, mas não tematizado de cada forma que o capital assume.(GRESPAN, 2012, p. 28)  
Desse modo, o conceito de crise se enriquece de acordo com a apresentação das etapas do capital, e existiriam  
4 etapas ou níveis principais de constituição do conceito de crise: na separação entre os atos de compra e venda  
na esfera da circulação, na produção imediata do capital, no nível da circulação do capital e no processo global  
de reprodução do capital social. No presente trabalho, como dito, para fins de delimitação de escopo, será  
abordada apenas essa última etapa.  
5
Alguns outros autores tratam da questão da relevância do estudo das crises econômicas para uma  
melhor compreensão do modo de produção capitalista, como Rosa Luxemburgo em seu A acumulação  
de capital (LUXEMBURGO, 1985), Paul Sweezy em Teoria do desenvolvimento capitalista: princípios de  
economia política marxista (SWEEZY, 1983), e Rodolf Hilferding em O capital financeiro (HILFERDING,  
1985), envolvendo o debate relativo ao imperialismo e questão da discrepância entre produção e  
consumo, que será melhor tratada adiante.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 105  
nova fase  
   
Ana Clara Passos Presciliano  
A lei tendencial da queda da taxa de lucro  
No Capítulo 13 do Livro III d’ O capital Marx trata da lei tendencial da queda  
da taxa de lucro. Ela é capaz de ilustrar o modo com que para Marx tanto a construção  
categorial do capital quanto a referida lei demonstram que não há uma necessidade  
“absoluta” de crise, no sentido de que dentro da própria constituição contraditória do  
capital haveria completa e endogenamente as condições de efetivação da crise, que  
apesar de ser imanente e essencial e não apenas uma mera possibilidade externa e  
contingente, ainda assim seria influenciada por contratendências (GRESPAN, 2012, p.  
16)6.  
Para explicitar tal lei, é interessante demonstrar o seu enunciado principal e  
posteriormente destrinchar os elementos que são importantes para a sua  
compreensão.  
De antemão, já no início de tal Capítulo 13 do Livro III d’ O capital, Marx afirma  
que na hipótese de uma alteração gradual na composição orgânica média do capital  
total existente, a qual não se opera unicamente em esferas isoladas da produção, mas,  
em maior ou menor grau, em todas ou pelo menos nas decisivas, há uma tendência de  
crescimento gradual do capital constante em relação ao variável, que leva  
necessariamente a uma queda gradual na taxa de lucro, mesmo mantendo-se constante  
a taxa de mais-valor, ou seja, o grau de exploração do trabalho (MARX, 2017, p. 249-  
50).  
Como se observa, para a compreensão efetiva da lei é necessário passar pelas  
variáveis que podem ser consideradas centrais, como a composição orgânica do  
capital, a taxa de lucro e a taxa de mais-valor, acompanhadas das categorias que giram  
em torno delas, como o mais-valor, o lucro, os capitais constante e variável, e as noções  
de mais-valor relativo e absoluto, bem como, ao final, pelas variáveis consideradas  
complementares que podem exercer o papel de contratendência àquelas tidas como  
essenciais. No cerne disso tudo está a determinação constitutiva do capital de  
necessidade de negação do trabalho vivo pelo morto e o imperativo geral à  
autovalorização do valor.  
Em primeiro lugar, é necessário diferenciar mais-valor e lucro: de início, Marx  
afirma que o mais-valor e a taxa de mais-valor se apresentam enquanto sendo o  
invisível e o essencial a ser analisado, enquanto o lucro corresponderia a um fenômeno  
6
Jorge Grespan explica em detalhe a discussão sobre necessidade versus possibilidade de crise no  
texto O negativo do capital (GRESPAN, 2012), que foi fruto da sua tese de doutoramento.  
Verinotio  
106 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
superficial (MARX, 2017, p. 69). Nesse sentido, o mais-valor é o excedente sobre o  
capital adiantado sob a forma de força de trabalho, resultante, portanto, da exploração  
da mercadoria força de trabalho, algo que está no núcleo da organização social em  
moldes capitalistas e não é facilmente observável, pois no cotidiano das relações  
econômicas não se nota uma diferença entre o trabalho necessário para pagar o valor  
investido na mercadoria força de trabalho e o trabalho excedente que dá origem ao  
mais-valor, vê-se apenas a figura do salário. Por outro lado, o lucro se encontra mais  
próximo da superfície, já que se mostra nas trocas diárias de mercadorias, sendo  
definido, em linhas gerais, por ser o resultado da diferença entre preço de venda e  
preço de custo (cf. SARTORI, 2019a; 2019b).  
Ocorre que, no limite, o lucro nada mais é do que uma forma de manifestação  
do mais-valor, mas, por um lado, se o mais-valor se refere à relação capital/trabalho,  
o lucro se trata da relação do capital consigo mesmo. Por sua vez, a taxa de mais-valor  
resulta da divisão do mais-valor pelo capital variável, enquanto a taxa de lucro é o  
resultado da divisão do mais-valor pelo capital total7 somado ao capital variável. Assim,  
a taxa de lucro se coloca enquanto outra medição do mais-valor, só que agora em  
relação ao capital total, não mais em relação apenas à parte do capital que provém  
diretamente do seu intercâmbio com o trabalho, o capital variável, como se observa  
da seguinte citação:  
Na verdade, o lucro é a forma de manifestação do mais-valor, tendo  
este de ser revelado mediante a análise daquele. No mais-valor está  
revelada a relação entre capital e trabalho. Na relação entre capital e  
lucro, isto é, entre capital e mais-valor, tal como ele aparece, por um  
lado, como excedente sobre o preço de custo da mercadoria realizado  
no processo de circulação e, por outro, como um excedente  
determinado mais de perto por sua relação com o capital total, se dá  
o capital como relação consigo mesmo, uma relação em que ele, como  
soma originária de valor, diferencia-se de um novo valor posto por ele  
mesmo. Que ele cria esse novo valor durante seu movimento no  
processo de produção e no processo de circulação é algo de que se  
tem consciência. Mas o modo como isso ocorre é algo mistificado e  
aparenta provir de qualidades ocultas que lhe são próprias. (MARX,  
2017, p. 74)  
Conforme abordado no final do trecho acima, a criação de valor é algo mais  
palpável e de que se tem consciência, só que o modo de ocorrência desse fenômeno  
é mistificado e aparenta ser derivado de qualidades ocultas.8 Esse é um fator  
7 O capital total é a soma de todo o capital investido na produção.  
8 O que remete ao fetichismo da mercadoria tratado no Capítulo 1 do Livro I d’O capital.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 107  
nova fase  
   
Ana Clara Passos Presciliano  
importante que Marx anuncia na forma de presságio: “À medida que prosseguimos no  
acompanhamento do processo de valorização do capital, cada vez mais a relação do  
capital se mistifica e cada vez menos se revela o segredo de seu organismo interno”  
(MARX, 2017, p. 74). Esse presságio se junta a outro igualmente misterioso, o de que  
não necessariamente as mercadorias são vendidas pelos seus valores, mas, mesmo  
assim, ainda quando vendidas abaixo de seus valores, é possível que o capitalista  
obtenha lucro9, pois, como vimos, para realizá-lo na superfície das relações de troca  
9 Essa questão da venda das mercadorias pelos seus valores possui diferentes níveis de abstração entre  
o Livro I e o Livro III d’O capital. No Livro I, que possui o nível de abstração mais intenso, Marx demonstra  
que as mercadorias não são vendidas pelos seus valores individuais porque existem diferentes níveis  
de produtividade no processo produtivo. Considerando que o valor pelo qual será vendida a mercadoria  
é o tempo de trabalho socialmente necessário, ele não corresponde aos valores individuais, a menos  
que se trate de um capital particular com produtividade média ou, em outras palavras, as mercadorias  
não são vendidas pelos seus valores individuais, com exceção do caso do capital com produtividade  
média, e nem poderia sê-lo, tendo em vista que a concorrência determina diferentes níveis de  
produtividade na produção de uma mesma mercadoria. Ocorre que, ao considerar a totalidade das  
mercadorias, elas o são, justamente porque todo o valor produzido é apropriado. Por sua vez, na Seção  
II do Livro III temos um segundo nível de abstração, em que Marx nota que capitais de igual montante  
mas diferentes composições orgânicas obteriam taxas distintas de lucro caso as mercadorias fossem  
vendidas pelos seus valores. Isso faria com que: “1) capitais de maior produtividade se apropriassem  
de menores taxas de lucro, enquanto capitais com menor produtividade obtivessem maiores taxas de  
lucro; 2) fosse negada a própria tendência da concorrência entre capitais de distintos setores de  
procurar maiores taxas de lucro, o que poderia negar, assim, a própria tendência à formação da taxa  
média de lucro. Esta última, aplicada ao capital adiantado, define o lucro médio, que, somado ao preço  
de custo, forma os preços de produção, os quais, por sua vez, garantem que capitais de igual montante  
se apropriem do mesmo lucro médio, independentemente de quanto mais-valor produziram no processo  
produtivo” (MARX, 2017). Assim, exceto nos setores de composição orgânica do capital igual à média,  
os preços de produção são necessariamente distintos dos valores. Porém, para o capital total, os preços  
de produção (quantidade de valor apropriado) são equivalentes aos valores (quantidade de valor  
produzido). Como consequência, tanto no primeiro quanto no segundo nível de abstração as  
mercadorias não são e nem podem ser vendidas pelos seus valores, ainda que o sejam. No terceiro  
nível de abstração, encontrado no Capítulo 10 do Livro III, a constatação é a de que os preços de  
mercado só podem corresponder aos preços de produção por uma casualidade. No caso de a oferta ser  
maior do que a demanda, os preços de mercado são inferiores aos de produção e vice-versa, o que  
mais uma vez leva à conclusão de que as mercadorias não são vendidas pelos seus valores, que são  
intermediados pelos preços de produção. Mais precisamente, quando os preços de mercado são  
inferiores aos de produção, o resultado é uma taxa efetiva de lucro inferior à taxa média, então os  
capitais instalados nesses setores tendem a reduzir os volumes de produção ou então abandonar essas  
esferas de produção. O processo é o mesmo no sentido inverso, de quando os preços de mercado são  
superiores aos de produção. Mas o cerne aqui é que a aparente flutuação indeterminada dos preços de  
mercado na verdade tem sim uma determinação, justamente o valor da mercadoria, que por sua vez é  
intermediado pelo preço de produção. Logo, a lei do valor de Marx não implica que os preços de  
mercado correspondem quantitativamente aos valores das mercadorias, e nem poderiam, mas sim, que  
o valor é o centro de gravitação em torno do qual flutuam os preços (MARX, 2017). Sendo assim, se  
temos diferentes graus de abstração para o trato dos valores das mercadorias, que é central para a  
compreensão da questão da troca de equivalentes e da igualdade nas relações de troca, temos que  
leituras que se baseiam apenas no Livro I d’O capital, e consequentemente enfocam apenas no primeiro  
grau de abstração da obra, se mostram limitadas. Trazendo a discussão para o direito, temos o exemplo  
daquela leitura desenvolvida pelo autor Evgeny Pachukanis, o qual se baseia na circulação de  
mercadorias demonstrada no Livro I para desenvolver a sua obra mais importante, a Teoria geral do  
direito e marxismo. Para ele o direito gira em torno da consideração de que a forma jurídica é derivada  
da forma mercadoria e isso se dá pelo fato de que quando o capitalismo coloca as bases para o seu  
desenvolvimento, como no caso da consideração dos trocadores de mercadorias enquanto sujeitos  
livres e iguais, torna possível o desenvolvimento das forças produtivas e da divisão do trabalho,  
Verinotio  
108 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
basta que o preço de venda seja superior ao preço de custo, que é o somatório do  
que foi gasto no processo de produção:  
Assim, se a mercadoria é vendida por seu valor, realiza-se um lucro  
igual ao excedente de seu valor acima de seu preço de custo, ou seja,  
igual ao mais-valor contido inteiramente no valor-mercadoria. Mas o  
capitalista pode vender a mercadoria com lucro, embora ele a venda  
abaixo de seu valor. Enquanto seu preço de venda se encontra acima  
de seu preço de custo, mesmo que abaixo de seu valor, uma parte do  
mais-valor nele contida é sempre realizada, ou seja, um lucro é sempre  
gerado. (MARX, 2017, p. 69)  
Porém, para entender melhor tais “mistérios”, é necessário dar um passo atrás  
na discussão e retomar alguns conceitos, quais sejam, as definições de capital  
constante e capital variável e de mais-valor relativo e absoluto. O capital constante,  
em linhas gerais, é aquele que apenas transfere valor à mercadoria produzida, o que  
é medido através do desgaste da maquinaria utilizada no processo de produção, bem  
como no consumo de matérias primas. Por outro lado, o capital variável está  
intimamente ligado à quantidade de mercadoria força de trabalho explorada,  
mercadoria essa que possui como principal característica a capacidade de produzir  
riqueza na forma de mais-valor.  
Para o nosso autor, então, o somatório do capital constante com o capital  
variável comporia algo intitulado por ele de composição orgânica do capital, a qual  
tenderia a entrar em desequilíbrio com o desenvolvimento do modo de produção  
capitalista, o que representa um aspecto importante da lei de tendência que estamos  
tratando, conforme será disposto adiante (cf. FINE, 1979).  
Por sua vez, o mais-valor relativo se trata, em linhas gerais, da intensificação da  
exploração da força de trabalho, seja através do aumento da velocidade das máquinas  
ou da implantação de novos métodos de trabalho mais eficazes, por exemplo, sem  
elastecer a jornada laboral, e o mais-valor absoluto efetivamente do incremento do  
número de horas trabalhadas, ambos visando à maior extração possível de mais-valor.  
Tendo tudo isso em mente, passa a ser possível compreender a lei tendencial  
da queda da taxa de lucro. Pois bem. Primeiramente, tem-se que é inegável o fato de  
que o capitalismo promove uma série de mudanças tecnológicas, através de um  
propiciando que as relações de propriedade sejam revestidas da forma jurídica. Consequentemente, se  
a forma mercadoria que ele considera dar origem à forma jurídica não é analisada em todos os seus  
graus de abstração, o que implica necessariamente em um estudo dos Livros II e III d’O capital, chegamos  
à conclusão de que a forma jurídica que se coloca enquanto o seu desdobramento também não é  
suficientemente analisada. Por consequência, apenas o Livro I não provê todo o substrato necessário  
para um estudo e uma crítica do direito.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 109  
nova fase  
Ana Clara Passos Presciliano  
domínio da natureza cada vez mais sofisticado. Por conta disso, é premente a  
realização de incontáveis investimentos em maquinaria e técnicas capazes de aumentar  
a produção de mercadorias e reorganizar o processo produtivo de forma a incrementar  
a sua eficiência. Porém, na realidade, esse entendimento tem o resultado inverso: ao  
alterar a citada composição orgânica do capital, incrementando o capital constante em  
detrimento do variável, é reduzida a quantidade de trabalho contida em cada  
mercadoria, já que o aumento da produtividade permite que cada trabalhador produza  
uma massa maior de mercadorias, o que tem como consequência a diminuição da taxa  
de lucro, mesmo com o incremento quantitativo de mercadorias10, como se nota da  
seguinte citação:  
O fenômeno, derivado da natureza do modo capitalista de produção,  
de que com uma produtividade crescente do trabalho diminui o preço  
da mercadoria individual ou de uma quantidade dada de mercadorias,  
aumenta o número das mercadorias, diminui a massa de lucro por  
mercadoria individual e a taxa de lucro sobre a soma das mercadorias,  
ao mesmo tempo em que aumenta a massa de lucro sobre a soma  
total das mercadorias - esse fenômeno evidencia apenas a diminuição  
da massa de lucro sobre a mercadoria individual, a queda do preço  
desta última e o aumento da massa de lucro sobre o número total  
aumentado das mercadorias produzidas pelo capital total da  
sociedade ou pelo capitalista individual. O que se depreende disso é  
que o capitalista adiciona menores lucros, por livre determinação,  
sobre a mercadoria individual, porém se ressarce por meio do maior  
número de mercadorias que produz. (MARX, 2017, p. 268)  
Isso leva à consequência de que com o avanço do capitalismo torna-se  
indispensável um investimento cada vez maior em capital constante, a fim de que o  
capitalista individual possa manter-se competindo no mercado, algo que encarece sem  
dúvidas o processo de produção, já que cresce o capital investido e, por consequência,  
o capital total (MARX, 2017, p. 261). Por outro lado, há também uma diminuição da  
base para a apropriação daquilo que é a fonte de riqueza dentro do modo de produção  
capitalista: a apropriação de trabalho não pago, que passa a diminuir  
proporcionalmente em relação ao capital total. O aumento da parte não paga do  
trabalho em relação à parte paga se dá em uma proporção cada vez menor, alterando  
a composição orgânica do capital. Cumpre ressaltar que a referida alteração da  
composição orgânica do capital não se opera em esferas isoladas da produção, e sim  
10 Há uma diferença aqui entre taxa de lucro e massa de lucro: a primeira se trata da equação referida acima,  
em que o mais-valor é dividido pela soma entre capital total e capital variável, enquanto a segunda consiste na  
diferença entre o preço de venda e o preço de custo (somatório do que foi gasto no processo de produção) da  
mercadoria.  
Verinotio  
110 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
em todas ou pelo menos nas decisivas, se colocando enquanto intrinsecamente ligada  
ao ímpeto essencial de autovalorização do valor e também à concorrência entre  
distintos capitais, tendo em vista que o caráter nivelador do capital dentro da  
concorrência intracapitalista interfere diretamente na taxa e na massa de lucro  
distribuídas, nivelando-as entre os setores. Esse nivelamento está ligado a uma  
produtividade crescente do trabalho que possibilite a diminuição do preço das  
mercadorias produzidas, mesmo que diminuindo a massa de lucro por mercadoria e a  
taxa de lucro sobre a soma de mercadorias, conforme citação acima, pois aqueles  
capitais que não conseguem atender a esse processo acabam sendo excluídos da  
concorrência, já que os preços das mercadorias deixam de ser competitivos. Há  
também o outro lado da mesma moeda, pois mercadorias com preços muito abaixo  
dos aplicados no mercado, seja por conta de inovações tecnológicas recentes, por  
exemplo, acabam ao longo do tempo se aproximando da média, já que outras  
empresas e setores acabam conseguindo obter inovações similares ou modificar os  
seus preços de alguma outra forma. Há que se considerar também a necessidade de  
uma produção em escala, pois com a queda dos preços das mercadorias e a  
consequente diminuição da massa e taxa de lucro, é indispensável a venda de uma  
quantidade maior de mercadorias para garantir a realização dos capitais envolvidos e  
atingir a massa de lucro esperada.  
Por fim, cabe ressaltar o caráter tendencial dessa lei: o nome de “lei de  
tendência” pode levar ao entendimento equivocado de que ela teria um caráter  
inexorável e imporia a sua efetivação justamente por ser uma “lei”, o que negaria a  
possibilidade de realização do oposto. Nas palavras do próprio Marx, ela se trata de  
uma “lei cuja aplicação absoluta é contida, refreada e enfraquecida por circunstâncias  
contra-arrestantes” (MARX, 2017, p. 234), ou seja, o estatuto da “necessidade” da  
ocorrência da queda da taxa de lucro em Marx é o de uma necessidade relativa e não  
absoluta, pois sempre admite a possibilidade do seu oposto e depende de condições  
externas para se concretizar, sendo assim, ela é capaz de se sobrepor às contingências,  
mas sem anulá-las completamente.11  
11 Originalmente, em seu manuscrito, Marx tratou conjuntamente da lei tendencial da queda da taxa de  
lucro e das tendências contra-arrestantes, porém, Engels fez a opção por separá-las em capítulos  
distintos, dando origem aos Capítulos 13, 14 e 15 do texto final da Seção III do Livro III. Conforme  
explana Michael Krätke (KRÄTKE, 2018), Engels foi censurado por supostamente ter criado a impressão  
de que haveria na obra marxiana algo como uma teoria das crises ou ao menos a sua intenção, porém,  
o autor nunca fez afirmação nesse sentido. Krätke explica que “Em parte alguma, nesse capítulo, Engels  
criou a impressão de que se trataria ali de uma exposição sistemática das crises cíclicas, ou de que seria  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 111  
nova fase  
 
Ana Clara Passos Presciliano  
Logo, as mesmas causas que geram a tendência de diminuição da taxa de lucro  
produzem um contrapeso a ela, paralisando, em maior ou menor grau, o seu efeito.  
(MARX, 2017, p. 276), como no caso do prolongamento da jornada de trabalho, a  
compressão dos salários abaixo do seu valor, o barateamento dos elementos do capital  
constante, a superpopulação relativa, o comércio exterior, entre outras a serem  
analisadas em determinadas circunstâncias e no decorrer de longos períodos. Tais  
fenômenos, ao invés de derrogarem a lei, apenas permitem compreender por que a  
queda da taxa de lucro se dá de forma progressiva, e não absoluta, algo que não foi  
compreendido pelos economistas políticos, justamente por conta da falta de  
compreensão das diferenças entre capital constante e capital variável, mais-valor e  
lucro, bem como da diferença na composição orgânica do capital e da formação da  
taxa geral de lucro.  
Não se pode olvidar, ainda, do movimento inverso da taxa de lucro e da taxa  
de mais-valor, que produzem uma espécie de desmedida, termo utilizado por J.  
Grespan (GRESPAN, 2012): ainda que as duas taxas sejam meios para o capital medir  
a sua valorização, ele próprio capital determina movimentos opostos a cada uma elas,  
sendo que ao se considerar a taxa de mais-valor a valorização do capital é crescente,  
enquanto ao se considerar a taxa de lucro, conforme explicitado pela lei aqui tratada,  
ela é decrescente. A consequência disso é a perda de referência do capital em si  
mesmo, pois ele deixa de ser capaz de utilizar um parâmetro único na sua  
autodeterminação e na avaliação dos seus processos de reprodução e acumulação.  
A desmedida expressa, assim, a contradição imanente ao capital em  
sua pretensão a rebaixar o trabalho vivo a momento do todo por ele  
formado e a impedir que o trabalho forme também uma totalidade por  
seu lado [...]: conforme um dos lados desta relação, o capital mede  
sua valorização pela taxa de lucro, como se ele fosse, enquanto capital  
total, o criador de valor, conforme o outro lado, porém, sua pretensão  
se choca com a realidade de que apenas o trabalho vivo cria valor, e  
a medida da valorização pela taxa de mais-valia entra em oposição  
com a taxa de lucro. (GRESPAN, 2012, p. 188)  
Dando seguimento ao percurso realizado por Marx no Livro III, adentraremos  
no Capítulo 15, em que ele desenvolve o desdobramento das contradições internas  
da lei tendencial, mais especificamente, o foco será na questão da sobreacumulação  
periódica de capital, em que a citada perda de referência do capital em si mesmo no  
aquele o lugar sistemático, na exposição completa d’O capital, a que tal exposição pertencesse ou em  
que fosse esperada. Ele não poderia em absoluto, já que ao menos estava suficientemente claro para  
ele o nexo necessário de crédito e crise, tal qual Marx tinha em mente” (KRÄTKE, 2018, p. 11).  
Verinotio  
112 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
decorrer do processo de autovalorização, que resulta na queda tendencial da taxa de  
lucro, atinge um novo patamar.  
A sobreacumulação periódica de capital  
Para compreender a sobreacumulação periódica de capital12 é necessário levar  
em consideração que dentro da lei de tendência desdobra-se a oposição entre  
valorização e desvalorização, que se colocam separados temporalmente, na forma de  
fases distintas do processo de acumulação, mais especificamente, dos processos de  
produção e valorização. Se produção e valorização serviam de referência mútua entre  
si, no processo de sobreprodução isso deixa de ocorrer, culminando em uma  
verdadeira “desmedida”. Assim, ainda que uma seja mediada pela outra, a relação  
estabelecida entre elas baseia-se na diferença, o que abre margem para a  
autonomização dos seus momentos, e a sobreprodução pode resultar disso13.  
Mas de antemão cabe fazer uma ressalva, a sobreprodução tratada aqui, nas  
palavras do próprio Marx, é a “sobreprodução de capital, não de mercadorias  
singulares embora a sobreprodução de capital sempre implique sobreprodução de  
mercadorias – nada significa senão sobreacumulação de capital” (MARX, 2017, p.  
250), ou seja, não é apenas um excesso de produção de mercadorias que não  
conseguem ser vendidas no mercado, ainda que por vezes possa se manifestar dessa  
forma, mas sim, o excesso de meios de produção, na medida em que eles que não  
conseguem atuar enquanto capital, no sentido de associar-se com a força de trabalho  
e gerar valorização:  
A superprodução de capital não significa outra coisa senão a  
superprodução de meios de produção meios de trabalho e de  
subsistência que podem atuar como capital, isto é, que podem ser  
empregados para a exploração do trabalho em dado grau de  
exploração, uma vez que a queda desse grau de exploração abaixo de  
certo ponto provoca perturbações e paralisações do processo de  
produção capitalista, crises e destruição de capital. (MARX, 2017, p.  
254)  
12  
Acerca da questão da sobreprodução de capital conferir a obra O capital financeiro de Rodolf  
Hilferding. (HILFERDING, 1985).  
13  
A relevância da sobreacumulação periódica de capital nas crises e a questão da  
possibilidade/necessidade delas não é pacífico na literatura marxista. Rosa Luxemburgo, por exemplo,  
teceu a sua teoria do colapso econômico do capitalismo para responder àqueles que defendiam a  
possibilidade de eternização desse modo de produção. Rosdolsky (ROSDOLSKY, 2001, pp. 92-100;  
538-54) trata dessa discussão, defendendo que esse tipo de leitura se baseia em uma má interpretação  
da arquitetura d’O capital, tendo em vista que se utiliza de categorias do Livro II que só estariam  
suficientemente concretas no Livro III.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 113  
nova fase  
   
Ana Clara Passos Presciliano  
Para avaliar a ocorrência de desmedida entre produção e valorização que  
resulta em sobreprodução é necessário verificar a taxa de lucro: observa-se que mesmo  
com novos investimentos em meios de produção, obtém-se taxas de lucro cada vez  
menores, culminando em um momento em que não seria mais interessante realizar  
novos investimentos, pois o retorno deles não compensaria o gasto necessário.  
Quando se atinge esse ponto, a reação que se mostra fundamental para a  
retomada da autovalorização é a destruição de capital. Apesar de aparentemente  
contraditória, tal eliminação se faz necessária para a autoconservação do capital, pois  
prepara uma nova fase de expansão e a reversão da queda da taxa de lucro (MARX,  
2017, p. 248). Além de se colocar, então, como uma expressão das contradições de  
fundo de modo de produção capitalista, essa destruição de capital ocorrida nas crises  
se mostra enquanto uma espécie de remédio para o desequilíbrio gerado pelas  
determinações que culminaram na queda da taxa de lucro, ou, nas palavras do nosso  
autor, “estas [as crises] são sempre apenas violentas soluções momentâneas das  
contradições existentes, erupções violentas que restabelecem por um momento o  
equilíbrio perturbado” (MARX, 2017, p. 248).  
Nessa fase temos então, por um lado, um certo estado de paralisação da  
produção, a contração dos preços, a interrupção da cadeia de obrigações de  
pagamento, o colapso do sistema de crédito, a desvalorização dos títulos de  
propriedade, o aumento do desemprego, a baixa dos salários, por outro, alguns desses  
mesmos fatores contribuem para a retomada da economia, já que com a queda dos  
preços das mercadorias os capitalistas se veem obrigados a reorganizar a produção  
com menos mão de obra e buscar novas tecnologias referentes aos meios de trabalho  
diminuir a proporção entre capital variável e constante dentro da composição orgânica  
do capital, além do que a baixa dos salários e da mão de obra empregada cria uma  
superpopulação artificial e age como se o mais-valor relativo e absoluto tivessem  
aumentado. É a concorrência, como não poderia deixar de ser14, que determina quais  
capitais serão destruídos, como serão repartidos os prejuízos, quais novas tecnologias  
irão prosperar e se manter, bem como liderar a superação da crise (MARX, 2017, p.  
251).  
Conclui-se disso tudo que na fase de expansão do capital são desencadeadas  
as causas de retração e na própria crise está contida a solução para a sua superação:  
14  
É dentro da concorrência que o caráter nivelador do capital atua para uniformizar as taxas de lucro  
obtidas pelos diversos setores e determinar a reprodução ou destruição dos capitais envolvidos.  
Verinotio  
114 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
cada fase contém em si o seu oposto. Da mesma forma se dá com as contradições  
sistêmicas do modo de produção capitalista, que não estão presentes apenas nos  
períodos de crise, mas também nos de expansão. Isso cria a necessidade de uma  
alternância de fases, pois senão se tornaria inviável a reversão de momentos de queda  
da taxa de lucro, bem como a criação de novos patamares de expansão com a  
renovação da produção gerada nas crises, o que demonstra que ambas estão  
intrinsecamente ligadas à essência do capital, não sendo apenas contingências  
externas (GRESPAN, 2012, p. 19).  
Apesar da repetição das fases de expansão e crise, elas não se dão sempre da  
mesma forma, pois “a produção capitalista tende constantemente a superar esses  
limites que lhes são imanentes, porém consegue isso apenas em virtude de meios que  
voltam a elevar diante dela esses mesmos limites, em escala ainda mais formidável”  
(MARX, 2017, p. 248), ou seja, as erupções tendem a se dar de forma cada vez mais  
violenta.  
Um exemplo disso são as crises recentes como a de 200815, que se iniciou com  
o estouro de uma bolha imobiliária americana, derivada em grande parte da  
especulação de títulos jurídicos, e espalhou os seus efeitos por todo o globo, tendo  
em vista a potencialidade desses títulos estarem ou não ligados à produção futura,  
não representarem capital algum, ou se desenvolverem independentemente do capital  
real que lhes serve de lastro, conforme será melhor tratado adiante. Para isso, será  
necessário passar por conceitos como o de capital portador de juros e capital fictício  
a fim de culminar no objeto do presente trabalho: demonstrar que os títulos jurídicos  
desempenham uma função relevante no desenrolar dos processos de crise.  
O capital portador de juros  
Nas palavras de Marx, “no capital portador de juros, porém, tanto a devolução  
como a cessão do capital são mero resultado de uma transação jurídica entre o  
proprietário do capital e uma segunda pessoa. O que vemos é apenas cessão e  
15  
Há alguns estudiosos que se debruçaram especificamente sobre esse tema. David Harvey em sua  
obra O enigma do capital e as crises do capitalismo analisa a crise de 2008 para demonstrar a similitude  
com crises passadas. Assim, ele analisa as condições necessárias para a acumulação do capital e  
demonstra o papel que as crises exercem na reprodução do modo de produção capitalista (HARVEY,  
2010). John Bellamy Foster e Fred Magdoff no texto The great financial crisis: causes and consequences  
também tratam especificamente da crise de 2008, por eles intitulada como a “Grande Recessão”. Em  
linhas gerais, a tese defendida por eles é a de que o capitalismo que surge a partir da segunda metade  
do século XIX, marcado por sociedades por ações, tem uma tendência permanente à estagnação  
(FOSTER; MAGDOFF, 2009).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 115  
nova fase  
 
Ana Clara Passos Presciliano  
devolução. Tudo o que se encontra entre esses dois polos se esfuma” (MARX, 2017,  
p. 396). Ele seria, pois, uma espécie de figura fantástica do capital, o que não retira a  
sua efetividade, já que as repercussões na sociabilidade capitalista são várias (MARX,  
2011, p. 68). Desse modo, apaga-se a determinação de fundo da oposição capital-  
trabalho, e não resta vestígios de todo o processo de exploração do trabalho e  
extração de mais-valor (cf. SARTORI, 2019a; 2019b).  
A peculiaridade aqui é que o capital passa a atuar como mercadoria, ou seja,  
ao ser alienado, é fixada uma contraprestação pelo seu adiantamento. Assim, o  
dinheiro deixa de atuar apenas como equivalente universal e ele próprio assume o  
caráter de mercadoria após ser firmado um acordo de vontades entre o capitalista  
prestamista e o funcionante, por exemplo, em que o dinheiro será investido na  
exploração de mais força de trabalho para ao final do processo devolver o montante  
adiantado mais o adicional pactuado. O que se passa então, em resumo, é processo  
de emprestar e tomar emprestado, ao invés de vender e comprar, o que parece  
irracional do ponto de vista da troca simples de mercadorias, como explica Marx:  
Não se pode jamais esquecer que aqui o capital é, como tal, capital,  
mercadoria, ou que a mercadoria de que aqui se trata constitui um  
capital. Todas as relações que aqui se apresentam seriam, portanto,  
irracionais do ponto de vista da simples mercadoria ou também do  
ponto de vista do capital, na medida em que este último, em seu  
processo de reprodução, funciona como capital mercadoria. Emprestar  
e tomar emprestado em vez de vender e comprar representa, aqui,  
uma diferença que deriva da natureza específica da mercadoria, ou  
seja, do capital. Além disso, significa que o que aqui se paga são os  
juros, não o preço da mercadoria. Se quisermos chamar os juros de  
preço do capital monetário, essa é, então, uma forma irracional do  
preço, em plena contradição com o conceito do preço da mercadoria.  
O preço se reduz aqui a sua forma puramente abstrata e carente de  
conteúdo, como uma soma de dinheiro determinada que é paga por  
algo que, de um modo ou de outro, figura como valor de uso, ao passo  
que, de acordo com seu conceito, o preço é igual ao valor expresso  
em dinheiro desse valor de uso. (MARX, 2017, p. 401)  
Apesar de figurar enquanto mercadoria, conforme exposto ao final do trecho  
acima, o que se paga por ele é juro, e não preço da mercadoria. Isso torna o preço  
uma figura abstrata e sem conteúdo, considerando que o conceito de preço é o de  
expressão em dinheiro de determinado valor de uso e no presente caso o preço seria  
apenas a soma de dinheiro paga por algo que pode vir a figurar como valor de uso de  
alguma maneira. Alguns fatores externos podem interferir no preço desse capital, como  
as taxas de juros do período que estiver sendo analisado, o lucro produzido e a  
concorrência entre os capitalistas.  
Verinotio  
116 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
Desse modo, a sua forma fantástica faz com que os rendimentos regulares dele  
advindos sejam vistos como juros, seja ele proveniente de um capital ou não, como se  
fosse propriedade do dinheiro criar valor e gerar juros, assim como a de uma pereira  
é dar peras (MARX, 2017, p. 382), além do mais, faz com que toda soma de valor  
apareça como capital, desde que não seja despendida como renda (MARX, 2017, p.  
447). Temos aqui a questão do fetichismo do capital, no qual o capital total aparenta  
ser a fonte do lucro, e não o trabalho vivo. Isso, apesar da aparência de mera ilusão,  
se baseia efetivamente no movimento real do capital de nivelamento da taxa de lucro  
nos diversos ramos através da concorrência, explicado anteriormente.  
Conforme mencionado na introdução, o capital portador de juros “representa,  
na imaginação popular, a forma do capital par excellence”, porque se mostra  
frequentemente no cotidiano dos agentes econômicos, e que gera tamanhas  
consequências a ponto de Marx considerá-lo uma “exploração secundária, que corre  
paralela com a original, que se dá diretamente no próprio processo de produção”,  
tendo em vista que “a classe trabalhadora também dessa forma é fraudada e de  
maneira escandalosa” (MARX, 1986, p. 118)16.  
Além de sofrer com as consequências dessa forma de capital, ela não interfere  
na maneira com que a divisão dos juros de um capital se dá, ou então do lucro na  
forma do ganho empresarial, porque a sua divisão se dá por meio de títulos jurídicos,  
a qual é determinada pela concorrência, e possui uma relação apenas mediada com o  
trabalho, mas que não aparece na imediatidade da sociedade capitalista. Como afirma  
Marx, “a proporção em que o lucro é repartido e os diferentes títulos jurídicos que  
servem de base a essa repartição pressupõem o lucro como algo dado, pressupõem  
sua existência” (MARX, 2017, p. 371). Ou seja, para trabalhador não faz diferença se  
o capitalista embolsa todo o capital ou se precisa repassar uma porcentagem dele a  
um terceiro proprietário jurídico. Mais consequências acerca dessa figura econômica  
na superfície da sociabilidade capitalista serão expostas adiante.  
16 Acerca da questão da economia vulgar e socialismo vulgar, conferir a seguinte passagem, bem como  
o texto de V. Sartori intitulado Fetichismo, transações jurídicas, socialismo vulgar e capital portador de  
juros; o Livro III de o capital diante do papel ativo do direito: “Na imaginação popular, bem como no  
socialismo vulgar, os juros aparecem autonomizados, identificando-se, em grande medida, com as  
vicissitudes do modo de produção capitalista. Neste sentido, no imediato, bem como na representação  
acrítica desta imediatez, ou seja, no que Marx chama de economia vulgar, o capital não aparece como  
expressão da relação-capital, mas reificado, como uma coisa que parece ter a capacidade mágica de  
gerar valor independentemente do trabalho da classe trabalhadora. Neste sentido, é bom ressaltar que,  
mesmo que Marx seja um crítico do capital portador de juros, ele não se coloca deste modo por defender  
o capital industrial e “produtivo”, mas porque mostra a necessidade da crítica ao próprio capitalismo.”  
(SARTORI, 2019b, p. 17)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 117  
nova fase  
 
Ana Clara Passos Presciliano  
O capital fictício  
Agora que já compreendemos o capital portador de juros, que se mostra  
enquanto “a matriz de todas as formas insanas de capital” (MARX, 2017, p. 448),  
passaremos a outra modalidade relacionada e igualmente fantástica, a de capital  
fictício. Nela, é premente o seu caráter ilusório, que reproduz a “concepção do capital  
como um autômato que se valoriza por si mesmo” (MARX, 2017, p. 524), e que está  
intrinsecamente ligada com uma autonomização do direito, conforme será melhor  
explicitado adiante (cf. SARTORI, 2019a; 2019b; 2021).  
Primeiramente, temos que Marx dá à formação do capital fictício o nome de  
capitalização, e explicita o percurso para criá-lo:  
Para capitalizar cada receita que se repete com regularidade, o que se  
faz é calculá-la sobre a base da taxa média de juros, como o  
rendimento que um capital, emprestado a essa taxa de juros,  
proporcionaria; se, por exemplo, a receita anual é = £100 e a taxa de  
juros é = 5%, então £100 seriam os juros anuais de £2.000, que  
poderiam ser agora consideradas o valor-capital do título jurídico de  
propriedade sobre as £100 anuais. Para a pessoa que compra esse  
título de propriedade, as £100 de receita anual representam, de fato,  
os juros de seu capital investido a 5%. (MARX, 2017, p. 524)  
Para compreendê-lo, então, é necessário considerar a taxa de juros considerada  
enquanto rendimento de um capital a ser emprestado, a fim de calcular os juros a  
serem obtidos, os quais são considerados para calcular o valor-capital do título jurídico  
sobre tais juros. Porém, tal equação não remete ao processo real de valorização, razão  
pela qual Marx afirma que nesse tipo de transação, conforme mencionado acima,  
“apaga-se até o último rastro toda a conexão com o processo real de valorização do  
capital e se reforça a concepção do capital como um autômato que se valoriza por si  
mesmo” (MARX, 2017, p. 524).  
Ou seja, por estar diretamente ligado à figura do capital portador de juros, que  
se mostra enquanto capital que aparenta advir do próprio capital (D-D’), sem passar  
pelo processo de valorização (D-M-D’), o que sobra aparentemente é apenas o título  
jurídico que dá direito aos juros gerados. Desse modo, se parece ser o capital total e  
não o trabalho vivo a dar origem ao lucro, conforme inversão promovida pelo  
fetichismo do capital, a consequência aparente é a de que o título jurídico de  
propriedade sobre o capital irá determinar a sua reprodução e a obtenção de lucro, ao  
passo que não é. Alguns dos exemplos que Marx usa para explicitar essa dinâmica são  
os títulos de dívida pública e as ações de companhias, os quais vejamos.  
Primeiramente, os títulos jurídicos envolvidos nessas transações se colocam  
Verinotio  
118 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
como títulos de propriedade que representam um determinado capital, o qual, no caso  
do capital fictício, é meramente ilusório. Se no caso do capital portador de juros ele  
pode se ligar ao processo futuro de produção de mais-valor ao ser cedido ao  
capitalista industrial, que efetivamente vai investi-lo no processo produtivo, no caso  
do capital fictício essa hipótese sequer é possível. Esse é o caso da dívida pública, em  
que a partir do momento em que um determinado credor empresta capital ao Estado,  
ele deixa de existir, já que nunca se destinou a ser investido como capital  
propriamente, que seria a única possibilidade de convertê-lo em um capital que se  
valoriza, sendo simplesmente consumido pelo estado:  
A cada ano, o estado precisa pagar a seus credores determinada  
quantidade de juros pelo capital que lhe emprestam. Nesse caso, o  
credor não pode reclamar a seu devedor a devolução do dinheiro  
emprestado, mas simplesmente vender a outro o crédito, ou seja, seu  
título de propriedade sobre ele. O próprio capital foi consumido, gasto  
pelo estado. Ele deixou de existir. O que o credor do estado possui é:  
1) um título de dívida pública, digamos de £100; 2) o direito, que  
esse título de dívida lhe confere, de participar das receitas anuais do  
estado, isto é, sobre o produto anual dos impostos, em determinada  
soma digamos, de £5 ou 5%; 3) a possibilidade de vender a outros,  
quando quiser, esse título de dívida de £100. Se a taxa de juros for  
de 5% e a garantia oferecida pelo estado for boa, o proprietário A  
poderá, em regra, vender a B o título de dívida por £100, pois para  
B tanto faz emprestar £100 a 5% ao ano ou, em troca do pagamento  
de £100, garantir para si um tributo anual de £5 por parte do estado.  
Porém, o capital, do qual o pagamento pelo estado é considerado um  
fruto (juros), é, em todos esses casos, ilusório, fictício. A soma que foi  
emprestada ao estado já não existe. Além disso, ela jamais se destinou  
a ser gasta, investida como capital, e apenas seu investimento como  
capital poderia tê-la convertido num valor que se conserva. (MARX,  
2017, p. 522)  
Assim, o que resta ao credor que emprestou capital ao estado, não é o capital  
emprestado anteriormente, já que a esse foi dada outra finalidade, mas sim, apenas  
um título jurídico de dívida pública que lhe dá o direito de participar das receitas  
anuais do Estado, ou de vender tal título a um terceiro se assim desejar. Esses  
representam capital fictício não importa quantas vezes se repitam essas transações, e  
apenas mantêm a sua aparência enquanto são vendáveis e se mantém a confiança  
neles. Quando essa possibilidade deixa de existir, o seu caráter ilusório se desfaz.  
Para o credor original A, a parte dos impostos anuais que lhe cabe  
representa os juros de seu capital, do mesmo modo que para o  
usurário a parte que lhe cabe do patrimônio do pródigo, embora em  
nenhum desses casos a soma de dinheiro emprestada tenha sido  
despendida como capital. A possibilidade de vender ao estado o título  
da dívida pública representa para A a possível recuperação do  
montante principal. Quanto a B, de seu ponto de vista particular, seu  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 119  
nova fase  
Ana Clara Passos Presciliano  
capital foi investido como capital portador de juros. Na realidade, ele  
apenas apareceu no lugar de A, cujo título de dívida pública ele  
comprou. Não importa quantas vezes se possam repetir essas  
transações, o capital da dívida pública continua a ser puramente  
fictício, e a partir do momento em que os títulos da dívida deixam de  
ser vendáveis se desfaz a aparência ilusória desse capital. Apesar  
disso, esse capital fictício tem seu próprio movimento, como veremos  
adiante. (MARX, 2017, p. 522)  
Consequentemente, conforme introduzido por Marx na citação acima, o capital  
fictício tem o seu próprio movimento, e a sua aparência ilusória pode vir a se desfazer,  
gerando consequências catastróficas, como será melhor explicitado adiante. É  
relevante também fazermos um contraste entre a força de trabalho com o capital da  
dívida pública, a fim de elucidar ainda mais o absurdo dessa categoria.  
De antemão temos que o salário que remunera a força de trabalho, ao invés de  
explicar a valorização do capital pela sua exploração, é concebido por alguns  
economistas vulgares como os juros resultantes do capital representado pela força de  
trabalho, que por sua vez se colocaria enquanto capital portador de juros. Eis então  
que:  
Sendo, por exemplo, o salário de um ano = £50 e a taxa de juros de  
5%, a força de trabalho anual corresponde a um capital de £1.000. A  
insanidade da concepção capitalista atinge aqui seu ponto culminante:  
em vez de explicar a valorização do capital pela exploração da força  
de trabalho, procede-se do modo inverso, elucidando a produtividade  
da força pela circunstância de que a própria força de trabalho é essa  
coisa mística que se chama capital portador de juros. Na segunda  
metade do século XVII, essa era uma concepção muito valorizada (por  
Petty, por exemplo), mas ainda hoje ela é utilizada com toda seriedade  
por alguns economistas vulgares e sobretudo por estatísticos  
alemães. (MARX, 2017, p. 523)  
Mas há dois fatores que afastam essa concepção: o trabalhador precisa  
trabalhar para receber os juros que supostamente são gerados, e ele não pode  
converter em dinheiro, através de transferência, o valor-capital que a sua força de  
trabalho representa. O seu valor anual é equivalente a seu salário médio anual, e ele  
precisa devolver ao comprador por meio do seu trabalho esse próprio valor somado  
ao mais-valor, que nada mais é que a valorização desse valor (MARX, 2017, p. 523).  
As ações também representam outra categoria capaz de demonstrar tanto o  
absurdo do capital fictício quanto a volatilidade que representam os títulos jurídicos  
que permitem a sua comercialização. Conforme explicita Marx, “os papéis de valor são  
como títulos de propriedade que representam esse capital” (MARX, 2017, p. 524). As  
ações das companhias, negociadas em bolsas de valores, representam um capital real,  
Verinotio  
120 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
que foi investido a fim de propiciar o funcionamento dessas empresas, ou que foi  
investido por sócios para atuar como capital. Ocorre que não há uma existência dupla  
desse capital, uma enquanto valor-capital desses títulos de propriedade, e outra como  
capital que realmente foi investido na empresa, mas sim, ele só existe nessa segunda  
possibilidade, tendo em vista que “a ação não é mais que um título de propriedade  
que dá direito a participar pro rata [proporcionalmente] no mais-valor que aquele  
capital vier a realizar” (MARX, 2017, p. 524). O fato de um acionista A vender a sua  
participação a B e esse a C não muda a natureza do problema, a única mudança é a  
de que A e B converteram os títulos em capital e C o converteu em “mero título de  
propriedade sobre o mais-valor que se espera do capital acionário” (MARX, 2017, p.  
524).  
A autonomização dos títulos jurídicos em relação ao capital real e as crises  
econômicas  
Como visto, ocorre, então, um movimento independente do preço dos títulos  
jurídicos, tanto dos títulos da dívida pública mencionados anteriormente, quanto  
também das ações. Isso advém em grande parte do fato de que os juros são vistos  
como uma espécie de mais-valor, em que “o capital em si proporciona, embora seu  
proprietário fique fora do processo de reprodução, que, portanto, o capital  
proporciona separado de seu processo” (MARX, 2017, p. 282). Há, assim, uma  
separação entre propriedade e função do capital (cf. SARTORI, 2019b), em que de um  
lado temos o capitalista prestamista, que empresta o dinheiro, e de outro o capitalista  
realmente funcionante, que irá empregar o dinheiro enquanto capital; o capital  
enquanto propriedade, na forma do capital portador de juros, é confrontado com o  
capital enquanto função, e enquanto ele não funciona enquanto capital não é capaz  
de explorar trabalhadores e a contradição capital-trabalho permanece apagada.  
Como consequência desse processo, há uma duplicação entre a propriedade  
jurídica e econômica, em que por um lado temos os titulares dos títulos jurídicos que  
servem como formas e garantias em transações que podem escalar níveis especulativos  
impressionantes, nos quais títulos jurídicos servem de garantia para outros títulos  
jurídicos, perdendo a referência com o processo real de produção e regulando-se  
independentemente, e de outro os proprietários econômicos que efetivamente agem  
no processo de produção de mais-valor. Há uma antítese da função do capital dentro  
do processo de reprodução e da mera propriedade do capital fora do processo de  
reprodução.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 121  
nova fase  
Ana Clara Passos Presciliano  
Conforme exposto, o capital que é cedido ao estado se perde assim que a  
cessão se efetiva, passando a ser capital fictício que remunera o titular dos papéis de  
propriedade através dos juros, e o preço das ações também tem a sua forma peculiar  
de arbitramento, e ambos se colocam no mercado como mercadorias que podem ser  
trocadas. Tal característica “reforça a ilusão de que eles constituem um capital real ao  
lado do capital ou do direito ao qual eles possivelmente deem título” (MARX, 2017, p.  
524). Aqui a questão se torna meandrada. Por assumirem o caráter de mercadoria,  
elas passam a se expressar através de preços, e esses preços têm os seus movimentos  
característicos, sendo fixados de maneira peculiar. O valor de mercado difere do valor  
nominal, sem alterar o valor do capital real, ainda que a valorização possa ser alterada.  
Como que magicamente, o valor de mercado das ações flutua de acordo com o  
montante e a confiabilidade dos rendimentos em relação aos quais conferem título  
legal. A seguir o exemplo trazido pelo próprio Marx:  
Se o valor nominal de uma ação, isto é, da soma desembolsada que a  
ação originalmente representa, é de £100, e a empresa gera 10% em  
vez de 5%, seu valor de mercado, mantendo-se constantes as demais  
circunstâncias e com uma taxa de juros de 5%, aumentará para £200,  
pois, capitalizada a 5%, a ação representa um capital fictício de £200.  
Quem a comprar por £200 obterá 5% de renda sobre esse  
investimento de capital. E o contrário ocorrerá quando diminui o  
rendimento da empresa. (MARX, 2017, p. 524)  
Percebe-se então um ponto delicado: o valor de mercado das ações é em parte  
especulativo, não dependendo apenas dos ganhos reais, e sim também dos esperados,  
que são calculados por antecipação (MARX, 2017, p. 524). Analisa-se então  
minuciosamente o rendimento da empresa que emitiu a ação, são efetuadas projeções  
a fim de averiguar a viabilidade de possíveis rendimentos futuros a partir da sua  
situação presente, e sempre existe a possibilidade de questões políticas, sanitárias,  
sociais e econômicas também afetarem o valor de mercado dos títulos ou de forma  
mais ampla a conjuntura do mercado de ações como um todo.  
Dificuldades no mercado financeiro, por resultado, afetam diretamente tanto  
títulos na forma de ações, quanto títulos que garantem rendimento constante como os  
de dívida pública. A taxa de juros também influencia nesse cenário, já que os preços  
dos papéis aumentam ou diminuem na razão inversa a ela: “Se esta sobe de 5% para  
10%, então um título que assegura um ganho de £5 representa apenas um capital de  
£50. Se cai para 2½%, então o mesmo título representa um capital de £200.” (MARX,  
2017, p. 524) Por conseguinte, conforme explicado anteriormente, se o capital fictício  
é criado através da capitalização, o valor-capital do título jurídico é sempre o  
Verinotio  
122 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
rendimento capitalizado, calculado em relação a um capital ilusório, levando em  
consideração a taxa de juros vigente, e em épocas de dificuldades do mercado  
financeiro o preço dos títulos cai de dois modos: porque aumenta a taxa de juros a fim  
de, entre outras razões, frear a alta da inflação, e também pelo fato de que os títulos  
são lançados em massa ao mercado a fim de serem realizados em dinheiro, devido por  
exemplo a uma quebra na confiança no mercado diante de problemas nos bancos, o  
que será tratado em detalhe adiante.  
Outro motivo que pode causar uma queda no preço dos títulos, principalmente  
no caso das empresas industriais, são as perturbações no processo de valorização do  
capital real que eles representam. Porém, se essas perturbações não forem  
incontornáveis, o preço dos papéis pode voltar ao patamar anterior ao da crise, ou até  
superá-lo. Por essa razão, “sua depreciação durante a crise serve como um poderoso  
meio de centralização de fortunas em dinheiro” (MARX, 2017, p. 525), já que aqueles  
que compraram os títulos durante a crise e os venderam após a recuperação do preço  
podem realizar uma diferença substancial em dinheiro. Isso demonstra que o solo que  
determina o preço desses papéis está na produção, então mesmo com o processo de  
desvalorização que ocorre na crise, a tendência é que com o seu abrandamento haja  
a retomada do lastro na produção.  
A referida autonomização do valor dos títulos jurídicos em relação ao capital  
real que representam também é demonstrada através do fato, por exemplo, de que a  
riqueza das nações pode permanecer a mesma depois dos processos de  
valorização/desvalorização deles. Nesse sentido vale demonstrar o exemplo elencado  
por Marx:  
Em 23 de outubro de 1847, os títulos públicos e as ações dos canais  
e das ferrovias já se encontravam desvalorizados num montante de  
£114.752.225” (Morris, governador do Banco da Inglaterra,  
testemunho no relatório sobre Commercial Distress, 1847-1848 [n.  
3.800]). Em todos os casos em que sua desvalorização não refletia  
uma paralisação real da produção e do tráfego em ferrovias e canais,  
uma suspensão dos empreendimentos iniciados ou o desperdício de  
capital em empresas comprovadamente sem valor, a nação não ficou  
nem um centavo mais pobre ao estourar essa bolha de capital  
monetário puramente nominal. (MARX, 2017, p. 526)  
Depreende-se que nos casos em que não há comprometimento sério da  
produção que chegue a culminar na sua paralisação ou na interrupção de tráfegos em  
ferrovias e canais, suspensão de empreendimentos iniciados ou desperdício de capital  
em empresas sem valor a riqueza da nação não seria afetada por aquilo que Marx  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 123  
nova fase  
Ana Clara Passos Presciliano  
chama de “bolha de capital monetário puramente nominal”.  
Acontece que tal “bolha de capital monetário puramente nominal” é um  
fenômeno bastante complexo que vale a pena ser melhor desenvolvido, porque apesar  
de existir a possibilidade de a riqueza da nação não ser afetada por tal bolha, tal  
autonomização dos títulos jurídicos tem o potencial de assumir proporções  
catastróficas capazes de abalar a economia global e ser forçada a de certo modo  
retomar a existência de lastro após as crises. Serve de exemplo disso a já repisada e  
muito tratada Crise de 2008.  
Tal crise, também conhecida como Crise do Subprime, apelidada de “bolha  
imobiliária americana”, começou com a forte queda do índice Dow Jones em julho de  
2007, motivada pela hipótese do colapso hipotecário, que arrastou consigo várias  
instituições financeiras americanas para a situação de insolvência. O cerne da questão  
foi a concessão irresponsável dos chamados empréstimos hipotecários podres, ou  
subprime mortage, que culminaram em uma crise de crédito através da transferência  
desenfreada de CDS (Credit Default Swaps) e CDO (Collateralized Debt Obligation)  
para terceiros, repassando assim os riscos para outras contrapartes.  
O sistema bancário assume um papel proeminente nesse cenário, tendo em  
vista se colocar como uma das estruturas que propiciam a distribuição de capital na  
superfície da sociedade, tendo que vista que “por meio do sistema bancário, a  
distribuição do capital é retirada das mãos dos capitalistas particulares e dos usurários  
como um negócio especial, como função social” (MARX, 2017, p. 573). Essa  
proeminência contribui para a separação entre titularidade jurídica e econômica, que  
deixam de coincidir, já que o título jurídico se autonomiza em relação ao capital real  
que representa, e a realização de investimentos não mais necessita de acúmulo de  
trabalho prévio ou remete necessariamente à produção futura de mais-valor, tendo em  
vista que o financiamento pode advir do próprio sistema bancário, “de modo que nem  
o prestamista nem quem emprega esse capital é seu proprietário ou seu produtor”  
(MARX, 2017, p. 573).  
Com tal relevância assumida pelo sistema bancário, então, cria-se um processo  
que atribui função social ao investimento e o torna de certo modo independente dos  
capitalistas individuais, resultando no fato de que “o banco e o crédito se convertem  
no meio mais poderoso de impulsionar a produção capitalista para além de seus  
próprios limites e um dos mais eficazes promotores das crises e da fraude” (MARX,  
Verinotio  
124 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
2017, p. 573)17.  
Temos também que a acumulação de capital monetário nesse cenário passa a  
assumir a forma de uma acumulação de direitos sobre a produção, de preço de  
mercado e, sobretudo, do valor-capital ilusório desses direitos. Sendo assim, seja ao  
analisarmos os exemplos trazidos por Marx de títulos de dívida e de ações, ou do  
exemplo mais atual da crise de 2008, o que vemos é uma acumulação de direitos,  
temos que em todas elas há investidores acumulando direitos e valor-capital ilusório,  
e em alguns casos, como no último, a acumulação desenfreada de CDS (Credit Default  
Swaps) e CDO (Collateralized Debt Obligation), culminou em uma crise de crédito que  
assumiu proporções globais.  
Consequentemente, nota-se a relevância que tais formas jurídicas passam a  
tomar na superfície do capitalismo global, razão pela qual não podem ser  
desconsideradas sem se correr o risco de deixar de compreender os fundamentos das  
crises econômicas.  
Outro fator relevante a ser compreendido na ocorrência das crises é a  
composição do capital bancário, que já se adianta, tem uma significativa proeminência  
de títulos jurídicos especulativos. De antemão, temos que uma parte considerável do  
capital bancário está investido em capital portador de juros, que também está presente  
no fundo de reserva dos bancos, e a parcela mais relevante está na forma de letras de  
câmbio, que nada mais são do que promessas de pagamento dos capitalistas  
industriais e dos comerciantes, as quais são títulos que geram juros aos bancos quando  
do vencimento, a depender da taxa de juros vigente à época (MARX, 2017, p. 450).  
Em seguida há títulos da dívida pública (que representam capital pretérito) e ações  
(direitos sobre rendimentos futuros).  
A última parte consiste na reserva monetária em ouro ou cédulas bancárias, a  
qual, para a surpresa de muitos, tendo em vista que supostamente seria o último  
fundamento que garantiria todas as operações realizadas pelos bancos, e que  
representam a média da grandeza do dinheiro entesourado num país, quando  
somados os fundos de todos os bancos, também é em grande parte composta por  
17 Acerca do tema, conferir Sartori, que explica que esse “‘jogo da bolsae a moderna bancocracianão  
são acidentais ao modo de produção capitalista; antes, são a condição sem a qual o caráter social deste  
sistema social não pode ser efetivo” (2019a, p. 23). Ou seja, a negação da produção capitalista realizada  
pelo sistema de crédito por meio da negação da apropriação privada de riqueza dentro do capitalismo,  
através das sociedades por ações, por exemplo, permite a consolidação do caráter social desse modo  
de produção.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 125  
nova fase  
 
Ana Clara Passos Presciliano  
meros títulos jurídicos. Uma parte dos depósitos realizados pelos clientes das  
instituições bancárias, que não são de longo prazo, estão à disposição dos clientes,  
mas essa é apenas uma fração do fundo de reserva. Majoritariamente ele é composto  
por títulos e meros direitos sobre ouro, mas que em si não têm nenhum valor (MARX,  
2017, p. 530). Desse modo, nas palavras do próprio Marx, “nesse sistema de crédito,  
tudo é duplicado, triplicado e transformado em simples fantasias, e o mesmo se aplica  
ao ‘fundo de reserva’, onde se acreditava enfim poder agarrar algo sólido” (MARX,  
2017, p. 530).  
Por conseguinte, a maior parte do capital bancário18, no limite, é puramente  
fictício:  
A maior parte do capital bancário é, pois, puramente fictícia e consiste  
em títulos de dívidas (letras de câmbio), títulos da dívida pública (que  
representam capital pretérito) e ações (direitos sobre rendimentos  
futuros). E não devemos esquecer que o valor monetário do capital  
representado por esses papéis nos cofres do banqueiro é, ele mesmo,  
fictício, na medida em que tais papéis consistem em direitos sobre  
rendimentos seguros (como no caso dos títulos da dívida pública) ou  
títulos de propriedade de capital real (como no caso das ações) e que  
esse valor é regulado diferentemente do valor do capital real, que, ao  
menos em parte, esses papéis representam; ou quando representam  
mero direito a rendimentos, e não capital, o direito ao mesmo  
rendimento é expresso num montante de capital monetário fictício  
constantemente variável. Ademais, é preciso notar que esse capital  
fictício do banqueiro representa, em grande parte, não um capital do  
próprio banqueiro, mas do público que o deposita em suas mãos, com  
ou sem juros. (MARX, 2017, p. 526)  
Na realidade, o que se mostra é que além do capital bancário ser composto  
largamente por capital puramente fictício, o próprio valor monetário do capital é em si  
fictício, já que se referem a rendimentos de capital que sequer existe, como no caso  
de títulos de dívida19, ou de títulos de propriedade de capital, cujo valor não coincide  
com o valor do capital, já que nunca se destinou a ser investido como capital  
18  
O capital bancário possui um papel relevante nas análises desenvolvidas por Hilferding (1985) e  
Lênin (1982) quanto ao imperialismo, pois ao somar-se com o industrial, dá origem ao capital financeiro,  
que assume proeminência com a tendência de passagem da concorrência ao monopólio. Isso porque  
ele não possui o caráter fixo que o capital industrial isolado representa, permitindo uma expansão da  
escala de atuação do capital pelo globo, mas que por outro lado contribui para uma concentração  
econômica e de poder político nas mãos de poucos agentes, que passam a ser mundialmente influentes.  
19  
Os títulos de dívida pública, ou “direitos sobre rendimentos seguros”, conforme mencionado na  
citação acima, desempenham um papel muito relevante na economia de um país, pois se por um lado  
eles servem como forma de captar recursos a fim de realizar investimentos em diversos setores da  
sociedade, se a taxa básica de juros for alta ou se o destino da captação é apenas quitar outras dívidas,  
recursos essenciais podem ser comprometidos e assim prejudicar o desenvolvimento da economia como  
um todo, em privilégio de uma fração da sociedade que se beneficia do rentismo. Sobre esse tema  
conferir o documentário A bolsa ou a vida do cineasta Silvio Tendler.  
Verinotio  
126 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
propriamente, que seria a única possibilidade de convertê-lo em um capital que se  
valoriza, ou então por ser negociado independentemente do capital que lhe deu causa,  
como no caso de títulos transacionados em bolsa de valores. Esses rendimentos sobre  
capital que sequer existe, e essa acumulação de capital com base em transações sem  
lastro implicam no negativo do capital, a crise, conforme explicado anteriormente.  
Por fim, tal capital fictício do banqueiro em grande parte sequer pertence a ele  
próprio, mas sim aos clientes que o confiam ao banco. À vista disso, com o  
desenvolvimento do capital portador de juros e do sistema de crédito, “todo capital  
parece duplicar e às vezes triplicar pelos diversos modos em que o mesmo capital ou  
o mesmo título de dívida aparece sob diferentes formas em diferentes mãos” (MARX,  
2017, p. 526), exatamente como o descrito na crise de 2008, em que títulos jurídicos  
de propriedade passam a ser garantidos por outros títulos de propriedade, em uma  
série de transações que no limite não possuem lastro algum, já que se encontram  
desvinculados de qualquer capital real, e os banqueiros, ou demais titulares, se pagam  
entre si com base em tais direitos:  
Esse “capital monetário” é, em sua maior parte, puramente fictício.  
Todos os depósitos, com exceção do fundo de reserva, não são mais  
que créditos contra o banqueiro e jamais existem em depósito. Na  
medida em que servem para operações de giro, funcionam como  
capital para os banqueiros, depois que estes os emprestaram. Os  
banqueiros pagam uns aos outros os direitos recíprocos sobre os  
depósitos não existentes mediante a compensação mútua desses  
créditos. (MARX, 2017, p. 528)  
Além de garantir compras, uma mesma peça monetária pode ser utilizada em  
diversos empréstimos, já que compras transferem a sua titularidade de uma pessoa a  
outra e o empréstimo também permite a transferência, mas sem precisar da mediação  
de uma compra. Mas para definir quantos capitais um capital monetário representa, é  
necessário averiguar quantas vezes ele funciona como forma de valor de diferentes  
capitais-mercadorias, como existência de valor de um capital, e não apenas enquanto  
meio de circulação. Consequentemente, em empréstimos sucessivos, sem a mediação  
de nenhuma compra, não se tem vários capitais distintos, mas apenas um mesmo  
capital que trocou de mãos diversas vezes:  
Para cada vendedor, o dinheiro representa a forma transfigurada de  
sua mercadoria; atualmente, quando todo valor se expressa como  
valor-capital, ele representa, nos diversos empréstimos, diversos  
capitais sucessivos, o que é apenas outro modo de expressar a  
afirmação anterior de que ele pode realizar sucessivamente diversos  
valores-mercadorias. Ao mesmo tempo, serve de meio de circulação  
para fazer com que os capitais materiais [sachlichen] troquem de  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 127  
nova fase  
Ana Clara Passos Presciliano  
mãos. Enquanto permanece nas mãos do prestamista, o dinheiro não  
é meio de circulação, mas existência de valor de seu capital. E é nessa  
forma que o prestamista o transfere em empréstimo a um terceiro. Se  
A tivesse emprestado o dinheiro a B, e este, a C, sem mediação de  
nenhuma compra, o mesmo dinheiro não representaria três capitais,  
mas somente um: um único valor-capital. O número de capitais que  
ele realmente representa depende de quantas vezes funciona como  
forma de valor de diferentes capitais-mercadorias. (MARX, 2017, p.  
529)  
Mas tal hipótese de transferência através de empréstimo, em que o mesmo  
capital passa por diversas mãos, pode assumir formas complexas e está no cerne de  
bolhas como a de 2008. No centro da bolha estavam os empréstimos hipotecários  
podres, os subprime mortage. Para garantir esses empréstimos hipotecários, entrou  
em jogo as seguradoras de crédito, que emitiam as CDS (Credit Default Swaps) e CDO  
(Collateralized Debt Obligation), que fragmentava uma obrigação de pagamento em  
vários títulos e com isso criou um mercado imenso, até mesmo maior do que o mercado  
de ações americano, por exemplo. Na época imediatamente anterior ao estouro da  
bolha, os Credit Default Swap valiam US$ 45 trilhões, em comparação com US$ 22  
trilhões em investimentos no mercado de ações, US$ 7,1 trilhões em hipotecas e US$  
4,4 trilhões em títulos do Tesouro dos EUA20. Esses títulos provenientes de obrigações  
de pagamento eram garantidos por outros títulos, teoricamente capazes de garantir a  
dívida primária a ser paga, com isso, dilui-se o risco de inadimplência, tendo em vista  
que a partir da venda dos títulos diversos investidores passaram a também arcar com  
os riscos, e não apenas o mutuário que concedeu o primeiro empréstimo. É relevante  
mencionar também que no caso dos Credit Default Swaps quem garante os títulos são  
as próprias instituições financeiras enquanto no caso dos Collateralized Debt  
Obligation são os próprios indivíduos que contraem o empréstimo.  
Um exemplo didático desse último caso: uma pessoa contrai um empréstimo e  
como garantia de que ele irá quitá-lo, ele aponta um automóvel de sua propriedade.  
A entidade que concedeu o empréstimo transforma a dívida em títulos, que  
teoricamente está garantida por um ativo, o automóvel, mas agora os riscos da  
operação não são apenas dela, mas sim também de todos os investidores que  
adquiriram os títulos vendidos.  
Com a expansão de crédito imobiliário nos Estados Unidos a indivíduos que  
eram potenciais inadimplentes, chamados subprime, e eventualmente esses  
20 Disponível em: <https://exame.com/invest/guia/o-que-e-credit-default-swap-cds/>.  
Verinotio  
128 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
compradores realmente entraram em inadimplência, as instituições financeiras viram  
os pagamentos mensais se converterem em imóveis, que serviam como garantia da  
dívida. Porém, com a expansão da inadimplência a oferta de imóveis à venda aumentou  
e os preços deles caíram, se tornando insuficientes para cobrir os custos e lucros  
esperados com as operações. Consequentemente houve uma quebra generalizada de  
instituições financeiras, o que resvalou mundo afora.  
Nesse sentido, a separação entre propriedade e função social está  
intrinsecamente ligada às crises, como trata Marx em outro momento: “a dívida do  
Estado fez prosperar as sociedades por ações, o comércio com títulos negociáveis de  
toda espécie, a agiotagem em uma palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia”  
(MARX, 2017, p. 374). Além disso, o sistema bancário traz consigo “uma nova  
aristocracia financeira, uma nova espécie de parasitas na figura de fazedores de  
projetos, fundadores e diretores meramente nominais” e, reproduz “todo um sistema  
de embuste e de fraude no tocante à incorporação de sociedades, lançamentos de  
ações e comércio de ações.  
No cerne, então, dessa “moderna bancocracia” tratada por Marx, temos os  
títulos jurídicos, que podem estar ligados a produção futura, não representarem capital  
algum ou serem regidos de forma independente do capital real que lhes serve de  
lastro, e que se infiltram por todos os países inseridos no modo de produção  
capitalista, como bem coloca o nosso autor:  
Todos esses títulos não representam mais do que direitos acumulados,  
títulos jurídicos sobre a produção futura, cujo valor monetário ou  
valor-capital não representa capital nenhum, como no caso da dívida  
pública, ou é regulado independentemente do valor do capital real  
que representam. Em todos os países de produção capitalista  
encontra-se, nessa forma, uma massa enorme do assim chamado  
capital portador de juros, ou moneyed capital. E por acumulação do  
capital monetário devemos entender fundamentalmente uma  
acumulação desses direitos sobre a produção, uma acumulação do  
preço de mercado, do valor-capital ilusório desses direitos. (MARX,  
2017, p. 450)  
A partir de todo o exposto até aqui é possível fechar o percurso traçado,  
conectando os conceitos apresentados. Primeiramente, quando expostas as  
determinações por detrás das crises econômicas, uma das conclusões foi a de que com  
o desenvolvimento do modo de produção capitalista haveria uma tendência a um  
alteração da composição orgânica do capital, por conta da busca pelo incremento do  
investimento em capital constante em detrimento do variável, que levaria a uma  
tendência de queda da taxa de lucro, que pode culminar em uma perda da  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 129  
nova fase  
Ana Clara Passos Presciliano  
autorreferência do capital e da sua capacidade de se autodeterminar, causando uma  
desmedida que desvincula o preço das mercadorias do seu valor.  
Isso é acompanhado por um processo de autonomização dos títulos jurídicos,  
derivada de uma duplicação entre mundo jurídico e econômico, relacionada a uma  
separação entre propriedade jurídica e econômica, que cria uma valorização fictícia de  
ações e outros títulos que podem ser exigidos juridicamente, e representam apenas  
“direitos acumulados”, e que perdem a referência ao menos momentaneamente no  
processo de produção. Isso se espalha por todos os países de produção capitalista,  
que detêm uma grande quantidade de capital nessa forma, e que por conta do  
desenvolvimento do sistema bancário, se veem repletos de títulos referentes a direitos  
sobre a produção, de uma acumulação de preço de mercado e do valor-capital ilusório  
deles.  
Quando então do estouro de uma crise, momento no qual há a destruição de  
capital com a finalidade de propiciar a retomada da acumulação e se esvai a  
discrepância entre preço e valor, é evidenciada a falta de lastro de tais títulos e tende-  
se ao seu esvaziamento, mas que pelo fato de eles servirem de garantia de uma série  
de outros títulos, as consequências são agudas e se espalham entre os países, já que  
é a concorrência global entre os capitais que irá determinar como serão distribuídos  
os prejuízos.  
A tendência no pós-crise então é que as transações retomem a existência de  
lastro, iniciando um novo processo de valorização, mas que em si já contém todos os  
elementos que tendencialmente levarão a um novo processo de crise, considerando  
que cada uma dessas fases está contida na outra, e que se mantêm as determinações  
de fundo do modo de produção capitalista.  
Mas dentro do percurso trilhado, o que se destaca como cerne deste trabalho  
é que apesar da ausência de centralidade do direito nos processos aqui expostos,  
tendo em vista que são as figuras econômicas que exercem o papel de protagonistas,  
não é possível negar a relevância que os títulos jurídicos, e mais especificamente a sua  
autonomização, exerce no desenrolar das crises econômicas. Por estarem  
intrinsecamente ligadas a categorias altamente fetichizadas, como as de capital  
portador e capital fictício, o que não afasta o fato de que elas são efetivamente  
determinadas pelos refluxos reais apesar de eles não aparentarem nas transações, e  
ainda por conta da proeminência cada vez maior do sistema bancário na superfície da  
sociabilidade capitalista que se vê mais expandido e complexo, é inegável a  
Verinotio  
130 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
importância de compreendê-las adequadamente, com a seriedade exigida.  
Isso pode ser comprovado tanto pelos exemplos trazidos pelo próprio Marx de  
processos ocorridos nas Índias Orientais em 1847, em que letras de câmbio giradas  
fraudulentamente culminaram em um desastre na especulação de mercadorias e  
geraram sérias consequências no sistema bancário inglês, o que repercutiu na Europa  
por vários anos, sendo que em 1857 os quatro maiores bancos por ações de Londres  
ameaçaram retirar os seus depósitos caso o Banco da Inglaterra não suspendesse a  
Lei Bancária de 1844, que lhes era prejudicial (MARX, 2017, p. 532), podendo gerar  
uma falência do sistema bancário inglês, já esses bancos todos estavam estreitamente  
ligados entre si, já títulos deles garantiam títulos do Banco da Inglaterra, e ainda que  
fossem em grande parte fictícios, gerariam um colapso geral.  
Mas também exemplos recentes são capazes de afirmar tal relevância dos títulos  
jurídicos, como a já citada Crise de 2008, ocasião na qual a circulação desenfreada de  
uma série de títulos “podres” gerou o estouro de uma bolha imobiliária americana,  
repercutindo mundo afora. De forma semelhante ao exemplo de Marx acima, houve  
consequências no sistema bancário americano, e o Tesouro Americano se viu obrigado  
a salvar bancos que entraram em falência a fim de evitar uma quebra geral do sistema  
bancário americano, tendo em vista, como não podia deixar de ser, que títulos de um  
eram garantia dos outros, até mesmo do próprio Tesouro Americano.  
Consequentemente, quando a aparência ilusória do capital se desfaz, os títulos  
jurídicos perdem totalmente a sua utilidade, então a sua autonomização se mostra  
potencialmente perigosa. Mas infelizmente, apesar dos resultados dramáticos das  
crises os ciclos se repetem desde a época em que Marx os descreveu até os dias de  
hoje, por conta da manutenção das determinações de fundo do modo de produção  
capitalista.  
Considerações finais  
Vimos aqui que as crises econômicas são uma manifestação privilegiada da  
contradição da relação capital-trabalho e fase necessária da sua dinâmica expansiva,  
representando erupções violentas que restabelecem por um momento o equilíbrio  
perturbado pela produção excessiva de capital, a fim de retomar o processo de  
acumulação.  
Foi exposto também que elas se ligam intrinsecamente a processos como a lei  
tendencial da queda da taxa de lucro, bem como a figuras como a do capital portador  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 131  
nova fase  
Ana Clara Passos Presciliano  
de juros e do capital fictício, e que com o desenvolvimento do modo de produção  
capitalista há um crescimento dessas formas de capital, do crédito e da especulação.  
Demonstrou-se ainda que os títulos jurídicos desempenham uma função  
relevante no desenrolar dos processos de crise, pois a sua relação direta com o capital  
portador de juros e capital fictício, bem como com o processo de separação entre  
propriedade e função do capital geram uma autonomização dos seus preços e os  
tornam ferramentas de especulação.  
A intenção geral do trabalho foi chamar a atenção para o fato de que a questão  
da relação entre crises e formas jurídicas ainda precisa ser mais bem estudada, pois a  
dedicação a esse tema pode contribuir para uma melhor compreensão tanto dos  
processos de crise passados quanto dos futuros, considerando uma relevância cada  
vez maior da especulação com títulos jurídicos com o desenvolvimento do modo de  
produção capitalista.  
Referências bibliográficas  
BARREIRA, César Mortari. Teoria monetária do direito: elementos para uma nova  
abordagem marxista. Tese (Doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro,  
Rio de Janeiro, 2020.  
CASALINO, Vinícius. O direito e a transição: a forma jurídica na passagem do  
capitalismo ao socialismo. Tese (Doutorado) Faculdade de Direito da Universidade  
de São Paulo, São Paulo, 2013.  
COTRIM, Vera Aguiar. Trabalho, conhecimento, valor: Marx frente a uma contradição  
atual. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,  
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. DOI:10.11606/T.8.2015.tde-  
03122015-144226.  
DEUS, Leonardo Gomes de; SILVA, Guilherme de Oliveira e. A crítica ontológica de  
Marx, 180 anos. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio  
das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 199-222, 2022/2023.  
DEUS, Leonardo G. Marx em tempos de Mega: os planos e o plano de O capital. Estudos  
Econômicos, v. 45, pp. 927-54, 2015.  
FINE, Bem; HARRIS, Laurence. Para reler O capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.  
GRESPAN, Jorge Luis. O negativo do capital: o conceito de crise na crítica de Marx à  
economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2012.  
HARVEY, David. O enigma do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.  
HEINRICH, Michael. An introduction to the three volumes of Karl Marx’s Capital.  
Tradução para o inglês de Alexander Locascio. Nova York: Monthly Review Press,  
2004.  
HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985.  
LÊNIN, V. Imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1982.  
LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital: uma contribuição ao estudo econômico  
do imperialismo. Trad. Marijane Lisboa e Otto Maas. Col. Os Economistas. São Paulo:  
Nova Cultural, 1985.  
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política Livro I: o processo de produção do  
capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.  
Verinotio  
132 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Crise, capital portador de juros, capital fictício e a função do direito no Livro III de O capital  
MARX, Karl. O capital: Crítica da Economia Política. Livro II: o processo de circulação  
do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.  
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política Livro III: o processo global da  
produção capitalista. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017.  
REICHELT, Helmut. Que método Marx ocultou? Crítica Marxista, São Paulo, Unesp, n.  
33, 2011, pp. 67-82, 2011.  
ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Trad. César  
Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.  
SARTORI, Vitor Bartoletti. Sociedades capitalistas tardias, o Livro III de O capital e a  
dialética entre trabalho e as figuras econômicas concretas. Revista Brasileira de  
Estudos Organizacionais, n. 1, v. 6, pp. 5-39, 2019a.  
SARTORI, Vitor B. Fetichismo, transações jurídicas, socialismo vulgar e capital portador  
de juros: o Livro III de O capital diante do papel ativo do direito. Revista da  
Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 52, 2019b.  
SARTORI, Vitor B. A crítica ao direito no Livro III de O capital de Karl Marx. Revista  
Humanidades e Inovação, Palmas, n. 57, v. 8, 2021. Disponível em:  
<https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/issue/view/129>.  
SWEEZY, P. M. Teoria do desenvolvimento capitalista: princípios de economia política  
marxista. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Abril Cultural, 1983.  
Como citar:  
PRESCILIANO, Ana Clara Passos. Crise, capital portador de juros, capital fictício e a  
função do direito no Livro III de O capital. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp.  
103-133; jul.-dez., 2024.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 103-133 jul.-dez., 2024 | 133  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.732  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
Marx, reader of Morgan: critique of social organization  
Lucas Parreira Álvares*  
Resumo: Este artigo propõe o exercício de  
apresentar os nexos que se colocam na leitura  
crítica que Marx fez de Morgan nos chamados  
Cadernos Etnológicos acerca de questões  
relativas ao que Morgan tratou como pertencente  
ao campo da “organização social”, como direito,  
parentesco, religião e política. A partir de um  
exercício de análise imanente dos escritos de  
Marx, em comparação ao texto de Morgan,  
concluiu-se que a posição de Marx em relação ao  
expoente da etnologia estadunidense, embora  
respeitosa, é absolutamente crítica, endossando  
a insuficiência das conclusões de Morgan e os  
riscos de adesão irrestrita a seus esquemas e  
formulações teóricas.  
Abstract: This article proposes the exercise of  
presenting the links between Marx's critical  
reading of Morgan in the so-called Ethnological  
Notebooks about issues relating to what  
Morgan treated as belonging to the field of  
“social organization”, such as law, kinship,  
religion and politics. From an exercise of  
immanent analysis of Marx's writings, in  
comparison to Morgan's text, it was concluded  
that Marx's position in relation to the exponent  
of American ethnology, although respectful, is  
absolutely  
critical,  
demonstrating  
the  
insufficiency of Morgan's conclusions and the  
risks of unrestricted adherence to their schemes  
and theoretical formulations.  
Palavras-chave: Marx; Morgan; etnologia;  
antropologia; organização social.  
Keywords:  
anthropology; social organization.  
Marx;  
Morgan;  
ethnology;  
Introdução  
Marx e Morgan podem ser considerados dois autores incontornáveis em seus  
respectivos campos de atuação. Ironicamente, ambos possuem formação em  
“jurisprudência”, embora sejam reconhecidos por seus escritos e atuações externas ao  
campo formativo. Em suas abordagens investigativas, ambos demonstraram apreço  
por uma concepção histórica, e utilizavam, cada qual a seu modo, de evidências  
materiais para rastrearem os nexos internos aos temas investigados. Marx, ao elaborar  
sua crítica à economia política, apresentou ao mundo a mais densa e minuciosa  
investigação já feita sobre a anatomia da sociabilidade burguesa, navegando por níveis  
distintos de abstrações e estimulando seus leitores a submergir até a raiz dos  
problemas sociais, o que o faz ser uma leitura indispensável aos campos da economia,  
sociologia, filosofia e outros campos parcelares do conhecimento, embora não se  
* Professor substituto do Departamento de Ciências Sociais (UFJF), doutorando em antropologia  
cultural (UFRJ) e pesquisador do Programa Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais (UFMG).  
E-mail: lucasparreira1@gmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
adeque plenamente a nenhum deles; Morgan, por sua vez, alocou o parentesco à órbita  
do conhecimento etnológico, aliou a bibliografia sobre as organizações iroquesas com  
investigações duradouras de campo e moldou a escrita de um campo de conhecimento  
que emergiu em reação a suas investigações: a antropologia.  
O exercício de levar a sério ambos autores - raro até mesmo nos campos de  
conhecimentos em que são tratados por “clássicos” - impõe à necessidade que sejam  
expressas suas similaridades, mas também suas diferenças, essas, por vezes tão  
visíveis quanto aquelas. Eles se “encontram” na história na medida em que, já nos anos  
finais de sua vida, Marx teve contato com uma importante obra de Morgan, Ancient  
society, e dele fez uma espécie de “fichamento”, interpondo marcações, fazendo  
comentários e transcrevendo passagens inteiras. A partir desses escritos,  
especialmente nas temáticas que se referem à organização social de sociabilidades  
que historicamente precederam o modo de produção capitalista, este artigo propõe o  
exercício de apresentar os nexos que se colocam na leitura crítica que Marx fez de  
Morgan, sem desconsiderar, é claro, a importância que a obra deste autor representa  
para uma tentativa racional, embora insuficiente, de compreensão do desenvolvimento  
histórico das sociabilidades. Ficará evidente, para ambos, como a temática relativa à  
organização social convida a discussões mais amplas, como a proibição do incesto, as  
particuliridades da chamada “comunidade gentílica”, o totemismo, o fetiche religioso,  
cargos e funções políticas, entre outras questões1.  
1. Marx diante da proibição do incesto  
Na interpretação de Engels, uma das principais contribuições de Lewis Morgan  
em Ancient society foi a de ter demonstrado que a organização gentílica dos índios  
americanos corresponde a toda a organização social dos gregos e dos romanos da era  
primeva e portanto a gens “é uma instituição comum a todos os bárbaros até o seu  
ingresso na civilização” (ENGELS, 2019, p. 83). Os termos gens em latim, genos em  
grego e ganas em sânscrito têm, segundo Morgan (1980, p. 80), “o mesmo significado  
original: o de parentesco [...] uma gens é, portanto, um conjunto de consanguíneos,  
descendendo de um antepassado comum”.  
A utilização do termo “gens” foi disseminado após a publicação do importante  
1 As investigações que esse texto compreende têm como fontes primárias as seguintes referências: “O  
desenvolvimento da ideia de governo” (MORGAN, 1980, pp. 63-333; 1976, p. 7-121; MARX, 1972,  
pp. 139-240; ENGELS, 2019, pp. 83-146).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 135  
nova fase  
 
Lucas Parreira Álvares  
A cidade antiga (1865), de Fustel de Coulanges. Essa foi uma primeira tentativa de  
associar as formações arcaicas da Grécia e Roma a outros povos, nesse caso, aos indo-  
europeus. Fustel de Coulanges (2006, p. 95) assinala uma caracterização igualitária  
entre a gens: “lar, túmulo, patrimônio, tudo isso em sua origem era indivisível. A família  
o era, por consequência [...]. A gens era a família, mas a família conservando a unidade  
ordenada pela religião e atingindo todo o desenvolvimento que o antigo direito  
privado lhe permitia atingir”.  
Não é comum, por parte da literatura antropológica emergente no século XX, a  
utilização do termo “gens” para designar a unidade social de outros povos que não  
os da Roma antiga, ambiente ao qual essa terminologia encontra sua origem. Isso, pois  
a antropologia tem como uma de suas promessas a utilização de “termos nativos” que  
são correspondentes à forma pela qual as próprias comunidades investigadas  
nomeiam a si mesmos. Isso para dizer que o exercício feito por Morgan de se referir à  
unidade social básica iroquesa sob o termo de “gens”, e não à alguma nomenclatura  
nativa, é impensável na forma como são pensadas e elaboradas as pesquisas  
etnográficas hoje no interior da organização iroquesa, a saber, normalmente é  
referenciada pelo termo “clãs”. Por isso, é necessário colocar as formas de tratamento  
de Morgan, essas, em certa medida aderidas por Marx, em seu próprio tempo, para  
que não se reproduza, hoje, um exercício anacrônico. O que deve ser dito de modo  
adicional, no entanto, é que há uma razão específica que motiva esse tipo de  
empreendimento por Morgan: a tentativa de dar inteligibilidade comparativa aos  
tratamentos distintos e isolados que eram realizados por teóricos que o antecederam.  
Apesar disso, a utilização daqui em diante do termo “gens” se justificava na opção por  
tratar, de modo fidedigno, as opções expositivas e terminológica dos autores, mesmo  
que tenhamos discordâncias com tais opções.  
Dito isso, para fins de compreensão, o lugar da gens em uma classificação de  
escalonamento iroquês, segundo Morgan seria como unidade social que, a partir de  
seu agrupamento, formaria uma fratria; que por sua vez, ao lado de outras fratrias  
constituiria uma tribo; por fim, um agregado de tribos poderia formar uma  
confederação. Ou seja, no interior da classificação morganiana sobre os iroqueses  
podemos notar a existência de gens, fratrias, tribos e confederação, vínculos de  
organização que atuam de maneira concomitante e que, em suas relações sociais,  
constituem a totalidade de uma organização. Para Engels (2019, p. 147), essa  
organização “nada mais é que um agrupamento próprio nascido naturalmente, e capaz  
Verinotio  
136 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
de resolver todos os conflitos que podem surgir dentro da sociedade organizada dessa  
maneira”.  
Essa forma clássica de organização social pôde ser observada por Morgan entre  
os Iroqueses, mas o autor em questão encontrou correspondências através de  
materiais para além do território ameríndio. Ressaltar essa informação é necessário na  
medida em que Morgan foi aquele que deu uma inteligibilidade consistente às  
especificidades desses diferentes grupos escalonais no interior de uma organização  
social. Uma primeira distinção que antecedeu Morgan no sentido de compreender essa  
forma social foi a cisão estabelecida por McLennan ao dividir essas sociedades entre  
exogâmicas ou seja, aquelas em que o casamento eu seu interior é proibido e  
endogâmicas nas quais o casamento no interior da organização gentílica é permitido.  
Nas pesquisas que antecederam as investigações de McLennan e Morgan, termos como  
“tribo”, “clã”, “gens”, “thum”, entre outras expressões grupais de sociabilidades eram  
utilizados de maneira indiferenciada, o que causava ao leitor um entendimento de que  
esses termos poderiam ser sinônimos.  
A título de elucidação, podemos sugerir a seguinte representação gráfica que  
localiza a tribo onondaga no interior da confederação iroquesa, bem como  
englobamento de suas fratrias e gens.  
Confederação Iroquesa  
Tribos  
Sêneca, Cayuga, Mohawk, Onondaga Oneida e Tuscarora2  
Fratrias  
[da tribo Onondaga]  
Fratria 1 (da gens 1 à 5) Fratria 2 (da gens 6 à 8)  
Gens  
1)Lobo; 2) Tartaruga do Mar; 3) Narceja; 4) Castor; 5) Alvéloa;  
6) Veado; 7) Enguia; 8) Urso  
2 O pertencimento dos Tuscarora na confederação iroquesa só foi admitido por volta de 1722. Essa  
tribo advinha originalmente de outro tronco e, ao ser admitido pelo tronco iroquês, ficou conhecida  
como “o sexto membro”.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 137  
nova fase  
 
Lucas Parreira Álvares  
No exemplo supracitado, podemos concluir que os membros da gens “Tartaruga  
do Mar” pertencem à fratria 1 da tribo Onondaga que, por sua vez, corresponde a uma  
das seis tribos da confederação iroquesa. Do mesmo modo, os membros da gens  
“Enguia” pertencem à fratria 2 da tribo Onondaga que, também por sua vez,  
novamente corresponde a uma das seis tribos da confederação iroquesa. Do mesmo  
modo, as outras tribos Sêneca, Cayuga, Mohawk, Oneida e Tuscarona também  
possuem suas organizações internas específicas.  
No interior das pretensões morganianas, desvendar as características  
constitutivas da organização gentílica significava o entendimento dos aspectos de uma  
espécie de forma social que precedeu a organização política: se por um lado a  
comunidade gentílica era fundada nas linhagens de parentesco, a organização política,  
por sua vez, se fundava sobre o território e sobre a propriedade.  
Embora seja um empreendimento difícil, no sentido da ausência de materiais  
históricos que o comportam, compreender a origem das gens também é um exercício  
fundamental. Sobre esse aspecto, algumas sutilezas evidenciam distinções entre  
Morgan, Engels e Marx.  
Para o autor de Ancient society, três princípios fundamentais serviram de base  
para constituição da comunidade gentílica. São eles: o laço de parentesco; uma  
linhagem sem cruzamentos assegurada pela filiação matrilinear e a interdição do  
casamento no seio da mesma gens (MORGAN, 1980, p. 86). As características da  
organização iroquesa, baseada numa cooperação real entre seus membros e na  
propriedade comum, acendeu o espírito de Crusoé em Morgan que chegou a afirmar  
que “os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, sem nunca terem sido  
explicitamente formulados, eram os princípios fundamentais da gens” (MORGAN,  
1980, pp. 105-6). Um exercício válido é a percepção, como a tida por Marx (2008, p.  
240), de que “quanto mais remontamos na história, melhor aparece o indivíduo, e,  
portanto, também o indivíduo produtor, como dependente e fazendo parte de um todo  
mais amplo” – e Mesmo Marx se utilizou por vezes do termo “fraternidade” para  
caracterizar a organização gentílica em função da relação de afinidade no sentido de  
“parentesco” – entre seus membros, mesmo que a esse propósito o velho mouro não  
estivesse se remetendo aos princípios da Revolução Francesa; outro, porém, é a  
caracterização de uma forma social antediluviana mediante os pressupostos contidos  
após o dilúvio, ou seja caracterizar os “princípios” de uma organização gentílica  
iroquesa com aqueles formulados e defendidos no interior da sociedade capitalista.  
Verinotio  
138 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
Em uma análise que parte dos pressupostos marxianos, as características  
comunais de uma forma social jamais poderiam ser consideradas à luz de como a  
própria economia política concebia a sociedade civil-burguesa: através dos caçadores  
e pescadores isolados, como nas formulações de Smith e Ricardo. Além do mais, a  
própria compreensão de Marx desses princípios norteadores da Revolução Francesa  
não se conformou de uma forma elogiosa. Ao contrário, ao pressupor as determinações  
da forma social capitalista, Marx aponta de maneira irônica que “a esfera da circulação  
ou troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de  
trabalho é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino  
exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham”: “liberdade” pois  
compradores e vendedores são movidos apenas por seu livre-arbítrio; “igualdade” pois  
se relacionam apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por  
equivalente; “propriedade” pois cada um dispõe apenas do que é seu; e “Bentham”  
pois cada um olha somente para si mesmo (MARX, 2013, pp. 250-1). É evidente que  
essa constatação morganiana é fruto de sua própria concepção do desenvolvimento  
histórico, mas apresentar essa distinção é fundamental para diferenciarmos os  
pressupostos morganianos em relação aos de Marx.  
Voltemos à caracterização por Morgan de três princípios constitutivos da gens:  
o laço de parentesco; uma linhagem sem cruzamentos assegurada pela filiação  
matrilinear e a interdição do casamento no seio da mesma gens. O laço de parentesco  
é, nesse momento de nossa exposição, um elemento óbvio de constituição da  
organização social dessas formas sociais comunais; já sobre a manutenção da filiação  
matrilinear, vimos que a literatura etnográfica posterior a Morgan demonstrou que  
essa afirmação não possui uma base sólida que corresponda, em sua origem, à  
transição de todas as formas sociais para uma forma subsequente; entretanto, o  
terceiro elemento cravado em Ancient society é um pouco mais sensível o que nos  
conduz a fazer uma análise com mediações mais precisas. Antes, porém, é necessário  
compreender a argumentação de Lewis Morgan sobre esse princípio constitutivo da  
gens.  
Em uma argumentação conjectural, Morgan (1980, p. 86) supõe que a  
organização gentílica “deve ter tomado naturalmente a forma de gens organizada em  
pares, porque os filhos dos homens eram excluídos e porque era igualmente necessário  
organizar as duas classes de descendentes”. Assim, a interdição do casamento no seio  
da mesma gens foi um princípio que teria justificado seu surgimento na medida em  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 139  
nova fase  
Lucas Parreira Álvares  
que seria necessário aos membros de uma gens casarem com integrantes de, no  
mínimo, outra gens distinta. Por isso, “duas gens, que nascessem ao mesmo tempo,  
teriam bastado para assegurar toda esta organização, pois que os homens e as  
mulheres de uma delas casariam com as mulheres e os homens da outra”.  
Quando Engels elenca uma série de “costumes” da organização gentílica, o  
autor de A origem faz questão de ressaltar o fato de que nenhum membro da gens  
pode casar dentro dela. Segundo Engels (2019, p. 84), “essa é a regra básica da gens,  
o laço que a mantém unida; é a expressão negativa da consanguinidade positiva, em  
virtude da qual os indivíduos abrangidos por ela se tornam uma gens”. Engels também  
chama a atenção para o fato de que a família punaluana descrita por Morgan teria  
sido a expressão original e elucidativa de uma organização gentílica.  
Em um comentário ao texto de Morgan em seus Cadernos de rascunhos, Marx  
apresenta claramente sua concepção sobre a origem das gens:  
[A gens nasce a partir da necessidade de um grupo promíscuo; assim  
que no interior desse começa a ser rejeitado o matrimônio entre  
irmãos e irmãs, já pode ser identificado a existência da gens sobre o  
grupo, mas não antes; pressuposto da gens: que irmãos e irmãs  
(próprios ou colaterais) já estejam distinguidos de outros  
consanguíneos3]. (MARX, 1972, p. 199).  
O comentário de Marx ressalta imediatamente a rejeição do matrimônio entre  
irmãos e irmãs, ou seja, nosso autor não leva em consideração apenas a relação  
consequente entre duas organizações gentílicas, mas faz questão de evidenciar o fato  
motivador do nascimento da gens enquanto uma disrupção no interior de uma  
comunidade natural e espontânea. Mas o que torna inusitada essa passagem é a  
utilização por Marx do adjetivo “promíscuo” para se referir a essa relação necessária  
para o surgimento do gens. Não seria um exagero estabelecer uma distinção entre a  
argumentação de Marx em relação às de Morgan e Engels tendo como fundamento  
essa especificidade presente na caracterização do velho mouro e ausente nas  
formulações dos outros autores de nossa “trama”. Mas qual o sentido em atribuir  
alguma importância a esse propósito?  
Embora em sua origem o termo promiscous tenha uma descendência do latim  
promiscuus que significa algo como “indiscriminado”, sob uma perspectiva lexical a  
3 Do original: “Aber gens entspringt nothwendig aus einer promiscuous group; sobald innerhalb dieser  
schon intermarriage zwischen Brüdern u. Schwestern entfernt (stopped) zu werden beginnt, kann gens  
gepfropft werden auf d. group, nicht vorher; voraussetz g d. gens, dass Brüder u. Schwestern (own u.  
collateral) bereits von andern consanguinei geschieden sind. Die gens einmal da, bleibt sie unit des  
social system, whd d. familie grosse changes dchläuft”.  
Verinotio  
140 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
utilização por Marx do termo promiscous em seu tempo já denotava uma referência a  
utilização em outro sentido, a saber, sua caracterização atrelado a relações sexuais.  
Assim, Marx não resume sua compreensão acerca da origem das gens apenas em  
função das interdições matrimoniais; ele passa a levar em consideração também o  
impedimento de relações sexuais em uma unidade da comunidade gentílica. Embora o  
matrimônio possa implicar em relações sexuais, essas duas práticas não se confundem,  
e se por um lado a interdição de matrimônios nas gens é conhecida como “exogamia”,  
por outro a literatura antropológica se utilizou de uma denominação que ficou bastante  
conhecida no decorrer do século XX para delimitar essa distinção específica com a  
terminologia exogâmica: a conhecida expressão “proibição – ou tabu – do incesto”.  
Por mais que não se manifeste de maneira relevante em Ancient society, as  
discussões sobre a proibição do incesto já estavam presentes nas concepções de  
Morgan e de outros expoentes de seu campo de conhecimento. Em Morgan a proibição  
do incesto é condicionada pela própria existência da monogamia: a proibição da união  
de membros de uma mesma comunidade gentílica era uma consequência dos sistemas  
exogâmicos, ou seja, estava condicionada à relação matrimonial. Já nas formulações  
de outros teóricos de seu tempo, como o próprio McLennan e Spencer, não havia  
nenhuma relação aparente entre exogamia e proibição do incesto.  
O afastamento do campo antropológico da compreensão da proibição do  
incesto estava atrelado, como exemplificam as concepções de Selligman e  
principalmente Robert Lowie (1953), à concepção de que esse assunto deveria ser  
tratado sobre a órbita das ciências naturais, e não das ciências sociais. Por isso Lévi-  
Strauss (2012, pp. 49-50) retoma a formulação de Morgan no sentido de que este é  
um dos autores que concebe “a origem da proibição do incesto [...] ao mesmo tempo  
natural e social, mas no sentido de resultar de uma reflexão social sobre um fenômeno  
natural”. O lugar da proibição do incesto no pensamento de Lévi-Strauss teve como  
discussão exatamente essa fronteira entre o natural e o social, “a natureza e a cultura”,  
porém, embora esse autor tenha dedicado tal obra à memória de Lewis Morgan, Lévi-  
Strauss deixa evidente suas distinções diante das formulações do autor de Ancient  
society.  
Se distanciando das interpretações precedentes que “procuraram fundar um  
fenômeno universal sobre uma sequência histórica cujo desenrolar não é de modo  
algum inconcebível em um caso particular”, Lévi-Strauss (2012, pp. 60-1), em um  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 141  
nova fase  
Lucas Parreira Álvares  
exercício típico de seu meio4, buscou as “causas profundas e onipresentes [que] fazem  
com que, em todas as sociedades e em todas as épocas, exista uma regulamentação  
das relações entre os sexos”.  
Lévi-Strauss concebe a proibição do incesto como “um fenômeno que apresenta  
simultaneamente o caráter distintivo dos fatos da natureza e o caráter distintivo dos  
fatos da cultura”. Para tanto, o teórico francês parte da compreensão de que “em toda  
parte onde se manifesta uma regra podemos ter certeza de estar numa etapa de  
cultura”, e a partir de seu estruturalismo baseado em oposições duais, a proibição do  
incesto apresentaria indissoluvelmente reunidos “os dois caracteres nos quais  
conhecemos os atributos contraditórios de duas ordens exclusivas, isto é, constituem  
uma regra, mas uma regra que, única entre todas as regras sociais, possui o mesmo  
caráter de universalidade” (LÉVI-STRAUSS, 2012, pp. 45-6). Assim sendo, a proibição  
do incesto, para Lévi-Strauss (2012, p. 63) “é o processo pelo qual a natureza se  
ultrapassa a si mesma [...] forma-se uma estrutura de novo tipo, mais complexa, e se  
superpõe, integrando-as, às estruturas mais simples da vida psíquica, assim como  
estas se superpõem, integrando-as, às estruturas, mais simples que elas próprias, da  
vida animal”, o que acarretaria no “advento de uma nova ordem”.  
A utilização do termo “cultura” nesse contexto, por Lévi-Strauss, se confunde  
com uma eventual utilização do termo “sociedade”. Inicialmente em sua exposição,  
Lévi- Strauss opõe “estado de natureza” a “estado de sociedade”, e posteriormente,  
sob a justificativa de uma mera preferência, lança mão de “sociedade” e opta por fazer  
uso do termo “cultura”, estabelecendo assim essa importante dualidade para seu  
desenvolvimento teórico em Estruturas elementares do parentesco: “natureza/cultura”.  
Para Marx e Lévi-Strauss, a proibição do incesto representa um momento  
histórico disruptivo. Todavia, com suas devidas distinções e mediações: ao passo que  
para Lévi-Strauss essa prática representa a passagem do estado de natureza para o  
estado de cultura, para Marx que não fez uso dessas categorias a proibição do  
incesto representa o nascimento da organização “gentílica”. Mas há algo de comum  
entre a teorização de Lévi-Strauss em Estruturas elementares do parentesco e o  
comentário de Marx presente nos assim chamados Cadernos etnológicos: ambos  
4 Esse esforço de opor uma pretensão de identificação de um nexo universal à investigação histórica,  
em que pese as distinções, é um traço comum de sua matriz francesa, seja aludindo as pretensões de  
Durkheim de desvendar as Formas elementares da vida religiosa ou de Marcel Mauss em investigar Uma  
categoria do espírito humano. Por isso os objetivos de Lévi-Strauss eram, antes de qualquer coisa, a  
identificação das Estruturas elementares do parentesco.  
Verinotio  
142 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
pressupõem a proibição do incesto enquanto um elemento que conduziu a uma nova  
forma de organização social, mesmo que Lévi-Strauss tenha investigado essa categoria  
sob um viés diacrônico5, e Marx tenha se amparado no desenvolvimento histórico.  
Seria irresponsável de nossa parte concluir, baseado em seus Cadernos, que  
Marx teria antecipado as formulações de Lévi-Strauss em Estruturas. Porém, não é  
exagero sugerir que embora partissem de caminhos e interesses distintos, já se faz  
presente nos rascunhos de Marx sobre Morgan uma intuição daquilo que seria  
extensamente desenvolvido por Lévi-Strauss quase 70 anos depois partindo de outros  
pressupostos e sem ter tido contato com esses escritos de Marx. É necessário,  
portanto, compreendermos as especificidades da gens para além de sua origem, traçar  
suas características relevantes e entendermos o seu lugar na organização dessas  
formas sociais específicas que precederam o modo de produção capitalista.  
Baseado na forma iroquesa, tendo como exemplo principal os seneca, Morgan  
enumera alguns elementos característicos das gens. Essas características ressaltam,  
segundo o autor, direitos, privilégios e obrigações. Engels acompanhou, em certa  
medida, a sequência morganiana e Marx, eventualmente, interpelou a exposição do  
antropólogo com algum comentário. Para além das características já apresentadas –  
interdição do matrimônio para Morgan e Engels; proibição do incesto para Marx é  
fundamental que algumas características dessa gens já constituída sejam colocadas em  
evidência.  
3. O Totemismo e a “casuística inata dos homens”  
Uma característica da organização gentílica assinalada por Morgan (1980, pp.  
97-8) que deve ser ressaltada é o direito de dar nomes aos membros da gens. Cada  
gens reservava para si o uso de certos nomes ou de uma série de nomes. Segundo  
Engels (2019, p. 85) a importância dessa caracterização se conforma no sentido em  
que “um nome gentílico implicava de antemão direitos gentílicos”. Além disso, “o nome  
do indivíduo já denotava a gens à qual ele pertencia”. Marx percebeu imediatamente  
o sentido de como o nome gentílico exercia influência nas relações sociais no interior  
da gens. Em uma passagem em que Morgan comenta sobre as características do nome  
gentílico, Marx o interpelou, acrescentando um importante comentário. Vejamos a  
5 Em oposição à noção de sincronia, a noção de “diacrônico”, especialmente em antropologia, refere-se  
à capacidade explicativa de um fenômeno através de especificidades que denotem sua expressividade  
sucessiva e linear. Para mais, cf. Lévi-Strauss (2008).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 143  
nova fase  
 
Lucas Parreira Álvares  
passagem de Morgan e o comentário de Marx:  
Existia entre os shawnee um costume, comum a todos os Miami, aos  
sauk e aos fox, que consistia em dar às crianças, sob certas condições,  
nomes da gens do pai ou da mãe, ou de qualquer outra gens [...] estes  
nomes conferiam aos indivíduos que os usavam os direitos específicos  
dos membros da gens a que o nome pertencia, de modo que era o  
nome que determinava qual a gens pessoa que o usava. [...]. Se uma  
criança fosse batizada com um nome pertencente à gens do pai,  
entrava assim para esta gens e podia ser o seu sucessor, após,  
evidentemente, uma ratificação eletiva. O pai não tinha qualquer  
intervenção nesta matéria. A gens confiava esta tarefa a determinadas  
pessoas, geralmente a certas matronas a quem se devia consultar  
quando se tratava de dar um nome a uma criança e que tinham o  
direito de escolher o nome. Mediante certos acordos entre as gens  
dos sahwnee, estas pessoas podiam escolher os nomes; quando um  
nome era atribuído segundo as regras prescritas, a criança tornava-  
se membro da gens a que o nome pertencia [Casuística inata do  
homem para mudar as coisas trocando os nomes! Encontrar um  
escape para romper a tradição sem sair da tradição quando um  
interesse real oferece um motivo poderoso para ele6]. (MARX, 1972,  
p. 181; MORGAN, 1980, pp. 202-3)  
A prática entre os shawnee é excepcional, mas o comentário de Marx revela  
uma informação importante acerca das nomeações no interior de uma comunidade  
gentílica: os nomes não são imutáveis, ao contrário, existem uma série de  
possibilidades que podem motivar a substituição ou alteração da nomenclatura de  
membros da gens. Mas não são as mudanças de nomes que provocam contradições  
no interior dessas formas sociais, ao contrário, são exatamente os antagonismos no  
interior da gens que implica no ato da mudança de nomes. A provocante interpelação  
de Marx nos demonstra que uma nova nomenclatura gentílica pode estar atrelada a  
um lugar na organização social de determinada gens. Nesse sentido, Morgan (1980,  
p. 99) ressalta que “as precauções que rodeiam o uso de nomes específicos de uma  
gens prova, suficientemente a importância que lhes é atribuída e os direitos gentílicos  
que conferem”. A utilização de um nome gentílico revela, por sua vez, os vínculos que  
unem os membros de uma gens. Como os nomes das gens correspondiam a séries  
naturais animais, plantas, etc. o nome gentílico provocou, por vezes, a crença de  
6 Do original “Eingeborne casuistry of man to change things by changing names! U. Schlupfwinkel zu  
finden um innehalb der Tradition die Tradition zu durchbrechen, wo actual interest powerful motive dazu  
gab”. Quando traduzimos essa passagem, acreditamos que embora fizesse mais sentido a utilização da  
expressão “casuística inata”, uma tradução também rigorosa poderia optar por “casuística nativa”. Mas  
o termo “Eingeborne” tem dois sentidos principais: 1) nascido em um lugar, em um país, etc., ou seja,  
nativo; 2) nascido com a pessoa, ou seja, inato, sendo este o uso mais erudito da palavra. Assim,  
optamos por utilizar o termo “inato” em detrimento de “nativo” – da mesma forma, a tradução em  
espanhol dessa passagem também conservou o “inato”. Somos grato ao tradutor Nélio Schneider pela  
contribuição a essa nossa dúvida.  
Verinotio  
144 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
que existia um vínculo místico entre a gens e aquele ser natural correspondente a seu  
nome gentílico. A literatura tratou de caracterizar essa suposta correspondência  
natural aos nomes gentílicos como totem; já a presunção de uma associação real entre  
o totem e o conjunto de relações de uma determinada organização gentílica foi  
denominada de “totemismo”.  
Investigado por autores consagrados como Freud e Durkheim, o assim chamado  
“totemismo” foi concebido pela órbita do conhecimento antropológico sobretudo em  
função de sua matriz americana. Essa temática foi fruto de estudos e inquietações a  
partir da segunda metade do século XIX, inicialmente como uma chave que forneceria  
alguma inteligibilidade à organização social dos povos investigados por etnógrafos e  
etnólogos tendo como fundamento uma homologia de relações metonímicas entre  
duas séries, uma social seres humanos e outra natural espécies ou fenômenos  
da natureza.  
Quando Morgan tratou da gens dos Ojibwa em Ancient society, disse que na  
língua desse povo “a palavra totem, que se pode pronunciar também dodaim, significa  
símbolo ou divisa de uma gens”, desse modo, “uma cabeça de lobo seria o totem da  
gens do Lobo. Por isso Schollcraft em History of Indian tribes empregou a  
expressão ‘sistema totêmico’ para designar a organização gentílica”7 (MORGAN, 1977,  
p. 198). Para compreendermos como exemplo, as vinte e três gens dos Ojbwa  
enumeradas por Morgan e transcritas por Marx correspondiam às seguintes séries  
naturais:  
1) Lobo; 2) Urso; 3) Castor; 4) Tartaruga (do lodo); 5) Tartaruga (de água  
doce); 6) Tartaruga (pequena); 7) Rena; 8) Narceja; 9) Grou; 10) Milhafre; 11)  
Águia; 12) Mergulhão; 13) Pato; 14) Pato; 15) Serpente; 16) Rato Almiscarado;  
17) Marta; 18) Garça Real; 19) Cabeça de Touro; 20) Carpa; 21) Peixe-gato; 22)  
Esturjão; 23) Lúcio.  
Assim, segundo a literatura da segunda metade do século XIX e início do XX  
havia um sentido na adoção dessas nomenclaturas naturais ou no caso específico,  
animais na organização social de uma determinada comunidade gentílica. Podemos  
7 Sobre o termo em si, Lévi-Strauss (1975, p.28) acrescenta: “Sabe-se que a palavra totem foi formada  
a partir do ojibwa, língua algonkin da região ao norte dos Grandes Lagos da América do Norte. A  
expressão ototeman, que significa aproximadamente ‘ele é de minha parentela’, se decompõe em: o  
inicial, sufixo da terceira pessoa, -t- epêntese (para evitar a coalescência das vogais, -m- possessivo, -  
na- sufixo da 3ª pessoa; enfim, -ote- que exprime o parentesco entre Ego e um parente consanguíneo,  
macho ou fêmea, definindo pois o grupo exogâmico no nível de geração do sujeito.”  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 145  
nova fase  
 
Lucas Parreira Álvares  
supor que uma análise de William H. Rivers a partir do sistema totêmico dos Ojbwa  
compreenderia três dimensões consequentes das homologias totêmicas: a primeira  
delas seria uma dimensão social, que corresponderia a uma conexão dessas espécies  
animais com um grupo específico da comunidade gens 1 = lobo; gens 3 = castor;  
gens 20 = carpa etc.; uma dimensão psicológica, que exprimiria uma suposta relação  
de parentesco entre os membros de gens e os animais do sistema de classificação  
totêmico baseado na concepção de que os membros das gens seriam descendentes  
desses animais por filiação por exemplo: gens 1 descende do lobo; gens 3 descende  
do castor; gens 20 descende da carpa, etc. ; e por fim uma dimensão ritual, em que  
haveria uma interdição manifesta, por parte dessas gens em se alimentar do animal  
que corresponderia a sua homologia totêmica ou seja, gens 1 não poderia se  
alimentar do lobo; gens 3 não poderia se alimentar do castor; gens 20 não poderia se  
alimentar da carpa, e assim sucessivamente8. Embora habituado com a terminologia,  
Morgan parece não ter dado muita importância, assim como a literatura de sua época,  
à temática do “totemismo” – ou pelo menos não a partir desses termos. Morgan  
parecia resistente em se utilizar dessa denominação que, posteriormente, tornou-se  
uma categoria importante para a história do pensamento antropológico ainda que  
de maneira crítica. A expressão “sistema totêmico”, em Morgan (1977, p. 198) “seria  
perfeitamente aceitável se não dispuséssemos de uma terminologia em latim e grego  
capaz de exprimir cada qualidade e característica de um regime que pertence já à  
história”.  
Uma das supostas contribuições do teórico estadunidense ressaltada por Engels  
foi, todavia, exatamente o entendimento de que haveria uma correspondência entre as  
“associações gentílicas designadas por nomes de animais9 em uma tribo de índios  
americanos” e as gens gregas e romanas, de tal modo que “a forma americana é a  
original, e a greco-romana, a posterior, derivada; de que toda a organização social dos  
gregos e dos romanos da era primeva, subdividida em gens, fratria e tribo, tem um  
paralelo exato na organização social dos índios americanos” (ENGELS, 2019, p. 83),  
ou seja, que a organização social baseada num sistema totêmico seria um estágio  
8 Esse é apenas um exercício ilustrativo. De acordo com os dados etnográficos, não foi notado, entre os  
ojibwa, “a crença de que os membros do clã fossem descendentes do animal totêmico; e este não era  
objeto de culto” (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 30).  
9 Essas associações não eram apenas designadas por “nomes de animais”, podendo ser observadas  
também algumas nomenclaturas como “montanha”, “nuvens”, “rio” etc. para designá-las. Por esse  
motivo, a literatura antropológica optou por tratar essa homologia como uma “série natural”.  
Verinotio  
146 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
originário das formas sociais o que exerceria uma importante influência na  
organização social da gens.  
Marx, por outro lado, parece ter tido uma maior atenção a esses sistemas  
totêmicos. Nas anotações sobre Lubbock incluídas nos chamados Cadernos  
Etnológicos - Marx transcreveu todas as passagens em que o Barão de Avebury tratou  
sobre o totemismo, este que seria um dos estágios evolutivos da história da religião  
para esse autor10. Em seus fichamentos de Morgan, fez questão de anotar as  
passagens em que o teórico estadunidense tratou do totemismo nesses termos além  
de transcrever todas os trechos de Ancient society nos quais, a partir de materiais  
etnográficos, Morgan apresentou alguma relação entre uma série social e uma série  
natural. Além disso, em algumas ocasiões em que Morgan estabeleceu uma relação  
totêmica em seu texto, Marx acrescentou o termo “totem!” entre parênteses  
seguidamente à passagem de Ancient society. Para além das próprias transcrições,  
Marx fez alguns comentários pertinentes não só para sua própria concepção do que  
se trataria o chamado sistema totêmico como também para a compreensão do modo  
pelo qual essa temática era trabalhada naqueles anos.  
Uma primeira inquietação de Marx apresentada em seus Cadernos levou em  
conta esse caráter originário que os sistemas totêmicos teriam tido com as relações  
de parentesco através de uma suposta filiação entre a gens de uma determinada série  
natural e a própria personificação dessa série, ou seja, para continuarmos com os  
Ojibwa enquanto uma referência em nossa exposição, de que a “gens lobo”  
descenderia da “série natural lobo”.  
[Dado que o encadeamento das linhagens, especialmente no  
surgimento da monogamia, se apresenta como algo distante e a  
realidade do passado é espelhada num reflexo fantástico de uma  
imagem mitológica, os filisteus e cavaleiros burgueses decidiram e  
decidem que uma genealogia fantástica criou gentes reais!11] (MARX,  
1972, p. 202)  
A passagem por si só teria sua relevância ao notarmos que Marx desenvolve  
10 Os estágios, segundo Lubbock, eram: “ateísmo (inexistência de qualquer noção de matéria) → fetichismo  
(pressão do homem para que a deidade cumpra os seus desejos) → totemismo (adoração de objetos naturais)  
→ xamanismo (distanciamento entre a divindade e os seres humanos) → idolatria ou antropomorfismo  
(deuses adquirindo imagem humana) → divindade convertida em ser sobrenatural → religião (associada à  
moral)”. Para mais sobre a leitura de Marx de Lubbock, conferir o artigo de Gustavo Velloso (2018) publicado  
no primeiro número da Revista Práxis Comunal.  
11 Do original “Weil d. Verkettung der Geschlechter, namentlich mit Anbruch d. Monogamie, in d. Ferne  
gerückt u. d. past reality in mythological Phantasiebild reflectirt erscheint, hence schlossen u. schliessen  
Philister-Biedermän<n>er, dass d. Phantasiegen<e>elogie wirkliche gentes schuf!”.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 147  
nova fase  
   
Lucas Parreira Álvares  
uma crítica explícita ao caráter “fantástico” atribuído à realidade, o que, como sabemos,  
não é uma especificidade presente nos Cadernos etnológicos. Mas o que revela uma  
contribuição absolutamente significativa de Marx nessa passagem é o fato de que  
nosso autor chama a atenção não para relação da homologia totem/realidade presente  
nas formas sociais gentílicas, mas sim, pela opção de caracterizar essa genealogia  
enquanto uma acepção advinda dos “filisteus e cavaleiros burgueses” através de uma  
conclusão arbitrária que seria o reflexo, de uma série natural, à origem de descendência  
de uma realidade social. Ou seja, Marx não faz uma crítica ao totemismo enquanto  
categoria presente na sociabilidade de comunidades gentílicas nem mesmo  
pressupõe, em seu comentário, a existência de sistemas totêmicos enquanto  
determinações dessas comunidades. Sua crítica é direcionada ao modo como a  
existência dessas séries naturais ou fantásticas posteriormente atribuídas pela  
denominação de “totemismo” – foi e é compreendida pelos teóricos que se  
defrontaram com essa especificidade.  
Marx antecipa assim as primeiras críticas à categoria antropológica  
“totemismo”, desde as primeiras inquietações que podem ser observadas na literatura  
desse campo de conhecimento no primeiro terço do século XX até dúvidas e  
confrontações do segundo terço desse mesmo século impostas aos assim chamados  
“sistemas totêmicos” que provocaram, senão um fenecimento dessa temática enquanto  
uma chave de compreensão de organizações sociais de comunidades gentílicas, no  
mínimo um descrédito àqueles que se enveredavam a esse propósito.  
Em sua importante obra Primitive society, de 1920, Robert Lowie se dedicou a  
questionar os postulados sobre o totemismo que o antecederam. A esse propósito,  
teve como referência as formulações acerca dos sistemas totêmicos elaboradas por Sir  
James Frazer e Alexander Goldenweiser, dois importantes expoentes da Antropologia  
que acreditam, cada qual a seu modo, em uma correspondência entre as relações  
totêmicas e a organização social dos clãs – ou das “gens”, como preferiria Morgan.  
Quanto ao empreendimento de Frazer, Lowie (1920) criticou o modo como o autor de  
O ramo de ouro, através de uma comparação imprecisa de diversos sistemas totêmicos,  
procurou investigar uma suposta origem dessa especificidade que ele considerava  
como uma categoria primitiva. Quanto a Goldenweiser, Lowie reconheceu a validade  
de alguns aspectos de sua exposição, mas criticou a conexão estabelecida pelo autor  
entre o papel dos sistemas totêmicos e a organização social, o que o levou a assumir  
um não convencimento, “apesar da perspicácia e da erudição que tem sido destinada  
Verinotio  
148 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
a este fim, de que a realidade do fenômeno totêmico foi demonstrada” (LOWIE, 1920,  
p. 145). Essa posição de Lowie segue no mesmo sentido de uma crítica que ele fizera  
alguns anos antes não àqueles que criavam uma suposta realidade totêmica, mas sim,  
aos que se utilizavam desse mesmo procedimento ao postularem a existência de  
instituições em formais sociais em que elas não estivessem pressupostas: “é necessário  
saber se estamos comparando realidades culturais ou meras criações de nossos modos  
lógicos de classificação” (LOWIE, 1912, p. 41), ou seja, um questionamento que  
poderia ser também fortuito aos sistemas de parentesco e que, a propósito, se  
aproxima da crítica marxiana aos “filisteus e cavaleiros burgueses”.  
Em Totemismo Hoje, obra que revolucionou o tratamento a essa temática na  
história do pensamento antropológico, é novamente Lévi-Strauss quem coloca em  
questão os pressupostos da tradição que o antecedeu no que se refere ao tratamento  
dado aos sistemas totêmicos. Se aqueles teóricos tratavam o totemismo enquanto uma  
relação metonímica, ou seja, associando a prática a partir da inspiração em um figura  
de linguagem que possibilita a substituição de um termo por outro, Lévi-Strauss  
(1975, p. 39) inova ao dizer que o sentido dos totens em sociedades que fazem uso  
dessas categorias não opera sob uma lógica metonímica, mas sim, metafórica, afinal,  
a relação entre os sistemas totêmicos e a organização social dos clãs seria  
necessariamente descontínua e distanciada12: “dizer que o clã A ‘descende’ do urso e  
que o clã B ‘descende’ da águia nada mais é que uma maneira concreta e abreviada  
de colocar o relacionamento entre A e B como análogo a um relacionamento entre  
espécies”.  
Essa constatação correta de Lévi-Strauss não contraria a suposição de Morgan  
de que haveria uma similaridade entre as gens gregas e as gens iroquesas no sentido  
de que em ambas seria possível observar, em suas origens, uma correspondência entre  
as “associações gentílicas designadas por nomes de animais”. Por outro lado, a  
descoberta de Lévi-Strauss trouxe uma forma de inteligibilidade ao tratamento dos  
sistemas totêmicos que propiciou aos expoentes do pensamento antropológico o  
questionamento constante de outras categorias presentes naquelas formas de  
sociabilidade investigadas.  
12  
É importante ressaltar a conexão íntima que o estruturalismo de Lévi-Strauss - tal como próprio  
estruturalismo em si - possui com as teorias da linguagem, tendo sua origem nas elaborações de  
Ferdinand de Saussure que intuía a necessidade de autonomização dos estudos linguísticos.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 149  
nova fase  
 
Lucas Parreira Álvares  
4. A “invenção de soberanos”  
Na esteira das caracterizações gentílicas enumeradas por Morgan (1980, pp.  
89- 92), outra que nos é importante nesse momento é a autonomia gentílica em eleger  
o que era entendido como “duas espécies de chefes”: o primeiro deles era o sachem,  
uma função hereditária na gens, provida sempre que havia uma vacância no cargo –  
Engels (2019, p. 84) optou por referenciar ao sachem como “chefe de paz”. Marx  
indaga:  
“[O fato de que a eleição dos Sachems se deu de maneira hereditária  
em algumas gens não provém de que certas gens eram as mais  
comuns a todas as tribos?13]” (MARX, 1972, p. 167)  
Embora não haja uma comprovação do questionamento de Marx, a função do  
sachem, segundo Morgan (1980, pp. 89-90) “encontrava o seu fundamento natural  
na gens que, como corpo organizado de consanguíneos, tinha necessidade, enquanto  
tal de um chefe representativo”. A função do sachem era bem definida: zelar  
permanentemente pelas necessidades dos membros das gens. De certo modo ela  
complementava as funções atribuídas ao outro cargo eleito, o “chefe propriamente  
dito”. Concedido a partir de um suposto mérito individual daquele membro da gens  
eleito, o chefe propriamente dito podia ser eleito também de maneira exterior à gens.  
Engels preferiu tratar esse como “chefe guerreiro”, sobretudo em função da  
participação do representante desse cargo nos conflitos em que a comunidade  
gentílica se inseriu. Outra característica gentílica elencada por Morgan possui total  
relação com a anterior: o direito de destituir o sachem e o chefe. Esse direito era  
reservado aos membros da gens, e quando um sachem ou um chefe eram destituídos  
de seu cargo pelo conselho da tribo, o destituído volta a desempenhar o papel de  
membro comum na gens, assim como todos aqueles que não eram chefes.  
A obrigação recíproca de ajudar e defender os membros da gens, bem como  
obter reparação dos danos sofridos por estranho, é uma quarta característica da  
organização gentílica elencada por Morgan (2019, pp. 94-6) e enfatizada por Engels  
(2019, p. 85). A proteção do indivíduo deveria ser assegurada pela gens, assim, na  
medida em que um membro era ferido, quem o ferisse estaria atingindo toda a  
organização gentílica. Da mesma forma, se um externo assassinasse um membro da  
gens, a primeira consequência seria uma tentativa de mediação entre a gens do  
13 Do original “Das Erblichmachen d. Wahl d. Sachems in certain gentes, does it not spring davon, dass  
certain gens most common allen tribes?”  
Verinotio  
150 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
assassino e o conselho da gens do assassinado. Morgan demonstra que era comum  
essa compensação ser proposta em forma de manifestações de pesar e presentes  
consideráveis à gens da vítima. Se as compensações fossem aceitas, o conflito se  
resolveria; se não, a gens ofendida podia nomear um ou mais vingadores que tinham  
o dever de perseguir e executar o assassino. Caso essa vingança fosse concluída, a  
gens do assassino morto não teria o direito de levantar queixa junto ao conselho. Para  
Marx, esse processo era uma [Forma modificada da vingança de sangue!14]MARX,  
1972, p. 151).  
A existência desse conselho da gens era também uma característica específica  
dessa forma de organização. Todos os membros, homens e mulheres, tinham o mesmo  
direito de voto, seja para decidir sobre a vingança de morte de um assassino  
proveniente de uma gens externa, ou mesmo para eleger e destituir o sachem e o  
chefe. Em suma, assinala Engels (2019, p. 86), o conselho “representava o poder  
soberano na gens”.  
Essas atividades do conselho da gens se confundiam com as das fratrias. Porém,  
o mesmo não acontecia com os conselhos das tribos e da confederação. Entre os  
atributos políticos da tribo estão os direitos de instalar solenemente no cargo os  
sachems e líderes guerreiros eleitos pelas gens e destituir dos cargos esses ocupantes,  
ainda que contra a vontade (ENGELS, 2019, p. 89). Por mais que essa seja uma  
característica proveniente da organização iroquesa, Morgan nota que cargos  
semelhantes poderiam ser notados entre os gregos e os romanos, o que também podia  
ser percebido era uma incapacidade, por parte dos intérpretes, de tratarem dessas  
formas sociais a partir de suas próprias determinações. Acerca da chefia entre os  
romanos, Morgan apresenta algumas passagens de Mommsen que parecem não terem  
agradado Marx.  
Segundo Mommsen, todas essas comarcas (leia-se tribos) eram  
politicamente independentes [asno!15] nos tempos mais antigos, e  
governado por seus soberanos [Mommsen, inventor de soberanos;  
leia-se chefe da tribo16] com a assistência do conselho dos anciãos e  
da assembleia dos guerreiros. (MARX, 1972, p. 224; MORGAN, 1974,  
p. 16)  
Novamente vemos um comentário de Marx não a uma especificidade  
proveniente de uma organização gentílica, mas sim, do modo como os intérpretes a  
14  
Do original “Veränderte Form der Blutrache!”.  
15 Do original “asinos!”.  
16 Do original “Prinzerfinder Mommsen; read chief of the tribe”.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 151  
nova fase  
     
Lucas Parreira Álvares  
concebiam. A opção por parte de Theodor Mommsen também possuído pelo espírito  
de Crusoé – de denominar aquele que exercia a chefia tribal sob o título de “soberano”,  
ou seja, uma atribuição originalmente utilizada em formas sociais que pressupõem a  
existência de um Estado, incomodou Marx. Se há algo constante nos comentários  
provenientes dos chamados Cadernos etnológicos de Marx é exatamente esse  
incômodo por parte das Robinsonadas dos intérpretes. Mas voltando à organização  
social entre os Iroqueses, vejamos quais são as atribuições da Confederação dessa  
etnia.  
Por ser a maior unidade da comunidade gentílica, a Confederação possui grande  
parte de seus atributos relacionados à organização política. Dentre eles a existência  
de um “órgão da confederação” através do qual por volta de 50 sachems formavam  
um conselho sem hierarquia entre seus participantes e sem uma pessoa exercendo a  
liderança durante esse encontro de tribos. Segundo Engels (2019, p. 91) a partir das  
formulações de Morgan (1980), todas as decisões do conselho confederativo tinham  
de ser tomadas por decisão unânime; o processo de votação era realizado por tribos,  
e cada um dos cinco conselhos tribais podia convocar o conselho confederativo. O  
interessante a ser ressaltado é que as sessões deste conselho eram realizadas com  
direito à participação e voz de qualquer iroquês presente na reunião.  
Existe, porém, uma característica da organização gentílica que ainda não foi  
mencionada e que constantemente se manifestam como um atributo exótico dessas  
formas sociais por parte de seus intérpretes. Nos referimos às especificidades  
religiosas da comunidade gentílica. Através de sua conformação em diferentes épocas  
históricas e em distintas formas sociais, poderemos acompanhar também os elementos  
que foram determinantes para o processo de dissolução da gens.  
5. “O aroma do incenso”: o fetiche religioso e a dissolução da gens  
O processo de dissolução da comunidade gentílica foi comentado por Marx em  
algumas intervenções ao texto de Morgan. Em uma das mais provocantes passagens,  
Marx chega a uma conclusão que não se apresenta de maneira expressa em Ancient  
Society: no momento em que Morgan caracteriza a gens grega, Marx o interrompe  
fazendo uma constatação, a partir daquela característica gentílica, a um elemento de  
continuidade na circunstância de dissolução da gens. Vejamos a passagem de Morgan  
acrescida do comentário de Marx:  
“Na gens tiveram origem as atividades religiosas dos gregos que se  
Verinotio  
152 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
desenvolveram nas fratrias e culminaram em festividades periódicas  
comuns a todas as tribos Fustel de Coulanges [O miserável  
elemento religioso se converte no aspecto principal da gens à medida  
que acabam a cooperação real e a propriedade comum; o que resta é  
o aroma do incenso17]”. (MARX, 1972, p.202; MORGAN, 1980, p.  
277)  
Marx demonstra que, no processo de dissolução da comunidade gentílica,  
aqueles elementos que antes caracterizavam o caráter fraterno desta forma social –  
como sua “cooperação real” e sua “propriedade comum” – são rompidos. Ou seja, na  
medida em que são impostas mediações entre o membro da gens e a obtenção de  
seus meios de vida, findam aquelas características que eram condizentes com relações  
de parentesco da gens, que por sua vez serviam enquanto forças produtivas para a  
produção social por meio de sua atividade vital. O que resta, desse processo, é apenas  
“o aroma do incenso”, ou em outras palavras, “o miserável elemento religioso”. Na  
medida em que a chama da dissolução alcança a gens, apenas esse aroma religioso  
permanece.  
O curioso é que esse comentário de Marx a Morgan reflete o avesso do que  
Marx (2013, p. 154) diz em O capital para se referir a uma circunstância oposta: “o  
reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as relações cotidianas  
da vida prática se apresentam diariamente para os próprios homens como relações  
transparentes e racionais que eles estabelecem entre si e com a natureza”. Eis uma  
distinção nítida entre essas formas sociais comunais por vezes erroneamente  
caracterizadas como “comunismo primitivo” – e uma forma social baseada na  
superação do modo de produção capitalista: embora as formas comunais  
pressuponham uma relação imediata entre o homem e a obtenção dos seus meios de  
subsistência, a ausência de controle consciente das condições de vida impõe  
obstáculos para a superação do elemento religioso em sua própria sociabilidade. Mais  
do que como um obstáculo, a existência de características místicas é um pressuposto  
dessa forma social, afinal, conforme assinala Marx (2013, p. 154), o “baixo grau de  
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho”  
e
as “relações  
correspondentemente limitadas dos homens no interior do seu processo material de  
produção de vida, ou seja, pelas relações limitadas dos homens entre si e a natureza  
[...] se reflete idealmente nas antigas religiões naturais”. O comunismo, por outro lado,  
não possui uma relação material imediata entre o homem e a obtenção dos seus meios  
17 Do original “Das Lumpige religiöse Element wd Hauptsache bei gens, im Mass wie real cooperation  
u. common property alle werden; d. Weihrauchsduft, der übrig bleibt”.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 153  
nova fase  
 
Lucas Parreira Álvares  
de vida, todavia os homens, comunitária e racionalmente, compreendem e controlam  
tal mediação.  
Diante do grau de desenvolvimento das formas produtivas em uma sociedade  
que adota o modo de produção capitalista, uma ruptura com as relações reificadas da  
ação individual “aparece como possibilidade, ao mesmo tempo em que a vigência do  
modo de produção capitalista é um obstáculo à realização efetiva dessa potência  
emancipatória” (SARTORI, 2018, p. 47). Isso justifica o comentário de Marx ao livro de  
Morgan na medida em que por mais que nas formas sociais comunais existissem  
características fraternais comunidade com grande influência dos laços de parentesco,  
ausência de classes sociais e inexistência de mediações entre o homem e a obtenção  
de seus meios de vida – o “miserável elemento religioso” permanece em função do  
baixo grau de desenvolvimento de suas forças produtivas. Assim, quando Marx afirma  
que a supressão do “reflexo religioso de mundo” só pode ruir através de relações  
transparentes e racionais que eles estabelecem social e naturalmente, o que está  
pressuposto nessa constatação é um alto grau de desenvolvimento de forças  
produtivas desta forma social outra, o que nos afasta de uma interpretação em que a  
superação do modo de produção capitalista dever-se-á se realizar através de um  
retorno a uma forma social antiga como o equivocadamente nomeado “comunismo  
primitivo”, por exemplo – e nos aproxima de uma conclusão de que tal superação só  
pode resultar em uma forma social superior e até então inexistente.  
Vimos que o baixo desenvolvimento de forças produtivas em determinada  
forma social implica no fato de que o elemento religioso adquire um alto grau de  
importância. Engels (1960, p. 277) atesta isso em uma carta a Schmidt no ano de  
1890 quando afirma que na base das representações falsas da natureza do elemento  
religioso através dos espíritos e dos poderes mágicos está a constituição de um  
elemento econômico negativo: “o fraco desenvolvimento econômico do período  
histórico tem como complemento, mas também aqui e ali como condição e até como  
causa, as falsas representações da natureza”. Para uma compreensão devidamente  
mediada entre as relações econômicas e religiosas dessas formas sociais é fundamental  
que compreendamos as especificidades desses antigos melindres místicos. No entanto,  
como a religião se conforma em formas gentílicas de sociabilidade e por quê elas  
conseguiram se manter mediante a dissolução do caráter comunal previamente  
existente?  
Vimos por meio de Marx que as relações de parentesco ocupam um papel  
Verinotio  
154 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
fundamental enquanto força produtiva embora em baixo grau de formas sociais  
comunais por meio da organização social do processo de produção. O que acrescenta  
Lévi-Strauss (2011) nas suas Mitológicas é que a organização do mundo subjetivo  
nessas localidades também são amparadas pelas relações de parentesco ali  
constituídas. Embora parta de pressupostos e objetivos distintos dos de Marx, Lévi-  
Strauss demonstra que as relações de seres sobre-humanos estão também vinculadas  
por relações entre pai/filho, tio/sobrinho, marido/esposa, irmão/irmã, entre outros  
laços de parentesco. Mas as conclusões e descobertas do estruturalista francês  
localizam-se temporalmente na segunda metade do século XX; um século antes essas  
mediações eram ainda pouco desvendadas, o que dificultava bastante a compreensão  
dessas especificidades nessas formas sociais. Se existia uma concordância entre as  
concepções de Morgan e de Engels, é que ambos estavam em acordo de que a religião,  
nessas formas de sociedade, ainda tinha sido pouco investigada até a segunda metade  
do século XIX. Para Morgan (1980, p. 140), os sistemas religiosos tinham sido apenas  
parcialmente estudados, e Engels (2019, p. 89) completa dizendo que as concepções  
religiosas desses povos que para o autor de A origem é sinônimo de “mitologia” –  
ainda não tinham sido examinada criticamente. De toda forma, esses autores se  
propuseram a destinar algumas linhas a esse propósito.  
Segundo as informações obtidas por Morgan (1980, p. 141), os iroqueses  
acreditavam na existência de espíritos correspondentes às diferentes espécies de  
árvores e plantas assim como às águas correntes em resumo, como já vimos  
anteriormente, um paralelo com seres naturais. Para o autor de Ancient society, “a  
existência destes múltiplos espíritos e dos seus atributos eram percebidos de uma  
maneira confusa”. Segundo Engels (2019, p. 89), “trata-se de um culto à natureza e  
aos elementos que tende ao politeísmo”. O que esses dois autores ressaltam é que  
não existia ali uma representação humana figurada o que os estudos religiosos  
posteriormente trataram como “ídolo”. Esse atributo seria uma regra geral, segundo  
as concepções de Morgan, das tribos pertencentes à fase inferior da barbárie, o que  
já não podia ser constatado entre os astecas que já tinham superado esse estágio: “os  
astecas tinham deuses pessoais, representados por ídolos, que adoravam nos templos.  
Se conhecêssemos com precisão os pormenores do seu sistema religioso, poderíamos  
provavelmente mostrar como esse sistema se desenvolveu a partir das crenças  
difundidas nas tribos índias”.  
É importante ressaltar essas distinções entre formas sociais que correspondem  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 155  
nova fase  
Lucas Parreira Álvares  
a tipos distintos de cultos religiosos na medida em que a crítica marxiana à religião é  
um assunto bastante difundido o que não quer dizer que seja bem compreendido.  
Na Introdução” à Crítica da filosofia do direito de Hegel, o pressuposto crítico de Marx  
é a Alemanha, país esse que refletia uma forma social cujo elemento religioso já estava  
pressuposto como uma representação humana figurada: “o homem, que na realidade  
fantástica do céu, onde procurava um super-homem, encontrou apenas o reflexo de si  
mesmo, já não será tentado a encontrar apenas a aparência de si, o inumano, lá onde  
procura e tem de procurar sua autêntica realidade” (MARX, 2005, p. 151). Isso não  
quer dizer que a crítica marxiana à religião não tenha relevância para formas sociais  
precedentes. Porém, é necessário que se estabeleça mediações para tal  
empreendimento, sobretudo na medida em que não só trata-se de aparatos religiosos  
distintos, como também de formas sociais diferentes18. Vejamos, portanto, como se  
conforma as práticas religiosas nessas formas sociais que as distinguem da sociedade  
civil burguesa.  
Na época da trama que envolvia Marx, Engels e Morgan, a compreensão das  
determinações religiosas primitivas tinham um amparo em algumas informações  
anteriores advindos de viajantes, missionários e aventureiros que descreviam  
principalmente os traços religiosos de povos da África ocidental. Era perceptível como  
que nas tribos daquela localidade praticava-se um culto a objetos que não  
representavam divindades figuradas, mas sim, seres naturais, como animais, plantas,  
montanhas, etc. Diante dessa prática específica, as referências a essa forma religiosa  
eram tratadas sob a alcunha de “fetiche”.  
Para a compreensão do fetiche, é necessário nos refugiarmos “na região  
nebulosa do mundo religioso” (MARX, 2013, p. 148). Sabe-se que Marx, nos primeiros  
meses ano de 1842 ou seja, num momento em que os escritos marxianos ainda  
refletiam os pressupostos hegelianos de seu autor leu uma tradução alemã da  
importante obra Du culte des dieux fétiches, de Charles De Brosses, originalmente  
publicada em 1760. A obra de Charles De Brosses influenciou consideravelmente a  
literatura posterior sobre a religião e sua importância pode ser ressaltada justamente  
na medida em que esse autor foi precursor em se utilizar do termo “fetiche” para se  
referir a culto religiosos que tinham um ser natural como um objeto a se fazer  
18 Essa observação é necessária na medida em que há autores sérios como Pires (2009) embora não  
pertencente à tradição marxista que extraem da “Introdução” à Crítica à filosofia do direito de Hegel  
uma crítica marxiana às religiões de formas sociais que precederam ao modo de produção capitalista.  
Verinotio  
156 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
referência - sejam seres inanimados, animais, ou mesmo seres dotados de  
características divinas19 - o termo que Marx teve contato, o alemão fetich, possui sua  
raiz etimológica amparada no português “feitiço”. A leitura de Marx da obra de De  
Brosses é a primeira referência que nos fornece evidências, por parte do velho mouro,  
de um contato com um material que trata de práticas religiosas nessas formas de  
sociedades antigas. Não de maneira espontânea, naquele mesmo ano 1842 Marx  
se utilizou do termo “fetichismo” em artigos escritos para a Gazeta Renana periódico  
esse no qual Marx era redator - ao propor um paralelo de determinações do modo de  
produção capitalista com formas sociais precedentes.  
Datado de 10 de julho de 1842, o texto Editorial do n. l79da Gazeta de  
Colônia20 assinado por Karl Marx (1998, p. 232) tratou de uma discussão motivada  
pelas distinções entre as linhas editoriais da Gazeta Renana e da Gazeta de Colônia –  
periódico esse que pertencia a uma localidade semelhante, embora com objetivos  
opostos. A Gazeta de Colônia defendia que era “inadmissível difundir ou combater,  
por meio de jornais, opiniões filosóficas ou religiosas”. Quanto a esse segundo  
aspecto, diziam que “a religião é o fundamento do estado, como a mais necessária  
premissa de toda comunidade social que não esteja orientada apenas para alcançar  
qualquer fim exterior”. Além disso, também definiam o “fetichismo primitivo” como a  
“forma mais tosca” de religião, essa que “eleva o homem a um plano razoável acima  
dos desejos sensoriais, os quais, se ele se deixasse dominar completamente por eles,  
o degradariam à animalidade, tornando-o incapaz de alcançar qualquer fim mais  
elevado”.  
Em defesa da linha editorial da Gazeta Renana, e contra a suposta censura que  
ali estava sendo incitada, Marx contrapôs a formulação de seu adversário editorial.  
Especialmente sobre o “fetichismo primitivo”, e provavelmente influenciado pela leitura  
anterior de De Brosses, Marx (1998, p. 232) comenta a definição apresentada pela  
Gazeta de Colônia: “o fetichismo, longe de elevar o homem sobre os apetites, é muito  
mais ‘a religião dos apetites sensíveis’”. Ainda que não tivesse se defrontado pela  
primeira vez com interesses materiais21, nessa passagem já podemos notar um Marx  
19 Para uma compreensão rigorosa do desenvolvimento histórico do conceito de fetiche, vide Pires  
(2009).  
20 Utilizamos aqui a tradução de Celso Eidt dos textos de Marx enquanto este ainda era membro da  
Gazeta Renana. Tais traduções estão inseridas no anexo da dissertação de mestrado de Eidt (1998)  
defendida no ano de 1998.  
21  
“Em 1842-3, na qualidade de redator da Gazeta Renana, encontrei-me, pela primeira vez, na  
embaraçosa obrigação de opinar sobre os chamados interesses materiais. Os debates do Landtag  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 157  
nova fase  
     
Lucas Parreira Álvares  
crítico a um suposto plano místico ao qual o fetichismo religioso dessas formas sociais  
eram constitutivos. Segundo nosso autor, “a fantasia dos apetites faz crer ao fetichista  
que uma ‘coisa inanimada’ perderá o próprio caráter específico por consentir na  
satisfação de seus apetites”. Apesar da crítica às formulações dos editores da Gazeta  
de Colônia, Marx não deixa de referir ao fetichismo como “uma erudição  
verdadeiramente barata”, em suma: Marx não era um defensor do fetichismo religioso  
dessas formas sociais e nem mesmo defendia sua manutenção em detrimento a outras  
expressões religiosas.  
Quando Marx desenvolve sua crítica à economia política, ele retoma essa noção  
de fetichismo mas não em relação a uma atribuição característica da religião de um  
povo, mas sim, como um atributo específico da sociedade capitalista: o fetichismo da  
mercadoria. Embora já estivesse presente nos Grundrisse, é n’O capital que Marx  
destina um subcapítulo específico para esse tema que, com as devidas mediações  
torna-se possível aos nossos propósitos encontrarmos paralelos com o sentido  
atribuído para Marx ainda na Gazeta Renana.  
Vimos anteriormente que Marx leu a obra Primitive culture de Edward Burnett  
Tylor em suas pesquisas para sua crítica à economia política, e inclusive citou uma  
passagem de Tylor no Livro II de O capital. Uma das formulações dessa obra de Tylor  
foi a hipótese de que a crença em seres espirituais – o que foi tratado como “anima”  
– teria sido a forma mais antiga de religião. A concepção de Tylor sobre o “animismo”  
foi duramente criticada, por vezes reformulada, porém não passou por despercebida  
por parte das tradições de autores de seu tempo que pesquisavam temáticas  
semelhantes às suas. Para os pensadores que acreditavam na concepção animista,  
incluindo Tylor, todas os elementos naturais agiam intencionalmente em função da  
crença de que eles possuíam uma alma. Na interpretação de Kojin Karatani (2016) a  
concepção de “fetichismo da mercadoria” em Marx ressoa com o animismo de Tylor.  
Para o filósofo japonês, o fetiche seria, portanto, uma “força animada”, e não uma mera  
metáfora.  
Por mais que não tenhamos elementos o suficiente para creditar a Tylor certa  
renano sobre os delitos florestais e o parcelamento da propriedade fundiária, a polêmica oficial que o  
sr. Von Schaper, então governador da província renana travou com a Gazeta Renana sobre as condições  
de existência dos camponeses de Mosela, as discussões, por último, sobre o livre-câmbio e o  
protecionismo, proporcionaram-me os primeiros motivos para que eu começasse a me ocupar das  
questões econômicas” (MARX, 2008, p. 48). Para compreender a posição do velho mouro diante desses  
interesses materiais, cf. Marx (2016).  
Verinotio  
158 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
influência na formulação do “fetichismo da mercadoria” presente n’O capital, podemos  
concordar que essa “sutileza metafísica” não aparece como uma mera metáfora. A  
partir das determinações da mercadoria como abstração, Marx (2013) diz que não há  
nada de misterioso nela quando se trata de seu valor de uso, é apenas uma “coisa  
sensível”. Porém, quando concebemos a mercadoria enquanto um objeto possuidor de  
valor de troca, “ela se transforma em uma coisa sensível-suprassensível”, possuindo,  
assim, um “caráter místico”. Mas essa sutileza metafísica da mercadoria não é resultado  
de um agente externo à própria mercadoria, não é uma força subjetiva que lhe impõe  
uma determinação intangível; ao contrário, o caráter místico da mercadoria surge de  
sua própria forma: “a igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material da  
igual objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio da força  
humana de trabalho por meio de sua duração assume a forma da grandeza de valor  
dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se  
efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma  
relação social entre os produtos do trabalho” (MARX, 2013, p. 147). A existência de  
uma relação entre os produtos do trabalho não pode ser compreendida, portanto, sem  
a compreensão da relação entre o trabalhador e seus meios de produção.  
Quando pensamos nesse caráter místico, devemos ter em conta que a  
mercadoria “reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como  
caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais  
que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos  
produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos” (MARX,  
2013, p. 147). Apesar do tratamento em distintas formas sociais, é interessante notar  
que a exposição acerca do fetichismo da mercadoria em O capital não se apresenta de  
maneira distante da própria interpretação que Marx dava ao fetiche religioso: ao passo  
em que o fetichismo da mercadoria não se conforma como uma metáfora e reflete uma  
relação sensível- suprassensível, o fetichismo religioso não eleva o homem sobre os  
apetites, ele é, ao contrário, “a religião dos apetites sensíveis”. É fundamental, para  
estabelecermos essa conexão, compreendermos que há uma distinção absolutamente  
necessária a ser feita: nossa exposição sobre o “fetichismo da mercadoria” e o  
“fetichismo religioso” refletem determinações de formas sociais distintas:  
primeiramente, a forma mercadoria não estava pressuposta em formas sociais que  
subsistiam tendo o fetichismo religioso como caraterística; em segundo plano, o  
fetichismo da mercadoria é uma “sutileza metafísica” exclusiva da forma social  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 159  
nova fase  
Lucas Parreira Álvares  
capitalista. Assim, para Marx (2013, p. 151), “todo misticismo do mundo das  
mercadorias, toda a mágica e a assombração que anuviam os produtos do trabalho na  
base da produção de mercadorias desaparecem imediatamente, tão logo nos  
refugiemos em outras formas de produção”.  
Portanto, se por um lado nas formas sociais que pressupõem o fetichismo  
religioso “os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como  
figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens”, por  
outro, no mundo das mercadorias o caráter fetichista “se cola aos produtos do trabalho  
tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da  
produção de mercadorias” (MARX, 2013, p. 148). Do mesmo modo que o elemento  
religioso tornou-se portanto o “aroma do incenso”, ou seja, se converteu na principal  
característica da gens na medida em que as demais se dissolviam, também podemos  
compreender o fetichismo enquanto o aroma do incenso da mercadoria. Exceto por  
uma obviedade: em formas sociais que adotam o modo de produção capitalista, o  
aroma não é apenas aquilo que restou, pois o incenso ainda se mantém intacto. Por  
mais que nossa compreensão sobre o incenso não perceba visualmente todas suas  
propriedades, seu aroma, embora não seja perceptível pelo nervo óptico, pode ser  
detectado pelo olfato, que também é uma atividade sensível. O capitalismo é, portanto,  
um modo de produção que propõe um afastamento das barreiras naturais na  
sociabilidade humana, ao passo que, até certo ponto, essas formas sociais comunais  
pressupõem seu oposto, mas não de maneira exterior à própria vida em sociedade.  
Todas essas “sutilizas metafísicas” ou “melindres teleológicos” apresentados  
por Marx em O capital não se conformam meramente como uma representação advinda  
de um mundo simbólico, afinal, como constatado por Marx (2007, p. 539) em sua tese  
8 sobre Feuerbach, “a vida social é essencialmente prática [e] todos os mistérios que  
induzem a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana  
e na compreensão dessa prática”.  
6. O surgimento do estado  
A dissolução da comunidade gentílica não se deu de maneira uniforme entre  
todas as localidades nas quais era possível constatar esse tipo de organização social.  
Morgan, a seu modo, demonstrou não só os elementos constitutivos da gens iroquesa,  
grega e romana como também teceu algumas pinceladas acerca de seu processo de  
dissolução. Para esse propósito, as formulações de Marx e Engels são ainda mais  
Verinotio  
160 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
oportunas do que o texto do antropólogo ianque. Isso, baseado em uma importante  
razão: compreender os períodos de transição entre formas sociais é um objetivo  
contínuo da concepção materialista da história. Engels, dispondo de um material ainda  
mais amplo que o antropólogo americano e de maneira ainda mais incisiva,  
compartilhou algumas informações trazidas por Morgan além de acrescentar, em sua  
exposição, as especificidades da dissolução da gens entre os germanos e os celtas.  
Marx, como não poderia deixar de ser, também comentou algumas passagens em seus  
Cadernos de fichamentos.  
A compreensão do processo de dissolução dessas formas sociais é fundamental  
na medida em que há um movimento transitório de sociedades baseadas em laços  
fraternos para formas sociais constituída de relações entre classes. Para Engels (2019,  
p. 94), essa organização gentílica “estava fadada a desaparecer”. Nos utilizando da  
metáfora de Marx (2013a, p.1 54), o processo de dissolução dessa forma social  
configura o momento em que há o rompimento do homem com o “cordão umbilical  
que o prende a outrem por um vínculo natural de gênero”. Os momentos de dissolução  
dessas comunidades gentílicas são, portanto, circunstâncias decisivas no processo  
histórico – Engels, por vezes, o referiu como um momento “revolucionário”. Vejamos  
como se deu esse processo naquelas que foram investigadas pelos autores envolvidos  
nessa “trama” que os articula.  
Quanto à dissolução da gens romana, a escassez de materiais históricos, aliada  
às interpretações suspeitas por parte daqueles que fizeram tal empreendimento,  
dificultaram enormemente a compreensão das especificidades desse período histórico  
transitório. Morgan (1974, p. 31) lamenta dizendo que “ser-nos-ia necessário possuir  
conhecimentos muito mais completos do que aqueles que dispomos sobre a gens  
romana para podermos compreender integralmente as instituições romanas na sua  
origem e no seu dever”. Engels (2019, p. 120), ainda mais enfático, afirma que “em  
virtude da densa escuridão em que a pré-história inteiramente lendária de Roma  
está envolvida, uma escuridão que aumenta consideravelmente com as tentativas de  
interpretação e os relatos pragmático- racionalistas mais recentes de autores com  
formação jurídica que nos servem de fonte, é impossível dizer algo concreto sobre a  
época, o decurso e as circunstâncias da revolução que pôs fim à antiga constituição  
gentílica”.  
Apesar dessa neblina histórica, as características distintas entre a comunidade  
gentílica romana e o estado real fornecem evidências de que foi necessário medidas  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 161  
nova fase  
Lucas Parreira Álvares  
que garantissem principalmente os direitos de propriedade, como uma divisão  
territorial bem estabelecida e a garantia da herança através de posses de bens. Foi a  
partir desse processo que surgiram os conflitos entre patrícios e plebeus em função  
do acesso da garantia de terras por parte do estado, bem como pelo anseio a cargos  
públicos. Em determinado momento, ao tratar da gens romana, Morgan tenta localizar  
suas características apresentando a ausência dos patrícios e dos plebeus naquela  
forma social extinta. Marx comenta a passagem de Morgan deixando claro que a  
referência a essas classes já deveria, por sua vez, ter como pressuposto a dissolução  
da gens romana. Vejamos a passagem de Morgan e a intervenção feita por Marx.  
“Não podiam existir gens patrícias e gens plebeias, [evidentemente  
mais adiante, quando a sociedade gentílica foi abolida22], embora  
certas famílias de uma mesma gens pudessem ser patrícias e outras  
plebeias”. (MARX, 1972, p.230; MORGAN, 1974, p.62).  
No contexto romano, portanto, a sociedade gentílica se converteu em uma  
aristocracia fechada, em meio a uma plebe numerosa, excluída, privada de direitos mas  
consciente de suas obrigações. A consequente vitória histórica da plebe rompeu a  
antiga constituição da gens e sobre as ruínas se ergueu o Estado (ENGELS, 2019,  
p.156). Já entre os iroqueses, Engels (2019, p.94) demonstra que aquela forma social  
gentílica “não ia além da tribo; a confederação das tribos já indicava o começo de seu  
esfacelamento”. Mas esse processo de dissolução da gens iroquesa não se conformou  
através de uma transição simples e apaziguável, ao contrário, deu-se, segundo Engels,  
“por influências que [...] nos parecem uma degradação, uma queda nos pecados das  
alturas morais singelas da antiga sociedade gentílica”. Dessa forma, a configuração da  
sociedade classista entre os iroqueses foi uma consequência dos “interesses mais vis  
a reles ganância, a busca brutal do prazer, a sórdida avareza, o roubo da posse  
comunitária em proveito próprio”. Engels também se utiliza de uma formulação de  
cunho moral para a conformação desse processo histórico entre os iroqueses. Para o  
autor de A origem, “roubo, violação, astúcia, traição” constituíram-se como os “meios  
mais vergonhosos [...] que solapam e fazem ruir a antiga sociedade gentílica sem  
classes”.  
Contudo, no contexto grego a vasta produção literária do período heroico já  
dava indícios de que as determinações da comunidade gentílica naquela localidade já  
configuravam o princípio de sua dissolução. Engels (2019, p.102) elege alguns  
22 Do original “notabene später, als gentile society abolished”.  
Verinotio  
162 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
elementos sequenciais que caracterizavam esse processo de transição: 1) o direito  
paterno, que deixa o patrimônio como herança aos descendentes, favorece o acúmulo  
de riquezas na família e faz com que esta se torne um poder diante da gens; 2) em  
troca, a disparidade de riquezas influencia a constituição, criando os primeiros  
rudimentos de uma nobreza e um reinado hereditários; 3) a escravidão, limitada num  
primeiro momento aos prisioneiros de guerra, já começa a se abrir para a escravidão  
de companheiros da própria tribo e até da gens; 4) a velha guerra de tribo contra tribo  
degenera em rapinagem sistemática por terra e por mar, visando conquistar gado,  
escravos e tesouros, e constituindo-se como verdadeira fonte de renda. E desse modo,  
conclui Engels, a riqueza passa a ser exaltada e considerada como “um bem supremo”,  
o que implica no fato de que “as antigas ordens gentílicas são usadas para justificar o  
roubo violento de riquezas”.  
Faltava apenas um elemento entre os gregos que garantisse uma ruptura diante  
das mudanças que ali aconteciam: uma instituição que desse segurança ao indivíduo  
ateniense em função das riquezas adquiridas contra as tradições da comunidade  
gentílica, “uma instituição que não só santificasse a propriedade privada, antes tão  
menosprezada, e declarasse essa santificação a finalidade suprema de toda  
comunidade humana, como também imprimisse o selo de reconhecimento social  
universal às novas formas de aquisição de propriedade [...]; uma instituição que  
eternizasse não só a divisão da sociedade em classes em surgimento mas também o  
direito da classe possuidora à espoliação da classe não possuidora e à dominação  
sobre ela” (ENGELS, 2019, p.102). A essa instituição demos o nome de “estado”, e  
essa é sua forma histórica clássica23.  
O estado ateniense se desenvolveu, portanto, através de um processo em que  
houve uma reconfiguração dos elementos da comunidade gentílica concomitante a um  
afastamento das características comunais da centralidade ateniense. A consequência  
consciente desses fatos foi, portanto, a dissolução da gens grega. Antes de  
compreendermos algumas especificidades desse processo é necessário, aos nossos  
propósitos, comparar essa transição histórica entre os povos de Atenas e os Iroqueses.  
Estabelecer algumas correspondências entre os gregos principalmente  
atenienses e os iroqueses é um exercício que deve ser feito com mediações,  
23 “Atenas apresenta a forma mais pura, clássica: aqui o estado se origina direta e preponderantemente  
dos antagonismos de classes que se desenvolveram-na própria sociedade gentílica.” (ENGELS, 2019, p.  
156)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 163  
nova fase  
 
Lucas Parreira Álvares  
sobretudo na medida em que essas formas sociais, como a história nos demonstra,  
tiveram desenvolvimentos distintos. Engels (2019, pp. 105-6) demonstra que a  
produção dos meios de vida entre os iroqueses era constante no decorrer dos anos,  
sendo incapaz de gerar conflitos e antagonismos como os que existiram em Atenas.  
Se por um lado entre os iroqueses a produção se movia dentro de limites estreitos,  
entre os atenienses o surgimento da propriedade privada de rebanhos e artigos de  
luxo instituíram, consequentemente, a troca entre indivíduos a partir da transformação  
dos produtos em mercadoria. As distinções entre os gregos e os iroqueses  
demonstram, em última instância, o porquê da existência do estado naqueles e não  
nesses.  
Ao passo em que Morgan focava principalmente nos aspectos territoriais como  
um dos elementos decisivos que motivaram a dissolução da comunidade gentílica  
grega, Marx já ressaltava entusiasticamente o papel da propriedade para o surgimento  
do capital monetário naquela localidade.  
“A impossibilidade de manter os membros de uma gens num mesmo  
território aumentava com a mobilidade das ligações dos indivíduos  
com a terra e com a criação de novos direitos de propriedade em  
localidades exteriores. Aunidade do seu sistema social perdia a sua  
estabilidade residencial, o seu caráter transformava-se [Além de sua  
localidade: as diferenças de propriedade no interior da gens haviam  
transformado a unidade de seus interesses em antagonismos entre  
seus membros; além disso, junto com a terra e o gado, o capital  
monetário passou a ter uma importância decisiva com o  
desenvolvimento da escravidão!24]”. (MARX, 1972, p. 213; MORGAN,  
1980, p. 312).  
Esse processo de dissolução da comunidade gentílica grega também foi uma  
consequência das políticas impostas por Sólon motivadas por reformas consideráveis  
nas dimensões política, social e econômica em Atenas. Morgan (1980, p. 309)  
demonstra que “quando Sólon ascendeu ao arcontado (em 594 a.C.), as enormes  
contradições sociais tinham atingido um nível intolerável”, assim, “uma parte dos  
atenienses tinha caído na escravatura por dívidas, pois, na falta de pagamento, o  
credor podia dispor da pessoa do devedor como escravo”. As políticas de Sólon,  
segundo Morgan, deram “nova vida ao projeto de Teseu de organizar uma sociedade  
dividida em classes [...] segundo a importância da propriedade de cada um”. Embora  
não tenha entrado em detalhes acerca das reformas de Sólon, Engels (2019, p. 108)  
24 Do original “Abgesehen v. locality: die genthumsdifferenz in selber gens htte Einheit ihrer Interessen  
in Antagonismus ihrer members verwandelt; ausserdem war neben Land u. Vieh Geldcapital  
entscheidend wichtig geworden, mit d. Entwicklg der Sklaverei!”.  
Verinotio  
164 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
apresentou em A origem a divisão estabelecida pelo legislador grego no sentido de  
subdividir os cidadãos atenienses em quatro classes tendo como referência a extensão  
da terra que possuíam e sua produção: “500, 300 e 150 medimnos de cereal (1  
medimno = cerca de 41 litros) era a produção mínima para as três primeiras classes;  
quem tinha menos ou nenhuma propriedade fundiária era incluído na quarta classe”.  
A distinção de pressupostos evidentes a partir dessa transformação social é que que  
ao passo em que as comunidades gentílicas baseavam os aspectos hereditários através  
da organização social atrelada a sua linhagem - ou seja, mantinham-se no interior da  
gens a expansão da propriedade e o surgimento de classes em Atenas, como política  
de Sólon, implicou na dissolução sistemática do direito gentílico e o substituiu pelos  
próprios regimentos do poder político centralizado. Mas a influência das políticas de  
Sólon na dissolução da comunidade gentílica grega foi agregada por um outro  
elemento essencial para essa transição histórica.  
Uma das principais causas da dissolução da comunidade gentílica grega a partir  
das políticas de Sólon foi, segundo Morgan (1980, p. 312), os incentivos no sentido  
de atrair para Atenas colonos trabalhadores de outras regiões da Grécia. Essa medida  
fez com que muitos indivíduos emigrassem para localidades estranhas à sua própria  
realidade, ocasionando a quebra do vínculo de parentesco antes pressupostos em suas  
respectivas comunidades gentílicas e interferindo também na organização social que  
existia em Atenas. Marx comenta a passagem de Morgan sobre as medidas adotadas  
por Sólon.  
[...] a política de Solón tendia a atrair para Atenas colonos  
trabalhadores de outras partes da Grécia. Esta foi uma das razões do  
fracasso da organização gentílica [Esses colonos eram todos gregos;  
com a linguagem escrita, as diferenças de dialetos haviam deixado de  
se constituírem enquanto uma barreira separadora (ininteligibilidade);  
por outro lado, a emigração, a navegação e todo o movimento de  
pessoas ligadas ao comércio é incompatível com uma sociedade  
baseada na gens25]. (MARX, 1972, p. 213; MORGAN, 1980, p. 312)  
Marx ressalta que o aspecto decisivo não é o fato de que esses novos colonos  
intercambiassem suas características constitutivas com a população que vivia em  
Atenas; para além disso, o que obteve uma influência determinante foram as  
consequências da expansão do comércio – “incompatível com uma sociedade baseada  
na gens” – como causa dessas movimentações naquela localidade a partir das políticas  
25 Do original “Diese settlers alle Griechen;mit written language hatte d. dialectic Unterschied nicht mehr  
Macht zur Barrière v. Scheidung (Unverständhichkeit) zu werden; andrerseits migration, Seefahrt u. alle  
mit commerce verbundne Personenbewegung - nicht fassbar in auf gens gegründete societies”.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 165  
nova fase  
 
Lucas Parreira Álvares  
de Sólon. Por toda a Europa, alguns vestígios de traços característicos das  
comunidades gentílicas podiam ser observados em determinadas localidades. Se por  
um lado vimos que entre os povos tribais a religião foi um elemento que vigorou em  
relação à dissolução da comunidade gentílica, bem como da propriedade comunal das  
terras, por outro Engels demonstra que em algumas localidades da Alemanha, da  
França e da Inglaterra foram exatamente essas características fraternas que se  
apresentavam enquanto elemento a posteriori de resistência às forças impostas pela  
expansão do modo de produção capitalista nessas regiões. Engels (2019, pp. 145-6)  
demonstra em A origem que os povos dessas localidades “resgataram parte da  
autêntica constituição gentílica na forma de cooperativas de marca e a transplantaram  
no Estado feudal, proporcionando desse modo à classe oprimida, aos camponêses,  
mesmo sob a mais dura servidão feudal, um ponto de coesão local e um meio de  
resistência que não tiveram nem os escravos antigos nem os proletários modernos”.  
Em função dessa apropriação de características das formas sociais gentílicas, Engels  
ironicamente conclui que “o que rejuvenesceu a Europa não foram as qualidades  
nacionais específicas, senão simplesmente sua barbárie, sua organização gentílica”.  
O capítulo final de Engels em A origem da família, da propriedade privada e do  
estado é um texto totalmente distinto dos anteriores de sua obra: ele não mais  
subsidiou suas informações naquilo que Morgan havia formulado previamente, mas  
sim, pretendeu- se ir além das informações obtidas pelo antropólogo americano,  
mesmo que as formulações de Ancient society ainda estivessem pressupostas em seu  
desenvolvimento teórico. Nesse capítulo cujo título é “Barbárie e civilização”, podemos  
ver um Engels que busca articular sua exposição anterior a O capital de Marx na  
intenção de investigar “as condições econômicas gerais que solaparam a organização  
gentílica da sociedade no estágio superior da barbárie e a eliminaram por completo  
no início da civilização” (ENGELS, 2019, p. 147). Se assumirmos como já  
demonstramos que não temos nenhuma evidência da intenção de Marx, ao  
desenvolver os rascunhos a Morgan, que seja desvinculada de sua crítica à economia  
política; se consideramos que Engels esteve diante dos rascunhos de Marx e de uma  
versão original de Ancient society; e se aceitarmos o fato de que Engels assume, em  
“Barbárie e civilização”, sua intenção de associar os pensamentos de Morgan e Marx,  
uma conclusão nos é pertinente: Engels pode ser considerado como primeiro  
intérprete da relação entre Marx e Morgan.  
O primeiro elemento original trazido por Engels em seu capítulo final é uma  
Verinotio  
166 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
categoria ausente em Ancient society e nas preocupações de Morgan: a divisão do  
trabalho. De acordo com o autor de A origem, a divisão do trabalho, em comunidades  
gentílicas, advém de uma ordem natural. Todavia isso não significa que ela seja  
inexistente: “ela existe somente entre os dois sexos”. É notório que a divisão do  
trabalho é um pressuposto da produção social capitalista, entretanto, essa não é uma  
prática exclusiva desse modo de produção. Marx (2013, p. 180), n’O capital, já  
ressaltava que “a divisão do trabalho é um organismo natural-espontâneo da  
produção”. Diversos materiais etnográficos fornecem evidência para a argumentação  
de Engels ao demonstrarem que o homem é responsável pelas atividades externas –  
caça, guerra etc.  
- e a mulher às atividades internas cozimento, confecção de vestuário, etc.  
Porém essa dinâmica de divisão de trabalho nessa forma social está longe de ser uma  
regra. Leacock e Lee (1982) demonstram que além da existência de flexibilidades  
durante o processo de obtenção dos meios de vida, pode haver procedimentos comuns  
que sejam indistintos da relação entre homem e mulher. Podemos dizer que, para  
Engels, essa divisão natural-espontânea do trabalho é a característica própria do  
estado de selvageria. Para além dessa especificidade, o autor de A origem define, sob  
seus pressupostos, aqueles que constituem como os dois grandes momentos de  
divisões sociais do trabalho no período da barbárie.  
A primeira ocorreu como consequência do aumento da produtividade do  
trabalho, o que aumentou também a produção da riqueza e, com isso, ampliou o  
campo de produção. Essa primeira divisão social do trabalho implicava no surgimento  
da escravidão. Seguindo o raciocínio de Engels: “da primeira grande divisão social do  
trabalho originou-se a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores  
e escravos, espoliadores e espoliados” (ENGELS, 2019, p. 150). A segunda grande  
divisão social do trabalho foi aquela na qual a manufatura cindiu-se da agricultura, o  
que aumentou consideravelmente a produção social além de ter valorizado a força de  
trabalho através do grau de produtividade. Com essa divisão “surge a produção  
destinada diretamente à troca, a produção de mercadorias” e com ela, o comércio por  
terras assim como pelos mares. Desse modo a diferenciação que existia entre senhores  
e escravos é acrescida de um novo antagonismo entre classes: os ricos e os pobres  
(ENGELS, 2019, p. 151). As implicações dessa nova divisão do trabalho alcançam  
finalmente o limiar da “civilização”, que consolida e intensifica todas essas divisões do  
trabalho e ainda acrescenta uma terceira, de importância decisiva: aquela que gera a  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 167  
nova fase  
Lucas Parreira Álvares  
classe de comerciantes, uma classe que, segundo Engels “surge, pela primeira vez,  
uma classe que, sem ter qualquer participação na produção, conquista a liderança da  
produção como um todo e em grande escala e submete economicamente os  
produtores; que faz de si mesma a mediadora incontornável entre dois produtores e  
espolia ambos” (2019, p. 151).  
De antemão já está claro que os critérios estabelecidos por Morgan para  
caracterizar o advento do período da “civilização” – a invenção do alfabeto fonético e  
o uso da escrita em nada se relacionam com os motivos de cunho econômico  
apresentados por Engels. Pelos critérios expostos em A origem por Engels (2019, p.  
160), “a civilização é, portanto, o estágio de desenvolvimento da sociedade em que a  
divisão do trabalho, a troca entre indivíduos dela decorrente e a produção de  
mercadorias [...] revolucionam toda a sociedade mais antiga”. Por mais que os critérios  
que fundamentam o período da “civilização” entre esses autores sejam distintos, em  
ambos é notória a articulação de uma forma de família específica que atende aos  
propósitos dessa nova fase a monogamia; além de uma forma de propriedade  
necessária aos anseios das classes dominantes originárias no processo de dissolução  
da comunidade gentílica a privada; e por fim através de uma organização social que  
desde sua origem se baseia em princípios que asseguram os bens e as posses dos  
grandes proprietários o Estado.  
Na condição de intérprete, Engels preencheu um vazio no esquema de Morgan.  
Acrescentou às teorias do antropólogo ianque as categorias constitutivas da teoria do  
valor de Marx e demonstrou que não é o produto de uma sociabilidade o elemento  
que constitui sua caracterização, mas sim o modo através do qual esses diversos  
produtos se conformam. Para retornarmos a uma metáfora anterior, se  
considerássemos a classificação morganiana como um canteiro de obras poderíamos  
dizer que Engels teria acrescentado a ela tijolos preciosos. Porém, como acreditamos  
que os pressupostos morganianos característicos de seu esquema são distintos  
daqueles formulados por Marx, nossa conclusão só pode nos conduzir à constatação  
de que essa mera estrutura ainda não se compara a um edifício. Eis algumas distinções  
evidentes entre Ancient society, de Lewis Morgan, A origem da família, da propriedade  
privada e do estado, de Friedrich Engels, e as contribuições presentes nos chamados  
Cadernos etnológicos bem como na totalidade da obra de Karl Marx.  
Verinotio  
168 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
Conclusão  
Em todo este artigo, investigamos as especificidades da organização social  
gentílica de Morgan a partir da leitura de Marx e, eventualmente, de Engels.  
Demonstramos como que em Marx já havia a pressuposição de que a proibição do  
incesto se apresenta como um elemento disruptivo para a formação das comunidades  
gentílicas algo que foi melhor aprofundado por Lévi-Strauss, a seu modo, décadas  
depois; além disso, demonstramos a crítica marxiana àqueles expoentes que, ao  
tentarem dar uma inteligibilidade ao totemismo, criavam abstrações irrazoáveis para  
apreender elementos de uma forma social correspondente; dissertamos também sobre  
a organização política no interior da comunidade gentílica e novamente Marx critica o  
modo como alguns teóricos principalmente Mommsen – inventavam “soberanos”  
nessas formas sociais por meio de um típico exercício de Robinsonadas; por fim,  
apresentamos as contribuições de Engels que se propôs, de acordo com suas  
intenções, conciliar a teoria do valor de Marx com as formulações de Morgan. Diante  
dessa investida, Engels se conformou, sob nossa interpretação, como aquele que foi o  
primeiro a investigar, a seu modo, os nexos entre Marx e Morgan.  
As aproximações entre Marx e Morgan, angariadas especialmente pela tradição  
soviética (cf. TOLSTOY, 2017) que notou uma continuidade entre as formulações  
desses autores, não podem ofuscar suas discordâncias. O pensamento de Morgan em  
Ancient Society, amparado por uma negação da coetaneidade, nos parece distintos ao  
que rege as tendências investigativas do pensamento marxiano que, ao contrário,  
buscam, por sua vez, a compreensão das particularidades históricas de cada  
sociabilidade. O exercício comparativo não pode anteceder o rastreamento desses  
nexos, sob a pena de que seus expoentes sejam alocados na história nas mesmas  
gavetas onde Frazer e Tylor se resignaram. Morgan é um autor sério e importante a  
seu tempo, mas não deve servir como parâmetro para o marxismo nem muito menos  
seus esquemas como um “canteiro de obras”. Através deste artigo demonstramos,  
antes de qualquer coisa, que Marx foi o primeiro a perceber isso, algo que alguns  
marxistas contemporâneos ainda teimam em não enxergar. Dessa forma acreditamos  
que não se trata, portanto, da elaboração de um esquema de desenvolvimento  
histórico crítico, mas antes, uma crítica aos esquemas de desenvolvimento histórico,  
estes, invariavelmente íntimos a uma concepção teleológica - e essencialmente  
fatalistas da história.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 169  
nova fase  
Lucas Parreira Álvares  
Referências bibliográficas  
DE COULANGES, Numa Denis Fustel. A cidade antiga. Trad. Frederico Ozanam Pessoa  
de Barros. São Paulo: Edameris, 2006.  
EIDT, Celso. O estado racional: lineamentos do pensamento político de Karl Marx nos  
artigos da Gazeta Renana (1842-1843). Dissertação (Mestrado) Universidade  
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1998.  
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado: em  
conexão com as pesquisas de Lewis H. Morgan. Trad. Nélio Schneider. São Paulo:  
Boitempo Editorial, 2019.  
ENGELS, Friedrich. “Lettre à C. Schmidt du 27 octobre 1890 ». In: MARX, Karl; ENGELS,  
Fridrich. Sur la religion. Paris: Ed. Sociales, 1960.  
KARATANI, Kojin. Capital as Spirit. Crisis and Critique, v. 3, 3, 2016, pp. 166-89.  
LEACOCK, Eleanor; LEE, Richard. « Introduction ». In: LEACOCK, E.; LEE, R. (Org.)  
Politics and history in band societies. Cambridge: The University Press, 1982.  
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Trad. Mariano  
Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2012.  
LÉVI-STRAUSS, Claude. O homem nu. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac  
Naify, 2011.  
LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício de Papai Noel. Trad. Malcolm Bruce Corrie. São  
Paulo: Cosac Naify, 2008.  
LÉVI-STRAUSS, Claude. Totemismo hoje. Petrópolis: Editora Vozes, 1975.  
LOWIE, Robert H. On the principle of convergence in ethnology. Journal of American  
Folklore, v. XXV, 1912, pp. 24-42.  
LOWIE, Robert H. Primitive society. New York: Boni and Liveright, 1920.  
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Trad. Florestan Fernandes. São  
Paulo: Expressão Popular, 2008.  
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo  
Gomes de Deus. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.  
MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política Livro I: o processo de produção do  
capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.  
MARX, Karl. O editorial n. 179 da Gazeta de Colônia. Trad. Celso Eidt”. In: EIDT, Celso.  
O estado racional: lineamentos do pensamento político de Karl Marx nos artigos da  
Gazeta Renana (1842-1843). Dissertação (Mestrado) Universidade Federal de  
Minas Gerais, Belo Horizonte, 1998, pp. 228-33.  
MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Trad.  
Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.  
MARX, Karl. The ethnological notebooks of Karl Marx. Org. Lawrence Krader. Assen:  
Van Gorcum & Comp. N. V., 1972.  
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia  
alemã em seus representantes Feurbach, B. Bauer e Stirmer, e do socialismo alemão  
em seus diferentes profetas. Trad.: Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini  
Mortorano. São Paulo: Boitempo, 2007.  
MORGAN, Lewis Henry. A sociedade primitiva v. I. 3. ed. Trad. Maria Helena Barreiro  
Alves. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980.  
MORGAN, Lewis Henry. A sociedade primitiva v. II. Trad. Maria Helena Barreiro Alves.  
Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1974.  
MORGAN, Lewis Henry. Systems of consanguinity and affinity of the human family.  
Lincoln: University of Nebraska Press, 1997.  
PIRES, Rogério Brittes Wanderley. O conceito antropológico de fetiche: objetos  
africanos, olhares europeus. Rio de Janeiro: PPGAS-MN/UFRJ, 2009.  
Verinotio  
170 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
SARTORI, Vitor. Acerca da individualidade, do desenvolvimento das forças produtivas  
e do “romantismo” em Marx. Práxis Comunal, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, pp. 33-70,  
jan./dez. 2018.  
TOLSTOY, Paul. Lewis Morgan e o pensamento antropológico soviético. Trad. Lucas  
Parreira Álvares; Disponível em: <http://passapalavra.info/2017/11/117006>.  
Acesso em: 30 nov. 2017.  
TYLOR, Edward B. Researches into the early history of mankind. 2. ed. Londres: Murray,  
1870.  
VELLOSO, Gustavo. Anti-Lubbock: as “negações” do velho Mouro contra o Barão de  
Avebury. Práxis Comunal, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, pp. 71-86, dez. 2018.  
Como citar:  
ÁLVARES, Lucas Parreira. Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social.  
Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 134-171; jul.-dez., 2024.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 134-171 jul.-dez., 2024 | 171  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.727  
O caminho de Marx para Hegel:  
a busca do conceito e a crítica do existente  
The Marx's path to Hegel:  
The search for the concept and the criticism  
of the existing  
Murilo Leite Pereira Neto*  
Resumo: Neste trabalho, buscamos expor, a  
partir da leitura imanente dos textos do próprio  
Marx, a filiação do pensador alemão ao  
pensamento de Hegel e ao hegelianismo.  
Caminhou-se, no presente texto, pelas veredas  
que levaram o “vigoroso andarilho”, como Marx  
se intitula na carta ao pai (1837), ao pensamento  
hegeliano, pois, apesar da vasta bibliografia  
disponível sobre a relação entre Marx e Hegel,  
ainda é diminuto o material que procura analisar  
o modo pelo qual Marx adere ao hegelianismo.  
Pode-se debater em que medida Marx se  
manteve hegeliano ao longo do seu itinerário  
intelectual, qual a medida do distanciamento que  
o autor de O capital guardou em relação ao  
último filósofo do Idealismo Alemão, se houve  
ruptura e o grau dessa ruptura. Antes, contudo,  
é necessário compreender como o jovem alemão  
se tornou discípulo de Hegel e que tipo de  
discípulo foi Marx. Nossa análise percorreu os  
diversos textos do período acadêmico do autor,  
os quais contemplam variados materiais, como  
correspondências, escritos literários, anotações e  
o que restou da sua tese doutoral. Procuramos  
Abstract: In this paper, we seek to expose the  
Marx’s affiliation to the thoughts of Hegel and  
hegelianism, from the standpoint of an  
immanent reading of Marx’s own writings. We  
tread the narrow paths that took the ‘vigorous  
strider’, as Marx labels himself in his Letter from  
Marx to his Father (1837), to hegelian thought.  
We do so, because despite the widely available  
bibliography in several languages on the  
relations between Marx and Hegel, there is still  
not enough material dedicated to the manner  
according to which Marx complied with  
hegelianism. One can debate on how much did  
Marx abide by hegelianism throughout his own  
intellectual itinerary; or how far did the author  
of Das Kapital keep himself from German  
Idealism’s last philosopher; or whether there  
has been any severance and its degree. Yet,  
before that, it’s necessary to understand how  
the young German became Hegel’s disciple, and  
what kind of disciple Marx was. Our analysis  
traverses along many texts from the author’s  
academic timespan. These comprise various  
subjects, such as mail, literary writings, notes  
and the remains of his doctoral thesis. We’ve  
aimed at demonstrating that Marx’s adherence  
to hegelianism happened in 1837. He critiqued  
Kant’s and Fichte’s idealism.  
demonstrar que  
a
adesão de Marx ao  
hegelianismo ocorreu em 1837, a partir da crítica  
ao idealismo de Kant e Fichte.  
Palavras-chave: Marx; Hegel; hegelianismo.  
Keywords: Marx; Hegel; hegelianism  
Introdução  
Procuramos apreender o caminho de Marx ao hegelianismo no conjunto de  
escritos do seu período acadêmico, compreendido de 17 de outubro de 1835, data  
*
Doutor em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor efetivo do curso de  
direito na Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), campus Ituiutaba.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
em que se matriculou na Universidade de Bonn, onde permaneceu até 22 de outubro  
do ano seguinte, quando ingressou na Universidade de Berlim, em 15 de abril de  
1841, data da sua diplomação como doutor em Filosofia pela Universidade de Jena.  
Nesse período, Marx produziu textos literários, nos quais aparecem as primeiras  
menções a Hegel, excertos de obras, anotações preparatórias para a tese, a própria  
tese doutoral e um conjunto de correspondências. Foram 32 cartas enviadas a Marx  
nesse período. O pai de Marx e Bruno Bauer são seus principais correspondentes.  
Infelizmente, foram preservadas apenas três cartas escritas por nosso autor1. Duas  
dessas cartas possuem caráter unicamente biográfico, ambas enviadas em abril de  
1841. A primeira, datada de 6 de abril, destinava-se ao envio da tese doutoral à banca  
examinadora e endereçava-se a Karl Friedrich Bachmann; na segunda, enviada no dia  
seguinte, Marx agradecia o professor Oskar Ludwig Bernhard Wolff, por apressar a  
emissão do seu diploma2. Assim, para este trabalho, do período acadêmico de Marx,  
apenas interessa uma dessas três cartas preservadas, a que foi escrita na madrugada  
de 10 para 11 de novembro de 1837, destinada ao seu pai, chamada, por isso, de  
Carta ao pai.  
Analisaremos mais detidamente a Carta ao pai e o material referente à tese  
doutoral, sem, contudo, descuidar dos demais textos que possam iluminar o caminho  
de Marx para Hegel e o hegelianismo. Na Carta ao pai e na tese doutoral, encontramos  
dois momentos complementares da adesão de Marx ao pensamento hegeliano.  
Explicitar esses dois momentos é o objetivo deste trabalho, pois, além do valor em si,  
de revelar a fisionomia intelectual de Marx em um período tão pouco estudado,  
acreditamos que a compreensão do modo pelo qual Marx se posicionou diante de  
Hegel e do hegelianismo poderá auxiliar no devido entendimento das primeiras  
1
Não há dúvida, após análise das correspondências, que parte do epistolário de Marx foi perdido,  
aplicando-se bem aquilo que os estudos epistolares chamam de quebra do pacto epistolar, haja vista  
que o responsável pelo cuidado e arquivamento da carta é o destinatário. Marx foi, sem dúvida, melhor  
guardião das cartas que recebeu do que os seus correspondentes, pelo menos, para o período aqui  
estudado.  
2
Essas duas correspondências são provas cabais da pressa de Marx para obter o título de doutor,  
sentimento que já pode ser sentido nas cartas escritas por Bruno Bauer ao nosso autor. O título de  
doutor era fundamental para que Marx conseguisse viver da docência universitária, algo que nunca  
chegou a se realizar. O cerco da censura prussiana à juventude hegeliana se fechou quando nosso autor  
concluía sua tese. Mas em abril de 1841 ainda havia alguma esperança, ainda que dominada pelo  
sentimento de urgência. Marx escreve a Karl Friedrich Bachmann: “Solicito também, sinceramente, caso  
meu trabalho seja suficiente, que o corpo docente acelere a concessão do doutorado, para o mais breve  
possível. Por um lado, só posso ficar mais algumas semanas em Berlim, por outro lado, as circunstâncias  
externas tornam muito desejável obter o doutorado antes de partir.” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 19,  
tradução nossa)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 173  
nova fase  
   
Murilo Leite Pereira Neto  
intervenções do jovem autor no debate público alemão, nas páginas da Gazeta Renana,  
o “periódico democrático” (ENGELS, 2010, p. 530), bem como ajudar na medida e nos  
motivos da ruptura com Hegel e com o hegelianismo, que ganha força nos Manuscritos  
de Kreuznach, conhecidos como Crítica da filosofia do direito de Hegel. Este trabalho  
se insere, portanto, em um projeto mais amplo que busca analisar o itinerário  
intelectual de Marx, pois, acompanhando seu desenvolvimento, será possível dizer com  
rigor o que foi o pensamento marxiano.  
Sobre a formação acadêmica de Marx: uma crítica a Roberto Lyra Filho  
Apesar do doutoramento em filosofia pela Universidade de Jena, a formação  
acadêmica de Marx ocorreu no curso de Direito e cameralística3, contudo, essa segunda  
área de formação parece não ter recebido tanta atenção por parte do jovem estudante  
alemão4. Não deixa de ser curioso que Marx venha, anos depois, a ter que estudar  
economia política e temas correlatos, não mais para servir ao estado, mas para criticá-  
lo. De outro lado, os estudos jurídicos do período acadêmico podem ser caracterizados  
como, no mínimo, consistentes. Marx cursou inúmeras disciplinas jurídicas, em maior  
quantidade que todas as outras somadas (cf. PEREIRA NETO, 2022). Assim, um estudo  
cuidadoso do período acadêmico de Marx demonstra o equívoco de Lyra Filho ao  
apontar no autor alemão certa indisposição psicológica em relação ao direito. Segundo  
o autor brasileiro, parte das críticas de Marx ao direito, principalmente, as mais  
contundentes se deveram às “decepções estudantis” vivenciadas durante o período  
universitário:  
há uma eterna ambiguidade, uma frequente oscilação, um ir-e-vir entre  
3
Segundo Flávio Oliveira (2021, p. 1), “concebido para assessorar o governo monárquico quanto à  
solução de questões práticas de administração pública, política econômica e finanças, o cameralismo  
produziu efeitos de longo prazo, constituindo os alicerces sobre os quais se assentam, de um lado, a  
Nationalökonomie, e de outro a perspectiva orgânica inerente à organização estatal alemã”.  
4 Em missiva datada entre fevereiro e março de 1836, época em que Marx ainda estava na Universidade  
de Bonn, Heinrich Marx, ao discutir os estudos do filho, após reclamar das poucas cartas que este último  
tinha enviado até então, recomendou que curse, antes de transferir-se para Berlim, “apenas uma  
introdução geral à cameralística, porque é sempre bom ter uma visão geral do que se deve fazer um  
dia” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 293, tradução nossa). Em 20 de agosto, Marx parece ter amenizado a  
preocupação paterna quanto a esta área de estudo, pois seu pai assim escreveu: “Depois de seus  
projetos, parece-me desnecessário preocupá-lo com a cameralística” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 315,  
tradução nossa). Pouco tempo depois, em carta datada de 16 de setembro de 1837, portanto, já em  
Berlim, ele volta a questionar o filho acerca da profissão a ser exercida no futuro e pergunta: “por que  
você não diz nada sobre cameralística?”. Em seguida, na mesma correspondência, seu pai aconselha,  
ainda tomando os planos de Marx em seguir, também, uma carreira literária: “Não sei se estou enganado,  
mas parece-me que poesia e literatura são mais propensas a encontrar patronos na administração do  
que no judiciário, e um conselheiro de governo cantor parece-me mais natural do que um juiz cantor.”  
(MARX; ENGELS, 1975b, p. 318, tradução nossa)  
Verinotio  
174 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
afirmação e negação de certo direito, às vezes inflado em negação do  
Direito tout court, que, entretanto, se revela, menos como uma  
questão de princípio, do que como reflexo e vestígio das decepções  
estudantis (LYRA FILHO, 1983, p. 42).  
Antes, o autor de Diálogo com Marx sobre o direito nos oferece um exemplar  
raro de imputação e impropriedade, pois, ele escreve:  
Marx era filho de advogado e principiou seu roteiro universitário como  
estudante de Direito. Sua desilusão e rompimento com a carreira  
jurídica tem muita semelhança com o equívoco de tantos jovens  
contemporâneos. Quando chegam aos bancos acadêmicos, no  
alvoroço de inquietações e ideias apresadas e não isentos de  
impaciência e sentimentalismo, defrontam-se com as patacoadas  
rotineiras, os catedráticos subservientes, a dogmática obtusa e  
alienante, o estômago de avestruz dos positivistas engolindo qualquer  
pacote das prepotências estatais que o famoso “toque de midas”  
kelseniano transforma em “neutros” produtos “jurídicos”. Diante  
disso, muitos rapazes e moças progressistas logo se deixam tomar  
por um nojo não injustificado, que, porém, injustificadamente, vai  
tender à equiparação do lixo legislativo com o íntegro universo  
jurídico, sem perceber, sequer, que, dialeticamente, o estrume das  
estruturas corruptas serve também de adubo à contestação e  
florescimento de afirmações jurídicas para, supra e metalegais,  
oriundas de classes e grupos espoliados e oprimidos. (LYRA FILHO,  
1983, p. 40)  
Definitivamente, não foram esses os motivos que levaram Marx a criticar o  
direito, menos ainda foram esses os motivos que o levaram a concluir sua formação  
acadêmica com uma tese de doutorado em filosofia. Com relação à crítica de Marx ao  
direito, o ponto de inflexão ocorre nos escritos de Kreuznach, a partir da crítica que  
Chasin chamou de crítica ontológica ao pensamento especulativo, embora, mesmo  
nesses textos, a crítica não se dirija ao direito tout court, e sim a certo direito presente  
na monarquia constitucional, forma de Estado não democrática. Já na Gazeta Renana,  
sem ainda formular uma crítica à filosofia do direito hegeliana, portanto, sem uma  
crítica direta à monarquia constitucional, o que encontramos é certamente uma defesa  
do direito, embora em oposição ao direito positivo então existente na Prússia ou  
aquele saído dos debates da Dieta Renana. Essa defesa só pode ser bem entendida  
quando se compreende o modo pelo qual Marx adere ao pensamento hegeliano, que,  
também, servirá de explicação dos motivos que levaram Marx a concluir sua formação  
acadêmica com a tese doutoral sobre Epicuro e Demócrito. Muito distante de qualquer  
indisposição psicológica.  
Além disso, não é necessário muito esforço para desmontar a cena criada pelo  
lyrismo, afinal, o anacronismo é patente. Fiquemos apenas com o sentido geral, isto é,  
supostamente, Marx teria se decepcionado com o curso de direito, com o ensino da  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 175  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
matéria, portanto. E disso decorre sua oposição ao direito, que, como dissemos, sequer  
se inicia nesse momento, mas, no mínimo, dois anos depois. Contra o lyrismo, podemos  
argumentar que a relação de Marx com seu pai, advogado de profissão, poderia ter  
inspirado o filho a seguir os caminhos do velho Heinrich Marx. Com relação aos  
professores, Marx seguiu alguns cursos de Savigny e de seus alunos, figura de proa  
do movimento conservador alemão, alvo de inúmeras críticas posteriores de Marx, mas,  
por outro lado, Marx também acompanhou dois cursos de Eduard Gans, grande nome  
da escola hegeliana e importante para o movimento liberal alemão do Vormärz. Os  
estímulos psicológicos, chamemos assim, são múltiplos, pois, e não há provas textuais  
para atribuir peso destacado a qualquer desses estímulos. Há provas textuais, no  
entanto, para descartar o argumento de Lyra Filho, além dos já aludidos neste texto,  
pois, na famosa Carta ao pai, escrita quando Marx cursava direito e cameralística, a  
tese psicológica sofre mais um revés. Nessa carta, lemos a seguinte declaração do  
jovem estudante universitário, quando debatia com o pai sobre seu futuro  
profissional5:  
Quanto à questão da carreira de cameralista, meu querido pai, conheci  
recentemente um assessor Schmidthänner, que me aconselhou a  
continuar como justitiarius após o terceiro exame jurídico, o que me  
agradaria muito mais já que eu realmente prefiro jurisprudência à  
ciência administrativa [Verwaltungswissenschaft]. (MARX; ENGELS,  
1975b, p. 293, tradução nossa)  
A passagem supracitada é provavelmente uma resposta à carta anterior de seu  
pai, na qual este opina que uma carreia de cameralista se adequaria mais às pretensões  
artísticas do filho que uma carreira como advogado, talvez, pela maior segurança  
financeira, afinal, diz o pai, “parece-me que poesia e literatura são mais propensas a  
encontrar patronos na administração do que no judiciário” (MARX; ENGELS, 1975b, p.  
318, tradução nossa). A carreira de Marx foi discutida com certa recorrência na  
comunicação epistolar de ambos, pai e filho, e nela não encontramos nenhum vestígio  
da indisposição psicológica do jovem estudante com a profissão e com a matéria em  
si.  
Tomando como parâmetro de leitura a análise imanente proposta por J. Chasin  
(2009), a qual foi bem explicada por Vaisman e Fortes ao dizerem que essa “não se  
trata de simples alinhavo de paráfrases ou de atulhamento do escrito com citações em  
5
Como é de se esperar de um pai preocupado, discussões sobre a carreira do filho são bastante  
recorrentes na comunicação epistolar de Marx com seu pai.  
Verinotio  
176 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
grande quantidade, enumeradas acriteriosamente pelo intérprete de acordo com suas  
próprias crenças e convicções”, pois constitui “procedimento investigativo de rigor que  
almeja identificar a estrutura categorial das obras”, sendo, por isso, “atitude de  
respeito ao texto, em que o intérprete se subordina ao sentido nele existente  
objetivamente”, podemos afirmar com segurança que o juízo de Lyra Filho segue pelo  
caminho oposto àquele da “atitude de espeito ao texto”. Este último adota postura  
mais cômoda ao “atribuir ao material estudado o significado que subjetivamente [ele  
foi] capaz de formular, à revelia da própria tessitura significativa presente no[s]  
escrito[s]” (VAISMAN; FORTES, 2020, p. XII), neste caso, de Marx. Trata-se de pura  
imputação do jurista brasileiro, que no seu diálogo com Marx falou mais que escutou.  
Mesmo o método que se chama divinatório ou psicológico de Schleiermacher  
não prescinde do texto. Lyra Filho foi longe demais, pois desconsidera que antes de  
se tornar crítico do direito tout court, Marx foi durante o período acadêmico e da  
Gazeta Renana um defensor do direito, transitando para a crítica ao direito tão somente  
a partir dos escritos de Kreuznach, posição que evolui ao longo de seu itinerário  
intelectual6. Por desconsiderar as mudanças ocorridas ao longo do itinerário intelectual  
de Marx, Lyra Filho atribui diversas posições do autor alemão frente ao direito e acaba  
por acusar Marx de paralogismos.  
Acreditamos que os equívocos observados na interpretação de Lyra Filho não  
ocorreriam caso o jurista tivesse medido melhor o peso da adesão do jovem Marx ao  
pensamento de Hegel, o que pretendemos fazer nas próximas páginas deste artigo, o  
qual percorre todo o período acadêmico de Marx e se divide em dois tópicos. No  
primeiro, analisamos a Carta ao pai, documento que registra as primeiras avaliações  
de Marx acerca do idealismo alemão e sua adesão ao pensamento de Hegel; ao passo  
que o tópico ulterior investiga o modo pelo qual Marx encarou a tarefa da filosofia no  
seu tempo a partir de cerca posição declarada frente ao movimento hegeliano e ao  
próprio pensamento do mestre, posição que prepara o terreno sobre o qual caminhou  
sua intervenção pública como redator da Gazeta Renana. No caso do segundo tópico,  
trataremos da tese doutoral e daqueles seus materiais preparatórios. Cotejaremos,  
sempre que necessário, com passagens retiradas das correspondências, dos excertos  
de textos e, também, da produção literária do autor.  
6 Para citar apenas um, cf. Sartori (2018a).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 177  
nova fase  
 
Murilo Leite Pereira Neto  
De Kant e Fichte a Hegel: a busca do Conceito  
No espólio de textos legados por Marx, há pelo menos dois dos seus escritos  
dedicados a delinear e analisar retrospectivamente o curso dos seus estudos e  
descobertas, o mais conhecido é o “prefácio” de Contribuição à crítica da economia  
política, muitas vezes chamado simplesmente de “Prefácio de 1859, no qual o autor,  
lembrando o que escreveu 22 anos antes, em 1837, sentiu-se “compelido a olhar o  
passado e o presente com os olhos de águia do pensamento, de modo a chegar à  
consciência de [sua] posição real” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 9, tradução nossa). Nesse  
texto de 1859, Marx faz “algumas alusões sobre o caminho percorrido pelos [seus]  
próprios estudos político-econômicos” (MARX; ENGELS, 1961, p. 7, tradução nossa),  
e sua memória o leva aos primeiros passos dessa caminhada, dados ainda no período  
acadêmico. O outro escrito de prestação de contas e retrospectiva do seu próprio  
desenvolvimento intelectual, documento que será analisado neste tópico, é a Carta ao  
pai, escrita em novembro de 1837. Menos sistemática que o texto de 1859, esta carta  
é um pedido de Heinrich Marx para que seu filho apresente seu plano de estudos7.  
Como é possível depreender do epistolário de Marx, este costumava enviar seus planos  
de estudos e projetos acerca do futuro profissional ao pai, com menor frequência que  
o desejado pelo velho Marx.  
Seu pai não ficou nada contente com a carta, descontentamento que não  
escondeu do filho, pois, já na carta seguinte, queixou-se dizendo que: “depois de um  
período de dois meses, [...] recebo uma carta sem forma nem conteúdo, um fragmento  
rasgado, sem sentido, sem conexão com o que veio antes e sem conexão com o futuro!”  
(MARX; ENGELS, 1975b, p. 321, tradução nossa). Essa passagem da carta paterna,  
que provavelmente responde à missiva de novembro de 1837, transmite a monta da  
insatisfação paterna e do desafio analítico que este escrito impõe ao intérprete.  
A bagunça da carta, bem medida na avaliação paterna, possibilita-nos, também,  
compreender a dimensão da inflexão ocorrida no pensamento do jovem Marx naquele  
ano, além da personalidade instável, típica da juventude, diante de novas descobertas.  
Marx revelou nessa missiva a sua caminhada em direção a Hegel e apanhou seu pai  
de surpresa, afinal, até aquele momento, o grande filósofo alemão apenas havia  
recebido menções críticas e, muitas vezes, jocosas do jovem estudante universitário.  
7
Um dos pedidos de seu pai pode ser lido na carta de 20 de agosto de 1837: “Se você tiver tempo  
livre e me escrever, ficarei grato se você esboçar um plano conciso de quais estudos jurídicos positivos  
você realizou este ano.” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 315, tradução nossa)  
Verinotio  
178 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
Hegel aparece algumas vezes no material literário do nosso autor, sempre de maneira  
depreciativa8. É bastante provável que Marx só tenha lido, de fato, Hegel em 1837,  
portanto, essas menções eram carregadas de preconceito9.  
Então, ao invés de enviar organizadamente as informações solicitadas pelo pai,  
Marx escreveu, na visão paterna, uma carta fragmentariamente picotada, por isso, sem  
forma ou conteúdo e, além disso, o que é ainda mais preocupante, a carta refletia uma  
pessoa em conflito interno, dilacerado10. A carta do pai é bastante severa, como se  
pode verificar na passagem transcrita abaixo:  
Falando francamente, meu querido Karl, não gosto dessa expressão  
moderna em que todos os fracos se disfarçam quando brigam com o  
mundo, de modo que eles não possuem palácios bem mobiliados com  
milhões de carruagens sem todo o trabalho e esforço. Esse  
dilaceramento [Zerrissenheit] é repugnante para mim, e eu não espero  
isso de você. Que razão você pode ter para estar deste modo? Tudo  
não sorriu para você desde o berço? A natureza não o presenteou  
maravilhosamente? Seus pais não o abraçaram com amor pródigo?  
Você já falhou em satisfazer seus desejos razoáveis? E você, da  
maneira mais incompreensível, não ganhou o coração de uma garota  
que milhares o invejam? E a primeira adversidade, o primeiro desejo  
malsucedido, mesmo assim, produz dilaceramento [Zerrissenheit]! Isso  
é força? Isso é caráter masculino? (MARX; ENGELS, 1975b, p. 321,  
tradução nossa)  
Foi dessa maneira que seu pai respondeu a carta de 1837, texto confuso e, até  
certo ponto, enigmático, mas que registra o caminho de Marx para Hegel. O primeiro  
tinha consciência que aquele ano marcava uma “nova direção” para a sua vida  
8 Cf. uma série de epigramas intitulado “Hegel”, presente no caderno endereçado ao seu pai por conta  
do aniversário desse último, no início de 1837, no qual Marx, comparando Hegel a Kant e Fichte, adota  
posição favorável aos últimos (MARX; ENGELS, 1975a, pp. 644-6). Ainda, no fragmento do seu romance  
humorístico, intitulado Escorpião e Félix, também presente no caderno oferecido ao pai, no capítulo 21,  
das “reflexões filológicas”, há uma passagem em que se lê: “De acordo com o exposto, uma vez que  
entre os velhos alemães o nome se originava de diversos adjetivos e expressava o caráter de seu  
portador – como Krug, o cavaleiro; Raupach, o conselheiro da corte; Hegel, o anão” (MARX, 2018b, p.  
20). Interessante perceber que, além de relacionar Hegel à pequenez, os outros nomes que figuram ao  
seu lado são de personalidades menores do pensamento alemão, o primeiro Wilhelm Traugott Krug  
sucessor de Kant em Königsberg; e o outro é Ernst Raupach, sucessor de Friedrich Schiller. Páginas  
adiante, no mesmo fragmento de romance, fica explícita a desdenha de Marx em relação a Hegel: “os  
primeiros são demasiado grandes para este mundo; por isso são lançados fora. Os últimos, porém,  
deitam raízes e permanecem, como os atos nos mostram, pois o champanhe deixa um perseverante e  
repulsivo sabor final, o heroico César deixa atrás de si o ator Otaviano; o imperador Napoleão, o rei  
burguês Luís Filipe; o filósofo Kant, o cavaleiro Krug; o poeta Schiller, o conselheiro a corte Raupach; o  
celeste Leibniz, o aprendiz Wolff; o cão Bonifácio, este capítulo” (MARX, 2018b, p. 40).  
9
Nossa afirmação encontra fundamento na própria carta ao pai, onde lemos que, primeiramente, ele  
“havia lido fragmentos de filosofia hegeliana cuja grotesca melodia rochosa” não o agradou; e mais a  
frente, na carta, ele diz ao pai que durante sua temporada em Stralow, onde foi se recuperar de um  
mal-estar, estudou “Hegel do começo ao fim” (MARX; ENGELS, 1975b, pp. 16-7, tradução nossa).  
10  
Assim escreve o pai de Marx: “Eu havia escrito várias cartas, algumas das quais solicitavam  
informações. E em vez disso, uma carta fragmentária, e o que é ainda pior, uma carta amargurada...”  
(MARX; ENGELS, 1975b, p. 321, tradução nossa)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 179  
nova fase  
     
Murilo Leite Pereira Neto  
privada11 e, especialmente, para a sua vida intelectual. Ele escreveu a tão solicitada  
Carta ao pai em um daqueles “momentos da vida que são como um marco de um  
tempo passado e que, simultaneamente, apontam com firmeza uma nova direção”  
(MARX, 2018a, p. 425). Foi, portanto, posicionado do “ponto de inflexão” do seu  
pensamento, podemos dizer, do primeiro ponto de inflexão, quando “tudo o que [lhe]  
era mais sagrado foi dilacerado [zerrissen], e novos deuses tinham de ser encontrados”  
(MARX, 2018a, p. 429), que o jovem Marx procurou compreender sua “verdadeira  
posição”, expondo-a ao pai, ainda que sem forma ou conteúdo.  
É certo que a “nova direção” tomada exigia que se abandonasse uma série de  
concepções que nutriu sua vida intelectual até então, obrigando-o à crítica  
avassaladora do seu passado e à busca desenfreada, como um “vigoroso andarilho”,  
da nova concepção capaz de abrigar seu pensamento atual. Nesse sentido, é possível  
destacar duas frentes de ataque às suas velhas posições: uma no campo da estética e  
outra no campo daquilo que poderíamos chamar de filosófico-jurídico.  
Na primeira frente, Marx teria realizado várias tentativas. Inicialmente, dedicou-  
se à poesia lírica, mas, ao final, deu-se conta que “tratava-se de uma poesia puramente  
ideal” (MARX, 2018a, p. 426), chega mesmo a avaliar criticamente as produções  
poéticas contidas nos dois cadernos enviados a Jenny: “não obstante, talvez certo calor  
sentimental e uma luta por impulso também caracterizem todos os poemas dos três  
primeiros cadernos que enviei a Jenny” (MARX, 2018a, p. 426). A caracterização da  
crise estética como uma crise da forma que acaba por comprometer o conteúdo pode  
ser bem apreendida na passagem abaixo:  
Meu céu e minha arte tornaram-se mundos tão distantes quanto meu  
amor. Assim, desfoca-se todo o real, e tudo o que é desfocado não  
tem limites, culminando em ataques ao presente, sentimentos  
abrangentes e disformes, sem nada de natural, tudo construído da lua,  
exatamente o contrário daquilo que é e daquilo que deve ser,  
reflexões retóricas em vez de pensamentos poéticos. (MARX, 2018a,  
p. 426)  
A autocrítica desse período impactou sobremaneira sua produção literária, a  
ponto de ter queimado todo o material produzido12. É comum se afirmar que essa crise  
estética é a crise da posição romântica de Marx, hipótese que não parece desprovida  
11  
Diz Marx ao pai: “quando deixei vocês, um novo mundo havia se aberto para mim, o do amor [...]”  
(MARX, 2018a, p. 426).  
12 Marx relata na carta: “queimei todos os poemas, os esboços de novelas etc., na louca ilusão de que  
poderia assim, deixar tudo isso para trás – o que parece, até agora, de fato funcionar” (MARX, 2018a,  
p. 431).  
Verinotio  
180 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
de sentido, contudo, não passa ainda de hipótese a ser verificada, afinal, também não  
faltam aqueles que procuram no romantismo “uma das fontes esquecidas de Marx e  
Engels” (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 135), mas carecem de provas robustas. Atualmente,  
um bom ponto de partida, em termos de bibliografia secundária, parece ser a biografia  
de Marx escrita por Michael Heinrich (2018), pois acumula importantes informações,  
contudo não pode ser mais que isso, ponto de partida, afinal, é necessário encontrar  
nos próprios textos o romantismo do jovem literato Marx, analisá-lo e, então, tratar da  
sua crítica e da “nova direção” assumida. O suposto romantismo de Marx e sua  
superação precisa ser bem medido, ainda mais quando se trata do romantismo alemão,  
movimento que contempla inúmeras fases, autores que transitaram do romantismo ao  
classicismo, como Goethe; sem falar do abismo que separa um Herder de um Schlegel.  
Não nos parece suficiente identificar no autor temáticas antiburguesas e concluir por  
seu suposto romantismo. Pensamos que é necessário, além disso, ir à forma. Eis um  
ponto a ser mais bem trabalhado pela marxologia13.  
Na frente de ataque que chamamos aqui filosófico-jurídica, Marx é bem mais  
explícito no relato da sua antiga posição e na indicação daquela que seria sua nova  
direção. Primeiramente, vale ressaltar certa imprecisão de Marx quando,  
aproximadamente duas décadas depois do seu período acadêmico, ele relembra, no  
Prefácio de 1859”, sua formação e diz ter estudado direito, “minha especialidade”,  
tão somente “como disciplina subordinada ao lado de Filosofia e História” (MARX;  
ENGELS, 1961, p. 7, tradução nossa). Esse caráter de “disciplina subordinada” não  
parece ser uma lembrança tão precisa. Não é esse o espírito da Carta ao pai, na qual  
ele relata seus empreendimentos intelectuais envolvendo a matéria de sua  
especialidade. Na carta de 1837, nosso autor escreve sobre um projeto que tomou  
parte do seu tempo naquele ano, tratava-se de “um trabalho de quase trezentas  
folhas”, do qual, “como introdução, escrev[eu] frases metafísicas e desenvolv[eu] essa  
infeliz obra até o direito público” (MARX, 2018a, p. 426). Na mesma carta, Marx relata  
ter estudado uma série de juristas, como Johann Gottlieb Heineccius e Anton Friedrich  
Justus Thibaut, além das fontes de Savigny e de ter traduzido parte do Digesto, no  
entanto, diz ele que o fez “como um colegial”14, isto é, “de modo puramente acrítico”  
13 Além de Löwy e Sayre e da importante biografia de Michael Heinrich, sobre a relação de Marx com o  
romantismo, cf. Prawer (1978) e, no Brasil, Sartori (2018b; 2019) aporta importantes considerações  
nessa temática.  
14 O adjetivo utilizado por Marx foi schülerhaft. O sentido é francamente pejorativo, pois, segundo consta  
no famoso Deutsches Wörterbuch von Jacob Grimm und Wilhelm Grimm, o termo refere “todos os tipos  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 181  
nova fase  
   
Murilo Leite Pereira Neto  
(MARX, 2018a, p. 426). Adiante ele diz ter lido Ernst Ferdinand Klein, seu Direito  
criminal e seu Anais e, depois, alude que passou um tempo dedicando-se  
“exclusivamente aos estudos positivos” (MARX, 2018a, p. 429). Segue abaixo seu  
relato:  
[...] li o trabalho sobre a posse de Savigny, o direito criminal de  
Feuerbach e Grolman, o De verborum significatione de Cramer, o  
sistema do Digesto de Wening-Ingenheim, o Doctrina pandectarum de  
Mühlenbruch, que ainda estou estudando, e, por fim, alguns títulos de  
Lauterbach que tratam do direito civil e, sobretudo, do direito  
canônico de cuja primeira parte, a Concordia discordantium  
canonum de Graciano, li e resumi o texto original quase integralmente,  
assim como o anexo, o Institutiones de Lancelotti. [...] também vi um  
pouco de direito germânico, mas apenas de modo indireto, ao estudar  
as capitulares dos reis francos e as cartas enviadas a eles pelos papas  
(MARX, 2018a, p. 430).  
O jovem estudante também relatou ter lido e tomado nota de outras obras15,  
como o “Laocoonte de Lessing, o Erwin de Solger, a História da arte de Winckelmann,  
a História alemã de Luden” e “anotando sempre algumas reflexões”, além de ter  
traduzido a Germânia de Tácito, a Tristia de Ovídio e partes da Retórica de Aristóteles,  
também leu “o De augmentis scientiarum do famoso Bacon de Verulâmio, [e se  
ocupado] muito com Reimarus e refleti[do] voluptuosamente sobre seu livro Acerca do  
instinto artístico dos animais”. Resta claro que Marx não se dedicou ao direito apenas  
como “disciplina subordinada”, pelo menos, não durante boa parte do seu período  
acadêmico. Infelizmente, as notas, resumos, reflexões e excertos que Marx  
possivelmente realizou durante esse período não foram preservados, pois os primeiros  
cadernos que temos publicados pela Mega datam do inverno de 1839, são as suas  
anotações preparatórias para a tese doutoral. Mas, como sumariado em Pereira Neto  
(2022), é certo que Marx não esteve matriculado em disciplinas jurídicas apenas nos  
dois últimos semestres universitários, no verão de 1839 e no inverno de 1840-41,  
quando, seguramente, suas energias já estavam voltadas para o estudo e escrita da  
tese, e os planos já eram tornar-se professor universitário.  
Segundo Marx, “chegando em Berlim”, depois de cortar todas as ligações com  
o mundo externo, tratou imediatamente de “imergir na ciência e na arte” (MARX;  
ENGELS, 1975b, p. 10, tradução nossa) e, diz ele, logo percebeu que “a poesia pôde  
de comportamento indecente dos alunos, comportamento de colegial, vestimenta ruim, modos  
indelicados, desempenho desleixado”.  
15  
“Nessa época, adquiri o costume de resumir todos os livros que lia [...].” (MARX, 2018a, p. 429)  
Costume que ele manteve até o final da vida.  
Verinotio  
182 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
[durfte] e houve de ser [sollte] apenas uma acompanhante” sua, afinal, confessa: “eu  
tive que [mußte] estudar Jurisprudência e, acima de tudo, senti o ímpeto de lutar com  
a filosofia” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 10, tradução nossa). No “Prefácio de 1859,  
Marx se esqueceu de incluir a poesia, ou preferiu omitir essa informação. Quanto ao  
direito e à filosofia, percebe-se na Carta ao pai que nosso autor procurou conjugar  
ambas as matérias num só empreendimento, que ele assim o descreveu:  
Ambas foram conectadas de tal forma que, em parte, eu estudei  
Heineccius, Thibaut e as fontes de forma puramente acrítica, apenas  
de forma colegial, por exemplo, traduzindo os dois primeiros livros  
das Pandectas para o alemão, e em parte tentei realizar uma filosofia  
do direito por meio da esfera jurídica. Como introdução, avancei com  
alguns teoremas metafísicos e conduzi esta infeliz opus até o direito  
público, uma obra de quase 300 folhas. (MARX; ENGELS, 1975b, p.  
10, tradução nossa)  
Esse projeto de “realizar uma filosofia do direito”, diz Marx, resultou numa  
divisão em duas partes, intituladas “metafísica do direito” e “filosofia do direito”, que,  
por sua vez, contaria com duas seções, “doutrina formal” e “doutrina material do  
direito”. Ainda segundo nosso autor, a Metaphysik des Rechts cuidaria dos “princípios,  
reflexões conceituais, separados de todo direito efetivo e de cada forma efetiva do  
direito”; ao passo que a Rechtsphilosophie deveria tratar:  
[...] [d]a análise do desenvolvimento das ideias no direito positivo  
romano, como se o direito positivo, no desenvolvimento de suas ideias  
(não me refiro a suas determinações puramente finitas), nem sequer  
pudesse ser algo diferente da formação do conceito de direito que  
deveria ser abordado na primeira parte (MARX, 2018a, 427).  
Ainda sobre a sua Rechtsphilosophie, Marx escreve na carta que a seção sobre  
a doutrina formal do direito “descreveria a forma pura do sistema em sua sucessão e  
em sua correlação, além da divisão e da extensão”, ao passo que a segunda seção,  
doutrina material do direito, “trataria do conteúdo, ou seja, do condensar-se da forma  
em seu conteúdo”. É de se lamentar que esse material de quase 300 folhas não tenha  
sido preservado, o que termina por limitar material e objetivamente nosso trabalho de  
investigação. No entanto, a partir do relatado ao pai, é possível deduzir alguns  
elementos desse projeto que nos aproxima de certas feições intelectuais do jovem  
estudante alemão.  
Ele afirma que a parte referente à Metaphysik des Rechts ele a fez “como na  
obra de Fichte”, mas, no seu caso, “de modo mais moderno e com menos conteúdo”.  
Essa avaliação de Marx é interessante ao esclarecer que nosso autor sempre procurou  
estabelecer uma relação mediata com o pensamento de outros filósofos, ainda que se  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 183  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
nutrindo deles. Sobre a segunda parte, sua Rechtsphilosophie, Marx avalia como um  
equívoco a separação entre forma e conteúdo, “um erro partilhado com o sr. Savigny,  
como descobri mais tarde em sua erudita obra sobre a posse”. Marx somente leu Das  
Recht des Besitzes (1804) do jurista da Escola Histórica do Direito algum tempo  
depois da sua tentativa de conjugar filosofia e direito, o que resultou naquela obra de  
quase 300 folhas. Além de Fichte e Savigny, Marx revela que “na conclusão do direito  
privado material, vi que o todo estava errado, - em seu fundamento, aproximava-se de  
Kant; na execução, divergia completamente dele” (MARX, 2018a, 429). E mais adiante,  
Marx revela que seu pensamento havia sido “comparado e nutrido com ideias kantiana  
e fichtiana” (MARX, 2018a, p. 430). Como afirmamos anteriormente, comparar-se a  
certas ideias e nutrir-se delas não impediram Marx de procurar formar sua própria  
fisionomia intelectual, seja fazendo “de modo mais moderno e com menos conteúdo”  
que Fichte, seja divergindo de Kant na execução da obra. Contudo, o fato de boa parte  
dos seus escritos dessa época terem se perdido, em especial o seu trabalho de quase  
300 folhas, limita o trabalho de análise e reconstituição dessa fisionomia intelectual.  
A partir disso, puxemos um pouco o fio da meada e veremos o quanto conseguimos  
desenrolar o novelo confuso, sem “forma ou conteúdo”, como dissera seu pai, que é  
essa carta.  
Então, comecemos o desenrolo por Fichte, figura destacada do idealismo  
alemão, que exerceu grande força de atração em várias parcelas da intelectualidade  
alemã do Vormärz e que foi o primeiro reitor eleito da Universidade de Berlim. A  
medida da importância de Fichte pode ser bem compreendida quando se conhece o  
lugar ocupado por ele, segundo uma das principais figuras intelectuais da Alemanha,  
Friedrich Schlegel. Em 1798, nos Fragmentos do Athenaeum, escreveu Schlegel: “A  
Revolução Francesa, a Doutrina da ciência, de Fichte, e o Meister, de Goethe, são as  
grandes tendências de nossa época” (SCHLEGEL, 1987, p. 60). Não é de se estranhar  
que o jovem estudante tenha buscado em Fichte as bases para seu empreendimento  
malsucedido. Diante do que escreveu Marx na Carta ao pai, que seu idealismo à época  
tinha sido alimentado por Kant e Fichte, e da impossibilidade material de acessar essa  
obra que se perdeu na qual pretendia unir filosofia e direito naquilo que ele mesmo  
chamou de “desenvolvimento filosófico do direito”, podemos, no máximo, sem incorrer  
em imputação, suspeitar que nessa obra perdida haveria similaridades com  
Fundamento do direito natural segundo os princípios da doutrina da ciência (cf.  
FICHTE, 2012), de Fichte, publicada entre 1796 e 1797, e com A metafisica dos  
Verinotio  
184 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
costumes (cf. KANT, 2013), escrita por Kant de quem Marx também revela ter se  
nutrido e se comparado –, cuja primeira parte, chamada “Princípios metafísicos da  
doutrina do direito”, havia sido publicado no mesmo período da obra fichtiana.  
Antes de prosseguir, cabe destacar que o debate sobre o direito natural  
predominava entre as principais publicações da época, fins do século XVIII e início do  
XIX, e sob forte influência da filosofia kantiana. Conforme José Lamego:  
à altura, a publicação de ensaios sobre o direito natural no espírito da  
filosofia crítica era abundante. Só em 1795, ano em que Fichte realiza  
as investigações que irão culminar na publicação de Fundamento do  
direito natural, são publicados na revista Philosophisches journal einer  
Gesellschaft Teutscher Gelehrten, de que Fichte era coeditor, entre  
outros, os seguintes ensaios: Johann Paul Anselm Feuerbach (1755-  
1833), “Yersuch über den Begriff des Rechts”; Salomon Maimon  
(1754-1800), “Ueber die ersten Gründen des Narurrechts”; Johann  
Benjamin Erhard (1 766-1827), “Ueber das Rechts des Yolks zu einer  
Revolution” e “Beitrage zur Theorie der Gesetzgebung”. Também o  
grande divulgador da filosofia de Kant e antecessor de Fichte em Jena,  
Karl Leonhard Reinhold (1758- 1823), dá à estampa, em 1797,  
“Aphorismen über das aussere Recht überhaupt und insbesondere das  
Staatsrecht” (LAMEGO, 2012, p. VII).  
Da lista supracitada, destaca-se Johann Paul Anselm Feuerbach, de quem Marx  
afirma ter lido, naquele ano, a obra de direito criminal, escrita em conjunto com Karl  
Grolman. Mas o quadro apresentado por Lamego pode perfeitamente ser completado  
com outras duas grandes publicações, referimo-nos a Nova dedução do direito natural,  
de Schelling (2019), obra escrita na forma de aforismas e que aparece logo após a  
publicação da primeira parte do livro de Fichte, em 1796. Schelling, nesse livro, se  
encontra “próximo das teses de Fichte sobre o modo como o ‘Eu’ é condicionado pela  
atividade de autoposição de outros sujeitos e sobre a dedução transcendental da  
‘relação jurídica’”. Lyra Filho chega mesmo a tentar uma aproximação entre Marx e  
Schelling a partir da Nova dedução, no entanto, tudo ao modo do lyrismo, pouca prova  
e muita imputação16. É verdade que na carta de 1837, o jovem Marx chega a citar  
Schelling, entretanto, sem nos oferecer maiores detalhamentos, pois apenas diz ter  
estudado, de certo modo, “ciências naturais, Schelling e história” para escrever “um  
diálogo de 24 folhas: Cleantes ou Do início e da necessária continuação da filosofia”,  
mais um trabalho que não nos chegou, provavelmente, devido à fúria flamejante do  
16 Escreve Lyra Filho: “Cotejando-se a Neue Deduktion com as ideias jurídicas marxianas seria possível,  
inclusive, esclarecer melhor, à luz um dos seus antecedentes mais importantes (porém, não  
mencionados), o sentido e alcance de elementos da própria obra marxiana, em termos de liberdade e  
necessidade, direitos originários, contradições entre a liberdade individual e a ‘vontade geral’, separação  
entre direito e legalidade, Direito de resistência e assim por diante” (1983, p. 46).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 185  
nova fase  
 
Murilo Leite Pereira Neto  
nosso autor. Por fim, podemos incluir, finalizando esse esforço do idealismo alemão  
de dar conta do direito natural, a obra seminal de Hegel (2022), Linhas fundamentais  
da filosofia do direito: direito natural e ciência do estado no seu traçado fundamental,  
de 1820, última obra escrita e publicada pelo autor.  
O tratamento hegeliano do direito, como delineiam Lefebvre e Macherey  
(1999), em um esforço de síntese bibliográfica, começa ainda no fim do século XVIII,  
em Tübingen (1788-1793), quando reagiu de modo apaixonado à Revolução Francesa,  
interesse que continuou vivo no período de Berna (1793-96) e Frankfurt (1796-1800),  
interesse documentado nos escritos sobre a constituição alemã. No entanto, esse  
esforço intelectual alcança mais solidez no período de Jena (1800-1807), nos seus  
primeiros anos como professor, afinal, data desses anos as elaborações iniciais do  
conceito de Sittlichkeit. Em 1803, Hegel publicou um texto inteiramente dedicado à  
discussão do direito natural, além do manuscrito System der Sittlichkeit, publicado  
postumamente; ainda é do período de Jena a Fenomenologia do Espírito, publicada  
em 1807, na qual o direito foi tematizado no seu capítulo 6. Do período de Nüremberg  
(1808-1816) e de Heidelberg (1817-18), datam a sua Ciência da Lógica (1812-16) e  
a Enciclopédia das ciências filosóficas (1817), respectivamente, então, o direito passa  
a ter lugar no sistema hegeliano, ocupando a terceira parte, a qual trata do “Espírito  
objetivo”. Há nítida evolução do grau de importância do espírito objetivo na obra  
hegeliana, consequentemente, também, do direito. Conforme mostra Konzen, são 53  
parágrafos na 1ª edição da Enciclopédia, 70 na 2ª e 3ª edições, saltando para 360  
parágrafos na Filosofia do direito, obra escrita no período em que lecionou na  
Universidade de Berlim (1818-31), onde acabou, literalmente, fazendo escola. Marx,  
como é bem conhecido, matriculou-se em dois cursos, Direito criminal e Direito  
fundiário na Prússia, entre 1837 e 1838, ambos ministrados por aquele que foi um  
dos principais alunos de Hegel, Eduard Gans. Este último chegou a ministrar ao tempo  
de Hegel, em substituição deste, o curso de filosofia do direito entre 1825 e 1831,  
usando como texto base a Filosofia do direito.  
É, pois, no interior desse quadro geral, sucintamente descrito acima, cujos  
quatro vértices foram Kant, Fichte, Schelling e Hegel, referidos nominalmente, não por  
acaso, na carta de 1837, que Marx, esboçando suas primeiras posições mais nítidas  
frente ao direito, na verdade, se insere no debate alemão e firma sua adesão ao  
pensamento de Hegel. Quando Marx escreve a Carta ao pai, nosso autor já está munido  
do pensamento de Hegel e da crítica desse último a Kant e Fichte. É importante  
Verinotio  
186 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
considerar que a Carta ao pai é um escrito retrospectivo, portanto, quando a escreve,  
nosso autor já fala como um hegeliano.  
Como “vigoroso andarilho”, Marx abriu caminho até Hegel pelas veredas do  
idealismo de Kant e Fichte, sobretudo, pois Schelling, o jovem disse apenas que leu  
como parte dos estudos preparatórios para seu “diálogo de aproximadamente 24  
folhas”. Sinalizando sua chegado a Hegel, Marx afirma, ainda comentando o projeto  
do diálogo, “minha última frase era o início do sistema hegeliano”, sistema que guiará  
os próximos passos de sua caminhada até a próxima inflexão radical ocorrida em 1843,  
quando a crítica ao pensamento de Hegel ocupou sua atenção.  
No momento em que escreve a Carta ao pai, isto é, quando já havia aportado  
na filosofia hegeliana, com a qual encontrou sua nova direção, e procurava explicar a  
antiga posição, rejeitada, de um idealista alimentado por Kant e Fichte, Marx adota  
tom bastante crítico ao idealismo, ou ao então chamado idealismo17.  
A autocrítica do seu trabalho de quase 300 folhas, que ele dividiu em duas  
partes, metafísica do direito e filosofia do direito, dirige-se à emergência  
“perturbadora” da “mesma oposição entre a realidade efetiva [das Wirkliche] e o  
devendo-ser [das Sollende] que é própria ao idealismo” 18, oposição que gerou a  
aludida divisão explicitada acima, a qual Marx avaliou, retrospectivamente, como  
“inadequada e errônea” (MARX, 2018a, p. 426). Tal qual na obra de Fichte, a dedução  
do direito estava apartada “de todo direito efetivo e de cada forma efetiva do direito”  
na parte relativa à metafísica do direito. E a carta segue mostrando que ao final de  
1837 o que interessava a Marx na filosofia era sua capacidade de compreender o  
verdadeiro de maneira imanente, mas isso somente é possível se o “sujeito” não se  
contenta com o “passe[ar] ao redor da coisa, raciocina[ndo] para lá e para cá”, portanto,  
17  
Algo que o leitor contemporâneo pode estranhar é o fato de Hegel não ser tratado como parte do  
idealismo, pois, como explica Michael Heinrich (2018, p. 187), “Igualmente problemática é a  
classificação feita até hoje com a maior naturalidade de Hegel como representante do ‘idealismo  
alemão’. O próprio Hegel, assim como seus contemporâneos, ficaria bastante surpreso com ela. No  
verbete ‘idealismo’ de uma enciclopédia de 1840, as teorias de Johann Gottlieb Fichte são classificadas  
como parte do idealismo filosófico, uma vez que ele interpretava o mundo exterior contraposto ao ‘Eu’  
(o ‘não-Eu’) como uma posição [Setzung: o ato de pôr] do ‘Eu’ (sendo que o ‘Eu’ não é um Eu individual,  
mas, antes, a capacidade de raciocínio inerente a cada indivíduo, por isso a posição do ‘não-Eu’  
tampouco é uma posição individualmente arbitrária). No entanto, o sistema de Hegel foi explicitamente  
excluído do idealismo. O mesmo argumento se encontra na enciclopédia de Wigand, publicada em  
1848.”  
18  
Como Marx não utilizou o infinitivo do verbo Sollen, cuja tradução consagrada é dever-ser, mas  
Sollenden, uso incomum, mas que aparece algumas poucas vezes na Filosofia do direito, de Hegel,  
sempre acompanhado do sein, optamos, como traduzir, também, é escolher, por verter Sollenden por  
devendo-ser, seguindo a tradução de Marcos Lutz Müller da obra hegeliana.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 187  
nova fase  
   
Murilo Leite Pereira Neto  
sem permitir que a “coisa em si tome forma, vívida, num rico desdobrar-se”, e isso, diz  
Marx, é “a forma não científica do dogmatismo matemático” (MARX, 2018a, p. 427),  
no qual recai o então chamado idealismo.  
Para Barata-Moura, a acusação de dogmatismo matemático19 que o jovem Marx  
faz ao idealismo, e esse como forma de não ciência, poderia ser bem compreendido à  
luz da crítica hegeliana à “importação dos procedimentos construtivo-demonstrativos  
da matemática para o domínio da filosofia, enquanto metodologia de validade  
universal” (BARATA-MOURA, 1994, p. 32). O máximo que se pode dizer é que é  
provável, pois a carta em si não fornece material probatório suficiente para qualquer  
afirmação de certeza. Mas frente à semelhança das posições de Marx e Hegel e da  
adesão explícita do primeiro à filosofia hegeliana, a qual leu do começo ao fim,  
segundo ele próprio afirma na Carta ao pai, a aproximação ganha bastante força. A  
crítica de Marx ao idealismo e seu resultado dogmático, na passagem da carta, faz, no  
mínimo, recordar certo trecho da Fenomenologia do espírito dizemos faz recordar  
justamente por compreender que o estatuto de uma carta não é o mesmo de um texto  
teórico, assim como os rascunhos de um autor não são o mesmo que sua obra teórica  
publicada. Dito isso, na obra hegeliana se lê que:  
O dogmatismo - esse modo de pensar no saber e no estudo da  
filosofia - não é outra coisa senão a opinião de que o verdadeiro  
consiste numa proposição que é um resultado fixo, ou ainda, que é  
imediatamente conhecida. A questões como estas - Quando nasceu  
César? Que estádio era e quanto media? - deve-se dar uma resposta  
nítida. Do mesmo modo, é rigorosamente verdadeiro que no triângulo  
retângulo o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados  
dos catetos. Mas a natureza de uma tal verdade (como a chamam) é  
diferente da natureza das verdades filosóficas. (HEGEL, 2003, p. 49)  
Após referir o dogmatismo matemático como “entrave à compreensão do  
verdadeiro”, o jovem Marx recorre justamente ao exemplo do triângulo20:  
O triângulo permite que o matemático construa e demonstre; ele  
19  
Marx, mesmo depois de passadas décadas, nunca se satisfez com a prova matemática, pois em O  
capital, Livro III, encontramos o seguinte trecho: “Aqui é válido o que diz Hegel com referência a certas  
fórmulas matemáticas, a saber, que aquilo que o senso comum considera irracional é racional, e o que  
ele considera racional é a própria irracionalidade” (MARX, 2017, p. 839).  
20  
Barata-Moura defende que a alusão de Marx ao triângulo teria relação com certa crítica do jovem  
alemão a Savigny, “ora, Friedrich Carl von Savigny, num dos seus textos programáticos de maior  
impacto, em 1814, havia precisamente reivindicado para a ciência jurídica que professava a dignidade  
e o modo de proceder das ‘matemáticas’, chegando mesmo para o efeito a evocar a imagem do  
‘triângulo’” (1994, p. 33). Embora não seja um nenhum disparate considerar que a crítica de Marx  
alcance o autor da Escola Histórica do Direito, como resta comprovado nesta tese, a alusão ao triângulo  
e à matemática parece se ligar inteiramente à sua leitura de Hegel e, portanto, à crítica mais geral do  
idealismo.  
Verinotio  
188 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
continua sendo mera representação [Vorstellung] no espaço, não se  
desenvolvendo, não se tornando nada mais. É preciso colocá-lo ao  
lado de outra coisa, assim ele assume outras funções, e essa diferença  
igualada lhe dá diferentes relações e verdades. (MARX, 2018a, 427)  
Eis que a construção e demonstração típicas do matemático não passam de  
“mera representação”, isto é, um momento que mais concerne ao sujeito que “passeia  
ao redor da coisa, raciocina para lá e para cá”, momento externo à coisa, “não é em si  
mesmo o ser” (HEGEL, 1992, p. 72). Já Marx diz que a coisa mesma não tomou “forma,  
vívida, num rico desdobra-se”. Para Hegel:  
Quanto às verdades matemáticas, ainda seria menos tido como um  
geômetra quem soubesse os teoremas de Euclides exteriormente, sem  
conhecer suas demonstrações (ou conhecer interiormente, para  
exprimir-se por contraste). Também não seria considerado satisfatório  
o conhecimento da relação bem conhecida entre os lados do triângulo  
retângulo, se fosse adquirido medindo muitos triângulos retângulos.  
Mas a essencialidade da demonstração não tem ainda, mesmo no  
conhecimento matemático, a significação e a natureza de ser um  
momento do resultado mesmo; ao contrário, no resultado da  
demonstração some e desvanece. Sem dúvida, como resultado, o  
teorema é reconhecido como um teorema verdadeiro. Mas essa  
circunstância, que se acrescentou depois, não concerne ao seu  
conteúdo, mas só a relação para com o sujeito. O movimento da prova  
matemática não pertence àquilo que é objeto, mas é um agir exterior  
à Coisa. Assim não é a natureza do triângulo retângulo que se  
decompõe tal como é representada na construção necessária à  
demonstração do teorema que exprime sua relação; todo o [processo  
de] produzir o resultado é um caminho e um meio do conhecimento.  
(HEGEL, 2003, pp. 49-50)  
O trecho da missiva de Marx faz lembrar a escritura hegeliana, segundo a qual  
“no conhecer matemático, a intelecção é para a Coisa um agir exterior; segue-se daí  
que a verdadeira Coisa é por ele alterada”. O passear ao redor da coisa, na citação de  
Marx, parece ser nada menos que “o movimento do saber [matemático] [que] passa  
por sobre a superfície, não toca a Coisa mesma, não toca a essência ou o conceito”  
(HEGEL, 2003, p. 51). Não há movimento no conhecer matemático, pois, ao vívido  
desdobrar-se da coisa, que é o almejado pelo saber filosófico, contrapõe-se um  
resultado “vazio e morto, no qual as diferenças são igualmente imóveis e sem vida”  
(HEGEL, 2003, p. 51). Por isso, diz Hegel, “com efeito o morto, porque não se move,  
não chega à diferença da essência nem à oposição essencial ou desigualdade e,  
portanto, à passagem do oposto no oposto -, nem à passagem qualitativa, imanente;  
e nem ao automovimento” (HEGEL, 2003, p. 52). É possível que certa apreensão do  
pensamento hegeliano tenha levado Marx a concluir que:  
na expressão concreta do vívido mundo dos pensamentos como são  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 189  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
o direito, a natureza e toda a filosofia , deve-se observar o próprio  
objeto em seu desenvolvimento; divisões arbitrárias não se encaixam  
aqui. A razão da própria coisa tem de encontrar sua unidade em si,  
como um desdobrar-se conflituoso (MARX, 2018a, p. 427).  
Aqui, é possível estabelecer certa relação com a posição hegeliana quanto aos  
limites das “regras do conhecimento do entendimento”, insuficientes no seu “definir”,  
“dividir” e “concluir”. Marx, na Carta ao pai, reconhece que teria incorrido neste erro,  
por isso, a sua autocrítica. O que pode ser apreendido, também, como resolução do  
modo pelo qual Marx passaria a encarar o direito nos próximos anos, como a busca  
do Conceito, portanto, do direito racional, aquele que encontrou “sua unidade em si”,  
por isso, digno de tal nome21. Marx identificou no idealismo e na oposição que lhe é  
característica entre o real e o dever-ser uma barreira “à compreensão do verdadeiro”,  
o que resulta numa crítica ao modo pelo qual o Naturrecht havia sido apropriado pelo  
idealismo alemão, na filosofia prática de Kant, isto é, fora do âmbito do conhecimento  
científico; e em Fichte, embora no âmbito da filosofia teórica, o direito é deduzido fora  
do âmbito prático e, depois, analisada a sua aplicação. Apesar das diferenças, tanto  
Kant quanto Fichte incorrem na oposição que impede a “compreensão do verdadeiro”,  
portanto, do verdadeiro direito. Nesse sentido, é importante perceber a inflexão que  
Hegel representa no tratamento do direito natural, como destaca Marcos Lutz Müller,  
acerca da Filosofia do direito:  
Esta nova designação [ciência filosófica do direito, ou filosofia do direito],  
substituindo a denominação clássica de ‘direito natural’, causou estranheza  
à época, pois tanto a filosofia política antiga quanto o direito natural  
moderno tratavam o direito no âmbito da questão sobre a melhor  
constituição, isto é, do Estado concebido classicamente como sociedade  
civil [bürgerliche Gesellschaft]. Hegel rompe com esta identidade entre  
Estado e sociedade civil, que remonta a Aristóteles e ainda está presente  
em Kant, estabelecendo a sua diferença conceitual precisa, o que constitui  
uma das teses mais inovadoras da sua filosofia política. (MÜLLER, 2022,  
p. 8)  
Segundo aponta Tertulian, “foi Hegel quem quebrou o círculo de ferro dentro  
do qual Kant havia encerrado a razão e que aboliu o muro entre o mundo fenomenal  
e o mundo numeral, dinamizando as categorias”, e mais, também foi “o autor da  
Fenomenologia do espírito [quem] abriu o caminho ao substrato e à própria matéria  
21  
Aqui, embora reste bastante restringida nossa possibilidade de analisar o que de fato Marx havia  
realizado nas produções comentadas na carta ao pai, afinal, nosso autor se desfez desse material,  
podemos dizer que suas intenções manifestadas na missiva são compatíveis com a filosofia hegeliana,  
a qual toma o Conceito como distinto da Intuição e da Representação. O Conceito se distingue da  
Representação pelo fato de não ser algo que se confunde com uma reflexão dos objetos.  
Verinotio  
190 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
dos processos” (2005, p. 33). Marx percorria o caminho da filosofia alemã, indo de  
Kant a Hegel.  
A mudança designar como filosofia do direito a busca do conceito do direito  
e não mais como direito natural já havia sido preparada por Hegel na sua  
Enciclopédia das ciências filosóficas. Hegel escreveu, no único trecho em que aparece  
a expressão direito natural, que:  
A expressão “direito natural”, que foi corrente para a filosofia do  
direito, encerra a ambiguidade [seguinte]: se é o direito enquanto  
presente no modo natural imediato, ou se ele é visado tal como se  
determina pela natureza da Coisa, isto é, pelo conceito. O primeiro  
sentido era o visado ordinariamente outrora, de modo que se  
imaginou, ao mesmo tempo, um estado de natureza em que devia  
vigorar o direito natural, é oposto a ele, o estado da sociedade e do  
estado que antes exigiria e traria consigo uma limitação da  
liberdade e um sacrifício de direitos naturais. Mas, de fato, o direito e  
todas as suas determinações se fundam unicamente na personalidade  
livre, em uma autodeterminação que é antes o contrário da  
determinação-de-natureza. Por isso, o direito da natureza é o ser-aí  
da força, e o fazer-valer da violência, e um estado-de-natureza é um  
ser-aí da força-bruta e do não-direito, do qual nada melhor se pôde  
dizer senão que preciso sair dele. Ao contrário, a sociedade é antes o  
estado em que somente o direito tem sua efetividade: o que se tem  
de sacrificar é justam ente o arbítrio e a força-bruta do estado de  
natureza. (HEGEL, 1992, p. 112)  
Por isso, qualquer alusão a certo jusnaturalismo em Marx precisa levar em conta  
essa mudança promovida por Hegel e a adesão de Marx ao pensamento hegeliano.  
Nesse momento, a solução, a “nova direção”, passa por Hegel, como é explicitado na  
Carta ao pai, afinal, o pensamento hegeliano é a solução encontrada por nosso autor  
ao problema da oposição entre a efetividade e o deveria ser. Solução que passa pela  
busca do Conceito. A crítica de Hegel ao Sollen, a qual Marx parece seguir na missiva  
de 1837, passa justamente pela compreensão de que o critério para julgar o mundo  
é encontrado no próprio mundo e não fora dele. A tarefa do filósofo é descobrir, no  
mundo, a razão no interior deste mesmo mundo.  
Marx chegou na carta de 1837 ao diagnóstico que havia margeado, segundo  
ele, na sua metafísica do direito, o direito efetivo e cada forma efetiva do direito devido  
àquela oposição problemática entre o mundo e o que ele deveria ser, e que, na  
verdade, o direito é “um mundo de pensamentos vivos”, isto é, que se movem, diria  
Hegel, em passagem já citada aqui, “o morto, porque não se move, não chega à  
diferença da essência nem à oposição essencial ou desigualdade”, e, por que é vivo,  
necessita que o sujeito se detenha a “escutar atentamente o próprio objeto em seu  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 191  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
desenvolvimento, sem se empenhar em imputar-lhe classificações arbitrárias, e sim  
deixando que o própria razão da coisa siga seu curso contraditório e encontre em si  
mesma a sua própria unidade” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 11, tradução nossa), e sobre  
isso, mais uma vez diria Hegel, eis a passagem “do oposto no oposto”, ou o direito  
tem de ser investigado no seu automovimento e na sua imanência.  
Não foi esse o caminho que ele percorreu naquele seu malbaratado projeto  
acadêmico de 300 folhas, pois somente na segunda parte ele teria tratado “em geral  
de algo real” ao passo que o “conceito de direito” ocupava “toda a primeira parte”.  
Nessa segunda parte, chamada por ele de filosofia do direito, a sua pretensão era  
tratar do “desenvolvimento do pensamento no Direito Positivo romano (não me refiro  
às suas normas puramente finitas)” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 11, tradução nossa) e,  
para tanto, pensou na divisão em duas partes, teoria do direito formal e material, o  
que resultou noutra divisão malsucedida, justamente devido à separação entre forma  
e conteúdo, escreve Marx:  
[…] eu dividira a primeira parte em Teoria do Direito Formal e do  
Direito Material: uma procurava descrever a forma pura do sistema em  
seu desenvolvimento e em sua estrutura, a outra ao contrário –  
tentava expor o conteúdo e a condensação, nele, da forma. Um erro  
que compartilho com o sr. Savigny, como mais tarde descobri em sua  
erudita obra sobre a propriedade, ainda que com a diferença […] para  
mim, a forma é a arquitetura necessária das estruturações do conceito  
e a matéria é a qualidade necessária destas estruturações (MARX;  
ENGELS, 1975b, p. 11, tradução nossa).  
Antes de prosseguir, dois apontamentos nos importam: Marx já no final de  
1837 é crítico de Savigny, aspecto que se acentua ao longo do seu itinerário intelectual  
(cf. PEREIRA NETO, 2018). Outro ponto a se notar é que mesmo quando Marx  
reconhece ter compartilhado com Savigny um erro, que descobriu somente meses  
depois ao ler a obra deste sobre a posse, nosso autor não deixa de apontar a diferença  
entre ele e aquele que foi seu professor. Nesse aspecto, é difícil compreender Hasso  
Jaeger quando escreve que:  
Marx manifesta um gosto especificamente savignyano pelos direitos  
antigos, e mesmo arcaicos, buscando expor as origens primordiais da  
propriedade, suas raízes, sua pré-história... sem perder de vista a  
Germânia de Tácito como fez Savigny em sua história acerca dos  
fundamentos jurídicos da nobreza alemã. (JAEGER, 1967, p. 66,  
tradução nossa)  
E o erro, falo-nos o Marx que acabou de ingressar na filosofia hegeliana, embora  
nunca tenha subsumido seu pensamento ao mestre, com quem mantinha relação  
mediata, refletida, como veremos nas próximas páginas: “O erro foi acreditar que um  
Verinotio  
192 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
poderia e deveria desenvolver-se separadamente do outro”, no caso, forma e  
conteúdo, “não contendo, assim”, ao final, “uma forma efetiva, mas, antes, algo como  
uma escrivaninha com gavetas que eu, mais tarde, enchi de areia”, metáfora que  
constata a completa separação entre a forma e o seu conteúdo (MARX; ENGELS,  
1975b, p. 11, tradução nossa). A concepção que melhor explica a nova direção tomada  
pelo nosso jovem autor é aquela contida uma vez mais na obra hegeliana, afinal, Hegel  
defende que “na ciência o conteúdo está essencialmente ligado à forma” (HEGEL,  
2022, p. 122), noção amplamente desenvolvida por Hegel na sua Lógica.  
Puxando um pouco mais esse fio, Marx aprofunda a dicção hegeliana da carta  
ao escrever que “o nexo mediador entre a forma e o conteúdo é, precisamente, o  
conceito”, portanto, enquanto recrimina aquilo que é mera representação na filosofia,  
Marx resolve que a saída verdadeiramente científica, nas pegadas de Hegel, é a procura  
do conceito, isto é, “a verdade só no conceito tem o elemento de sua existência”  
(HEGEL, 2003, p. 28), em oposição a certa filosofia que apela para a intuição e o  
sentimento. A nova direção de Marx segue a partir de então “o princípio central da [...]  
lógica especulativa” hegeliana, qual seja, “a unidade inseparável e essencial da forma  
e do conteúdo” (MÜLLER, 2022, p. 146), princípio anunciado no início do prefácio da  
Filosofia do direito e que é retomado ao final do mesmo prefácio, agora, tendo como  
elo o “conhecer conceitualizante”, pois assim escreve Hegel:  
isso é também o que constitui o sentido concreto do que acima foi  
mais concretamente designado como unidade da forma e do  
conteúdo, pois a forma na sua significação mais concreta é a razão  
enquanto conhecer conceitualizante, e o conteúdo é a razão enquanto  
essência substancial da efetividade tanto ética como natural. A  
identidade consciente de ambas é a ideia filosófica (HEGEL, 2022, p.  
146).  
Não é, portanto, de se estranhar que Marx em seguida afirme que “em um  
desenvolvimento filosófico do direito, um tem que brotar do outro; mais ainda, a forma  
não pode ser mais que o desenvolvimento do conteúdo” (MARX; ENGELS, 1975b, p.  
11, tradução e destaque nosso); e outra vez, a dicção hegeliana é notável, afinal, não  
é o próprio Hegel que inicia sua Filosofia do direito, já no §1, afirmando que “a ciência  
filosófica do direito tem por objeto a ideia do direito, o conceito do direito e a sua  
efetivação” (HEGEL, 2022, p. 149). Segundo Müller, Eduard Gans nas suas preleções  
sobre a Filosofia do direito, após a morte de Hegel, destacava “a ruptura da obra com  
o direito natural” (MÜLLER, 2022, p. 19), a começar, como destacado acima, pela  
modificação da designação, de direito natural para filosofia do direito.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 193  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
Procurando compreender melhor as feições intelectuais do jovem Marx no final  
de 1837, a explicação de Müller ao caput do §1 da Filosofia do direito, citado linhas  
atrás, pode nos ajudar nessa tarefa. Segundo Müller, o escrito na cabeça do §1:  
não só condensa a tese fundamental do idealismo especulativo, como  
também preside a toda a apresentação do sistema enciclopédico e,  
por inclusão, da ciência do direito. Com efeito, basta eliminar do  
enunciado a especificação do conceito de direito para obter-se a tese  
fundamental da dialética especulativa e de seu “método”, que tem na  
ciência da lógica a sua justificação. “A ciência filosófica [...] tem por  
objeto a ideia [...], isto é, o conceito [...] e a sua efetividade”. Essa  
efetivação do conceito, que é ao mesmo tempo o processo de sua  
determinação progressiva, alcança precisamente na ideia a sua  
completude sistemática, a qual, em contrapartida, se põe, então, no  
procedimento “retrocedente” ou “regressivo” da “apresentação”  
[Darstellung], como o fundamento e o sujeito desse processo.  
Transposta para âmbito da “ciência filosófica do direito”, a tese diz  
que esta não é senão a apresentação do processo de efetivação do  
conceito de direito, concebido num sentido extremamente abrangente  
como objetivação do conceito de vontade livre por isso, coextensivo  
à esfera do espírito objetivo em direção à sua determinação plena  
enquanto “ideia do Estado” e à sua suspensão no “espírito universal  
do mundo” (§§33, 340), que se constitui através da história universal  
(MÜLLER, 2022, p. 150).  
A partir disso, podemos apreender melhor os motivos pelos quais o jovem  
estudante avalia retrospectivamente e em dicção hegeliana que no seu projeto “o  
espírito do direito e sua verdade desapareceram”, e o erro se situa lá no início, naquela  
oposição entre o Wirkliche e o Sollende, “própria ao idealismo” de Kant e Fichte, os  
filósofos que nutriram o idealismo do jovem acadêmico de direito.  
Apenas para que não se deixe passar nada, ao final desses esforços  
malsucedidos, Marx conta ao pai: “isto me permitiu, ao menos de certa maneira,  
apaixonar-me pela matéria e abarcá-la com um olhar panorâmico” (MARX; ENGELS,  
1975b, p. 15, tradução nossa). Essa declaração desbanca mais uma vez a tese  
psicológica de Lyra Filho, como se fosse necessário mais provas do equivocado  
lyrismo. Marx diz ao pai que “na conclusão do direito privado material, vi que o todo  
estava errado em seu fundamento, aproximava-se de Kant”, embora, “na execução,  
divergia completamente dele”, assim, ficava claro que “sem filosofia, não seria possível  
aprofundar o tema”. E, tudo voltou a se repetir, pois tornou a insistir em “escrever um  
novo sistema metafísico”, sobre o qual é impossível tecer maiores comentários, tendo  
em vista que apenas sabemos da sua existência pela menção feita na carta.  
Desafortunadamente, essa nova tentativa o obrigou “a admitir que tanto o sistema  
quanto minhas tentativas anteriores estavam errados” (MARX, 2018a, p. 429), desse  
Verinotio  
194 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
modo, depois de muita luta e resistência, teve que abandonar aquele idealismo de  
Kant e Fichte, procurando uma nova direção, agora, radicalmente diversa da anterior,  
“uma cortina havia caído, tudo o que me era mais sagrado foi despedaçado, e novos  
deuses tinham de ser encontrados” (MARX, 2018a, p. 429). O dito e descrito aqui foi  
explicitado pelo próprio autor ao pai, quando aquele forneceu as coordenadas da sua  
caminhada até Hegel: “A partir do idealismo – comparado e nutrido com ideias  
kantianas e fichtianas, diga-se de passagem , resolvi procurar a ideia na própria  
realidade efetiva. Antes, os deuses moravam acima da Terra; agora, tornaram-se o  
centro dela.” (MARX, 2018a, p. 430) Nessa anunciação da nova direção, volta a  
aparecer a tonalidade hegeliana que marca tão profundamente a Carta ao pai. E para  
provar, muitas passagens de Hegel poderiam ser trazidas à tona, elegemos uma que  
se encontra no prefácio escrito por Hegel à sua Filosofia do direito, na qual esse afirma  
“que a filosofia, porque ela é o perscrutar do racional, é, precisamente por isso, o  
apreender do presente e do efetivo, não o estabelecer de um além” (HEGEL, 2022, p.  
138), por isso “procurar a ideia no própria realidade efetiva” e por isso os deuses não  
moram mais no além, acima da Terra, mas no centro dela. E segue Hegel, explicando  
os motivos de se buscar a ideia naquilo que é efetivo, pois, escreve ele, ainda no  
prefácio, “se, inversamente, a ideia é tida como apenas uma ideia, uma representação  
num opinar, a filosofia, ao contrário, proporciona a intelecção de que nada é efetivo a  
não ser a ideia” (HEGEL, 2022, p. 140), ao que segue Hegel:  
O que importa, então, é conhecer na aparência do temporal e do  
passageiro a substância da ideia, quando na sua efetividade entra ao  
mesmo tempo na existência externa, emerge e sobressai numa riqueza  
infinita de formas, fenômenos e configurações, e envolve seu núcleo  
com a casca colorida em que a consciência inicialmente habita, e que  
só o conceito penetra, a fim de encontrar a pulsação interna e de  
igualmente senti-la ainda batendo nas configurações externas. Mas as  
relações infinitamente variadas que se formam nessa exterioridade  
através do aparecer da essência que nelas brilha, esse material infinito  
e sua organização, não são o objeto da filosofia. (HEGEL, 2022, p.  
140)  
E na sequência, Hegel é explícito ao criticar Fichte, na sua Grundlagen des  
Naturrechts, ao dizer que Fichte poderia ter se abstido “de construir, como se disse, o  
aperfeiçoamento da polícia de passaportes ao ponto de que, no passaporte dos  
suspeitos, devesse não só constar a descrição de seus sinais exteriores, mas também  
que fosse pintado seu retrato” (HEGEL, 2022, p. 141), pois não há filosofia em  
detalhamentos desse tipo. Filosofia não é “ultrassabedoria” nem um “saber-tudo”.  
Assim sendo, Hegel fornece aquela que será a fundamental coordenada a ser seguida  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 195  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
por Marx no seu tratamento do estado e do direito até sua ruptura radical com o autor  
da Filosofia do direito:  
Assim, esse tratado [a Filosofia do direito], na medida em que ele  
contém a ciência do Estado, não deve ser outra coisa do que a  
tentativa de conceituar e apresentar o Estado enquanto algo em si  
mesmo racional. Como escrito filosófico, ele deve estar o mais distante  
possível de dever construir um Estado tal como ele deve ser; o  
ensinamento que pode residir nesse tratado não pode pretender  
ensinar ao estado como ele deve ser, porém, antes, como ele, o  
universo ético, deve ser conhecido. (HEGEL, 2022, p. 141)  
Como tratado em outro trabalho dedicado ao período da Gazeta Renana, “a  
recusa ao normativismo abstrato, que constrói ou postula um dever-ser que se situa  
fora e além do presente efetivo” consagrado nesse parágrafo hegeliano é o programa  
das intervenções do jovem Marx no “periódico democrático”, e, como vimos, aqui, a  
adesão a esse programa ocorre em 1837 e se encontra registrado na Carta ao pai,  
quando Marx rejeita aquela oposição característica do idealismo. Como explica Müller,  
“a tarefa da filosofia” em Hegel, e dizemos que isso também se aplica a Marx a partir  
de então, pelos menos até a Gazeta Renana,  
é apreender conceitualmente a racionalidade intrínseca do universo  
ético e do Estado e, na apresentação dessa racionalidade, que é ao  
mesmo tempo uma crítica do apresentado, mostrar os limites das  
figuras historicamente constituídas do estado quando confrontadas  
com essa racionalidade imanente atuante no presente. Sua pretensão  
de ‘ensinar como o estado, o universo ético, deve ser conhecido’ e  
não como ‘ele deve ser’, significa que a filosofia só pode contrapor a  
racionalidade profunda do presente efetivo à realidade faticamente  
existente quando ela assumiu a forma de um ideal (“um reino  
intelectual”), tomando consciência dessa racionalidade profunda que  
excede o presente histórico, “depois que a efetividade completou o  
seu processo de formação” (parágrafo 19) (MÜLLER, 2022, p. 141).  
Na Gazeta Renana, com o perdão da curta digressão, Marx assume tão  
seriamente o programa hegeliano para a filosofia, ao qual ele adere desde a Carta ao  
pai, que suas posições favoráveis ao estado e ao direito racionais e contrárias ao  
estado e ao direito então existentes tem que ser encaradas como posições de alguém  
que se vê naquele momento no qual “a filosofia pinta seu cinza sobre cinza” e “então  
uma figura da vida envelheceu”, no caso, o estado feudal, aristocrático e estamental,  
incapaz de reconhecer outro direito que não seja o da animalidade, “e com cinza sobre  
cinza ela não se deixa rejuvenescer” como era o desejo daqueles que Marx tentou  
combater no período jornalístico, como os conservadores Savigny e Schelling.  
Depois das inúmeras tentativas fracassadas, descritas e analisadas acima, Marx  
Verinotio  
196 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
confessa ao pai que após escrever “um diálogo de umas 24 folhas, intitulado Cleantes,  
ou o ponto de partida e o desenvolvimento necessário da filosofia”, percebeu que  
chegava em Hegel, depois de, como um “vigoroso andarilho”, ter feito uma longa  
caminhada, pois ele “acabava por onde o sistema hegeliano começava”.  
Mas isso não foi fácil de admitir, para tanto, basta recordar a figura que Marx  
fazia de Hegel nos seus escritos ficcionais, cujos últimos são do início de 1837. Diz  
Marx ao pai: “que ainda hoje não posso imaginar como esta obra [Cleantes...], minha  
criatura predileta, engendrada à luz da lua, pôde me jogar, como uma sereia traiçoeira,  
nos braços do inimigo” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 16, tradução nossa). Adiante, Marx  
é ainda mais explícito quando diz que foi “consumido pela raiva de ter transformado  
em ídolo uma concepção que eu odiava” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 16, tradução  
nossa), antes disso, havia dito ter lido “fragmentos de filosofia hegeliana” e que não o  
agradou sua “grotesca melodia rochosa” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 16, tradução  
nossa). Contudo, não teve outra saída, diante do caminho percorrido, senão ingressar  
na “atual filosofia mundana” depois de ler toda a obra de Hegel, o que explica a sua  
rememoração dominada pela dicção hegeliana. Eis passagem anunciadora da sua nova  
direção e, então, o anúncio de sua adesão ao pensamento de Hegel:  
Durante meu mal-estar, conheci Hegel do começo ao fim, bem como  
a maioria de seus alunos. Através de várias reuniões com amigos em  
Stralow, entrei para o clube de doutores, entre os quais havia alguns  
Privatdozenten e meu amigo mais íntimo de Berlim, o Dr. Rutemberg  
aqui, na discussão, muitas visões relutantes se revelaram e eu me  
acorrentei cada vez mais firmemente à filosofia do mundo atual, da  
qual eu pretendia escapar, mas tudo o que era sonoro silenciara, e fui  
tomado por um verdadeiro frenesi de ironia, como facilmente poderia  
acontecer depois de tanta negação. (MARX; ENGELS, 1975b, p. 17,  
tradução nossa)  
A Carta ao pai, embora não possua a estatura de um texto teórico produzido  
para publicação e exposição do pensamento do autor, ilumina o período mais  
incógnito da produção de Marx, sobre o qual nos chegou pouquíssimo material.  
Dela, foi possível apreender, ainda que de modo incerto, que a primeira filiação  
filosófica de Marx foi ao chamado idealismo subjetivo de Kant e Fichte, com o qual  
pretendeu escrever uma obra de filosofia do direito. O seu projeto de filosofia do  
direito esbarrou na oposição, característica desse idealismo, entre ser e dever-ser, pois,  
segundo contou Marx, essa oposição o levou ao formalismo e divisões nas quais o  
direito perdia a sua riqueza como o mundo de pensamento vivos. As diversas  
tentativas de resolver o problema, ainda dentro do idealismo, não resultaram em  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 197  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
melhores produtos, o que o levou cada vez mais para perto de Hegel, filósofo que se  
mostrou mais adequado às suas pretensões de procurar a ideia na própria realidade  
efetiva, isto é, imanente ao mundo e não fora dele.  
Quando Marx escreve a Carta ao pai, na primeira quinzena de novembro, o  
percurso rememorado já havia sido realizado, portanto, nosso autor já estava nos  
braços daquele que havia sido seu inimigo, como provam suas produções literárias e  
sua resistência a Hegel assumida pelo próprio autor na carta, além disso, não há  
menções a Hegel, por exemplo, na correspondência do seu pai. Foi, pois, já como  
discípulo de Hegel que o autor alemão escreveu sua carta, por isso, a dicção tão  
marcadamente hegeliana. Como foi possível reter, Marx chega ao final de 1837  
decidido a procurar a ideia na própria realidade efetiva, o que o levará ao  
aprofundamento de suas posições frente à filosofia e a tarefa dessa no mundo.  
O seu programa para a filosofia, como chamamos aqui, será devidamente  
exposto no próximo tópico a partir da análise de sua tese doutoral e dos seus materiais  
preparatórios. Acreditamos que o período acadêmico de Marx é fundamental para bem  
compreender a defesa do estado e do direito racional realizada na Gazeta Renana,  
bem como sua virada crítica no período posterior ao seu desligamento periódico.  
Marx e o programa de crítica ao existente  
Embora Michael Heinrich considere somente a Carta ao pai, com exceção dos  
escritos ficcionais, como produção preservada dos tempos acadêmicos de Marx, neste  
trabalho, encaramos os escritos preparatórios e a tese doutoral como produções  
acadêmicas do autor. Esse material é parte constituinte da sua vida universitária, pois  
marcam a conclusão do período acadêmico e o requisito para o ingresso na carreira  
docente. Já na carta de 28 de dezembro de 1836, seu pai refere a pretensão do filho  
de seguir carreira acadêmica, “devo perguntar-lhe se você sabe quantos anos deve ter  
para ocupar um cargo acadêmico” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 303, tradução nossa).  
Mais adiante, em 3 de fevereiro de 1837, seu pai o aconselha quanto à escrita,  
voltando a referir sua carreira acadêmica, agora, ele trata diretamente do posto de  
professor. Nessa mesma carta, ele ainda aponta para certa carreira na imprensa  
periódica, um presságio daquela que será a profissão de toda a vida do filho:  
[...] portanto, a única coisa que resta é escrever. Mas como começar?  
Essa é uma pergunta difícil, mas há outra que a precede: você  
conseguirá ganhar a confiança de um bom editor? Pois isso pode  
muito bem ser a coisa mais difícil. Se você tiver sucesso nisso - e, no  
geral, você é o favorito da fortuna - então surge a segunda questão.  
Verinotio  
198 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
Algo filosófico ou jurídico, ou ambos juntos, parece excelente para  
assentar uma base. A boa poesia pode muito bem ficar em segundo  
plano, e isso nunca prejudica a reputação de alguém, exceto, talvez,  
aos olhos de alguns poucos pedantes. Artigos polêmicos leves são os  
mais úteis, e com alguns bons títulos, se eles são originais e têm um  
novo estilo, você pode decentemente e seguramente aguardar um  
cargo de professor etc. etc. etc. (MARX; ENGELS, 1975b, pp. 305-6,  
tradução nossa).  
Em 16 de setembro de 1837, o assunto é retomado noutra carta paterna. O  
plano de exercer a docência universitária se torna mais concreto e palpável a cada  
carta. Heinrich Marx que aplaudia a decisão do filho de tomar “o ensino acadêmico  
como seu objetivo, seja na Jurisprudência ou na Filosofia”, ainda acrescenta que “o  
último [é] mais provável”; e termina dizendo que “estava suficientemente ciente da  
dificuldade desta carreira”, pois aprendeu “particularmente sobre isso recentemente  
em Bad Ems”, onde, escreve ele, “tive a oportunidade de ver um bom número de  
professores da Universidade de Bonn” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 317, tradução  
nossa). Na carta anterior, escrita entre 12 e 14 de agosto de 1837, enviada de Bad  
Ems, onde Heinrich Marx passou o mês de agosto, ele diz acreditar ser muito  
importante que o filho consiga “uma reputação como crítico” (MARX; ENGELS, 1975b,  
p. 312, tradução nossa), pois isso o auxiliaria na carreira docente.  
O assunto não permaneceu restrito à comunicação paterna. Na correspondência  
com Bruno Bauer, e a primeira carta que temos data de dezembro de 1839, embora  
Bauer seja citado pela primeira vez na Carta ao pai de 1837, quando, provavelmente,  
Marx o conheceu. Na correspondência dos amigos, há algumas menções à tese  
doutoral de Marx, sendo possível perceber certa urgência para obter o título de doutor,  
requisito necessário para que nosso autor assumisse o mais rápido possível uma  
cátedra universitária. Na carta de março de 1840, Bauer a termina dizendo: “Ponha  
fim à sua procrastinação e ao seu tratamento hesitante de bobagens e meras farsas,  
como é o exame [doutoral]” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 341, tradução nossa). Em outra  
missiva, do final de março daquele mesmo ano, Bruno Bauer é ainda mais enfático e  
explícito com relação ao que seria o plano de Marx:  
Agora, você pode se informar com precisão diplomática sobre os  
trâmites do doutorado. O colóquio é apenas uma formalidade que se  
resolve em um quarto de hora. Portanto, não há mais nada a fazer  
além de fazer o exame em Berlim. Não sei nem se você precisa dizer  
ao corpo docente de Berlim que quer se qualificar como professor,  
para ter que fazer o Exame pro licentia docendi. Não há nenhuma  
menção a isso nos estatutos aqui. Todo doutor tem essa licença. Mas  
você pode dizer a Gabler sua intenção, e ele ficará ainda mais inclinado  
e feliz durante o exame quando ver mais um hegeliano chegando para  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 199  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
uma cátedra. O exame, como ouvi de Möller aqui, gira principalmente  
e regularmente em Berlim, em torno de Aristóteles, Spinoza e Leibnitz  
- nada mais. Apenas faça! (MARX; ENGELS, 1975b, p. 342, tradução  
e grifo nosso)  
O trecho supracitado deixa bastante explícita as intenções compartilhadas por  
Marx e reverberadas nas cartas de Bauer: finalizar a tese doutoral e, com isso, habilitar-  
se ao posto de docente universitário, embora Marx já apresente aquela hesitação tão  
própria da sua personalidade intelectual, que o impediu de finalizar diversas obras ao  
longo da vida. Esta carta nos ajuda a compreender a existência dos cadernos de Berlim,  
formado por um conjunto de excertos de Aristóteles, Spinoza, Leibnitz e outros. Ainda  
no trecho acima, percebe-se a autodeclaração de Bauer como hegeliano e a  
incorporação de Marx nesse círculo, algo que será inteiramente explicitado pelo  
próprio autor na sua tese. Bruno Bauer, isso é inegável, foi um grande entusiasta do  
ingresso de Marx na carreira docente, chegando a copiar, em carta de 28 de março de  
1841, trechos inteiros do estatuto de Bonn para a habilitação do amigo como  
Privatdozent (MARX; ENGELS, 1975b, p. 352), cargo inicial no qual o professor deve  
receber o pagamento das turmas, claro, se formasse turma, algo bastante corriqueiro  
na Alemanha daquele tempo, bastando lembrar que Kant foi Privatdozent por um  
longo tempo, quinze anos, precisamente. Desse modo, parece-nos bem justificado que  
a tese e o seu material preparatório, em discordância com o biógrafo Michael Heinrich,  
sejam incluídos no período acadêmico de Marx.  
Eis que, após mostrarmos na análise da Carta ao pai a reviravolta sofrida pelo  
pensamento de Marx, naquela sua “primeira crise intelectual” (HEINRICH, 2018, p. 221)  
que delineou o caminho do autor alemão até Hegel, resultando na crítica do idealismo  
que separa ser e dever-ser e na busca do Conceito na própria realidade, passamos a  
analisar a tese doutoral de Marx e os seu materiais preparatórios, os quais registram  
a adoção de certo programa filosófico que procura a ideia na própria realidade efetiva  
por meio da crítica ao existente, pois o que existe na Alemanha de então se tornou  
velho e anacrônico. Portanto, não corresponde às exigências do tempo.  
Marx, diversamente daquilo que era planejado, conforme se depreende da sua  
correspondência com Bruno Bauer, não apresenta a tese na Universidade de Bonn,  
mas na Universidade de Jena. Em carta de 31 de março de 1841, Bauer escreve a  
Marx: “imagine só, anteontem alguém veio ao meu bar, se anunciou como conhecido  
seu e de Köppen, e quem é? Neur. Aliás, ele já tinha ficado sabendo em Coblenz que  
você ia fazer o doutorado em Jena” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 355, tradução nossa).  
Verinotio  
200 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
No dia 12 de abril de 1841, Bauer escreve em tom bastante aflito, possivelmente  
devido à demora de Marx para entregar seu trabalho imortal, como Bauer jocosamente  
se refere à tese. Implora Bauer:  
Dê a ele [Edgar Bauer] o manuscrito de sua obra imortal, deixe-o  
imprimir e revisar e enviar as coisas para Jena para que o diploma  
possa ser enviado a você em Bonn ou Trier, ou Edgar pode recebê-lo  
em Berlim e depois enviá-lo para você onde quer que você queira  
enviar. Você não precisa esperar por essas coisas em Berlim. (MARX;  
ENGELS, 1975b, p. 358, tradução nossa)  
O que Bauer não sabia é que Marx já havia enviado sua tese em 6 de abril  
daquele ano, como prova a carta enviada a Karl Friedrich Bachmann, na qual o jovem  
acadêmico anuncia, para fins de doutoramento, o envio de uma “dissertação sobre a  
diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro”, além do texto, como  
anexo, ele “incluiu a litterae petitoriae, o curriculum vitae, [seus] certificados de  
conclusão das universidades de Bonn e Berlim e, finalmente, as taxas estatutárias de  
Friedrichsdors” (MARX; ENGELS, 1975b, p. 19, tradução nossa). Ao final da carta, Marx  
pede urgência na apreciação:  
Ao mesmo tempo, solicito sinceramente que, caso meu trabalho  
satisfaça o corpo docente, a concessão do doutorado seja agilizada o  
mais rápido possível. Por um lado, só posso ficar mais algumas  
semanas em Berlim, por outro lado, as circunstâncias externas tornam  
altamente desejável que eu obtenha um doutorado antes de minha  
partida. (MARX; ENGELS, 1975b, p. 19, tradução nossa)  
É compreensível a urgência sentida na correspondência dos dois amigos e  
discípulos de Hegel. A virada da década de 1830 para a de 1840 é de relutante  
desilusão com o caminho tomado pelo estado prussiano. A euforia que supostamente  
tomou conta da intelectualidade alemã, com a chegada ao trono, em 1840, de  
Friedrich Wilhelm IV, visto por muitos como um esclarecido, sucessor de Friedrich  
Wilhelm III, que faleceu em 6 de junho de 1840, logo passou, e a dura realidade se  
impôs.  
Segundo Michael Heinrich, “num primeiro momento, ele [Friedrich Wilhelm IV]  
também pareceu realizar tais esperanças”, pois Ernst Moritz Arndt, que havia sido  
perseguido, “voltou para a sua cátedra na Universidade de Bonn – ele foi demitido no  
período de ‘perseguição aos demagogos’”, e mais, “os irmãos Grimm, que pertenciam  
aos sete de Göttingen e que haviam perdido suas cátedras, foram convocados à  
Universidade de Berlim”; no início do seu reinado, “graças a uma anistia, muitos presos  
políticos foram liberados”. Acreditou-se “que Friedrich Wilhelm IV por fim introduziria  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 201  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
a Constituição prometida no dia 22 de maio de 1815” (HEINRICH, 2018, p. 289). No  
entanto, como destaca o biógrafo de Marx, “já em outubro de 1840, Friedrich Wilhelm  
IV deixou claro que não pretendia trabalhar na criação de uma constituição, tampouco  
de um parlamento prussiano que fosse além dos parlamentos provinciais” (HEINRICH,  
2018, p. 289), as chamadas Dietas, contra as quais Marx tanto lutou nos tempos da  
Gazeta Renana.  
Em 14 de maio de 1840, Altenstein, que era ministro da cultura e considerado  
um dos grandes apoiadores dos hegelianos nas universidades da Prússia, faleceu,  
sendo, então, substituído pelo conservador Eichhorn. Um ano antes, havia falecido  
Eduard Gans, nome importante da chamada ala liberal alemã, e Stahl foi nomeado para  
substituí-lo, “em sua primeira aula, no dia 26 de novembro de 1840”, este último  
“começou atacando com dureza Hegel e Gans; os estudantes reagiram com vaias, e  
houve certo tumulto” (HEINRICH, 2018, p. 289). E com a morte de Gans, Savigny e  
sua escola acabaram por dominar mais facilmente o debate jurídico. Continuando a  
composição conservadora e reacionária do estado prussiano, em 1841, houve a  
convocação de Schelling para Berlim, onde ocupou a cátedra de Hegel e combateu a  
sua filosofia e seus seguidores como parte da missão estatal que lhe foi conferida. Por  
fim, completando o quadro tenebroso no qual Marx concluiu seus estudos acadêmicos,  
com a tese doutoral, e se inseriu, posteriormente, no debate público como redator da  
Gazeta Renana, Savigny, seu professor dos tempos universitários, é nomeado, em  
1842, Ministro para a Reforma da Legislação Prussiana (HEINRICH, 2018, pp. 286-  
90). Se houve euforia com a chegada do novo rei, como conta Michael Heinrich, ela  
deve ter sido causada mais por ilusões ingênuas do que por motivos reais. Já em uma  
carta datada de 30 de março de 1840, é possível sentir o clima de hostilidade e  
desconfiança em que viviam os hegelianos naquela Alemanha dividida e dominada pela  
Prússia. Na referida carta, do punho de Bauer, lemos longo excerto em que o amigo  
de Marx aborda o clima de desconfiança em Bonn e procura alertá-lo para a sua  
chegada ao local:  
Quando você chegar aqui, não deve falar com ninguém daqui sobre  
nada além do tempo e coisas do gênero até que tenhamos  
conversado. Eu tenho que estragar todo o mundo local para você  
antes que você possa entrar. Do coração, ou seja, das coisas mentais  
e espirituais, não se deve deixar cair uma palavra, as pessoas, ou seja,  
apenas os mais inteligentes, os mais ativos, têm horror ao diabo, mas  
os pobres tolos não sabem como deixar isso claro para si mesmos. O  
que é a filosofia e seu significado atual, apenas um vago sentimento  
de ansiedade lhes diz, mas eles não podem interpretá-lo. Até agora  
Verinotio  
202 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
eu tenho - devo elogiar a mim mesmo - me comportado com cautela  
inabalável. Apenas uma vez, e isso ainda parte meu coração, eu me  
perdi. Eu estava com Kilian no Carnaval em Colônia, voltamos sozinhos  
à noite e deixei esse homem sem caráter me tentar a dizer uma palavra  
sobre a atual relação entre o Estado e a filosofia. Ainda me irrita! Este  
homem - um segundo sobrinho de Rameau - é sem nenhuma  
convicção e como eu sei com certeza ele levou as poucas palavras  
distorcidas para todos os teólogos [...]. Você vê o quão cuidadoso e  
equilibrado você tem que ser aqui, mas também vê a tortura que  
suporto aqui e quanto tempo desejo poder sentar-me com você [...].  
Meu princípio é: abra apenas no púlpito! Pratiquei neste inverno e vou  
treinar e seguir cada vez mais, porque aquele lugar é o único onde se  
pode falar diretamente do peito dessa situação. Além disso, é claro:  
viva a caneta! Mas simplesmente não fale com essas pessoas sobre  
coisas maiores, elas não entendem! Ou são tacanhos! (MARX; ENGELS,  
1975b, p. 343, tradução nossa)  
Foi nesse contexto de enorme desconfiança e perseguição que Marx escreveu  
sua tese doutoral. Mas como é típico desse autor, os tempos de urgência não o  
impediram de mergulhar profundamente nos seus objetos de investigação, afinal, o  
rigor exige paciência, talvez essa tenha sido a lição hegeliana que Marx mais assimilou.  
Conforme nos mostra Michael Heinrich, “um dos motivos da demora foi o fato de Marx  
não ter se dedicado exclusivamente à tese nesse período”, ele “estudou com afinco  
temas filosófico-religiosos, além de ter planejado a publicação não só de artigos  
avulsos, mas de um livro inteiro (sobre o hermesianismo)” (HEINRICH, 2018, p. 365),  
temática que é levantada na carta de Bruno Bauer, datada de 25 de julho de 1840. E,  
nessa missiva, Bauer se revela bastante desconfiado com o novo rei e pede cautela a  
Marx nos seus planos de publicação. Diz Bauer:  
Pelo que tenho visto aqui, no entanto, não seria o momento certo,  
nomeadamente sob o novo governo, para submeter o hermesianismo  
à crítica filosófica. Ainda não se sabe como o atual rei vai lidar com  
ele, tudo é possível. Então seria melhor esperar. É inoportuno criticar  
uma escola de filosofia que é oprimida pelo Estado e ainda não se  
enraizou na mente do povo. Foi diferente sob o antigo rei, quando  
parecia a todo momento que o hermesianismo poderia alcançar a  
vitória de forma decisiva. A crítica deve ser dirigida contra a felicidade,  
isto é, contra o que já desmoronou por dentro. Escreva sobre isso.  
(MARX; ENGELS, 1975b, pp. 349-50, tradução nossa)  
Fica nítido na carta de Bauer que a esperança com o novo rei era menor que a  
desconfiança. É provável que o tema do hermesianismo tenha chegado a Marx via  
Bruno Bauer, que já havia levantado o assunto brevemente na carta de primeiro de  
março de 1840 (MARX; ENGELS, 1975b, pp. 340-1, tradução nossa) e voltou a instigá-  
lo na correspondência de 30 de março daquele mesmo ano. Você, diz Bauer a Marx,  
“deve ler sobre isso, deve porque você fala sobre esse assunto há muito tempo”  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 203  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
(MARX; ENGELS, 1975b, p. 344, tradução nossa). Outro motivo para a demora na  
conclusão da sua tese foi “o fato de Marx abordar seu tema de maneira muito mais  
profunda do que era comum na época” (HEINRICH, 2018, p. 365). Essa temática já  
havia sido abordada por Friedrich Köppen, cujo livro foi dedicado a Marx. Nesse livro,  
Köppen escreve sobre Friedrich Wilhelm II, rei admirado por ser esclarecido22. Além  
disso, “estoicismo, epicurismo e ceticismo são considerados fontes das concepções  
filosóficas de Frederico II da Prússia”. Segundo Michael Heinrich, “Köppen traçou um  
paralelo entre o iluminismo do século XVIII e epicuristas enquanto ‘iluministas da  
Antiguidade’” (HEINRICH, 2018, p. 368), posição similar àquela adotada por Marx na  
tese doutoral quando refere Epicuro como “o maior Aufklärer grego” (MARX; ENGELS,  
1975a, p. 57, tradução nossa).  
Marx tinha a intenção de abordar as três grandes filosofias pós-aristotélicas,  
como ele mesmo cita na tese, pedindo ao leitor que “considere este tratado apenas  
como um precursor de um trabalho maior no qual apresentarei detalhadamente o ciclo  
da filosofia epicurista, estoica e cética em sua conexão com toda a especulação grega.  
As deficiências deste tratado na forma e afins serão eliminadas lá” (MARX; ENGELS,  
1975a, p. 13, tradução nossa). Assim, diante do clima de incertezas e perseguições,  
após mais de dois anos de pesquisa os primeiros rascunhos datam de 1839 , não  
era possível esperar um mês sequer, por isso, Marx teve que enviar um trabalho parcial,  
extraído daquele plano geral, como sua tese doutoral.  
Encontramos na tese de Marx, bem como nos seus cadernos preparatórios, o  
desenvolvimento e o aprofundamento das posições filosóficas hegelianas anunciadas  
na Carta ao pai. Desse modo, com a análise da tese, pensamos rebater devidamente  
certas afirmações que aludem para um Marx nutrido, ainda, por Kant e Fichte, que  
sequer foi hegeliano, pois, ao abandonar o barco do idealismo kantiano-fichtiana, Marx  
teria imediatamente se jogado nas águas quentes de Feuerbach23; e, também, aqueles  
22 Impossível esquecer os altos elogios feitos por Kant (2011) ao Friedrich Wilhelm II no seu pequeno e  
marcante texto, Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?  
23 A tese do Marx kantiano-fichtiana, até onde fomos capazes de localizar, encontra-se desenvolvida em  
Althusser: “as obras do primeiro momento [até 1842] supõem uma problemática de tipo kantiano-  
fichtiano. Os textos do segundo momento [de 1842 a 1845] repousam, ao contrário, na problemática  
antropológica de Feuerbach. A problemática hegeliana inspira um texto absolutamente único, que tenta  
de maneira rigorosa operar, no sentido estrito, a ‘inversão’ do idealismo hegeliano no  
pseudomaterialismo de Feuerbach: são os manuscritos de 44. Excetuando o exercício ainda escolar da  
Dissertação [aqui, chamada de tese], chega-se ao resultado paradoxal de que, para falar com  
propriedade, salvo no quase último texto do seu período ideológico-filosófico, o jovem Marx jamais foi  
hegeliano. De início kantiano-fichtiano; depois, feuerbachiano. A tese, tão correntemente espalhada, do  
hegelianismo do jovem Marx, em geral, é pois um mito” (2015, pp. 25-6).  
Verinotio  
204 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
que ligam Marx ao jusnaturalismo24. Contrapondo certas leituras acerca do  
pensamento de Marx no período estudado, procuramos expor a posição firmada por  
Marx na tese quanto ao papel da filosofia no mundo. Para isso, procuramos mostrar o  
que Marx entendia por realidade efetiva e contradição entre existência e conceito, algo  
fundamental para bem caracterizar as críticas de Marx às legislações debatidas na  
Dieta Renana e, ainda, sua defesa do Estado e do direito racional nas páginas da  
Gazeta Renana. A tese doutoral é um texto fundamental para o devido esclarecimento  
das posições firmadas por Marx no tempo em que esteve à frente do “periódico  
democrática”. Na tese, o autor alemão produziu, ao comparar os antigos com os  
modernos, importante diagnóstico de época e, portanto, das realizações exigidas pelo  
seu tempo. A devida compreensão deste diagnóstico se faz imprescindível àquele que  
procure identificar a fisionomia intelectual de Marx nesse momento, além de aclarar o  
pensamento do autor nos tempos da Gazeta Renana, quando Marx afirmou, por  
exemplo, que sua época é o “tempo das leis universais” (MARX; ENGELS, 1975a, p.  
206, tradução nossa), afirmação que somente pode ser bem compreendido à luz do  
citado diagnóstico de época iniciado na tese doutoral.  
Comecemos, então, por mostrar a linha de continuidade entre a Carta ao pai e  
as posições de Marx quanto aos filósofos Kant, Fichte e Hegel na sua tese. Na tese e  
nos cadernos preparatórios, Kant e seus discípulos são referidos apenas cinco vezes e  
em nenhuma delas de forma elogiosa. Definitivamente, Marx não aceitava os limites  
impostos por Kant ao conhecimento da coisa, posição que nosso autor encarava como  
impotência e espécie de apologia à ignorância. Em uma das cinco menções a Kant e  
seus seguidores, Marx chega a acusá-los de serem “sacerdotes contratados da  
24  
Aqui, aludimos à posição de Marcio Bilharinho Naves (2014, p. 10, grifo nosso), que chega a ser  
desleixada ao afirmar: “daí o eterno retorno aos textos não marxistas de Marx, nos quais ele aparece  
como representante do direito natural, como uma espécie improvável de Grotius ou de Kant, já meio  
fora de lugar em uma Prússia inteiramente fora de lugar. E não foram poucos os que julgaram ter  
descoberto uma teoria marxista do direito ali onde somente havia ecos distantes da ideologia jurídica  
burguesa”. Naves divide a juventude de Marx em: fase jusnaturalista e liberal radical, que perpassa in  
nuce o período da Gazeta Renana, e uma segunda fase, marcada pelo Humanismo e democratismo  
extremo (Sobre a questão judaica), bem como pelo comunismo especulativo (MEF de 1844), a qual  
perfaz os anos de 1843-1844. Em relação ao direito, a sistematização feita pelo autor brasileiro é a  
seguinte: I) jusnaturalismo e “defesa de um estado de direito(NAVES, 2014, p. 17). Ainda sobre a tese  
de Naves, lemos: “Marx foi, de fato, adepto do jusnaturalismo e, com base nele, sustentava todo um  
conjunto de reivindicações políticas democrático-radicais contra o Estado prussiano. Seus textos  
apoiam-se em uma teoria racionalista do Estado em que este tem por finalidade a realização da  
liberdade. [...] para Marx, uma lei só pode ser admitida como lei se ela for o reconhecimento da lei  
natural que a precede e da qual ela deve ser a expressão necessária. Assim, a lei só pode ser reconhecida  
com tal, ser verdadeira lei, quando ‘ela é a existência positiva da liberdade’,” (NAVES, 2014, pp. 18-9)  
Diante da falta de provas fornecidas pelo autor brasileiro, só podemos pensar que o critério da verdade  
é o grau de convicção com que alguém é capaz falar.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 205  
nova fase  
 
Murilo Leite Pereira Neto  
ignorância”. Importa notar, também, que o jovem Marx direciona seu ataque mais aos  
kantianos do que ao próprio Kant, afinal, o embate filosófico e político se dava naquele  
momento justamente contra os seguidores do autor da Crítica da razão pura, o que  
não prejudica sua crítica ao criticismo, o qual é atingido no âmago. Isso pode ser  
percebido no excerto abaixo:  
os epicuristas consideram o conhecimento das coisas, como uma  
alteridade do espírito, impotente para realçar a sua realidade  
[Realitas]; os pirrônicos consideram a impotência da mente para  
apreender as coisas como seu assunto essencial, uma energia real  
dela. Mesmo que ambos os lados sejam degradados e não apareçam  
no frescor filosófico da antiguidade, há uma relação semelhante entre  
os fanáticos e os kantianos em sua atitude em relação à filosofia. Os  
primeiros renunciam ao conhecimento por piedade, ou seja,  
acreditam, com os epicuristas, que o divino no homem é a ignorância,  
que essa divindade, que é a preguiça, é perturbada pelo conceito. Os  
kantianos, por outro lado, são, por assim dizer, os sacerdotes  
contratados da ignorância, sua ocupação diária é rezar um rosário  
[Rosenkranz]25 sobre sua própria impotência e a potência das coisas  
(MARX; ENGELS, 1976, p. 37, tradução nossa).  
Nos quase dois anos que separam a Carta ao pai e o início dos estudos para a  
tese doutoral, não parece que Marx tenha alterarado sua posição com relação a Kant,  
pois, como escreveu na carta, a oposição típica desse idealismo, entre o efetivo e o  
dever-ser, faz com que o sujeito deslize em torno da coisa, raciocinando de um lado a  
outro, mas sempre na superfície dela, o que impõe um limite ao conhecimento da  
própria coisa, que não toma forma nem se desdobra, portanto, não é efetivamente  
conhecida. Marx estava convencido, naquele momento, que era possível conhecer a  
realidade efetiva, e o papel da filosofia não era pregar a ignorância e a impotência,  
mas medir o existente pelo efetivo, que deveria ser conhecido pela filosofia. Nesse  
sentido, a posição kantiana de indiferença frente ao sujeito empírico se encontra muito  
afastada daquilo que o jovem Marx almejava, “procurar a ideia no próprio real”. Tal  
ponto é exposto quando, nos cadernos preparatórios, Marx escreve que para Kant, ao  
elaborar o imperativo categórico, não importa como o “sujeito empírico” se relaciona  
com esse imperativo (MARX; ENGELS, 1976, p. 44, tradução nossa). Portanto, o  
existente não é medido pelo efetivo.  
No apêndice de sua tese, “Crítica à polêmica de Plutarco contra a teologia de  
Epicuro”, Marx volta a referir Kant quando aborda a questão que envolve a prova da  
25  
Marx faz um jogo de palavras, provavelmente, ironizando o principal kantiano da época, Karl  
Rosenkranz, de quem leu a sua Geschichte der Kantschen Philosophie, como é possível averiguar nos  
excertos do caderno de Berlim (MARX; ENGELS, 1976, p. 277).  
Verinotio  
206 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
existência de Deus. E, mais uma vez, não concede uma linha de razão ao criticismo:  
As provas da existência de Deus não passam de tautologias vazias -  
por exemplo, a prova ontológica não significaria nada além de: "O que  
eu represento como real (realer) para mim é uma representação real  
para mim", isso me afeta e, nesse sentido, todos os deuses, tanto  
pagãos como cristãos, tiveram uma existência real. O velho Moloch  
não reinou? O Apolo de Delfos não era um poder real na vida dos  
gregos? A crítica de Kant também não significa nada aqui. Se alguém  
imagina possuir cem táleres, se essa representação não é arbitrária,  
subjetiva, se ele acredita nela, então os cem táleres imaginários valem  
o mesmo que cem táleres reais. Por exemplo, ele incorrerá em dívidas  
com sua imaginação, que funcionará como quando toda a humanidade  
contraía dívida com seus deuses. Pelo contrário. O exemplo de Kant  
poderia ter reforçado a prova ontológica. Táleres reais têm a mesma  
existência que deuses imaginários. Um táler real tem outra existência  
que não seja na representação, mesmo que seja na representação  
geral, ou melhor, comunitária, das pessoas? Leve papel-moeda para  
um país onde esse uso de papel é desconhecido e todos vão rir de  
sua representação subjetiva. Vá com seus deuses para um país onde  
outros deuses são cultuados e você verá que sofre de delírios e  
abstrações. Com razão. Qualquer um que trouxesse um deus Wendish  
para os antigos gregos teria encontrado provas da inexistência desse  
deus. Pois para os gregos ele não existia. O que um país determinado  
é deuses estrangeiros determinados, a terra da razão é para Deus em  
geral, uma região onde sua existência cessa. (MARX; ENGELS, 1975a,  
p. 90, tradução nossa)  
Como já havíamos demonstrado na carta de 1837, Marx, seguindo de maneira  
própria as lições hegelianas, pretende um conhecimento mais profundo que meras  
representações das coisas, um conhecimento que seja, portanto, imanente e objetivo.  
Marx encerra esse trecho de sua tese com a anunciação daquela que é a sua solução  
tanto para o problema da prova da existência de Deus quanto para o problema mais  
geral da possibilidade de conhecimento da coisa: a autoconsciência. Diz Marx: “ou as  
provas da existência de Deus nada mais são do que provas da existência da  
autoconsciência humana essencial, explicações lógicas dela. Por exemplo, a prova  
ontológica. Que ser é imediato enquanto pensado? A autoconsciência” (MARX;  
ENGELS, 1976, p. 91, tradução nossa). Pois, como bem explica Albinati, o ponto de  
partida da tese “é a observação de que, embora Demócrito e Epicuro professem a  
mesma ciência, o atomismo, eles se distinguem radicalmente no que diz respeito à  
verdade, à possibilidade do conhecimento, à relação entre o pensamento e a realidade,  
e ao próprio sentido da ciência” (ALBINATI, 2007, p. 118). O que está em jogo na tese  
de Marx é, principalmente, como fundamentar a possibilidade da subjetividade se  
elevar ao nível do conhecimento objetivo da realidade efetiva, por isso, Marx encarava  
Kant e os kantianos como “sacerdotes contratados da ignorância”, pois renunciaram a  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 207  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
essa pretensão filosófica fundamental, que é conhecer o que é, pois a filosofia “é o  
perscrutar do racional [...], o apreender do presente e do efetivo” (HEGEL, 2022, p.  
138). A crítica de Marx a Kant e aos kantianos, presente na carta ao pai e na sua tese,  
não deixa espaço algum para a defesa althusseriana do Marx kantiano no período pré-  
1843, pois, como é possível perceber, as críticas do jovem Marx atingem o cerne do  
criticismo kantiano, aquilo que poderíamos chamar de sua teoria do conhecimento.  
Sobre o Marx fichtiano, a tese também nos fornece elementos suficientes para  
afastar tal defesa. Vasculhando os cadernos preparatórios e a tese, encontramos  
apenas uma menção de Marx a Fichte. E semelhante ao que ocorre com Kant, essa  
menção é negativa e ataca frontalmente o núcleo da filosofia fichtiana, o seu Eu. Na  
passagem encontrada, Marx chega a mencionar um, à época, conhecido polemista  
alemão chamado Friedrich Nikolai, quem havia publicado duras críticas a Kant e a  
Fichte26. Escreve Marx:  
Mas em termos de objetividade, em termos de conteúdo, Heráclito é  
tão bom, que não só despreza como odeia o senso comum, é o  
próprio Tales que ensina que tudo é água, enquanto todo grego sabia  
que não poderia viver de água, é Fichte com seu Eu criador de mundo,  
enquanto até mesmo Nikolai percebeu que não poderia criar um  
mundo, todo filósofo que afirma a imanência contra a pessoa empírica  
é um ironista. (MARX; ENGELS, 1976, pp. 102-3, tradução nossa)  
Segundo Michael Heinrich, ao contrário do que se poderia pensar, isto é, que o  
destaque dado a autoconsciência significaria uma volta à filosofia fichtiana, na verdade,  
esse destaque seria “uma primeira tentativa de esclarecimento pós-hegeliano: o que  
26  
Conforme Alexandre Hahn (2017, p. 213), “Friedrich Nicolai (1733-1811), além de livreiro, editor,  
historiador, crítico literário e escritor bem-sucedido de romances satíricos, notabilizou-se como  
expoente da filosofia popular, e representante de primeira ordem do Iluminismo berlinense. Almejando  
dar voz a esse movimento, fundou e editou por 40 anos o periódico de resenhas Allgemeine deutsche  
Bibliothek. Nesse espaço, filósofos populares podiam combater tanto a autoridade religiosa, como  
aquilo que entendiam se tratar de extravagâncias do movimento romântico literário Sturm und Drang,  
e do classicismo de Weimar, representado por figuras como Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)  
e Friedrich Schiller (1759-1805)”. Ainda segundo Hahn (2017, p. 215), “Johann Gottlieb Fichte (1762-  
1814) foi alvo dos ataques mais violentos. Sua reação veio em 1801, com a obra Vida e opiniões  
extravagantes de Friedrich Nicolai, cujo título parodia dois trabalhos de Nicolai (1773 e 1798). Nessa  
obra, além de acusar Nicolai de ter atacado sua honra, em uma resenha sobre o livro Sistema do  
idealismo transcendental de Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854), Fichte ironiza o princípio  
a partir do qual o mesmo teria derivado todas suas críticas. Segundo ele, Nicolai considera infalível sua  
avaliação pessoal acerca de toda ciência e conhecimento, e supõe que ela ‘deveria servir de guia e  
padrão para o juízo de todos outros seres racionais’. De acordo com esse diagnóstico, o citado editor  
teria a presunção de que todo conhecimento estaria nele compreendido e resumido, bem como que  
tudo que não compreendesse seria ‘ininteligível e absurdo, e que a mera expressão da sua opinião  
adversa era suficiente para aniquilar completamente todos os oponentes’. A reação de Nicolai a Fichte  
veio em um longo suplemento ao volume 61 do seu Neue allgemeine deutsche Bibliothek, no qual  
também critica Johann Friedrich Cotta (17641832), editor do referido trabalho de Fichte, por  
supostamente buscar apenas o lucro com a publicação de uma obra como essa.”  
Verinotio  
208 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
impulsionaria a história não seria o movimento de uma racionalidade abstrata e geral  
- esse impulso estaria, antes, imediatamente no próprio ser humano” (HEINRICH, 2018,  
p. 393). Para Heinrich, o relevo dado por Marx à figura de Prometeu e a “reivindicação  
do reconhecimento da autoconsciência como ‘divindade suprema’ evidenciam que essa  
referência ao ser humano por meio da autoconsciência era vista por Marx como avanço  
radical” (HEINRICH, 2018, p. 393). Posição que Marx já havia enunciado brevemente  
na carta ao pai, “antes, os deuses moravam acima da Terra; agora, tornaram-se o centro  
dela”. Para Albinati:  
Analisando o texto da tese doutoral, a referência a Prometeu que ali  
comparece como uma espécie de epígrafe da intenção do autor, vem  
no sentido de afirmar o homem como criador de si mesmo, o que  
constitui de fato um aspecto assumido ao longo de sua obra. Mas ali  
mesmo, neste texto inaugural, embora a ênfase do autor recaia sobre  
o papel da subjetividade, sobre o princípio da autoconsciência, tal  
como explicitada na filosofia epicúrea, Marx já questiona a ideia de  
uma liberdade como atributo do indivíduo-átomo, questionando os  
limites de uma filosofia que parte do indivíduo em contrapartida ao  
social. A noção de uma liberdade negativa, como autonomia de se  
recusar às determinações naturais ou sociais, que se deriva da ideia  
do "clinamen", é, ao final da tese, colocada em questão, deixando em  
aberto a maneira pela qual Marx prosseguiria no equacionamento da  
relação entre o singular e o universal, entre o indivíduo e a sociedade.  
(ALBINATI, 2007, p. 59)  
Não é, por isso, um retorno a Fichte via filosofia da autoconsciência, trata-se,  
de fato, de um aprofundamento na filosofia de Hegel, que comporta certa posição  
crítica do discípulo frente ao pensamento do mestre. Marx nunca foi um hegeliano tout  
court, e isso se deveu justamente o seu modo de encarar a relação entre os discípulos  
e o mestre. Mais adiante, trataremos detidamente desse ponto, agora voltemos à  
relação de Marx com Fichte. A aludida relação de oposição é explicitada e ganha novo  
desdobramento na passagem da tese em que Marx é direto com relação à filosofia do  
Eu, quando acusa Fichte de ser irônico. Diz o contrário do que deveria ser, por isso é  
ironista, além disso opõe os lados que deveria acolher. No trecho supramencionado,  
o uso do termo Ironiker por Marx se aproxima bastante do modo como Hegel utiliza o  
termo e encara a ironia, pois este último “raramente emprega a palavra ‘ironia’, salvo  
para criticar as opiniões de outros” (INWOOD, 1997, p. 195). Não é mera coincidência  
que, no principal parágrafo da Filosofia do direito no qual encontramos um tratamento  
de Hegel sobre a ironia e quando, também, tematiza a autoconsciência, encontramos  
a mesma relação com Fichte. Escreve Hegel, sobre “ponto de vista supremo da  
subjetividade”:  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 209  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
Essa forma é agora a ironia, a consciência de que com tal princípio da  
convicção não se vai muito longe e de que nesse critério supremo só  
o arbítrio domina. Esse ponto de vista proveio propriamente da  
filosofia fichtiana, que exprime o eu como o absoluto, isto é, como a  
certeza absoluta, como a egoidade universal, que pelo seu  
desenvolvimento ulterior avança até a objetividade. não se pode  
propriamente dizer que Fichte tenha venha convertido no domínio  
prático o arbítrio do sujeito em princípio, mas, posteriormente, esse  
mesmo particular, no sentido da egoidade particular, foi divinizado  
por Friedrich von Schlegel, no que se refere ao bem e ao belo, de  
sorte que o objetivamente bom seria somente um construto da minha  
convicção, só de mim receberia o seu suporte, e que eu, enquanto o  
senhor e mestre, posso fazê-lo surgir e desaparecer. quando me  
relaciono a algo objetivo, ele ao mesmo tempo já só soçobrou para  
mim, e eu pairo sobre um espaço enorme, evocando e destruindo  
figuras. (HEGEL, 2022, p. 393)  
Interessante perceber que a crítica de Marx a Fichte segue na mesma rota da  
sua crítica a Kant, isto é, acusa a indiferença de ambos ao elemento empírico, ao  
existente. Como se verá adiante, isso não significa que Marx se alinhe aos positivistas  
e eleve o empírico ao nível da efetividade, mas que não há imanência sem  
conhecimento do empírico. Se tomarmos a defesa de Marx do direito racional e da  
codificação como positivação da liberdade, vemos de maneira exemplar que a relação  
entre o empírico e a razão não é meramente de oposição, mas, pode ser, de aparência  
e essência, onde esta última se revela naquela. Afastamos, com isso, aquele mitológico  
Marx fichtiano.  
No capítulo relativo às “Dificuldades quanto à identidade da filosofia da  
natureza de Demócrito e Epicuro”, temos a revelação daqueles que são os temas mais  
importantes para Marx e sobre os quais nosso autor se posicionou. Trata-se da relação  
dos filósofos antigos com a verdade, a certeza, a aplicação da ciência e a relação entre  
ideia e realidade efetiva. Dizendo de outro modo, a tese nos permite apreender o que  
Marx entendia por verdade, certeza e ciência, bem como, o que é fundamental, aquilo  
que nosso autor entendia da relação entre ideia e realidade efetiva. Relação que desde  
a carta de 1837 causou a primeira grande inflexão no seu pensamento, quando chegou  
à conclusão que a oposição entre ideia e realidade efetiva conduzia ao formalismo,  
decidindo-se, então, pela busca da ideia na própria realidade efetiva, o que o levou, a  
contragosto, aos braços do seu inimigo, Hegel.  
Sustentamos que a partir da confrontação das filosofias da natureza de  
Demócrito e Epicuro é possível captar o próprio pensamento de Marx sobre aqueles  
temas supracitados, tendo em vista o modo como Marx encarava as filosofias pós-  
aristotélicas e as de seu tempo, pós-Hegel. Marx encontrava muitas similitudes nessas  
Verinotio  
210 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
duas épocas. Ele via no crepúsculo da filosofia antiga, ainda, um feixe de luz capaz de  
iluminar o cinza sobre cinza da era que sucedeu a filosofia de Hegel, pois escreve  
Marx:  
Assim como há pontos nodais na história da filosofia que a elevam à  
concretude em si mesma, que abarcam os princípios abstratos numa  
totalidade e assim interrompem a progressão da linha reta, assim  
também há momentos em que a filosofia volta seus olhos para o  
mundo exterior, não mais para concebê-lo, mas como pessoa prática,  
por assim dizer, tecendo intrigas com o mundo, saindo do reino  
transparente de Amenthes e se jogando no coração da sereia  
mundana. Esta é a época carnavalesca da filosofia, quando ela se  
disfarça de cachorro como o cínico, com uma batina como o  
alexandrino ou com um vestido primaveril perfumado como o  
epicurista. É essencial que ela coloque máscaras de personagem.  
Como nos é narrado que Deucalião atirou pedras para trás na criação  
dos homens, a filosofia lança seus olhos para trás (os ossos de sua  
mãe são olhos brilhantes) quando seu coração é forte o suficiente para  
criar um mundo; mas como Prometeu, que roubou o fogo do céu,  
começa a construir casas e se estabelecer na terra, assim a filosofia,  
que se expandiu para o mundo, se volta contra o mundo como ele  
aparece. O mesmo agora ocorre com a filosofia de Hegel. (MARX;  
ENGELS, 1976, p. 99, tradução nossa)  
Marx, na tese, visava estudar os sistemas dos epicuristas, dos estoicos e dos  
céticos como as filosofias da autoconsciência, momento no qual a filosofia assume sua  
“forma subjetiva” nos seus portadores intelectuais, os filósofos. O que significa dizer  
que a “importância histórica” atribuída a esses sistemas não estava exatamente no  
conteúdo que professavam, na sua forma objetiva, mas na “forma subjetiva” que  
assumiram. Parece-me, escreve Marx, que:  
se os sistemas anteriores são mais importantes e interessantes pelo  
conteúdo, os pós-aristotélicos, e preferencialmente o ciclo das escolas  
epicuristas, estoica e cética, o são pela forma subjetiva, pela índole da  
filosofia grega. Mas a forma subjetiva, a portadora espiritual dos  
sistemas filosóficos, foi até agora quase completamente esquecida  
devido às suas determinações metafísicas (MARX, 1975a, p. 23).  
Marx adota posição semelhante ao abordar a filosofia pós-Hegel. O paralelo  
entre Aristóteles e Hegel é explícito no texto da tese, precisamente, no final das notas  
do capítulo intitulado “Diferença fundamental geral entre a filosofia da natureza de  
Demócrito e a de Epicuro”. Essa postura de Marx revela o caráter nuançado da sua  
adesão à filosofia hegeliana, sempre apropriada de modo mediato, o que permitiu ao  
autor, também, desenvolver um pensamento próprio diante das questões. Desse  
capítulo e do Capítulo V, somente restaram as notas, que, normalmente, são postas,  
pelas edições, no corpo do texto, pois os capítulos se perderam. No caso do Capítulo  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 211  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
IV da primeira parte, quase a totalidade das notas explicativas, aquelas que não são  
apenas citações, tratou da relação dos hegelianos com o mestre, bem como, e isso é  
fundamental, da filosofia com o mundo.  
Tendo isso em vista, é possível que a relação que ora levantamos tenha sido  
explicitada com maiores detalhes no texto integral, perdido. Marx imediatamente  
depois de tratar da divisão da escola hegeliana, das alas positivistas e liberais, ponto  
que abordaremos em seguida, afirma que há muito tempo que “figuras concretas  
submissas, reclamonas e sem individualidade [...] se colocam atrás de uma figura  
filosófica gigante do passado”, no entanto, “logo se dá conta do burro vestido na pele  
do leão, e a voz chorosa de um manequim de hoje e de ontem geme em cômico  
contraste por trás da voz poderosa e centenária de, por exemplo, Aristóteles” (MARX,  
1975a, p. 69). Marx encarava o período posterior a Hegel, essa “figura filosófica  
gigante do passado”, como o tempo da autoconsciência na filosofia, e a divisão em  
dois partidos como consequência do que ele chamou de “dualidade da autoconsciência  
filosófica” (MARX; ENGELS, 1975a, p. 69, tradução nossa) que se manifesta em duas  
tendências opostas.  
Nesse momento, Marx se posiciona pela primeira vez de maneira mais taxativa  
frente à escola hegeliana e, consequentemente, em relação à filosofia do mestre. Marx  
acusa os alunos de Hegel de aderirem, “em pouco tempo, como pode ser claramente  
demonstrado por seus próprios escritos, [...] com entusiasmo a toda a sua  
unilateralidade” (MARX; ENGELS, 1975a, p. 67, tradução nossa), portanto, procuram  
se relacionar com a filosofia do mestre de maneira “imediata, substancial” (MARX;  
ENGELS, 1975a, p. 67, tradução nossa), como se fossem o próprio Hegel, mas  
esquecem, diz Marx, que a relação que estabelecem com aquela filosofia é uma  
“relação refletida” (MARX; ENGELS, 1975a, p. 67, tradução nossa), isto é, mediata.  
Marx critica o deslumbramento de parte dos hegelianos, cuja adesão é “ingênua e  
acrítica”, direta, pois acreditam ter recebido do mestre uma ciência pronta e acabada,  
os quais não tiveram “escrúpulos [de] imputar uma intenção oculta atrás da noção do  
mestre”, e, por isso, explicam as acomodações de Hegel, como diz Marx, “moralmente”  
(MARX; ENGELS, 1975a, p. 67, tradução nossa). Nosso autor, parecendo seguir de  
perto o prefácio da Filosofia do direito, defende que para Hegel “não se tratava de  
uma ciência recebida, mas de uma ciência em formação, imbuída de sua própria força  
vital espiritual até o último capilar” (MARX, 2018c, p. 56).  
Na tese, Marx defende que os discípulos devem ter um papel ativo no  
Verinotio  
212 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
“progresso do conhecimento” em contraponto àquela posição “ingênua e acrítica” que  
acaba cindindo o mestre em dois, um exotérico, portanto, público e externo, e outro  
esotérico, que oculta intenções que somente seus discípulos são capazes de revelar,  
aqueles que são capazes, pode-se dizer, de chegar às intenções morais do mestre.  
Contra esse corte, Marx explica que é compreensível que um filósofo, pela sua relação  
de imediatez com sua própria filosofia, ao incorrer “em uma ou outra aparente  
inconsequência em decorrência desta ou daquela acomodação”, e ainda que tenha  
consciência disso, “não tem consciência de que a possibilidade dessa aparente  
acomodação tem suas raízes mais profundas em uma deficiência ou em uma  
formulação deficiente de seu próprio princípio”, e, nesse ponto, Marx atinge o núcleo  
da cisão ao passo que determina a tarefa dos discípulos é: explicar a acomodação com  
base na “sua consciência interior essencial” e ir além da filosofia do mestre. Agora, na  
dicção da tese:  
Portanto, se um filósofo realmente se tornasse acomodado, seus  
alunos teriam que explicar a partir de sua consciência interior essencial  
o que para ele próprio tinha a forma de uma consciência exotérica.  
Dessa forma, o que parece ser um avanço da consciência é também  
um progresso do conhecimento. A consciência particular do filósofo  
não é suspeitada, mas sua forma essencial de consciência é  
construída, elevada a uma forma e significado específicos e, assim, ao  
mesmo tempo ultrapassada. (MARX; ENGELS, 1975a, p. 67, tradução  
nossa)  
Marx considera esse movimento necessário da filosofia hegeliana como uma  
“virada não filosófica” da filosofia que conduz à “transição da disciplina para a  
liberdade”, isto é, a teoria abandona o círculo fechado de uma filosofia de escola e se  
converte em “energia prática” que se volta, “na condição de vontade”, isto é, de  
liberdade, contra “a realidade mundana”, o que é um modo próprio de encarar o  
desenvolvimento da filosofia e sua forma de se realizar no mundo. Nesse momento, a  
filosofia se tornou crítica do existente, pois, “na condição de vontade”, ela “se volta  
contra o mundo fenomênico”. A filosofia se torna ela mesma “um aspecto do mundo  
que se confronta com outro” aspecto, o fenomênico, “inspirada pelo impulso de  
realizar-se, ela entra em tensão com o outro. A autossuficiência interior e a rotundidade  
foram rompidas. O que era luz interior tornou-se chama devoradora que se volta para  
fora”. Agora, notemos, Marx via na filosofia hegeliana, no seu curriculum vitae, não a  
indiferença com relação ao fenômeno, como em Kant e Fichte, mas a qualidade de  
confrontar-se com o mundo fenomênico, uma filosofia que se tornava um aspecto do  
mundo contra outro aspecto desse mundo, uma filosofia que encontrou sua  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 213  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
“determinidade imanente” e o seu “caráter histórico mundial” (MARX, 2018c, p. 57).  
O resultado disso, sintetiza Marx, na tese:  
é que o tornar-se filosófico do mundo é concomitantemente um  
tornar-se mundano da filosofia, que sua realização é, ao mesmo  
tempo, sua perda, que aquilo que ela combate fora dela é sua própria  
deficiência interior, que precisamente na luta ela incorre nos danos  
que combate como danos no opositor e que ele só consegue suprimir  
esses danos na medida em que neles incorre. Aquilo com que se  
depara e o que ela combate sempre é o mesmo que ela é, mas com  
chaves invertidas (MARX, 2018c, p. 58).  
Esse é o lado “puramente objetivo” da “realização imediata da filosofia”; há,  
contudo, um “lado subjetivo” que envolve “a relação entre o sistema filosófico que  
está concretizado e seus portadores intelectuais, as autoconsciências individuais em  
que aparece seu progresso”. Pois, nesse seu realizar-se, “tornar-se filosófico do  
mundo” e “tornar-se mundano da filosofia”, o confronto com o mundo fenomênico  
aparece do lado subjetivo na divisão da autoconsciência em dois partidos opostos, um  
que “se volta contra o mundo e o outro contra a própria filosofia”. Esses partidos  
formulam uma “exigência e ação duplas que se contradizem”, no caso da Alemanha,  
Marx faz referência ao “partido liberal” e à tendência ligada à “filosofia positiva”.  
Nenhuma dessas tendências, que fique claro, segundo Marx defende na tese, superou  
teoricamente o sistema hegeliano, “elas apenas sentem a contradição” – consequência  
direta da sua realização – “com a identidade plástica do sistema consigo mesmo e não  
sabem que, ao voltar-se para esse sistema, só realizam dele os momentos individuais”  
(MARX, 2018c, p. 58), sendo ambas, portanto, unilaterais e parciais. É importante  
salientar que essa abordagem do problema é própria de Marx, que já estava, em  
alguma medida, pensando na superação do sistema hegeliano, embora ainda como  
papel do discípulo diante do mestre, pois mantem com esse último uma relação  
refletida.  
Mas uma dessas tendências era capaz de progresso teórico e prático, afinal,  
conforme a concepção de Marx à época, a “própria práxis da filosofia é teórica”. A ação  
do partido liberal é encarada como “crítica e, portanto, exatamente o voltar-se para  
fora da filosofia”, compreendendo que o papel da filosofia já se completou e que, por  
isso, a deficiência está no mundo que necessita “ser tornado filosófico”, isto é,  
corresponder ao Conceito. É um passo para fora do círculo da filosofia, haja vista que  
a tarefa desta “é conceituar o que é [...] pois o que é”, diz o filósofo, “é a razão” (HEGEL,  
2022, p. 142), nesse sentido, segue a lição de Hegel, “enquanto pensamento do  
mundo”, a filosofia “aparece no tempo somente depois que a efetividade completou o  
Verinotio  
214 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
seu processo de formação e se tornou acabada” (HEGEL, 2022, p. 148), por isso, o  
pulo para fora da filosofia se converte na disputa pelo tornar efetivo o mundo  
fenomênico; é um salto, podemos dizer, para a política, o que pode ser encarado como  
um passo, também, além do que pretendia Hegel. Já a “filosofia positiva” ao insistir  
em filosofar, em um “votar-se para dentro de si da filosofia”, transfere a deficiência  
que é do mundo para a própria filosofia, encara, pois, essa deficiência “como algo  
imanente à filosofia”, torna-se desvairada. A contraposição é bem clara, e a posição de  
Marx nesse confronto também, quando identificamos o partido liberal como o partido  
do conceito e o partido da filosofia positiva como o partido do “não-conceito”, isto é,  
do “momento da realidade fenomênica [Realität]” (MARX; ENGELS, 1975a, p. 69,  
tradução nossa).  
Por isso, diz Marx, “apenas o partido liberal, por ser o partido do conceito”, isto  
é, o lado que combate pelo conceito, confrontando-se com a realidade fenomênica  
[Realität], pode produzir transformações reais. Mesmo sabendo das unilateralidades,  
Marx via no partido liberal a “consciência do princípio em geral e de sua finalidade”, a  
crítica do existente, do mundo fenomênico, portanto, uma ala que luta por tonar o  
existente o mais próximo possível do Conceito. Ou, podemos dizer, que busca ensinar  
o mundo a ser aquilo que o tempo exige que ele seja.  
Considerações finais  
Ao longo do texto foram produzidas sínteses arrematadoras e conclusivas, por  
isso, poupamos o leitor de repetições e procuramos destacar nesta conclusão os  
ganhos interpretativos alcançados pelo nosso trabalho.  
Estes ganhos iluminam o caminho posterior de Marx, isto é, após concluir sua  
tese doutoral, quando seguiu carreira na imprensa periódica como umas das penas  
mais afiadas contra o estado de coisas que se estabeleciam na Alemanha do Vormärz.  
Para exemplificar a importância adquirida por nosso autor, bastaria, neste momento,  
recordar que Marx foi um dos alvos da censura prussiana, pois, do censor, St. Paul,  
nós lemos que “o doutor Marx é [...] o centro doutrinário, a fonte viva das teorias do  
periódico” (ST. PAUL, 1982, p. 699). São inúmeros os predicados utilizados pelo  
censor para caracterizar, sobretudo, a personalidade a o papel exercido por Marx no  
cenário alemão, dentre todos os redatores da Gazeta Renana, nosso autor é “o mais  
influente de todos”, “espírito reto de toda a imprensa”; sobre sua personalidade, diz  
o censor que Marx “se mataria por suas ideias, presas nele como convicções” (ST.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 215  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
PAUL, 1982, p. 699). Por fim, aludindo ao pedido de demissão de Marx, escreve St.  
Paul (1982, p. 699) que “depois da partida do doutor Marx, não há em Colônia  
realmente nenhuma personalidade capaz de manter o periódico em sua odiosa altura  
anterior e de sustentar com energia sua tendência”.  
Além de nosso trabalho esclarecer, o máximo possível, a fisionomia intelectual  
de Marx quando termina sua vida acadêmica e passa a se dedicar à crítica jornalística,  
este trabalho afasta o mito do Marx kantiano, fichtiano e até schellinguiano. Sobre a  
recusa de enxergar o hegelianismo do jovem Marx, um mito, segundo Althusser, a tese  
doutoral atua, então, na desmitologização do mito, pois fornece provas mais que  
suficientes para desbancar o autor francês. É certo que, conforme apontamos neste  
texto, a posição de Marx em relação a Hegel é bastante nuançada, visto que não é o  
caso de adesão sem mais, do tipo tudo ou nada. Como o próprio Marx escreve na tese  
doutoral, a posição que os discípulos devem guardar em relação ao mestre é reflexiva.  
Ainda mais se considerarmos que tal adesão significava, precisamente, uma posição  
frente à cisão da escola hegeliana em dois partidos.  
Marx segue para a Gazeta Renana com o seguinte programa filosófico: “é a  
crítica que mede a existência individual pela essência e a realidade particular pela  
ideia”. Pelo dito acima, defendemos que a tese doutoral de Marx revela o modo pelo  
qual Marx aderiu à filosofia hegeliana de um modo próprio, abrindo caminho para a  
crítica pública como redator do “periódico democrático”. Sua defesa do estado e do  
direito racional é a confrontação aberta com aquele direito então existente na Prússia  
e, particularmente, aquele direito produzido pela Dieta Renana. O estado e o direito  
racional sobre os quais nos fala Marx no aludido periódico é a medida do Estado e do  
direito existentes, que não correspondem, sequer, minimamente ao Conceito. A crítica  
empreendida por Marx nas páginas do jornal em que foi redator-chefe e que atraiu  
para si os olhares da censura prussiana não é outra senão aquela que explicitamos  
neste trabalho, a crítica que mede a realidade pela ideia.  
As posições de Marx nos tempos da Gazeta Renana, quando procurou nas suas  
intervenções publicísticas “produzir progressos reais”, tendo em vista que “a prática  
da filosofia é em si teórica”, portanto, crítica, ocorrem no âmago dessa posição frente  
à filosofia de seu tempo e à filosofia hegeliana, em particular. É esse, e não outro, todo  
o sentido da defesa de Marx do estado e do direito racional; e é essa, e não outra, a  
sua crítica à existência individual e à realidade particular do estado e do direito  
prussiano. Sobre os tempos da Gazeta Renana, publicamos um artigo detalhado neste  
Verinotio  
216 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
mesmo número da Verinotio.  
O que defendemos aqui, e que atravessa todo este trabalho e os próximos, é  
que o itinerário intelectual de Marx é uma das chaves mais importantes para a devida  
compreensão do pensamento do autor alemão.  
Agradecimentos  
O autor agradece ao Programa Institucional de Apoio à Pesquisa (PAPq) da  
Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) pela concessão da Bolsa de Professor  
Orientador (BPO), referente ao Edital PAPq/Uemg nº 1/2022.  
Referências bibliográficas  
ALBINATI, Ana Selva Castelo Branco. As determinações da moralidade na obra de Marx.  
Tese (Doutorado) Fafich/UFMG, Belo Horizonte, 2007.  
ALTHUSSER, L. Por Marx. São Paulo: Editora da Unicamp, 2015.  
BARATA-MOURA, José. Marx e a crítica da "Escola Histórica do Direito". Lisboa:  
Editorial Caminho, 1994.  
CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo:  
Boitempo, 2009.  
ENGELS, Friedrich. News from Prussia. In: MECW v. 3. Londres: Lawrence and Wishart,  
2010.  
FICHTE, J. G. Fundamento do direito natural segundo os princípios da doutrina da  
ciência. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.  
HAHN, Alexandre. “Apresentação”. In: KANT, Immanuel. Sobre a feitura de livros: duas  
cartas ao senhor Friedrich Nicolai. Apresentação, tradução e notas de Alexandre  
Hahn. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v. 5, n. 1, jul. 2017,  
pp. 213-227.  
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas: filosofia do espírito. Trad. Artur  
Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.  
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Menezes. Petrópolis, RJ: Vozes,  
2003.  
HEGEL, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofia do direito: direito natural e ciência do  
estado em seu traçado fundamental. Tradução, apresentação e notas de Marcos  
Lutz, incluindo os adendos de Eduard Gans; introdução de Jean François Kervégan  
Müller. São Paulo: Editora 34, 2022.  
HEINRICH, Michael. Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna: biografia e  
desenvolvimento de sua obra, v. 1: 1818-1841. Trad. Cláudio Cardinali. São Paulo:  
Boitempo, 2018.  
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar  
Editor, 1997.  
JAEGER, Hasso. Savigny et Marx. Archives de Philosophie t. XII: Marx et le droit modern.  
Paris, 1967.  
KANT, I. Metafísica dos costumes. Trad. Clélia Aparecida Martins; Bruna Nadai et al.  
Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.  
KANT, Immanuel et al. O que é esclarecimento? Trad. Paulo César Gil Ferreira. Rio de  
Janeiro: Via Verita, 2011.  
LAMEGO, J. Apresentação O fundamento do direito natural e o sistema do idealismo  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 217  
nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
transcendental. In: FICHTE, J. G. Fundamento do direito natural segundo os  
princípios da doutrina da ciência. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste  
Gulbenkian, 2012, pp. VII-XLVII.  
LEFEBVRE, Jean-Pierre; MACHERY, Pierre. Hegel e a sociedade. Trad. Thereza Christina  
Ferreira Stummer e Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Discurso Editorial, 1999.  
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente  
da modernidade. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes,  
1995.  
LYRA FILHO, Roberto. Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o direito. Porto Alegre:  
Fabris Editor, 1983.  
MARX, Karl. “Carta de Karl Marx (em Berlim) a Heinrich Marx (em Trier). 10-11 de  
novembro de 1837”. In: HEINRICH, Michael. Karl Marx e o nascimento da sociedade  
moderna: biografia e desenvolvimento de sua obra v. 1: 1818-1841. Trad. Claudio  
Cardinali. São Paulo: Boitempo, 2018a.  
MARX, Karl. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Trad.  
Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2018c.  
MARX, Karl. Escritos ficcionais: Escorpião e Félix e Oulanem. Trad. Flavio Aguiar e  
Tercio Redondo Claudio Cardinali. São Paulo: Boitempo, 2018b.  
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política Livro III: o processo global de  
produção capitalista. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo 2017.  
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. MEGA I/1. Berlin: Dietz Verlag, 1975a.  
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. MEGA III/1. Berlin: Dietz Verlag, 1975b.  
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. MEGA IV/1. Berlin: Dietz Verlag, 1976.  
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Werke 13. Berlin: Dietz, 1961.  
MÜLLER, Marcos Lutz. “Apresentação”. In: HEGEL, G. F. W. Linhas fundamentais da  
filosofia do direito: direito natural e ciência do estado em seu traçado fundamental.  
São Paulo: Editora 34, 2022.  
NAVES, Marcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras  
Expressões/Dobra Universitária, 2014.  
OLIVEIRA, Flávio. O cameralismo e os fundamentos da ciência do estado nos escritos  
de Seckendorf, Justi e Sonnenfels. Revista de Ciências do Estado, Belo Horizonte, v.  
6,  
n.  
1,  
abr.  
2021.  
Disponível  
em:  
<https://periodicos.ufmg.br/index.php/revice/article/view/e25602/e25602>.  
Acesso em: 9 nov. 2022.  
PEREIRA NETO, Murilo Leite. A gênese da crítica marxiana ao direito: nas trilhas do  
vigoroso andarilho. Tese (Doutorado) Faculdade de Direito da Universidade  
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.  
PEREIRA NETO, Murilo Leite. A posição de Marx frente ao direito nos escritos de 1835-  
1843. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Direito da Universidade Federal de  
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.  
PRAWER, S. S. Karl Marx and world literature. Oxford: Oxford University Press, 1978.  
SARTORI, Vitor. Acerca da individualidade, do desenvolvimento das forças produtivas  
e do “romantismo” em Marx. Práxis Comunal, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, 2018b, pp.  
33- 70.  
SARTORI, Vitor. Acerca da Individualidade, do desenvolvimento das forças produtivas  
e do “romantismo” em Marx [Parte II: revolução e indivíduos universalmente  
desenvolvidos]. Práxis Comunal, Belo Horizonte, v. 2, n. 1, 2019, pp. 168-201.  
SARTORI, Vitor. Marx e Hegel: três momentos da crítica marxiana ao direito. Verinotio  
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 24, n. 1, abr.  
2018a, pp. 177-208.  
SCHELLING, F. W. J. Nova dedução do direito natural. Trad. João Tiago Proença. Lisboa:  
Verinotio  
218 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 172-219 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente  
Edições 70, 2019.  
SCHLEGEL, Friedrich. “Fragmentos do Athenaeum (Excertos)”. In: LOBO, Luíza. Teorias  
poéticas do romantismo. Trad., sel. e notas de Luíza Lobo. Porto Alegre: Mercado  
Aberto, 1987, pp. 50-72.  
ST. PAUL. “El censor St. Paul informa sobre Marx”. In.: MARX, Carlos. Escritos de  
juventud. Trad. Wenceslao Roces. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica,  
1982.  
TERTULIAN, Nicolas. Metamorfoses da filosofia marxista: a propósito de um texto  
inédito de Lukács. Revista Crítica Marxista, São Paulo, Boitempo, 2005.  
VAISMAN, Ester; FORTES, Ronaldo Vielmi. “Apresentação”. In: LUKÁCS, György. A  
destruição da razão. Trad. Bernard Herman Hess; Rainer Patriota; Ronaldo Vielmi  
Fortes. São Paulo: Instituto Lukács, 2020, pp. XI-XIX.  
Como citar:  
PEREIRA NETO, Murilo Leite. O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a  
crítica do existente. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 172-219; jul.-dez.,  
2024.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 jul.-dez., 2024 | 219  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.726  
Notas sobre “As formas que precederam a  
produção capitalista” dos Grundrisse e a  
centralidade do valor  
Notes on “Forms which preceded capitalist production”  
from the Grundrisse and the centrality of value  
Paulo Henrique Furtado de Araujo*  
Mariana Pacheco de Araujo**  
Resumo: Os Grundrisse são a primeira expressão  
da crítica ontológica da economia política feita  
por Marx. Ao tratar, das formas sociais que  
precedem a sociedade capitalista, Marx já se  
afastara da centralidade, até então atribuída, à  
forma jurídica da propriedade na explicação da  
dinâmica social de toda a historicidade do ser  
social. Aqui, Marx já vislumbra que na sociedade  
do capital há uma essência (valor) que é  
permanência na mudança e que se modifica na  
quantidade e não na qualidade e que, ao mesmo  
tempo, é a forma específica da riqueza, forma de  
dominação social específica da sociedade  
Abstract: The Grundrisse is the first expression  
of Marx's ontological critique of political  
economy. In dealing with the social forms that  
precede capitalist society, Marx had already  
departed from the centrality, until then  
attributed to the juridical form of property in  
explaining the social dynamics of the entire  
historicity of social being. Here, Marx already  
glimpses that in capitalist society there is an  
essence (value) which is permanence in change  
and which changes in quantity and not in quality  
and which, at the same time, is the specific form  
of wealth, the specific form of social domination  
of capitalist society, the self-mediating social  
form and the social medium. This substance only  
exists socially within an inexorable process of  
self-expansion that is named by Marx as capital.  
Capital thus reveals itself to be a logical  
constraint that at its most crucial level is  
independent of the juridical form of property to  
take effect in the human world.  
capitalista, forma social automediadora  
e
médium social. Essa substância só existe  
socialmente no interior de um inexorável  
processo de autoexpansão que é nomeado por  
Marx como capital. Capital, desse modo, revela-  
se um constrangimento lógico que em seu nível  
mais crucial independe da forma jurídica da  
propriedade para se efetivar no mundo humano.  
Palavras-chave: Marx; Grundrisse; formas de  
propriedade; valor; laço social.  
Keywords: Marx; Grundrisse; forms of property;  
value; social tie.  
Introdução  
Sustentamos que a instauração da teoria do valor por Marx é um marco na  
constituição do pensamento propriamente marxiano. Os manuscritos de 1857-58,  
conhecidos como Grundrisse, são a primeira expressão da crítica ontológica da  
*
Professor da Faculdade de Economia da UFF, professor do PPGE-UFF, membro do Niep-Marx-UFF e  
Coordenador do Gepoc-UFF. Orcid: <https://orcid.org/0000-0003-1454-4888>. Contato: phfaraujo@id.uff.br.  
** Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela EAU-UFF, mestranda do IPPUR-UFRJ. Participante do Gepoc-  
UFF. Contato: mparaujo@id.uff.br.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
economia política feita por Marx. Decorre que, em nosso entendimento, ao tratar, nesse  
manuscrito, das formas sociais que precedem a sociedade capitalista, o autor  
germânico já se afastara da centralidade, até então atribuída, à forma jurídica da  
propriedade na explicação da dinâmica social de toda a historicidade do ser social. Em  
outras palavras, Marx já vislumbra que na sociedade do capital há uma essência (valor)  
que é permanência na mudança e que se modifica na quantidade e não na qualidade  
e que, ao mesmo tempo é a forma específica da riqueza, forma de dominação social  
específica da sociedade capitalista (dominação abstrata), forma social automediadora  
e médium social (o que permite o laço social indireto entre os produtores, cf. POSTONE,  
2014; DUAYER; ARAUJO, 2015; 2020; 2022). Essa substância só existe socialmente  
no interior de um inexorável processo de autoexpansão que é nomeado por Marx como  
capital. Capital, desse modo, revela-se um constrangimento lógico que em seu nível  
mais crucial independe da forma jurídica da propriedade para se efetivar no mundo  
humano.  
Acreditamos que este é o marco no qual devém patente para o autor a  
inadequação de tomar a forma de propriedade enquanto chave explicativa de toda  
dinâmica do ser social. Ainda assim, Marx, ao examinar as formas que precedem a  
sociedade moderna, faz todo um esforço por diferenciar as formas de propriedade  
vigente em cada formação social sob escrutínio e parece sugerir que a propriedade da  
terra é uma forma do aparecimento da substância dessas formações sociais.  
Naturalmente, sabemos que há vários tipos de substância no ser social (cf. ARAUJO,  
2021) e, além disso, Marx parece ter por meta o desvendar dos modos pelos quais  
cada particularidade humana, ou personalidade singular, se conecta com sua  
comunidade. Em outras palavras, ele parece se ocupar de esclarecer quais são os laços  
sociais constitutivos de cada formação social específica que antecedeu a sociedade do  
capital, posto que, nos Grundrisse, ele já descobriu que o laço social, na sociedade  
moderna, o indivíduo traz no bolso (dinheiro forma autonomizada do valor, cf. MARX,  
2011).  
A chave de leitura aqui delineada exige a elucidação do que é a contradição  
fundamental da sociedade do capital e do próprio ser social. Para o marxismo  
tradicional, a contradição fundamental, em ambos os casos, se apresenta como a  
antítese entre relações de produção e forças produtivas. Com o desenvolvimento das  
forças produtivas, ou seja, com o aumento de produtividade, nos momentos iniciais de  
constituição do ser social, há a possibilidade de que os produtores dos valores de uso  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 221  
nova fase  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
não se apropriem da totalidade do que foi produzido por eles. Ou seja, surge um  
grupo de humanos não produtores que passa a explorar os produtores e constituem  
formas de propriedade que privam os produtores da possibilidade da economia de  
tempo de trabalho. Trata-se, para o marxismo tradicional, do surgimento da luta de  
classes que, apesar de decorrer da contradição fundamental, é o motor da história do  
ser social. Para esta leitura, na sociedade moderna, a sociedade do capital, a luta de  
classes se simplifica, pois se opõem duas classes fundamentais (burguesia e  
proletariado) e, ao mesmo tempo, a exploração se complexifica, pois se trata de  
extração de mais-valor que não se manifesta imediatamente aos produtores  
(proletários), mas de forma mediada pelos salários. Por este entendimento, a luta de  
classes é o que estrutura a sociabilidade do capital e a relação que constitui a classe  
antípoda ao capital portadora da missão histórica de emancipar a si mesma e a toda  
humanidade da propriedade privada e da exploração.  
Aceitando que a teoria do valor é o momento mais importante da constituição  
do pensamento marxiano e que trata-se de uma crítica ao trabalho produtor de  
mercadorias, pode-se compreender que a contradição fundamental da sociedade do  
capital (cf. ARAUJO, 2022b; POSTONE, 2014), e somente nela, é constituída pelo par  
antitético formador da categoria mercadoria (valor de uso e valor), do que decorre que,  
em última instância, trata-se de uma contradição que aciona uma forma específica de  
temporalidade (tempo abstrato) e, com ela, a constituição de um tipo único de  
dominação social a dominação temporal, impessoal. O que esclarece a perda da  
centralidade das formas jurídicas da propriedade na crítica de Marx à sociedade  
moderna e explicita que a crítica oferecida pelo autor é ao trabalho determinado por  
mercadoria1. Este só pode existir na sociedade do capital, na medida em que toda a  
sociedade já se encontra dividida entre uma massa humana que é obrigada a vender  
a mercadoria força de trabalho e uma pequena parcela que compra esta mercadoria  
força de trabalho. Ainda que os dois polos da operação sejam determinações do valor  
em expansão (capital) e que as singularidades humanas envolvidas na relação sejam  
máscaras de caráter de valor (vendedores e compradores de mercadorias), não há  
perda do livre arbítrio dos indivíduos. Eles mantêm sua liberdade de escolha, todavia,  
1 Em formações que precedem o modo de produção capitalista havia trabalho produtor de mercadorias.  
Todavia, esta era uma atividade lateral e não central a cada uma destas formações sociais. No  
capitalismo, todo trabalho é determinado pela obrigatoriedade de produzir valor, pois valor é o laço  
social que só pode existir na forma de mercadoria ou dinheiro (e o dinheiro, na sociedade moderna, é  
um tipo especial de mercadoria).  
Verinotio  
222 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
como toda escolha, sempre condicionada. Eis que se pode dizer que Marx ampara a  
ideia de que o valor (que só existe socialmente se expandindo) molda ou plasma as  
subjetividades humanas, além de plasmar a objetividade social de modo a garantir as  
condições para a sua perpétua reprodutibilidade. Neste caso, a luta de classes, as  
forças produtivas e as formas de produtividade têm no valor a prioridade ontológica  
no sentido luckácsiano (cf. LUKÁCS, 2013). Em outras palavras, há uma contradição  
entre relações de produção e forças produtivas na sociedade do capital que é  
plasmada pelo valor e por sua lógica. Naturalmente, isso não se aplica às formações  
sociais que antecederam o modo de produção capitalista.  
Duas questões, a partir da leitura sustentada no presente artigo, permaneceram  
pendentes: nas formações precedentes havia a contradição entre relações de produção  
e forças produtivas? A luta de classes era a chave explicativa dessas formações? A  
resposta adequada a ambas exigiria mais do que um artigo específico. Ainda assim,  
explicitando que buscamos arrimo na “Ontologia” de Lukács e na interpretação do  
marxismo proposta por Moishe Postone, adiantaremos os traços gerais da nossa  
compreensão a respeito desse conjunto de questões.  
Advogamos que a categoria trabalho universal/geral é fundante do ser social e  
a protoforma do agir humano (cf. LUKÁCS, 2012; 2013; ARAUJO, 2022d). Ou seja, o  
trabalho entendido como práxis humana vital, que se caracteriza pelo pôr teleológico,  
transforma o meio exterior ao indivíduo para o atendimento das necessidades (do  
estômago e do intelecto) do indivíduo e da comunidade a que ele pertence sendo  
evidente que esta práxis só pode ser efetivada coletivamente e é o que permite o  
salto ontológico do ser orgânico para o ser social. A formação puramente social  
humana tem por caráter distintivo se reproduzir de forma não mais muda. Se no ser  
orgânico a reprodução do indivíduo e do gênero está inscrita e determinada em seus  
cromossomos, no ser social a reprodução aciona, necessariamente, o novo. Esta  
novidade é cada vez mais puramente social, distanciando-se (sem poder jamais  
eliminar) os limites impostos à pura sociabilidade pelo ser natural (orgânico e  
inorgânico). Lukács, seguindo Marx, assinala que se trata de um processo de  
afastamento das barreiras naturais ou da manifestação da única lei transistórica do ser  
social: a lei da economia de tempo de trabalho (cf. MARX, 2011; 2017ª; 2017b;  
LUKÁCS, 2012; 2013). Economia de tempo de trabalho é decorrente do próprio  
trabalho universal/geral, é um corolário necessário deste. Todo trabalho humano  
objetiva e exterioriza ao mesmo tempo. A exteriorização retroage sobre o produtor  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 223  
nova fase  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
obrigando-o a corrigir e aperfeiçoar a práxis de trabalho. Portanto, ela aciona a  
economia de tempo de trabalho, o aumento de produtividade. Ocioso enfatizar que  
tarefas de trabalho executadas exitosamente, que efetivam a prévia ideação, são  
copiadas e reproduzidas pela comunidade a que pertence o trabalhador. O trabalho  
universal/geral em suas manifestações mais primevas já exige o desenvolvimento da  
subjetividade, da consciência, do intelecto do produtor. Ela dá partida à constituição  
da individuação (formação das personalidades), às formas de pensamento científicas –  
ocupadas de capturar do modo o mais adequado possível as legalidades do ser natural  
e social, aos valores ético-morais pois exige formas de comportamento nas tarefas  
coletivas de trabalho que sejam aceitáveis pela comunidade etc. Além disso, quando  
consideramos os pores teleológicos de segunda ordem (cf. LUKÁCS, 2013), que  
incidem sobre as consciências de outras singularidades humanas, podemos perceber  
que, na constituição de formas ideológicas2, a práxis humana vital é o modelo do agir  
(verifica-se o mesmo para todas as outras práxis humanas).  
A economia de tempo de trabalho manifesta-se de modo diferente nas  
diferentes formações socioeconômicas pelas quais o gênero humano se organizou  
historicamente. Naturalmente, ela possibilita o surgimento, em formações muito  
iniciais, de possuidores e não possuidores e, em formações posteriores, de  
proprietários e não proprietários. Em todas essas formações que precedem o modo  
de produção capitalista o laço social entre as singularidades humanas se dá de modo  
manifesto (laços parentais, costume, tradição, formas religiosas etc.) e a forma da  
propriedade é de fundamental importância para a efetivação do laço social manifesto.  
Estamos diante de uma contradição entre relações de produção e forças produtivas?  
Ainda que seja este o caso, há que se destacar que tal contradição não parece acionar  
uma historicidade direcional movida por uma substância que é o próprio trabalho  
abstrato em seu movimento autoexpansivo e que constitui um tempo abstrato que tem  
sua porosidade preenchida por uma pletora de valores de uso/mercadorias. Estas são  
características exclusivas da sociedade do capital. Além disso, permanece o desafio de  
se comprovar, com robustas fontes historiográficas, as formas de manifestação de tal  
contradição ao longo das várias formações socioeconômicas que precedem a  
sociedade do capital e, em particular, como a referida contradição conduz às fases de  
transição entre os modos de produção.  
2
Ideologia para Lukács, em sua concepção mais geral, é proposta de resolução dos conflitos sociais  
que se apossa da consciência da massa do povo em certos momentos.  
Verinotio  
224 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
Considerando o exposto até agora, podemos aduzir que no ser social há  
categorias3 simples que só desenvolvem todo o seu potencial [dýnamis] em um todo  
concreto mais complexo (cf. MARX, 2011). Em outras palavras, há amparo para  
dizermos que, em formações sociais pretéritas, é possível identificar protoformas de  
categorias que trazem em si uma potencialidade que só irá se realizar na sociedade  
complexa mais desenvolvida4 em termos do número de laços sociais que é a sociedade  
do capital. Por evidente, não se trata de algum tipo de teleologia histórica5, de um  
sujeito que põe um ponto de chegada no desenvolvimento do ser social e, tampouco,  
de algum anacronismo. Na verdade, aqui se adota a sugestão de Marx (2011, pp. 56-  
58) de que as formas categoriais mais desenvolvidas são uma chave para a  
compreensão das formas menos desenvolvidas e para a elucidação da gênese dos  
complexos sociais totais. Essas indicações nos permitem delinear nosso argumento a  
respeito da questão: as relações de produção das sociedades pretéritas são  
estruturadas por classes sociais e por suas lutas?  
No nosso entendimento é inadequado postular a existência de classes sociais  
plenamente constituídas em formações sociais anteriores à sociedade do capital.  
Assim, podemos fazer uma analogia com as categorias dinheiro e capital que aparecem  
em tais formações enquanto protoformas ou formas embrionárias das categorias  
dinheiro e capital plenamente constituídas encontradas somente no interior da  
sociedade do capital e com isso podemos amparar a ideia de que a categoria classe  
social, em sua forma plenamente efetivada, só se verifica na sociedade do capital (cf.  
ARAUJO, 2016; 2018; 2020b). Aqui as classes são corolário necessário do valor em  
expansão e suas lutas são moldadas pelo valor sem que engendrem, por si, um  
mecanismo de constituição de um sujeito antípoda ao capital e à sua lógica. Com isto,  
permanece o desafio de explicar o que produz a luta das protoformas de classes nas  
formações que antecedem o capitalismo, posto que valor em expansão só existe de  
forma generalizada na sociedade moderna. Trata-se de um mecanismo endógeno a  
cada modo de produção? O resultado é direcional, ou seja, aponta para o aumento  
3 “Categorias expressam formas de ser, determinações de existência” (MARX, 2011, p. 59).  
4 O desenvolvimento do ser social, em Lukács e Marx, é explicado pelo número de laços sociais que  
cada singularidade humana tem que estabelecer para se reproduzir e permitir a reprodução da  
totalidade da sociabilidade. Naturalmente, quanto maior a divisão social do trabalho, maior será o  
número de laços e, com eles, maior o afastamento da barreira natural.  
5 Lembrando que, segundo Lukács (2013), a teleologia existe e se restringe à práxis humana. Ainda que  
toda história do ser social seja resultado do agir humano e este agir só vem a ser através do pôr do  
fim, a teleologia não existe no âmbito da própria história do ser social.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 225  
nova fase  
     
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
dos laços sociais e para o afastamento da barreira natural? Mais uma vez, são  
perguntas que exigem um robusto arrimo bibliográfico para que comecem a ser  
adequadamente elucidadas.  
Por fim, registramos que o afastamento das barreiras naturais, a economia de  
tempo de trabalho, constitui a condição necessária para a constituição do que há de  
especificamente humano no ser humano. Lukács (2013) explica que a substância do  
ser social é permanência na mudança que também se modifica em cada forma de  
manifestação que se verifica ao longo das várias formações socioeconômicas. Essa  
substância é a humanização do humano ou a efetivação da omnilateralidade do ser  
humano, a humanização dos seus sentidos e a possibilidade da fruição da vida de  
modo especificamente humano (cf. ARAUJO, 2021). Não obstante, o processo de  
humanização do ser humano não se apresenta como uma tendência linear, na verdade  
ele é marcado por idas e vindas, avanços e recuos e, ainda assim, se tomarmos um  
arco temporal bastante dilatado é possível constatar factualmente o andamento desta  
processualidade. Ocorre que, essa processualidade sempre está associada ao  
estranhamento de cada singularidade em seu processo de individuação (formação da  
personalidade). De tal modo que há uma cisão entre os dois polos constitutivos do ser  
social: o indivíduo e o gênero. Melhor dizendo, o desenvolvimento das capacidades  
do gênero humano, o maior conhecimento e domínio sobre as legalidades do ser  
natural e social, estão associados ao bloqueio das possibilidades de efetivação da  
humanização da maior parte das individualidades. Neste sentido, em cada formação  
social há várias formas de estranhamento que se modificam de acordo com as  
alterações das formações socioeconômicas.  
Na sociedade do capital, no entanto, temos algo novo, distinto, a humanidade  
parece estar diante de um beco sem saída. Na sociedade moderna o laço social (valor)  
é objetivado na forma mercadoria, o laço é objetual, possui autonomia em relação aos  
produtores e uma vez produzido apaga a processualidade que o constitui enquanto  
mercadoria ou seja, produzir mercadorias é produzir reificação, fetiche (cf. POSTONE,  
2014; DUAYER; ARAUJO, 2015; 2020; 2022; ARAUJO, 2021; 2022a). Lukács (2013)  
adverte que esta não é uma reificação inocente, muito pelo contrário, trata-se de uma  
reificação autoestranhadora, produtora de estranhamento social. Ou seja, produtora  
de uma sociedade alienada em que os produtos do trabalho humano dominam as vidas  
dos produtores sem que essa dominação apareça diretamente enquanto tal para estes  
produtores. Como a sociedade do capital, por sua lógica imanente, é uma máquina  
Verinotio  
226 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
fantástica de aumento de produtividade, de recuo das barreiras naturais, ela traz  
consigo, em potência [dýnamis], a possibilidade de uma maior humanização do ser  
humano e, ao mesmo tempo, como valor é trabalho humano abstrato e a lógica do  
capital é a lógica da ampliação do valor, ela exige o aumento permanente do trabalho  
(tanto intensivo quanto extensivo) de modo a inviabilizar o tempo livre da  
obrigatoriedade do trabalho para a massa do povo produtor. Não podemos perder de  
vista que, além disso, a contradição fundamental, entre valor de uso e valor, aciona o  
aumento da composição do capital e a formação de uma, cada vez maior e permanente,  
população supranumerária (cf. ARAUJO, 2022c) cuja consumação histórica é vir a ser  
a massa do povo [Volksmasse] composta, em sua maior parte, pelo sedimento mais  
baixo da antiga classe trabalhadora produtiva. O que delineia o advento da pura  
barbárie da sociedade do capital e do colapso dessa formação social (cf. ARAUJO,  
2022c).  
Formas de propriedade e mediação social  
Marx (2011) inicia a exposição das formas de propriedade na seção Formas que  
precederam a produção capitalista (título dado pela edição Instituto Marx-Engels-  
Lênin) dos Grundrisse, destacando que a sociabilidade do capital que, como  
sabemos, é arrimada pelo valor enquanto médium do laço social indireto entre os  
produtores tem por pressuposto a existência de trabalhadores livres e a imposição  
da venda da força de trabalho por dinheiro (salário). Em outras palavras, o acento é  
dado à mudança radical do tipo de laço social que se instaura com o advento da  
sociedade do capital. Marx inicia por destacar que os laços sociais manifestos das  
formas que precederam a produção capitalista têm que desaparecer para que o novo  
laço social indireto, e sua formação social específica, emerjam. É cristalino que esse  
devir exige a separação do produtor das condições objetivas de trabalho, sua  
separação dos objetos e meios de trabalho. Como a vinculação do produto à terra era  
a marca comum de todas as formações sociais que antecederam a sociedade do capital,  
o filósofo alemão se ocupa em esclarecer as linhas gerais dessas principais formações  
socioeconômicas e enfatiza que em todas elas o trabalhador tinha na terra o seu  
laboratório natural e se relacionava “consigo mesmo como proprietário, como senhor  
das condições de sua realidade” (MARX, 2011, p. 388). Decorre que esse produtor se  
relacionava com os outros indivíduos e com sua comunidade como proprietários ou  
coproprietários a depender de se o pressuposto da propriedade da terra é posto  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 227  
nova fase  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
pela comunidade ou pelas famílias singulares que estruturam a comunidade. Nos dois  
casos os laços sociais não articulam produtores, mas proprietários que são membros  
da comunidade e, simultaneamente, produtores/trabalhadores. Os trabalhos  
executados não têm por meta a produção de valor, por evidente, mas a reprodução  
do indivíduo produtor, enquanto proprietário, de sua família e de sua comunidade.  
Demarcado o terreno no interior do qual se movimenta, o autor passa a tratar  
das formas de propriedade que tipificam as formações socioeconômicas que  
antecederam a sociedade moderna e que serão dissolvidas a partir do florescimento  
da sociabilidade fundada no valor.  
A primeira forma de propriedade de terras, analisada por Marx, é aquela que se  
apresenta como pressuposto inicial da comunidade natural constituída por famílias,  
clãs ou combinação de clãs. Neste caso, em seus primórdios, a vida pastoril nômade  
era a característica dominante e o pertencimento à comunidade é o pressuposto para  
a posse e uso do solo, ainda que de modo temporário. A subsequente fixação da  
comunidade provocará necessariamente modificações (sobredeterminadas por  
condições climáticas, geográficas etc. e por suas características tribais específicas)  
originando a coletividade tribal enquanto “comunidade de sangue, linguagem,  
costumes etc.” (MARX, 2011, p. 389) que é, pelo autor, identificada como “o primeiro  
pressuposto [...] da apropriação das condições objetivas da sua vida e da atividade  
que a reproduz e objetiva” (Idem). Marx destaca o limite da natureza na estruturação  
do ser social nesta primeira forma de comunidade humana. Traço que permanecerá  
nas três formas subsequentes, conforme demonstraremos em seguida, e que será  
superado na primeira formação puramente social (a sociedade do capital) na qual a  
barreira da natureza é suprassumida por uma forma de manifestação do ser social  
organizada por um conjunto categorial puramente social. Aqui estamos enfatizando,  
mais uma vez que, na sociedade do capital, o valor (trabalho abstrato) é o médium das  
ligações sociais entre os humanos e não a forma da propriedade.  
Ainda sobre a primeira forma de propriedade, Marx, corretamente, ressalta que  
a terra (natureza) é objeto de trabalho pré-existente para a comunidade, constituindo-  
se em sua sede e arrimo. A terra, neste momento, é propriedade da comunidade e a  
comunidade se realiza e reproduz a partir do trabalho vivo associado à terra. Decorre  
que o processo de trabalho só pode se efetivar na medida em que cada particularidade  
humana age como possuidor ou proprietário da terra, sendo que tal pressuposto é  
tomado, subjetivamente, como desígnio divino ou da própria natureza. Marx (2011, p.  
Verinotio  
228 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
389) adverte que esta forma de propriedade se apresenta de formas diversificadas  
como ocorre, por exemplo, nas formas asiáticas primordiais em que a unidade social  
se expressa ou manifesta como o proprietário último (déspota, imperador, rei etc.) e  
as comunidades, a ele subordinadas, são possuidoras hereditárias da terra. Neste caso,  
como a unidade da comunidade se manifesta como um particular acima do universal,  
que são as comunidades a ele subsumidas, o indivíduo é apartado da propriedade da  
terra. Dizendo de outro modo, a propriedade da terra surge, para esse indivíduo,  
através da mediação do déspota e da comunidade particular à qual o indivíduo singular  
pertence. A unidade geral da comunidade, portanto, sua forma de manifestação, é  
suprimida. O resultado, prossegue Marx, é que o excedente produzido é de  
propriedade da unidade suprema (o déspota). E isso explica como na forma asiática –  
em que há um despotismo com aparente ausência de propriedade jurídica da terra  
pelas comunidades e individualidades humanas , ocorre propriedade comunitária  
constituída por uma produção autossuficiente efetuada pelas pequenas propriedades  
e que articula agricultura e atividades manufatureiras e tem condições de se  
reproduzirem e, ao mesmo tempo, gerarem mais-produto. Esse mais-produto em parte  
é apropriado pela comunidade e em parte é apropriado pela unidade geral da  
coletividade na figura do déspota ou de alguma divindade religiosa.  
Para Marx, essa forma de propriedade comunitária pode se apresentar: (a) de  
maneira que as pequenas comunidades se reproduzem de modo vegetativo e sem  
estreitarem vínculos entre si. No interior dessas pequenas comunidades os produtores  
trabalham com suas famílias nas glebas de terra que lhes foram destinadas e este é o  
fundamento do controle senhorial que Marx identifica nas comunidades eslavas,  
romenas etc. e que são “a causa da transição para a servidão etc.” (MARX, 2011, p.  
390). (b) A unidade coletiva ou da comunidade pode abarcar o próprio trabalho e sua  
necessária característica coletiva originando um sistema formal de trabalho coletivo  
como, prossegue Marx, é o caso verificado no México, no Peru, entre os celtas e em  
algumas tribos hindus. Ele avança dizendo que comunidades mais despóticas ou mais  
democráticas podem ser explicadas a partir do modo pelo qual o referido caráter  
coletivo do trabalho, enquanto unidade comunal, aparece num caso como a autoridade  
do chefe da família tribal e noutro como relação mútua entre os chefes das famílias  
que constituem a comunidade.  
Por fim, Marx constata que: (a) as condições de produção coletivas (aquedutos,  
meios de comunicação etc.) que são decisivas para a efetivação do trabalho e  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 229  
nova fase  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
apropriação da produção de valores de uso, aparecem, nessas comunidades que estão  
associadas a este tipo de propriedade da terra, como realização do governo despótico  
autonomizado em relação às próprias comunidades. (b) Nesse período histórico e  
considerando essa forma de propriedade, as cidades têm duas possíveis origens: (1)  
em pontos geográficos favoráveis ao comércio exterior e, portanto, ao lado das  
pequenas comunidades; (2) nos espaços geográficos em que o déspota, e toda  
burocracia religiosa e militar, escolhiam para a constituição do espaço urbano e  
trocavam o produto excedente apropriado das comunidades por trabalho de todo tipo.  
Antes de passarmos à segunda forma de propriedade analisada por Marx, cabe realçar  
que aqui não há, como sustenta, por exemplo, Lefebvre (2001)6, a constituição da  
cidade como sujeito da história humana que, ao surgir, instaura uma contradição  
fundamental com o campo e explica a própria dinâmica histórica. O que Marx oferta é  
algo muito distinto, ele explora a instauração de um laço social direto que tem na terra  
sua essência ou médium e esclarece que essa essência pode se manifestar através de  
formas sociais diversas que, em certos casos, propiciam o surgimento do espaço  
urbano (cidades). Estas, por seu turno, apenas guardam semelhança com as cidades  
modernas7, posto que se no primeiro caso há a expressão de uma essência dada pela  
forma de propriedade da terra, no segundo caso a dinâmica social e, por extensão, do  
espaço urbano, é dada pela essência totalizadora da sociedade moderna o valor  
(trabalho abstrato) em expansão.  
A segunda forma de propriedade, esclarece Marx (2011, p. 390), é resultado  
do acaso e de mudanças das tribos mais antigas, o que ocorre no interior de uma  
maior movimentação da vida dessas comunidades ao longo de sua história. Essa forma,  
de modo semelhante ao verificado com a primeira forma de propriedade, tem a  
comunidade (agrupamento de famílias e clãs) como pressuposto. Não obstante, se na  
primeira forma a propriedade da terra é a definidora da comunidade e cada  
singularidade humana é um componente acidental ou natural da comunidade, na  
segunda forma a propriedade da terra já não é o fundamento da comunidade. Ao  
revés, a cidade é o centro estabelecido dos proprietários da terra. Agora o espaço  
urbano não é mera extensão do espaço rural, ocorrendo o exato oposto: o rural é o  
6 Para Lefebvre (2001, p. 49), “o Sujeito da história é incontestavelmente a Cidade”. Assim, ele pontua  
que Marx não exprime verbalmente, apesar de indicar, para ele, que a cidade, atuando de forma  
transistórica em todas as formações sociais humanas, seria o sujeito com agência capaz de modificar os  
seres humanos e suas relações servindo como catalisador das movimentações sociais.  
7 Mais uma protoforma categorial, de acordo com o que argumentamos mais acima.  
Verinotio  
230 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
território da cidade. Nas formações sociais caracterizadas por esta segunda forma de  
propriedade, a comunidade não tem na própria terra (que é objeto de trabalho pré-  
existente) empecilhos à sua reprodução social. Os entraves que surgem têm por origem  
outras comunidades que já ocupam espaços territoriais ou que ameaçam a comunidade  
em questão com a tomada de seu próprio espaço territorial. O resultado destas  
dificuldades é a guerra e esta devém atividade conjunta (trabalho conjunto) necessária  
para a captura e defesa dos espaços territoriais básicos para a produção e reprodução  
da comunidade. Temos, nesse caso, comunidades cuja característica distintiva é a de  
se organizarem inicialmente como um sistema social militar, voltado para a guerra, ou  
seja, uma comunidade guerreira. Marx (2011, p. 391) evidencia que este é um dos  
pressupostos fundamentais para a existência das famílias enquanto proprietárias de  
terras. Como indicado, o fundamento dessa comunidade estruturada para a guerra é a  
concentração das famílias nas cidades; associado a esta centralidade das cidades  
verifica-se a cisão social entre castas (elevadas e baixas) e o aprofundamento desta  
cisão com a mestiçagem que ocorre com as tribos derrotadas nas guerras. Nessas  
formações sociais, verifica-se a presença de estado (enquanto protoforma do estado  
moderno [cf. ARAUJO, 2016; 2020b]) e, com ele, uma divisão da propriedade da terra  
em propriedade comunitária (que é do próprio Estado) e propriedade privada. Se na  
primeira forma a propriedade do indivíduo singular não é privada, pois “é propriedade  
imediatamente comunitária” (MARX, 2011, p. 391), o que coloca o indivíduo singular  
na condição de possuidor que não se encontra separado da comunidade; na segunda  
forma verifica-se o oposto e o proprietário privado encontra-se cindido de sua  
comunidade e sua propriedade priva o acesso de outras famílias ao seu espaço  
fundiário. Nos casos em que o trabalho coletivo comum é central para a operação  
profícua da propriedade privada do indivíduo singular, há um reforço do caráter natural  
do sistema comunal (famílias-clãs-tribos). Nos casos em que há perda de importância  
desse aspecto e a ele acrescentamos o movimento migratório, o distanciamento  
geográfico da tribo em relação à sua sede original (a cidade e seu entorno rural) e a  
ocupação de territórios forâneos, há o estímulo ao desenvolvimento das capacidades  
das singularidades individuais e o aspecto comunitário se manifesta enquanto  
unidade negativa voltada para o exterior” (MARX, 2011, p. 391). Tais são condições  
para que a singularidade individual se torne proprietário privado de terras que serão  
cultivadas por ele e por sua família.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 231  
nova fase  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
O estado8, prossegue nosso autor, apresenta-se como manifestação da  
comunidade e é a expressão dos laços entre os proprietários privados que se ligam  
em relações de igualdade. Além disso, o estado é, ao mesmo tempo, o âmbito em que  
se efetuam os vínculos entre os proprietários privados contra o exterior (outras tribos)  
e o garantidor desses proprietários privados contra os forâneos. Nessas formações  
socioeconômicas a comunidade tem por fundamento a propriedade privada das  
singularidades humanas que trabalham em suas terras, e nas terras públicas [ager  
publicus], com suas famílias. Segundo Marx (MARX, 2011, p. 391), esses proprietários  
privados têm sua autonomia constituída por seus laços sociais de pertencimento à  
comunidade, pela luta pela preservação das terras públicas tendo em vista o  
reconhecimento e os carecimentos da comunidade etc. Assim como na primeira forma  
de propriedade, há aqui uma determinação de reflexão entre propriedade da terra e  
pertencimento à comunidade. A diferença é que no primeiro caso não havia o  
proprietário privado e ser o proprietário/possuidor das terras comunais era  
determinado pelo pertencimento à comunidade. Na segunda forma também ser  
membro da comunidade é o pressuposto de ser proprietário privado e ter acesso às  
terras públicas. Deste modo, sua manutenção enquanto proprietário privado é a  
manutenção de sua condição de membro da comunidade e, por decorrência, a  
manutenção e reprodução da própria comunidade. Nesta segunda forma a  
comunidade, que se constitui como produto histórico, enquanto fato e reconhecimento  
deste fato, é o pressuposto da propriedade da terra (assim como se verifica na primeira  
forma), da possibilidade da relação do produtor com o objeto de trabalho pré-existente  
(a terra). Diferentemente da primeira forma, aqui o pertencimento do indivíduo à sua  
comunidade e o acesso à propriedade da terra tem outro pressuposto: ser membro do  
estado e, prossegue Marx (2011, p. 391), este estado assume, para o indivíduo, um  
caráter divino. As características distintivas da segunda forma de propriedade são  
resumidas por Marx de modo a: (1) enfatizar a concentração das famílias na cidade e  
a transformação do campo em território das cidades; (2) destacar o predomínio da  
pequena agricultura que produz para o consumo imediato; (3) esclarecer que a  
manufatura se apresenta basicamente como atividade doméstica complementar da  
família (mulheres fiam e tecem) ou como forma autonomizada em alguns ramos  
específicos de produção. Para Marx (2011, p. 392), a reprodução contínua desse  
8 Que aqui é uma protoforma ou forma embrionária.  
Verinotio  
232 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
complexo comunitário é a permanência e reprodução da igualdade entre os  
proprietários privados que cultivam suas terras com suas famílias e que têm em seu  
trabalho e em sua liberdade pessoal a condição da continuidade da propriedade  
privada da terra. É o seu trabalho pessoal que permite sua permanência enquanto  
proprietário privado e, por evidente, plasma sua subjetividade e personalidade. Marx  
não descuida em nos lembrar que esse complexo comunitário ou que esse tipo de  
comunidade aciona, necessariamente, uma tendência guerreira que é a força motriz de  
uma tendência expansionista da própria comunidade e oferece como exemplos Roma,  
Grécia etc. Tal tendência deve ser apreendida a partir da consideração de que cada  
singularidade ao trabalhar para atender às suas necessidades vitais não tem por télos  
a apreensão da riqueza enquanto fim em si, mas objetiva a manutenção da vida pessoal  
e familiar, a reprodução de sua condição de membro da comuna, a condição de ser  
parte constitutiva da comunidade enquanto proprietário privado. A comunidade se  
mantém ao se reproduzir ao longo do tempo, o que exige a reprodução simultânea  
dos membros que a constituem, os camponeses autônomos, os proprietários privados  
dos quais o tempo excedente de trabalho é apropriado pela comuna sob a forma de  
atividade militar etc. Somente a propriedade sobre o objeto pré-existente de trabalho  
(a terra) pode garantir a propriedade sobre o próprio trabalho. A propriedade da terra,  
como já dito, só pode existir se preexiste a comunidade e a comunidade só existe se  
os membros da comuna ofertam trabalho excedente sob a forma de labor militar. Em  
suma, só é proprietário privado de terras aquele que já é membro da comunidade, no  
caso de Roma, por exemplo, se é cidadão romano.  
Nessa altura de nossa exposição é lícito adiantar que Marx, nos Grundrisse,  
abandona a crítica à categoria de substância como algo metafísico (cf. ARAUJO, 2021),  
e identifica no trabalho abstrato a substância do valor (que ainda aparece em várias  
passagens do texto como sinônimo de valor de troca). Ao analisar as formas de  
propriedade, o autor parece sugerir que, na primeira forma, a comunidade é uma  
substância (permanência na mudança) à qual a singularidade se liga de modo imediato.  
Na segunda forma a propriedade privada da terra, garantida pelo estado, que se  
encontra em determinação reflexiva com ser membro da comunidade, é o elo entre a  
singularidade humana e sua comunidade agora expressa no estado. Adiante  
retomaremos esta questão, que se liga ao desaparecimento das formações greco-  
romanas, e veremos como ela reaparece na terceira forma de propriedade. De todo  
modo, sustentamos que Marx faz esse esforço analítico para esclarecer que na  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 233  
nova fase  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
sociedade do capital a substância e o laço social são inteiramente distintos de  
objetividades materiais-naturais. Eles são puramente sociais, já não tendo qualquer  
determinação da natureza o laço é o valor e a substância o trabalho abstrato e o  
dinheiro a representação abstrata da comunidade real9.  
Marx esclarece que a germânica é a terceira forma de propriedade de  
singularidades humanas que se autossustentam e que constituem comunidades a  
partir das “condições naturais de seu trabalho” (MARX, 2011, pp. 392-3). O autor  
procura especificar a relação do membro da comunidade germânica com a forma da  
propriedade contrapondo esta relação ao que se verifica nas comunidades orientais e  
nas formas romana e grega (Antiguidade clássica).  
No caso oriental a singularidade é copossuidora da propriedade coletiva, pois  
a propriedade só se apresenta enquanto propriedade comunitária. O que garante ao  
membro da comunidade a posse privada (hereditária) de uma fração da terra, mas não  
a propriedade privada. Em outras palavras, a posse da terra (substância universal da  
existência desta formação social cujo fruto é produto do trabalho coletivo da  
comunidade) é assegurada pela identidade imediata entre a singularidade e a  
comunidade. A forma da posse privada em relação à propriedade comunal se  
apresenta de maneiras distintas, tanto em termos históricos quanto de localização  
geográfica. O principal fator a explicar essas diferenciações é como se realiza o  
trabalho na terra: (a) se efetivado pelo possuidor privado apartado de sua comunidade;  
(b) se o trabalho é efetuado a partir da comunidade ou (c) se é trabalho efetivado pela  
unidade produtiva situada além da comunidade particular.  
Na Antiguidade clássica a terra, que é ocupada pela comunidade, é solo da  
comunidade, solo romano, por exemplo. Uma parte da terra é da comunidade (terras  
públicas) e a outra parte é dividida e transforma-se em propriedade privada do cidadão  
romano e, portanto, solo romano. A singularidade humana só é reconhecida como  
romana ao ter o direito absoluto sobre a fração da terra que é romana. Na Antiguidade  
clássica, o trabalho agrícola era valorizado e respeitado, já o trabalho no comércio e  
na manufatura/artesanato era depreciado. A lavra da terra, nestas formações, era tida  
como atividade legítima do produtor-cidadão, a escola do soldado e a atividade que  
conservava a linhagem do povo constituinte da comunidade. Os ofícios ligados ao  
9 Com isso, o dinheiro é, ao mesmo tempo, imediatamente a comunidade real [destaque de Marx], uma  
vez que é a substância universal da existência para todos e o produto coletivo de todos.” (MARX, 2011,  
p. 169)  
Verinotio  
234 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
comércio e ao artesanato/manufatura eram exercidos por estrangeiros ou por escravos  
libertos, apresentavam-se como inconvenientes para o cidadão, decorrendo toda  
dificuldade para a outorga de cidadania plena para comerciantes e artífices. Esse  
conjunto parece prenunciar a compreensão, não consciente, por parte dessas  
sociabilidades, do caráter dissolvente do dinheiro, que associado ao comércio  
enquanto o espaço para dinheiro gerar mais dinheiro, permite que o dinheiro se  
manifeste de modo autônomo e diluente dos laços sociais manifestos da Antiguidade.  
Marx (2011, p. 394) sustenta que ainda que na Antiguidade clássica não se verifique  
um sistema de corporações de ofício, como o que virá a existir na época urbana  
europeia medieval, à medida em que as corporações superam as linhagens  
constitutivas da comunidade original ocorre o declínio do espírito guerreiro da  
comunidade até sua completa extinção. A consequência foi a redução do temor das  
cidades por parte de povos estrangeiros e o declínio da liberdade das cidades. O que  
indica traços gerais do processo de declínio e desaparecimento da Antiguidade  
clássica. Por fim, registre-se que os patrícios tinham a prerrogativa de utilizar as terras  
públicas, portanto, comunitárias, através da posse e podiam formar feudo para seus  
vassalos. Já a transferência de propriedade da terra pública era operação exclusiva dos  
plebeus. Segundo Marx (2011, p. 393), a propriedade da terra em sentido estrito, com  
exceção da área abarcada pelos muros das cidades, estava, em seus primórdios, nas  
mãos dos plebeus e a “essência da plebe romana como um conjunto de camponeses  
[...] está indicad[a] em sua propriedade quiritária” (MARX, 2011, p. 393).  
No caso da comunidade germânica não se verifica sua aglutinação na cidade.  
Ocorre, ainda segundo nosso autor, que a cidade devém eixo da vida rural, como local  
de residência dos rurais e núcleo de coordenação da guerra. Neste caso de  
concentração simples, podemos inferir que a comunidade existe externamente ao  
indivíduo singular, ou seja, não há identificação imediata entre os dois polos. Se  
considerarmos a história da Antiguidade clássica, poderemos verificar que é a história  
de cidades arrimadas na propriedade pública e privada da terra e na agricultura. Já  
nas formações asiáticas, segundo Marx (2011, p. 395), ao longo de sua história é  
possível verificar um tipo de união vulgar entre cidade e campo e, além disso, as  
cidades grandes tinham a qualidade de serem instalações provisórias opulentas que  
se acrescentavam como uma camada desnecessária sobre a estrutura econômica em  
sentido restrito. No período de hegemonia germânica da Idade Média, prossegue Marx  
(2011, p. 395), a terra é o ponto de partida inicial da história. Marx acrescenta que o  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 235  
nova fase  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
desenvolvimento posterior da história da Idade Média nesse período “se desenrola  
como oposição entre cidade e campo” (MARX, 2011, p. 395) e arremata dizendo que  
a história do capitalismo é a da urbanização do campo e não, como ocorrera em outras  
formações sociais anteriores, “a ruralização da cidade” (MARX, 2011, p. 395).  
Como nas formações germânicas havia o costume da fixação à terra, do  
patriarca e das famílias, mantendo grande distância de outras famílias e agrupamentos,  
a comunidade só pode existir externamente ao indivíduo. Ainda que seja evidente a  
existência de uma unidade a partir da língua, da história comum, da ascendência  
comum etc. a comunidade só existe a partir da congregação frequente dos  
constituintes dessa comunidade. Esse é o motivo pelo qual Marx afirma, para o caso  
germânico, que a “comunidade aparece, portanto, como reunião [Vereinigung], não  
como associação [Verein], como unificação [Einigung] constituída por sujeitos  
autônomos, os proprietários de terra, e não como unidade [Einheit]” (MARX, 2011, p.  
395). E conclui afirmando que nessa formação a comunidade só tem existência de fato  
quando os proprietários de terra se reuniam em assembleia e, por essa especificidade,  
a comunidade germânica não poderia existir como um sistema estatal, um estado, tal  
como se verificava na Antiguidade clássica. Na Antiguidade clássica, a comunidade  
existe de modo independente das reuniões dos proprietários de terra em assembleia.  
Ela existe, argumenta Marx (2011, p. 395), na própria cidade e na burocracia estatal  
a ela associada. Nesse caso a comunidade ganha existência econômica com a simples  
presença da cidade. Algo distinto se passa com a formação germânica quando  
comparada ao caso da Antiguidade clássica, pois ainda que nela também se verifique  
a existência da terra pública, comum ou do povo, que não pode ser repartida, e que  
esta terra pública seja distinta da propriedade privada, a terra pública não se revela  
como presença econômica específica do estado adjacente às propriedades privadas  
dos chefes de família. Na formação germânica, os patriarcas só podem ser proprietários  
privados se estão privados do uso da terra pública. Por isso, a terra pública só funciona  
como acréscimo à propriedade privada e só tem, de fato, existência enquanto  
propriedade quando é defendida enquanto terra comunal do ataque de outras tribos.  
Ao contrário do que ocorria na Antiguidade clássica, em que a propriedade privada  
aparecia mediada pela comunidade, pelas relações mútuas entre os indivíduos  
constituintes da comunidade, na formação germânica é a comunidade e a propriedade  
comunal que se apresentam mediadas.  
No mundo germânico, a casa singular abarca em si um polo autossuficiente de  
Verinotio  
236 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
produção de valores de uso, ela é item na terra que pertence à família enquanto  
unidade autossuficiente. E isto é o oposto do que se verifica no caso clássico em que  
a cidade e seu contorno rural são a totalidade do econômico. Marx toma os romanos  
como o caso clássico da Antiguidade clássica e argumenta que neles se evidencia que  
a forma contraditória entre a propriedade estatal de terra [ager publicus] e a  
propriedade privada produz a mediação da propriedade privada pela propriedade  
estatal ou produz a existência da propriedade estatal em forma dúplice, pública e  
privada. O que se esclarece quando consideramos que todo solo privado é solo  
romano, portanto, estatal e isso elucida o fato de o proprietário de terra ser, ao mesmo  
tempo, cidadão urbano o que, por sua vez desvenda o motivo pelo qual, em Roma,  
o camponês é morador da cidade. Como visto, no caso germânico, o camponês não é  
cidadão do estado, não é morador da cidade, ele é o arrimo da moradia familiar  
apartada que só existe associada a outras moradias familiares da mesma tribo e  
amparada pela reunião eventual dos proprietários em assembleia para resolução de  
questões religiosas, de litígios, para a organização da guerra etc. a comunidade  
germânica só existe no relacionamento mútuo dos proprietários privados de terra que  
se relacionam enquanto proprietários.  
A propriedade privada da terra, no caso germânico, não se apresenta de modo  
contraditório com a propriedade comunal da terra e a primeira, tampouco é mediada  
pela segunda, ocorrendo o inverso, a propriedade comunal é mediada pela  
propriedade privada. A propriedade comunal da terra funciona como complemento  
comunitário das moradias familiares iniciais. No caso germânico, a comunidade não é  
substância em que o singular só aparece como acidente” (MARX, 2011, p. 396) e,  
tampouco, é o universal que se apresenta como unidade, representativa e de fato,  
entre a cidade e suas necessidades específicas que destoam das necessidades dos  
indivíduos. Agora, a comunidade germânica em si é, por um lado, comunidade da  
língua, da ancestralidade, dos costumes etc. e é pressuposta ao proprietário privado  
individual. Por outro lado, a comunidade germânica só existe na reunião em assembleia  
comunal dos proprietários privados (chefes de família) e como ela estatui e passa a ter  
existência econômica particular” (MARX, 2011, p. 397) sobre as terras comunais, a  
comunidade passa a ser empregue pelo proprietário privado enquanto proprietário  
privado e não enquanto representante do Estado, conforme o que se verificava no caso  
romano. A propriedade comunal germânica é propriedade comum de proprietários  
privados individuais e não se trata de uma associação de proprietários privados  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 237  
nova fase  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
particulares provida de vivência específica como a verificada no caso da cidade a qual  
se separa dos proprietários privados enquanto particularidades humanas.  
Marx oferece um resumo das três formas de propriedade analisadas e  
acrescenta preciosas observações sobre fatores que podem explicar a conservação e  
o desaparecimento de formas de propriedade e de formações socioeconômicas que as  
comportam. Em linhas gerais, é dito pelo filósofo alemão que, nas três formas de  
propriedade, a agricultura e a propriedade da terra instituem os fundamentos da  
ordem econômica. Em todas, o télos é a produção de valores de uso e a reprodução  
do indivíduo e das relações constitutivas da comunidade, além disso, há dois aspectos  
distintivos presentes em todas as três formas: (1) o objeto de trabalho pré-existente,  
a terra, é apropriada como pressuposto do trabalho e não pelo trabalho. Neste caso,  
o produtor toma a natureza (terra) como requisito objetivo da reprodução individual e  
social, “como natureza inorgânica de sua subjetividade, em que esta realiza a si  
própria” (MARX, 2011, p. 397), decorre que a natureza não lhe aparece como produto  
do trabalho, mas, tão somente, como natureza; (2) A propriedade da terra, reafirma  
Marx (2011, p. 397), é, para o produtor, “um modo de existência objetivo, que está  
pressuposto” [destaque dos autores] à própria práxis do trabalho e não aparece como  
manifestação do resultado do seu trabalho. Nestes casos, a propriedade da terra por  
parte do patriarca é mediada pelo seu pertencimento à sua comunidade. Em todos os  
casos, ser proprietário de terras tem por pressuposto existir enquanto membro da  
família, da tribo, do clã, da pólis etc. a depender do tipo de formação específica que  
estejamos tratando. Patenteia-se aqui a razão pela qual o produtor individual não pode  
se manifestar como simples produtor isolado e livre. Há uma determinação de reflexão  
entre ser proprietário e ser membro da comunidade. A terra é o eixo da vida social e  
a vida social determina a propriedade da terra e as formas específicas de trabalho a  
ser realizado em cada caso. Dizendo o mesmo de outro modo, as relações sociais  
nestes casos são manifestas e a comunidade tem na terra seu pressuposto material da  
vida, de tal maneira que a forma de propriedade em reflexão com as relações sociais  
manifestas modela as subjetividades humanas sendo a própria forma da propriedade  
parte constitutiva e condicionante da objetividade social (estado etc.). Parece haver a  
intenção do autor em contrastar essa especificidade com a centralidade que o valor  
(trabalho abstrato) adquire na sociedade do capital. Em sendo este o caso, surgem  
todas as diferenciações e especificidades desta formação que é, para o autor, a  
primeira puramente social.  
Verinotio  
238 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
Neste momento da exposição o autor trata, rapidamente, das linhas gerais dos  
processos de dissolução dessas formações que antecedem o capitalismo e que têm na  
propriedade da terra seu eixo social. Ocorre que em todas as formas analisadas até  
aqui o desenvolvimento social tem por arrimo a reprodução das relações sociais,  
pressupostas, entre a singularidade humana e sua comunidade; relações que podem  
ter surgido de modo natural ou histórico, mas que se transformaram em tradicionais.  
E, ao lado dessa reprodução, uma existência objetiva e predeterminada para cada  
singularidade que se dá na maneira pela qual a singularidade procede com suas  
condições de trabalho, com os outros produtores, membros do clã, da tribo etc. O  
desenvolvimento social aludido é, em princípio, limitado e a superação deste limite, no  
interior de tais formações sociais conduz à decadência e ao desaparecimento da  
própria formação social. Tomando a forma asiática, Marx (2011, p. 398) constata que  
ela tem por traço distintivo a manutenção de suas características principais por longos  
períodos, ou seja, uma certa imutabilidade em seu processo reprodutivo. E assim  
ocorre porque, nessas formações, a singularidade humana não possui autonomia em  
relação à comunidade e, com isso, há produção autossustentável de valores de uso e  
efetiva unidade entre agricultura e manufatura/artesanato. Não obstante, quando a  
particularidade humana modifica sua relação com sua comunidade rompendo a  
unidade entre agricultura e manufatura e adquirindo autonomia frente à comunidade,  
há a destruição da posse comunal da terra e a eclosão de miséria, pobreza etc. Em  
resumo, a mudança econômica, neste caso, abole o vínculo real sobre o qual o  
econômico se erguia.  
No caso romano, com o aperfeiçoamento da arte da guerra e as consequentes  
conquistas alcançadas, há a amplificação da escravidão, o avanço da concentração da  
posse de terras, o avanço das trocas e do sistema monetário. Estes fenômenos,  
presentes na formação romana, que como vimos é o caso clássico da Antiguidade para  
Marx, são produtos dos próprios fundamentos da sociedade romana e, se num  
primeiro momento, contribuíram para a ampliação do sistema, foram decisivos para a  
decadência e o desaparecimento dessa formação social. As sociedades que antecedem  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 239  
nova fase  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
a sociedade do capital não têm por télos a busca da riqueza10 pela riqueza11, a questão  
é de que maneiras a propriedade (comunal ou privada) constitui melhores  
particularidades humanas. E este é o motivo pelo qual a riqueza material só aparece  
como fim em si para os povos comerciantes que eram encontrados “nos poros do  
mundo antigo” (MARX, 2011, p. 399). Trata-se da presença do capital de comércio e  
do capital usurário, que, segundo Marx (2013, p. 239) são forma antediluvianas do  
capital, ou ainda, formas do capital nas quais toda a potencialidade do capital ainda  
não pode se efetivar posto que se encontram no interior de um todo concreto  
complexo pouco desenvolvido em seus laços sociais. Nestes, a mercadoria não é a  
forma de mediação social e o valor não é o médium social, os laços sociais são  
manifestos e a mediação se dá através dos laços sanguíneos, parentais, de tradição,  
costumes, religiosos etc. A constituição da sociedade do capital exigiu a dissolução  
desses laços manifestos e a instauração dos laços mediados pelo valor objetivado na  
mercadoria12, ocasionando a objetivação da própria relação social o que instaurou um  
tipo de reificação produtora de autoestranhamento social o fetiche da mercadoria.  
A interpretação sugerida acima pode elucidar as afirmações de Marx, na  
sequência do texto em análise, de que se a riqueza é desnudada de sua forma  
burguesa ela se revela como a “a universalidade das necessidades, capacidades,  
fruições, forças produtivas etc. dos indivíduos” (MARX, 2011, p. 399) que são  
produzidas pela generalização das trocas. Despida a riqueza de sua forma burguesa,  
prossegue o autor, ela (a riqueza) é o completo domínio do gênero humano sobre as  
legalidades naturais; é a produção completa das capacidades criativas do humano que  
só toma por pressuposto o “desenvolvimento histórico precedente” (MARX, 2011, p.  
399) e, no seu devir, assenta a completude do desenvolvimento de toda a  
omnilateralidade humana como fim em si mesmo. Neste caso, acrescenta Marx, o  
humano não se apresenta como algo que veio a ser, ao contrário, o humano se revela  
“movimento absoluto do devir” (MARX, 2011, p. 399) e ao se reproduzir como  
10 Quando trata do modo de dissolução feudal e da sociabilidade específica do capital Marx (2011, p.  
413) nos oferece o seguinte comentário: “Uma análise mais precisa evidenciará que em todos esses  
processos de dissolução são dissolvidas relações de produção em que predominam valor de uso,  
produção para o uso imediato; que o valor de troca e a sua produção têm como pressuposto o  
predomínio da outra forma; em consequência que em todas essas relações predominam a prestação em  
espécie e os serviços em espécie sobre o pagamento em dinheiro e a prestação de serviço por dinheiro”.  
11  
No caso dessas formações trata-se de riqueza material, valores de uso. Somente na sociedade do  
capital o objetivo da produção é a riqueza em sua forma especificamente capitalista: riqueza abstrata –  
valor.  
12 Esse processo também é descrito por Marx no Capítulo 24 (A assim chamada acumulação primitiva)  
do Livro 1 de O capital.  
Verinotio  
240 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
singularidade produz uma totalidade que não é determinabilidade, ou seja, que já não  
é um constrangimento (lógico) a desefetivar sua condição humana. Neste ponto o autor  
adverte que na época do predomínio da economia burguesa, ou seja, na sociedade do  
capital, a exteriorização do conteúdo humano, do trabalho abstrato que passa a operar  
como laço social, se manifesta como pleno esvaziamento da singularidade humana e  
como todas singularidades operam no interior do constrangimento lógico do valor, da  
determinabilidade do capital, há a objetivação universal do laço social sob a forma de  
mercadorias e, com isto, o estranhamento [Entfremdung] social total e a fragmentação  
“de todas as finalidades unilaterais determinadas” se manifestam “como sacrifício do  
fim em si mesmo a um fim totalmente exterior” (MARX, 2011, p. 400) – o que  
caracteriza que o trabalho determinado por mercadorias acarreta a perda do sentido  
do trabalho para o produtor. Trabalha-se para continuar trabalhando, ou seja, para  
perpetuamente permitir a expansão do valor (trabalho abstrato). Por isso nosso autor  
pode concluir dizendo que “o mundo antigo representa a satisfação de um ponto de  
vista tacanho; ao passo que o moderno causa insatisfação, ou, quando se mostra  
satisfeito consigo mesmo, é vulgar” (MARX, 2011, p. 400).  
Subjaz aos trechos acima tratados a contradição entre desenvolvimento das  
forças produtivas estimulado pela sociedade burguesa e as relações de produção  
específicas dessa sociedade. Sustentamos que essa presença deve ser considerada a  
partir da centralidade que adquire no texto a noção de que a exteriorização do ser  
humano no processo de trabalho produtor de mercadorias acarreta um esvaziamento  
do produtor, a objetivação universal na forma mercantil como estranhamento total e o  
trabalho como o sacrifício a um fim exterior à própria práxis produtora de mercadorias  
o que indica que estamos diante de um tipo de sociedade sacrificial sem conteúdo  
religioso estruturado. Em suma, e dizendo mais uma vez, a contradição entre forças  
produtivas e relações de produção existe e opera na sociedade do capital acionada  
pelo próprio sujeito automático (capital), não sendo de fácil demonstração sua  
presença enquanto força motriz de todo processo histórico humano.  
Considerações Finais  
Do exposto podemos advogar que Marx faz um grande esforço para capturar o  
que há de específico nos laços sociais constitutivos das formações sociais que  
antecedem a sociedade do capital. O que explica seu denodo por diferenciar as formas  
de propriedade nessas outras formações sociais. Nelas, o centro da vida é a terra  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 241  
nova fase  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
(objeto pré-existente de trabalho) e, por esse motivo, o tipo de posse ou propriedade  
da terra tem centralidade na trama de cada formação social e pode explicar, ao menos  
uma parte, a dinâmica societária existente então. Assim o é porque a ligação entre o  
indivíduo e a sua comunidade [Gemeinwesen] pressupõe e põe a posse/propriedade  
da terra. Se aqui a comunidade é a substância13, a forma da propriedade é um modo  
de aparecimento dessa substância. Como forma da propriedade e tipo de comunidade  
estão em determinação reflexiva, mudanças na forma de propriedade alteram o par  
antitético, alteram o próprio cariz da comunidade. Há aqui um tipo de dinâmica  
engendrada a partir da própria relação antitética entre comunidade e forma de  
propriedade; que, por sua vez, é bastante distinto do que parece postular, por  
exemplo, Lefebvre (2001): uma contradição fundamental entre campo e cidade e que  
é a geratriz de uma dinâmica transistórica. Além disso, Marx parece capturar que em  
todas as formações que antecedem o capitalismo o laço social entre cada singularidade  
humana é manifesto e tem na propriedade da terra um momento distintivo.  
Desse modo, há uma identificação imediata entre a singularidade e a  
comunidade, na primeira forma de propriedade examinada. Na segunda forma, a  
singularidade tem no estado a comunidade abstrata e sua identificação com a  
coletividade humana ocorre por sua condição de proprietário privado e é mediada pelo  
estado. Na terceira forma de propriedade, a comunidade também não se identifica  
imediatamente com o indivíduo, todavia, é o fato de ser proprietário/possuidor o que  
permite sua ligação com a comunidade ainda que a comunidade não se apresente  
através do estado, como na segunda forma de propriedade. Por fim, na sociedade do  
capital há uma separação radical entre singularidade e gênero humano ou comunidade.  
O laço social é o valor (cuja substância, como já dito, é o trabalho abstrato) e só pode  
existir objetivado na forma de mercadoria ou de dinheiro. Desse modo, o dinheiro,  
13 É preciso não perder de vista que Marx, nos Grundrisse, ainda se encontra no processo de elaboração  
do conjunto categorial de sua crítica ontológica à economia política. Neste sentido, sugerimos que tomar  
a comunidade como substância é fazê-lo nos termos da substância do ser social tal como proposto por  
Lukács (2013): permanência na mudança que também se modifica a cada forma específica de  
aparecimento ao longo das várias e diferentes formações socioeconômicas mas, que, tem por  
característica o permanente processo de humanização do ser humano ou do desenvolvimento do que  
há de específico no ser humano em comparação com o que se verifica no âmbito do ser orgânico.  
Quando anteriormente sugerimos que as formas de propriedade das formações sociais que antecedem  
o capitalismo são um tipo de substância, é porque aceitamos a existência de vários tipos de substância  
no ser social. No caso dessas propriedades, intuímos que se trata de uma substância que se relaciona,  
a partir da determinação de reflexão entre a propriedade e a comunidade, com a própria comunidade.  
A comunidade enquanto universal reflete a substância definidora do ser social em sua constituição  
específica e ao mesmo tempo manifesta a essência engendrada pelos tipos de propriedade existentes  
na sua formação.  
Verinotio  
242 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Notas sobre “As formas que precederam a produção capitalista” e a centralidade do valor  
forma autonomizada do valor, se apresenta como a representação da universalidade  
ou da comunidade abstrata. Aqui se pode concluir que a sociedade emancipada do  
valor (comunista) exige a instauração de laços sociais manifestos entre os humanos e  
a ligação imediata entre singularidade humana e comunidade. A palavra comunismo  
parece reportar exatamente a esse princípio de reconciliação entre o desenvolvimento  
do indivíduo em sua particularidade (personalidade) e o desenvolvimento das  
capacidades e conhecimentos apropriados pelo gênero humano. Relembrando que  
para Lukács (2013), é a divergência entre esses dois polos constitutivos do ser social  
o que produz e explica a categoria de estranhamento [Entfremdung], decorre que esta  
cisão deverá ser suprassumida ao longo da constituição da sociedade dos produtores  
livremente associados.  
Referências bibliográficas  
ARAUJO, P. H. F. “O trabalho na Ontologia”. In. Introdução à Ontologia do ser social  
de Gyorgy Lukács. Rio de Janeiro: Consequência, 2022d, pp. 37-62.  
ARAUJO, P. H. F. Dissolução dos laços sociais mediados pelo valor: crise estrutural da  
sociedade do capital e o fim do seu processo civilizatório. Revista da Sociedade  
Brasileira de Economia Política, v. 68, pp. 133-166, 2024.  
ARAUJO, P. H. F. Trabalho, objetivação e alienação na ontologia do ser social de Lukács:  
notas introdutórias. Germinal: marxismo e educação em debate, v. 14, n. 3, 2022a.  
ARAUJO, P. H. F. A contradição fundamental da sociedade capitalista no Livro Primeiro  
de O capital: determinações gerais e consequências. Revista da Sociedade Brasileira  
de Economia Política, v. 64, 2022b.  
ARAUJO, P. H. F. Trabalho fundante e substância do ser social segundo o último Lukács:  
observações preliminares. Revista Dialectus, v. 23, pp. 365-394, 2021.  
ARAUJO, P. H. F. Dominação abstrata. capital: sujeito histórico. Germinal: marxismo e  
educação em debate, v. 12, pp. 348-362, 2020a.  
ARAUJO, P. H. F. As categorias classes sociais e estado no Livro Primeiro de O capital.  
Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, v. 56, pp. 21-47, 2020b.  
ARAUJO, P. H. F. Notas críticas à compreensão de Lênin sobre o estado: revisitando O  
estado e a revolução. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, v. 50,  
pp. 114-141, 2018.  
ARAUJO, P. H. F. Marx: capital, estado e política - notas. Revista da Sociedade Brasileira  
de Economia Política, v. 43, pp. 37-62, 2016.  
DUAYER, M.; ARAUJO, P. H. F. Trabalho abstrato, objetivação, alienação, fetiche: Marx  
lido por Postone. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, v. 62, pp.  
10-41, 2022.  
DUAYER, M.; ARAUJO, P. H. F. Valor como forma de mediação social: interpretação de  
Marx a partir de Postone. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, v.  
57, pp. 45-82, 2020.  
DUAYER, M.; ARAUJO, P. H. F. Para a crítica da centralidade do trabalho: contribuições  
de Lukács e Postone. Revista Em Pauta, v. 13, pp. 15-36, 2015.  
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social v. I. São Paulo: Boitempo, 2012, 436p.  
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social v. II. São Paulo: Boitempo, 2013, 845p.  
MARX, K. H. O capital: crítica da economia política Livro 1: o processo de produção do  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024 | 243  
nova fase  
Paulo Henrique Furtado de Araujo; Mariana Pacheco de Araujo  
capital. São Paulo: Boitempo, 2017a. 894p.  
MARX, K. H. O capital: crítica da economia política Livro 3: o processo global da  
produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017b. 980p.  
MARX, K. H. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica  
da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. 788p.  
LEFEBVRE, H. A cidade do capital. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 180p.  
POSTONE, M. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria  
crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014. 483p.  
Como citar:  
ARAUJO, Paulo Henrique Furtado de; ARAUJO, Mariana Pacheco de. Notas sobre “As  
formas que precederam a produção capitalista” dos Grundrisse e a centralidade do  
valor. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 220-243; jul.-dez., 2024.  
Verinotio  
244 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 220-243 jul.-dez., 2024  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.740  
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em  
Manuscritos matemáticos  
The choice of Karl Marx: differential calculus in the  
Mathematical manuscripts  
Antônio Valverde*  
Maria Helena Soares de Souza**  
Resumo: O presente artigo busca dar a ver a  
fundamentação teórica do cálculo diferencial, em  
matemática, com base nos Manuscritos  
matemáticos, de Karl Marx, sob movimento  
dialético e seus vínculos com o social. Para o  
caso, a escolha de Marx confronta as propostas  
de Leibniz, D’Alembert / Euler e Lagrange, acerca  
do cálculo diferencial. Nomeadas de mística,  
racional, algébrica, e simbólica, esta criada por  
Marx. Segundo Gerdes, a solução marxiana  
oferece a possibilidade de desenvolvimento de  
métodos adequados para melhor compreensão  
dos fins da educação matemática (ensino e  
aprendizagem), se observados os princípios da  
dialética marxiana. Para tanto, o artigo perpassa,  
criticamente, partes da história da matemática e  
da filosofia relativas aos suportes da  
argumentação desenvolvida.  
Abstract: This article seeks to demonstrate the  
theoretical foundation of differential calculus, in  
mathematics,  
based  
on  
Karl  
Marx's  
Mathematical manuscripts, under dialectical  
movement and its links with the social. In this  
case, Marx's choice confronts the proposals of  
Leibniz, D’Alembert / Euler and Lagrange,  
regarding differential calculus. Named mystical,  
rational, algebraic, and symbolic, this one was  
created by Marx. According to Gerdes, the  
Marxian solution offers the possibility of  
developing appropriate methods for better  
understanding the purposes of mathematical  
education (teaching and learning), if the  
principles of Marxian dialectics are observed. To  
this end, the article critically examines parts of  
the history of mathematics and philosophy  
relating to the support of the argument  
developed.  
Palavras-chave: Marx; Manuscritos matemáticos;  
cálculo diferencial; sociedade; educação.  
Keywords: Marx; Mathematical manuscripts;  
differential calculation; society; education.  
A par da leitura de poetas e romancistas, Marx tinha outra maneira, muito pouco  
comum, de descansar intelectualmente: o estudo da matemática, pela qual tinha  
especial predileção. A álgebra lhe proporcionava até mesmo um tipo de consolo  
moral: era um refúgio nos momentos mais dolorosos de sua vida atormentada.  
Durante a última doença da esposa, era-lhe impossível dedicar-se ao trabalho  
científico habitual. Só conseguia escapar do abatimento ocasionado pelos  
sofrimentos de sua companheira de vida concentrando-se na matemática. Naquele  
período de dor profunda, ele escreveu um trabalho sobre cálculo infinitesimal. [...]  
Na matemática avançada ele via o movimento dialético em sua forma mais lógica e,  
ao mesmo tempo, mais simples.”  
(Paul LAFARGUE, Reminiscences of Marx and Engels, 1957, p. 75)1  
* Antonio José Romera Valverde é Professor do PPG em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de  
São Paulo (PUC-SP). E-mail: valverde@pucsp.br.  
** Maria Helena Soares de Souza é Doutora em Educação Currículo pela Pontifícia Universidade Católica  
de São Paulo (PUC-SP), Graduada em Matemática pela USP. E-mail: maria_souza@uol.com.br.  
1
Cf. MUSTO (2018, pp. 101-2). Jenny von Westphalen, esposa de Marx, faleceu aos dois dias de  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
Preâmbulo  
Os Manuscritos matemáticos compõem parte dos estudos de Karl Marx (1818-  
1883), que tiveram publicação póstuma tardia. Para o caso, a primeira e parcial é de  
1933, após 50 anos de sua morte2. No Ocidente, o primeiro matemático a divulgar e  
analisar os estudos matemáticos marxianos foi Dirk-Jan Struik, na revista Science and  
Society, em 19483. Os Manuscritos contêm resoluções de equações algébricas de  
grau superior , séries, geometria analítica e cálculo diferencial4. Este último obteve sua  
maior atenção, não por casualidade. As razões que levaram Marx a interessar-se, de  
forma mais explicitada pela matemática, iniciaram com a teoria da mais-valia, ante o  
temor de cometer erros de cálculo, apontados em sua correspondência com Engels5.  
Além disso, o filósofo considerava o estudo da matemática um descanso para seu  
espírito, sob duplo objetivo: colocar suas leis econômicas em forma algébrica e  
analisar, do ponto de vista da dialética, os raciocínios usados no cálculo diferencial. Por  
certo, Marx estivesse em busca de “leis”, sob recursos de modelagem matemática, que  
regulassem as crises econômicas.  
dezembro de 1881, às margens de completar sessenta e oito anos. Estiveram juntos desde 1836. Marx  
faleceu “aos 14 de março (1883), às quinze para as três da tarde, [...] vítima de tuberculose. [...] Assim  
como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento natural, Marx descobriu a lei do desenvolvimento  
humano. [...] Mas em todos os terrenos estudados por Marx, e ele estudou muitos, nenhum deles  
superficialmente, em todos os terrenos, até mesmo as matemáticas, ele fez descobertas” (ATALI, 2007,  
pp. 343-4).  
2
“Uma primeira publicação parcial dos Manuscritos matemáticos surge em 1933, na revista soviética  
Pod Snamenem Marxisma (= Sob a bandeira do marxismo), por ocasião do 50º aniversário da morte de  
Marx. Esta publicação despertou imediatamente o interesse de especialistas. Em 1935, Valerii I. Glivenko  
(1897-1940) publica uma análise comparativa dos conceitos de diferencial nos trabalhos de Marx e nas  
obras famoso matemático francês Jacques Hadamard (1865-1963). Em 1947, outro soviético Levan P.  
Gokieli (1901-1975) publica uma monografia sobre os Manuscritos matemáticos de Marx. O primeiro  
autor a divulgar e analisar o conteúdo dos Manuscritos matemáticos de Marx no ocidente, é o  
matemático norte-americano de origem holandesa, Dirk-Jan Struik (1894-2000), que publicou um artigo  
intitulado Marx e a matemática na revista Science and Society (=Ciência e Sociedade) em 1948. [...] A  
publicação dos Manuscritos matemáticos provocou o aparecimento de muitos artigos de análise e de  
debate, entre outros de Miller, Rieske, Shcenk, Kennedy, Janovskaja, Matarrese e Ponzio. Na 2ª  
Conferência de Verão sobre a História da Matemática, que teve lugar em Liepaja, na União Soviética,  
em 1978, o filósofo-matemático Vladimir Molodschi (1906-...) apresentou uma comunicação intitulada  
Os Manuscritos matemáticos de Marx e os avanços na história da matemática na URSS, em que salienta  
a influência inspiradora do estudo dos Manuscritos matemáticos sobre o nascimento e o  
desenvolvimento da escola soviética da história da matemática” (GERDES, 2008, pp. 22-4).  
3 No Brasil, Dirk-Jan Stuik, matemático e teórico de economia de talhe marxista, é conhecido pela obra  
História concisa da matemática. 3. ed. Trad. João C. S. Guerreiro. Lisboa: Gradiva, 1997.  
4
O conceito de diferencial fora estudado, detalhadamente, por Marx, que antecipara a ideia do  
diferencial como símbolo operacional, surgida no século XX. Em 1927, Jacques Hadamarck mostrou o  
papel operativo do diferencial, sem conhecer o trabalho de Karl Marx, cuja divulgação no Ocidente se  
deu apenas em 1948.  
5
“No início de 1858, ele relatou a Engels ter cometido tantos erros de cálculo durante a redação dos  
Grundrisse que, “por desespero, tinha voltado a estudar álgebra”. Ao amigo confessara: “Nunca me  
senti em casa com a aritmética”, mas “com a ajuda da álgebra conseguirei pôr as coisas em ordem”  
(MUSTO, 2018, p. 41).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 245  
nova fase  
       
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
Os Manuscritos matemáticos, objeto deste ensaio, contam com mais de mil  
páginas de estudos acerca do cálculo diferencial e integral, de aritmética e de  
geometria, além de aplicações à economia. Entanto, tiveram menor atenção que outros  
estudos de Marx, e foram, inicialmente, publicados na União Soviética, depois em  
círculos marxistas do Ocidente, com duas décadas de diferença. A publicação integral  
dos Manuscritos deu-se em comemoração aos 150 anos do nascimento do Corifeu da  
Filosofia Moderna. Um dos objetivos explicitados, nos Manuscritos, fora o de retirar o  
véu mítico dos procedimentos matemáticos usados no cálculo diferencial, de modo  
não fundamentado, com foco nas abordagens dos matemáticos do século XIX, como  
Cauchy (1789-1857) e Bolzano (1781-1848). Assim, a obra revela não apenas a  
compreensão do desenvolvimento do cálculo diferencial, como tentativa de aprimorar  
uma ferramenta fundamental da matemática, mas, o entendimento dos bastidores  
teóricos da II Revolução Industrial.  
Mesmo desconhecendo os Manuscritos matemáticos, Karl Korsch (1886-1971)  
no ensaio “O ponto de vista da concepção materialista da história”, de março de 1922,  
portanto, anterior à publicação de Marxismo e filosofia, de 1923, registrara,  
criticamente:  
os epígonos de Marx, que se incluem eles mesmos entre os “marxistas  
ortodoxos”, equivocam-se completamente quando como Renner, na  
Áustria, ou Cunow, na Alemanha sentem a irresistível necessidade  
de “completar” a economia política do marxismo com uma teoria  
marxista acabada do direito ou do estado ou ainda com uma sociologia  
marxista. O sistema marxista passa muito bem sem esses  
complementos e sem uma “filologia” ou uma “matemática” marxistas.  
O conteúdo dos sistemas matemáticos é, também ele, condicionado  
histórica, social, econômica e praticamente e é significativo que  
este domínio suscite hoje bem menos polêmicas que outros domínios,  
incomparavelmente mais concretos, do saber humano. Não há  
nenhuma dúvida de que antes, durante e sobretudo depois da  
transformação radical do mundo sócio-histórico que se aproxima, as  
matemáticas também conhecerão uma transformação “mais ou menos  
rápida”. A validez da concepção materialista da história e da  
sociedade estende-se igualmente às matemáticas. Mas seria ridículo  
se um marxista apoiando-se no seu conhecimento mais aprofundado  
das realidades econômicas, históricas e sociais, que determinam  
também “em última instância”, o desenvolvimento passado e futuro  
da ciência matemática pretendesse opor uma nova matemática  
“marxista” aos sistemas que os matemáticos edificaram  
laboriosamente no curso de séculos (KORSCH, 2008, p. 128).  
Encarte histórico  
Marx estudara e anotara o livro de Poppe, História das matemáticas desde a  
Antiguidade aos tempos modernos, publicado em Tübigen, 1828, que consta dos  
Verinotio  
246 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
Manuscritos tecnológicos, de 1851, organizados por E. Dussel (DUSSEL, 1964).  
Contudo, segundo Caraça (1901-1948)6, duas são as exigências para a formação de  
um quadro explicativo de Ciência: a compatibilidade, ou a obediência à razão consigo  
própria e a realidade, que forneça um meio de conhecer e de prever fenômenos. Porém,  
“a ciência não tem, nem pode ter, como objectivo descrever a realidade tal como ela  
é. Aquilo a que ela aspira é construir quadros racionais de interpretação e previsão; a  
legitimidade de tais quadros dura enquanto durar o seu acordo com os resultados da  
observação e da experimentação” (CARAÇA, 1975, p. 107).  
De modo parcimonioso, não é possível afirmar que a ciência atinge a essência  
última da realidade, mas fornece uma imagem e as leis que satisfaçam a compreensão  
da realidade. A história da ciência mostra inúmeros exemplos de renovação e  
substituição de quadros explicativos, pois, ações teóricas e práticas encontram-se em  
reciprocidade contínua, de alimentação mútua, que se traduzem em movimentos de  
incompletude e de busca de aperfeiçoamentos ou adaptações.  
Os primeiros fisiólogos para compreenderem as razões e as ligações dos  
fenômenos naturais partiram de questões fundamentais, de caráter ontológico: para  
além da diversidade aparente dos fenômenos, acaso existiria um princípio único, ao  
qual tudo se reduz? Qual é a estrutura do Universo? Como surgiram os astros? Como  
se movem? O que é movimento? Para tanto, recorreram, inicialmente, à estrutura do  
mito, encontrada pronta, de modo a ensaiar a posição favorável ao princípio único e à  
compreensão da natureza, em movimento. Ao passo, que a escola de Pitágoras,  
florescida no século VI a.C., fundava-se nas noções de quantidade e de arranjo ou  
harmonia, como determinantes da diversidade dos fenômenos naturais e dos corpos. A  
concepção era original e de magnitude, pois considerava todas as coisas como  
“número”, ao estabelecer ligações entre as leis matemáticas e a ordenação do  
Universo7. Na procura de uma estrutura idêntica à numérica para a matéria, formada  
por corpúsculos cósmicos de extensão não nula, agrupados em determinada  
quantidade e ordem, evidenciou-se a dificuldade de verificação ou demonstração da  
afirmação “tudo é número”. Os corpúsculos, denominados mônadas, eram  
identificados com a unidade numérica. Os corpos se compunham por quantidade e  
arranjos distintos de mônadas, como os números se formam por quantidade e arranjo  
6
Conceitos fundamentais da matemática, de Bento de Jesus Caraça, cuja primeira edição ocorreu em  
1941, é ainda considerada obra de referência dos matemáticos, pois, politiza o conhecimento da área.  
7
Os números para a Escola de Pitágoras são os inteiros positivos, ou os racionais positivos, que são  
quocientes entre números inteiros.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 247  
nova fase  
   
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
de unidades8.  
Os arranjos numéricos poderiam ser fracionários para medir um segmento, em  
comparação com outro, tomado como unidade, estabelecendo-se uma razão. No caso  
da questão: quanto mede o segmento AB, na unidade u, que é o comprimento do  
segmento CD (Figura 1).  
A medida do segmento AB é dada pela razão entre as medidas dos dois  
segmentos, isto é 퐴퐵 que corresponde ao número de unidades u que “cabem” dentro  
퐶퐷  
do segmento AB. A razão é descrita por um número racional, com o numerador e o  
denominador que são, ou podem ser reduzidos a números inteiros positivos.  
A contestar a Escola Pitagórica, por ironia, o próprio Teorema de Pitágoras foi,  
parcialmente, responsável pelo descrédito da afirmação “todos os corpos são formados  
por mônadas”, dado o aparecimento de medidas, que não podem ser expressas por  
números inteiros ou racionais positivos. Em um triângulo retângulo, cujos catetos  
2
unidade, a sua hipotenusa deve medir unidades, que é um número  
medem uma  
irracional, não  
podendo ser escrito na forma fracionária com numerador e denominador  
inteiros positivos (Figura 2):  
8 Uma consequência dos arranjos, foi a de atribuir virtudes especiais a determinados números, por serem  
eles o princípio de tudo. Os números 6 e 28, por exemplo, são ditos perfeitos, por serem iguais à soma  
dos próprios divisores: 6=1+2+3 e 28=1+2+4+7+14. Divisores próprios de um número inteiro  
positivo são todos os seus divisores, exceto o próprio número.  
Verinotio  
248 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
2
Um segmento que meça u não pode ser expresso por pequenas partes,  
sejam  
mônadas ou não. Caraça destaca, através de indícios posteriores, a reação de  
esconder o fato9, que apontava para a falência da teoria das mônadas (CARAÇA, 1975,  
p. 72), ao que conclui:  
De resto, o caráter de seita da escola pitagórica, em que os aspectos  
místico e político, este fechado e aristocrático, ombreavam com o  
aspecto científico, prestava-se a essa tentativa de segredo à volta de  
questão de tal maneira embaraçosa. Onde só havia a ganhar com o  
debate público e extenso, os pitagóricos instituíram como norma, pelo  
contrário, o segredo e o silêncio. (CARAÇA, 1975, p. 75)  
Ainda segundo o Autor, outra tentativa de fuga foi a de que, considerando  
infinito10 o número de mônadas, que formam o segmento de reta, a discrepância  
desapareceria, - argumento contestado, posteriormente, por Parmênides e Zênon.  
Zenon questionara a existência dos corpúsculos materiais de extensão não nula,  
que contraria a afirmação fundamental “todas as coisas são número”. Argumento de  
que entre dois corpúsculos deve haver um espaço, pois se estivessem unidos, qual  
seria a distinção entre eles? Esse espaço deveria ser maior que cada corpúsculo, que  
são os menores possíveis, dentro da teoria pitagórica. Sendo assim, seria possível  
intercalar um terceiro corpúsculo, e estariam presentes dois espaços, ambos maiores  
que cada corpúsculo. Repetindo o raciocínio indefinidamente, seria possível intercalar,  
entre os dois primeiros corpúsculos, quantos fossem desejados, o que levaria à  
interrogação: qual é o número pertencente ao segmento determinado por dois  
corpúsculos, tomados como iniciais?  
Argumentações, que findaram por estabelecer o princípio da imobilidade,  
dificuldade imposta pela incomensurabilidade, que é característica do existente. Porém,  
o que é mais característico do Universo do que a mobilidade? Para a superação de  
ideias, que se compõem dessa forma, há necessidade de compreensão do que é  
infinito, do que é movimento e, também, de continuidade.  
Porém, tais conceitos não foram resolvidos na Antiguidade, pois, optou-se pela  
9
“Vários indícios posteriores mostram que a primeira reação foi a de esconder o caso. [...] como um  
dos mais preciosos desses indícios, aparece na seguinte passagem de Plutarco, acerca da vida de Numa  
Pompilius, XXXV: ‘...diz-se que os pitagóricos não queriam pôr as suas obras por escrito, nem as suas  
intenções, mas imprimiam a ciência na memória daqueles que eles reconheciam dignos disso. E como  
algumas vezes comunicaram alguns dos seus mais íntimos segredos e das mais escondidas subtilezas  
da geometria a algum personagem que não o merecia, eles diziam que os deuses por presságios  
evidentes, ameaçavam vingar este sacrilégio e esta impiedade, com alguma grande e pública  
calamidade” (CARAÇA, 1975, p. 75).  
10 Infinito considerado o “muito grande”.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 249  
nova fase  
   
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
incapacidade numérica de resolver o problema da incomensurabilidade do segmento,  
que trouxe a degradação do número em relação à geometria. Segundo Caraça:  
Concluiu-se pelo abandono das concepções dinâmicas, sempre que tal  
fosse possível a matéria grega é invadida pelo horror ao movimento.  
Estes traços degradação do número, horror do infinito, horror do  
movimento constituem a trincheira cômoda da hibernação, formam  
o biombo prudente que o filósofo grego coloca entre si e a realidade.  
(CARAÇA, 1975, p. 81)  
Sob tal perspectiva, o personagem Sócrates e o filósofo Platão deslocaram a  
atenção humana das coisas externas ao homem para as internas, na busca de princípios  
“espirituais” como explicações científicas, ao abandonarem a realidade sensível em  
troca da concepção de imutabilidade do conceito. O “sistema” filosófico de Platão fora  
criticado e não aceito por inteiro, pela defesa contra a fluência e a rejeição do devir.  
Com isto, a ciência grega se tornou incapaz de construir o conceito de função, base  
para o cálculo diferencial. Para tal, seria necessário conceber a noção de variável;  
abandonar o estudo apenas qualitativo dos fenômenos naturais e estabelecer o  
quantitativo; criar vínculos entre a geometria e a aritmética, conectando o conceito de  
movimento à geometria. Trabalho realizado somente ao início da Idade Moderna,  
distintamente, por Cardano, Descartes, Fermat, dentre outros.  
Infinito e infinitesimal  
A introdução do conceito de função como instrumento da ciência, aliada ao de  
variável, exigiu um novo olhar da humanidade sobre a fluência. Isaac Newton (1643-  
1727) denominou as funções por fluentes. Os conceitos de infinito e de infinitesimal  
encontram-se na base dos estudos marxianos dos Manuscritos matemáticos, e  
merecem destaque especial. Pois, para Galileu (1564-1642): “[O infinito e o  
infinitesimal] transcendem ao nosso entendimento finito, o primeiro devido à sua  
magnitude, o segundo devido à sua pequenez; imagine o que eles são quando  
combinados” (GALILEU apud ROONEY, 2012, p. 152).  
5
Números irracionais, como π e , são representados por  
séries infinitas, e podem ser indicados com representações  
decimais cada vez maiores, que não são determináveis. Tanto os  
números infinitamente grandes como os infinitamente pequenos  
(infinitesimais) foram, e têm sido, fonte de estudos para os  
matemáticos e de extrema utilidade em todas as ciências.  
Verinotio  
250 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
Arquimedes (287-212 a.C.)11 calculou a área aproximada de um círculo ao  
desenhar polígonos internos e externos, cada vez com maior número de lados, e  
calculou suas áreas, até que elas convergissem para o mesmo valor (Figura 3).  
Encontrou, na utilização das áreas dos polígonos, dois conceitos que se tornaram,  
posteriormente, muito relevantes: limite e infinito.  
A área perfeita seria dada por polígonos com número  
infinito de lados, e o próprio círculo poderia ser considerado  
um polígono desta natureza, pois, os dois polígonos, inscrito  
e circunscrito, convergiriam para o lugar geométrico círculo  
(figura 4). O procedimento é o de relacionar a área  
desconhecida com outra, mais fácil de ser calculada.  
Posteriormente, no século XVII, o método de Arquimedes foi  
associado a uma formulação algébrica adequada, o cálculo  
integral12.  
A pesquisa determinada pelo desenvolvimento da ciência deu origem, a partir  
da segunda metade do século XVI, a incentivos para cálculos de áreas, de volumes e  
de variações de velocidade. Simon Stevin (1548-1620)13 e Johannes Kepler (1571-  
1630) trabalharam o cálculo de áreas de figuras irregulares, dividindo-as em “fatias”  
muito finas, cujas áreas eram fáceis de calcular. Stevin aplicou o método para  
determinar o centro de gravidade de objetos sólidos. Kepler, à sua vez, utilizou a  
medição de áreas sobre caminhos curvos, significativa em seus trabalhos de  
astronomia. Curiosamente, valeu-se também do procedimento para determinar, com  
certa precisão, o volume de vinho em barril abaulado, sem a introdução, como era  
feito, de uma vara que apenas media a altura atingida pelo vinho, quando o barril não  
estava nem cheio e nem pela metade14.  
Ideia simplificada de limite  
Para lidar com o conceito de número infinitamente “grande” é adequado intuir  
11 Arquimedes obteve valores com boa aproximação para o número π.  
12 O sucesso do método só pôde ocorrer graças ao desenvolvimento da geometria analítica e o rigoroso  
entendimento dos limites.  
13  
Stevin foi o primeiro europeu a mostrar entendimento acerca de trabalhar com frações e decimais,  
tendo usado uma barra vertical no lugar de ponto e/ou vírgula.  
14  
Em verdade, se a altura do vinho atingisse um quarto do comprimento da vara, o barril conteria  
menos que a quarta parte do volume total do vinho, pois era mais abaulado acima dessa altura, o que  
traria prejuízo aos compradores.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 251  
nova fase  
       
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
que se um número é “bastante grande”, como um trilhão, sempre haverá outro maior,  
como um trilhão mais um. Afirmar que um valor numérico tende ao infinito é dizer que,  
no limite, este número é infinito (infinitamente grande ou infinitamente pequeno). Em  
linguagem simbólica matemática, para indicar um determinado número, que tende a  
ser infinitamente grande, escreve-se x+, e lê-se x tende a mais infinito.  
O símbolo é a notação para infinito e o sinal antes dele, indica infinito positivo,  
ou à direita dos infinitos números reais, se representados na reta numérica. Como o  
número +não está determinado deve ser escrito:  
O mesmo vale para números infinitamente pequenos:  
Em nota, Hegel (1770-1831) aborda o infinitamente grande e o infinitamente  
pequeno, afirmando:  
A definição ordinária do infinito matemático é: se há uma grandeza  
após aquela se ela é infinitamente grande, não há nenhuma grandeza  
maior; ou se ela é definida como infinitamente pequena, não há  
nenhuma grandeza menor [...] uma grandeza é definida em matemática  
como qualquer coisa que pode aumentar ou diminuir (MARX, 1985,  
p. 84).15  
A utilização de limites não se remete apenas ao infinito, mas, pode  
particularizar- se para qualquer número. Ao dizer que x0, por exemplo, deseja-se  
que o número procurado se aproxime o mais possível de zero. Os números da  
sequência numérica 0,01; 0,001; 0,0001 se aproximam de zero e, no caso, o número  
0,00....1, com infinitas casas decimais é bastante próximo de zero, mas não é igual a  
zero. No limite, o número mais próximo de zero é o próprio zero:  
A notação substitui o fato de o número se aproximar do valor (indicado) sem  
jamais “tocá-lo”. Em verdade, trata-se da resposta para a pergunta: “para qual número  
o valor está tendendo?” — e não para transformá-lo naquele número.  
15 Tradução dos autores.  
Verinotio  
252 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
Ao pensar em algumas operações numéricas escolhidas para o valor x, como  
elevá-lo ao quadrado, o mesmo fenômeno ocorre:  
Basta elevar ao quadrado alguns valores próximos ao número 2, como 1,99;  
1,9999, cujo resultado se aproxima de 4: (1,99)2 =3,9601; (1,9999)2 =  
3,999960001.  
Ideia simplificada de cálculo: integração e derivação  
O cálculo fornece ferramentas intelectuais para medir taxas de mudanças e  
respectivos efeitos, com duas partes conhecidas, a diferenciação e a integração, uma  
inversa da outra, ou cálculo diferencial e integral. O teorema conhecido como  
Fundamental do cálculo16 estabelece o vínculo entre ambas, pois, aplicando a  
diferenciação a uma integral, retorna-se à função original e vice-versa. Os dois  
procedimentos são, em sua essência, métodos de aproximação, usando os limites que  
tornam os erros de precisão tender a zero.  
Uma pessoa, que se move a uma velocidade constante de 6 km/h, durante três  
horas, tem o movimento representado por um segmento horizontal (paralelo ao eixo-  
x)17, como gráfico18 da velocidade em relação ao tempo, pois, sua equação é dada por:  
v(x) = 6, tal que 0 x 3. A representação gráfica é assim estabelecida porque, no  
caso, não há aceleração. A pessoa se desloca com velocidade uniforme e não há taxa  
de variação. O eixo horizontal determina o tempo, em horas, e o vertical a velocidade  
em quilômetros por hora (km/h).  
16 Sobre o teorema, conferir em Souza (2018, p. 212).  
17 Eixo das abscissas.  
18 Gráfico construído pelo programa Geogebra.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 253  
nova fase  
     
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
Para saber qual a distância percorrida pela pessoa, basta calcular a área, no  
gráfico19 (Figura 5), sob o segmento paralelo ao eixo-x, no caso, 18 km.  
Em um caso geral, para f(x) =k, considerando o intervalo20 [a,b], a área A é dada  
por A= k.(b-a). Quando a velocidade não é constante (ou uniforme), o que significa  
que há aceleração no movimento, a situação de movimento muda. Há taxa de variação  
da velocidade e o gráfico é representado por uma curva não retilínea. A aceleração em  
determinado instante é medida pela inclinação da curva naquele ponto, e é feita pelo  
cálculo diferencial, enquanto a distância percorrida pelo cálculo integral.  
Como calcular a área A da região, sob o gráfico de uma velocidade, em um  
intervalo fechado [a,b], como mostra a figura 6? Observa-se, pelo gráfico, que se a  
velocidade se altera ao longo do tempo, a área sob a curva também.  
Não sendo a velocidade constante, é preciso subdividir o intervalo [a,b] em  
subintervalos, sufi-cientemente pequenos, para que neles se possa considerar as parte  
do gráfico da velocidade como constantes, com boa aproximação (Figura 7).  
19 Em 1361, o bispo francês Nicholas Oresme (1323-1382) estabeleceu a relação entre área, velocidade  
e distância percorrida. Talvez tenha sido o primeiro a usar um sistema de coordenadas sem relação com  
a cartografia.  
20 O intervalo é fechado quando suas extremidades pertencem a ele e a notação é a indicada no texto.  
Se, por exemplo, o valor a não pertencesse ao intervalo e o valor b sim, a notação seria] a,b]. Os  
intervalos [a,b[ e ]a,b[ são abertos: no primeiro b não pertence ao intervalo e no segundo a e b também  
não.  
Verinotio  
254 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
Em cada intervalo, é possível calcular os valores aproximados das áreas de cada  
pequeno retângulo, supondo que o pedaço da função que representa a velocidade,  
naquele intervalo, seja constante. A área A procurada, será a soma das áreas dos  
retângulos ou o limite da soma, que mais se aproxima dessa área. Pois, quanto maior  
for as subdivisões, do intervalo [a,b], em subintervalos, cada vez menores, mais se  
aproxima de um número infinito de subdivisões. Aquela área é a integração da função  
velocidade. A determinação aproximada da área, por retângulos infinitamente  
pequenos, até a soma de um número infinitamente grande destes retângulos, é um  
exemplo, segundo o matemático Labérenne (1902-1985), extremamente adequado de  
dialética, que usa a interpretação de infinito e infinitesimal.  
A notação usada para indicar a integral de uma função f(x)21, em um determinado  
( )  
푓 푥 푑푥. Lê-se  
intervalo, é dada por  
de f(x) no intervalo [a,b]. No caso da  
integral  
velocidade, a letra x é substituída pela letra t, que indica tempo. Observa-se que a e b  
são os valores inferior e superior de t, que limitam a área, e dx significa uma variação  
muito pequena de x.  
Dois conceitos são fundamentais para entender as funções, relações especiais  
entre duas grandezas: o isolamento e a variação. Imagine-se duas grandezas, a  
quantidade de quilômetros percorridos por uma pessoa em uma caminhada, e o tempo  
utilizado na atividade. Sabe-se que a cada hora caminhada corresponde uma  
quantidade de quilômetros percorridos, ou uma variação nessa quantidade. Para o  
estudo da relação entre as duas grandezas, é necessário estabelecer um isolamento  
das duas, como o desgaste físico ou a quantidade de água consumida durante a  
caminhada, que não interessam na relação entre as duas grandezas destacadas no  
exemplo, a velocidade e o espaço percorrido.  
Para a conceituação de derivação é possível utilizar duas interpretações, uma  
de significado intuitivo, advindo da noção de limite, e outra, geométrica. Ambas  
se apresentam descritas com exemplos tirados da história da matemática. O  
( )  
ꢀ ꢁ −ꢀ(ꢂ)  
∆x  
quociente  
é a variação da função, designada simbolicamente por , isto é,  
ꢁ−ꢂ  
∆y  
pelo quociente entre as diferenças dos valores de y e os valores de x, no qual f(a) é o  
valor da função no ponto a.  
21  
As funções que aparecem em situações de derivação e integração são contínuas. Uma função é dita  
contínua em determinado valor de a se  
.
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 255  
nova fase  
 
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
Para uma função f(x), a derivada no ponto a, simbolicamente designada por f’(a),  
é dada por  
. Donde se lê: derivada de f(x) para x=a é igual ao limite  
do quociente entre f(x)-f(a) e (x-a), quando x tende ao valor a.  
A figura 8 mostra a representação gráfica22 de uma função, na qual estão  
marcados e e o ângulo α determinado em um triângulo retângulo.  
No limite, quando x tende ao valor a, tem-se a reta tangente à curva nesse valor  
(figura 9).  
A derivada de uma função f(x) para x=a é igual ao coeficiente angular23 da reta  
tangente à curva, no ponto P (a, f(a)). A reta s, secante à curva, que representa a função  
e passa por A e B, fica estabelecida se for conhecida, além das coordenadas dos  
pontos, a sua declividade ou inclinação24. A declividade da reta é dada pela tangente  
22 Os gráficos 6 e 7 foram construídos com uso do programa Geogebra.  
23 Coeficiente angular ou declividade de uma reta é determinado pelo quociente y.  
x  
24 Outra denominação para declividade: coeficiente angular.  
Verinotio  
256 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
de α (ou tgα), ângulo entre a reta e o eixo-x, segundo a orientação do eixo, e dessa  
forma, o problema passa a ser o de determinar o valor de tgα (Figura 8).  
As coordenadas dos  
são: A(X , Y ), B(X , Y ) e C(X , Y ).  
A A B B B A A reta tem  
pontos  
declividade dada pelo quociente entre as medidas BC e AC dos catetos25:  
Se for traçada uma reta r, tangente à curva, e se B estiver “infinitamente” próximo  
de A, a reta s coincide” com a reta r e, portanto, devem ter a mesma declividade.  
Observando a figura 8, vê-se que BC= y -y e AC= x -x , logo  
B A B A  
BC é uma distância “infinitamente pequena”, nomeada por Leibniz de “diferencial  
de y” ou dy.26 Da mesma maneira, AC é um “diferencial de x” ou dx.  
Denominando,  
, x =x , x =x y =y e y =y tem-se:  
genericamente B 1 A 0, B 1 A 0,  
Com os devidos acertos algébricos, tem-se:  
Como dx é “infinitamente pequeno”, poderia ser suprimido da igualdade e  
Sendo x abscissa de um ponto qualquer, pode-se escrever que  
assim  
0
assume valores numéricos diferentes para distintos valores de  
x..  
A função f’(x), que é derivada da função f(x) = x2+bx+c, é o conjunto das infinitas  
declividades das retas tangentes ao gráfico que representa a função f(x).  
Indica-se f’(x) = 2x+b.  
25  
Em um triângulo retângulo, a tangente de um ângulo agudo é a razão entre o cateto oposto e o  
cateto adjacente ao ângulo.  
26 Marx distingue os diferenciais dx e dy dos valores de diferenças infinitamente pequenas, e .  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 257  
nova fase  
   
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
Se a função escolhida fosse f(x) = 2x, estabelecido o procedimento  
anteriormente descrito, a função derivada f’(x) estaria definida por f’(x)=2, que é o  
coeficiente angular da reta y=2x.  
Cálculo diferencial  
Karl Marx: arrancar o véu misterioso  
aos métodos infinitesimais.”  
(Paulus GERDES, 2008)  
A evolução da matemática sempre esteve em conexão com os regimes políticos  
e sociais vigentes. Assim, o cálculo infinitesimal surgiu com a ciência moderna, sob o  
horizonte de desenvolvimento inicial do modo de produção capitalista.  
A partir da criação da geometria analítica, a matemática passou por uma  
transformação significativa, de ciência que estudava as grandezas constantes para as  
variáveis, capaz de analisar e calcular movimentos, desde o estudo de balística aos  
movimentos dos astros. O conhecimento do cálculo diferencial e integral, considerado  
o “telescópio” matemático (GERDES, 2008, p. 28), alcançou notáveis aplicações  
práticas: na artilharia, na construção de fortificações ou na resolução de problemas  
hidrodinâmicos. Entanto, há que se pensar que o conhecimento do cálculo diferencial  
e do infinitesimal não é fruto da genialidade de um só povo, ou de uma só pessoa, mas  
do trabalho contínuo de gerações de matemáticos, notadamente nos séculos XVI, XVII  
e XVIII, em diversos países27. Não se trata da produção somente de notáveis  
matemáticos, mas, também de trabalhadores, que buscaram soluções para problemas  
reais, ultrapassando dúvidas, hesitações e contradições, “sofrendo toda a influência  
que o ambiente da vida social exerce sobre a criação da Ciência”.28  
Marx, compreendida a aplicabilidade do cálculo diferencial e integral, percebeu  
a necessidade de fundamentação metodológica dos conceitos e da interpretação dos  
exemplos dialéticos e matemáticos – do “infinitamente pequeno” e do “infinitamente  
grande”29. Ainda que pareça um rebaixamento da riqueza dos Manuscritos, para a  
27  
Como, dentre outros, os italianos Federico Commandino, no séc. XVI; Galileu Galilei e Bonaventura  
Cavalieri, do início do séc. XVII; Evangelista Torriccelli, no séc. XVII; o alemão Johann Kepler, no séc. XVII;  
o holandês Cristiaan Huygens, no séc. XVII; o francês Pierre de Fermat, no séc. XVII; os ingleses John  
Wallis e Isaac Barrow, no séc. XVII e, notadamente, o alemão Gottfried Leibniz e o inglês Isaac Newton,  
fim do séc. XVII, início do séc. XVIII.  
28 CARAÇA, Prefácio(Duas atitudes em face da Ciência).  
29 Para exemplificar, no cálculo do comprimento de linhas curvas, os matemáticos aos primórdios do  
cálculo infinitesimal consideram-no como a soma de um número infinitamente grande de segmentos  
de retas, infinitamente pequenos. Do mesmo modo, áreas de retângulos infinitamente pequenos, em  
quantidades infinitamente grandes, instrumentam o cálculo de áreas sob curvas.  
Verinotio  
258 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
compreensão do estudo do cálculo diferencial, sugere-se o esquema (Figura 10), a ser  
explicitado parte a parte, com exemplos e explicações dos procedimentos  
metodológicos, o de estabelecer os vínculos citados, anteriormente.  
Procedimento místico  
Para Marx, o procedimento de Leibniz, embora desse certo para outras  
funções, continha um equívoco, o de tratar dx como zero, trazendo em consequência  
ꢃꢄ  
ꢃꢁ  
0
= , logo um cálculo indeterminado. Segundo Euler (1707-1783), não é possível,  
0
aritmeticamente, dividir por zero. Mais ainda dividir zero por zero, embora os “zeros”  
tenham significados geométricos distintos, ou medidas de diferentes segmentos,  
simbolizados por dx e dy.  
D’Ambrosio (1932-2021), matemático, introdutor da etnomatemática no Brasil,  
em sua obra Cálculo e introdução à análise (1975), indica o equívoco em considerar  
ꢃꢄ como quociente, pois além de não oferecer significado correto, tem o inconveniente  
ꢃꢁ  
de fazer com que se simplifique, de forma equivocada, os procedimentos de cálculo.  
O tratamento dado às diferenças “infinitamente pequenasfoi chamado de místico por  
Marx, caracterizando-o por “doença infantil do cálculo infinitesimal30. No entanto,  
ressalta-se que os limites indicam tendências a um determinado valor, e não a  
substituição pelo próprio valor.  
Pois, considerar x = x+transformado doravante em x = x+ dx, é uma escolha  
1
1
arbitrária e, segundo Marx, uma explicação metafísica, que carrega consigo a  
necessidade de escamotear os caminhos dos termos dx e para obter derivadas de  
30  
Marx apresenta um segundo exemplo, utilizando a função f(x)=ax3+bx2+cx e, cuja função derivada  
é f’(x)= 3ax2+2bx+c, advinda do ponto de partida ꢃꢄ, árvore genealógica das funções derivadas, a partir  
ꢃꢁ  
da primeira original.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 259  
nova fase  
 
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
qualquer ordem31. “Assim se crê mesmo no caráter misterioso do modo de calcular  
que venha descobrir resultados exatos (e em outro verdadeiramente extraordinário em  
suas aplicações geométricas) graças a procedimentos matemáticos positivamente  
falsos” (MARX, 1985, p. 195)32.  
Marx não foi o primeiro a criticar Newton e Leibniz. Alguns matemáticos  
tradicionais não aceitaram o novo cálculo, como George Berkeley (1685-1753), pois  
perceberam a ambiguidade do tratamento dado às grandezas infinitamente  
pequenas. Leibniz reconheceu que a notação  
aproximação  
habitual para a inclinação da tangente, trazia um problema, pois se dx e dy são  
diferentes de zero, ꢃꢄ não é a taxa de variação instantânea. Ele tentou contornar o  
ꢃꢁ  
problema, considerando dx e dy infinitamente pequenos, deslocando o problema para  
outro contexto.  
Newton, outro “criador” do cálculo, apresentou sua pesquisa acerca do tema  
a Isaac Barrow (1630-1677) e Edmond Halley (1656-1742), que o incentivaram a  
publicar o resultado de seu trabalho, ocorrido em 1672. A principal lei do movimento,  
de Newton, afirma que a aceleração de um corpo em movimento, multiplicada pela sua  
massa, é igual à força que age sobre o corpo. A velocidade é expressa pela derivada  
da posição do corpo e a aceleração é derivada da velocidade. Ambos chegaram à  
conclusão que a função g(x), cuja área sob a curva de seu gráfico, é da forma f(x) = xm,  
tem por resposta g(x)= mxm-1 ou g(x)=f’(x).  
A abordagem de Newton para o cálculo de derivadas era semelhante à de  
Leibniz, exceto ao usar zero no lugar de dx, de modo que seu método também utilizava  
a aproximação. Considerado zero como sendo muito pequeno, no limite o erro  
desaparece porque o valor se torna exato. Newton usou o termo fluxão para captar a  
ideia de uma grandeza fluindo rumo ao valor zero, sem jamais chegar a tal valor33.  
Marx utilizava a notação para dx e 푦ꢅ  
para dy34. Observe-se a indicação da variável  
assinalada com um ponto acima da letra. Ele poderia ter contornado o problema, pois  
era sabido que as coisas se movem e possuem velocidade, a cada instante. O que fora  
descrito como "dogmatismo empírico", em contraste ao "dogmatismo metafísico", de  
31 As derivadas podem ser obtidas consecutivamente em primeira, segunda etc. até a n-ésima derivada.  
32 Tradução dos autores.  
33 Em 1711, Leibniz publicou Método de fluxões e séries infinitas.  
34 A se considerar dx como uma diferença numérica não normal (não arquimédica), como seria possível  
aplicar regras numéricas para números normais? Contemporaneamente, dx é considerado não  
arquimédico.  
Verinotio  
260 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
       
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
Leibniz.  
Ao longo do século XVIII, a dificuldade permaneceu. No entanto, Euler tentou  
pensar cálculos em multiplicações e divisões de zeros.  
Procedimento racional  
Leibniz e Newton utilizaram a igualdade “x1=x0+dx”, porém, D’Alembert  
(1717- 1783) e Euler fizeram uma correção metodológica ao procedimento, afirmando  
que “x1=x0+Δx, sendo Δx um acréscimo finito e, portanto, um valor numérico, para  
o qual valem as regras da Álgebra. Assim sendo, o cálculo infinitesimal foi afastado do  
que Marx chamou de procedimento místico.  
O método usado por D’Alembert é essencialmente algébrico para a função  
f(x)=x2, usando o desenvolvimento do Binômio de Newton:  
Δy é o acréscimo numérico de valores da função, que corresponde ao acréscimo  
Δx, da variável x:  
O quociente entre os acréscimos fica sendo:  
O resultado final é o mesmo, mas não foi obtido por “desprezar” valores  
próximos a zero, e sim como resultado de uma operação matemática, que envolve o  
quociente de valores, isto é, o procedimento racional. No entanto, a divisão 0 permanece  
0
nos dois procedimentos.  
Euler, sabendo não ser possível dividir zero por zero35, deu aos zerosdo cálculo  
diferencial um significado geométrico, de razão entre as medidas de dois segmentos.  
As duas deduções ou procedimentos são, segundo Marx, as mesmas,  
35  
A divisão por zero não determina um valor numérico. Se dividirmos 10 por 2 obtemos o quociente  
5, porque 5x2=10. Se dividirmos 10 por zero podemos escolher qualquer valor porque o produto de  
zero por qualquer valor é sempre zero. A divisão de zero por zero acaba por evidenciar uma  
indeterminação, não um quociente.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 261  
nova fase  
 
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
ꢃꢄ  
conhecido de antemão o quociente  
apesar da utilização do cálculo algébrico.  
ꢃꢁ  
Segundo Marx:  
D’Alembert havia depurado o cálculo diferencial de seu véu místico, e  
lhe fez um progresso enorme. Qualquer que seja o Tratado dos  
fluidos, publicado em 1774, o método de Leibniz não foi destronado  
em França durante anos. Ele mal precisou relevar que (o ensinamento  
de Newton) dominava a Inglaterra desde os primeiros decênios do  
século XIX. Mas aqui, como anteriormente em França, os princípios de  
D’Alembert tornaram-se, e permanecem até hoje, ainda que com  
algumas modificações. (MARX, 1985, p. 198)  
Procedimento algébrico de Lagrange  
Para “libertar” os cálculos diferenciais das “grandezas infinitamente pequenas”,  
Lagrange (1736-1813) findou por introduzir a definição de derivada. Tomando como  
exemplo a função f(x)=x2, utilizando como D’Alembert o acréscimo Δx:  
O estudo inicial das derivadas foi feito com funções polinomiais, o procedimento  
incluía divisões sucessivas e as séries de Taylor (1685-1731), que desvinculou o  
procedimento das “grandezas infinitamente pequenas” e, portanto, o quociente entre  
dois zeros. Porém, nem todas as funções podem ser tratadas da mesma forma o que,  
segundo Marx, invalida o procedimento.  
Lagrange optou por algebrizar o cálculo diferencial, tomando como ponto de  
partida imediato o Teorema de Taylor36, que havia sobrevivido ao estudo de Newton,  
sendo mais geral, englobando uma forma de operação do cálculo diferencial pelo  
desenvolvimento de uma série expressa por f(x+h). O método, segundo Marx, libertou-  
se de tudo que poderia parecer transcendência metafísica, baseando-se apenas em  
operações algébricas. Apesar disso, Lagrange ainda substituiu grandezas variáveis por  
constantes e utilizou, na prática, os métodos criticáveis de Leibniz.  
Método de Marx (Simbólico)  
O método, proposto por Marx e avaliado por Engels, move o valor x de x para  
0
x , fazendo com que haja de fato variação, enquanto  
1
antecessores partiram de  
seus  
36 Conferir Souza (2018, p. 222).  
Verinotio  
262 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
x
que  
representa uma soma de duas grandezas, mas não a variação de uma. O  
0+  
,
que mostra a originalidade de Marx na explicitação do procedimento teórico, em curso.  
2
um  
Voltando ao exemplo f(x)=x , se a variável independente x cresce (ou decresce) de  
determinado valor x até outro valor x , a variável y dependente de x, varia de y até  
0
1
0
y . Tomando o quociente entre as diferenças  
1
Do lado esquerdo, x1 regressa até x0 e, finalmente, se iguala ao valor: x1-x0  
0
= 0, o que implica em =0. Isso não significa que temos Δy = porque seu conteúdo  
Δx  
0
foi comprovado do lado direito, com resultado final fundamental. Tal resultado que  
dy  
dx  
0
= obtido por Marx tem valor matemático necessário, “pois zero, em sua forma ultra  
0
0
primitiva que pode ter, não importa qual valor porque = 푥 deve fornecer sempre 0  
0
= 0. Mas aqui 0 aparece como equivalente simbólico de um valor real determinado...”  
0
MARX,1985, p. 146).  
Para estabelecer a diferença entre o método de Marx e os anteriores, é  
necessário lembrar que Leibniz e Newton partem de x1=x0+dx, e D’Alembert, Euler e  
Lagrange de x1 = x0+, isto é, de adições, considerando tanto dx como como  
grandezas distintas de x0. A derivada provisória 2x0, do exemplo, aparecia antes da  
diferenciação, isto é, antes da substituição de por zero. A derivada definitiva de  
Marx surge, pela primeira vez, quando x1 tiver “voltado” a x0. A derivada definitiva é  
o resultado final do processo de diferenciação, enquanto nos demais procedimentos,  
não há mostra de movimento, falha essencial que o método proposto por Marx tenta  
sanar.  
O processo dialético não é apenas a existência de contrários, pois o  
materialismo histórico considera a contradição ligada a um movimento. Não basta  
afirmar que o valor é igual a zero e também diferente de zero. A diferenciação proposta  
por Marx, se apresenta como um processo dialético, particularmente quanto à negação  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 263  
nova fase  
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
da negação, pois a primeira negação exprime a compreensão do processo de  
transformação (de onde se parte e para qual direção seguir). A segunda negação é  
consequência da primeira e algebricamente correta, após o restabelecimento da  
igualdade. Trata-se, portanto, de uma movimentação de compreensão teórica.  
Marx37 realizou um salto de qualidade ao abandonar a matemática das  
grandezas constantes para a das variáveis, desde o momento em que os diferenciais  
dx, dy etc. funcionam como ponto de partida do cálculo, invertendo o método algébrico  
de diferenciação de D’Alembert, Euler e Lagrange. Ele conseguiu dar fundamentação  
dialética para a diferenciação de uma classe de funções, segundo Gerdes. O diferencial,  
tratado como um símbolo operacional, evidencia significados em generalizações  
contemporâneas, do conceito para a análise funcional.  
Marx coloca-se contra a ideia de “matemáticas”, como Leibniz e Newton, que  
consideravam o cálculo diferencial distinto da Álgebra. Para ele, a Matemática é única  
e seus ramos têm autonomia relativa. A essência do cálculo reside no papel operativo  
dos símbolos em seu desenvolvimento. O método de diferenciação, segundo ele, é o  
processo real de obtenção de funções derivadas. Derivar e integrar são procedimentos  
algoritmos38. O Autor reforça que, na transição da derivada provisória  
da teoria dos  
para a definitiva, x não tende para x e não tende a zero, pois substitui,  
1
0
efetivamente, x por x , sem que  
1
0
haja aproximação infinita e é igual a zero (MARX,  
1985, pp. 170-1).  
Deste modo, um algoritmo é uma sequência finita de instruções, definidas sem  
ambiguidade, que são executadas “mecanicamente”, inclusive por meios eletrônicos,  
pois podem repetir passos (ou iterações), fundadas na lógica matemática. Existem  
algoritmos para computadores, mas também para execução de tarefas. Eles podem ser  
classificados por:  
Implementação com recursos: interativos; pela lógica; seriais ou não;  
determinísticos ou não; exatos ou aproximados;  
Por paradigma, como: divisão e conquista; programação computacional;  
redução a outro problema; busca e enumeração; probabilístico;  
37 Marx deduziu e analisou, pelo mesmo procedimento, a fórmula para o cálculo de derivadas de funções  
que podem ser escritos como produto de outras.  
38 O uso corrente da palavra algoritmo procedimentos técnicos de obtenção de resultados se altera  
quando se trata de sua teoria, que envolve a lógica, o formalismo e até mesmo a intuição. Segundo  
Gerdes (p. 78), os algoritmos, junto com a teoria das funções recursivas, foram e têm sido fundamental  
para a utilização dos computadores.  
Verinotio  
264 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
Por campo de estudos;  
Pela complexidade.  
Gerdes estabeleceu uma relação entre a natureza dialética do movimento,  
acerca de um dos paradoxos lógicos de Zenon (GERDES, 2008, p. 79), o de Aquiles e  
a tartaruga. Nele o herói Aquiles, muito veloz, aposta uma corrida com uma tartaruga,  
uma vantagem. Aquiles sai de um ponto A e a tartaruga de um ponto  
que a inicia com  
1
T Quando Aquiles atingir o  
1.  
T (ou A ), a tartaruga, que anda devagar, terá  
ponto 1  
2
atingido o ponto T , após percorrer uma distância menor que a anterior. Quando  
2
Aquiles chegar ao ponto T (ou A ), a tartaruga terá atingido o ponto T . Repetindo  
2
3
3
o procedimento, com a tartaruga  
percorrendo distâncias cada vez menores, Aquiles,  
embora seja bastante rápido, nunca alcançará a tartaruga, isto é, a distância entre eles  
nunca será nula.  
Segundo Marx, este limite será alcançado, isto é, a distância entre Aquiles e  
tartaruga poderá ser zero e não tenderá a zero, tendo em vista a realidade do  
movimento. Atualmente, para a maioria dos matemáticos, o conceito é relevante e  
significativo ao corresponder aos processos da realidade.  
Zenon tentou mostrar que o acontecimento de ultrapassagem de Aquiles é  
impossível, porque é impossível a divisibilidade do espaço e do tempo. Esta afirmação  
é anterior à construção dos números reais. O paradoxo é resolvido pela soma das  
entre os corredores, considerando a notação dA , A como a distância  
distâncias  
1
2
entre dois pontos e a sua soma: dA , A + dA , A + dA , A + dA , A +... que dará  
1 2 2 3 3 4 4 5  
a distância percorrida por  
Aquiles, eliminando a abstração da divisibilidade.  
A ideia de movimento no mundo real significa encontrar-se em um lugar e,  
simultaneamente, não estar nele, revelando a continuidade e também a  
descontinuidade do tempo e do espaço. O que Marx alcançou, segundo Gerdes (2008),  
pela negação da negação. “O caráter dialéctico do método de Marx, por exemplo,  
quanto à lei da negação da negação, reflecte no pensamento a dialéctica objetiva do  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 265  
nova fase  
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
movimento do mundo real” (GERDES, 2008, p. 82)39.  
Considerações finais  
É possível supor que o interesse de Marx pela fundamentação do cálculo  
diferencial esteja na essência de sua mudança? Ou supor que encontrar novos  
caminhos para resolver questões principais da vida humana está entre a Matemática e  
a Filosofia? Gerdes ressalta alguns elementos matemáticos que reforçam tal  
possibilidade: a estreita relação entre “a matemática e a realidade material; o papel  
axiomático da matemática; o rigor de sua fundamentação; o conteúdo e o significado  
de sua simbologia; o problema da infinibilidade (atual, potencial ou uma unidade das  
duas); a luta dos contrários; discreto e contínuo, concreto e abstrato, finito e infinito...”  
(GERDES, 2008, p. 83). Ressalte-se, no entanto, a natureza da matemática clássica,  
que é tomada como referência por Marx.  
Pode-se dizer que, a partir de Descartes, a movimentação e a dialética  
adentraram no campo da matemática, e foram indispensáveis para o desenvolvimento  
do cálculo diferencial e integral. Segundo Engels, os homens pensaram dialeticamente  
antes de saber o que era a dialética, ao que Labèrenne completa: “E o que é verdadeiro  
para o homem em geral, é talvez neste caso da dialéctica ainda mais verdadeiro  
para matemáticos (GERDES, 2008, p. 86)40.  
O estudo produzido em Os manuscritos matemáticos de Marx, analisado e  
compreendido, pode servir para elaboração de novos métodos de ensino da  
Matemática. Gerdes aponta a utilização para o ensino do conhecimento matemático  
básico (GERDES, 2008, pp. 92-6), em exemplos de álgebra elementar para obter uma  
fórmula de resolução de equações de segundo grau, até alcançar a conhecida pelos  
brasileiros como fórmula de Báskara; em geometria, na determinação do ponto médio  
de um segmento e na trigonometria, na obtenção de fórmula para a tangente da soma  
de dois ângulos. Em todos os exemplos é apontada a necessidade de obtenção de um  
valor intermediário primeira negação até ao resultado final, utilizando a negação  
da negação.  
Apropriar-se do procedimento de Marx em aprendizagem da matemática básica  
não é usual, mas pode ser uma forma a fazer desaparecer, do imaginário do estudante  
de Matemática, o “caráter mágico” e imutável das situações vivenciadas por ele em  
39 Mantida a grafia original.  
40 Idem per idem.  
Verinotio  
266 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
A escolha de Karl Marx: o cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos  
sala de aula, além de ampliar as possíveis conexões com o ensino da filosofia. Ao  
passo de oferecer recursos de raciocínio aos professores e estudantes, de modo  
a favorecer a compreensão da realidade a partir do materialismo histórico, como  
fundamentação do conhecimento pelo viés da dialética e da imanência.  
Em visão mais ampla, pode-se afirmar a importância da versão inglesa dos  
Manuscritos Matemáticos de Marx (1983), seguida da francesa (1985), que  
reacenderam as discussões contemporâneas sobre a utilização de instrumentos  
matemáticos em análises da economia política e ensino da matemática.  
Referências  
ATALI, Jacques. Karl Marx ou o espírito do mundo. Trad. Clóvis Marques. Rio de  
Janeiro: Record, 2007.  
CARAÇA, Bento de Jesus. Conceitos fundamentais da matemática. 6. Ed. Lisboa: Gráfica  
Brás Monteiro Ltda., 1975.  
D’AMBROSIO, Ubiratan. Cálculo e introdução à análise. São Paulo: Nacional, 1975.  
GERDES, Paulus. Os Manuscritos filosófico-matemáticos de Karl Marx sobre o cálculo  
diferencial: uma introdução. Tlanu Revista de Educação Matemática, Maputo,  
2008.  
KORCSH, Karl. “A concepção materialista da história”. In: ______. Marxismo e filosofia.  
Trad. José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008, pp. 123-46.  
MARX, Karl. Les Manuscrits mathematiques de Marx. Trad. Alain Alcouffe. Paris :  
Economica, 1985. (Premiere traduction française)  
MARX, Karl. Mathematical manuscripts of Karl Marx. London : New Park Publications,  
1983.  
MEHRING, Franz. Carlos Marx, el fundador del socialismo científico. Historia de su vida.  
Trad. W. Roces. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1943.  
MEHRING, Franz. Karl Marx a história de sua vida. Trad. José Luis e Rosa  
Sundermann. 2. Ed. São Paulo: Sundermann, 2014.  
MIRANDA, Gustavo A. de. A popularização da matemática: os Manuscritos matemáticos  
de Karl Marx e o Calculus made easy de Sivanus Thompson. In: IV Encontro  
Brasileiro de Educação e Marxismo, 2009, São José do Rio Preto. Coletânea de  
textos do IV EBEM CD-Rom. Marilia: Oficina Universitária, 2009.  
MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883).  
Trad. Rubens Enderele. São Paulo: Boitempo, 2018.  
ROONEY, Anne. A história da matemática: desde a criação das pirâmides até a  
exploração do infinito. São Paulo: M. Brooks do Brasil, 2012.  
SOUZA, Maria Helena. 21 teoremas matemáticos que revolucionaram o mundo. São  
Paulo: Planeta do Brasil, 2018.  
STEWART, Ian. Em busca do infinito: uma história da matemática dos primeiros  
números à Teoria do Caos. Trad. George Schlesinger. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.  
VALVERDE, Antonio. “Karl Marx: aportes ao fetichismo tecnológico”. In: OLIVEIRA, J.  
(Org.). Filosofia da tecnologia: seus autores e seus problemas. Caxias do Sul: Educs,  
2022, pp. 191-202.  
Sampa, Verão de 2024.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024 | 267  
nova fase  
Antônio Valverde; Maria Helena Soares de Souza  
Como citar:  
VALVERDE, Antonio; SOUZA, Maria Helena Soares de. A escolha de Karl Marx: O  
cálculo diferencial em Manuscritos matemáticos. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n.  
2, pp. 244-268; jul.-dez., 2024.  
Verinotio  
268 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 244-268 jul.-dez., 2024  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.729  
Das formas particulares do meio homogêneo à  
inerência das categorias gerais da arte1  
From the particular forms of the homogeneous medium  
to the inherence of the general categories of art  
Ronaldo Vielmi Fortes*  
Resumo: trata-se de explicitar as considerações  
de György Lukács acerca das categorias gerais  
da arte, demonstrando a especificidade de suas  
relações e das formas de sua realização no  
interior das artes particulares. Cada uma das  
artes apresenta, segundo o autor, formas  
próprias de refletir a realidade, pondo em  
destaque através de seu meio homogêneo  
específicos, aspectos essenciais da vida,  
permitindo a ascensão à consciência de  
elementos decisivos interação dos indivíduos  
com o seu mundo, promovendo desse modo a  
desfetichização da cotidianidade.  
Abstract: The aim is to explain György Lukács'  
considerations about the general categories of  
art, demonstrating the specificity of their  
relationships and the ways in which they are  
realized within the particular arts. According to  
the author, each of the arts has its own way of  
reflecting reality, highlighting essential aspects  
of life through their specific homogeneous  
medium, allowing decisive elements of  
individuals' interaction with their world to rise  
to consciousness, thus promoting the de-  
fetishization of everyday life.  
Keywords: aesthetics; homogeneous medium,  
art and defetishization.  
Palavras-chave: estética; meio homogêneo, arte e  
desfetichização.  
... a totalidade de fenômenos da vida [é] uma paisagem  
montanhosa na qual se destacam como cumes ou como  
altas cadeias de montanhas as obras de arte.  
György Lukács; Die Eigenart des Ästhetischen  
Band II, p. 508  
É bem provável que a leitura do título deste texto cause certa estranheza, uma  
vez que ele não se explicita por si mesmo, pois contém conceitos que precisam ser  
devidamente apresentados e analisados. Afinal, o que aqui se designa por “inerência  
da arte” geral no “meio homogêneo” particular? A questão posta em foco remete a  
categorias importantes da estética de Lukács. O título declara, pois, a intenção de não  
se limitar a fazer uma simples introdução ao pensamento estético de Lukács, porém  
1 Artigo publicado originariamente em NACIF, DUAYER, LIRA, GONZALEZ; Ler Lukács, a contribuição de  
Nicolas Tertulian; Niterói/RJ; Editora dos Autores, 2024.  
* Doutor em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Programa de Pós-  
Graduação em Serviço Social na Universidade Federal de Juiz de Fora PPGSeso/UFJF. E-mail:  
vielmi.ronaldo@ufjf.br  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Ronaldo Vielmi Fortes  
via tratar de elementos complexos e categorias decisivas presentes em sua obra tardia,  
A peculiaridade do estético, publicada em 1963.  
É preciso evitar simplificações bem comuns às pretensas introduções a um  
pensamento, principalmente no que concerne a essa obra de grande complexidade de  
Lukács. Ao se fazer uma apresentação introdutória, geralmente de cunho mais geral e  
ilustrativo com o objetivo de difundir o pensamento de determinado autor, corre-se  
alguns riscos. Talvez o mais grave seja o risco de simplificar demais o pensamento  
para poder apresentá-lo por meio dos elementos mais superficiais contidos no  
pensamento do autor, faz-se a opção pelas concepções mais gerais que possibilitam  
traçar um panorama das ideias centrais do livro em questão; nessa medida, como em  
toda simplificação, existe o perigo de, ao tentar divulgar e facilitar a entrada no  
pensamento de dado autor, tornar as ideias contidas na obra um pensamento  
simplório, forjando, nas melhores das intenções, um pensador de fácil acesso, cujas  
reflexões conferem a falsa impressão de análises e elaborações tranquilas de serem  
captadas. Esse não é o caso do livro de Lukács. A preocupação nesse artigo é mostrar  
que a obra estética de Lukács contém reflexões de grande complexidade; não é um  
autor fácil de ser lido, não é um autor que se possa em uma única leitura compreender  
a gama de questões filosóficas de considerável complexidade presentes suas  
investigações.  
Vale insistir mais nesse ponto: o trabalho de vulgarização, no bom sentido de  
tornar vulgo popularizar o pensamento do autor, por vezes pode conduzir à  
vulgarização no sentido pejorativo, ou seja, pode tornar o pensamento do autor  
simplório, tolo, impreciso. Tal procedimento acabaria por tornar Lukács um autor fácil,  
um alvo vulnerável diante do ataque de seus inimigos, uma presa fácil para os seus  
opositores. É o que vem acontecendo em determinados círculos que se pretendem  
herdeiros e difusor do pensamento lukacsiano. Por vezes, a simplificação a que tem  
sido submetida a obra de Lukács tem servido, maneira incorreta, como aparatos para  
uma militância que por meio de conceitos simples, tornados jargões pragmáticos,  
instrumentalizam questões filosóficas sérias, retirando-as do contexto evidente de  
rigor como forma a utilizá-los no campo prático das questões políticas, sem  
compreender efetivamente as categorias e a complexidade do pensamento de Lukács.  
Para fugir a essa vulgarização no mau sentido, não iremos nos furtar de lidar com a  
complexidade das articulações categorias presentes na obra de Lukács. Melhor correr  
o risco de não ser bem compreendido, a banalizar o pensando de Lukács e ludibriar  
Verinotio  
270 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
seus leitores conferindo a ilusória impressão de uma obra de fácil apreensão. Um dos  
objetivos desse artigo é destacar que Lukács não é um autor fácil, é um autor  
complexo.  
O primeiro elemento necessário de combater é a afirmação muito costumeira  
segundo a qual a obra de Lukács é qualificada como uma estética marxista. Em termos  
gerais, a afirmação é correta, porém deve sempre ser considerada com devidos  
cuidados. Sem maiores explicações, em linhas gerais tal afirmação parece indicar que  
Lukács se move por meio dos famosos cânones do marxismo tradicional. Tomada nesse  
sentido, sua estética figuraria como a versão operária, a concepção proletária, no  
campo da definição do que vem a ser a arte com a consequente indicação de seu papel  
político no âmbito da sociabilidade capitalista. Incorreríamos, desse modo, nos  
famosos jargões do marxismo vulgar em que a estética seria uma construção crítica  
acerca das contradições da sociedade capitalista, cujos temas versariam  
fundamentalmente sobre a arte como mercadoria, a arte no contexto das lutas de  
classes, ou mesmo como simples expressão de uma concepção de arte proletária em  
detrimento das formulações burguesas da estética. Contra as acusações simplistas,  
segundo a qual o realismo estético de Lukács significaria sua rendição aos ditames  
stalinistas, aos princípios do Prolekult, é preciso insistir que o campo das discussões  
no qual se insere sua obra, encontra-se longe de tais postulações dogmáticas da  
vulgata marxista erguida sobre a influência de Stalin; pelo contrário, constituem um  
combate evidente e direto a elas.  
A obra do Lukács se inscreve em outra linha de tratamento analítico, trata-se  
de uma obra grande complexidade, na medida em que adentra a um debate denso e  
tenso com a tradição da filosofia da arte. A Estética de Lukács se move sempre a partir  
de Marx, toma como ponto de partida a inflexão posta pelo pensamento marxiano –  
isso é evidente desde o início. É sobre essa base que a Estética será posta em outros  
patamares, no intuito de atingir resolubilidades para uma série de problemas que a  
filosofia da arte apresentou. É nesse sentido que se pode dizer se tratar de uma  
estética marxista, pois é a partir de partir de Marx, que sua estética será pensada. Não  
é o caso, portanto, de fundar uma concepção própria ao proletariado para definir a  
arte contra possíveis fundamentos burgueses. Em vez de tal propositura de natureza  
fundamentalmente politicista, temos o debate de rigor com as categorias da filosofia  
da arte, o tratamento das questões mais fundamentais estabelecidas ao longo da  
tradição filosófica no tratamento do estético. É precisamente nesse debate que pode  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 271  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
ser localizada a grande complexidade na obra lukácsiana. É de difícil entrada, pois,  
para compreender as elaborações e teses nela contida, além de um amplo  
conhecimento da literatura, é preciso se inteirar de categorias chaves do pensamento  
de Hegel, Nicolai Hartmann, Aristóteles, Goethe, Schiller, Kant, Lessing e vários outros  
autores, retomados e problematizados por Lukács no interior de sua Estética. Temos  
nessa obra derradeira do pensador húngaro de fato uma estética no sentido que a  
tradição filosófica conferiu ao termo. Trata-se da filosofia da arte, na medida em que  
se dedica a discutir as grandes questões milenares da filosofia estamos falando de  
2.600 anos de história, que remonta a Platão, Aristóteles, passando por uma série de  
autores, chegando a Hegel, a Goethe e, evidentemente, a Marx. A tarefa de Lukács é  
enfrentar as mais decisivas questões da filosofia da arte a partir da inflexão posta pelo  
pensamento de Marx.  
O ponto de partida da estética, como não poderia deixar de ser, é a demarcação  
seguida de seu consequente problema: a arte existe. A constatação óbvia, induz ao  
problema da determinação do que vem a ser essa forma específica dessa atividade  
ideal humana. Donde a questão central decisiva para Lukács é determinar a  
peculiaridade do estético no quadro das atividades espirituais do ser social.  
Dentre os vários debates concernentes a essa questão, Lukács assume uma  
posição bem própria frente à necessária da determinação da definição da arte, qual  
seja: no que tange à dimensão estética poderíamos dizer que existe uma arte em geral,  
ou na realidade cada arte particular música, pintura, arquitetura, literatura etc. –  
possui sentido e definição própria, ou seja encontra-se encerrada em si mesma? Em  
outras palavras, a arte deve ser entendida como dimensão geral que atravessa todas  
as formas específicas de sua presentificação, de forma que artes particulares nada mais  
seriam que expressões participativas dessa arte em geral? ou cada gênero da arte teria  
os meios próprios, sentidos próprios, complexos categoriais diversos, e assim se  
encontraria apartado das outras formas, como se não existisse comunicabilidade ou  
relação entre elas?  
Lukács analisa essa questão considerando criticamente os dois extremos. Por  
meio desse procedimento coloca-se de um lado determinado polo da questão, depois  
se estabelece o outro polo, sob a forma de dois extremos antagônicos, para na  
sequência, buscar estabelecer o tertium datur ou seja, o termo médio resolutivo entre  
os opostos. Vale lembrar as palavras de Tertulian a esse respeito, quando designa  
Lukács como o filosofo tertium datur.  
Verinotio  
272 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
No que concerne à primeira posição a seguinte problematização é apresentada:  
Segundo essa concepção, cada arte até cada gênero da arte tem como  
fundamento um princípio estético originário que não se identifica com  
nenhuma outra arte, nem de gênero, senão que é qualitativamente  
distinta desses em muitos aspectos. Essa compreensão, opinião geral  
e antiga entre os próprios artistas, em sua prática e em sua formulação  
teorética, de suas experiências, chegou frequentemente até a segunda  
metade do século XIX a converter-se em fundamento do conhecimento  
estético. (Lukács, 1967b, p. 301)  
Tal é a compreensão de Conrad Fiedler, citado criticamente por Lukács, cujas  
considerações influenciaram as concepções que se fizeram hegemômicas em torno da  
estética no séc. XIX conforme afirmado na citação –, segundo a qual não “existe a  
arte, senão as artes”. Essa concepção assentada no velho modo idealista de conceber  
a arte, termina em última instância incorrendo em um empirismo-positivista, por meio  
do qual, cada arte em particular é reduzida à condição de esfera própria do reflexo,  
nos mesmos moldes como ocorre nas ciências parcelares, em que se subdivide a física,  
a biologia, a matemática etc,, como esferas próprias de conhecimento.  
Há um elemento decisivo a ser salientado na problematização tracejada por  
Lukács: tal propositura separaria as artes de maneira radical e não admitiria a  
existência de categorias comuns no interior de formações distintas da estética; essas  
estariam apartadas uma das outras, perfazendo uma natureza incomunicável, um  
isolamento no qual cada uma somente faria sentido em si mesma. Logo de saída, ao  
se contrapor a esta concepção, Lukács estabelece os termos corretos pelos quais se  
deve considerar o problema: a assim chamada arte em geral deve ser entendida  
como reunião sintética do comum de várias artes, [pela qual se]  
apresenta um tipo de conexão entre as artes particulares e a arte em  
geral que, como veremos se diferencia qualitativamente da relação  
existente entre as ciências particulares e a ciência unitária ou de  
conjunto. (id. ib.)  
Em suma, tal posição sustentaria a tese da incomunicabilidade entre as artes,  
considerando cada uma como portadora de leis próprias, de mecanismos próprios,  
advogando a ideia de que não teriam uma conexão entre si. O que em última instância  
levaria à concepção da inexistência da arte em geral. Cada uma seria expressão  
distintas das demais, constituindo em si mesmas atividades próprias, definidas em si  
mesmas, o que impediria a formulação da determinação geral do estético.  
À luz do pensamento de Lukács, seguindo essa mesma linha crítica de  
raciocínio, seria preciso pôr em questão algo comum a certas tendências dos assim  
chamados estilos e gêneros das artes, como por exemplo em certos estudos da  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 273  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
literatura, que tendem a circunscrever as obras em conceitualidades classificatórias,  
que enquadram obras e autores em períodos cujas características terminam por se  
mostrarem mais importantes do que a particularidade dos escritos analisados:  
teríamos, assim o barroco, o romantismo, naturalismo etc. O que pode ser visto, por  
exemplo, em alguns comentadores que insistem em categorizar a obra de Goethe ao  
movimento romântico do Sturm und Drang – isto é, “tempestade e ímpeto. Nesse  
caso, cada um desses gêneros particulares da arte é tomado nessa dimensão mais  
geral, cada obra literária, por exemplo, seria a manifestação particular de um estilo  
próprio da arte em geral. Para Lukács, essa sanha classificatória tende a destituir a  
autonomia da arte propriamente dita.  
A posição adversa a essa, advoga pela existência da arte em geral, consideração  
as artes específicas apenas como manifestações particulares de uma suposta arte  
universal. As artes particulares vêm assim reduzidas a meras expressões específicas da  
arte em geral; nesse sentido cinema, arquitetura, dança, música etc. apenas  
participariam da forma geral da arte, seriam uma expressão particular de uma dada  
universalidade da arte.  
A respeito dessa consideração da arte Lukács estabelece a seguinte objeção:  
cada arte em si não teria um conteúdo próprio, mas ela seria a manifestação de um  
conteúdo que lhe é extrínseco. Aqui existe o risco de incorrer em um academicismo  
que tende a reduzir tudo ao que seria uma descrição científica, como se o gênero fosse  
um conceito, como se cada arte particular fosse expressão peculiar de conceitos e  
princípios configurativos comuns; ou seja, cada uma delas seria expressão específica  
de uma arte universal. Sob essa definição, a arte apareceria como a ideia da  
participação de Platão, ou seja, as manifestações das coisas que existem não possuem  
uma essência em si mesmas, mas participam de uma essência autêntica que se  
encontra fora delas. Nesse sentido, o universal da arte se colocaria em expressões  
particulares, o que seria o mesmo que dizer que nas artes particulares o conteúdo  
determinativo de sua essência está para além delas, ou seja, seria como o mundo das  
ideias platônicas, onde a verdade sobre as manifestações objetivas presentes na  
existência está posta para além do próprio mundo; elas seriam simplesmente a  
manifestação as sombras platônicas do mito da caverna de uma essência extrínseca  
à forma particular. Por via de consequências, a forma é apenas manifestação de um  
conteúdo exterior, ela não define em si mesma, enquanto unidade o sentido preciso  
do conteúdo expresso.  
Verinotio  
274 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
Lukács tenta resolver o impasse procurando estabelecer o tertium datur entre  
os extremos. A resolução segue a linha de raciocínio já referida acima, segundo a qual  
a arte deve ser compreendida “como reunião sintética do comum de várias artes” em  
que se “apresenta um tipo de conexão entre as artes particulares e a arte em geral”.  
Isso, no entanto, não na forma da participação descrita acima, na qual o singular é  
mera participação imprecisa do universal, mas na forma da inerência de princípios e  
mediações categoriais, que põe cada gênero particular da arte sob a determinação dos  
elementos constitutivos da peculiaridade do reflexo próprio da arte. O entendimento  
deve, portanto, conduzir à explicitação desses traços peculiares inerentes às formas  
específicas dos meios homogêneos das artes. Em termos mais diretos: contra a ideia  
da participação nos princípios da arte em geral, Lukács sugere a ideia da inerência dos  
princípios da arte em geral em cada arte particular.  
O ponto relevante para determinar os traços comuns da inerência se encontra  
na definição da função específica da arte: para Lukács, a arte ocupa um lugar específico  
no quadro das atividades espirituais humanas; nesse sentido, não se trata da velha  
temática cuja determinação persiste na ideia da arte como um fim em si mesmo, ou  
seja, de uma atividade que se reduza à afirmação da arte pela arte” – art pour l'art. A  
arte é uma forma de apreensão ideal da realidade que cumpre função decisiva no  
âmbito das atividades do ser social; é esse o ponto de partida. No entanto, tal  
afirmação não basta para determinar sua peculiaridade: se ela é uma forma de  
apreensão da realidade, é preciso estabelecer suas diferenças específicas com outras  
formas do reflexo. Nesse sentido, enquanto reflexo da realidade na consciência a arte  
difere do reflexo da ciência e daquele próprio ao pensamento da vida cotidiana.  
A diferença específica própria à peculiaridade da arte se define por ser uma  
apreensão da realidade cujos objetivos se voltam para os desdobramentos da  
autoconsciência humana. Vale citar o próprio autor, que estabelece a diferença nos  
seguintes termos:  
Nas ciências sociais [uma das formas da ciência] o mundo do homem  
se converte simplesmente em objeto, cujo conteúdo consiste em fatos,  
relações etc. constituída pelos próprios homens. Na arte, ao contrário,  
o processo de desenvolvimento da humanidade se refere  
imediatamente a cada homem singular, pois a evocação artística  
propõe, antes de tudo, que o receptor viva como uma coisa sua, uma  
coisa própria, a refiguração do mundo objetivo os homens. (Lukács,  
1967c, p. 308)  
A arte possui caráter antropomorfizador, a ciência, por sua vez, implica a  
desantropomorfização do reflexo na consciência. A arte se dirige à realidade em geral  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 275  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
tendo por base sempre a relação dos homens om o seu mundo, enquanto a ciência  
remete à apreensão da natureza, de suas leis da natureza, como objeto em-si, em que  
se busca a isenção da subjetividade no intuito de compreender objetos independentes  
da consciência. A arte é sempre o mundo em referência à própria humanidade. O  
estético se reporta à dimensão da individualidade mediante da generidade do ser  
social. Para Lukács, na arte  
O indivíduo deve encontrar-se a si mesmo, seu próprio passado, seu  
presente, nesse mundo; e tomar a si consciência de si mesmo como  
parte da humanidade e seu desenvolvimento. A obra de arte é capaz  
de despertar e desenvolver a autoconsciência do indivíduo, no mais  
alto sentido da palavra. Essa finalidade é inalcançável sem uma  
refiguração fiel do em-si no objeto representado. (Lukács, 1967c, p.  
309)  
No caso da arte a subjetividade cumpre um papel decisivo na determinação do  
objeto estético. Diferentemente da ciência em que a apreensão da objetividade implica  
a eliminação de quais traços da subjetividade, na arte e tão somente na arte, nós  
temos a identidade sujeito e objeto. Um exemplo muito simples é utilizado pelo autor  
para introduzir a determinação aqui em questão: uma escultura de mármore somente  
pode aparecer como um objeto estético mediante um sujeito receptor, sem a  
subjetividade ela simplesmente reduz-se a condição de mero bloco de pedra. Só há  
objeto estético na relação ineliminável de sujeito-objeto. Isso é válido tão somente  
para a arte, aspecto por vezes ressaltado por Lukács contra, vale advertir, a filosofia  
de Hegel.  
Essa antropomorfização do reflexo estético possui uma função social decisiva  
enquanto atividade ideal da humanidade: o papel da arte é dizer o que são os  
processos sociais, trazer à luz os elementos mais importantes dos desdobramentos  
históricos da sociedade humana, e mostrar aos indivíduos os processos que permeiam  
as formas da individuação diante do decurso histórico da autoconstituição humana.  
Lukács determina o conteúdo essencial da arte como a autoconsciência do  
desenvolvimento da humanidade.  
A autoconsciência tem como conteúdo o duradouro, o significativo –  
positiva ou negativamente da vida humana, da evolução do gênero  
humano, e do mesmo que esse conteúdo supera preservando-o –  
todo o importante para a vida, desde a personalidade particular até o  
especificamente humano, assim também sua forma cria uma unidade  
do personalíssimo com suprema generalização, a qual supõe aqui uma  
capacidade de evocação que ultrapasse as limitações do tempo e  
espaço. [Lukács, 287.1]  
“A orientação do reflexo estético” se dirige sempre “ao especificamente  
Verinotio  
276 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
humano” (id. Ib.). A arte, para Lukács, é uma forma de apreensão em que o indivíduo  
se dá ao próprio mundo, apreende o mundo e se alça às questões que de fato  
importam à humanidade. A grande arte é a expressão do homem integral, a dimensão  
humana que se manifesta na interioridade das obras estéticas é a síntese das  
experiências sócio-históricas, seus aspectos mais universais, em que estão presentes  
conjuntamente a interioridade dos indivíduos e a exterioridade do próprio mundo  
social. Nesse sentido a arte não se reduz ao caráter cognitivo, pois nas experiências  
por ela figuradas estão contidas a interioridade humana, as emoções, os sentimentos,  
os pensamentos vivenciados pelos indivíduos na trajetória humana de seus processos  
históricos de autoprodução.  
Precisamente por isso, a arte não pode se limitar a ser simples expressão da  
subjetividade do criador; pelo contrário, ela é uma forma peculiar da apreensão de  
mundo. É sempre a apreensão de mundo em relação ao humano. Lukács se vale de  
uma categoria decisiva em seu pensamento para explicitar a dimensão da  
determinação aqui posta em tela: o autor o criador da obra de arte precisa se  
elevar de sua mera singularidade, de seu em-si, para conseguir capturar quais são as  
questões humanas essenciais que merecem ser postas em evidência, permitindo que  
os indivíduos possam perceber as grandes questões dilemas ou potencialidades –  
vivenciadas historicamente pela humanidade nos desdobramentos da trajetória de sua  
autoedificação. Nesse sentido, quando se evidencia a prevalência da categoria da  
individualidade, ou da subjetividade no plano estético, não se trata de afirmar a arte  
como mera expressão da subjetividade do autor. O criador de uma obra estética  
autêntica deve elevar-se à condição da subjetividade estética conceito importante  
presente na obra de Lukács , ou seja, deve alçar-se à compreensão dos elementos da  
subjetividade em meio às condições objetivas historicamente postas, o que significa  
que a subjetividade do criador não é a subjetividade de um indivíduo isolado em si  
mesmo, mas é a expressão das questões subjetivas que permeiam as formas das  
individuações sociais condizentes ao campo das possibilidades objetivas  
historicamente postas.  
O ato da criação de um artista autêntico, quando se considera a grande arte,  
implica a necessária anulação da subjetividade do criador. O termo utilizado por  
Lukács, é a afamada expressão alemã Aufhebung, pela qual se sugere a superação das  
impressões pessoais do artista. O criador precisa se alienar no mundo, sair de si,  
abandonar suas convicções, impressões, concepções de mundo próprias, para capturar  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 277  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
quais são as grandes questões da humanidade, quais as dimensões históricas se  
colocaram historicamente no campo de possíveis para os processos de individuação  
humana. Em outras palavras, deve ser capaz de configurar em sua criação os  
sentimentos, as emoções, pensamentos, dilemas éticos e sociais que perpassaram os  
elementos formativos das subjetividades frente as formas histórico-sociais objetivas  
da autoedificação humana. O primeiro momento implica, pois, a alienação do criador  
aos elementos essenciais da objetividade social. Depois desse momento, o criador  
empreende o trabalho de retorno, definido por Lukács como "retroação" [Rucknahme],  
na qual ocorre a dação da forma adequada capaz de expressão o conteúdo essencial  
apreendido. Trata-se de ir ao mundo, capturar as grandes questões humanas, postas  
na realidade social independentemente da consciência do indivíduo. Vale insistir, o  
que é apreendido é a dimensão subjetiva frente à objetividade do decurso social da  
autoposição humana, ou seja, a interioridade das individualidades frentes aos  
contextos formativos de seu próprio mundo. O centro da arte, é a categoria do  
indivíduo em sua interação ineliminável com generidade historicamente constituída.  
Desse modo, o ato da alienação do criador, toma o homem inteiramente, as  
capacidades subjetivas, as emoções, as sensações, os pensamentos típicos de certas  
formas da individuação frente ao campo das possiblidades de sua realidade social e,  
mediante a apreensão desses conteúdos essenciais da humanidade, deve conferir a  
dação de forma adequada capaz de evocar os elementos que elevam o receptor à  
condição da autoconsciência genérica do homem.  
O exemplo de Balzac, referido pelo pensador húngaro, revela o que aqui se  
pretende indicar. Segundo Lukács, “a subjetividade particular de Balzac era a de um  
normal e inteligente legitimista”, no entanto sobre essa “base teria sido impossível  
criar uma comédia humana, representar ampla e definitivamente uma importante crise  
de transição da espécie humana” (Lukács, 1967b, II, p. 260). Balzac supera suas  
convicções pessoas, das mais diversas ordens, para apreender de fato os elementos  
essenciais da realidade social de sua época.  
Lukács utiliza, em sua estética, o termo desfetichização, para descrever esse  
caráter fundamental da função social da arte. Na vida cotidiana, damos respostas  
imediatas ao mundo, nós temos concepções de mundo, moralidades; somos tomados  
por tradições, somos tomados por costumes, mas nós não entendemos os processos  
originários, os processos que geraram exatamente essas respostas automáticas da vida  
vivida. Na vida vivida, não se consegue alçar a essas questões centrais que de fato  
Verinotio  
278 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
importam aos indivíduos enquanto gênero. A arte pretende retirar o indivíduo do seu  
enraizamento tacanho na vida cotidiana, combate a condição do indivíduo preso a si  
mesmo, busca elevar o indivíduo àqueles momentos cruciais da humanidade. A ênfase  
aqui recai sobre o ponto central do problema: é a autoconsciência da humanidade2. E  
na medida em que o indivíduo se torna consciente das questões centrais, temos a  
transformação da individualidade, pois, assim, vêm superadas as fetichizações comuns  
aos procedimentos e necessidades exigidas para a operacionalização da vida cotidiana.  
O poder evocador e orientador do meio homogêneo penetra na vida  
anímica do receptor, subjuga seu modo habitual de contemplar o  
mundo, impõe-lhe antes de tudo um “mundo novo”, enche-lhe de  
conteúdos novos ou vistos de modo novo e lhe permite assim receber  
esse “mundo” com sentidos e pensamentos rejuvenescidos,  
renovados. A transformação do homem inteiro em homem  
inteiramente atua, pois, uma ampliação e um enriquecimento de  
conteúdo e de formas, efetivas e potenciais, de sua psiquê. Ocorrem  
novos conteúdos que aumentam seu tesouro vivencial. O meio  
homogêneo o orienta a receber a apropriar o novo desde o ponto de  
vista do conteúdo, e assim desenvolve simultaneamente sua  
capacidade receptiva, sua capacidade de reconhecer e usufruir como  
tais, novas formas objetivas, novas relações etc. (II, cap. X, p. 496)  
Não se trata, no entanto, de ver na obra de Lukács um receituário, um cânone,  
de princípios que definem o modo como a arte deve ser feita, de buscar nela leis  
deterministas postas sob o formato de uma prescrição de elementos fixos que  
viabilizem julgar o que é arte ou o que não é arte. Em Lukács o reflexo estético cumpre  
função específica no quadro das atividades espirituais do homem: é a apreensão de  
um momento específico nesse processo de desdobramento de autoconsciência do  
gênero humano, que toma o homem inteiramente3, seus sentimentos, pensamentos,  
capacidades subjetivas, dilemas específicos, de forma a propiciar às individualidades  
a vivência de elementos essenciais da autoconsciência do gênero. Enfim: o papel da  
arte é contribuir para o homem elucidar a si mesmo, tomar consciência do que são os  
2
Vale aqui advertir para o uso que Lukács faz das categorias: Partikularität e Besonderheit, conforme  
ressaltei na nota do revisor da edição: Lukács, A peculiaridade do estético, vol. 1, Boitempo, 2023.  
“Ambas correspondem ao termo “particularidade” no português. Porém Lukács as utiliza em sentidos  
distintos. Besonderheit corresponde à categoria da tríade frequente na tradição filosófica  
“universalidade, particularidade e singularidade”, enquanto Partikularität possui o sentido de parte, de  
delimitado, ou mesmo de interesses particulares. Nessa última acepção, por exemplo, a Partikularität  
dos indivíduos, corresponde ao indivíduo isolado, preso a si mesmo, em sua cotidianidade. Conforme  
se poderá observar em suas formulações, há o contraponto formulado pelo autor, segundo o qual, por  
meio da arte o indivíduo pode se elevar de sua Partikularität à Besonderheit do gênero. Nesse sentido,  
Partikularität se distingue de Besonderheit tal como analisa Lukács no “capítulo 12 - A categoria da  
particularidade” (Die Kategorie der Besonderheit)”.  
3 Definir homem inteiramente em distinção ao homem por inteiro.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 279  
nova fase  
   
Ronaldo Vielmi Fortes  
indivíduos em determinados contextos sociais, em determinado momento histórico,  
como uma forma de autoesclarecimento, de autoconsciência, de auto elucidação, para,  
inclusive, permitir a apreensão dos próprios caminhos na humanidade, mediante a  
crítica da vida. O artista possui a genialidade de uma percepção ampla das questões  
humanas, é capaz de criar a forma adequada para colocar conteúdos humanos e  
subjetivos essenciais em evidência, é capaz de conferir a dação de forma objetiva para  
que os receptores sejam capazes de usufruir da evocação estética desse conteúdo.  
Talvez a determinação aqui em tela possa se fazer mais bem compreensível por  
meio de um exemplo da literatura: tomemos a Montanha mágica de Thomas Mann, na  
descrição que o autor faz do personagem central de seu livro, Hans Castorp.  
O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou  
inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus  
contemporâneos. Até mesmo uma pessoa inclinada a julgar absolutas  
e naturais as bases gerais e ultra-pessoais da sua existência, e que da  
idéia de criticá-las permaneça tão distante quanto o bom Hans Castorp  
- até uma pessoa assim pode facilmente sentir o seu bem-estar moral  
um tanto diminuído pelos defeitos inerentes a essas bases. O  
indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades,  
esperanças, perspectivas, que lhe dêem o impulso para grandes  
esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal  
que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação  
exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe  
revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde  
com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou  
inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido  
supremo, ultra-pessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço  
- então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas,  
o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz  
de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte  
física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a  
empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas  
necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à  
pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma  
independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heróico,  
ou então uma vitalidade muito robusta. Hans Castorp não possuía nem  
uma nem outra dessas qualidades, e portanto deve ser considerado  
medíocre, posto que num sentido inteiramente decoroso. (MANN,  
2000, p. 47-8)4  
O personagem singular encarna em si elementos essenciais do decurso histórico  
do campo de possíveis próprios aos processos sociais de individuação. Em Thomas  
Mann, as personagens do jesuíta proto-fascista Nafta e do racionalista italiano  
Setembrini são as expressões da irresolubilidade das tendências da burguesia alemã,  
4 Esse mesmo trecho é citado por Lukács em seu livro Thomas Mann e a tragédia dell’arte moderna.  
Verinotio  
280 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
que se vê enredada entre o fascismo em seu nascedouro mais evidente e o  
democratismo racionalista. A indecisibilidade de Castorp entre as duas figuras,  
demonstra como a burguesia alemã não consegue resolver contraposições ainda que  
reacionárias e irracionalistas postas pelo representante do ideário fascista,  
destacando o próprio campo das condições objetivas sociais da Alemanha dos  
momentos que antecedem a Primeira Guerra Mundial. O personagem Hans Castorp,  
em sua vacilação entre as duas posições é a tipicidade do burguês alemão, refigura a  
mediocridade de determinação fundamentalmente social-objetiva – “o efeito  
paralisador desse estado de coisas” – que confere o campo das possibilidades para a  
formação das individualidades em seus acertos ou desacertos. É sempre o indivíduo  
mediante às determinações e circunstâncias de dada época – “elemento impessoal”,  
“o próprio tempo”, para usar as palavras de Mann.  
Adentramos aqui na determinação do que vem a ser o conteúdo da  
configuração estética, porém para o correto entendimento, é preciso estabelecer  
algumas ressalvas. Quando falamos do conteúdo da arte como expressão do  
desenvolvimento da autoconsciência do ser social, não pretendemos afirmar que este  
deva ser compreendido como algo único, que se apresente do mesmo modo e com os  
mesmos sentidos nas formas distintas da arte. Não se pode confundir o sentido em  
geral da arte, sua função social precípua, com o conteúdo dado em cada obra de arte  
em particular. A expressão do desenvolvimento da autoconsciência da humanidade é  
um elemento próprio de cada arte em particular, porém refletem em sua singularidade  
formas específicas de conteúdos específicos dessa dimensão universal. Essa função  
geral da arte é inerente nos gêneros específicos da arte, e em cada um deles esse  
elemento geral se apresenta de maneira diferenciada.  
Para lidar com esse problema, Lukács introduz a ideia de unidade dialética entre  
forma e conteúdo. Essa unidade característica presente em toda arte particular, é o  
pressuposto para compreender a categoria meio-homogêneo desenvolvida por Lukács  
ao longo de sua obra. Conforme já dissemos, a forma da evocação estética tem que  
ser capaz de tomar o indivíduo, evocar nele sentimentos, sensações, impressões, de  
modo a fazer com que se suscite nele as condições objetivas e subjetivas para  
apreender os elementos centrais da realidade social. A forma não é, pois, mero detalhe,  
é sempre a forma adequada capaz de trazer ao receptor a evocação precisa de  
determinado aspecto do desenvolvimento da autoconsciência humana. Cada uma das  
artes possui forma própria, que lhe é peculiar, e por meio dela torna-se expressão de  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 281  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
um conteúdo essencial da autoconsciência do gênero. Se o conteúdo da arte se  
determina pela tomada do homem inteiramente, seus sentimentos, emoções, vivências,  
pensamentos conforme já destacado a forma precisa ser capaz de evocar todas  
essas dimensões humanas e orientá-las para a apreensão dos conteúdos humanos  
essenciais.  
Cada arte possui a forma e a matéria condizente da sensibilidade humana que  
lhe é própria, ela tem os seus próprios meios de apreensão da realidade. Vale lembrar  
aqui a origem grega do termo, aesthesis, que em tradução direta poderia ser vertido  
por "sensações", "sensibilidades". As formas das artes correspondem às capacidades  
sensoriais humanas, o que seria o mesmo que dizer que na pintura a sensibilidade  
volta-se para a visão, na música para a audição, ou mesmo na escultura em que se  
pode destacar a presença de dois elementos da sensorialidade tal como sustenta  
Heder em seu livro Plástica em que valoriza a sensorialidade tátil frente ao  
predomínio da visualidade.  
Para Lukács: cada arte utiliza e prioriza sensações humanas específicas, e  
sempre o faz por meio da peculiaridade que lhe é própria. Esse movimento posto pelo  
reflexo estético da realidade consiste em um estreitamento peculiar da “orientação ao  
mundo externo”, de modo a permitir a concentração dessa [orientação] ao vivenciável  
por um sentido apenas ou, pelo menos, ao perceptível segundo um aspecto  
precisamente determinado”. Esse procedimento consiste na “suspensão das  
finalidades imediatamente práticas” e, assim, “possibilita a percepção de objetos de  
um modo que seria inaccessível para o homem inteiro normal da cotidianidade”  
(Lukács, 1967b, II, p. 336-7).  
O meio homogêneo constitui a peculiaridade dos reflexos estéticos: cada arte  
corresponde a um meio homogêneo próprio, que constitui modos distintos de  
apreensão do mundo, cujo objetivo central é reduzir para intensificar. O meio  
homogêneo da arte visa retirar aquilo que não é essencial, o conjunto extremamente  
diversificado de fatos e fenômenos da realidade, para reduzir a apreensão dessa  
realidade a alguns traços específicos, porém centrais da relação do homem com seu  
mundo. Em termos diretos, através do meio homogêneo reduz-se a realidade aos  
aspectos essenciais, impossibilitados de serem percebidos na diversidade fenomênica  
das manifestações da vida cotidiana; elimina-se, desse modo, os elementos  
contingentes que permeiam a cotidianidade dos indivíduos para assim tornar possível  
pôr em evidência aspectos da vida humana que de fato importam, tanto no que diz  
Verinotio  
282 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
respeito às determinantes que formam o campo de possíveis para os processos  
formativos da individuação, quanto na trajetória humana de seu autoengendramento.  
Podemos exemplificar tal aspecto com a música, em que a apreensão da  
realidade quer capturar o mundo a partir dos sons, do ritmo, das escalas melódicas,  
deixando outros traços da realidade de lado. Entretanto, ao promover a suspensão de  
certos aspectos da realidade cotidiana, intensifica-se, a partir das sensações, traços  
humanamente fundamentais dessa realidade. Lukács refere uma comparação bem  
simples para elucidar essa determinação: é como na vida, em que fechamos os olhos  
para conferir maior atenção aos sons que precisam ser evidenciados.  
Aqui temos os elementos necessários para retomar a questão da qual partimos:  
a arte em geral existe, no entanto, nunca como uma dimensão extrínseca às artes  
particulares. Trata-se da inerência dos traços gerais da arte em cada arte particular.  
Nesse sentido, se voltarmos ao já referido o mito da caverna platônica, por meio do  
qual se consideraria que as artes particulares participam do universal, de uma arte em  
geral, chegaríamos à afirmação de que seus conteúdos se encontram fora das formas  
particulares de sua expressão. Tal proposição entraria em choque com a determinação  
da unidade dialética entre forma e conteúdo, pois, se a forma é expressão de um  
conteúdo extrínseco a uma dada arte, se teria a separação de forma e conteúdo. Não  
se trataria da condição necessária da arte, que enquanto unidade dialética implicaria  
a presença de um conteúdo intrínseco a ela mesma, à forma específica de seu meio  
homogêneo.  
Desse modo, para sintetizar o que tratamos até esse momento, podemos dizer  
que a identidade sujeito-objeto, a unidade dialética de forma e conteúdo, alienação e  
retrocaptação, são os elementos da arte em geral que se apresentam nas formas  
particulares da arte como inerência. No que tange ao problema central que  
propusemos abordar nessa sintética exposição, deve-se perceber que esses elementos  
sempre se dão de formas distintas em cada meio homogêneo, mas são princípios e  
relações categoriais que se encontram inerentes a cada uma das expressões da arte.  
Cada meio homogêneo possui uma matéria que lhe é própria. Cada arte captura a seu  
modo, a partir da matéria e da sensibilidade que lhe é própria, traços dessa realidade  
no intuito de enfatizá-los. Em resumo, não se reduzem â arte em geral, mas esses  
elementos da arte, esses traços em comum, são inerentes a cada arte em particular.  
Toda arte contém, nessa medida, esses três elementos como mediações constitutivas  
da peculiaridade de seu meio homogêneo. Essas categorias, esses pares categoriais,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 283  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
determinam a peculiaridade do objeto estético.  
Para elucidar de maneira mais clara as determinações aqui feitas, vale, conforme  
o faz Lukács, recorrer às reflexões de Lessing, ao conjunto de textos sintetizados no  
livro Laocoonte ou as fronteiras da pintura e da poesia. Ele tem a vantagem de tratar  
diretamente do problema aqui em tela: a forma peculiar, a diferença específica de  
tratamento de uma mesma temática, por gêneros da arte distintos. No caso, o autor  
alemão se reporta à escultura descoberta no século XV de Laocoonte (figura abaixo)  
no intuito de demonstrar conteúdos distintos que ela apresenta em relação à narrativa  
literária sobre o mesmo personagem, tal como presente no livro de Virgílio, Eneida.  
O centro de ambas as representações escultura e literatura é o papel de  
Laocoonte nos desfechos da guerra de Troia, em que o “antiste Laocoonte” se vê  
impedido em função do ataque de duas serpentes enviados por Poseidon [Netuno]  
de advertir aos seus compatriotas da armadilha do cavalo de madeira presenteado  
pelos aqueus.  
A escultura se reporta precisamente ao momento do ataque. Ao analisar a  
escultura Lessing destaca que o rosto de Laocoonte é a expressão de um sofrimento,  
mas não aquele provocado pela mordida desferida pela serpente; se tal, a  
receptividade do fruidor manter-se-ia presa à imediaticidade desse momento, ou seja,  
à cobra que morde, â dor corporal e a expressão da dor. Na medida em que se  
restringisse à expressão de horror diante do acometimento físico, a tendência seria  
fazer, adverte Lessing, com que as pessoas se distanciem dessa figuração artística, o  
horror da cena faria com que o receptor afastasse o olhar, inviabilizando a fruição  
estética. Para o pensador alemão, o rosto exprime sofrimento muito mais dor pelo  
destino do profeta; um sofrimento ante um destino inexorável; a punição de um deus  
Verinotio  
284 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
Netuno que dita os rumos da história em tela, e à incapacidade do visionário de  
agir nos rumos dos acontecimentos vividos por seu povo. Em suma, temos aqui uma  
questão frequente nos gregos: até que pontos somos senhores de nosso próprio  
destino.  
Na medida em que a face figurada passa a expressar sentimentos que não se  
fixam no momento do bote desferido pela serpente, mas implica a expressão facial e  
corporal que remete para além desse ato contido em si mesmo, a obra ainda que  
estática em sua materialidade imediata contem movimento, ou seja, a estátua não se  
reduz a uma mera representação imediata, mas evoca sentimentos e sentidos  
propriamente humanos, permite a processualidade da fruição estética, e desse modo,  
viabiliza a evocação que remete o receptor para além do fato imediato: ela gera  
movimento.  
Conforme destaca Lessing na representação da escultura de Laocoonte não  
encontramos um grito terrível provocado pela dor física, pois  
a abertura da boca não o permite: trata-se muito mais de um gemido  
medroso e oprimido... A dor do corpo e a grandeza da alma são  
distribuídas, e como que balanceadas, por toda a construção da figura  
com a mesma força. Laocoonte sofre, mas ele sofre como o Filoctetes  
de Sófocles: sua miséria penetra até a nossa alma; mas nós  
desejaríamos poder suportar a miséria como esse grande homem.  
(Lessing, 2011, p. 85)  
A eloquente análise de Lessing possui a vantagem de, ao mesmo tempo em  
que destaca a presença do movimento na representação, também destaca os  
conteúdos humanos empreendidos na forma da escultura. Se se limitasse à dor, a  
figuração se prenderia a um simples detalhe fenomênico da vida; porém, ao remeter  
aos atributos da espiritualidade do homem, a “pedra ganha vida”, evoca pela sua forma  
movimento na interioridade do receptor, põe à luz a presença da subjetividade que  
conforma junto ao objeto estético os sentidos humanos necessários à fruição da obra.  
A grandiosidade de uma obra do ponto de vista das artes plásticas consiste em  
ser capaz de mesmo sendo um objeto estático representar uma categoria da própria  
realidade, a temporalidade, contudo sob a forma da transformação categorial na  
refiguração mimética; não como tempo, mas como "quase-tempo". Vê-se na  
configuração estética a transformação da categoria da realidade. É preciso na escultura  
figurar um instante da natureza que implique em sua forma a evocação de uma  
constante mudança. Na escultura, assim como na pintura, o instante único da figuração  
se coloca em uma duração imutável, porém essa duração deve permitir a contemplação  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 285  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
de algo que possa ser apreendido como transitório. A ausência do tempo do  
movimento, de um antes e depois significaria a deformação da própria obra, uma  
vez que é componente ineliminável da realidade. Sua ausência, implica uma  
representação fetichizada, incapaz de dizer do mundo, uma vez que elimina categorias  
essenciais da própria realidade. No quase-tempo da “duração imutável” está presente  
o elemento da identidade sujeito-objeto, pelo qual põe no estático a presença estética  
do “antes e do depois”.5  
Prosseguindo nas considerações de Lessing a propósito do tema, cabe referir  
a comparação que o autor faz da estátua de Laooconte com a narrativa literária  
presente na Eneida de Virgílio. Na obra de Virgílio encontra-se igualmente presente a  
figura de Laocoonte enquanto personagem histórica da guerra de Troia; porém, na  
Eneida, o meio homogêneo é outro, a literatura possui formas estéticas e mediações  
categoriais distintas daquelas que são peculiares às configurações de uma escultura.  
Eis a passagem:  
[...] O par medonho  
Marchando a Laocoon, primeiro os corpos  
Dos dois filhinhos abrange e enreda,  
Morde-os e come as descosidas carnes:  
E o pai que armado ocorre, ei-las saltando,  
Atam-no em largas voltas; e enroscadas  
Duas vezes à cintura, ao colo duas,  
O enlaçam todo os escamosos dorsos,  
E por cima dos pescoços lhe sobejam.  
De baba e atro veneo untada a faixa,  
Ele em rincar os nós co’as mãos forceja.  
E o horrendo bramido aturde os ares:  
Qual muge a rés ferida ao fugir d’ara,  
Da cervia sacudindo o golpe incerto.  
(Eneida, Livro II, 217-230)  
É também Lessing quem desvela o caráter próprio do meio homogêneo peculiar  
da literatura. Ao referir Eneida de Virgílio, demonstra como a forma própria à essa arte  
específica implica conteúdos de ordem distinta:  
O Laocoonte de Virgílio grita, mas esse Laocoonte que grita é  
justamente aquele que nós já conhecemos e amamos como o patriota  
mais cordato e o pai mais afetuoso. Nós vinculamos seu grito não ao  
seu caráter, mas, antes apenas ao seu sofrimento insuportável. Apenas  
esse último nós ouvimos no seu grito, e o poeta pode torná-lo sensível  
5
Assim como no caso do quase-tempo, Lukács trata da transformação do espaço em quase-espaço.  
Como no caso da música, em que o espaço não pode se apresentar de maneira direta. A espacialidade  
nessa expressão artística se daria pela justaposição das notas musicais, uma vez que a apreensão de  
uma nota implica as notas anteriores e posteriores, a frase musical, o complexo inteiro da obra, como  
elementos necessários para a compreensão do sentido estético. (Cf. Lukács, 1967b, II, p. 402.)  
Verinotio  
286 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
graças a esse grito. (Lessing, 2011, p. 108)  
O antes e depois da narrativa, passíveis de serem postos de maneira direta no  
curso da exposição, confere, por meio da peculiaridade do tempo na literatura,  
conteúdo específico próprio à forma específica de seu meio homogêneo. As dores  
sozinhas não seriam capazes de suscitar a compaixão pelo destino funesto de  
Laocoonte, uniu-se a outros males, esses em seu conjunto conferem o “traço tão  
melancólico” capaz de conduzir à superação da simples imagem do bote da serpente.  
A ênfase e o prolongamento na ideia da dor corporal conjugam-se com as  
circunstâncias da história, a escolha da descrição da ferida confere a evocação  
adequada para expressar o elemento subjetivo diante da tragédia posta pelo enredo  
do texto, a dramaticidade da dor física compõe como fonte evocativa decisiva a  
expressividade necessária para o conteúdo humano a que se propõe apresentar.  
Na literatura se torna possível fixar na narrativa a menção direta ao horror, a  
ela é concedido narrar todo o momento da dor provocada pelo bote da serpente sem  
que isso deforme o elemento necessário da evocação estética. O sentimento da dor, o  
momento exato do sofrimento desferido pela mordida pode ser referido mesmo em  
detalhes, pois no caso da literatura, a configuração permite o movimento temporal,  
permite a sequência figurativa que leva de um momento a outro. Nesse caso, o próprio  
movimento que intercala e confere o sentido na passagem de um instante a outro,  
contém os elementos que trazem nas evocações de uma imagem a outra o conteúdo  
humanamente configurado na obra. A forma contém em si o elemento da  
temporalidade. O conteúdo é expressão na forma peculiar do tempo que permite a  
expressão direta do conteúdo ressaltado na figuração. O sentido humano para além  
da dor física pode ser expresso, e a própria narrativa da dor corporal compõe como  
elemento necessário o conteúdo figurado na cena. Esse é capaz de ser expressão do  
destino humano em conformidade ao desdobramento da autoconsciência do gênero.  
Se, conforme adverte Lessing, o Laocoonte da escultura fixasse esse momento  
da dor física, a configuração perderia seu caráter evocador, causando no receptor a  
mera aversão o desvio do olhar mediante o horror retratado. O sofrimento físico,  
nesse caso, implicaria uma imagem estanque, significaria a ausência do quase-tempo,  
inviabilizando a forma esteticamente adequada para a expressão do conteúdo ou,  
em outros termos, seu conteúdo se limitaria à mera descrição da dor corporal,  
reduzindo à expressividade de simples fenômenos contingentes, não essenciais, da  
vida. Na literatura, por sua vez, o instante da narrativa induz o curso para a ação futura.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 287  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
Passado, presente, futuro se unem na composição do conteúdo expresso sobre a forma  
desse movimento: o momento evidenciado, precede desdobramentos posteriores, o  
conteúdo se manifesta na narrativa que leva de um momento a outro.  
Em suma, se na escultura temos o quase-tempo, na literatura é possível a  
temporalidade posta de modo mais direto, o passado, a ação presente, o futuro; o  
tempo transcorre na narrativa da literatura; não se trata, nesse caso, da transformação  
da categoria do tempo para o quase-tempo; ali a temporalidade adquire forma distinta.  
Para ir além do Laocoonte de Lessing, podemos referir a famosa estátua de  
Davi, de Michelangelo, em que se figuram elementos que exemplificam essa mesma  
dimensão do movimento no estático. Considerando, de maneira imediata, no que tange  
à materialidade do objeto, não existe movimento propriamente dito, trata-se de uma  
formação inscrita em um bloco de pedra concretamente estanque. Contudo, enquanto  
figuração estética, o movimento está posto sob a forma do quase-tempo. Michelangelo  
em sua figuração genial, remete à interioridade de Davi.  
A representação não visa o momento da ação da luta com Golias, não é a cena  
da batalha que se encontra representado na escultura. São os momentos que  
antecedem a luta, em que Davi se volta para a sua interioridade e expressa a própria  
incerteza frente à batalha que está por vir. A forma estanque da pedra talhada pelas  
mãos do artista comporta no plano estético o movimento, o quase-tempo, na medida  
em que evoca elementos que remetem à dimensão da interioridade do receptor. A  
representação não restringe o personagem à condição de uma figuração estática, mas  
gera no indivíduo receptor, no âmbito da fruição estética, o movimento; evoca o antes  
e depois sob a forma estética do quase-tempo. E a interioridade para a qual a obra  
Verinotio  
288 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
remete implica que o receptor se move a partir da evocação posta pela interioridade  
contida na forma estética, seja pela expressão facial, pela postura corporal, seja pela  
exemplaridade que a narrativa possui na história humana. Ao remeter à interioridade  
que se encontra na iminência da ação externa no mundo à condição objetiva que  
induz a reação subjetiva frente à ação a ser empreendida a obra põe em movimento  
os aspectos subjetivos do receptor, desafiado em sua interioridade pela forma objetiva  
de uma representação que contém em si conteúdos humanos essenciais. Desse modo,  
na identidade sujeito-objeto, dá-se a superação do imediatamente aparente da  
matéria estática impressa na pedra permitindo a presença na forma que é do ponto  
de vista estético imediatamente conteúdo do movimento, do tempo. O quase-tempo  
se expressa na superação da estaticidade, implica, pois, a passagem de um antes para  
o depois que se manifesta como peculiaridade do reflexo estético. O reflexo estético  
não é matéria sobre a qual incide a dação da forma evocativa, mas expressão da  
unidade sujeito-objeto, em cuja forma se encontra o conteúdo sempre em relação  
ineliminável com a subjetividade do criador-receptor. Um objeto somente pode ter  
sentido estético mediante a unidade do complexo subjetivo-objetivo posto em  
determinação de reflexão.  
Para insistir um pouco mais nas considerações sobre a literatura, vale mencionar  
outro aspecto peculiar apontado por Lukács em relação à especificidade de seu meio  
homogêneo: no caso das obras literárias, outra categoria específica a torna distinta da  
escultura, da pintura etc., uma vez que nessa última ela não seria possível a visualidade  
ou descrição imediata da figuração, nela temos o elemento chave da objetividade  
indeterminada. Na pintura e na escultura a imagem diretamente representada, posta  
diretamente diante dos olhos, confere à figuração aspectos bem determinados dos  
traços formais-materiais do objeto, assim, pormenores do representado se colocam  
diretamente diante da visão do receptor. Na literatura, por sua vez, a visualidade não  
se mostra presente, a narrativa remete de maneira mais direta à imaginação do leitor.  
Tomemos o caso de Helena, na tragédia grega, para ilustrar o problema aqui  
em tela. Para a literatura é fundamental que haja uma objetividade indeterminada para  
que se possa expressar de maneira adequada o atributo de sua beleza. Eis o  
pressuposto para que haja a evocação: se a obra literária se submete à descrição em  
detalhes da beleza de Helena, o receptor, acaba por se render a uma imagem que  
pode vir a não corresponder ao impacto abstrato e indeterminado da beleza da  
figuração, na medida em que a descrição minuciosa levaria a determinações que  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 289  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
poderiam ser questionadas em seu ímpeto descritivo, tornando-a uma forma que não  
permitiria a figuração da dimensão evocativa da suprema beleza. Se se apresentar a  
beleza de Helena figurada quase que de maneira diretamente visual, provavelmente a  
imagem representada poderia desembocar para o receptor a seguinte percepção: ela  
não é tão bela quanto eu imaginava. Os limites da pintura e da escultura estariam  
dados, nesse caso em particular. Mas se, como no caso da Ilíada de Homero, se coloca  
em outros termos, por exemplo: "Helena é tão bela, que gera guerras entre povos",  
torna-se possível ao receptor capturar, pela sua própria imaginação posta pela  
indeterminação abstrata do belo, vivenciar dimensão da beleza de Helena dadas pelas  
figurações das consequências que o belo provoca no entorno descrito na narrativa  
literária.  
Para nos atermos aos argumentos do pensador húngaro, vale remeter à  
especificidade comparativa traçada entre a pintura e a literatura:  
um objeto da literatura que na pintura teria que aparecer com todas  
as peculiaridades de sua existência imediata, coisal, sensível, se  
converte literariamente em mero elemento de uma ação determinada.  
Isso significa, antes de tudo que os objetos não podem apresentar-se  
em literatura em seu simples em-si, senão como mediações objetivas  
das relações humanas, das ações que as realizam... (Lukács, 1967b,  
II, 408)  
Se na literatura os elementos próprios do meio homogêneo da pintura se  
fizerem presentes, ou seja, se se optar pela descrição das “peculiaridades de sua  
existência imediata, coisal, sensível” teríamos a deformação do meio peculiar dessa  
arte, ela se converteria em “simples expressão literária sob a forma de mero elemento  
de ação determinada”. Em outros termos, o meio próprio da literatura impõe  
“figurações postas como mediações objetivas das relações humanas”, para tanto os  
excessos descritivos devem ser evitados, prevalecendo a forma necessária da fruição  
estética como objetividade indeterminada. A descrição conduz o indivíduo à  
compreensão cognitiva do fato descrito, a indeterminação, por sua vez, o traz para  
dentro da obra, exigindo dele o comprometimento por meio de sentimentos,  
emoções, pensamentos, sensações para a conformação da narrativa, trazendo o leitor  
para dentro da própria representação. O leitor não se encontra passívo frente ao  
meramente descritivo. A obra o toma em sua interioridade, o conduz para o interior  
da narrativa, na medida em que ele é partícipe da evocação pretendida. Dá-se, assim,  
o elemento decisivo do objeto estético como identidade sujeito-objeto.  
Dentre aos elementos próprios da literatura, a objetividade indeterminada  
Verinotio  
290 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
constitui elemento decisivo, o meio próprio específico, peculiar da forma literária.  
Conteúdo e forma aparecem em relação de unidade dialética. Se se adota o princípio  
da descritividade minuciosa na figuração, a literatura perde sua especificidade, pois a  
forma exageradamente descritiva inviabilizaria a expressão do conteúdo próprio e  
possível à peculiaridade dessa representação. Haveria, se podemos colocar de modo  
simples o problema, o contrabando do princípio evocativo de outra forma estética para  
a dimensão formal alheia à especificidade da literatura por exemplo, tomar meios  
próprios da escultura ou da pintura em que a imagem aparece como conformação  
diretamente presentificada para o receptor. Nesse sentido, a obra perderia seus  
elementos propriamente estéticos.  
Esse é o caso, por exemplo, do naturalismo típico de Emile Zola, em uma cena  
de Germinal. Vale aqui a longa citação para demonstrar o problema acentuado por  
Lukács, no que diz respeito às deformações da forma quando as categorias próprias  
do meio homogêneo são transgredidas em suas peculiaridades.  
Quando Etienne Lantier mata Chaval em meio a um acidente na mina,  
a rivalidade entre eles, a destruição da felicidade de Etienne por  
Chaval, teria sido uma motivação suficiente para a ação. Mas o fato de  
Zola usar o alcoolismo hereditário de Etienne como motivo decisivo  
transforma a tragédia em um caso exemplar de patologia por meio da  
superdeterminação. Desde então, a literatura tem sido repleta dessas  
hipermotivações e hiperdeterminações da objetividade poética.  
Quando dizemos que isso destrói a esbeltez da linha artística, estamos  
nos expressando de maneira unilateralmente formal. A falta dessa  
esbeltez se deve ao fato de que os escritores perderam a visão poética  
desfetichizadora que abrange toda a vida e que, portanto, incluem nos  
princípios ordenadores decisivos dos mundos de suas obras  
determinações que pertencem aos preconceitos fetichistas de seu  
tempo - como a onipotência da herança patológica no caso de Zola -  
e inibem ou até mesmo impedem uma modelagem artística  
consistente do mundo refletido até o fim. Esses preconceitos  
fetichizadores são, naturalmente, diferentes de acordo com as épocas;  
na época de seu domínio e difusão geral, eles são de fato usados  
como substitutos da conformação artística, porque sua mera presença  
dá origem a ilusões de determinação estética que muitas vezes não  
existe. Mas, mais ou menos rapidamente, outros fetiches passam a se  
destacar, e a "grande" ou "vanguardista" arte de ontem é hoje rígida,  
morta e vazia. Naturalmente, o extremo oposto é igualmente  
prejudicial. (Lukács, 1967b, II, p. 413)  
Não é o caso, no contexto dessa exposição, de aprofundar as considerações  
decisivas feitas por nosso autor, porém cabe chamar a atenção para a presença dos  
elementos distintos do meio homogêneo da literatura, em que a narrativa se orienta  
por critérios alheios, aqui salientados, em tom irônico, como uma descritividade  
hiperdimensionada própria de um “manual de patologia”. A forma descritiva de  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 291  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
fenômenos justificatórios, inibe a imaginação do leitor, o colocam como mero  
expectador passivo da série autoexplicativa da causalidade descritiva de fatos que  
justificam a ação e a interação dos personagens. O descritivo, algo válido no reflexo  
da ciência por exemplo, é aqui causa da fetichização que deforma o caráter  
propriamente evocativo da obra.  
A literatura comporta, portanto, uma forma própria de reflexo. Somente ela  
pode apresentar, em um modo peculiar de reflexo, o elemento da realidade posto em  
seus aspectos essenciais. Em outras palavras, retomando as análises de Lessing, jamais  
a literatura pode dizer de Laocoonte o que é expresso na configuração própria da  
escultura; elas falam da realidade, mas dizem essa realidade a partir de traços  
específicos correspondentes à forma que lhes são próprias. A pintura em que se  
representa o retrato de Helena, seria incapaz de dar a dimensão da beleza abstrata,  
necessária para a correta indeterminação da evocação pretendida com a menção ao  
impacto que tal atributo provoca nas mediações objetivas das relações humanas  
postas em evidência na obra literária.  
Sobre a transformação das categorias no âmbito do reflexo estético, resta ainda  
aspectos importantes a serem salientados. Não apenas a categoria tempo, sofre uma  
transformação na obra estética, ou seja, o quase-tempo como dação de forma  
específica da dimensão temporal efetivamente presente em toda realidade, mas  
igualmente, no caso das categorias modais, por exemplo, verifica-se tal alteração. A  
contingência, isto é, o acaso, está presente na ordem fenomênica do mundo, é um fato  
elementar da vida. Contudo, no reflexo peculiar de uma obra estética, o acaso nunca  
é um acaso propriamente dito, nunca se reduz a ser mera casualidade. Ele recebe no  
contexto da obra o caráter de elemento decisivo da expressividade de determinado  
conteúdo essencial para o qual o autor pretende dar relevância. Lukács se vale do  
exemplo de Tolstói, refere a famosa obra Guerra e paz, em especial à cena em que  
príncipe André, em virtude de um ferimento de guerra é conduzido à enfermaria; por  
mero “acaso” – e as aspas aqui são mais do que necessárias , André encontra o seu  
grande inimigo, aquele que almejara matar. Ele assiste à amputação da perna de seu  
inimigo, presencia as dores horrendas da situação em que ele se encontrava. Ao ver  
seu inimigo, nas condições deploráveis, e em meio às próprias vivências internas que  
o personagem André se encontrava no contexto da narrativa, o desejo de vingança se  
arrefece. Este momento, que cumpre no enredo o papel de um acontecimento de mero  
acaso ou seja, o encontro inesperado em uma enfermaria possui grande  
Verinotio  
292 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
importância na narrativa, salienta um aspecto fundamental que consiste na mudança  
espiritual do personagem central príncipe André. No exemplo recolhido da obra de  
Tolstói, o acaso funciona como um mecanismo necessário para expressar essa  
mudança da espiritualidade do personagem, a contingência desse encontro é elemento  
decisivo para salientar aspectos essenciais da humanidade posta na figuração da  
pessoa de André.  
Todo acaso, ou a presença figurada da dimensão fenomênica da vida, é na obra  
estética componente expressiva da essência. Na obra de arte o fenômeno é  
imediatamente essência, a forma descritiva de um simples acaso, de algo que na vida  
cotidiana pode ser entendido como mero fenômeno, compõe a dação de forma  
necessária para a expressão do conteúdo essencial ao qual se quer dar a devida ênfase.  
A transformação categorial própria da dimensão estética faz com que a aparência seja  
ao mesmo tempo essência.  
De tudo o que aqui foi tratado, pode-se concluir: quando se fala de inerência  
dos traços gerais do estético em cada meio homogêneo dos gêneros artísticos, busca-  
se traçar em termos pormenorizados a descrição rigorosa do sistema das mediações  
categoriais da arte. Eis os aspectos fundamentais que nos reconduzem à necessária  
resolução do problema apresentado no início desse artigo: cada arte possui  
peculiaridades próprias, no entanto, elas contêm em si mesmas elementos gerais que  
definem a arte enquanto tal; em suma, os princípios gerais da arte são inerentes às  
artes particulares. Os elementos gerais são descritos como princípios constitutivos  
inerentes a cada arte em particular aqui apresentados como: a unidade dialética  
conteúdo-forma, a relação imediata entre essência-aparência, a alienação-  
retrocaptação, a dimensão do sujeito-objeto idêntico da obra estética. Contudo, cada  
uma dessas artes possui os seus elementos próprios, apresenta o seu meio  
homogêneo própria. Peculiaridade de cada meio homogêneo implica, no que diz  
respeito à caraterização geral do estético, a descontinuidade na continuidade; é o  
descontinuo (a diferença específica) que apresenta uma continuidade que atravessa  
todas as formas peculiares das artes.  
Tal determinação não é de modo algum simples detalhe teórico o que se  
expressa nas determinações lukácsianas. Se fosse o contrário, ou seja, cada arte fosse  
apenas a representação específica de conteúdo universalizante da arte em geral, se  
chegaria ao resultado de cada uma delas seria tão somente a expressão singular de  
um mesmo conteúdo extrínseco às suas formas particulares. Isso a aproximaria daquilo  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 293  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
que Lukács designa como alegoria, em que a imagem é a expressão imagética de um  
conceito. Nosso autor demonstra tal deformidade da alegoria na arte por meio da  
referência direta a Goethe:  
A alegoria transforma o fenômeno em conceito, o conceito em  
imagem, mas de tal modo que o conceito se mantenha e permaneça  
sempre limita e completo na imagem, para que possa ser contemplado  
como tal conceito. Goethe apud Lukács, 1967b, II, 63)  
O conteúdo é dado pelo conceito, ou seja, algo extrínseco à imagem. Por via  
de consequência a forma teria o conteúdo configurado como algo extrínseco a ela  
mesma. Seria mera representante de um conteúdo extrínseco a ela. A forma não se  
explica por si mesma, mas é a remissão a algo que, por origem, encontra-se fora dela.  
Em contrapartida, para Lukács, cada arte em sua peculiaridade, enquanto  
unidade dialética entre forma e conteúdo, através do sistema categorial que põe a  
peculiaridade de seu meio homogêneo, teria a capacidade de salientar aspectos  
específicos da realidade humana, o meio homogêneo apreenderia aspectos essenciais  
específicos da vida, sendo que, o que é possível para uma arte figurar diferencia-se  
radicalmente das possibilidades presentes em outra pois a forma constitui uma  
unidade dialética com o conteúdo. Se retornarmos ao exemplo de Lessing, aqui  
exaustivamente referido, poderíamos dizer: embora na Eneida e na escultura a  
personagem Laocoonte seja a figura central, o conteúdo evocativo em suas distintas  
representações remete a conteúdos distintos. O que uma pode dizer a respeito da  
realidade, o conteúdo humano posto por ela em evidência é completamente distinto  
daquele presente em outra arte. O meio homogêneo captura em sua peculiaridade  
conteúdos essenciais que somente podem ser postos em evidência no reflexo peculiar  
de dada arte. O que a música, por exemplo, põe como conteúdo essencial para o  
homem, é completamente distinto daquele que se encontra presentes na arquitetura.  
Cada arte salienta pela sua forma conteúdos específicos da realidade, o que uma pode  
dizer e apreender em sua forma, difere da evocação dos outros gêneros da arte.  
Por fim, não seria possível concluir as considerações apresentadas nesse artigo,  
sem referir ao papel decisivo trazido à discussão em toda essa análise do sistema das  
mediações categoriais exaustivamente trabalhados por Lukács: a arte, em última  
instância, é a “crítica da vida”. A função da arte, em última instância, é exortar ao  
indivíduo de que “é preciso mudar de vida”. A arte pretende provocar  
Verinotio  
294 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte  
uma sacudida tal da subjetividade do receptor que suas paixões vitalmente  
ativas cobrem novos conteúdos, uma nova direção e, assim purificadas, se  
convertam em base anímica de disposições virtuosas. (Idem, p. 508)  
Essa sacudida tem efeito catártico importante:  
No imediato [da fruição] se mescla a comoção do receptor pelo novo  
que desencadeia em cada obra individual um sentimento  
concomitante negativo, um pesar, uma espécie de vergonha por não  
haver percebido nunca na realidade, na própria vida, o que tão  
naturalmente se oferece na conformação artística. (idem, 507)  
A criação artística é o descobimento do núcleo da vida. O objeto estético  
objetiva causar no indivíduo sensações, emoções, sentimentos, percepções do mundo  
que o retirem do seu ensimesmamento, de sua Partikularität. Quer suplantar a condição  
do indivíduo preso em si mesmo, para a partir da vivência da forma que é de imediato  
conteúdo elevar a subjetividade a patamares e elementos mais decisivos do destino  
humano, conduzir um reflexo da realidade nessa consciência que remeta às dimensões  
da subjetividade humana condizentes aos desdobramentos da autoconsciência do  
gênero em seus processos históricos. Se a subjetividade transparece de maneira  
autêntica na obra de arte, não o faz como mera evocação de uma subjetividade que  
se reduz a si mesma, ao invés, ela remete a questões de uma subjetividade alcançada  
a patamares superiores, própria da universalidade da questão humana ali figurada.  
Conforme adverti no início, a ideia dessa exposição não foi de modo algum  
simplificar a obra do autor, pelo contrário, teve a intenção clara de fazer a advertência,  
mais do que necessária, para a complexidade da obra de Lukács. Nunca com a intenção  
de gerar desânimo aos leitores, mas destacar a importância decisiva desse escrito  
tardio do pensador magiar. Sabemos que “todo começo é difícil”, porém trilhar o  
caminho da complexidade de livros e de temas, tem compensações importantes na  
medida em que nos leva a uma posição de maior rigor frente a questões decisivas da  
humanidade.  
Bibliografia  
FORTES, Ronaldo; O caráter libertador da arte na estética de Lukács; In NACIF, C;  
ZANATTA, I.; Introdução à estética de Lukács; Rio de Janeiro, 7 Letras, 2019.  
LESSING, Gotthold Ephraim; Laocoonte ou as fronteiras da pintura e da poesia; Trad.  
Márcio Seligmann Silva; São Paulo: Iluminuras, 2011.  
LUKÁCS, György; Die Eigenart des Ästhetischen - Band I, II; Berlin und Weimar, Aufbau-  
Verlag, 1987.  
_____. Estética - Tomo I; Barcelona, Grijalbo, 1967a.  
_____. Estética - Tomo II; Barcelona, Grijalbo, 1967b.  
_____. Thomas Mann e la tragedia dell’arte moderna; trad. Giorgio Dolfini; Milano: SE,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024 | 295  
nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
2005.  
MANN, Thomas; A montanha mágica; trad. Herbert Caro; Rio de Janeiro: Nova Fronteira,  
2000 (2ª.ed),  
VIRGÍLIO; Eneida; trad. Odorico Mendes; Cotia/SP: Ateliê Editorial; São Paulo: Editora  
da Unicamp, 2005.  
Como citar:  
FORTES, Ronaldo Vielmi. Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das  
categorias gerais da arte. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 269-296; jul.-  
dez., 2024.  
Verinotio  
296 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 269-296 jul.-dez., 2024  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.731  
O Complexo Estético Arquitetônico:  
o exemplo de Santa Maria del Fiore1  
The Architectural Aesthetic Complex: the case of Santa  
Maria del Fiore  
Vinicius Rocha Rodrigues Morais*  
Resumo: Esse artigo apresenta a categoria da  
dupla mimese desenvolvida por György Lukács  
em sua Estética no interior da peculiaridade da  
arquitetura a partir do exemplo da Catedral de  
Santa Maria del Fiore; o Duomo de Florença. Para  
Abstract: This article explores the concept of  
double mimesis developed by György Lukács in  
his Aesthetics, within the context of architecture,  
using the Cathedral of Santa Maria del Fiore –  
the Duomo of Florence as a case study. The  
discussion is divided into two main sections.  
The first focuses on the de-anthropomorphized  
reflection of the dome’s construction,  
highlighting the scientific and technological  
advancements that addressed the social  
demands of the time; the first mimesis. The  
tanto,  
nossa  
exposição  
se  
concentra  
essencialmente em duas partes, sendo a primeira  
delas referente ao reflexo desantropomorfizado  
da construção da sua cúpula que envolve os  
resultados científico-tecnológicos em resposta às  
demandas sociais presentes à época a primeira  
mimese , e a segunda parte referente ao reflexo  
antropomorfizado da obra a segunda mimese  
que, em determinação reflexiva ao polo  
desantropomorfizado do reflexo, estabelece, em  
second  
section  
examines  
the  
anthropomorphized reflection of the work the  
second mimesis which, through its reflective  
relationship to the de-anthropomorphized  
aspect, establishes, in formal unity, the aesthetic  
dimension of the structure, presenting it as a  
work of art.  
unidade formal,  
a
dimensão estética da  
construção; sua dimensão enquanto arte.  
Palavras-chave: György Lukács; Arquitetura;  
Dupla mimese; Santa Maria del Fiore.  
Keywords: György Lukács; Architecture; Doble  
mimesis; Santa Maria del Fiore.  
Introdução  
O filósofo húngaro György Lukács (1885-1971) busca em sua Estética (1966)  
o estudo das categorias filosóficas da arte. Resultado de um projeto ambicioso, os  
quatro volumes2 da Estética lukácsiana é, na verdade, apenas o primeiro livro  
idealizado por ele. Trata-se de uma obra de grande complexidade em virtude das  
1
Esse artigo é parte do resultado alcançado na redação da tese de doutorado junto ao Programa de  
Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora sob orientação do Prof. Dr.  
Ronaldo Vielmi Fortes. Disp. em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/17237  
*
Vinicius Rocha R. Morais, doutorado em Serviço Social, é professor da Faculdade de Arquitetura e  
Urbanismo da Universidade Federal de Juiz de Fora E-mail: <vinicius.morais@ufjf.br>  
2 Vale considerar que a Estética de Lukács é dividida em quatro volumes na versão espanhola (LUKÁCS,  
1966) e em dois volumes no seu original em alemão (LUKÁCS, 1987). Entretanto, esses volumes  
publicados devem ser entendidos como um livro único e independente dos demais que o filósofo havia  
idealizado compondo, segundo ele, um “todo autônomo” (LUKÁCS, 1966a, p.07).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
categorias filosóficas tratadas, dos filósofos abordados e da complexidade e  
profundidade das análises realizadas pelo autor. Nesse livro, o único que foi de fato  
escrito e publicado, Lukács visa determinar a peculiaridade do estético.  
Nele o autor determina as questões de princípio do complexo da  
estética. Quais são suas categorias, como essas categorias se  
articulam, quais são as questões centrais da arte. Nesse sentido, o  
primeiro tomo é a determinação geral do complexo categorial da  
estética, buscando estabelecer a gênese deste complexo, as questões  
centrais dessa dimensão da prática humana, assim como a sua  
peculiaridade frente às outras formas da prática social3. (FORTES,  
2019, p. 14).  
Longe de qualquer intenção de construir uma teoria comunista para a arte e  
de fato, se opor veementemente a essas pretensões4 podemos afirmar que Lukács  
em sua Estética debate com os grandes pensadores da filosofia tais como Aristóteles,  
Kant, Hegel, Espinoza, Lessing e escritores como Schiller e, em especial, Goethe.  
Se, portanto, insistirmos em dizer que em Lukács se realiza uma  
estética marxista, devemos entender sua realização teórica nesse  
sentido, qual seja: não é simplesmente a versão comunista de uma  
teoria da arte, mas é acima de tudo um debate com toda uma herança  
da filosofia, com a longeva trajetória filosófica das reflexões em torno  
da estética a partir das descobertas e conquistas do pensamento  
marxiano. (FORTES, 2019, p. 13).  
Apoiado nas ideias de Marx e na inflexão que seu pensamento trouxe à  
filosofia5, a reflexão lukácsiana e seu debate com os pensadores citados deixa clara a  
3 Assim Lukács descreve o primeiro livro da sua Estética em suas páginas iniciais: “O livro aqui entregue  
ao público é a primeira parte de uma estética que tem por tema central a fundamentação filosófica do  
tipo de pôr estético, a dedução da categoria específica da estética e a sua delimitação em relação a  
outros campos. Na medida em que as exposições se concentram nesse complexo de problemas e só  
abordam problemas concretos da estética quando isso é imprescindível para o esclarecimento dessas  
questões, esta parte forma um todo acabado e compreensível também sem as partes subsequentes.”  
(LUKÁCS, 2023, p. 153).  
4 Aqui fazemos menção ao movimento Proletkult surgido em 1917 na União Soviética. Segundo Fortes,  
a Estética de Lukács: “não é de modo algum a mera tentativa de construir uma teoria comunista da arte,  
no sentido, por exemplo, daquilo que se deu na União Soviética ao longo dos anos iniciais da revolução  
de 1917, o assim chamado Proletkult, ou seja, as incursões do marxismo (no sentido vulgar do termo)  
nos temas candentes da cultura, cujo objetivo era construir ideias próprias em oposição ao mundo  
ocidental, erguer uma concepção própria daquilo que vem a ser a estética, daquilo que vem a ser a arte  
do ponto de vista do comunismo. Lukács está longe de uma proposta de tal monta, muito pelo contrário:  
os diversos artigos por ele escritos durante a década de 1930 mostram que o autor empreendeu uma  
briga ferrenha contra tais tentativas no interior do socialismo real.” (FORTES, 2019, p.12).  
5
Aqui nos referimos especificamente ao entendimento de Marx acerca da investigação, análise e  
reprodução ideal das legalidades objetivas. Assim Netto se manifesta acerca da reprodução teórica da  
realidade a partir do pensamento marxiano: “o conhecimento teórico é o conhecimento do objeto de  
sua estrutura dinâmica tal como ela é em si mesmo, na sua existência real e efetiva,  
independentemente dos desejos, das aspirações e das representações do pesquisador. A teoria é, para  
Marx, a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o sujeito  
reproduz em seu pensamento a estrutura e dinâmica do objeto que pesquisa. E esta reprodução (que  
constitui propriamente o conhecimento teórico) será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o  
Verinotio  
298 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
seriedade das discussões apresentadas, a relevância do seu pensamento e a  
magnitude do seu texto ao tratamento do estético. Nesse sentido, defendemos a tese  
de que Lukács tenha identificado e apresentado as categorias filosóficas da arte em  
sua obra tardia sua Estética e estabelecido, segundo suas palavras, o “sistema de  
mediações categoriais” capaz de lançar luz na discussão da arte de maneira geral, bem  
como, a partir da análise e compreensão do comportamento das categorias levantadas  
por ele de forma abstrato-conceitual, permitir a determinação da real dimensão  
estética em suas formas peculiares; seja ela na pintura, escultura, música, arquitetura,  
etc.  
Analisada pelo filósofo em subitem do Capítulo 14 da obra6, apesar de concisa  
em número de páginas, é notória a riqueza e complexidade do texto direcionado à  
peculiaridade do complexo categorial da arquitetura. Ao que pretendemos nesse  
artigo, destaca-se a categoria da dupla mimese7.  
Sob ressalva do entendimento abstrato de Hegel acerca da arquitetura8, Lukács  
nos apresenta na sua Estética como parte assertiva e decisiva de uma das proposições  
do filósofo alemão acerca do complexo categorial arquitetônico a categoria de  
fundamental importância da dupla mimese. Nas palavras de Lukács: “Hegel parte da  
acertada afirmação de que a arquitetura é ao mesmo tempo um meio para a realização  
de finalidades extra-artísticas e uma arte plena em si mesma.” (LUKÁCS, 1966d, p. 86).  
Sob esse entendimento, o espaço no interior do complexo arquitetônico se apresenta  
como uma unidade formal em determinação de reflexão entre a utilidade e sua  
dimensão enquanto arte.  
Para Lukács, a primeira mimese arquitetônica refere-se ao reflexo  
desantropomorfizado da realidade. Reflexo segundo o qual pressupõe-se isenção da  
sujeito for ao objeto.” (NETTO, 2011, p. 20-21).  
6 Lukács analisa a peculiaridade da arquitetura no segundo subitem do Capítulo 14 da sua Estética de  
título Questões-limite da mimese estética. (LUKÁCS, 1966d, p.82-141).  
7
O tratamento pormenorizado da dupla mimese pode ser encontrado no texto integral da tese de  
doutorado a que esse artigo faz menção em sua primeira nota de rodapé. Para tanto ver: (MORAIS,  
2024, p. 126-189).  
8
Lukács aponta que a filosofia idealista de Hegel não o permite conceber a mimese estética da  
arquitetura como reflexo de uma objetividade social que se desdobra no tempo, que assume novas  
características no curso histórico e está em interdependência com o mundo, com o desenvolvimento  
das forças produtivas e das capacidades humanas; seja esse desdobramento referente ao  
aprimoramento técnico-construtivo, seja ao desdobramento das aptidões estéticas do homem no curso  
da história. Segundo Lukács: “estão alinhadas em estreita dependência todas as posições equivocadas  
de Hegel nessa problemática: a concepção da arquitetura como arte dos começos humanos, a dialética  
histórica de sua evolução, a dialética estética da relação de sua essência com a tarefa social que  
determina sua realização com os problemas propriamente estéticos.” (LUKÁCS, 1966d, p. 88).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 299  
nova fase  
     
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
participação da subjetividade humana em sua análise e reprodução ideal. Para ele,  
esse polo do reflexo no interior da unidade formal arquitetônica o reflexo  
desantropomorfizado, sua primeira mimese ainda se subdivide em um duplo reflexo,  
sendo o primeiro deles referente ao domínio das legalidades naturais que se manifesta  
a partir das competências técnicas desenvolvidas e aplicadas às construções a  
generalização científico-tecnológica e o segundo referente à generalização social que  
se impõem a partir das necessidades socialmente determinadas.  
seu fundamento primeiro é a refiguração desantropomorfizadora de  
conexões legais universais, da interação de forças naturais  
individualizadas, refiguração aplicada, naturalmente, a um caso  
singular cuja natureza, também singular, está determinada por certas  
finalidades humanas. (LUKÁCS, 1966d, p.107).  
Já a segunda mimese em arquitetura o reflexo antropomorfizado, estético –  
surge quando determinada matéria que organiza um espaço é capaz de traduzir em  
forma construída um conteúdo social historicamente estabelecido por um conjunto de  
homens, e, assim, conferindo sentido humano ao que a princípio se manifestava como  
mera materialidade, orientar a evocação de sentimentos e pensamentos dos que  
vivenciam determinado espaço com vistas a autoconsciência da humanidade9.  
a arquitetura como arte tem que apropriar-se como fundamento  
incondicional do seu específico pôr estético os seus resultados  
científicos, e tem que partir deles em todas suas intenções de dação  
de forma; a ela se inclui “meramente” um modo aparencial estético  
adequado, pelo qual aqueles elementos científicos sem perder sua  
natureza essencial de conexões cientificamente captadas se  
transformam em um novo e próprio meio homogêneo: da construção  
cientificamente fundada, de uma formação espacial nasce um espaço  
como mundo próprio do homem em um determinado nível de  
desenvolvimento histórico-social. (LUKÁCS, 1966d, p. 92).  
Nesse artigo pretendemos apresentar as categorias filosóficas do estético  
9
Para Lukács, em última instância, a arte é uma forma de reflexo da realidade que tem como centro  
captar as questões essenciais do desdobramento do gênero em épocas determinadas a  
autoconsciência da humanidade e manifestá-las em uma objetividade um objeto de arte , a fim de  
orientar a evocação de sentimentos e pensamentos humanos com vistas a desvelar processos que na  
vida cotidiana se manifestam de forma fetichizada. Segundo Lukács: “a arte, como temos comprovado  
várias vezes, não é simplesmente a consciência dos homens acerca de algo que exista em-si com  
independência da arte mesma. Sem dúvida está também contido esse momento no reflexo estético.  
Porém não passa de ser um momento, e o significativamente estético desse reflexo consiste em ser  
autoconsciência da humanidade. Essa autoconsciência se prepara desde as vivências pré-artísticas do  
criador até a produção da obra, e se consuma na individualidade conformada da obra, para conseguir  
sua plenitude social na vivência estética da receptividade e em seu depois. A conquista da realidade  
objetiva, várias vezes exposta como fundamento imprescindível de toda arte, a infinitude intensiva de  
conteúdo, a crítica da vida, a universalidade do estético, que se revela no pluralismo das artes, todos  
esses momentos são caminhos para uma tal autoconsciência da humanidade.” (LUKÁCS, 1966b, p. 542-  
3).  
Verinotio  
300 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
quando inerentes ao complexo categorial da arquitetura considerando, em especial, a  
categoria da dupla mimese tomando como exemplo o domo de Santa Maria del Fiore  
e suas implicações na composição final da forma da Catedral na intenção de dissolver  
na forma particular do Duomo10 as categorias abstrato-conceituais concebidas por  
Lukács.  
Para tanto, considerando o exemplo supracitado, iniciaremos nossa exposição  
a partir da primeira mimese arquitetônica seu reflexo desantropomorfizado para,  
em seguida, apresentar sua mutação11 – sua “transformação” – à dimensão estética.  
A demanda projetual de uma cobertura  
Situada em Florença, na Itália, a Catedral de Santa Maria del Fiore ou, o Duomo  
de Florença, teve o início da sua construção datado do séc. XIII, em 1296, com projeto  
inicial do arquiteto italiano Arnolfo di Cambio (1240-1302) sobre as fundações da  
antiga Basílica de Santa Reparata, e seu término construtivo no séc. XIX, em 1887,  
quando finalizada a execução da fachada pelo arquiteto também italiano Emilio De  
Fabris (1807-1883).  
Na imagem seguinte encontram-se sobrepostas três das etapas construtivas do  
que hoje temos como a Catedral de Santa Maria del Fiore, sendo destacado em verde  
o projeto original da basílica de Santa Reparata, em azul o projeto de Arnolfo di  
Cambio para Santa Maria del Fiore e em vermelho, o conjunto de ampliações da  
construção original.  
Figura 01 Plantas baixa das etapas construtivas da Catedral.  
Fonte: (Adaptado de CONTI; CORAZZI, 2011, p.25)  
10  
Duomo é um termo italiano para a igreja que originalmente foi projetada para ser uma catedral,  
apesar de ter ou não, de fato, essa função na atualidade.  
11 O tratamento pormenorizado da mutação categorial apresentada por Lukács pode ser encontrado no  
texto integral da tese de doutorado a que esse artigo faz menção em sua primeira nota de rodapé. Para  
tanto ver: (MORAIS, 2024, p. 141-154).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 301  
nova fase  
   
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
A planta baixa menor, destacada em verde, representa o projeto original da  
Basílica de Santa Reparata, demolida em 1375, que se preserva em forma de ruinas  
no subsolo da construção atual. A planta baixa de tamanho intermediário, destacada  
em azul, representa o projeto inicial de Arnolfo di Cambio e, o contorno em vermelho,  
representa a unidade final das etapas construtivas tal como a Catedral de Santa Maria  
del Fiore se apesenta atualmente, incluindo-se o campanário12 de Giotto di Bondone  
(1267-1337) finalizado sob a supervisão de Francesco Talenti (1300-1369), bem  
como o novo projeto para a abside13 que ampliou o trifólio14 projetado por Arnolfo  
com a inserção de tribunas a eles.  
Especificamente em referência a Santa Reparata, podemos observar nas figuras  
seguintes parte dos escombros do projeto original da basílica no subsolo onde hoje  
se localiza Santa Maria del Fiore. À esquerda as ruínas da fundação da antiga basílica,  
ao centro o túmulo de Filippo Brunelleschi (1377-1446) e à direita o altar.  
Figura 02 Ruínas de Santa Reparata no subsolo de Santa Maria del Fiore.  
Fonte: (https://en.wikipedia.org/wiki/Santa_Reparata). Acesso em 16.01.2023  
Certo que nossa análise não se ocupa das diversas etapas construtivas da  
Catedral15, tampouco da substituição de arquitetos em seu processo, ou das disputas  
políticas que, por ventura, puderam interferir na sua construção, por ora serão tratados  
os aspectos que estejam em íntima relação ao que estabelecemos como objeto de  
análise. Nesse sentido, voltamos nossa atenção especificamente à sua cúpula.  
Com a morte de Arnolfo di Cambio em 1302 com as obras ainda inacabadas  
12  
Campanário: “Torre onde se encontram os sinos, formando parte da construção ou separada dela.  
Nome raras vezes aplicado à janela pequena da ‘torre da igreja’ em cujas partes laterais é afixado o  
eixo que sustenta o sino.” (CORONA; LEMOS, 1972, p.101).  
13 Abside: “Genericamente pode-se designar por abside ou absida, qualquer abóbada ou nicho que seja  
de planta semicircular ou poligonal. A palavra vem do grego: absis. Era nas absides das basílicas  
romanas que ficavam o pretor e outras personalidades durante as sessões públicas. Com o posterior  
desvirtuamento de função daqueles edifícios, que passaram a ser usados pela Igreja cristã, aquele local  
ficou reservado para o coro, lugar de assento do clero, e para o santuário ou altar-mor, significando,  
simbolicamente, o paraíso”. (CORONA; LEMOS, 1972, p.14).  
14 Trifólio: “Ornamento em forma de trevo que se obtém combinando três circunferências cujos centros  
estão nos três vértices de um triângulo equilátero.” (CORONA; LEMOS, 1972, p.456).  
15 O tema é tratado pormenorizadamente no livro A disputa que mudou a Renascença (WALKER, 2005)  
e no livro O domo de Brunelleschi (KING, 2013).  
Verinotio  
302 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
       
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
de Santa Maria, não havia sido projetada a solução para a cobertura do grande vão  
octogonal de aproximadamente 45 metros de diâmetro interno16 a 55 metros de altura  
em relação ao solo que deu lugar, mais de um século depois, à cúpula de Brunelleschi.  
Diz Conti das dimensões da cúpula: “Seu diâmetro interno mede 45m, o externo 54m,  
sua base encontra-se a 55m do solo, a cúpula atinge 91m e, com a lanterna17, que  
pesa 750 toneladas, chega a 116m; seu peso é de 29.000 toneladas.” (CONTI, 2014,  
p.5-6).  
Figura 03 Simulação da Catedral de Santa Maria del Fiore sem cúpula.  
Fonte: (TRACHTENBERG, 2010, p.343)  
Por falta de uma cobertura que resguardasse seu espaço interno, por um longo  
período a Catedral de Santa Maria del Fiore sofreu com as intempéries climáticas em  
seu interior e suscitava, assim, uma solução ao problema deixado pelo seu arquiteto  
idealizador; solução essa que só veio à propósito dos estudos de Brunelleschi da  
antiga arquitetura romana (ARGAN, 2005, p.118) a partir do conhecimento dos  
materiais e dos métodos construtivos aplicados nos templos, basílicas, anfiteatros,  
aquedutos, arcos, cúpulas etc. daquele povo.  
Durante cinquenta anos tinha sido óbvio que ninguém em Florença, e  
na verdade em toda a Itália, sabia com certeza como ela [a cobertura]  
poderia ser erguida. A cúpula ainda não construída da igreja de Santa  
Maria del Fiore constituía, portanto, o maior enigma arquitetônico da  
época. Muitos peritos consideravam impossível erigi-la. Nem mesmo  
os planejadores originais da cúpula tinham sido capazes de dizer de  
16  
Considera-se aproximadamente 45 metros de diâmetro interno, pois a base octogonal sobre a qual  
se apoia a cúpula possui forma irregular; variando, assim, seu diâmetro interior.  
17 Lanterna: “Corpo cilíndrico ou prismático, mais alto que largo, com aberturas de iluminação, situado  
sobre a cúpula.” (CORONA; LEMOS, 1972, p. 296).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 303  
nova fase  
   
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
que maneira seria possível completar o projeto; exprimiam  
simplesmente uma comovedora fé de que em algum momento no  
futuro Deus forneceria uma solução e que seriam encontrados  
arquitetos com conhecimentos mais avançados. (KING, 2013, p. 16).  
Em 19 de agosto de 1418 foi anunciado na cidade de Florença um concurso  
para que fossem apresentadas propostas para a construção da cobertura da Catedral  
de Santa Maria del Fiore. Segue passagem em que o citado concurso é anunciado:  
Quem desejar apresentar qualquer modelo ou projeto para a cúpula  
principal em construção pela Opera del Duomo seja para armação,  
andaimes ou outras coisas, ou qualquer aparelho de cargas relativo à  
construção e à perfeição da mencionada cúpula ou abóbada, deve  
fazê-lo antes do final do mês de setembro. Se o projeto for utilizado,  
a pessoa terá direito a um pagamento de 200 florins. (KING, 2013,  
p.13).  
Com estudo inicial ao projeto da cúpula datado de 1402, embora mantido em  
segredo até 1418 quando Brunelleschi participa e vence o supracitado concurso para  
propostas construtivas que solucionassem tal demanda, a efetiva construção da cúpula  
teve seu início somente no ano de 1420 e término quatorze anos mais tarde, sendo  
considerado, até os dias de hoje, o maior domo autoportante em alvenaria do mundo.  
Figura 04 Cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore.  
Fonte: (TRACHTENBERG, 2010, p.225)  
Verinotio  
304 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
Fato curioso ao processo de construção desse elemento arquitetônico é narrado  
por Vasari (2011) em seu livro Vidas dos Artistas. Com a intenção de convencer os  
avaliadores do concurso da sua competência e da possibilidade de execução do seu  
projeto sem que a eles fosse revelado seus desenhos e suas ideias, Brunelleschi propôs  
o desafio aos interessados à construção da cúpula seus concorrentes que  
estabilizassem um ovo verticalmente em uma superfície plana. Caso obtivessem êxito,  
revelaria seu projeto a todos. Diz Vasari:  
Eles [os concorrentes] queriam que Filippo explicasse sua concepção  
detalhadamente e demonstrasse seu modelo como eles haviam  
demonstrado os deles. Filippo não desejava fazê-lo e sugeriu aos  
outros mestres, tanto aos de fora quanto aos de Florença, que aquele  
que conseguisse fazer com que um ovo ficasse em pé sobre uma  
pedra de mármore lisa deveria ser o construtor da cúpula, já que isso  
seria uma prova de inteligência. Trouxeram então um ovo e cada  
artista por sua vez tentou equilibrá-lo em pé; porém nenhum teve  
sucesso. (Vasari, apud Walker, 2005, p. 173).  
Após o fracasso nas tentativas dos demais concorrentes, Brunelleschi tomou o  
ovo em suas mãos e, quebrando sua base, assentou o ovo em equilíbrio na superfície.  
Seus adversários argumentaram que poderiam ter feito algo semelhante e Brunelleschi  
contra-argumentou dizendo que também poderiam construir a cúpula caso tivessem  
acesso a seus desenhos e maquetes.  
pediram a Filippo que o fizesse [solucionasse o desafio] e ele,  
pegando o ovo com graça, rachou-lhe uma das extremidades fazendo  
com que ficasse em pé. Os outros se queixaram de que poderiam ter  
feito o mesmo e ele, rindo-se, retorquiu que eles também saberiam  
construir o domo se tivessem visto seu modelo e seus planos. E assim  
foi que decidiram que Filippo deveria levar avante a obra e pediram-  
lhe que desse os detalhes de seu projeto aos cônsules e aos diretores.  
(Vasari, apud Walker, 2005, p. 173).  
Certo ou não da veracidade dessa história em específico ou das possíveis  
alegorias criadas em torno da construção da cúpula, fato é que Brunelleschi surge com  
uma solução revolucionária ao problema de cobertura da Catedral e solução dessa  
demanda.  
As soluções tradicionais à época  
Historicamente, a sustentação das estruturas destinadas a cobertura de grandes  
vãos, sejam elas cúpulas, grandes telhados etc., se dava essencialmente de três  
maneiras distintas.  
A primeira delas, a exemplo do Panteão de Roma (séc. II d.C.), consistia em  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 305  
nova fase  
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
descarregar e distribuir o peso das cargas geradas pela estrutura no caso, sua cúpula  
em espessas paredes que transmitiam esse sistema de forças ao solo, fazendo com  
que uma grande massa, a cúpula, pudesse se apoiar sobre essas paredes, operando  
como uma espécie de suporte às cargas superiores.  
Na figura seguinte temos a planta baixa do Panteão e sua seção longitudinal  
onde podem ser percebidas as espessuras das paredes ao redor da cúpula em relação  
ao seu conjunto.  
Figura 05 Planta baixa (acima) e seção longitudinal (abaixo) do Panteão romano.  
Fonte: (ZEVI, 2009, p.73)  
Destacamos ainda, na imagem em sequência, um esquema em 3D que ilustra a  
espessa parede abaixo da cúpula destacada em vermelho como forma de apoio das  
cargas verticais força de compressão , bem como forma de contenção, uma espécie  
de arrimo, das forças horizontais força de arremesso geradas pelo peso próprio da  
Verinotio  
306 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
cúpula junto à sua base.  
Figura 06 Simulação em 3D de uma seção do Panteão e suas espessas paredes.  
Fonte: (Adaptado de BENEVOLO, 2019, p. 180)  
Consequente ao jogo de forças existente, a espessura das paredes nessa  
construção justifica-se pela necessidade de apoiar as cargas derivadas do peso próprio  
da cúpula, e, principalmente, de suportar o empuxo lateral força de arremesso –  
criado pela compressão da cúpula na sua base. O esquema abaixo ilustra a dinâmica  
de transmissão das cargas horizontais à base da cúpula em razão do seu peso próprio.  
Figura 07 Cargas horizontais junto à base da cúpula.  
Em verde: vetor referente ao peso próprio da cúpula deformando a estrutura.  
Em laranja: vetor referente à deformação horizontal junto à base da cúpula.  
Fonte: (Adaptado de KING, 2013, p. 48)  
A segunda maneira de se cobrir grandes vãos e “anular” essa transmissão  
horizontal de forças, podemos observar a partir do exemplo da Catedral de Santa Sofia  
de Isidoro de Mileto e Antênimo de Trales (séc. VI) a qual descarrega o peso próprio  
da sua cúpula acumulado em sua base circular sobre elementos estruturais  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 307  
nova fase  
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
denominados de pendentes18 que transferem as cargas aplicadas sobre si a regiões  
pontuais do solo. O esquema abaixo ilustra geometricamente uma pendente:  
Figura 08 Esquema geométrico representativo de uma pendente.  
Fonte: (Adaptado de CORONA; LEMOS, 1972, p.368)  
Tomemos o espaço a ser coberto por uma cúpula perpendicularmente projetado  
acima dos pontos A B C D. Suponhamos em seguida uma abóbada esférica  
representada pelas letras W X Y Z cortada pelos planos verticais que passam pelos  
quatro lados do quadrado a ser coberto. Dessa operação, resulta a calota esférica E F  
G H e os quatro triângulos esféricos H A E, E B F, F C G e G D H que são as pendentes.  
A figura seguinte ilustra espacialmente um esquema do conjunto cúpula e pendente.  
Figura 09 Esquema espacial do conjunto cúpula e pendente.  
Fonte: (Adaptado de CHING, 2010, p. 71)  
Considerando o esquema acima, as forças aplicadas à base circular da cúpula  
18 Pendentes: “Nas abóbadas esféricas, que cobrem recinto de planta quadrada, nome de cada um dos  
triângulos esféricos que resultam nos quatro cantos. Elemento de composição inclinado, deitado para  
um dos lados.” (CORONA; LEMOS, 1972, p.367-8).  
Verinotio  
308 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
destacada em azul são transferidas para as pendentes destacadas em vermelho que,  
por sua, vez aplicam essas forças em quatro pontos específicos do solo. A cúpula de  
Santa Sofia pode servir de exemplo a essa técnica construtiva conforme podemos  
observar na imagem abaixo. À esquerda, a cúpula destacada em azul e duas das quatro  
pendentes destacadas em vermelho; e, à direita, a imagem original sem as marcações.  
Figura 10 Conjunto de cúpula e pendentes presente na Catedral de Santa Sofia.  
Fonte: (Adaptado de BENEVOLO, 2019, p.243)  
A terceira maneira de se sustentar grandes estruturas se dava pela utilização  
de arcobotantes19 e contrafortes20 sob os quais as cargas eram aplicadas e  
transmitidas ao solo. Utilizados como elementos estruturais externos aos edifícios, os  
arcobotantes serviam como componentes estruturais que absorviam as cargas  
horizontais forças de arremesso provenientes do peso de telhados ou abóbadas e  
as transmitiam aos contrafortes que, por sua vez, absorviam essas forças e as  
retransmitiam ao solo dando estabilidade à construção. A imagem abaixo ilustra os  
elementos estruturais arquitetônicos citados e a dinâmica de forças aplicada a eles.  
19  
Arcobotante: “Construção exterior destinada a equilibrar paredes sujeitas a empuxos laterais  
provenientes de telhados ou abóbadas.” (CORONA; LEMOS, 1972, p.52).  
20  
Contrafortes: “Obra maciça de alvenaria que reforça paredes ou muros sujeitos a empuxos laterais.  
Também recebe o nome de “botaréu” quando equivale ao arcobotante, e o de “gigante”, em sentido  
geral, tanto em Portugal como no Brasil.” (CORONA; LEMOS, 1972, p.143).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 309  
nova fase  
   
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
Figura 11 Esquema de forças aplicadas ao arcobotante e contraforte.  
Em azul: o contraforte  
Em verde: os arcobotantes  
Em laranja: o pináculo  
Em vermelho: vetores representativos  
do sistema de forças  
Fonte: (Adaptado de CHING, 2010, p.12)  
Elemento característico das catedrais do período gótico e neogótico, os  
arcobotantes eram amplamente utilizados em razão da “fragilidade” estrutural das  
paredes internas das construções, por vezes incapazes de estabilizar o empuxo lateral  
aplicado a elas. No esquema acima podemos observar que as cargas aplicadas na parte  
superior das catedrais cúpula e telhado eram transmitidas aos arcobotantes –  
destacados em verde que, por sua vez, transmitiam as forças aos contrafortes –  
destacados em azul que estabilizavam todo o conjunto.  
A Catedral de Notre Dame de Paris (1163-1345) pode nos ajudar na ilustração  
desse sistema construtivo conforme podemos observar na figura seguinte. Segundo  
as cores assumidas no esquema anterior, temos à esquerda destacados os contrafortes  
21  
e arcobotantes com seus respectivos pináculos , à direita a imagem original da  
Catedral sem as marcações e abaixo a vista aérea do conjunto que permite a  
21  
Pináculo: “Pequena torre ornamental gótica, fina e pontiaguda, construída sobre pilares e colocada  
sobre as torres ou gabletes.” (KOCH, 1996, p.195).  
Verinotio  
310 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
compreensão do todo.  
Figura 12 Parte do sistema estrutural da Catedral de Notre Dame de Paris.  
(arcobotantes, contrafortes e pináculos)  
Fonte: (Adaptado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Arquitetura_gótica). Acesso em 16.01.2023  
Seja a partir das técnicas estruturais aplicadas ao Panteão, a Santa Sofia ou a  
Notre Dame de Paris com vistas à construção de suas coberturas, pudemos observar  
levando-se em conta seus respectivos sistemas estruturais, que a estabilização das  
forças aplicadas a essas construções em razão da sustentação do peso próprio de suas  
cúpulas e telhados é um desafio que atravessa o tempo e os estilos arquitetônicos.  
Nesse sentido, a cúpula de Santa Maria del Fiore destaca-se como um desafio à parte  
nesse contexto, pois nela não poderiam ter sido aplicadas tais soluções como, de fato,  
não as foram.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 311  
nova fase  
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
O projeto de Brunelleschi  
Conforme apresentamos, o desafio de um projeto que solucionasse a demanda  
construtiva de Santa Maria del Fiore perdurou por mais de um século. As razões para  
tanto fundamentam-se na impossibilidade de se aplicar as tradicionais soluções  
supracitadas do uso de espessas paredes como no caso do Panteão, do uso de  
pendentes como em Santa Sofia, ou do uso de arcobotantes e contrafortes como na  
Notre Dame de Paris, em razão das particularidades construtivas da Catedral florentina.  
Considerando-se a opção disponível à época de se elevar a cúpula por sobre  
espessas paredes, à exemplo do Panteão (séc. II), para que essas servissem de “arrimo”  
ao empuxo lateral que surgiria em razão do peso próprio de qualquer cobertura que  
se idealizasse, o tambor22 presente logo acima do cruzamento entre a nave principal  
de Santa Maria e o seu transepto23 impossibilitava tal solução, pois, assim como toda  
a Catedral, essa “base” à construção da cúpula – correspondente à espessura do  
tambor conforme ilustrado na figura seguinte já estava finalizada e impossibilitada  
de expansão horizontal da sua estrutura.  
Figura 13 Simulação do início construtivo da cúpula da Catedral sobre seu tambor.  
Em azul: Tambor da Catedral  
Em verde: Simulação do início construtivo da cúpula por sobre o tambor  
Em vermelho: Espessura do tambor disponível à base da cúpula (aprox. 10m)  
Fonte: (Adaptado de WALKER, 2005, p. 190)  
Considerando-se a possibilidade do uso de pendentes, à exemplo de Santa  
Sofia (séc. VI) para fins de sustentação da cobertura, novamente o fato da Catedral de  
22  
Tambor: “Construção cilíndrica ou facetada, normalmente provida de janelas, que sustenta uma  
cúpula”. (CHING, 2010, p.71).  
23 Transepto: “Nave transversal que separa a nave principal do altar-mor, dando à planta uma forma de  
cruz”. (CORONA; LEMOS, 1972, p.455).  
Verinotio  
312 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
Santa Maria del Fiore já estar finalizada impossibilitava a utilização desse recurso na  
área do cruzeiro24; pois, analogamente ao caso anterior, a estrutura de Santa Maria  
limitava tal solução na medida da existência preliminar do tambor em forma octogonal  
e de toda a estrutura que o sustentava. Nesse sentido, a base da cobertura deveria,  
obrigatoriamente, se apoiar sobre esse tambor, o que excluía a possibilidade do uso  
de pendentes para seu suporte como no caso de Santa Sofia.  
Figura 14 Cruzeiro da Catedral sob a cúpula e o tambor octogonal.  
Fonte: (KING, 2013, p. 134-5)  
Considerando-se a solução adotada na Notre Dame de Paris (séc. XII a XIV) para  
a estabilização da cobertura a partir da utilização de arcobotantes e contrafortes, para  
além de todas as possíveis adversidades técnico-construtivas de se intervir  
estruturalmente em um edifício já construído com vistas à sustentação da sua futura  
cobertura a partir da inserção, a posteriori, de elementos construtivos em um tambor  
24 Cruzeiro: “Nas igrejas com duas naves que se cruzam, dá-se o nome de cruzeiro à zona compreendida  
pela projeção da abóbada que resulta nos transeptos. (CORONA; LEMOS, 1972, p.153).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 313  
nova fase  
 
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
já finalizado, tal solução romperia com a cultura construtiva italiana que  
tradicionalmente não recorria a esse recurso estrutural em contrapartida ao legado  
gótico e neogótico.  
Frente às restrições supracitadas, na medida que não poderiam ser adotadas  
as tradicionais técnicas para a construção da cobertura que solucionasse a demanda  
de Santa Maria del Fiore, Brunelleschi se viu diante da necessidade de formular uma  
solução inovadora e assim o fez.  
A solução técnica  
Estabelecido o desafio da cobertura de um vão octogonal irregular de  
aproximadamente 45 metros de diâmetro interno a 55 metros de altura em relação ao  
solo, Brunelleschi propôs a construção de uma cúpula com características inovadoras  
e inexistentes até então.  
A despeito de toda a tradição construtiva que até então projetava em sua  
maioria cúpulas em formas de semiesferas, diante do tambor octogonal frente ao qual  
Brunelleschi se deparava a semiesfera era impossível pois, à consequência dessa  
forma, sua base seria circular e, para além, a forma semiesférica preservaria o problema  
do grande empuxo lateral junto à base da cúpula.  
Para solucionar esse problema, Brunelleschi projetou quatro linhas diagonais  
que uniam cada um dos vértices do octógono ao seu lado oposto (AE, BF, CG, DH),  
conforme evidenciado na ilustração subsequente. Cada um desses segmentos, por sua  
vez, foi subdividido em 5 partes e, da primeira quinta parte de cada um deles, foi  
traçado um arco sob o qual a cúpula orientaria a sua forma.  
O perfil em quinto acuto /.../ é uma figura geométrica obtida quando  
o raio da curvatura nos arcos que se interceptam é igual a quatro  
quintos da dimensão do vão resultante. Em contraste, o raio de  
curvatura numa abóbada semicircular é apenas a metade do diâmetro,  
o que produz um perfil muito mais baixo e arredondado. (KING, 2013,  
p. 115).  
A imagem seguinte nos ajuda na compreensão desse processo. À esquerda  
temos um esquema que representa a base octogonal irregular do tambor de Santa  
Maria del Fiore, à direita o esquema geométrico da divisão em cinco partes de uma  
das suas diagonais principais25 a diagonal AE destacada em vermelho , e abaixo,  
25  
Diagonal principal: em geometria, “diagonal principal” ou “diagonal maior” é o nome usualmente  
utilizado para designar a diagonal de maior dimensão de uma figura.  
Verinotio  
314 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
destacado em azul, arcos traçados a partir da primeira quinta parte dos segmentos  
que ligam os lados opostos do octógono que se repetem em todos seus vértices.  
Figura 15 Esquema construtivo dos arcos.  
Fonte: (Adaptado de KING, 2013, p. 116)  
Desses arcos traçados a partir de 1/5 de cada um dos segmentos, no lugar de  
um semicírculo caso Brunelleschi utilizasse o centro geométrico da figura a forma  
resultante foi a de um arco de circunferência de maior raio que amenizava os efeitos  
da força de arremesso o empuxo lateral resultante do peso próprio da estrutura , o  
que minimizou, por consequência, a força de deformação horizontal a ser absorvida  
pela base octogonal do tambor de Santa Maria del Fiore.  
Além disso, certo de que esse recurso não seria suficiente para suportar as  
29.000 toneladas da cúpula, Brunelleschi projetou para a cobertura de Santa Maria  
del Fiore duas cúpulas, uma interna e outra externa, com um espaço vazio entre elas  
ao invés de uma massa única a cobrir o cruzeiro da Catedral.  
Em primeiro lugar, a cúpula acompanha a medida do quinto ponto nos  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 315  
nova fase  
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
ângulos de seu lado interno. Sua espessura no ponto de origem é de  
braccia26 (2,18m). Segue em forma piramidal (isto é, diminuindo  
em espessura) de forma que ao final, onde as oito seções se unem no  
oculus acima, a espessura é de 2½ braccia (1,45m).  
Será construída uma outra cúpula externa sobre essa para preservá-la  
da umidade e para que o resultado visual seja mais magnífico e  
imponente. Essa terá a espessura de 1¼ braccio (73cm) no ponto de  
origem, continuando de forma piramidal até o oculus, onde terá 2/3  
braccio (38cm).  
O espaço entre uma cúpula e outra é de 2 braccia (1,16m) na base.  
Nesse espaço não serão colocadas as escadas para que se tenha  
acesso a tudo que estiver entre as cúpulas. O referido espaço termina  
no oculus acima com uma largura de 2braccia (1,37m)27. (WALKER,  
2005, p. 169-170).  
A fim de estabilizar a estrutura como um todo, essas duas cúpulas mantinham-  
se unidas e intertravadas por cinturões de pedra e madeira denominados de anéis  
tensores, dispostos alternadamente ao longo da sua altura que “anulavam” as tensões  
laterais fruto do peso próprio da porção superior de cada um dos segmentos de tijolos  
da cúpula.  
Os anéis tensores projetados por Brunelleschi em pedra e madeira podem ser  
ilustrados segundo o esquema abaixo nas cores azul e vermelho respectivamente. À  
esquerda o esquema representativo da disposição dos anéis ao longo da altura da  
cúpula e à direita seus detalhes construtivos.  
Figura 16 Esquema de anéis tensores ao longo da altura da cúpula.  
Em azul: anéis tensores de  
pedra envolvidos por  
braçadeiras de ferro  
Em vermelho: anéis  
tensores de madeira  
Fonte: (Adaptado de CONTI, 2014, p. 5)  
26  
Considera-se que um braccio, forma singular de braccia, equivale a aproximadamente 58cm. Nesse  
caso, os valores adotados pelo autor na citação estão arredondados para mais. Os valores corretos  
seriam: 3¾ braccia = 2,175m; 2½ braccia = 1,45m; 1¼ braccio = 72,5cm; 2/3 braccio = 38,66cm;  
2 braccia = 1,16m e 2braccia = 135,33m.  
27 Texto original atribuído a Brunelleschi, apresentado em 30 de junho de 1420 pela Opera del Duomo  
como aprovação formal ao projeto da cúpula. (WALKER, 2005, p. 169).  
Verinotio  
316 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
O esquema nos ajuda a compreender que a cada altura intermediária entre os  
cinturões, as forças horizontais de deformação eram estabilizadas por cada um dos  
sucessivos anéis até o topo da cobertura.  
A imagem abaixo ilustra um desses anéis de pedra – “vigas” – que intertravam  
as duas cúpulas e estabilizam a estrutura. À esquerda, em detalhe, o anel tensor de  
pedra na parte interna da cúpula destacado em azul e, à direita, a sua projeção ao  
lado externo e aparente da construção destacado na mesma cor.  
Figura 17 Anel tensor de pedra em detalhe.  
Fonte: (Adaptado de WALKER, 2005, p. 190)  
À título de ilustração das forças operantes nesse processo, poderíamos pensar  
nos anéis tensores projetados por Brunelleschi analogamente às cintas de metal que  
envolvem os barris de madeira e não permitem que a força exercida pelo líquido em  
seu interior força lateral deforme a sua estrutura. Supondo os anéis tensores de  
pedra e madeira em paridade aos anéis de metal do barril tomado como analogia,  
poderíamos imaginar as forças operantes no processo da seguinte forma:  
Figura 18 Contenção das forças horizontais em um barril de madeira.  
Em cinza: força lateral interna ao  
barril procedente do líquido  
Em azul e vermelho: cintas de metal  
e as forças opostas ao empuxo  
lateral  
Fonte: (Arquivo pessoal: desenho do autor)  
A partir da solução de se estabilizar a estrutura por sucessivos anéis tensores  
até o seu topo, Brunelleschi pôde elevar a cúpula até a altura onde seria construída a  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 317  
nova fase  
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
lanterna, dispensando as tradicionais soluções inviáveis, já mencionadas, ao caso  
particular de Santa Maria del Fiore.  
Vale considerar que a construção da cúpula não contou com o sistema de  
suporte aos tijolos conhecido como cimbre28 de madeira – “escora” – que  
tradicionalmente suporta o peso de toda a estrutura durante a sua construção para  
sua posterior retirada como é comum ao processo construtivo de cúpulas e arcos, o  
qual permanece presente até os dias atuais.  
Figura 19 Exemplo de cimbre de madeira auxiliar à construção de arco.  
Fonte: (CHING, 2010, p.23)  
Mediante um engenhoso artifício de assentamento de tijolos, Brunelleschi  
conseguiu com que a cúpula suportasse seu peso próprio durante a construção se  
comportando como uma estrutura autoportante. O esquema de assentamento de  
tijolos utilizado em Santa Maria fruto das pesquisas de Brunelleschi em Roma é  
conhecido como “espinha de peixe”, segundo o qual, tijolos assentados no sentido  
horizontal são intercalados de tempos em tempos com tijolos assentados na vertical,  
fazendo com que o conjunto, de uma maneira simultânea, se estabilize e se  
intertrave29.  
28  
Cimbre: “Armação de madeira que serve de molde para a construção do arco ou da abóbada.”  
(CORONA; LEMOS, 1972, p. 129).  
29  
A descrição pormenorizada do processo de assentamento dos tijolos aparece no livro O domo de  
Brunelleschi. (KING, 2013). Segue parte do texto que permite sua compreensão essencial: “Os tijolos  
não eram simplesmente assentados em camadas horizontais: a intervalos regulares em ambas as cascas  
os anéis eram interrompidos por tijolos maiores colocados nas extremidades, isto é, em ângulo reto em  
relação às fileiras horizontais. Essa forma de assentamento em ângulo é a amarração em spinapesce  
(espinha de peixe) mencionada na emenda de 1426. Os tijolos verticais, cada qual abarcando quatro  
Verinotio  
318 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
A imagem seguinte ilustra esse sistema. À esquerda temos em destaque um  
esquema ilustrativo de assentamento dos tijolos e à direita uma simulação da cúpula  
como um todo.  
Figura 20 Assentamento de tijolos na cúpula.  
Fonte: (Adaptado de CONTI; CORAZZI, 2011, p.36)  
Embora não se relacione diretamente com o sistema estrutural adotado por  
Brunelleschi na construção da cúpula, vale mencionar sua engenhosidade na  
construção de máquinas que viabilizaram o resultado final do seu projeto. A elevação  
e assentamento de cargas sem a presença de cimbres de madeira que sustentassem a  
estrutura durante sua execução compunha mais um dos desafios a serem vencidos.  
Para solucionar esse problema, Brunelleschi desenvolveu uma grua movida por força  
animal capaz de elevar a carga necessária de materiais de construção à medida que a  
ou cinco anéis horizontais, subiam em fileiras diagonais até o topo da cúpula, formando um desenho  
em zigue-zague ou em forma de espinha de peixe. /.../ A razão dessa escolha está no comportamento  
estrutural específico dos arcos e abóbadas. A construção de uma cúpula segue o mesmo princípio da  
de um arco, no qual as pedras, como vimos, são mantidas em seus lugares por meio de pressões mútuas  
provocadas por seu próprio peso. Uma vez terminada a estrutura, cada pedra sofre uma compressão  
no sentido da circunferência, e, portanto, se torna autossustentável, como é o caso do arco. Mas o  
problema da construção das cúpulas decorre do fato de que esses anéis não podem ser construídos  
instantaneamente. É, portanto, necessária alguma forma de suporte temporário até que os anéis fiquem  
prontos, porque até que sejam fechados a tendência da alvenaria é evidentemente cair para dentro.  
Felippo usou os tijolos em espinha de peixe com o objetivo de contrabalançar essa tendência. Os tijolos  
colocados em pé nas fileiras horizontais serviam para produzir o que um dos capomaestri da catedral,  
Giovanni Battista Nelli, ao supervisionar a cúpula duzentos anos mais tarde, chamou de morse, ou  
“grampos”. /.../ A cada 90 centímetros, aproximadamente, esses tijolos verticais interrompiam as  
camadas horizontais, subdividindo cada nova camada em seções mais curtas com o comprimento  
aproximadamente de cerca de cinco tijolos. Durante a construção as seções eram ligadas por meio dos  
tijolos verticais a várias camadas já terminadas abaixo. Isto é, cada fileira de cinco tijolos era formada  
pelos tijolos verticais nas duas extremidades. Esses últimos agiam como suportes de livros, ligando a  
nova camada às inferiores, já terminadas e autossustentadas. As fileiras incompletas de tijolos ficavam,  
portanto, mantidas em seu lugar não por meio de um suporte externo (como seria o caso das escoras  
de madeira) e sim pela pressão aplicada de ambos os lados. Mesmo antes que o anel estivesse  
terminado e a argamassa secasse, as seções mais curtas de tijolos se transformavam em arcos  
horizontais autossustentados capazes de suportar o empuxo para dentro exercido pela gravidade. O  
modelo em espinha de peixe é, portanto, essencial à estrutura da cúpula, um sistema engenhoso usado  
por Felippo como parte da sua técnica de abandonar os complexos suportes.” (KING, 2013, p. 129-31).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 319  
nova fase  
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
30  
cúpula ganhava altura. A ela foi dada o nome de grua Castello .  
Um animal de carga em geral um boi ou uma parelha de bois fazia  
girar um eixo vertical com grandes engrenagens circulares em cima e  
embaixo. Uma dessas engrenagens se articulava com um grande  
tambor horizontal; dependendo da engrenagem à qual estivesse  
conectado, o tambor girava no sentido horário ou no sentido  
contrário. O operador da máquina escolheria a engrenagem a  
conectar-se com o tambor movimentando a alavanca, numa operação  
semelhante à de um diferencial em um carro moderno, podendo ir  
“para frente” ou “para trás” (isto é, erguendo ou baixando a carga)  
enquanto a fonte de energia, os bois, continuava a mover-se no  
mesmo sentido. (WALKER, 2005, p. 175).  
Assim como não existem desenhos que registrem o projeto da cúpula bem  
como o seu processo construtivo, os desenhos das máquinas desenvolvidas por  
Brunelleschi para tanto também não foram preservados. Entretanto, admirado pela  
sofisticação do projeto desse mecanismo, Leonardo da Vinci (1452-1519), que a esse  
tempo trabalhou na oficina onde foi construído o orbe de bronze que ornamenta o  
ponto mais alto da lanterna da Catedral de Santa Maria de Fiore, fez os registros desse  
equipamento de carga. (WALKER, 2005, p.175). Na figura seguinte podemos observar  
o desenho realizado por Leonardo da Vinci dessa máquina.  
Figura 21 Desenho de Leonardo da Vinci da grua Castello.  
30 Os detalhes específicos do funcionamento da grua estão no livro A disputa que mudou a Renascença.  
(WALKER, 2005, p. 175-6).  
Verinotio  
320 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
Na medida que inexistem registros do processo construtivo da cúpula, bem  
como os desenhos do seu projeto foram descartados por Brunelleschi, divergências  
teóricas acerca dos procedimentos de fato realizados nas suas etapas construtivas são  
levantadas na contemporaneidade por estudiosos do tema. Teóricos como Massimo  
Ricci31 primeira hipótese , Rowland Mainstone e Salvatore di Pasquale32 segunda  
hipótese e Andrea Chiarugi33 terceira hipótese divergem pontualmente acerca  
dos métodos utilizados. Contudo, as três hipóteses construtivas defendidas por esses  
autores são admitidas de uma forma geral e se destacam como proposições possíveis  
e viáveis a partir dos recursos disponíveis à época.  
O primeiro deles, Massimo Ricci, defende que cordas guia afixadas em um  
gabarito na altura da base da cúpula uniam as quatro diagonais do octógono AE,  
BF, CG e DH34 e orientavam, a partir da primeira quinta parte de cada um desses  
segmentos, os arcos por sobre os quais os tijolos seriam assentados ao longo da altura  
a ser vencida. A sequência de imagens abaixo ilustra essa teoria.  
Figura 22 Teoria de Massimo Ricci.  
Fonte: (Adaptado de CONTI; CORAZZI, 2011, p. 173)  
A segunda teoria, apresentada por Rowland Mainstone e Salvatore di Pasquale,  
defende que um eixo vertical seria afixado no centro geométrico do octógono junto a  
sua base, estabelecendo o centro de revolução de cordas que girariam a partir desse  
eixo e orientariam a posição de assentamento dos tijolos e, gradativamente, à medida  
que a cúpula ganhasse em altura, esses círculos concêntricos traçados a partir do eixo  
vertical seriam cada vez menores até alcançar a altura total a ser vencida. A sequência  
de imagens abaixo ilustra essa teoria.  
31  
Para tanto ver Il genio di Filippo Brunelleschi e la costruzione della cupola di Santa Maria del Fiore.  
(RICCI, 2004).  
32 Para tanto ver Il segreto della cupola del Brunelleschi a Firenze. (CORAZZI, 2011).  
33 Para tanto ver Scritti scelti. (CHIARUGI, 2002).  
34 A nomenclatura dos segmentos de reta é a mesma adotada na explicação da Figura 15, representativa  
do esquema construtivo dos arcos.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 321  
nova fase  
       
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
Figura 23 Teoria de Rowland Mainstone e Salvatore di Pasquale  
Fonte: (Adaptado de CONTI; CORAZZI, 2011, p. 173)  
A terceira teoria, apresentada por Andrea Chiarugi, conjuga as duas  
proposições anteriores e defende que o arco destinado ao assentamento dos tijolos  
primeira teoria , seria traçado não a partir de um ponto fixo na base do octógono  
posicionado na primeira quinta parte de cada um dos segmentos diagonais como no  
primeiro caso; mas sim, a partir do eixo vertical disposto no centro geométrico do  
octógono segunda teoria que serviria de guia aos arcos cada vez menores que se  
elevariam até a altura desejada da cúpula. A sequência de imagens abaixo ilustra essa  
hipótese.  
Figura 24 Teoria de Andrea Chiarugi.  
Fonte: (Adaptado de CONTI; CORAZZI, 2011, p. 173)  
Salvo as divergências teóricas apresentadas acerca do processo de construção  
da cúpula, o que de fato deve-se levar em conta é que todo o esforço no estudo e  
compreensão do projeto e do seu processo de construção denota a grandiosidade de  
pensamento e a genialidade de Brunelleschi em um momento da história em que se  
exaltavam as potencialidades humanas; o período do Renascimento das Artes.  
A dimensão estética  
Finalizada a construção da cúpula em 1434 Cinquecento , seu resultado  
pode ser considerado um ícone do período em que o Renascimento das Artes já havia  
tomado a Europa. A relevância construtiva da cúpula pode ser evidenciada na sua  
Verinotio  
322 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
cerimônia de consagração35 realizada dois anos após seu término construtivo.  
em 30 de agosto, cinco meses depois da consagração da catedral  
[Santa Maria del Fiore] pelo Papa Eugênio, a cúpula propriamente dita  
foi também consagrada 16 anos e duas semanas desde que as  
obras tinham sido iniciadas. Essa cerimônia foi realizada às nove horas  
da manhã pelo bispo de Fiesole, que subiu ao cimo da cúpula para  
colocar a última pedra. Trombetas e pífaros soaram, os sinos das  
igrejas badalaram e os telhados dos prédios vizinhos estavam repletos  
de espectadores. Em seguida os capomaestri e os dirigentes da Opera  
desceram da cúpula e se serviram de uma refeição de pão, vinho,  
carne, frutas, queijo e macarrão. A parte principal da imensa tarefa  
estava terminada. O povo de Florença finalmente recebia a cúpula com  
a qual havia sonhado durante mais de setenta anos e Filippo  
conseguira levar a cabo uma façanha de engenharia cuja ousadia  
estrutural não tinha paralelo. Contra enormes riscos ele realizara tudo  
o que esperara realizar desde os tempos de criança, quando passava  
pela catedral ainda sem a cúpula e observava os guinchos gemerem  
sob o peso das pedras. Ao ver a nova cúpula flutuando por sobre a  
cidade ele deve ter-se sentido dominado pela sensação de haver  
igualado, e até mesmo suplantado, os romanos cujas obras estudara  
e admirara. Mais do que isso, deve ter sentido que tudo o que sofrera  
durante as duas décadas anteriores ridicularização, rivalidades e  
intrigas de seus inimigos desaparecia diante da magnitude de seus  
feitos. (KING, 2013, p. 186).  
Nesse período, o Renascimento, as ideias de um homem racional frente as  
legalidades naturais e sociais orientaram o gradual abandono de determinações  
dogmáticas e místicas que imperaram na Idade Média e deram lugar ao entendimento  
do homem e das suas capacidades como questões centrais.  
Algo aconteceu em Florença seiscentos anos atrás, algo tão especial  
e miraculoso que transformou nosso mundo para sempre. Damos-lhe  
o nome de Renascimento, um novo renascimento da arte e do saber  
antigo. Porém, ali se deu mais do que um renascimento ou uma  
redescoberta de antigos segredos; foi o verdadeiro nascimento, o  
início de uma consciência moderna, de uma forma moderna de ver e  
representar o mundo ao nosso redor. Foi quando o artista passou a  
ter definido o seu papel social. (WALKER, 2005, p. 11).  
Brunelleschi foi capaz de compreender esse momento em que os homens se  
reconheciam, em suas potencialidades infinitas, como o centro das discussões e  
traduzir a atmosfera humanista que nascia com o Renascimento em uma forma objetiva  
mediante uma solução técnica revolucionária à época, bem como conseguiu, para além  
de captar as determinações sociais de um tempo, evidenciar com seu projeto a  
relevância de Santa Maria del Fiore e de Florença ao Estado toscano.  
35  
A descrição pormenorizada da cerimônia de consagração da cúpula de Santa Maria del Fiore pode  
ser encontrada no Capítulo 16 do livro O Domo de Brunelleschi. (KING, 2013, p. 183-186).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 323  
nova fase  
 
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
Desde o início, a construção [de Santa Maria del Fiore] estava  
relacionada tanto com o orgulho cívico quanto com a fé religiosa; o  
governo de Florença havia estipulado que a igreja teria a maior  
opulência e magnificência possíveis, e uma vez terminada deveria ser  
“um templo mais belo e ilustre que qualquer outro em qualquer parte  
da Toscana”. (KING, 2013, p. 16).  
Nesse sentido, a cúpula traduz em forma construída o “novo homem”, a nova  
potência humana que despontou à época, e confere à Catedral o sentido esperado  
pelos seus habitantes. Incorpora determinações da ordem social estabelecidas  
coletivamente que alteram qualitativamente a relação do homem com o espaço,  
conferindo sentido propriamente humano a ele. Diz Alberti em seu livro Da Pintura36  
acerca da atmosfera criada em torno da construção e da relevância do projeto da  
cúpula de Brunelleschi:  
Que homem, por mais duro de coração ou invejoso, não louvaria o  
arquiteto Pippo ao ver essa imensa construção que se ergue acima  
dos céus37, suficientemente vasta para cobrir toda a população da  
Toscana com sua sombra, e feita sem a ajuda de traves ou complexos  
suportes de madeira? (Alberti, apud King, 2013, p. 137).  
Vale considerar que, segundo Brunelleschi, as estruturas temporárias as  
“escoras” – limitariam a exuberância formal da cúpula impedindo o resultado final  
planejado por ele na medida que impossibilitariam que ao seu projeto estivesse  
incorporada a dimensão sensível-suprassensível38; sua existência “acima dos céus” de  
Florença. Além disso, problemas relacionados a matéria-prima, transporte, orçamento,  
36 O texto original está presente no livro Da Pintura. Para tanto ver (ALBERTI, 1999, p.72).  
37  
A expressão “acima dos céus” merece destaque na fala de Alberti. Para tanto, vejamos as  
considerações de Argan: “Falar de céus, em vez de céu, era, para um literato leitor de Dante, como  
Alberti, mais do que natural; contudo, isso não exclui o fato de que, no plural, céus compreenda, senão  
propriamente as esferas da escolástica, o céu físico e o céu metafísico. Uma vez que esse último não  
tem limites, erguer-se acima dele, delinear um limite visível para o infinito, significa compreendê-lo,  
defini-lo, representá-lo e já que o céu metafísico compreendia o físico, representar o espaço em sua  
totalidade.” (ARGAN, 2005, p. 96).  
38  
A expressão “sensível-suprassensível” é utilizada por Marx ao tratar a dimensão fetichizada da  
mercadoria no ítem 4 do primeiro capítulo do livro I d`O Capital (MARX, 2017, 146-158). Referindo-se  
ao exemplo de uma mesa, Marx identifica que a objetividade das relações sociais passa a agir como  
forças objetivas que conduzem o desdobramento da sociedade. As relações criam uma forma objetiva  
de objetividade social que passa a dominar a vida dos indivíduos. Diz Marx: “É evidente que o homem,  
por meio de sua atividade, altera as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. Por  
exemplo, a forma da madeira é alterada quando dela se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua  
sendo madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo aparece como mercadoria, ela se transforma  
numa coisa sensível-suprassensível. Ela não só se mantém com os pés no chão, mas põe-se de cabeça  
para baixo diante de todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que  
nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria”. (MARX, 2017, p.  
146 grifo nosso). Entretanto, no nosso caso fazemos referência tão somente a terminologia sensível-  
suprassensível e não ao conceito marxiano. Na arte não devemos estabelecer tal associação, pois nela  
não se trata de uma força social dominadora, determinante das tendências sociais históricas, mas sim  
de uma forma de apreensão da realidade na qual se captura os elementos da subjetividade na relação  
com a objetividade histórico-social do homem.  
Verinotio  
324 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
etc. foram considerados. Dada a dimensão da cúpula, toda a carga de insumos e  
mobilização de mão de obra necessários à construção do domo encontrava um  
obstáculo relevante ao seu sucesso.  
A construção de uma escora de madeira para a cúpula de Santa Maria  
del Fiore parecia, portanto ser essencial. Mas seu projeto apresentava  
grandes dificuldades para os dirigentes da Opera, tanto do ponto de  
vista técnico quanto do financeiro, sobretudo porque esse suporte, tal  
como a própria cúpula, tinha de ter dimensões sem precedentes. Era  
preciso encontrar uma grande quantidade de árvores para fornecer o  
madeirame. (KING, 2013, p.58).  
Nesse sentido, segundo o entendimento do seu arquiteto idealizador, as  
escoras seriam um recurso desacertado ao processo de construção da cúpula, tanto  
no sentido técnico-construtivo frente as possibilidades e limitações existentes para sua  
realização quanto no sentido propriamente estético da obra39.  
Na verdade, Brunelleschi queria construir sem armações não para dar  
mostras da sua habilidade, mas porque a construção com elas tê-lo-  
ia impedido de erguer sua estrutura “acima dos céus”, de fazer dela  
uma representação finita do espaço físico, de estabelecer a relação  
urbanística e, ao mesmo tempo, alegórica ou simbólica, Florença-  
céu. Em suma, para ele, as armações eram um erro metodológico a  
ser evitado. (ARGAN, 2005, p. 98).  
Brunelleschi pretendia que a estrutura e os recursos técnico-construtivos se  
integrassem de maneira orgânica à unidade formal arquitetônica, e não que operassem  
como apêndice a ela. Segundo seu entendimento, a resposta técnica e os  
procedimentos estruturais necessários ao sucesso da construção deveriam  
“desaparecer”; precisavam estar incorporados tacitamente ao resultado construtivo.  
Brunelleschi, parece dizer Alberti, não jogou fora as estruturas que  
“ajudavam” a construção em sua execução e, assim, a estrutura, que  
era um meio, um fator funcional, identificou-se com a construção /.../  
A estrutura da cúpula, todavia, é manifestamente uma estrutura não  
apenas portante, mas perspéctica ou representativa, cujas nervuras  
convergem para um ponto. Esse ponto é representativo do infinito, de  
modo que a estrutura arquitetônica é a própria estrutura do espaço.  
(Alberti, apud Argan, 2005, p. 97).  
Lukács em sua Estética se manifesta em acordo ao entendimento de Alberti.  
Vejamos:  
a estática, já feita visual, da construção arquitetônica criadora de  
39 Convém destacar que a fundamentação teórica acerca da dimensão estética de uma obra arquitetônica  
não se detém na existência ou inexistência de armações ou estruturas temporárias à sua execução. Tal  
tema só foi apresentado na medida que aparece especificamente mencionado no processo construtivo  
sobre o qual lançamos análise.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 325  
nova fase  
 
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
espaço, expressa o nível alcançado no domínio das forças naturais  
com o orgulho de uma vitória definitiva e eternizada. O já superado  
desaparece sem deixar marcas, e nada aponta, por outra parte, a um  
desdobramento. Certo que na criação do nível conformado se  
encontram implicitamente contidos o passado e o futuro, porém só  
objetivamente; somente em-si; apesar disso, a conformação mesma é  
uma fixação definitiva do que foi recentemente conquistado. (LUKÁCS,  
1966d, p. 122 grifo nosso).  
Em complemento, Lukács destaca que a ênfase, o elo tônico, orientador da  
conformação do espaço no interior do complexo categorial da arquitetura deve ser  
atribuída à dimensão estética e não à sua dimensão técnica40. A dimensão científico-  
tecnológica a primeira mimese apesar de ser indispensável e criadora do campo  
de possíveis a forma objetiva da arquitetura, é, nas palavras de Lukács, tão somente o  
“veículo para cumprir a tarefa social” (LUKÁCS, 1966d, p. 131) atribuída a essa  
objetividade e não o momento preponderante41 determinante da sua unidade formal.  
o domínio científico-tecnológico das forças naturais dá sem dúvida,  
em sua mimese visualizada, a base vivencial geral da criação de um  
espaço arquitetônico, porém, apesar disso, não é mais que um veículo  
40  
Lukács apresenta duras críticas em sua Estética a esse respeito. Podemos considerar, em especial,  
sua crítica ao tratamento dado pela Bauhaus à dimensão estética da arquitetura ao ignorar os conteúdos  
específicos que compõem a unidade formal arquitetônica, considerando os resultados técnicos da  
construção como se estético fossem. Diz Lukács: “O erro teórico e prático de muitas concepções  
modernas (por exemplo, da [concepção] dos membros da Bauhaus), carregado de consequências para  
o desenvolvimento da arquitetura, consiste precisamente em entender a construção objetivo-tecnológica  
da obra (quando é alcançada como tal) como algo imediatamente estético.” (LUKÁCS, 1966d, p. 105).  
41  
Para entendimento do termo “momento preponderante”, poderíamos lançar mão dos conceitos  
desenvolvidos por Lukács no livro Para uma ontologia do ser social II, e da definição especificamente  
apresentada por Chasin no livro Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. Em referência ao  
ser social Lukács diz que no interior de um complexo unitário compreende-se a prioridade ontológica  
– o “ser do corpo” – e o momento preponderante – o “ser da consciência” – na sua determinação do  
homem. Diz o autor: “trata-se de uma insuprimível unidade ontológica objetiva, na qual é impossível o  
ser da consciência sem o ser simultâneo do corpo. Ontologicamente se pode dizer que é possível a  
existência de um corpo sem consciência quando, por exemplo, em consequência de uma doença, ele  
deixa de funcionar, ao passo que uma consciência sem base biológica não pode existir. Isso não  
contradiz o papel autônomo dirigente e planificador da consciência com relação ao corpo; pelo  
contrário, é o seu fundamento ontológico.” (LUKÁCS, 2013, p. 131). Analogamente, poderíamos  
considerar que a compreensão da dimensão estética do espaço no interior do complexo da arquitetura  
também remete a essa concepção. Nesse caso, trata-se de uma unidade contraditória entre polos do  
reflexo componentes da forma arquitetônica cuja base necessária é a primeira mimese ou seja, a sua  
prioridade ontológica como condição de possibilidade à dação de forma que remete ao conteúdo  
estético em arquitetura ou seja, o momento preponderante ; o elo tônico que orienta a dação de  
forma propriamente humana ao espaço no interior do complexo arquitetônico. Ainda que não se refira  
especificamente ao complexo estético, sob o mesmo entendimento de Lukács (2013) acerca do  
“momento preponderante”, assim Chasin o define: “Em termos bem sintéticos, o momento  
preponderante tem por identidade a condição de elo tônico no complexo articulado das abstrações  
razoáveis, ou seja, é o outro nome da categoria estruturante do todo concreto, e por isso também da  
totalidade ideal, uma abstração razoável que se destaca, sobredeterminando as demais com seu peso  
ordenador específico. Como tal, sua correta identificação equivale à face macroscópica da delimitação  
ou diferenciação por intensificação ontológica, sendo o mesmo para o conjunto da própria articulação,  
pois vertebra o processo de síntese, isto é, a constituição do todo de pensamentos que se realiza pela  
reprodução ou apropriação da totalidade concreta.” (CHASIN, 2009, p. 135).  
Verinotio  
326 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
para cumprir a tarefa social, transformada por sua vez em favor de  
uma determinada evocação. (LUKÁCS, 1966d, p. 131).  
O acento concedido a segunda mimese nos leva a crer que a missão de  
Brunelleschi não se limitava ao resultado útil e a solução tecnicamente esperada de se  
cobrir o vão da Catedral. Se assim o fosse, o problema não se estenderia por mais de  
um século como se estendeu. Era necessário ao término da obra de Santa Maria del  
Fiore uma solução alinhada, primeiramente, a magnitude da construção original ao  
projeto de Arnolfo di Cambio , em segundo lugar, à importância da cidade de  
Florença enquanto centro do Estado toscano e, em terceiro lugar, à representatividade  
da nova dimensão humana que surgia na Itália do Renascimento.  
À parte os cálculos estáticos, Brunelleschi não parece ter-se  
preocupado em demasia com terminar de maneira harmoniosa, com  
uma cobertura adequada, a construção existente. Preferiu sobrepor a  
ela a sua grande máquina espacial, que visualizava ao mesmo tempo  
uma nova concepção do espaço e uma nova tecnologia, como se fosse  
uma demonstração gigante de uma nova realidade política, cultural,  
social. (ARGAN, 2005, p. 99).  
O que poderia parecer, à primeira vista, uma mera solução técnica a um  
problema posto a cobertura de um vão , em verdade traduziu, em matéria, o  
momento histórico do Renascimento de maneira muito mais complexa; a nova  
dimensão cultural que surgia e as pretensões do homem desse período. Para além, a  
cúpula em particular e a Catedral como um todo passaram manifestar o poder político-  
econômico de Florença e sua emergente potência enquanto núcleo da Toscana.  
a abóbada de Brunelleschi é agora o centro ideal, o botão da flor da  
qual a cidade toma o nome, assim como é percebido nas primeiras  
vistas do século XV. Mas sua contribuição já tem agora um valor  
universal: é a proposta de um novo sistema cultural, que irá  
transformar, no mundo inteiro, a teoria e a prática do trabalho artístico  
nos quatro séculos seguintes. (BENEVOLO, 2019, p.441).  
A competência técnico-construtiva de Brunelleschi possibilitou a solução de um  
problema que afligia Santa Maria del Fiore há mais de um século por meio de uma  
forma construtiva inusitada e “impossível” à época, que traduziu, em matéria, as  
potencialidades historicamente determinadas daquele povo no momento em que  
Florença era considerada o centro de atenção do Renascimento italiano. Em outras  
palavras, a cúpula a dimensão sensível da construção enquanto uma resposta útil  
a uma necessidade prática assume os resultados concretos da primeira mimese  
arquitetônica as soluções científico-tecnológicas a demandas sociais: o duplo reflexo  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 327  
nova fase  
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
desantropomorfizador e supera (Aufhebung42) esses resultados, incorporando a  
dimensão suprassensível as determinações da ordem social à mera materialidade  
construída na medida que consubstancia esse conteúdo em uma forma  
intencionalmente criada pelo homem.  
Nesse ponto a cúpula se destaca e eleva Santa Maria del Fiore a representante  
da importância assumida por Florença naquele século Cinquecento e do homem  
como centro desse movimento.  
A população da cidade chegava a 50 mil pessoas, aproximadamente  
a mesma de Londres e a intenção da nova catedral era refletir a  
importância da grande e poderosa urbe comercial. Florença se tornara  
uma das cidades mais prósperas da Europa. /.../ Devido a essa  
prosperidade, Florença experimentara durante o século XIV um surto  
de construções sem paralelo na Itália desde os tempos dos antigos  
romanos. /.../ Entre essas havia igrejas, monastérios e palácios  
particulares, assim como estruturas monumentais, como um novo anel  
de muralhas defensivas para proteger a cidade dos invasores. /.../ Foi  
erguido também um novo e imponente palácio de governo, o Palazzo  
Vecchio, que ostentava uma torre sineira de mais de cem metros de  
altura. (KING, 2013, p. 14-5).  
Aqui a construção se manifesta em sua peculiaridade estética segundo Lukács.  
A cúpula expressa uma potência humana que se realiza em matéria. Traduz em sua  
forma objetiva sensível a dimensão sensível-suprassensível de uma legalidade  
social; a magnitude e importância de Florença àquela região e o sentimento do  
42 A “superação” (Aufhebung), está na base do conceito de dialética hegeliana e pressupõe a noção de  
que está no movimento a condição de dinamismo em que cada etapa não é somente cancelada, mas é  
também preservada e elevada a um patamar superior. Ou seja, para cada etapa em relação a outra a  
essência permanece preservada, apesar do necessário momento de cancelamento e elevação a outro  
nível. Hegel ilustra esse conceito no Prefácio da Fenomenologia do Espírito com o exemplo da rosa que  
enquanto botão necessariamente desaparece no desabrochar da flor, até mesmo o nega, da mesma  
maneira que o fruto se faz parecer como a verdade no lugar da flor. Diz Hegel: “O botão desaparece no  
desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer  
um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se  
distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua  
natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são  
igualmente necessários. E essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo.” (HEGEL,  
1992, p. 22). Vale considerar que embora a categoria da superação utilizada por Lukács no reflexo  
estético mantenha relação direta com a categoria hegeliana, para ele, Lukács, a arte mantém sua  
objetividade independentemente da apreensão por parte da consciência. Contém na forma o conteúdo  
e, precisamente por isso, pode trazer em si a memória do desdobramento da autoconsciência da  
humanidade. Já em Hegel, diferentemente de Lukács, a superação implica a dissolução da objetividade.  
A objetividade é tão somente um momento necessário da passagem da consciência à autoconsciência;  
nesse sentido ela é dissolvida no instante em que o saber se torna absoluto. Em Nota de Revisão da  
versão em língua portuguesa do primeiro volume da Estética (LUKÁCS, 2023), assim Fortes se manifesta  
acerca do termo: “Aufhebung foi traduzido por “superação”, evitando o uso, comum entre os hegelianos,  
do neologismo “suprassunção”. Essa opção traria problemas, pois significaria hegelianizar o  
pensamento de Lukács, forçando uma aproximação exagerada, conferindo a seu pensamento a  
atmosfera de desdobramentos diretos das reflexões de Hegel.” (FORTES, 2023, p. 139).  
Verinotio  
328 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
despertar de um novo homem o homem do Renascimento , infinito em suas  
potencialidades infinitas. Na cúpula do Duomo de Florença está presente, para além  
de uma solução técnica, embora alicerçada sobre ela, a dimensão estética arquitetônica  
que expressa, na forma criada intencionalmente pelo arquiteto, a autoconsciência do  
gênero humano.  
Na forma da cúpula estão consubstanciadas, primeira e primariamente, as forças  
produtivas de um tempo as soluções científico-tecnológicas; primeira mimese , bem  
como as tendências sociais postas pelo homem do Renascimento das Artes no séc. XV  
na Europa. Nesse sentido, o domo da Catedral consubstancia, em sua forma, o sentido  
efervescente da Florença daquele século, o sentimento do novo homem do  
Renascimento e a nova potência humana que surge nesse período. Ou seja, o novo  
enquanto forma arquitetônica, expressa o novo enquanto transformação do ser social43  
daquele tempo, fazendo com que Santa Maria del Fiore assuma na paisagem local  
florentina a significância equivalente ao poder que ela incorpora e simultaneamente  
manifesta em sua objetividade.  
A cúpula de Santa Maria del Fiore é a excepcional e célebre obra que  
concluiu o ciclo das grandes obras públicas medievais e inaugura o  
período da nova arquitetura. Essa grande estrutura completa o edifício  
fundado por Arnolfo em fins do século XIII e se torna o centro visível  
de toda a cidade. Nas vistas panorâmicas do século XV, Florença  
parece semelhante à flor da qual toma o nome; o último cinturão de  
muralhas, simplificado em forma circular, é a corola; a cúpula é o botão  
central. Brunelleschi inventa o sistema construtivo para realizá-la e  
determina a forma externa simples e grandiosa, apta à sua função  
paisagística.  
A cúpula, na verdade, é uma abóbada em pavilhão octogonal, que  
revela a orientação da igreja abaixo (duas faces são paralelas e duas  
são perpendiculares ao comprimento do edifício; as outras quatro tem  
uma inclinação de 45); os oito gomos da abóbada são revestidos de  
telhas de terracota vermelha e os oito espigões são marcados por oito  
grandes arestas de mármore branco. A gaiola formada por esses  
elementos se vê claramente a muitos quilômetros de distância,  
quando a igreja e o resto da cidade se tornam manchas confusas;  
assim, essa figura geométrica elementar se destaca no céu e orienta  
todo o espaço da cidade e do território do entorno. (BENEVOLO,  
2019, p. 476 grifo nosso).  
43  
A terminologia “ser social geral de um período” utilizada por Lukács pode ser entendida como o  
conjunto de capacidades, atributos, conflitos que foram as tendências do complexo geral da formação  
das subjetividades em dada época.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 329  
nova fase  
 
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
Figura 25 Santa Maria del Fiore em meio a paisagem de Florença.  
Fonte: (Adaptado de BENEVOLO, 2019, p. 477)  
A Catedral e sua inserção na paisagem revelam a relevância de Florença e seu  
reconhecimento como centro do Estado toscano; expressam seu poder político e a  
nova realidade social que se impunham. Santa Maria del Fiore e Florença tornam-se o  
símbolo de um espaço social e “superam” as dimensões sensíveis, tanto da sua  
materialidade no âmbito construtivo quanto da sua municipalidade no âmbito  
geográfico, respectivamente.  
Centro visível e símbolo de um espaço geográfico-social, a cúpula de  
Santa Maria del Fiore é significativa não apenas para a cidade  
propriamente dita, mas também para aquilo que hoje chamamos de  
território, do qual Alberti, dará uma definição urbanística como regio44,  
zona muito mais extensa do que a área da cidade uma entidade que  
poderíamos dizer geopolítica, porque é toda a extensão em que se  
faz sentir a influência política e econômica do núcleo urbano, a ação  
do Estado. (ARGAN, 2005, p. 102).  
44 O conceito de regio estabelecido por Alberti pode ser encontrado em seu livro Da Arte de Construir,  
(De Re Aedificatoria, 1452), no qual discute princípios arquitetônicos e urbanísticos. (ALBERTI, 2012).  
Verinotio  
330 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
Figura 26 Vista de Florença conhecida como Veduta della Catena.  
Fonte: (Adaptado de BENEVOLO, 2019, p. 442-43)  
Nesse mesmo sentido complementa Argan acerca da significância assumida  
pela construção e sua relevância social:  
É tão ampla [Santa Maria del Fiore] a ponto de cobrir não apenas o  
povo da cidade, mas todos os povos toscanos; portanto, não é mais  
a imagem simbólica da municipalidade florentina, mas da cidade-  
capital, cujo poder se estende além dos muros, a todo o território do  
Estado. O espaço em que se instala tem, de fato, como horizonte, as  
colinas além das quais estão as cidades menores, os países sujeitados.  
Sua sombra é protetora, não no sentido de uma defesa material, mas  
no sentido da autoridade que paira e tutela do alto. (ARGAN, 2005,  
p. 111).  
A forma o espaço criado revela diretamente na vivencialidade de um espaço  
real, as conquistas materiais e as potencialidades humanas engendradas em dado  
momento histórico da formação do ser social: a autoconsciência do gênero humano.  
Nessa vivencialidade, peculiar ao complexo categorial da arquitetura, o homem  
entra em contato direto, imersivo, com essa potência humana universal; o que os  
homens foram capazes de produzir dentro das suas possibilidades objetivas e  
subjetivas em determinado tempo histórico sem que haja uma objetividade estética  
exclusivamente criada a esse fim; que medeie a evocação.  
só ela [a arquitetura] é capaz de revelar diretamente o ser social geral  
de um período, as determinações sociais impostas na vida através de  
múltiplas mediações dos fatos, as ideias etc., dos indivíduos, como  
uma evocação imediata, sensível e significativa. O sentido social que  
penetra toda arte, ainda que seja muito mediado, aparece aqui com  
toda pureza. (LUKÁCS, 1966d, p. 122).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 331  
nova fase  
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
Nesse processo, diante da mera particularidade (Partikularität45) de cada  
indivíduo revelam-se as grandes questões de uma época e a potência humana em seu  
conjunto.  
No interior do complexo arquitetônico, mediante uma forma construtiva, a cada  
singularidade é possibilitada a tomada de consciência de si mesmo frente a  
grandiosidade do que o homem, em seu conjunto, foi capaz de conceber em  
determinado momento histórico. O homem é alçado ao “ser social geral de um  
período” (LUKÁCS, 1966d, p. 122) – sua dimensão universal (Besonderheit) e nesse  
contexto se vê diante da possibilidade de viver em alinhamento ao máximo da potência  
humana de um tempo.  
Quando se compreende o que a cúpula representa, torna-se possível saber das  
capacidades dos homens do Renascimento das Artes, quais eram as grandes questões  
dessa época, seu pensamento de mundo e suas competências técnicas construtivas  
para solucionar determinadas demandas, sejam elas de natureza técnica ou social.  
Nesse sentido, nas construções que se manifestam esteticamente está cristalizado, em  
sua forma, o que determinadas sociedades são, e foram, historicamente; a unidade  
formal arquitetônica traduz a história dos homens e das civilizações; reflete a  
autoconsciência humana. A arquitetura nesse contexto manifesta-se enquanto arte.  
Referências Bibliográficas  
ALBERTI, Leon Battista. Da arte de construir. 1. ed. São Paulo: Hedra, 2012.  
______. Da pintura. 2. ed. Campinas: Ed. UNICAMP, 1999.  
ARGAN, Giulio C. História da arte como história da cidade. Trad. Pier Luigi Cabra. 5.  
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.  
BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. 7.ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2019.  
CHASIN, José. Estatuto ontológico e resolução metodológica. 1.ed. São Paulo:  
Boitempo, 2009.  
CHIARUGI, Andrea. Scritti scelti. Florença: Polistampa, 2002.  
45  
Para Lukács, a particularidade é o singular que contém em si o universal. Nesse sentido a obra de  
arte é sempre a representação singular de factualidades singulares que contém em si a  
universalidade ao representar aspectos essenciais atinentes ao desdobramento da autoconsciência do  
gênero humano. As categorias filosóficas do singular, universal e particular aparecem especificamente  
desenvolvidas no Capítulo 12 da Estética lukácsiana. (LUKÁCS, 1966a, p.199-275). Para além, o próprio  
Lukács nesse capítulo remete à discussão detalhada do assunto presente no livro Introdução a uma  
Estética Marxista: sobre a categoria da particularidade (LUKÁCS, 1978) nos capítulos 1 a 4. Em Nota de  
Revisão da versão em língua portuguesa do primeiro volume da Estética (LUKÁCS, 2023), assim Fortes  
as define: “Ambas correspondem ao termo “particularidade” no português. Porém, Lukács as utiliza em  
sentido distinto. Besonderheit corresponde à categoria da tríade frequente na tradição filosófica  
“universalidade, particularidade e singularidade”, enquanto Partikularität possui o sentido de parte, de  
delimitado, ou mesmo de interesses particulares. Nessa última acepção, por exemplo, a Partikularität  
dos indivíduos, corresponde ao indivíduo isolado, preso a si mesmo, em sua cotidianidade.” (FORTES,  
2023, p. 140).  
Verinotio  
332 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de Santa Maria del Fiore  
CHING. Francis. Dicionário visual de arquitetura. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes,  
2010.  
CONTI, Giuseppe. La Matematica nella Cupola Santa Maria del Fiore a Firenze. Rivista  
Ithaca: Viaggio nella Scienza IV, p. 5-11, 2014.  
CONTI, Giuseppe; CORAZZI, Roberto. Il segreto della cupola del Brunelleschi a Firenze.  
Firenze: A. Pontecorboli, 2011.  
CORONA, Eduardo; LEMOS, Carlos A. Dicionário da arquitetura brasileira. 1.ed.  
São Paulo: EDART, 1972.  
FORTES, Ronaldo. O caráter libertador da arte na Estética de György Lukács. In: NACIF,  
C; ZANATTA, I (Org.). Introdução à Estética de Lukács. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora  
7 Letras, 2019. p. 11-43.  
HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses. 2. ed. Petrópolis:  
Editora Vozes, 1992.  
KING, Ross. O domo de Brunelleschi. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2013.  
KOCH, Wilfried. Dicionário dos estilos arquitetônicos. Trad. Neide Luzia de Rezende.  
2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.  
______. Die Eigenart des Ästhetischen, Band I-II; Berlin und Weimar: Aufbau-Verlag,  
1987.  
______. Estética: a peculiaridade do estético. 1.ed. Trad. Nélio Schneider. São Paulo:  
Boitempo, 2023.  
______. Estetica I: la peculiaridad de lo estético. 1. Cuestiones preliminares y de  
princípio. Traducción castellana de Manuel Sacristán. Barcelona/México:  
Grijalbo, 1966a.  
______. Estética I: la peculiaridad de lo estético. 2. Problemas de la mímesis.  
Traducción castellana de Manuel Sacristán. Barcelona/México: Grijalbo, 1966b.  
______. Estética I: la peculiaridad de lo estético. 3. Categorías psicológicas y filosóficas  
básicas de lo estético. Traducción castellana de Manuel Sacristán. Barcelona/México:  
Grijalbo, 1966c.  
______. Estética I: la peculiaridad de lo estético. 4. Cuestiones liminares de lo estético.  
Traducción castellana de Manuel Sacristán. Barcelona/México: Grijalbo, 1966d.  
______. Introdução a uma estética marxista. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Leandro  
Konder. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978.  
______. Para uma ontologia do ser social II. Trad. Nélio Schneider. 1.ed. São Paulo:  
Boitempo, 2013.  
MARX, Karl. O capital: o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. 2.ed.  
São Paulo: Boitempo, 2017.  
MORAIS, Vinicius. O complexo categorial estético arquitetônico: o sistema de  
mediações categoriais da arte em Lukács no interior da peculiaridade da arquitetura.  
Tese de doutorado. Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de  
Fora: Juiz de Fora, 2024. 252 p.  
NETTO, José P. Introdução ao estudo do método de Marx. 1.ed. São Paulo: Expressão  
Popular, 2011.  
RICCI, Massimo. Il genio di Filippo Brunelleschi e la costruzione della cupola di Santa  
Maria del Fiore. Città di Castello: Sillabe, 2004.  
TRACHTENBERG, Marvin. Building-in-time: from Giotto to Alberti. Londres: Yale  
University Press, 2010.  
VAISMAN, Ester; VEDDA, Miguel (Org.). Arte, filosofia e sociedade. São Paulo:  
Intermeios, 2014.  
______. Lukács: Estética e Ontologia. 1. ed. São Paulo: Alameda Editorial, 2014.  
VASARI, Giorgio. Vidas dos artistas. São Paulo: Martins Fontes, 2011.  
WALKER, Paul Robert. A disputa que mudou a Renascença. Trad. Maria Alice Máximo.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024 | 333  
nova fase  
Vinicius Rocha Rodrigues Morais  
Rio de Janeiro: Ed. Record, 2005.  
ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.  
Como citar:  
MORAIS, Vinicius Rocha Rodrigues. O Complexo Estético Arquitetônico: o exemplo de  
Santa Maria del Fiore. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 297-334; jul.-dez.,  
2024.  
Verinotio  
334 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 297-334 jul.-dez., 2024  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.743  
O cinema de Charlie Chaplin  
segundo Guido Oldrini  
Charlie Chaplin's cinema according to Guido Oldrini  
João Paulo Galhardo Brum*  
Resumo: O presente artigo tem por objetivo  
analisar o desenvolvimento histórico do cinema  
de Charlie Chaplin, a partir da obra de Guido  
Oldrini: História do Cinema na Cultura do Século  
XX: Um Mapeamento Crítico. Analisamos também  
o potencial do cinema de Chaplin de cumprir a  
missão social da arte, a partir do sistema de  
mediações categorias de Lukács em sua obra A  
Peculiaridade Do Estético. Buscamos, assim,  
analisar o caso específico das obras de Charlie  
Chaplin e explicitar as categorias estéticas do  
cinema enquanto forma particular de arte a partir  
do seu desenvolvimento histórico.  
Abstract: The aim of this article is to analyze the  
historical development of Charlie Chaplin's  
cinema, based on Guido Oldrini's History of  
Cinema in 20th Century Culture: A Critical  
Mapping. We also analyzed the potential of  
Chaplin's cinema to fulfill the social mission of  
art, based on Lukács' system of mediation  
categories in his work The Peculiarity of the  
Aesthetic. We thus seek to analyze the specific  
case of Charlie Chaplin's works and explain the  
aesthetic categories of cinema as a particular  
form of art based on its historical development.  
Keywords: Charlie Chaplin; György Lukács;  
Cinema; Aesthetic Peculiarity; Guido Oldrini.  
Palavras-Chave: Charlie Chaplin; György Lukács;  
Cinema; Peculiaridade Estética; Guido Oldrini.  
Introdução  
Por ser uma arte tão recente, tendo surgido no final do século XIX e se  
estabelecido ao longo do século XX, o cinema nos fornece a possibilidade de  
acompanhar seu desenvolvimento de perto, desde o seu início. Assim, através da  
história do cinema, podemos perceber a transição de uma inovação técnica em arte  
consolidada, assim como analisar a transformação e a estabilização de suas categorias  
estéticas centrais. Acompanhar o desenvolvimento dos filmes ao longo do século XX  
significa, portanto, acompanhar o nascimento de uma nova forma artística. Para uma  
apreensão das leis estéticas e de suas categorias, quase nada pode ser mais rico.  
No entanto, para o presente artigo, iremos focar apenas nas obras de um único  
cineasta, Charlie Chaplin, mas que guarda em si uma grandeza significativa que justifica  
uma análise centrada apenas nele. O cinema de Chaplin se desenvolve  
*
Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Psicólogo pela UFJF. E-  
mail: jpgbrum@gmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
João Paulo Galhardo Brum  
concomitantemente e, de forma consequente, com os principais acontecimentos da  
primeira metade do século XX. Já os seus filmes do Pós-Segunda Guerra apontam  
tendências que seriam relevantes ao longo da segunda metade do século. Assim,  
acompanhar a evolução de suas obras, a partir de uma linguagem própria no cinema  
que nascia enquanto gênero independente, até a sua consolidação como representante  
das grandes obras de arte do século passado, significa apreender o caminho estético  
percorrido por uma nova forma artística, hoje muito bem estabelecida.  
Para realizar tal tarefa, o trabalho do italiano Guido Oldrini na obra História do  
Cinema na Cultura do Século XX: Um Mapeamento Crítico (2006), recentemente  
traduzida para o português, servirá como guia. Porém, o trabalho do filósofo húngaro  
György Lukács em sua obra A Peculiaridade Do Estético também mostra-se  
fundamental, pois nos oferece a base estética, a partir da explicitação das mediações  
categoriais da arte, para realizarmos nossa análise.  
O que Oldrini faz nessa obra, como o próprio subtítulo evidencia, é mapear de  
forma específica os fatos e obras que moldaram a arte cinematográfica, tendo sempre  
como aliado o contexto histórico na qual tais fatos e obras inserem-se. De forma  
original e tendo como alicerce o materialismo histórico-dialético, Oldrini fornece um  
material rico sobre a história do cinema que difere-se dos clichês tão comuns na  
historiografia da sétima arte, até por ter como uma das bases a própria Estética de  
Lukács. Como ele mesmo argumenta já na introdução, o que se busca em sua obra é  
apresentar:  
(...) uma história do cinema concebida não como totalidade ou  
somatória das partes, mas como uma análise de uma totalidade  
internamente articulada por momentos. Óbvio que esta análise é  
operada segundo princípios: que suas articulações devem ser  
buscadas e seus momentos articulados não por capricho,  
arbitrariamente, mas deduzindo-os de seu entrelaçamento com os  
nexos históricos-culturais em geral e esclarecendo-os em razão do  
que, no entrelaçamento, são seus traços peculiares, diversos de fase  
em fase, de momento em momento, de país em país (...).  
Se o cinema não vive uma vida separada da sociedade e da cultura,  
se a filmologia não se confunde com uma insípida cinefilia, se a ele se  
aplicam precisamente as mesmas leis e categorias estéticas da estética  
geral (...), agora a historiografia precisa aprender a tomar nota disso  
e tirar as devidas consequências. (OLDRINI, 2023, p.23).  
1. A base estética do cinema em geral  
O cinema é fruto direto do desenvolvimento tecnológico do capitalismo. O seu  
surgimento deriva das novas capacidades produtivas pós-Revolução Industrial e das  
Verinotio  
336 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
novas descobertas científicas impulsionadas por esse desenvolvimento. O avanço na  
criação de novas tecnologias capazes de captar e reproduzir a realidade, como  
câmeras fotográficas e de filmagem e aparelhos de gravação do som, proporcionou  
novas maneiras de apreensão da realidade, alterando, consequentemente, as  
possibilidades artísticas. Ao longo do século XX surge a fotografia e, no final do mesmo  
século, o cinema. Segundo Lukács, o estudo do cinema dentro do complexo da estética  
justifica-se pois:  
Acreditamos que apenas o uso adequado das categorias estéticas  
gerais, o uso de acordo com as peculiaridades do filme, pode permitir  
uma explicitação detalhada do caráter autenticamente artístico,  
autenticamente realista do cinema, e libertar sua teoria e sua prática  
da metafísica tecnicista-positivista da montagem. (LUKÁCS, 1967b,  
p.203).  
O autor húngaro também afirma que o cinema possui a capacidade de cumprir  
uma tarefa fundamental: “induzir à reflexão o homem médio que passa, sem ter  
consciência disso, ao largo de um problema, ou reage emocionalmente a ele, sem  
refletir. Se uma pessoa em dez é induzida pelo filme a pensar, o filme já cumpriu sua  
função.” (LUKÁCS, 2020a, p.82). Ora, não é essa, justamente, uma das missões  
desfetichizadoras da arte? Assim: “Um filme, se consegue, no plano artístico, levar os  
homens a refletir seriamente sobre determinado problema do passado ou do presente,  
sem dúvida atinge o seu objetivo.” (LUKÁCS, 2020a, p.82). A partir desses princípios,  
compreende-se que o estudo das categorias do cinema dentro do complexo da estética  
é fundamental para um aprofundamento da compreensão da própria arte e de sua  
função social.  
O aspecto tecnológico de captura da realidade do filme é fundamental na  
conformação de novas categorias estéticas, próprias dessa nova forma artística. A  
chamada mímesis dupla do cinema, segundo Lukács, decorre justamente disso. Ora, o  
reflexo é duplo no sentido de que antes de qualquer conformação artística é necessário  
obter um reflexo tecnológico da realidade, realizado através da captura da imagem  
pela câmera. Esse fato aparentemente básico transforma totalmente a relação entre a  
obra e sua recepção pelo público. O fato do reflexo no cinema ser fruto de uma captura  
direta da realidade faz com que suas obras aproximem-se de forma radical à vida  
cotidiana, pois a verossimilhança, o modo de perceber o mundo pela câmera é muito  
parecido com o nosso modo cotidiano de contato com a realidade. Com isso: “o  
receptor vive, pois, o filme como mediação de uma realidade que o impressiona como  
realidade imediata da vida.” (LUKÁCS, 1967b, p.200). A autenticidade do mundo  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 337  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
conformado pela obra de arte no cinema é captada e percebida de forma direta.  
O segundo polo do reflexo duplo se dá exatamente no momento em que tal  
captura tecnológica transforma-se em reflexo estético, na conformação de uma obra  
unitária, fechada em si mesma, na qual a forma e o conteúdo alcançam sua unidade  
dialética. O segundo reflexo ocorre, portanto, na passagem de uma imagem meramente  
fiel da realidade, proporcionada pela tecnologia, à criação artística de uma obra que  
utiliza essa imagem, ou melhor, essa sucessão de imagens próprias do cinema, como  
meio homogêneo de uma nova obra de arte. Em resumo, no cinema:  
a forma tecnológica primária, ainda sem ser estética, não é nada mais  
do que um reflexo visual da realidade; ela transforma, mediante uma  
rápida mobilidade, mediante a situação continuamente vivenciável, a  
refiguração fotográfica em uma antropomorfização, e a aproxima das  
formas aparentes da cotidianidade. A duplicação da mímesis e o seu  
caminho até o estético ocorrem nessa base; mas não derivam de  
maneira simples e óbvia das possibilidades técnicas, pois precisam ser  
produzidas conscientemente de acordo com a missão social  
frequentemente implícita. Assim se produz, finalmente, o meio  
homogêneo, a “linguagem” artística do cinema. (LUKÁCS, 1967b,  
p.177).  
Esse é o primeiro ponto de diferenciação estética do cinema em relação às  
diferentes artes.1 A autenticidade do reflexo no cinema, sua proximidade à vida  
cotidiana, torna-se, assim, um dos principais fatores da especificidade dos efeitos  
estéticos do filme. Criam-se com isso conexões completamente novas com a  
cotidianidade, a partir do reflexo fotográfico, fiel e autêntico da realidade. A  
diferenciação do cinema e suas categorias em relação às demais artes visuais, como a  
pintura e a escultura, torna-se explícita na medida em que:  
nessas [outras artes visuais] só se obtém uma autenticidade como  
resultado final do processo mimético-artístico de transformação da  
refiguração da realidade; se a dação de forma fracassa, não se obtém  
absolutamente nenhuma autenticidade; esta deve ser produzida  
mediante princípios puramente estéticos, criativamente; tem que ser  
confirmada na imanência da obra de arte; enquanto, mesmo a pior  
fotografia possui, e não consegue perder, uma autenticidade nesse  
outro sentido descrito. Assim se expressa claramente a profunda  
afinidade, cheia de consequências, entre a cotidianidade e o filme.  
Nessa proximidade com a cotidianidade está contido o fato, como  
causa e como efeito, de que o mundo visual do filme, em nítida  
contraposição com todas as demais artes visuais, não é estático,  
quieto, mas em permanente movimento. (LUKÁCS, 1967b, p.181).  
1
Lukács afirma que a arquitetura e a música, assim como o cinema, possuem um reflexo duplo da  
realidade. Porém, as diferenças entre os reflexos são bastante significativas e não cabe aqui uma  
explicitação dessa relação.  
Verinotio  
338 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
Nisso está contido também um outro caráter peculiar das adaptações  
categoriais estéticas no cinema, a saber, o fato de que nele o quase-tempo é  
substituído pelo tempo real. O decurso temporal de um filme corresponde ao decurso  
do tempo real, no sentido de que as ações dos personagens e os acontecimentos da  
história são afetados pelo tempo de forma similar à vida cotidiana. O tempo não é  
sugerido ou descrito, mas explicitado: “O cinema é a única arte na qual vão juntos a  
visualidade e o decurso real do tempo” (LUKÁCS, 1967b, p.181). Isso faz com que a  
semelhança do filme com a vida cotidiana seja ainda maior, pois o tempo presente do  
cinema é: “como sempre ocorre no decurso temporal real, um momento real de  
transição entre o passado e o futuro” (LUKÁCS, 1967b, p.182). Assim: “Ao se  
reproduzir o mundo objetivo aparente, a natureza, a cidade, etc, não apenas  
visualmente, mas também auditivamente, a proximidade à vida, a autenticidade fílmica  
da realidade refigurada pode expressar-se de forma muito mais clara e rica do que  
antes” (LUKÁCS, 1967b, p.182-3).  
Torna-se explícita, mais uma vez, a proximidade do cinema à vida cotidiana,  
maior do que qualquer outra arte. Como consequência:  
Esta proximidade à vida determina as questões estilísticas decisivas  
do filme. Ocorre no cinema uma elasticidade tal do meio homogêneo  
que, muitas vezes, tem-se uma verdadeira instabilidade, porque a  
imediatez da conformação artística se situa muito próxima da  
imediatez da vida. O aspecto subjetivo dessa situação corresponde  
exatamente à sua essência objetiva: a transformação do homem inteiro  
da cotidianidade em homem inteiramente tomado, orientado ao  
mundo próprio do meio homogêneo, é aqui muito menos violenta e  
repentina do que nas demais artes. (...) o domínio receptivo dessa  
linguagem faz exigências permanentes, renovadas a cada obra, muito  
menores - sobretudo do ponto de vista humano - do que nas demais  
artes. (LUKÁCS, 1967b, p.184).  
A partir disso, derivada dessa proximidade à vida, o conteúdo e a forma são  
afetados de forma direta, pois a visualidade do filme coloca em equivalência de  
importância tudo o que é refletido. O reflexo fotográfico do filme fornece importância  
não só ao homem em seu centro, mas também ao mundo ao seu redor, à sua  
vestimenta, a tudo o que seria secundário, por exemplo, em uma peça teatral. É claro  
que toda obra de arte deve ter o homem como centro, e o cinema faz isso através do  
conteúdo, caso contrário não seria possível considerar o cinema como gênero artístico.  
Porém:  
(...) o específico aqui é que ambos, homem e mundo, possuem - como  
na vida cotidiana - exatamente o mesmo valor de realidade na sua  
exibição. Isso não suprime de forma alguma a interação entre o  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 339  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
homem e o seu mundo circundante, o sentido humano da mímesis  
estética; mas acontece que essa interação se apresenta, em relação às  
demais artes, segundo um aspecto novo, o qual pode expressar-se de  
modo mais claro determinando-o mediante a negação: a interação do  
homem com o mundo não se conforma aqui a partir do homem como  
centro, mas como geralmente acontece realmente no mundo, como é  
percebido pelo homem na cotidianidade, como interação de diversos  
fatores igualmente reais. (LUKÁCS, 1967b, p.185).  
Esse fator de proximidade à vida oferece ao filme a possibilidade de alcançar  
de forma abrangente diferentes aspectos do cotidiano, podendo apelar às massas de  
maneira inédita e profunda. Isso ocorre pois: “(...) o meio homogêneo do filme não só  
é lábil, mas consegue ser também elástico, e a transição relativamente suave do  
homem inteiro ao homem inteiramente tomado contém em si, apesar de tudo, um salto  
por cima da vida cotidiana simples e média.” (LUKÁCS, 1967b, p.189). Através do  
filme é possível perceber aspectos objetivos do mundo externo, mas também aspectos  
subjetivos dos personagens em interação com o mundo, de forma análoga à nossa  
relação uns com os outros no cotidiano. A dialética do interno com o externo torna-  
se, no cinema, muito mais nítida e apreensível. O cinema guarda em si, portanto, a  
possibilidade de tornar-se uma arte verdadeiramente popular, justamente por esse  
apelo geral aos diferentes anseios privados de uma massa diversa:  
O conteúdo do filme abarca a universalidade extensiva da vida, uma  
universalidade orientada ao efeito mais amplo e à inteligibilidade mais  
imediata. (...) O tipo especial de sua movimentação visual é capaz de  
descobrir em fatos muito simples e cotidianos da vida, fatos que fora  
dele não se notaria nada de interessante, uma poesia profunda, uma  
autêntica humanidade, uma rica escala de emoções, desde a tristeza  
opressora até a risada libertadora. (LUKÁCS, 1967b, p.190).  
É claro que, por ser uma arte derivada e subordinada aos interesses capitalistas,  
esse apelo às massas se dá, muitas vezes, na figura do vulgar, do piegas ou do  
grotesco. Nesse tipo de apelo, as derivações diretas dos anseios da vida cotidiana  
ocorrem de forma muito mais oportunista do que artística, buscando agradar o maior  
número possível de pessoas ao oferecê-las satisfações óbvias.  
Essa multiplicidade ilimitada de expressão, tão conectada à vida, tem como  
consequência, contudo, uma limitação da altura espiritual que é possível alcançar no  
filme. O cinema precisa abrir mão de poder expressar “a vida espiritual mais alta do  
homem”, devido tanto à minimização da objetividade indeterminada, quanto ao papel  
secundário exercido pela palavra no filme. Em comparação com a poesia, por exemplo:  
A movimentação visual, acompanhada auditivamente, do filme, no  
qual a palavra, necessária e consequente, não pode ter mais que um  
Verinotio  
340 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
papel secundário, de ajuda e complemento, é incapaz de dar por si a  
atmosfera artística e intelectual que constitui o fundamento da  
conformação humana do espiritual na poesia. (LUKÁCS, 1967b,  
p.192).  
Isso conecta-se à questão dos gêneros, e como cada um deles expressa o  
conteúdo de maneira determinada, em vinculação ineliminável com a forma. Na poesia  
existe a possibilidade de se obter uma eficácia intelectual, de transmitir uma ideia  
poeticamente expressa pela composição artística. No cinema, por sua vez, essa  
conformação humana de alto nível espiritual, expressa pela composição verbal-poética,  
é incapaz de existir em meio à visualidade predominante do filme. Da mesma maneira  
que a tendência à minimização da objetividade indeterminada no cinema limita que  
este alcance as possibilidades de altura espiritual presentes nas artes plásticas ou na  
música.  
Em sua entrevista sobre cinema, em 1968, Lukács elabora melhor essa questão  
da intelectualidade no filme:  
Acredito que devemos examinar atentamente a questão do ponto de  
vista da estética e da cinedramaturgia, para não nos atermos ao  
problema da intelectualidade não formalizada. Os problemas  
intelectuais devem ser analisados do ponto de vista da forma. A  
literatura e, em particular, a dramaturgia são as mais adequadas para  
formular esses problemas. Mas eles estão presentes em todos os  
lugares de alguma forma. Na minha estética, falei a propósito da  
objetividade indeterminada. Em última análise, um problema  
intelectual não consegue encontrar expressão na pintura. Na  
realidade, se observamos os retratos de Rembrandt, podemos dizer  
com precisão não apenas como intelectualmente o indivíduo é  
representado, mas também quais são os problemas intelectuais que o  
atormentam. E, todavia, a pintura não tem a possibilidade de  
expressar intelectualmente um problema intelectual. Há, pois,  
diferenças muito complexas entre o drama e a épica, entre "obra  
musical e fílmica". Tal problema também surge em relação à música.  
Sem nenhuma dúvida, de Bach a Händel, passando por Beethoven e  
chegando a Bartók, a grande música tomou posições sobre toda uma  
série de problemas ideológicos. Mas é impossível expressar  
musicalmente um problema intelectual. Para o filme, a situação não é  
tão nítida. Assim, ainda não conseguimos encontrar uma maneira de  
apreender realmente essa fisionomia intelectual. Não sabemos ainda  
com precisão - e isso porque a palavra é usada nos filmes até mesmo  
como ruído para suscitar certa atmosfera - até que ponto podemos  
falar de intelectualidade em uma obra cinematográfica. Em minha  
opinião, não podemos ir tão longe como no drama. Pense-se em  
Otelo, na cena em que Iago começa a provocar Otelo, e esse último,  
ao ficar sozinho, faz um estupendo monólogo de caráter meditativo:  
"E agora, adeus armas" etc. Bem, isso não pode ser expresso no filme  
- resultaria banal, mesmo que fosse o melhor ator que interpretasse o  
monólogo. Há, ao contrário, falas dramáticas, por meio das quais se  
suscitam estados de tensão: essa é uma estrada que também pode  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 341  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
ser percorrida pelo filme. A meu ver, os problemas intelectuais, no  
sentido do conteúdo, são indispensáveis no filme. Mas devemos  
procurar os meios para expressá-los. Parece-me que ainda não  
conseguimos encontrá-los. (LUKÁCS, 2020a, p.82-3).  
No entanto, o cinema é capaz, mesmo com as limitações analisadas, de alcançar  
um elevado nível de comoção estética, capaz de retirar o homem de sua mera  
particularidade e alçá-lo à particularidade do gênero. O filme constitui-se como obra  
de arte, comparável aos demais gêneros artísticos, na medida em que é capaz de  
remeter o homem à autoconsciência do gênero. E é esse o ponto mais importante de  
toda e qualquer arte. Se no cinema estão ausentes ou minimizadas a intelectualidade  
da literatura ou a objetividade indeterminada da pintura, está presente o que Lukács  
chama de estado de ânimo2, categoria que proporciona ao filme uma unidade tonal  
capaz de ditar a recepção estética de forma eficaz e catártica. Entende-se estado de  
ânimo como a conjunção de emoções provenientes do filme, que criam uma atmosfera  
de sentimentos única a cada obra, claramente perceptível. No cinema, o estado de  
ânimo, a unidade tonal, é o momento predominante de todo e qualquer filme. Disso  
deriva, por exemplo, a classificação, hoje em dia arbitrária e mecânica, dos gêneros  
fílmicos, como comédia, drama ou terror, pois o estado de ânimo de um filme é  
facilmente inteligível.  
A eficácia do filme depende, então, do estado de ânimo ali presente, já que as  
questões apresentadas pela “pura visualidade” do filme parecem surgir da própria  
realidade, despertando emoções que facilitam e potencializam a “força de convicção”  
ou “tomada de posição” do espectador. O estado de ânimo é o que permite que as  
grandes questões humanas, as concepções de mundo, as atitudes frente a  
acontecimentos sociais, os “problemas intelectuais” cheguem ao “coração do  
espectador”, sendo, assim, a categoria ativa universal e dominante do cinema.  
A questão do estado de ânimo conecta-se à particularidade (besonderheit)  
estética na medida em que:  
(...) o estilo, a entonação, o clima, etc. de uma obra podem ser  
perfeitamente unitários no sentido artístico mesmo que dentro dessa  
2
O termo original em alemão é Stimmung, que em tradução direta seria espírito, ânimo, mas também  
humor, atmosfera. A tradução para o espanhol optou por Tono Anímico, já a do italiano por Atmosfera  
Affettiva. A tradução para o português de Lívia Cotrim (2013) do texto de Lukács sobre cinema, extraído  
de sua Estética, optou por Atmosfera Anímica. Contudo, optamos por Estado de Ânimo pois acreditamos  
ser essa a forma mais clara de expressar o meio termo pretendido por Lukács entre o tom geral do  
filme, sua atmosfera, e os sentimentos evocados no receptor. Além disso, essa será a escolha provável  
da tradução em língua portuguesa nos próximos volumes de A Peculiaridade do Estético da Editora  
Boitempo que ainda serão publicados.  
Verinotio  
342 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
unidade impere um poderoso movimento ascendente e descendente,  
pois determinados momentos da obra se aproximam mais que outros  
à
universalidade,  
já  
outros  
momentos  
se  
aproximam  
consideravelmente à singularidade; mas essa persistência unitária é  
válida apenas com a condição de que tais movimentos ocorram dentro  
da mesma esfera da particularidade, que façam todos rigorosamente  
referência uns aos outros desde o ponto de vista ideal e forma, e que  
todos se desenvolvam no meio homogêneo contraditório e unitário  
do gênero, da obra. (LUKÁCS, 1967a, p.270).  
Nesse sentido, a catarse no cinema pode ocorrer de forma potente e efetiva,  
por seu caráter popular, pelo seu apelo à realidade proveniente de sua mímesis dupla  
e de seu estado de ânimo, por seu alcance à particularidade do gênero. Com isso, a  
função social da arte encontra no cinema possibilidades novas de existência e de  
efeitos. A junção das imagens, dos sons e da música no filme facilitam tomar  
inteiramente o receptor, com a catarse se dando não apenas no aspecto emocional,  
mas através da concentração do que é essencialmente humano na obra.  
O princípio decisivo da composição cinematográfica, portanto, é a fixação da  
unidade tonal. Todos os elementos do filme - a técnica, a montagem, a música, a  
linguagem, o roteiro etc. - servem para compor uma unidade coesa. Mesmo quando a  
palavra é usada como o elemento dramático da ação, uma conexão orgânica com a  
tonalidade visual e auditiva é imprescindível. Afirma Lukács: “Pense no grande discurso  
humanista e pacificador pronunciado por Chaplin no final de O Grande Ditador. Seu  
sentido poderia, sem dúvida, se dar de maneira breve. Mas sua duração, seu tom, etc,  
estão determinados pela tonalidade básica do filme inteiro” (LUKÁCS, 1967b, p.205).  
Os inevitáveis contrastes de tons ao longo do filme devem conformar uma unidade  
firme. Caso isso não ocorra, a missão social do cinema não é satisfeita, não se alcançam  
os níveis elevados de fruição estética capazes de transformar, mesmo que  
momentaneamente, o homem por inteiro em homem inteiramente tomado.  
No entanto:  
É, pois, um problema próprio do materialismo histórico o estudo do  
fato aqui manifestado: que uma arte predestinada a ser tipicamente  
popular se afunde constantemente no meramente agradável, e até no  
grosseiro e piegas. A nós importa somente expor os fatores internos,  
os tipos de mímesis que, partindo da natureza artística específica do  
cinema, facilitam o efeito dessas influências sociais. (LUKÁCS, 1967b,  
p.207).  
2. O cinema de chaplin  
Oldrini inicia sua análise delimitando o período do filme mudo como a fase em  
que o cinema distancia-se da técnica pura e aproxima-se da arte enquanto tal, a fim  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 343  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
de encontrar sua própria linguagem. Com razão, o italiano argumenta que se deve  
começar uma investigação sobre o desenvolvimento do cinema enquanto arte não a  
partir das primeiras imagens fílmicas, mas a partir do surgimento de obras que se  
propunham a atingir um status de arte, não apenas de experimentos técnicos. Em  
concordância com Lukács quando este trata sobre as pinturas rupestres na Estética,  
Oldrini afirma: “A história da pintura não começa com a pintura em cavernas; a história  
da arquitetura não começa com a era das palafitas.” (OLDRINI, 2023, p.25). Por isso  
justifica-se iniciar logo pelos filmes mudos, suprimindo, ao contrário de muitas  
historiografias sobre cinema, os pais fundadores Auguste e Louis Lumière e Georges  
Méliès. Nesse sentido, a figura de David Wark Griffith e o surgimento de Hollywood  
ganham destaque como o ponto inicial dessa procura do cinema por sua linguagem,  
por seu status de arte.  
É importante salientar, correndo o risco de ser óbvio, que o filme mudo não é  
silencioso. O que não havia na época de sua produção era a captação do som junto  
com a imagem. Contudo, estratégias eram utilizadas para que a transmissão de sentido  
fosse bem-sucedida. Nisso insere-se a trilha sonora, as cartelas de texto, as diferentes  
formas de utilizar as cores monocromáticas etc. As diversas possibilidades e  
experimentações são o que irão definir esse período, em que se busca o equilíbrio e a  
unidade tonal através de uma tentativa de consolidação de uma linguagem autônoma  
para o cinema.  
No início do século XX, na sua primeira década, a economia norte-americana  
sofria um boom resultante do rápido desenvolvimento industrial do país. A indústria  
cinematográfica estava nascendo e a atmosfera produtiva favorecia investimentos por  
parte de grandes empresários, bancos e do próprio governo. Hollywood surge como  
um ponto de inovação na costa oeste, trazendo talentos que antes estavam  
concentrados em Nova York para a pouco explorada e espaçosa Los Angeles. Dentre  
eles, estava D.W. Griffith, considerado o primeiro grande diretor de Hollywood e um  
dos primeiros do mundo. Suas influências e inovações técnicas, principalmente no  
âmbito da montagem e de escala, transformaram de forma definitiva tudo o que viria  
a seguir. Segundo Oldrini, a relação de Griffith com Hollywood é fundamental pois nela  
unem-se dois pontos importantes: “(...) a de um cinema que, graças à solidez das suas  
bases industriais torna-se capaz de irradiar-se para o exterior, preparando-se para a  
conquista do mercado mundial, e aquele da figura de um pioneiro que luta pela  
elaboração e construção de uma nova e autônoma linguagem da arte.” (OLDRINI,  
Verinotio  
344 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
2023, p.30).  
Apesar do lamentável conteúdo muitas vezes racista, seus filmes O Nascimento  
de uma Nação (1915) e Intolerância (1916) são marcos históricos, em termos de  
escopo, até então inéditos no cinema. Os filmes de Griffith, apesar de terem um pano  
de fundo histórico, com histórias de época, tratam do crescimento da América de sua  
época, ao mesmo tempo que surge como ponto inicial de desenvolvimento do próprio  
cinema. Diz Oldrini: “Em qualquer episódio do passado a que se refere, fala-se sempre  
do presente; a moldura histórica é apenas, precisamente, uma moldura. Um pouco  
como acontece no Eisenstein do Encouraçado Potëmkin (...), o interesse principal que  
os move é sempre ou quase sempre contemporâneo.” (2023, p.34).  
O que Griffith traz de inovador é a utilização do cinema para contar uma história  
complexa, cheia de ramificações, personagens e acontecimentos diversos. A montagem  
utilizada, conectando cada cena à outra de forma didática, compreensível para uma  
plateia nova, que entrava em contato com aquele tipo de arte pela primeira vez, foi  
fundamental para estabelecer as bases da linguagem do filme dali para frente. A música  
épica, as cartelas de diálogo e narração, os cenários imersivos, tudo isso foi  
aperfeiçoado por Griffith, seus filmes citados são, por isso, influentes justamente pela  
conformação da obra, muito mais do que pelo conteúdo.  
Apesar de seu pioneirismo, Griffith não teve uma carreira de fôlego após a  
Primeira Guerra Mundial, já que a guerra abalaria de forma radical a história do cinema,  
redirecionando o caminho até então percorrido e aprofundando ainda mais a conexão  
entre os filmes e as grandes questões pertinentes àquele tempo.  
Enquanto Griffith produzia seus últimos filmes relevantes, um jovem Charlie  
Chaplin começava a ganhar destaque em curtas da chamada comédia slapstick,  
representando o nascimento do gênero cômico no cinema. Derivado do circo e do  
teatro, esse tipo de comédia era caracterizado por um humor físico, de circunstância,  
priorizando “acidentes” coreografados e situações inusitadas como fonte do humor.  
Chaplin rapidamente se tornaria o expoente nesse gênero. A trajetória do artista,  
criador do personagem Carlitos, culminaria em verdadeiras obras de arte do cinema  
mundial que refletem a mais profunda humanidade.  
Antes disso, no entanto, os filmes dos quais participava, principalmente os  
curtas do período 1914 a 1917, no qual trabalhou com o produtor Max Sennett, são  
marcados por um nível muito baixo de profundidade em relação aos personagens e  
sua relação com o ambiente no qual estão inseridos, “não há espaço algum para a  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 345  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
psicologia dos personagens, para a caracterização” (OLDRINI, 2023, p.113). Muito  
diferente do tipo de comédia que Chaplin desenvolveria mais tarde, “o slapstick de  
Sennett não adquire profundidade crítica, não chega a elevar-se ao nível de uma  
autêntica sátira; o mundo que sua sátira pretende condenar, e ao pé da letra destruir,  
está, na realidade sempre bem de pé (...)” (OLDRINI, 2023, p.113). O tipo de humor  
criado é raivoso, com o personagem de Chaplin sendo hostil com o seu entorno de  
forma generalizada. Por mais que o “vagabundo” esteja direcionando o ódio ao mundo  
que o fez miserável, esse ódio não encontra outra saída senão a da violência.  
Estes aspectos degradantes do comportamento do personagem  
ocultam, em segundo lugar, um pessimismo de fundo, uma escolha de  
vida inspirada pela passividade e renúncia. Desempregado crônico,  
vagabundo marginalizado, em constante relacionamento antagônico  
com seus semelhantes e com as massas, ele se sente totalmente  
estranho a qualquer forma de solidariedade de classe, e se comporta  
de acordo. (OLDRINI, 2023, p.117).  
O filme O Banco (1915) é um exemplo de todos esses aspectos negativos do  
cinema inicial de Chaplin. O personagem principal, faxineiro de uma agência bancária,  
rivaliza não com seus superiores, mas com o outro faxineiro, o qual é maltratado e  
agredido constantemente por Carlitos. Não existe comentário social em relação ao  
trabalho, mas sim uma resignação e um rancor acumulado que é descontado,  
injustamente, no colega trabalhador:  
O que resta sistematicamente fora da concepção chapliniana do  
período é a dimensão humana do quadro da vida representada. Não  
só falta a ele, por falta de consciência social, qualquer reconhecimento  
da dignidade do trabalho enquanto tal, mas os personagens, a  
começar pelo próprio protagonista, nunca tem dignidade nem mesmo  
do ponto de vista humano; tal como as situações e relações da vida  
apresentadas (por ex. a exploração), os vícios descritos (a hipocrisia,  
a corrupção), não são mais sequer identificados e compreendidos na  
sua essência, e portanto, apontados para a denúncia: não há qualquer  
denúncia da corrupção, muito menos consciência da exploração.  
(OLDRINI, 2023, p.118).  
Ao final, até mesmo uma situação que seria esperançosa revela-se apenas como  
um sonho, sepultando o filme como uma das obras mais negativas e até mesmo  
reacionárias de Chaplin. Apesar disso, assim como na Europa, a Primeira Guerra  
Mundial significa uma mudança generalizada no espírito do tempo, influenciando,  
inclusive, a América e seus filmes da época. Chaplin, nesse contexto norte-americano,  
também se modificou, para melhor. Sua grandeza, assim como a convivência com  
intelectuais e artistas da época, o fez perceber o real papel que seu cinema poderia  
ter. Assim como o impacto da guerra, o panorama histórico-social faz Chaplin romper  
Verinotio  
346 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
com o passado, buscando integrar de forma cada vez maior os seus personagens com  
os meios no qual se situam. Dessa forma, cria-se um relacionamento e uma vinculação  
mais nítida e rica entre a personalidade de Carlitos e o mundo ao seu redor. No filme  
citado anteriormente, o banco que dava nome à obra pouco importava para as relações  
entre os personagens, servindo apenas como pano de fundo. Agora, existe um “maior  
envolvimento do personagem nos acontecimentos e experiências do mundo  
circundante.” (OLDRINI, 2023, p.120). Dessa forma:  
Comparados com os curtas-metragens da fase precedente, os médios-  
metragens de junho-outubro de 1917, O Imigrante e O Aventureiro  
indicam já com clareza onde está a novidade: na concretização  
histórico-social do ambiente que é o pano de fundo dos  
acontecimentos do personagem, na individuação de um nexo não  
casual entre personagem e sociedade. (OLDRINI, 2023, p.121).  
O “vagabundo” de Chaplin passa a ser, finalmente, a tipificação não dos sujeitos  
rancorosos e violentos, mas daqueles que, apesar das adversidades, possuem espaço  
para a beleza e para a sensibilidade humana. O personagem de Carlitos passa por um  
processo de humanização, decorrente justamente do reflexo mais concreto da  
realidade, levando em conta e reagindo às determinações histórico-sociais. Os filmes  
dessa época, através do personagem Carlitos, desempenharam um importante papel  
na difusão de seu típico homem pobre, fruto das piores consequências do capitalismo,  
que através do humor consegue “reproduzir uma situação histórico-social pouco  
alcançada em outras artes” (LUKÁCS, 1967b, p.197). O típico, para Lukács, como  
explica Oldrini: “(...) não tem, de modo algum, uma origem sociológica, não se  
identifica, de modo algum, antes conflita, com o cinza “médio” dos fenômenos caros  
ao naturalismo; ele se refere, ao invés, à dialética interna das categorias lógicas (...)  
(2017, p.256).  
O típico, portanto, se mostra fundamental na arte, como evidenciado nesse  
trecho em que Lukács, apesar de usar a literatura como exemplo, mostra claramente o  
papel do tipo na arte em geral:  
O tipo vem caracterizado pelo fato de que nele convergem, na sua  
contraditória unidade, todos os traços salientes daquela unidade  
dinâmica na qual a autêntica literatura reflete a vida. Vem  
caracterizado pelo fato de que nele todas as contradições - as mais  
importantes contradições sociais, morais e psicológicas de uma época  
- se articulam em uma unidade viva. A representação da média, ao  
contrário, implica em que tais contradições, que formam sempre o  
reflexo dos grandes problemas de uma época, apareçam  
necessariamente diluídas e enfraquecidas no ânimo e nas experiências  
de relações inter-humanas de um homem medíocre, sacrificados assim  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 347  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
os seus traços essenciais. Na representação do tipo na criação artística  
típica, fundem-se o concreto e a norma, o elemento humano eterno e  
o historicamente determinado, o momento individual e o momento  
universal social. É na representação típica, pois, na descoberta de  
caracteres e situações típicas, que as mais importantes tendências da  
evolução social conseguem uma expressão artística apropriada.  
(LUKÁCS, 1965, p.30).  
Reforçando sua conexão com o contexto no qual está inserido, Chaplin vai para  
o front da guerra com Carlitos nas Trincheiras (1918). Já em filmes como The Idle Class  
(1921) e Pay Day (1922), a sátira passa a alcançar seu poder máximo, tendo como  
alvo o ideal de vida burguês tão comum na sociedade americana:  
Chaplin mostra como o ideal supremo de vida é modelado e plasmado  
agora para o vagabundo numa concepção individualista-burguesa,  
sobre o mito - burguês - do respeito pela dignidade puramente  
exterior, formal, da pessoa; como o vagabundo descobre que só a  
partir de um certo grau da hierarquia social, de uma certa categoria  
da sociedade, o homem vê reconhecida a dignidade do homem.  
(OLDRINI, 2023, p.124).  
Já bastante maduro em relação ao início de sua carreira, Chaplin utiliza a  
comédia como uma maneira de desmascarar o ridículo e a hipocrisia da vida privada  
burguesa, atingindo o realismo crítico pela via do cômico. Afirma Oldrini: “Mostrar as  
imposturas que se escondem por trás do conformismo social, desmascarar a ordem de  
classe da sociedade constituída, esse é o fim último a que sua comédia é dirigida.”  
(2023, p.127). E ao desvelar o que existe por trás da sociedade burguesa, além do  
cômico, Chaplin passa a revelar também o dramático. Esse talvez seja seu ponto de  
virada mais importante, pois ele deixa de ser refém da comédia por si mesma, como  
era na época dos filmes slapstick, e passa a se orientar apenas pela melhor maneira  
de se expressar o conteúdo desejado. Assim, o tragicômico ganha destaque como  
nunca ocorrera no cinema americano. E para se adequar melhor ao conteúdo, a forma  
se expande, os médias-metragens e, principalmente, os longas-metragens, passam a  
ser a regra para Chaplin. Mudanças na forma “proporcionais às exigências do novo  
conteúdo” em função da “dilatação de seus tempos internos” (OLDRINI, 2023, p.128).  
A unidade forma-conteúdo, a vinculação histórico-social com a personalidade dos  
personagens, a tipicidade, a conformação de um mundo próprio que é reflexo do  
mundo real, são sinais de que a obra de Chaplin atinge uma forma artística cada vez  
mais madura.  
Em Em Busca do Ouro (1925), temos um exemplo de uma obra realizada por  
um artista em sua plena vitalidade. Enquanto Hollywood mergulha de vez nas  
Verinotio  
348 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
entranhas da indústria capitalista e se torna refém do lucro, como é até hoje, Chaplin  
cria uma obra que denuncia justamente a perseguição pela riqueza, o “ouro” como  
objetivo final da vida humana. Nesse filme, “aparece pela primeira vez no cinema de  
Chaplin o paradigma da força imensa e destrutiva do capitalismo competitivo”  
(OLDRINI, 2023, p.146). Por isso:  
(...) o filme, longe de ser um manifesto de sentimentalismo, apresenta-  
se, em vez disso, como uma ilustração precisa e impressionante, à la  
Balzac, das consequências do arrivismo sem princípios da sociedade  
capitalista. (...) Na verdade artística de Em busca do ouro, comédia e  
drama, realismo e fábula estão unidos estreitamente entre si. Como  
os grandes realistas clássicos, Chaplin consegue aqui - pela primeira  
vez, de forma tão realizada - concentrar em um ponto a tipicidade da  
realidade, de modo que a iluminação desse ponto ilumine o inteiro  
campo da realidade indagada. (OLDRINI, 2023, p.147).  
A evolução de Chaplin estava só começando.  
2.1 O Advento Do Som  
Enquanto isso, o advento do som no cinema, em 1927 nos EUA, transformaria  
de forma definitiva a busca pela linguagem fílmica, consolidando o fim do cinema mudo  
e a hegemonia da voz humana nos filmes. Além do som, o princípio da montagem  
soviética e toda a linguagem desenvolvida por lá seriam consagrados como a  
linguagem oficial do cinema, influenciando os filmes de todo o globo. Nesse sentido,  
após a solidificação do filme falado e de uma linguagem já familiar e consolidada, as  
experimentações técnicas e a busca por uma linguagem própria passaram a ser menos  
importantes que o contexto histórico-social no qual o filme estava inserido, assim como  
do aspecto da produção dos filmes e de seu financiamento. Os filmes passaram a  
conectarem-se, portanto, com as repercussões da Crise de Wall Street de 1929 nos  
EUA, com a tensão social do período entre-deux-guerres na Europa, com a  
consolidação da União Soviética como potência no Leste Europeu, e com as relações  
entre as classes dos países capitalistas cada vez mais levadas ao limite.  
Em Hollywood, a padronização dos filmes e dos modos de produção fílmica se  
tornaria a regra, sendo dificilmente desviada até mesmo por diretores europeus que  
emigraram para os EUA na década de 1920, como Sjöström, Murnau e Lang. O cinema  
de Hollywood se industrializou, passando a controlar de forma intensa a produção e a  
distribuição de seus filmes. Dessa forma, os diretores passaram a ter um peso menor  
do que o produto em si, com os grandes estúdios e seus produtores se consolidando  
e se tornando a real força por trás de um filme. A função do diretor passou a ser  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 349  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
apenas a de mais um componente da equipe por trás da produção do filme, fato  
comum até os dias atuais. Os filmes se tornaram produtos, no mais amplo sentido do  
termo, frutos de uma cadeia produtiva similar à da indústria capitalista em geral, com  
uma rígida divisão social do trabalho. Oldrini, referindo-se aos melhores casos de  
Hollywood da época, afirma que os diretores se tornaram: “comerciantes proficientes,  
hábeis artesãos sem gênio, confeccionadores de bons produtos.” (2023, p.206).  
O clima de prosperidade, otimismo e lucro que marcou a indústria americana  
de forma geral ao longo da década de 1920, incluindo Hollywood, sofreria um dos  
abalos mais fortes de sua história com a Quebra da Bolsa em 1929, “quando o pânico  
financeiro, de um lado e, do outro, o pânico moral (uma sensação de desconcerto e de  
impotência, uma espécie de introjeção dos efeitos da Crise) se apoderam da realidade  
americana.” (OLDRINI, 2023, p.207).  
As mudanças provocadas pela Crise e sua tentativa de recuperação na política  
do New Deal impactaram profundamente Hollywood, com o governo atuando de forma  
mais próxima no desenvolvimento dessa indústria. Além disso, “a Crise complica e  
agrava as pressões sobre o cinema que chegam de fora, tornando-o sufocante,  
avassalador, e impedindo, cada vez mais, o nascimento de iniciativas independentes  
ou a possibilidade de que elas se desvinculam da supremacia das grandes trust.”  
(OLDRINI, 2023, p.222).  
Se a estrutura da indústria cinematográfica foi abalada pela Crise, com o  
governo norte-americano aproximando-se da sua produção e, aliado ao capitalismo  
monopolista, sufocando ainda mais as possibilidades de “fugir da regra”, o conteúdo  
dos filmes também sofre um abalo. Reflexo da perda de confiança da nação em si  
mesma, em choque pela constante piora das condições de vida nas cidades, pelo  
aumento da criminalidade e da insegurança em geral, surgem os filmes de gângster,  
que simbolizam o típico homem norte-americano que enxerga no crime organizado  
uma maneira de escapar da falência social. Através da violência e da brutalidade, o  
gângster dos filmes dessa época, como Scarface (1932) e Little Caesar (1930), lutam  
para se destacarem, temendo ser apenas mais um miserável como os muitos que os  
rodeiam. Como destaca Robert Warshaw em seu clássico ensaio “The Gangster as a  
Tragic Hero”, no final do filme, como regra, o gangster morre de forma trágica,  
revelando “a derrota como a única possibilidade de conclusão nessa sociedade”.  
(WARSHAW, 2007).  
Como contraste, o cinema de Charlie Chaplin, mais uma vez, se mostra o mais  
Verinotio  
350 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
sensível em relação ao contexto descrito, além de ser o mais elevado artisticamente.  
O interesse em desmascarar as contradições da sociedade capitalista, que se iniciou  
em Em busca do Ouro, se consolida aqui de forma ainda mais clara. Apesar de Chaplin  
ser um entusiasta do New Deal, observando de forma otimista a recuperação  
econômica do país e a possibilidade de uma democracia mais profunda e eficaz, ele  
não deixa escapar as fragilidades sociais e o aspecto trágico da economia capitalista,  
incluindo sua consequência mais grave na figura do nazifascismo.  
Além disso, o impacto do filme sonoro seria sentido por Chaplin, obrigando-o  
a repensar diversos projetos e a cancelar outros, a fim de adaptar o meio homogêneo  
fílmico às inovações técnicas. Com isso, o espaço de tempo entre o lançamento de um  
filme e outro se tornou muito maior do que antes:  
Ora, qualquer que seja a incidência destes contratempos sobre a boa  
disposição ao trabalho de Chaplin, é em todo caso, um fato  
incontestável que os seus dois únicos filmes do período, O Circo  
(1928) e Luzes da Cidade (1931), são iniciados, interrompidos e, só  
depois de algum tempo, retomados e concluídos. Quase três anos de  
intervalo separam o esboço primitivo da conclusão do Circo; outros  
três são necessários - principalmente por causa das convulsões  
produzidas pelo advento do som - para a realização de Luzes da  
Cidade. (OLDRINI, 2023, p.210).  
Os dois filmes da época, um logo antes do estouro da Crise, o outro logo  
depois, apresentam temas em comum, que já eram do interesse de Chaplin e que  
seriam ainda mais aprofundados pós-Crise. Afirma Oldrini: “O tema de maior  
importância que dos dois filmes emerge é aquele da instabilidade das condições  
humanas de vida geradas pelo capitalismo. A vida do homem, a satisfação de suas  
necessidades, o apaziguamento de seus sentimentos e desejos, dependem do  
mecanismo das leis econômicas capitalistas.” (2023, p.211). Seja pelas condições de  
vida precárias, seja pela dependência e subordinação àqueles que possuem o poder  
econômico, Carlitos se encontra nos dois filmes cercado por situações que o colocam  
como o “distúrbio”, como típico “vagabundo” característico do personagem. Em  
contraste com ambientes precários, familiares a Carlitos, vê-se o luxo exagerado do  
mundo dos ricos. Dessa vez, assim como na primeira parte de Em busca do ouro, e  
diferente de O Banco, a desigualdade aparece como fonte das mazelas e como  
obstáculo a ser superado, a fim de se ter um lugar na sociedade. Assim: “Quanto mais  
acentuado é o relevo destes motivos contrastantes, quanto mais ele se integra à  
história e determina seu tom, tanto mais ressalta a vontade de Chaplin de referir a  
articulação temática e a estrutura compositiva do filme aos desequilíbrios criados na  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 351  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
evolução do capitalismo americano durante a ‘Grande Crise’.” (OLDRINI, 2023, p.211).  
Associado a isso, Carlitos busca a ajuda de outras pessoas para, em conjunto, atingir  
determinados fins “humanitários”, como recuperar a visão da jovem moça em Luzes  
da Cidade, buscando na união com o outro a possibilidade de uma vida melhor.  
Esses dois primeiros filmes do período da Crise, porém, apesar de serem ricos  
pela diversidade de situações e contrastes apresentados, acabam caindo em um  
sentimentalismo e um humanitarismo vagos:  
(...) como sincero defensor do humanismo progressista, Chaplin está  
bem consciente de suas responsabilidades e das tarefas que lhe  
competem como artista. Mas sem uma adequada figuração da  
estrutura de fundo, sem que os dons, as qualidades humanas dos  
personagens se destaquem da posição recíproca que cada um ocupa,  
mesmo esta inspiração humanística permanece, inevitavelmente,  
abstrata. Assim, o humanismo cai no humanitarismo, e a luta pelo  
progresso vem a se identificar com a bem-intencionada ação do  
indivíduo, nos limites estreitos daquele sentimentalismo, daquela  
perspectiva romântica (...) (OLDRINI, 2023, p.212).  
Seus dois filmes seguintes, Tempos Modernos (1936) e O Grande Ditador  
(1940) avançam muito na investigação mais profunda das consequências da crise do  
capitalismo. Em 1936 a esperança e o otimismo em relação ao New Deal já não eram  
tão fortes, e os limites possíveis para o avanço da democracia em um país com os EUA  
ficavam mais evidentes, principalmente pela persistente condição precária de vida das  
classes mais baixas.  
Em Tempos Modernos, se o cotidiano apresentado é o que representa tais  
tempos, percebe-se que ele é marcado pela exploração, desemprego, miséria, injustiça  
e perseguição. Assim, mesmo com o tom cômico de sempre, a visão de Chaplin sobre  
a realidade dos EUA naquela época “moderna” é bastante negativa. Seja na  
mecanização do trabalho humano, seja pela rigidez do sistema que pune  
agressivamente qualquer desvio da norma, seja pelas condições precárias de moradia  
e saúde, o mundo conformado por Chaplin, reflexo do mundo real, é o retrato cru da  
sociedade capitalista que valoriza o progresso da economia industrial em detrimento  
da classe trabalhadora, que já naquela época infla o sistema prisional de forma  
arbitrária, que criminaliza greves e protestos, que não possui, por fim, qualquer tipo  
de suporte social para aqueles que necessitam. A modernidade do tempo não poderia  
ser mais retrógrada.  
Interessante notar que Chaplin ainda resiste a abandonar completamente o  
cinema mudo, incorporando de forma escassa as possibilidades do som e da fala.  
Verinotio  
352 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
Apesar da crítica feroz, Chaplin se rende ao otimismo quase ingênuo, ao humanismo  
abstrato, quando no final Carlitos e a sua companheira de desventuras são expulsos  
da cidade, mas seguem caminho com um sorriso no rosto pela estrada, tentando achar  
outro lugar para viver. Esse final reforça a crença de Chaplin na persistência individual,  
na busca contínua por uma vida melhor, mesmo quando a sociedade, como vimos em  
seu filme, exemplo após exemplo, destrói cada sonho por vez.  
Em O Grande Ditador (1940), a outra faceta da crise do capitalismo, a guerra e  
a barbárie fascista, é alvo da genial sátira de Chaplin. Nesse filme, finalmente, o cinema  
de Chaplin entra de vez na era do filme sonoro, sendo as falas essenciais para a  
transmissão do conteúdo. Seja no catártico discurso final que apela pela democracia  
total entre os homens, seja na própria língua inventada, que imita o alemão de Hitler  
de forma jocosa, o papel da linguagem se torna central aqui. O diretor amplia em todos  
os sentidos o escopo de seu filme, não só na técnica, mas retratando uma situação  
internacional, com impactos globais, com uma ambientação muito mais grandiosa e  
uma variedade de personagens e situações mais ricas e complexas em comparação  
com seus filmes anteriores.  
A denúncia se torna mais uma vez explícita, equilibrando de forma magistral o  
trágico com o cômico, e através do último, expondo a mais ridícula e extrema face da  
sociedade. Os personagens do gueto, perseguidos por serem judeus, possuem uma  
humanidade nunca antes expressa de forma tão viva nos filmes de Chaplin. Eles  
demonstram coragem, inteligência e perspicácia, mas também medo, dúvidas e  
fracassos. Além do personagem do barbeiro, o típico Carlitos, Chaplin também  
interpreta o ditador Hynkel, versão satírica de Hitler. Apesar da semelhança física entre  
os dois personagens, é possível perceber as minúcias da interpretação de Chaplin  
enquanto ator na criação de um contraste na tela que demarca claramente os dois  
tipos de humanidade defendida por eles. Enquanto diretor, sua montagem equilibra-  
se entre os dois lados opostos do tema, representados pelos dois personagens  
centrais. Herói e vilão que nunca se encontram, mas que são antagônicos no sentido  
mais profundo pela visão de humanidade que carregam em si. E é a visão do barbeiro,  
representante do humanismo de Chaplin, que ecoa ao final do filme, quase de forma  
mágica, para além dos campos dos países vizinhos, através do discurso que clama pela  
união dos homens em nome da prosperidade fraternal de todos.  
Com esse filme: “Chaplin deixa definitivamente de lado qualquer ilusão  
alimentada para a sociedade burguesa de seu tempo, e com isso também qualquer  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 353  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
ilusória tentativa de decidir o destino do indivíduo de fora das relações e das leis  
vigentes em tal sociedade.” (OLDRINI, 2023, p.219). Contudo, Oldrini, reconhecendo  
todos os méritos do filme, argumenta que Chaplin encontra-se no meio de dois pólos  
inconciliáveis:  
Por um lado, certamente, ele empurra, muito mais profundamente que  
no passado, as raízes de seu humanismo individualista nas  
perspectivas sociais da democracia. Por outro lado, e em inextricável  
conexão com essa específica forma de “romance pedagógico”, está a  
limitação derivante da circunscrição ainda exclusivamente  
individualista dos fenômenos sociais, encontrada particularmente  
nisto: que Chaplin, servindo-se do expediente narrativo da duplicação,  
coloca o inteiro peso da regeneração democrática de um povo sob os  
ombros (demasiado) frágeis do personagem do barbeiro. Este  
amadurecimento da consciência que está na base do objeto da  
narrativa se dá, no indivíduo, separadamente da objetividade do  
contexto histórico-social que o determina e que, como vimos, ela  
mesma investe e contribui para modificar. Assim, o lado pedagógico-  
democrático de Chaplin, seu apaixonado e apaixonante protesto  
humanístico, o seu grito de liberdade para o homem não se refletem  
plenamente nem em uma coerente visão geral da realidade, nem -  
estilísticamente - nos meios expressivos empregados. (OLDRINI,  
2023, p.219).  
O cinema de Chaplin, porém, foi o que mais soube expressar de forma artística  
os contrastes da sociedade no período entre as duas guerras, elevando-se ao nível de  
um verdadeiro realismo crítico. Seu amadurecimento não pararia por aqui.  
2.2 A Conclusão De Uma Carreira Brilhante  
A década de 1940 em diante irá representar um grande desenvolvimento na  
produção cinematográfica mundial. Com a consolidação definitiva do cinema falado,  
surgem diversas novas formas de se fazer cinema, seja no âmbito experimental,  
documental, musical ou das animações. O cinema se expande de forma incontornável.  
Empolgados com as novas possibilidades oferecidas pelo cinema sonoro, os diretores  
buscam expandir a linguagem fílmica, realizando obras diversas e inovadoras, sendo  
um dos principais exemplos o neorrealismo italiano, que iria influenciar todo o globo,  
inclusive Chaplin:  
(...) grande parte do cinema mundial sofre repercussões e sobressaltos  
do neorrealismo, no sentido de que, de um modo ou de outro, passa  
através da experiência direta de seus produtos ou pelo confronto  
crítico com eles. De nenhuma parte vem nada que, em seu próprio  
terreno seja mesmo remotamente comparável em valor. Mas aqueles  
resultados surgidos que lhe são comuns não teriam surgido, ou ao  
menos não o teriam sido assim, sem a influente matriz última do  
neorrealismo italiano. (OLDRINI, 2023, p.357).  
Verinotio  
354 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
Derivado dessa influência, Chaplin alcança, em sua última fase, o realismo  
crítico, comparável às grandes obras de arte da modernidade, com os seus três filmes  
derradeiros, Monsieur Verdoux (1947), Luzes da Ribalta, (1952) e Um Rei em Nova  
York (1957). Nesses filmes, reaparece o tema central de toda grande obra chapliniana  
prévia: a luta pela adequação e pela sobrevivência do homem na sociedade capitalista.  
Mas dessa vez, a trama se eleva a um nível de complexidade maior, removendo os  
traços ingênuos do passado, levando às últimas consequências o que é exigido pelo  
conteúdo. Se no final de Tempos Modernos os dois andarilhos seguem miseráveis, mas  
com um sorriso no rosto, mesmo depois de serem humilhados e expulsos da cidade,  
em Monsieur Verdoux o protagonista caminha, no fim, em direção à guilhotina, após  
se entregar à polícia e confessar todos os crimes cometidos. Mas Chaplin não se  
entrega ao pessimismo, pois é no equilíbrio tragicômico que o seu realismo ganha  
forma. A guilhotina não é exibida como punição, mas como redenção do personagem.  
Agora, “se Verdoux falha e a sociedade que o nutriu acaba por repudiá-lo e condená-  
lo à morte como criminoso, isto se deve ao tipo social que ele encarna ser já  
objetivamente superado pelo desenvolvimento da realidade histórica.” (OLDRINI,  
2023, p.375). O que se condena é a sociedade, que produz tamanhas contradições  
que, como diz Verdoux em seu discurso final: “Tudo são negócios. Um assassinato faz  
um vilão; milhões, fazem um herói.” O que Chaplin consegue alcançar, em sua última  
fase, é:  
o reemergir em um mais alto e diverso nível de consciência, da atenção  
para aquela problematicidade da vida humana dentro das  
contradições irremediáveis do capitalismo, para aqueles fenômenos  
capitalistas de desequilíbrio entre o indivíduo e a sociedade, que a  
Chaplin se impusera como central desde a época da Busca do Ouro.  
Só que com as convulsões bélicas e pós-bélicas, com o advento da  
guerra fria, com o aguçar das tensões no campo internacional, entra  
agora definitivamente em crise, também do ponto de vista da  
consciência subjetiva do autor, a mítica, idealizada imagem do homem  
médio em luta por uma espécie de democracia ‘espiritual’, que ele  
carregava consigo e na qual tinha amplamente confiado durante o  
período da “grande crise”, até inclusive O Grande Ditador. Daí a sua  
justificada decisão de se livrar também da figura exterior da máscara  
de Charlot [Carlitos], agora pouco mais do que uma simples  
sobrevivência. A velha figura se torna agora, de fato, apenas um  
impasse e um obstáculo no esforço que ele fazia para conduzir à  
objetivação cada vez mais concreta as intuições artísticas  
características de sua maturidade, em analogia com os pensamentos  
manifestados por Goethe, a respeito do segundo Faust (...): "Poema e  
herói exigem escapar da atmosfera da adolescência, da genial  
anedota, para sair à objetividade, ao espírito universal, ativo, viril'.  
“Toda tendência vital sabe deixar o subjetivo e voltar-se para o  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 355  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
mundo”, afirma o próprio Goethe em um colóquio com Eckermann; e  
em um posterior, de 17 de fevereiro de 1831, insiste expressamente  
sobre a novidade representada pelo aparecimento, na segunda parte  
do Faust, de um "'mundo mais alto, mais amplo, mais sereno" em  
relação àquele da primeira, “ainda quase de todo subjetivo”. (OLDRINI,  
2023, p.367-8).  
Com essa abertura ao “grande mundo”, Chaplin, segundo Oldrini, se equipara  
no cinema ao que Thomas Mann é na literatura do século XX, pois a grandeza artística  
de qualquer artista realista, como os dois, se manifesta “na conexão que permite,  
através da paridade evocativa da forma, com a autoconsciência da humanidade, ou  
seja, com os problemas, para o homem, decisivos, emergindo do fluxo histórico geral  
da realidade (da sociedade).” (OLDRINI, 2023, p.370). Se manifesta também na  
unidade do cômico com o trágico, um se mesclando com o outro e oferecendo, dessa  
forma, uma “resposta humanista às dilacerações do presente.” (OLDRINI, 2023, p.373).  
Ambos os autores foram obrigados, após o fim da Segunda Guerra, a reavaliar a  
sociedade burguesa, reafirmando os valores humanistas de ambos e elevando suas  
obras ao nível do realismo crítico. E é a defesa da integridade do homem, de sua  
dignidade frente às contradições do capitalismo, característica do realismo crítico  
burguês no qual se encontra Mann, que marcam também a última fase de Chaplin:  
Agora, quanto mais Chaplin se move nesta direção, quanto mais se  
alarga o horizonte de seu mundo, quanto mais resolutamente ele  
também escapa da "genial anedota" de seus trabalhos pré-bélicos e  
do “pequeno mundo" das experiências do personagem de antes,  
passa, ou tende a passar, a experiências de significado universal, isto  
é, ao "grande mundo" da objetividade no sentido de Goethe  
(passagem que representa também, não por acaso, o nó problemático  
central do contemporâneo Doktor Faustus, de Thomas Mann), tanto  
mais se confirmam os traços realistico-objetivos de sua poética,  
sempre em antítese ao subjetivismo parasitário da decadência e à  
poética da arte de vanguarda: recusa da deformação pela deformação,  
incessante vontade de se confrontar com os problemas da realidade  
social, capacidade de compreender e representar artisticamente, para  
além de todo mesquinho ‘realismo' confinado à reprodução do  
cotidiano, da média, dos nexos reais essenciais, e assim por diante.  
(OLDRINI, 2023, p.368-9).  
O que Chaplin consegue fazer com o seu Verdoux é criar um outro personagem  
que vai além do típico vagabundo, mas que em um único filme é capaz de representar  
um novo tipo, o de um típico vigarista que enxerga na maleabilidade das regras do  
capitalismo uma possibilidade de ascensão social. O que a figura de Verdoux  
representa é a crise e as contradições da sociedade burguesa, demonstradas a partir  
de um único indivíduo cujas ações tipificam a conduta geral de “cada um por si”, “a  
fim de retratar na experiência de uma catástrofe individual a perspectiva para a correta  
Verinotio  
356 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
iluminação da catástrofe de uma inteira sociedade” (OLDRINI, 2023, p.373), assim  
como o faz Thomas Mann a partir de seu Adrian Leverkühn do Doutor Fausto,  
curiosamente lançado no mesmo ano que Verdoux, em 1947:  
A consequência necessária desta tendência orientada em direção à  
objetividade, desta ascensão ao "espírito universal", é a mudança de  
função do personagem, prelúdio e pressuposto ao mesmo tempo do  
desaparecimento da máscara; porque “o reconhecimento e a  
reelaboração das grandes contradições objetivas da realidade  
histórico-social, sobretudo na sua forma especificamente capitalista"  
conduz o artista - Chaplin assim como o Goethe do qual está falando  
Lukács em seus estudos sobre Faust - a um campo sem limites, de tal  
forma que “se rompe toda estrutura formal”, e onde o singular  
"indivíduo (representante do gênero humano) acaba necessariamente  
desaparecendo”. Assim o indivíduo, por causa de sua colocação  
dentro e em relação com os problemas do “grande mundo”, é  
retratado desde o início sob um aspecto que quebra seus "contornos  
individuais”: “destino individual não pode representar mais que um  
vislumbre do caminho do gênero humano". (OLDRINI, 2023, p.369).  
Enquanto Um Rei em Nova York satiriza de forma genial as armadilhas da  
ganância e as patéticas personalidades reféns ao luxo prometido pelo capitalismo, em  
Luzes da Ribalta, o diretor faz um acerto de contas com o conjunto da sua obra,  
refletindo de forma metalinguística sobre o final da carreira de um comediante, Calvero,  
que espelha a sua própria. A sociedade, sempre em transformação, em nome do  
progresso, já não acha mais graça de suas piadas e performances, o velho precisa dar  
lugar ao novo. Chaplin, porém, evita cair em um tom melancólico e sentimentalista. Ao  
contrário, ele reafirma seus valores humanistas, e luta para que o novo que emerge  
saiba a importância e o grande valor da vida, da arte e de tudo que é humano. Ele traz  
de volta à vida, literalmente, a bailarina Terry, salvando-a de uma tentativa de suicídio.  
Ao longo do filme, a missão de Calvero é reconduzir a bailarina aos palcos, mas, ainda  
mais importante, é fazê-la recuperar o gosto pela vida: “Mais inevitável do que a morte,  
é a vida!”, diz ele. Tal lema faz eco à conclusão que chega o personagem Hans Castorp  
após sua aventura na neve na obra de Thomas Mann, A Montanha Mágica: “Em virtude  
da bondade e do amor o ser humano não deve conceder à morte poder algum sobre  
seus pensamentos.” (MANN, 2016, p.571). Ao final do filme, a missão de Calvero, e  
também a de Chaplin, se cumpre:  
Quando Calvero faz com que Terry saia do torpor e a restitui (...) à  
vida e ao trabalho, à dança, a sua tarefa pedagógica está terminada e  
ele pode legitimamente se afastar, falecer. Realiza-se assim uma  
espécie de hegeliana e goetheana (faustiana) “tragédia na ética”. O  
falecimento de Calvero, sua morte como indivíduo, vale mais como  
uma ‘passagem’, como uma continuação e a reafirmação em um nível  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 357  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
superior da vida do gênero humano. (OLDRINI, 2023, p.380).  
O talento artístico de Chaplin torna-se incomparável na história do cinema pois  
ele domina todos os aspectos da realização de um filme, desde o roteiro, passando  
pela atuação (sempre impecável e, nos últimos filmes, surpreendente), pela direção e  
chegando até à música, a qual também é composta por ele. O domínio técnico,  
contudo, não bastaria sem o elevado nível artístico, sempre ligado ao seu inabalável  
humanismo:  
A grandeza de sua arte está em estreita relação com a profundidade  
de seu realismo. Podem dizer o que quiserem os mitólogos,  
espiritualistas, idealistas, estruturalistas e formalistas de todos os  
matizes: Chaplin está ligado e se relaciona às melhores tradições  
realistas da cultura mundial, e dos melhores representantes do  
realismo, em todos os campos, ele possui o talento e a estatura.  
(OLDRINI, 2023, p.386).  
Considerações finais  
A morte de Chaplin, em 1977, sepultou também a sua maneira de se fazer  
cinema, nunca mais replicada. Desde então, todos os perigos de vulgarização da arte,  
seu esvaziamento de sentido, e o constante abandono de sua missão social foram  
apenas agravados. O individualismo, o culto da pessoa privada como saída às crises  
capitalistas se tornaram ainda mais comuns a partir da década de 1970. A noção de  
gênero humano enquanto unidade imanente na qual pertencem todos os homens  
parece cada vez mais frágil, em nome da busca por sucesso e satisfação individual  
propagandeada pelo capitalismo tardio.  
No cinema, a primazia da técnica em detrimento do conteúdo tornou-se regra.  
A arte se limita a sobreviver nas raras exceções. Dentre os críticos de cinema reina a  
ausência de critérios estéticos, com a maioria deles tendo formações jornalísticas  
genéricas, sem especificações precisas ou aprofundadas, sem contato com a rica  
tradição filosófica que debate há milênios a arte, seja no Brasil ou no mundo. Resta,  
tanto aos críticos quanto ao público, uma infantilização do gosto, facilitada pela  
vulgarização dos temas e pelo subjetivismo, na qual o valor de uma obra é definido  
a partir das diversas interpretações possíveis e onde cada opinião possui o mesmo  
peso que uma análise estética. As expectativas em relação à obra valem mais do que  
o que a obra tem a dizer, tudo em nome da satisfação individual. Os temas nacionais  
parecem ter sido abandonados pelos filmes, e a tentativa de refletir o espírito da época  
de um determinado país cedeu lugar ao apelo global e, consequentemente, superficial  
e banal. O cinema se torna, portanto, o reino da fetichização. A categoria do típico é  
Verinotio  
358 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini  
substituída por estereótipos que reduzem e simplificam a realidade até que a mesma  
se encontre refletida na obra como um mundo nulificado, empobrecido e sem suas  
reais nuances:  
A tentativa de obter diretamente de uma mera subjetividade - sempre privada  
- a plenitude de uma obra de arte será sempre uma ilusão, terá sempre como base  
uma transcendência que, na realidade, será vazia, não terá nenhum conteúdo além do  
Nada; por isso tudo que foi conformado o foi de forma arbitrária; a pretensão de ser  
para si se dissolve em nulidade. (LUKÁCS, 1967b, p.544).  
O cinema, no entanto, por ser filho do capitalismo, tem a possibilidade de ser  
uma arte autêntica e popular mesmo dentro desse modo de produção, como já provou  
ser. Para isso, contudo, é preciso que os artistas da época estejam dispostos a realizar  
a tarefa que lhes cabe, como Chaplin o fez, compreendendo que:  
(...) toda etapa específica de desenvolvimento exige aos homens  
determinadas tarefas e neles suscita as mais diversas forças, com  
diferenças individuais, mas em formas típicas. De acordo com a  
natureza concreta das situações históricas pode, às vezes, fazer das  
virtudes vícios e dos vícios, virtudes, porque os homens, para  
poderem atuar diretamente nas condições dadas, precisam  
desenvolver ou inibir em si mesmos qualidades que, de forma isolada,  
produzem neles determinadas deformações, mas que são  
imprescindíveis para a execução das tarefas históricas e, portanto,  
éticas no sentido básico da ação ética. Apenas através dessa dialética  
pode a figura humana poeticamente conformada representar  
verdadeiramente sua época, e só assim tais figuras podem produzir  
nos sujeitos receptores uma catarse fecunda e educá-los com a  
autoconsciência, fazendo deles verdadeiros cidadãos de sua época.”  
(LUKÁCS, 1967b, p.573).  
REFERÊNCIAS  
LUKÁCS, György. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.  
______. Estética: a peculiaridade do estético v.1. Questões preliminares e de princípio.  
Trad. Nélio Schneider. Boitempo Editorial, 2023  
______. Estetica I: La peculiaridad de lo estetico. v. 2. Problemas de la mímesis.  
Traducción de Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1966b.  
______. Estetica I: La peculiaridad de lo estetico. v. 3. Categorías psicológicas y  
filosóficas básicas de lo estético. Traducción de Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo,  
1967a.  
______. Estetica I: La peculiaridad de lo estetico. v. 4. Cuestiones liminares de lo  
estético. Traducción de Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1967b.  
______. Estetica. Volume primo. Trad. Anna Marietti Solmi. Torino, Giulio Einaudi  
Editore, 1970.  
______. Die Eigenart des Ästhetischen, Band I-II; Berlin und Weimar: Aufbau-Verlag,  
1987.  
______. Essenciais são os livros não escritos: últimas entrevistas (1966-1971). Trad.  
Ronaldo Vielmi Fortes. Boitempo Editorial, 2020a.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024 | 359  
nova fase  
João Paulo Galhardo Brum  
MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Trad. Herbert Caro. Editora Companhia das Letras,  
2016.  
OLDRINI, Guido - György Lukács e os problemas do marxismo do século 20. Trad.  
Mariana Andrade. Maceió: Coletivo Veredas, 2017.  
______. História do cinema na cultura do século XX : um mapeamento crítico. Trad.  
Bruno Bianchi. Coletivo Veredas, 2023.  
______. Il cinema nella cultura del novecento; Firenze, Casa Editrice Le Lettere, 2006.  
WARSHOW, Robert. The Gangster as Tragic Hero (1948). The Gangster Film Reader, p.  
11, 2007.  
Como citar:  
BRUM, João Paulo Galhardo. O cinema de Charlie Chaplin segundo Guido Oldrini.  
Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 335-360; jul.-dez., 2024  
Verinotio  
360 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 335-360 jul.-dez., 2024  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.741  
Retorno a Budapeste:  
Lukács, democracia e realismo*  
Return to Budapest: Lukács, democracy and realism  
Paula Alves**  
Resumo: O retorno de Georg Lukács à Hungria  
ocorreu em dois momentos distintos: primeiro  
em 1918, após sua estadia na Alemanha, e  
depois em 1945, após seu exílio em Moscou.  
Esses dois retornos marcam diferentes fases de  
sua trajetória intelectual. O primeiro foi fortuito,  
enquanto o segundo resultou de uma decisão  
consciente, refletindo um desenvolvimento.  
Partindo dessa constatação, a análise que segue  
busca traçar os elos entre o exílio moscovita e o  
período subsequente, explorando as "tentativas  
de realização" que Lukács empreendeu na  
Hungria e as questões relacionadas com o  
surgimento da democracia popular no Leste  
Europeu.  
Abstract: The return of Georg Lukács to Hungary  
occurred in two distinct moments: first in 1918,  
after his stay in Germany, and then in 1945,  
after his exile in Moscow. These two returns  
mark different phases of his intellectual journey.  
The first was fortuitous, while the second  
resulted from a conscious decision, reflecting a  
process of development. Based on this  
observation, the following analysis aims to trace  
the connections between the Moscow exile and  
the subsequent period, exploring the "attempts  
at realization" that Lukács undertook in Hungary  
and the issues related to the emergence of  
popular democracy in Eastern Europe.  
Keywords: Georg Lukács; realism; people's  
democracy in the 1940s.  
Palavras-chave:  
Georg  
Lukács;  
realismo;  
democracia popular nos anos 1940.  
“Um tempo estranho esse, no qual uma dimensão  
fundamental da política consiste em salvar o passado de seu  
próprio exílio (...)”.  
Vladimir Safatle, Alfabeto das colisões  
“Pois seu interesse surgiu de seu desejo de mudar o mundo.  
A reflexão contemplativa sempre foi estranha para você.”  
István Eörsi, “Gelebtes Sterben”  
Já ao final da vida, em 1969, Lukács escreveu um prefácio para uma coletânea  
de seus artigos e ensaios que tratavam da literatura húngara. Passando em revista as  
estações de sua tumultuada relação com a cultura de seu país natal, ele identifica  
* Agradeço a leitura generosa de Betina Bischof e Dyogo Leão que me permitiu chegar o mais próximo  
possível de uma versão final desse texto.  
**  
Mestre em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo. E-mail:  
paulaama@hotmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Paula Alves  
pontos de inflexão na sua trajetória que repercutem tanto positiva, quanto  
negativamente tendências significativas da realidade social. A certa altura, então, ele  
compara os dois momentos em que retorna para a Hungria: o primeiro, em 1918,  
depois de sua estada em Heidelberg, na Alemanha, e depois em 1945, quando retorna  
de seu exílio moscovita. O primeiro retorno para casa, mesmo tendo sido fortuito,  
possibilitou que ele vivesse as repercussões da revolução bolchevique em solo natal e  
começasse, então, a esboçar os contornos de uma resposta para as perguntas que o  
ocupavam. Mas ele não havia sido, afirma Lukács, uma “decorrência causalmente  
necessária de [seu] desenvolvimento prévio” (LUKÁCS, 2023, p. 250). Depois de  
revisitar momentos-chave do período entre 1918 e 1945, em que ele destaca “a  
apropriação do marxismo” e da obra de Lênin durante o exílio em Viena, os  
desdobramentos do movimento ilegal húngaro que vão culminar nas Teses de Blum e  
sua atividade em Moscou (que incluiu colaborações para a Új hang [Novas vozes], a  
“revista da Frente popular húngara”), Lukács conclui:  
Como resultado de um desenvolvimento interior fundamental, meu  
regresso para casa após 1945 de modo algum se assemelha ao acaso  
que me fez estar presente na Hungria durante a Revolução de 1918.  
Pelo contrário, essa foi uma decisão totalmente consciente pelo meu  
retorno e contra a oferta concreta do espaço linguístico germânico.  
(LUKÁCS, 2023, p. 256; tradução modificada)  
Se, em 1918, Lukács acaba afinal por retornar a Budapeste por razões que  
estavam fora de seu controle1, no segundo momento, em 1945, isso muda de figura.  
Esse passo foi o “resultado”, o desdobramento necessário de um “desenvolvimento  
interior fundamental”. Assim, Lukács retorna para a Hungria de maneira “totalmente  
consciente”. Mas por quê, qual a linha de continuidade que ele identifica nessa  
decisão?  
Não há maiores indicações a esse respeito no prefácio de onde  
tiramos a citação, mas, parece-nos, é possível encontrar em suas  
anotações autobiográficas recolhidas em Pensamento vivido uma  
alusão às circunstâncias que são decisivas para Lukács nesse  
processo. Ele as escreveu em momentos de pausa de seu intenso  
trabalho de correção dos manuscritos de Para uma ontologia do ser  
social, quando sua saúde já estava bastante debilitada2. Ao terminar  
1
Convencido por Ernst Bloch, Lukács havia se mudado para Heidelberg em 1912. Apesar de sua  
profunda decepção com a postura do círculo intelectual alemão em relação à I Guerra Mundial, ele  
considerava a possibilidade de permanecer lá. Seu plano era realizar a habilitação na Universidade de  
Heidelberg, sob a supervisão de Weber. Contudo, sua tentativa de ingressar na academia alemã foi  
frustrada, em parte devido a questões de antissemitismo e xenofobia (cf. BAEHRENS, 2023, p. 9), e ele  
então retorna para a Hungria no final de 1917.  
2
Afinal, dessa maneira é o que afirma István Eörsi Lukács conseguia continuar trabalhando, já que  
Verinotio  
362 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
esse esboço de sua trajetória, Lukács se deu conta de que não teria  
forças para elaborá-lo, o que explica o caráter fragmentário, por vezes  
enigmático, dessa seção de Pensamento vivido3.  
Nesse esboço, ao final da parte correspondente ao exílio em Moscou, cujo título  
é “Alargamento do campo de conflito”, Lukács registra: “possibilidades. No plano  
húngaro (VII Congresso) análise do movimento democrático. (a favor democracia  
popular crítica liberalismo). Crítica às Teses de Blum desapareceu” (2017, p. 210;  
tradução modificada). Note-se de passagem que, em um parágrafo um pouco acima,  
Lukács já havia se referido a essa situação, alternando entre comentários sobre a União  
Soviética e a Hungria:  
Digno de nota: esse isolamento (Literaturnyj kritik acaba;  
Internationale Literatur frequentemente muito problemática) após o  
VII Congresso do Comintern: possibilidades húngaras: tendências da  
frente popular também na literatura de Moscou tendências para a  
avaliação correta de orientações intelectuais dentro do regime de  
Horthy e em defesa ideológica contra fascismo. (2017, p. 209)  
Após mencionar que a celeuma entorno das Teses de Blum havia desaparecido,  
o filósofo passa a um plano mais pessoal, quando se refere além do mais a seu  
encarceramento4 e à relação com Gertrude Bortstieber, sua companheira:  
Pessoalmente: não sem dificuldade (duas prisões). Apesar disso:  
humanamente o mais harmonioso: relacionamento com G. Não  
“embelezamento”, nada de “otimismo”. Mas sensação: não só  
aproximação do caminho certo (na verdade pretendido): m[arxismo]  
como ontologia histórica, mas ao mesmo tempo: perspectivas –  
ideologicamente de poder realizar algo dessa tendência. (2017, p.  
210; tradução modificada)  
Então começa a curta seção que contempla o retorno à Hungria e que vai  
culminar no desastroso “debate Lukács”. Intitulada “Tentativas de realização na pátria”,  
o filósofo a abre da seguinte maneira: “Regresso ꢀ pátria com esperanças. Seu  
fundamento (muito temporário): tática de Rákosi e Gerő. Isso possibilitado pela bem  
“ele não poderia suportar uma vida sem trabalho” (cf. LUKÁCS, 2005, p. 49) e a rememoração  
demandava menos esforço do ponto de vista teórico do que a outra frente em que estava atuando.  
Além do mais, era um desejo de sua falecida companheira que ele escrevesse suas memórias.  
3
Se alguns aspectos pontuados nas anotações foram contemplados à exaustão na entrevista que é a  
parte central desse volume, outros não chegam nem a ser mencionados. O período da emigração e do  
retorno à Hungria correspondem às seções III e IV da entrevista (LUKÁCS, 2005, pp. 103-197; na  
tradução para o português pp. 95-183). Ali, Lukács expõe diversos aspectos que vão de sua  
participação na revista Literaturnyi kritik até considerações sobre Trotsky, da liberdade de que gozou  
no seu retorno a Hungria até o início do “debate Lukács”, das relações que tinha nos meios intelectual,  
político e artístico húngaros etc. Mas justamente essa questão das suas motivações não é abordada do  
ponto de vista de sua necessidade.  
4 Na parte de entrevistas Lukács (2005) comenta a respeito em pp. 128-9, bem como em pp. 143-5.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 363  
nova fase  
   
Paula Alves  
sucedida propaganda de princípios da transição democrática, durante vários anos. (De  
sua indiferença ideológica – liberdade para mim)” (2017, p. 211).  
Não é possível tirar conclusões a partir desse material, que, embora sugestivo,  
é bastante fragmentário. A despeito disso, parece que é, sim, possível traçar um  
itinerário a partir dele. Ao acompanhar as reflexões autobiográficas de Lukács, não  
parece que ele está recuperando o desdobramento de possibilidades, cujo registro  
capta tanto mudanças na conjuntura mundial quanto os ecos dessas mudanças em sua  
própria trajetória? Se recuperamos a que essas possibilidades se referem, vemos que,  
num primeiro momento, elas aparecem mais diretamente ligadas a um acontecimento  
histórico, o VII Congresso da Internacional Comunista. Em seguida, Lukács amplia o  
plano em que se delineiam essas tendências promissoras, indicando, por um lado, a  
percepção de que havia finalmente encontrado o caminho teórico correto, o que ele  
sintetiza nos termos de um “marxismo como ontologia histórica”. Por outro, ele  
vislumbrava um momento de abertura em que se tornava possível pôr em prática, no  
campo ideológico, algo dessa tendência teórica, da “ontologia histórica”, o que parece  
se concretizar de alguma maneira no momento seguinte de sua vida (marcado,  
justamente, por “tentativas de realização”).  
Lukács encerra assim suas recordações do período moscovita sinalizando uma  
abertura que se dá tanto no sentido teórico quanto no prático5 e começa o seguinte  
falando de “esperanças” e “realização”. Parece haver aí – nessa altura só é possível  
enxergar isso em um plano puramente semântico - um arco que liga sua atividade  
durante os anos de exílio em Moscou e aquela de um momento de sua trajetória que,  
em geral, é ainda menos conhecido. E talvez essa seja uma das razões que torna um  
tanto difícil apreender mais concretamente qual seria, no trecho citado acima (que além  
do mais emprega termos bastante amplos), a relação entre “ontologia histórica” e  
“poder realizar algo dessa tendência”, e o que isso teria a ver afinal com a “bem  
sucedida propaganda de princípios da transição democrática”. Essas anotações  
parecem adquirir, assim, o estatuto de pistas, apontando em uma direção que é preciso  
investigar e determinar melhor. É o que se busca fazer no que segue: por um lado,  
entender o que liga o período moscovita ao período subsequente da produção de  
5
Ao refletir sobre esse momento de transição em sua vida, Lukács destaca tanto possibilidades que  
dizem respeito à sua atividade política, quanto a seus posicionamentos teóricos, que se encontram,  
portanto, entrelaçadas. Isso cria uma unidade entre teoria e práxis que, segundo Béla Köpeczi (1989,  
p. 17), é característica desse período de sua trajetória, quando essa unidade se realiza de maneira mais  
intensa.  
Verinotio  
364 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
Lukács. Por outro, estabelecer o sentido dessas “tentativas de realização”, ao situar  
um pouco certas questões com as quais o filósofo húngaro se ocupou intensamente  
naquele momento.  
Lukács em Moscou  
No início da década de 1930, já tendo percorrido um longo caminho como  
intelectual marxista no interior do movimento comunista, é que Lukács pôde  
concretizar o viés de interpretação que marcará suas leituras de Marx dali em diante.  
Trata-se, nos seus termos, de um “novo posicionamento”, que foi facilitado por “dois  
felizes acasos” relacionados com sua temporada de trabalho no Instituto Marx-Engels,  
em Moscou: o contato com os Manuscritos econômicos-filosóficos, de Marx, e o início  
da amizade com Mikhail Lifschitz (LUKÁCS, 1968, p. 38)6.  
Ao ler na íntegra os Manuscritos, com o qual ele foi um dos primeiros a ter  
contato, Lukács se depara com uma forma de considerar a objetividade que, embora  
não estivesse ausente dos outros textos de Marx, só pôde ganhar vulto para ele,  
chegando a chocá-lo, a partir de um “texto inteiramente novo” (LUKÁCS, 1968, p. 38).  
É como se esse “novo Marx” tivesse aberto seus olhos – um pouco embotados por  
uma “interpretação hegeliana de minha lavra” (LUKÁCS, 1968, p. 38) – para o sentido  
e a importância da objetivação7. Trata-se de um passo na direção da apreensão dos  
fundamentos ontológicos do pensamento de Marx, ou, nos termos de Pensamento  
vivido, uma “aproximação do caminho certo”.  
Esse novo caminho também traz consigo consequências para a reflexão estética  
de Lukács, que passa por um amadurecimento ao longo dos anos 1930. Como é  
sabido, nesse período ele se ocupou intensivamente de questões relacionadas à  
literatura e às artes, o que pode ser visto, em larga medida, no contexto maior de seu  
esforço para fundamentar a ideia de que “a estética [constitui uma] parte orgânica do  
sistema de Marx” (LUKÁCS, 2017, p. 208). Esse “desejo de aproveitar [seus]  
conhecimentos nas áreas da literatura, da arte e de sua teoria para a consolidação de  
uma estética marxista” (LUKÁCS, 1968, p. 39) é o que o aproxima de Lifschitz, com  
6
Como reforça Ana Cotrim (2016, p. 103), esse desenvolvimento teórico é um processo para o qual  
concorrem alguns fatores. Na literatura secundária, esse “recomeço” ficou conhecido como “virada  
ontológica”. A esse respeito, cf. Netto (2002, pp. 79 ss) e Vedda (2006, pp. 63 ss).  
7
Distinta do estranhamento [Entfremdung], que seria uma forma de objetivação específica de um  
momento histórico também específico, a objetividade [Gegenständlichkeit] passa a ser entendida por  
Lukács como uma “propriedade material primária de todas as coisas e relações” (LUKÁCS, 1968, p. 38)  
e, portanto, como uma determinação da realidade que não pode ser superada.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 365  
nova fase  
   
Paula Alves  
quem manterá uma amizade por toda a vida. Embora, como pontua Ana Cotrim, Lukács  
só venha a realizar (parcialmente) esse projeto décadas mais tarde, ao redigir a sua  
Estética, os numerosos textos de crítica literária escritos durante o exílio moscovita  
não deixam de “representa[r] um passo significativo em direção ꢀ construção de uma  
estética marxista” (COTRIM, 2016, p. 112). Isso porque neles Lukács “alcança a  
perspectiva do realismo e desenvolve suas questões centrais” (COTRIM, 2016, p. 112).  
Dessa forma, essa extensa produção em torno dos problemas do realismo não só se  
baseia nesse “novo posicionamento”, oriundo da apreensão de uma ontologia  
marxista, como também representa uma oportunidade de concretizar os problemas  
que emergem a partir dela (cf. COTRIM, 2016, p. 112).  
Ao mesmo tempo, durante todo esse período, em suas reflexões sobre literatura  
e, de um modo geral, sobre ideologia, transparece uma das maiores preocupações do  
filósofo, compartilhada por tantas outras figuras importantes dentro e fora do  
marxismo como a questão vital da época: o surgimento do fascismo, sua ascensão em  
diferentes cantos da Europa e os reflexos disso nas formas ideológicas. A maneira  
como Lukács aborda esse fenômeno oscila em função da situação histórica8 e da  
avaliação que ele, em sintonia com o movimento comunista internacional, faz dela.  
Como observa János Ambrus (1993, p. 418), em virtude disso, ele enfrentou  
retrocessos durante a busca por conclusões corretas:  
Basta dizer que aquele que, em 1929, havia desafiado a estratégia do  
Partido Comunista Húngaro e propôs o estabelecimento de uma  
ditadura democrática de trabalhadores e camponeses, passou a  
adotar no início dos anos 30 uma abordagem equivocada do  
movimento comunista, ou seja, a reduzir os problemas sociopolíticos  
da época à escolha entre fascismo ou bolchevismo.  
Em 1929, Lukács havia levado para o II Congresso do PCH as Teses de Blum9,  
em que ele, negando a atualidade de uma transição imediata para a ditadura do  
proletariado, advogava por reformas democráticas, tendo em vista não só que a onda  
revolucionária havia se estagnado, mas também em resposta a fenômenos de caráter  
8
É claro, afirma László Sziklai, que as perspectivas do antifascismo no momento da tomada do poder  
por Hitler diferem das que se vai ter no início da década de 1940, “quando o exército alemão ainda  
estava diante de Moscou, mas estava de costas para Moscou” (1990, p. 10). Quanto a isso, cf.  
especialmente Sziklai (1990, pp. 10; 21-25).  
9
Posteriormente, mesmo tendo dúvidas a respeito do “valor objetivo” dessas “Teses”, Lukács (2023,  
p. 254) escreve o seguinte: “A despeito de tudo, é um fato histórico [...] que a perspectiva geral das  
Teses de Blumfoi confirmada pelo desenvolvimento húngaro; [...] essas Teses foram importantes para  
o meu próprio desenvolvimento: [...]; aqui eu me tornei pela primeira vez um ideólogo que deriva suas  
perspectivas da própria realidade – e mais precisamente da realidade húngara.”.  
Verinotio  
366 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
fascista que despontavam na Europa. Sua proposta foi duramente derrotada. É  
possível, como pondera László Sziklai (1990, p. 12), que o “fiasco” das Teses de  
Blum10 tenha desempenhado um papel nada irrelevante na postura que Lukács passa  
a adotar no início dos anos 1930, colocando o problema em termos próximos da tese  
do socialfascismo, que havia começado a ser propagada na década anterior. Dela  
decorre que apenas o proletariado seria capaz de combater efetivamente o fascismo,  
no espírito da luta de “classe contra classe”, já que o fascismo seria o “irmão gêmeo”  
da social-democracia. Essa suposição de que haveria apenas a alternativa entre  
fascismo ou bolchevismo leva a distorções em muitas das análises que Lukács realiza  
nesse período, pois, partindo dessa estrutura, ele procura demonstrar a existência de  
um paralelo entre “a oposição de fachada da socialdemocracia e o comportamento da  
intelligentsia enquanto produtora de ideologia” (SZIKLAI, 1990, p. 14).  
Consequentemente, continua Sziklai (1990, 13), “qualquer oposição que se erga em  
uma plataforma burguesa é, por um lado, uma ‘não vontade’ desde o começo fadada  
ao fracasso e, por outro, uma oposição fictícia que, permanecendo dentro da estrutura  
burguesa, promove o fascismo nolens volens.” Nessa “caracterização da estrutura  
sociopolítica básica [realizada por Lukács] falta”, ele conclui, “a alternativa de um  
antifascismo burguês democrático”, que, quando aparece, na melhor das hipóteses, é  
logo posta em questão de maneira sectária.  
Nesse sentido, o VII Congresso da Internacional Comunista, em 1935, foi um  
marco, também no que diz respeito à trajetória do filósofo húngaro. Nele foi adotada  
a política da frente popular, que substituiu a tese do socialfascismo enquanto  
estratégia do movimento comunista. Ao se referir a esse Congresso, Lukács tem em  
vista a abertura que essa guinada trouxe para ele em seu país natal, tirando-o de seu  
ostracismo e permitindo seu reingresso no partido húngaro. A partir daí, já não fazia  
mais sentido condenar as Teses de Blum. Sua ideia, cristalizada na defesa da ditadura  
democrática de trabalhadores e camponeses na Hungria como a realização mais bem  
acabada da democracia burguesa, ganha um reforço positivo com a política da frente  
popular, que adota uma estratégia semelhante. Para Lukács, então, o VII Congresso do  
Comintern representa, como ele registra em Pensamento vivido (2005, p. 216), a  
“queda de [Béla] Kun”, o que torna novamente possível a “cooperação com a Hungria”.  
Mas o fato é que a adoção da política da frente popular também foi  
10 A respeito dessa obra e da luta de frações no interior do movimento comunista húngaro cf. Mesterházi  
(2023).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 367  
nova fase  
 
Paula Alves  
acompanhada por um redirecionamento de suas próprias posições que, em anos  
anteriores, já se manifestava aqui e ali de forma mais rudimentar11. Lukács abandona  
a ideia de que o desenvolvimento da sociedade burguesa em última instância leva  
apenas à reificação e passa a explorar suas contradições internas de forma mais  
enfática. Trata-se de uma sociedade cheia de contradições, mas essas contradições são  
as do progresso. A partir dessa apreensão, Lukács pôde realizar análises mais  
diferenciadas e complexas das tendências presentes na sociedade e cultura burguesas  
(cf. AMBRUS, 1993, p. 418), o que também fortaleceu uma consideração mais  
nuançada do desenvolvimento desigual entre a economia e as formas ideológicas.  
Assim, esse deslocamento na orientação antifascista de Lukács pode ser  
igualmente observado nas posições sobre a literatura que ele assume durante esse  
período. Se, por exemplo, em “Grand Hotel Abismo”, escrito em 1933, Lukács classifica  
A montanha mágica de Thomas Mann de modo bastante ingênuo como um tipo de  
romance “ideológico-parasitário”, porque seu autor, preso em uma ideologia  
decadente, era incapaz de realizar o “salto vitale para a classe revolucionária”12; cerca  
de três anos depois, em O romance histórico, esse romance é considerado como um  
dos “pontos altos da figuração” (LUKÁCS, 1965, p. 419) da literatura alemã no período  
imperialista. E a razão para tanto, como esclarece Lukács, referindo-se ao “problema  
da missão social da literatura”, é que autores como Thomas Mann “se esforçaram para  
mostrar figurativamente [gestalterisch] a gênese histórica concreta de seu tempo”  
(LUKÁCS, 1965, p. 419)13. Assim, o romancista alemão é visto como um dos grandes  
representantes do “humanismo antifascista”, “do protesto humanista contra a barbárie  
da era imperialista” (LUKÁCS, 1965, p. 319), que se posiciona de maneira decidida em  
suas obras na “luta entre a reação e a democracia” a favor dessa última.  
11  
Tanto János Ambrus (1993, p. 418) quanto Lászlo Sziklai (1990, p. 59) mencionam que o texto de  
Lukács sobre Theodor Vischer contém antecipações da posição sobre o desenvolvimento contraditório  
do capitalismo que marcará suas elaborações posteriores.  
12  
Lukács retrabalhava seus textos antes de publicá-los novamente, seja escrevendo prefácios que  
situassem essas obras no novo momento histórico, seja fazendo alterações, retirando trechos que já  
não condiziam mais com suas posições, ou até mesmo se negando a autorizar sua republicação (o caso  
mais conhecido é certamente o de História e consciência de classe). Nesse sentido, não deixa de ser  
eloquente o fato de que “Grand Hotel Abismo” só tenha sido publicado postumamente (em húngaro,  
em 1977, em alemão, em 1984), embora Lukács utilize esse termo para se referir a Adorno no prefácio  
escrito em 1962 para A teoria do romance. A publicação em alemão não contém a última parte do  
texto, “Totentanz der Weltanschauung” [Dança macabra das visões de mundo], justamente a parte onde  
Lukács realiza esse julgamento sobre Thomas Mann, entre outras coisas. Contudo, ela já havia sido  
publicada anteriormente, em 1979, na revista húngara Helikon, em um número especial sobre literatura  
e história literária austríacas.  
13 Lukács analisa esse e outros romances de Thomas Mann de maneira magistral em Thomas Mann, que  
reúne seus estudos sobre o autor escritos entre 1945 e 1955.  
Verinotio  
368 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
Essa mudança, embora se correlacione com a adoção da política de alianças  
pelo movimento comunista internacional, não expressa uma reorientação meramente  
tática da parte de Lukács, como se ele simplesmente tivesse passado a aplicar essa  
bandeira em suas análises literárias. Ele mesmo fornece uma chave mais apropriada  
para interpretá-la em “Meu caminho até a cultura húngara”. Ali, ele afirma que chegou  
no VII Congresso depois de já ter participado “ativamente da luta contra o sectarismo  
literário” e ter “lançado as bases teóricas do realismo socialista” na contracorrente,  
ainda que de maneira “camuflada”, da orientação de Stálin e Jdanov (LUKÁCS, 2023,  
p. 255). Frequentemente se menciona as Teses de Blum como um antecedente nas  
elaborações posteriores de Lukács em defesa do “humanismo antifascista”, chegando-  
se, e não sem toda razão, a estabelecer um nexo direto entre elas14. Mas, para tanto,  
omite-se que Lukács também se debateu no campo da análise literária para alcançar  
uma perspectiva antisectária, ancorada em uma apreensão concreta da realidade  
histórica. Paralelamente ao amadurecimento de sua concepção sociopolítica, que  
incorpora em suas balizas a contraditoriedade no desenvolvimento do capitalismo,  
ocorrem, também, diferenciações importantes em suas concepções estéticas, que  
permitem que Lukács alcance a “perspectiva do realismo” a partir de uma assimilação  
dos lineamentos da “ontologia histórica” marxista15.  
Em seu tratamento de obras literárias nessa época, especialmente daquelas de  
autores alemães, Lukács mobiliza todos esses elementos a luta entre a reação e a  
democracia, o protesto humanista contra a barbárie, a figuração realista , ora de  
maneira bastante direta, ora como um prisma de análise, como podemos ler em um  
trecho de “Die verbannte Poesie [A poesia banida]”, de 1942, em que ele comenta um  
romance de Thomas Mann escrito poucos anos antes:  
Carlota em Weimar, de Thomas Mann, é um livro alemão atual em um  
sentido muito mais imediato. A poesia e filosofia clássicas floresceram  
em meio ꢀ “miséria alemã”. Como reflexo ideológico das preparações  
e das consequências da grande Revolução Francesa e, acima de tudo,  
da própria revolução, surgiu aqui um impulso intelectual que  
ultrapassou essa miséria (embora apenas parcialmente, embora  
apenas no reino nebuloso da ideologia e não na vida prática) e fez da  
14 Ana Cotrim chama atenção para o fato de que, embora haja uma relação entre os problemas sociais  
e as elaborações estéticas de Lukács, não deixa de ser questionável estabelecer “uma ligação direta  
entre questões imediatas, políticas ou de outra ordem, e as opções estéticas que acompanham a teoria  
do realismo” (2016, p. 86). De fato, na obra de Lukács, essas relações são extremamente intrincadas e  
já foram muitas vezes mal interpretadas, atribuindo-se motivações de natureza tática a suas análises  
literárias, que certamente têm outras raízes (cf. COTRIM, 2016, pp. 106-112).  
15  
A respeito dos desenvolvimentos nas concepções estéticas de Lukács rumo ꢀ “perspectiva do  
realismo” e a “centralidade da ação” na figuração artística realista cf. Cotrim (2016).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 369  
nova fase  
   
Paula Alves  
Alemanha, por meio século, o centro intelectual do humanismo  
europeu.  
Por isso, a figura de Goethe é o contraponto necessário e adequado  
[gegebene] ao rebaixamento moral e intelectual da Alemanha. [...] A  
“reconciliação com a realidade” de Goethe é o mais profundo realismo,  
a compreensão de que o processo histórico é mais amplo e  
multifacetado do que o mais sábio ser humano; mas, ao mesmo  
tempo, é também um ódio a tudo o que é mesquinho e baixo, aos  
perigos iminentes da escuridão, do obscurecimento, que sobem  
diariamente e a cada hora da “miséria alemã” e ameaçam o progresso.  
Mesmo o Goethe de Thomas Mann sucumbe, por vezes, às influências  
da “miséria alemã”. Thomas Mann não cria uma lenda, mas extrai da  
realidade a poesia da verdade histórica. Por isso, seu herói, com todos  
os resíduos e limitações ressaltados com fina ironia, é o verdadeiro  
herói alemão na luta da luz contra as trevas. (1956a, p. 113)  
Nessa ênfase da figuração realista, concreta, da experiência histórica nas obras  
literárias torna-se visível o nexo com a plataforma antifascista tal como concebida por  
Lukács, que aparece de maneira mais explícita, por exemplo, em um artigo publicado  
na revista Internationale Literatur, em 1938, em que ele trata do novo tipo de romance  
histórico que surge principalmente entre os escritores exilados alemães. Lukács foi um  
dos primeiros a destacar o papel dos intelectuais na “preparação e na realização das  
revoluções” (cf. BENSELER, 1984, p. 167), identificando a função compensatória que  
a ideologia havia cumprido na Alemanha. Mas, quando Hitler chegou ao poder, ele  
observa que se operou uma mudança na melhor parte da intelectualidade alemã, que  
adota uma postura ofensiva. Tal mudança se reflete no fato de que o romance histórico  
do antifascismo alemão surge como uma defesa dos ideais humanistas, mas não para  
por aí, indo, também, para a ofensiva. Entretanto, o que distingue esse tipo de romance  
não é só o embate decidido contra o fascismo, que também é realizado, e em alto nível  
afirma Lukács, de forma panfletária na prosa política dos exilados. Ele é a  
“contraimagem [Gegenbild]” monumental da barbárie fascista, só que essa “imagem  
[Bild] monumental” é, ao mesmo tempo, “poética”:  
Mas o significado do romance histórico dos antifascistas alemães  
reside precisamente no seu aspecto "poético": eles figuram e dão vida,  
através de imagens poéticas concretas, àquele tipo humanista de  
pessoa cuja vitória social denota ao mesmo tempo a vitória social e  
política sobre o fascismo. Aquele tipo de pessoa cuja universalidade,  
cuja primazia traz consigo a salvação cultural da humanidade; aquele  
tipo de pessoa pelo qual a luta contra o fascismo se torna um dever  
cultural para todos; aquele tipo de ser humano em cujo nome deve  
prosseguir a luta contra o fascismo, a luta da Frente Popular. (1974,  
p. 174)  
Nesse trecho, é possível entrever quais perspectivas Lukács atrela ao surgimento  
Verinotio  
370 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
do romance histórico naquele momento. Se o romance histórico clássico havia figurado  
“o crepúsculo do desenvolvimento heroico-revolucionário da democracia burguesa”, o  
romance histórico que surgia naquele contexto, mesmo com todas as suas limitações,  
capturava algo novo: “o romance histórico atual surge e se desenvolve em meio ꢀ  
aurora de uma nova democracia” (LUKÁCS, 1965, p. 422). Ao dizer isso, Lukács tem  
em vista que a luta pela democracia revolucionária travada pela Frente popular tinha  
por objetivo defender contra as investidas do fascismo as conquistas do  
desenvolvimento democrático. Contudo, para fazê-lo de maneira efetiva, precisava ir  
além da mera defesa e “dar ꢀ democracia revolucionária conteúdos novos, mais  
elevados, desenvolvidos, universais, democráticos e sociais” (LUKÁCS, 1965, p. 422).  
Olhando retrospectivamente, essa é uma asserção curiosa, se lembrarmos que  
Lukács escreveu essas palavras (e outras que soam mais grandiloquentes, como  
“estamos em meio a um período heroico”) em uma situação de muita tensão, na  
passagem de 1936 para 1937, quando a II Guerra mundial estava prestes a estourar.  
Talvez elas sejam uma prova do entusiasmo com que ele recebeu a luta da Frente  
popular, que ele via como um verdadeiro movimento de massas, observando seus  
desdobramentos na Espanha, por exemplo. E em qual espaço seria possível  
representar esse tipo de experiência de maneira mais adequada do que na literatura?  
Diferentemente do que acontece em outros meios, na literatura realista é possível  
representar as massas não como um conjunto homogêneo, cujo movimento, ainda por  
cima, é irracional, mas como a “expressão intensificada da vida popular até então”  
(LUKÁCS, 1965, p. 366) a partir dos destinos individuais, em que transparecem os  
grandes problemas da época.  
Assim, é bastante razoável considerar que a estética oferecesse para Lukács um  
espaço privilegiado de reflexão sobre os problemas que o ocupavam, como o fascismo,  
mas também os problemas ligados ao período de transição (cf. AMBRUS, 1993, p.  
417). Desse modo, além de não encontrar respaldo textual, a leitura já convencional  
sobre a trajetória de Lukács que interpreta a ênfase sobre os temas estéticos durante  
os anos 1930 como uma retirada tática do campo da política, em virtude da derrota  
das Teses de Blum, deixa de considerar essa dimensão dos escritos sobre literatura,  
que poderia ser sintetizada, como faz Guido Oldrini (2017, p. 410), na ideia de uma  
“militância cultural”. Não é verdade que se trata nesse caso de uma retomada de, nem  
de uma retirada para um campo de estudos que Lukács teria abandonado ao ingressar  
no movimento comunista. Mas, de fato, a partir do exílio moscovita, Lukács se ocupa  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 371  
nova fase  
Paula Alves  
de maneira constante com questões relacionadas às artes e, em particular, à literatura.  
A rigor, notará Ambrus, a ênfase sobre temas estéticos é justamente o que caracteriza  
a sua produção ao longo dos anos 30. Sem compreender essa porção de sua trajetória,  
não seria possível avaliar seus trabalhos até 1949 (ou mesmo sua Estética de 1963).  
Ainda de acordo com Ambrus (1993, p. 418), nem mesmo seria possível entender por  
que Lukács assumiu o lugar de intelectual público ao retornar para a Hungria, ou o  
que levou a que seu trabalho tivesse o impacto que teve no pós-guerra, tanto no país  
natal como no estrangeiro.  
De Moscou a Budapeste: “esperanças”, democracia popular... e realismo?  
Retornando do exílio moscovita “com esperanças”, Lukács atua como um  
intelectual público, participando ativamente da vida cultural na Hungria16. Além de  
assumir uma catédra na Universidade de Budapeste, de participar como membro de  
comissões partidárias, de trabalhar na redação da Forum17 e escrever artigos para  
outros periódicos, ele será uma presença constante em debates nacionais bem como  
internacionais. É no contexto dessa intensa atividade pública que ele redige entre  
1945 e 1947 os textos que compõem Irodalom és demokrácia [Literatura e  
democracia]18, obra que estará no centro da campanha contra o filósofo iniciada em  
1949.  
Essa coletânea condensa os esforços de intervenção de Lukács num momento  
em que a Hungria passava por transformações significativas. Com o fim da II Guerra  
Mundial e a libertação das regiões ocupadas, a Hungria assim como outras nações  
do centro e do sudeste europeus viu-se diante da necessidade de se reorganizar  
política e administrativamente. Com o apoio da URSS, inclusive de órgãos militares  
soviéticos, chega-se ao modelo das democracias populares. A estrutura do novo  
governo húngaro é então composta pelos comunistas, mas também por outros grupos  
políticos que haviam participado da coalizão antifascista durante a guerra, como o  
16 Lukács nos fornece uma impressão desse período “tempestuoso” em uma carta endereçada a Lifschitz,  
de 11 de fevereiro de 1946, em que menciona “[...] uma inflação das mais diversas reuniões e  
conferências sobre as questões mais heterogêneas, começando com a reorganização da Academia das  
Ciências e terminando com questões mesquinhas da Associação cultural dos trabalhadores, no meio  
disso três grandes palestras [...].  
17  
Lukács tornou-se editor dessa revista em 1946 e publicou por volta de 30 artigos nela (cf. SZABÓ,  
1991, p. 484). Em Pensamento vivido (2017, p. 153), ele afirma que “a base de toda a Forum era o  
problema da frente popular e, por isso, em todas as questões, o ponto era se a ditadura do proletariado  
nasceria da frente popular”.  
18 Embora essa coletânea não tenha sido traduzida para o português, utilizaremos daqui em diante para  
referi-la o correspondente de seu título em vernáculo.  
Verinotio  
372 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
Partido dos pequenos proprietários, o Partido nacional camponês e o Partido social-  
democrata.  
Um dos grandes problemas a se enfrentar era a construção de unidade entre  
esses diversos campos sociais, tendo em vista que, com o fim da guerra, já não havia  
mais o inimigo comum, o fascismo. É nesse contexto de governos pluralistas que então  
surge para os comunistas, como afirma Jaroslav Opat (1987, p. 229), “tanto em termos  
de práxis política quanto de ideologia, a indicação das vias nacionais específicas para  
o socialismo”. Na prática isso significava dizer que, com toda a admiração e respeito  
pelo modelo soviético, a maneira como se deu a transição para o socialismo naquele  
espaço não possuía validade universal. Por isso, era preciso encontrar caminhos  
alternativos, “vias únicas nacionais” que levassem em conta a história e demais  
peculiaridades locais. Até 1948, essa “ideologia da via ‘específica para o socialismo’”  
(OPAT, 1987, p. 245) também foi sustentada no PC húngaro, já que ainda não era  
considerada um desvio pela matriz soviética. No seu III Congresso, ocorrido em 1946,  
o PCH definia a democracia popular justamente como uma etapa de transição rumo ao  
socialismo, a ser alcançada pacificamente, sem a necessidade de uma ditadura do  
proletariado19. Esperava-se que, durante um longo período de transformações  
democráticas, seria possível restringir o grande capital e direcionar a Hungria rumo ao  
socialismo a partir de uma aliança com as forças de esquerda que compunham o  
governo de coalizão (AMBRUS, 1993, p. 420).  
Já convicto da ideia de que “não existe uma muralha da China separando a  
revolução proletária e a burguesa” (LUKÁCS, 2005, p. 117), que é a maneira como ele  
formula décadas mais tarde a essência das Teses de Blum, Lukács entende que,  
ademais, naquele momento, não havia nem as “precondições objetivas nem as  
subjetivas” para a instauração do socialismo na Hungria (cf. LUKÁCS, 2013, p. 12).  
Tais condições ainda precisariam ser criadas, e, por isso, “o caminho orgânico para o  
desenvolvimento da Hungria era a democracia popular” (AMBRUS, 1993, p. 423).  
Na análise de Lukács, a defesa da democracia popular também se inscreve no  
quadro mais amplo da luta contra a reação. É verdade que o fascismo já havia sido  
derrotado militarmente, mas Lukács não ignorava o perigo da reorganização, já então  
mais ou menos latente, das forças reacionárias. Diante dessa dinâmica, ele busca  
compreender o fenômeno do fascismo, recuperar criticamente as suas raízes, para  
19 Lukács também sustentou a mesma posição quanto à inatualidade da ditadura do proletariado nesse  
Congresso (cf. URBÁN, 1989, p. 400).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 373  
nova fase  
 
Paula Alves  
melhor combatê-lo. Do ponto de vista político e ideológico, ele as faz remontar a uma  
crise que atravessa todo o período imperialista e foi trazida à tona de maneira  
irrefutável pelo fascismo: trata-se, justamente, da crise da “democracia de velho tipo”,  
a “democracia formal capitalista” ou “clássica” (LUKÁCS, 2013, p. 8).  
No prefácio escrito em 1947, Lukács (2013, pp. 6-7) afirma, na verdade, que o  
fascismo surge da crise da democracia tanto em sentido positivo, quanto negativo:  
Positivo, na medida em que o fascismo é um sistema imperialista de  
poder [...]. As experiências do último meio século mostram que, em  
termos de estrutura política interna, o capitalismo monopolista  
imperialista abraça o fascismo (ou uma forma parcial de fascismo)  
precisamente quando e na medida em que não pode mais realizar  
seus objetivos políticos internos e externos com a ajuda das “regras  
do jogo” implícitas na antiga democracia. [...] . A causa dessas  
tentativas [de estabelecer o fascismo] é o movimento das massas  
trabalhadoras; sua insatisfação com o regime democrático das  
“duzentas famílias” se manifesta com tanta força que, para manter  
esse regime (e esse é o verdadeiro conteúdo de classe da democracia  
formal), novos métodos se tornam necessários.  
Já o momento negativo consiste na hegemonia de uma ideologia contrária à  
democracia ou na “crise ideológica”20, que se relacionaria, por sua vez, com a  
possibilidade de sucesso de investidas para se estabelecer o fascismo. Ela depende  
do grau de conscientização das massas e da exploração “de forma antidemocrática”  
de sua “amargura” com a democracia formal (LUKÁCS, 2013, p. 8).  
Lukács procura então explicitar em diversas passagens de seus artigos como  
esses momentos se articulam. Da mesma forma que em “Visão de mundo aristocrática  
e visão de mundo democrática”21, ele reconhece contraditoriedade no  
desenvolvimento da democracia “clássica”, que, embora fosse limitada por seu caráter  
formal, continha em seus ideais de liberdade e igualdade “algumas sementes de  
democracia” (LUKÁCS, 2013, p. 15). Mas em Literatura e democracia, a ênfase recai,  
sem dúvida, na crítica desse aspecto formal, que nos permite entender o  
20  
De fato, a crise da democracia, na análise de Lukács, está imbricada em outras crises, de modo que  
é possível falar de um complexo de crises que, em conjunto, tornaram possível a emergência do fascismo  
ou até mesmo culminaram nele. Há uma dimensão ideológica, como fica patente a partir do trecho que  
acabamos de citar, e que Lukács vinha analisando já desde os anos 30. Na apresentação de “O espírito  
europeu”, Carolina Peters e Murilo Leite Pereira (2021, pp. 2 ss), que também traduziram essa  
conferência de Lukács para o português, detêm-se na análise desse complexo de crises.  
21  
Essa é a versão escrita da palestra proferida por ele em 1946, no Encontro Filosófico Internacional  
em Genebra, num período em que Lukács viajava com frequência seja por razões acadêmicas, seja por  
razões políticas (cf. TAKÁCS, 2021, p. 61). Celso Frederico (1995, p. 185) considera que nessa ocasião  
Lukács da voz ꢀ posição da “coexistência pacífica”, ao propor “a aliança entre socialismo e democracia,  
passando por cima das diferenças essenciais entre a democracia burguesa e a socialista etc.”  
21 Embora essa coletânea não tenha sido traduzida para o português, utilizaremos daqui em diante para  
referi-la o correspondente de seu título em vernáculo.  
Verinotio  
374 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
funcionamento da democracia nos países desenvolvidos em tempos de normalidade.  
Como ela é formal, como ela institui a liberdade e a igualdade apenas juridicamente, é  
possível que, na superfície, a democracia “clássica” esteja funcionando, é possível  
“colocar em prática todas as suas conquistas e manter precisamente suas ‘regras do  
jogo’ e, ainda assim, [...] governar contra os interesses do povo trabalhador” (68).  
Dessa forma, como sintetiza Tyrus Miller (2013, p. XXV), o editor e tradutor de The  
culture of people’s democracy, a “insistência em ‘regras do jogo’ formais (...) pode se  
tornar um fetiche ideológico para ocultar as inequidades de classe na sociedade”.  
É justamente esse conteúdo de classe da democracia formal que se revela  
quando ocorre um acirramento do conflito. Ela serve, afinal, ꢀs “duzentas famílias”22,  
ao “estrato dominante” (LUKÁCS, 2013, p. 69) ligado ao capital monopolista,  
garantindo a continuidade do seu domínio. Por isso, pode-se dizer que a velha  
democracia é fundamentalmente antipopular. Nela, necessariamente, as massas são  
alienadas de formas genuínas de participação, são necessariamente excluídas das  
questões públicas que afetam diretamente sua vida cotidiana, cumprindo um papel  
decisivo apenas na realização de formalidades: “As grandes massas são utilizadas,  
através de eleições periódicas, para dar uma base formal e democrática a um conteúdo  
antipopular” (LUKÁCS, 2013, p. 69). A consequência disso é sua insatisfação com o  
sistema, com o “regime democrático das ‘duzentas famílias” (cf. LUKÁCS, 2013, pp. 6-  
7).  
Não raro, as massas expressam seu descontentamento, o que provoca a reação  
do campo contrário, que procura desmobilizá-la (cf. LUKÁCS, 2013, p. 69). Mas a  
insatisfação, na análise de Lukács, não aparece apenas como um fator de movimento.  
Tendo em vista seu conteúdo de classe, ela comporta, também, a impossibilidade de  
reconhecimento da democracia formal por parte das massas de trabalhadores, o que,  
como foi revelado pela chegada do fascismo ao poder, torna todo esse edifício  
bastante frágil. Pois, na medida em que não podiam reconhecer essa democracia como  
algo seu, como “seu próprio reinado”, na medida em que “esse reinado não poderia  
ter exercido qualquer atração sobre as massas trabalhadoras, [...] assim, elas podiam  
cair sob o primeiro ataque do fascismo quase sem resistência” (LUKÁCS, 2013, p. 68).  
Não é possível, e nem desejável, retornar a essa democracia. A saída da crise,  
22  
Em nota, Miller esclarece que esse “slogan das ‘duzentas famílias’” remete a sua origem na frente  
popular; ele seria, de acordo com Malcolm Anderson, um “mito político popular da esquerda” surgido  
nos anos 1930 que dominou a França e cujo impacto se prolongou por muito tempo (LUKÁCS, 2013,  
p. 68).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 375  
nova fase  
 
Paula Alves  
no entanto, também não estaria em uma mera negação. Lukács constitui seu ponto de  
vista crítico a partir de um duplo movimento, evitando o falso binarismo próprio da  
ideologia burguesa. Ele se recusa a hipostasiar a forma de democracia que se  
desenvolveu nos séculos XIX e XX, como se essa fosse o “modo clássico, ou até mesmo  
o único modo possível no qual o ideal democrático poderia se manifestar” (LUKÁCS,  
2013, p. 67)23. Ao mesmo tempo, ele se distancia daqueles críticos que extraem dessa  
percepção de uma crise a necessidade de abandonar qualquer forma de governo  
democrático, que negam a democracia em geral, inclusive a democracia proletária. Ao  
ficarem presos a uma forma imediata de reação, atribuindo erroneamente à democracia  
contradições e limites que na verdade são constitutivos da sociabilidade capitalista,  
eles não só alimentavam as tendências reacionárias que ainda fermentavam na  
sociedade, mas também eram incapazes de enxergar as verdadeiras possibilidades do  
presente. E isso é ainda mais desastroso se levarmos em conta que, de acordo com  
Lukács, o conjunto da vida social se encontrava naquele momento na soleira de  
grandes mudanças. Uma nova cultura democrática está tomando forma em toda a  
Europa” (LUKÁCS, 2013, p. 12), dirá ele, em termos muitos próximos daqueles que  
empregou em O romance histórico. Seus primeiros sinais já eram perceptíveis e traziam  
a promessa de uma vida renovada. A nova democracia não era, a seu ver, uma utopia  
e essa perspectiva anima seu diagnóstico.  
Embora a democracia popular surja como uma resposta e uma possível saída  
da crise da democracia formal, ambas se desenvolvem no interior da mesma formação  
econômica, já que as bases do capitalismo, e particularmente a propriedade privada,  
continuariam a existir na democracia popular. Ainda que Lukács (2013, p. 149),  
mencione a necessidade de se tomar medidas para restringir o poder do capital  
monopolista e romper o seu “domínio exclusivo” 24, ainda que a propriedade privada  
continue a existir “dentro de limites e sob controle”, como ele ressalva a certa altura  
(LUKÁCS, 2013, p. 189), a base real sobre a qual se ergue a democracia formal não é  
propriamente suprimida. Isso traz limitações que ficam ainda mais evidentes quando  
se compara as possibilidades da democracia popular com as que existem no  
23 Isso explica as aspas quando ele se refere ꢀ democracia “clássica”.  
24  
Lukács (2013, p. 149) considera isso como o “objetivo primordial e imediato” da nova democracia  
no campo da política econômica. É o que tornaria reais as possibilidades sociais que ele discute em  
seus artigos, havendo já naquele momento transformações na base econômica que apontavam nesse  
sentido.  
Verinotio  
376 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
socialismo25. A democracia popular não pode, portanto, ser vista como a solução  
definitiva, mas como uma forma de transição adequada naquele momento.  
Para Lukács, contudo, nada disso impede que a democracia popular se coloque  
como a tentativa de instaurar algo novo, com base “na transformação política,  
econômica e social” (LUKÁCS, 2013, p. 5). Ela representa um passo adiante, e até  
mesmo um passo na direção do socialismo num caminho mais lento e que, talvez,  
envolvesse “menos sacrifícios” (LUKÁCS, 2013, p. 189) –, na medida em que tem por  
objetivo superar as limitações formais da democracia “clássica”:  
Embora o caráter do sistema capitalista de produção não tenha sido  
abolido, a democracia popular adota como meta que, nessa  
sociedade, a intelligentsia trabalhadora, os trabalhadores e os  
camponeses não devam meramente possuir de maneira legal a  
liberdade ou a igualdade, mas, sim, de uma vez por todas, receber  
garantias institucionais de que podem realmente viver nessa liberdade  
e igualdade nas questões importantes de sua existência cotidiana.  
(LUKÁCS, 2013, p. 32)  
Lukács tem em vista “mudanças nas posições decisivas do poder econômico” e  
“mudanças na relação entre a vida do estado e economia”, as quais passariam a  
incorporar elementos de uma democracia direta26 em estruturas de poder e  
governança que antes eram blindadas contra a participação popular. Assim, a nova  
democracia poderia inverter o “real conteúdo de classe” da democracia formal e dar  
um passo adiante: “em vez da regra anônima de “duzentas famílias”, surge a liderança  
aberta da vida econômica por meio de organizações populares” (LUKÁCS, 2013, p.  
193). Graças a essa mudança, ideais que foram alimentados em revoluções  
democráticas anteriores (como a liberdade ou a igualdade), mas que não passaram de  
uma “mera proclamação” ou “de sua codificação legal”, poderiam se tornar realizáveis  
no dia a dia das massas trabalhadoras: “a estrutura política e social interna das novas  
democracias, se realmente implementada, torna viáveis os ideais democráticos  
revolucionários anteriores, os quais, ao serem concretizados, também preparam o  
caminho para a irmandade socialista dos povos” (LUKÁCS, 2013, p. 210).  
Mesmo com todas as limitações, uma “democracia fundada nas massas”, isto é,  
“a participação permanente, ininterrupta, organizada e direta das massas em todos os  
25 Isso fica claro, por exemplo, na questão do planejamento econômico (cf. LUKÁCS, 2013, p. 192).  
26  
Urbán (1989, p. 397) observa que, justamente nesse “ponto essencial” da democracia direta, a  
concepção de Lukács desviava-se da linha defendida inicialmente pela maior parte dos líderes do PCH.  
Lukács tece algumas considerações sobre a democracia direta, relacionando-a com a democracia  
proletária, em “Literature and democracy II” (2013, pp. 67-73).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 377  
nova fase  
   
Paula Alves  
terrenos da vida pública” (LUKÁCS, 2013, p. 72), traz algo que é fundamental do ponto  
de vista da visão de mundo marxista. O desenvolvimento da sociedade burguesa  
acarreta “a diminuição da dimensão-cidadã da pessoa”. Há, nesse processo, uma  
“necessidade objetiva”, mas, na medida em que “a natureza múltipla e abrangente do  
ser humano não pode ser alcançada sem a participação ativa na vida pública”, ele  
significa uma “mutilação” (LUKÁCS, 2013, p. 202). E é com isso, também, que a nova  
democracia busca romper, criando “passagens reais, dialéticas entre vida privada e  
vida pública”:  
Claro, uma pessoa sempre faz parte da vida pública. E esse aspecto  
do desenvolvimento social torna-se particularmente intenso na crise  
do imperialismo, mas [...] apenas na medida em que o indivíduo  
privado, de forma consistente e em um grau crescente, se torna um  
objeto de sofrimento da vida pública. [...] Na nova democracia, no  
entanto, ocorre aquela virada em que a pessoa participa dessas  
conexões entre a vida privada e pública não como um objeto de  
sofrimento, mas como um sujeito ativo. (LUKÁCS, 2013, p. 202)  
Essa passagem da pessoa privada de um “objeto de sofrimento” para “sujeito  
ativo” no interior da vida pública é um dos pontos que sempre retorna nos artigos de  
Lukács reunidos em The culture of people’s democracy27. Ele entende que, por um  
lado, no próprio processo de forjar as mudanças, de participar na criação de novas  
formas de vida, esse novo tipo de ser humano, cuja vida individual cotidiana passa  
então a “engloba[r] organicamente a vida pública” (LUKÁCS, 2013, p. 78), produz-se  
a si mesmo. Não se trata, portanto, de esperar algum tipo de messias ou o surgimento  
do novo ser humano para só então começar, “sem qualquer fricção”, a transformação  
da sociedade. Por outro, Lukács atribui à cultura entendida num sentido amplo e,  
especialmente, à literatura, um papel de proa no processo de preparação ideológica.  
Seus motivos, que são mais ou menos evidentes, é preciso compreender melhor.  
Partindo, da mesma forma que na discussão sobre a democracia, de um  
diagnóstico de crise, tanto de uma crise ideológica, quanto de uma crise da cultura  
propriamente dita28, Lukács não se contenta em identificar suas raízes ideológicas para  
27 Talvez T. Miller tenha razão quando afirma que a lentidão das transformações da base econômica na  
Hungria teria permitido a Lukács uma mudança de ênfase. Ao invés de se perguntar como acelerar a  
industrialização para criar as bases necessárias para o socialismo em um país fundamentalmente agrário,  
Lukács se volta então sobretudo para o problema do fator subjetivo: “Como os seres humanos  
necessários para uma nova ordem social podem surgir nessa situação de transição?” (MILLER, 2013, p.  
XIX). Nesse sentido, ele destaca a importância da autoeducação para uma humanidade autêntica que se  
cristaliza na noção de Lênin do hábito (cf. por exemplo pp. 29 ss).  
28 Trata-se, na verdade, de crises conexas: a ausência de um verdadeiro conteúdo democrático na vida  
social leva à disseminação de um sentimento de mundo eivado de elementos reacionários; ele se  
expressa, fundamentalmente, numa visão de mundo aristocrática, para a qual, inclusive, a “massificação”  
Verinotio  
378 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
reverter esse quadro. Ele se volta, como afirma Béla Köpeczi (1989, p. 27), para a  
“organização da revolução cultural na prática”29, ajudando a pôr de pé um programa  
cultural que marcou todo o período, embora não tenha alcançado mais do que  
resultados parciais (cf. KÖPECZI, 1982, p. 83). “Até o presente momento”, Lukács  
afirma, “os trabalhadores foram excluídos da cultura nacional. Agora, eles são  
chamados a renovar a cultura, a levá-la a um novo florescimento” (LUKÁCS, 2013, p.  
161). Era preciso tomar posse da cultura efetivamente, tornar “a aquisição da cultura  
e o progresso na vida cultural acessível para todos” (LUKÁCS, 2013, p. 19), o que se  
mostrava problemático tendo em vista as condições30 em que se encontrava a maior  
parte da população (falta de tempo, índice de analfabetos etc.). Assim, nessa frente, a  
primeira tarefa que se coloca para a democracia popular é a do acesso universal à  
cultura e da melhoria da educação fundamental.  
Mesmo enfatizando a importância dos organismos estatais e civis, Lukács  
considera que, para renovar a cultura, é preciso muito mais do que isso: “precisamos  
de um novo conteúdo para toda nossa atividade, para que possa haver uma cultura  
do povo trabalhador, dos trabalhadores e dos camponeses” (LUKÁCS, 2013, p. 23). É  
preciso, portanto, criar uma nova cultura. Mas em que direção essa cultura se  
desenvolve, em que medida ela é nova? Ela é nova no sentido de que rompe com  
certas tendências antidemocráticas características da cultura capitalista, mas nova  
é a verdadeira causa da crise da cultura moderna. Isso gera, para Lukács, falsos extremos na cultura  
capitalista, que ele sintetiza formalmente em duas posições: a “torre de marfim” e o kitsch. Ambas  
“expõem o desaparecimento ou ao menos o obscurecimento de problemas fundamentais da sociedade  
e da visão de mundo” (2013, p. 16). Mas, enquanto o kitsch “é a exploração comercial do  
distanciamento das grandes massas da verdadeira cultura” e os setores de produção capitalista de bens  
culturais extraem sua porção de lucro “com a preservação e a extensão do atraso cultural”, a “torre de  
marfim” ou a “arte pela arte” se apresenta como uma reação a isso, como um retiro para fora desse  
jogo sujo em favor da “arte pura”. A essas posições correspondem dois tipos humanos, que resultam  
igualmente na “ausência de defesa”: “de um lado, a total falta de capacidade de resistir às tendências  
destrutivas da sociedade em relação à cultura; de outro, um recuo obstinado e a retirada para dentro  
de si mesmo” (2013, p. 16).  
29  
Béla Köpeczi menciona nesse sentido um artigo de Lukács publicado em 1948, na revista Szabad  
Nép, que teria sido sua última declaração concernindo questões da política cultural. Ali ele trata das  
novas possibilidades que surgem com a estatização no campo da cultura. Fica claro que a mera  
estatização, embora ela permita a ampliação do acesso aos bens culturais, não é suficiente; é preciso  
orientar esse desenvolvimento, tarefa que Lukács outorga principalmente, ao que parece, ꢀ “ação  
consciente dos marxistas” (KÖPECZI, 1993, p. 27). Ao mesmo tempo, na medida em que tal  
direcionamento poderia levar a uma “uniformização”, Lukács também destaca a necessidade de se  
garantir um “espaço para a personalidade”.  
30  
Se é verdade que, “em princípio, o sistema de produção capitalista oferece a todos o acesso  
desimpedido ꢀ cultura”, na prática, observa Lukács, “as bases materiais da cultura capitalista são tais  
que a esmagadora maioria não se encontra atualmente em nenhuma situação (e realmente não pode  
chegar a uma) em que possa ter uma relação produtiva com os valores culturais; e, especialmente, não  
está em posição de gerar tais valores” (LUKÁCS, 2013, p. 15).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 379  
nova fase  
   
Paula Alves  
também no sentido de que reavalia e “reanima” certas tendências da tradição nacional:  
“o que até agora tem sido o avanço de gênios individuais isolados, um assunto  
individual deles, agora deve se tornar o bem fundamental e conscientemente  
promovido de toda a cultura” (LUKÁCS, 2013, p. 23). Os obstáculos ao acesso aos  
bens culturais em geral são um problema que surge em virtude das condições  
capitalistas de produção. Mas o que Lukács tem em vista, aqui, é algo mais específico:  
trata-se da constituição de uma tradição nacional ligada à vida popular, em que está  
suspenso o dualismo entre a pessoa privada e o cidadão, naqueles lugares onde  
vigoram regimes antidemocráticos ou autoritários. Estes, afinal, não suportam que “a  
realidade seja exposta abertamente, nem na vida pública, nem na literatura” (LUKÁCS,  
2013, p. 48).  
Lukács analisa o caso de alguns países (nesse momento do texto, por exemplo,  
ele compara a Alemanha pré-1918 com a França), mas seu ponto de fuga são as  
peculiaridades do desenvolvimento húngaro e suas consequências para a organicidade  
(ou não) da cultura nacional. “Se olharmos para o desenvolvimento da literatura  
húngara”, ele pontua mais a frente, “teremos que afirmar que ela nunca passou pelo  
período do grande realismo, entendido no sentido francês e russo” (LUKÁCS, 2013, p.  
50). Houve, contudo, um realismo particular, húngaro, não só na matéria, mas também  
na forma. “Ele surgiu das condições húngaras específicas da década de 1840”, dirá  
Lukács (2013, p. 51), referindo-se tanto à radicalidade da revolução democrática  
húngara, quanto à sua imaturidade, ao fato de que “essa revolução não teve uma base  
urbana, burguesa e plebeia determinando sua direção” (2013, p. 51). Ela sofreu, então,  
uma “derrota aniquiladora” em 1849, o que teve efeitos profundos sobre todo o  
desenvolvimento subsequente, inclusive, como não poderia deixar de ser, sobre o da  
literatura, já que o caminho adotado para a modernização social foi o da via prussiana:  
O caminho do capitalismo, o caminho de se tornar burguês, o caminho  
da civilização na Hungria foi, para nos valermos da expressão de  
Lênin, o caminho prussiano: o capitalismo cresceu entre os vestígios  
do feudalismo sem eliminá-los e o desenvolvimento posterior da  
ideologia correspondeu precisamente a essa estrutura social. Quanto  
mais profundas eram as contradições internas na estrutura da  
sociedade húngara, mais fascinante se tornava o tabu da questão da  
opressão e da exploração. (LUKÁCS, 2013, p. 251)  
Com base em compromissos, durante um bom tempo foi possível manter  
intocadas as relações dos grandes proprietários de terra, a despeito da progressiva  
capitalização da economia: esses atores pactuaram entre si, gerando um equilíbrio  
bastante instável entre os grandes proprietários fundiários e o capital financeiro,  
Verinotio  
380 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
selado formalmente no “Compromisso de 1867”. Dessa forma, a Hungria teria ficado  
de fora da cultura democrática que começava a tomar (em parte ao menos) a Europa.  
Após a revolução fracassada, o capitalismo avançava economicamente, mas  
politicamente e socialmente não havia uma democracia moderna ou cultura urbano-  
burguesa capaz de unificar e direcionar o desenvolvimento do país (cf. LUKÁCS, 2013,  
p. 52). Para Lukács, quanto ao aspecto que nos interessa, o fator decisivo foi então a  
permanência da “gentry” enquanto classe dirigente em um momento em que, do ponto  
de vista sócio-histórico, isso já era anacrônico. Se, “na era da reforma pré-1848, eles  
constituíram merecidamente o estrato dirigente e orientador da renovação nacional”,  
com o desenvolvimento do capitalismo, a “gentry” se torna cada vez mais um estrato  
parasitário. E o que acompanha esse parasitismo é uma “decadência interna”, que se  
expressa tanto na moral, quanto na cultura (cf. LUKÁCS, 2013, p. 53).  
Lukács menciona como essas contradições internas, ou o “desenvolvimento  
doentio”, como ele diz em alguns momentos, baseado em compromissos que se  
seguem a uma revolução fracassada, paralelamente fazem medrar um tabu em torno  
das questões nacionais relevantes. Comparando-o com o compromisso de classes na  
Inglaterra, Lukács mostra como essa circunstância trágica em que ele se dá na Hungria  
conflui de maneira peculiar no desenvolvimento nacional, organizado  
consequentemente em torno de um pacto de silêncio:  
A particularidade do desenvolvimento húngaro é um tipo de “lenga-  
lenga”, em muitos aspectos diferente do inglês, um tipo de hipocrisia  
peculiar cultivada em solo nacional húngaro. Seu pacto geral entre “os  
poderes constituídos” reside na opinião de que falar sobre as  
questões verdadeiramente decisivas da nação húngara não é  
permitido, não é possível, não é apropriado ou não é “digno de um  
cavalheiro”. Essa pressão social é tão forte que não são poucos os  
ideólogos bem-intencionados que, instintivamente, pretendem se  
opor às consequências, aos detalhes ou aos sintomas, mas que,  
mesmo assim - também instintivamente - evitam considerar e se  
pronunciar sobre a questão verdadeiramente decisiva da realidade  
húngara. (LUKÁCS, 2013, pp. 250-1)  
Diante desse desenvolvimento político atrófico e que tende ao oportunismo,  
torna-se tão maior para Lukács (1984, p. 376) a relevância da “verdadeira literatura”,  
seu peso no desenvolvimento nacional, sua “responsabilidade”, como ele já havia  
afirmado um pouco antes, em 1944. À diferença de países verdadeiramente  
democráticos, com tradições democráticas já antigas, em que “as questões  
permanentes e cotidianas são desenvolvidas e articuladas por um movimento  
democrático vivo (partidos etc.) da forma mais vigorosa e decisiva”– é preciso lembrar  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 381  
nova fase  
Paula Alves  
que Lukács (1984, p. 367) escreve essas palavras pouco antes do fim da guerra,  
vislumbrando quais os caminhos desejáveis para a libertação enquanto as tropas  
alemãs ainda não haviam desocupado o território húngaro – ali, “onde não há nem  
houve democracia, onde as massas sofrem e perecem sob a opressão reacionária (não  
importa se nessa época existe algum parlamento falso como um biombo), e onde o  
veneno entorpecente e desmoralizante do fascismo penetrou nas grandes massas”  
caberia à literatura veicular as ideias democráticas. E seria possível notar esse tipo de  
realização literária no desenvolvimento húngaro, em que o “antigo engajamento social  
da literatura húngara” funcionava como um “porta-voz” dessas ideias, e traçar uma  
linhagem de resistência:  
a grande literatura húngara, de Zrinyi a Ady, ou, de minha parte, a  
Attila József, levantou as questões nacionais de maneira mais  
convincente e detalhada, e até mesmo mais política do que a própria  
vida política húngara (excetuando-se alguns raros e muito breves  
episódios), e muitas vezes as resolveu. (1984, p. 368)  
Ou seja, a literatura (ou certa literatura) seria capaz de dar voz às grandes  
questões nacionais, que, de outra sorte, permanecem ocultas no “cinza do dia a dia”  
ao menos até o irrompimento de uma crise (cf. LUKÁCS, 1984, p. 368) , seguindo  
o rito de silenciamento dos problemas nacionais na esfera pública. Em um tom talvez  
menos grandiloquente, encontramos afirmações semelhantes em The culture of  
people’s democracy a respeito da função social da literatura ou de sua “vocação”:  
Não é tarefa da literatura dar uma resposta concreta às questões  
concretas da sociedade e da política. Ao mesmo tempo, contudo, a  
verdadeira grande literatura realista cumpre uma poderosa vocação  
social e facilita para a sociedade a descoberta do caminho até as  
respostas adequadas, à medida que revela as bases humanas, sociais,  
espirituais e morais dos novos problemas. (LUKÁCS, 2013, p. 61)  
Não é por acaso, portanto, que ela ocupa um lugar central nas reflexões de  
Lukács sobre a democracia popular e seu futuro. Como afirma Miller:  
A literatura se torna, para Lukács, o principal campo de treinamento e  
meio educacional para moldar os sujeitos populares-republicanos e  
protossocialistas da nova democracia. Lukács torna essa conexão  
explícita, em que projeta um novo espaço público no qual os debates  
sobre literatura estão no centro, e sua própria intervenção em  
Literatura e democracia e as palestras e ensaios públicos relacionados  
têm a intenção explícita de envolver e aprofundar esse  
autoesclarecimento público [...]. (2013, p. XX)  
Uma visão semelhante sobre a literatura e seu caráter formativo era  
Verinotio  
382 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
compartilhada pelo próprio PCH31, que, no que dizia respeito ao trabalho ideológico,  
atribuía um papel proeminente às expressões literárias e artísticas (cf. SZABÓ, 1984,  
p. 485). Até 1948, no entanto, o partido ainda não contava com um programa oficial  
voltado exclusivamente para a cultura (cf. TÓTH, 1989, p. 484). Durante esse período,  
suas diretrizes culturais eram baseadas nos princípios da revolução cultural formulados  
por Lênin, buscando formar uma frente literária unificada com ênfase na influência dos  
comunistas (cf. KÖPECZI, 1982, pp. 79; 87). A estratégia do partido para a cultura  
naquele momento consistia, portanto, em um desdobramento da política de coalizão  
e nessa frente também se encontravam dificuldades na construção de plataformas  
comuns. Assim, para se ter uma ideia, o programa adotado por Dezső Keresztury,  
ministro da cultura de 1945 a 1947 e próximo dos escritores populistas, foi alvo de  
forte oposição tanto por parte dos social-democratas, quanto do núcleo dos urbanos32.  
De acordo com Béla Köpeczi, ao se confrontar com essa situação, o Partido Comunista  
Húngaro priorizou a construção de alianças: mesmo não dissimulando “as divergências  
ideológicas, permit[iu] deliberadamente que elas se apaguem diante de um interesse  
político mais geral”. Era preciso aproximar intelectuais, artistas e escritores –  
sobretudo aqueles próximos dos populistas (KÖPECZI, 1982, p. 87) e estabelecer  
as bases para uma cooperação, mesmo que eles se considerassem distantes do  
marxismo.  
E Lukács parecia a figura ideal para realizar isso. Mesmo que não tivesse  
qualquer função oficial no partido, ainda assim ele estava destinado, de acordo com  
Ambrus (1993, p. 419), “a assumir um papel importante na formação e popularização  
da cultura e da política comunistas em relação à intelligentsia”. Já desde o final da  
década de 1930, ele acentuava a importância da ideia da frente popular enquanto  
norte de uma plataforma cultural antifascista33. Além disso, não podemos nos esquecer  
que ele trazia uma extensa reflexão sobre o papel (também político) dos intelectuais.  
31  
Cabe lembrar que, assim como Lukács, os partidos comunistas de um modo geral viam a revolução  
cultural como um “fator essencial da transformação e do desenvolvimento da nova sociedade” (KÖPECZI,  
1982, p. 80).  
32  
Na primavera de 1945, Dezső Keresztury se torna ministro da cultura, seguindo uma concepção  
populista. De acordo com Béla Köpeczi (1982, p. 87), ꢀ sua política cultural “os social-democratas  
opuseram as tradições da cultura operária dos sindicatos; os intelectuais, e especialmente uma parte  
oriunda de Budapeste, opunham a ela um antifascismo que condenava o misticismo camponês de parte  
dos escritores populistas, sua hostilidade às cidades, seu antissemitismo e a colaboração contraditória  
de alguns deles com o fascismo. Numerosos escritores e artistas ditos urbanos, que haviam refletido  
nos anos 20 e 30 a tendência vanguardista, aderiram a essa posição”.  
33  
Dirá Urbán (1989, p. 396) até mesmo que a mencionada coletânea era “apresentação fiel e  
popularizadora deste conceito no domínio da literatura”.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 383  
nova fase  
     
Paula Alves  
Mas, do ponto de vista das tarefas diante das quais se via o PCH, ele também possuía  
outras credenciais: era um intelectual marxista de renome internacional, erudito, cuja  
reputação como “intelectual preparado” remontava na época, de acordo com Ambrus  
(1993, p. 419), justamente a seus escritos dos anos 30 sobre temas estéticos. Assim,  
Nagy (1975, p. 80) vai mais longe e afirma não haver dúvidas de que “entre 1945 e  
1949, ele teve a maior parte na superação dos preconceitos anticomunistas entre  
escritores, artistas e intelectuais húngaros em geral, fazendo-os aceitar a ideia do  
socialismo e extinguindo, pelo menos aparentemente, as brasas do conflito populista-  
urbanista”.  
Nesse sentido, Lukács enfatiza a importância da dimensão construtiva que o  
marxismo poderia assumir, como se lê no discurso que ele proferiu durante o III  
Congresso do PCH:  
Se pretendemos propagar o marxismo nas fileiras da intelligentsia,  
teremos que dar uma guinada em nosso trabalho. [...] Se quisermos  
ter sucesso, devemos sem reservas entender as necessidades  
genuínas da intelligentsia e começar por elas. Temos que aprender a  
propagar o marxismo não como um dogma, mas como uma resposta  
viva a desafios agudos e dolorosos [...]. Não devemos limitar o  
marxismo a ser uma ferramenta para criticar visões burguesas  
errôneas. O marxismo deve entrar na era da construção e provar que  
nada mais pode dar a melhor resposta às questões da história e da  
cultura húngaras. (LUKÁCS apud AMBRUS, 1993, p. 420)  
Dois anos antes, em 1944, Lukács (1984, p. 379) já havia inscrito o problema  
da democracia húngara no interior das “lutas internacionais mais amplas entre forças  
democráticas e reacionárias” e, portanto, considerando que qualquer mudança deve  
atingir “as raízes” do problema, entende que as divisões no campo progressista são  
improdutivas:  
O crescente agravamento da situação seria um progresso se se formassem na  
Hungria frentes resolutas: a da revolução democrática contra a reação. Assim, contudo,  
alastra-se um combate atroz entre os parceiros da aliança que se tutelam mutuamente,  
e, ao mesmo tempo, os contrastes se tornam desbotados onde seria necessária uma  
nítida separação. (LUKÁCS, 1984, p. 378)  
Ele tem em vista particularmente “a diferenciação enfática” e os “novos  
agrupamentos” que surgiram na literatura a partir das “novas circunstâncias”, isto é,  
depois da vitória da contrarrevolução, que havia permitido que fosse estabelecido um  
“programa de compromisso” (LUKÁCS, 1984, p. 373). É na esteira da liderança da  
gentry que se estabelece uma justaposição da cultura e da literatura da metrópole –  
Verinotio  
384 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
Budapeste e da província, que passam a existir como se fossem independentes uma  
da outra. Descrevendo a parte da intelligentsia urbana, Lukács afirma que ela,  
sem raízes em escala nacional, oposta à nobreza, formou-se  
paralelamente ao desenvolvimento do sistema capitalista de  
produção. O desenraizamento da intelligentsia urbana encontrou sua  
imagem na falta de firmeza de suas manifestações políticas, sociais e  
literárias especialmente no início, mas em muitos aspectos ao longo  
de todo o seu desenvolvimento. (2013, p. 53)  
Lukács considera surgimento de uma intelligentsia rural um dos grandes  
acontecimentos do período entreguerras. Na literatura produzida pelos representantes  
do populismo rural, revela-se a “situação social do campesinato húngaro, o sofrimento  
e a falta de perspectiva” (LUKÁCS, 2013, p. 57). Mas essa nova literatura também é  
prejudicada pela “insalubridade social dos desenvolvimentos até o momento”, que  
deixa nela a sua marca: “uma parte substancial da nova literatura camponesa herda o  
pessimismo da sociedade gentry em declínio, sua falta de perspectiva” (p. 57). A cisão  
entre “urbanos” e “populistas” é, assim, uma querela literária com graves  
consequências para a vida intelectual húngara, mas que tem seu pendant em uma  
hostilidade materialmente fundada entre campo e cidade34. Se, por um lado, as  
“questões não resolvidas da vida húngara” ganham formas mais conscientes depois  
de 1918, por outro, as respostas não estiveram à altura35. Os “novos agrupamentos”,  
que naquele momento assumem, de um lado, a posição ultracamponesa, e do outro,  
ultraproletária (cf. LUKÁCS, 2013, p. 161), apenas reatualizam a oposição urbanos-  
populistas. São todas “consciências de guildas”, de alguma maneira, e acabam por  
gerar igualmente “uma clivagem entre o radicalismo urbano e o rural [dörflichen]”  
(LUKÁCS, 1984, p. 377).  
A partir da perspectiva da frente popular, Lukács (2013, pp. 54-5) enfatiza o  
34  
Poucos anos antes de retornar a Budapeste, Lukács já havia se debatido com essas questões do  
desenvolvimento húngaro em um prefácio para uma coletânea de textos seus. Como ele descreve a  
situação de maneira muito clara, e como há ali semelhanças com certos desenvolvimentos do presente,  
cabe citar um trecho: “se a capital não conquista a hegemonia democrática em todas as questões da  
vida nacional, uma oposição hostil da província em relação à metrópole é inevitável, estando aquela  
entregue a ideologias retrógradas e reacionárias. Essa tendência se manifestou de forma especialmente  
acentuada na Hungria, uma vez que o desenvolvimento do capitalismo ocorreu dentro dos limites de  
escombros feudais que subsistiam, principalmente em relação à divisão da terra. Em consequência, o  
campesinato suportou todo o fardo econômico da rápida capitalização, sem ter recebido, como nas  
revoluções vitoriosas do Ocidente, terra e liberdade. [...]. Essa antipatia não se limita ao campesinato. A  
classe média da província experimentou a destruição capitalista do idílio do atraso patriarcal sem que  
recebesse qualquer compensação da cultura urbana que se desenvolvia juntamente com o capitalismo”  
(1984, p. 373).  
35  
“A questão da relação entre a cidade e o interior [Dorf] já sinalizava claramente a necessidade de  
uma aliança de luta entre trabalhadores e camponeses [Bauern]” (LUKÁCS, 1984, p. 375), o que não  
veio a se concretizar.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 385  
nova fase  
   
Paula Alves  
quanto essa divisão “entre os elementos progressistas da cidade e do campo” era  
perniciosa, já que “possibilitou que a contrarrevolução desenvolvesse suas tendências  
reacionárias de forma cada vez mais poderosa, até culminar no breve e ignominioso  
reinado do regime fascista húngaro, que foi tão desastroso para o nosso país”. Com  
Literatura e democracia, Lukács realiza o que chama de “um criticismo voltado para o  
futuro” e aponta um caminho para se superar essa clivagem, possibilitado pela  
mudança na situação política e econômica36:  
Somente um criticismo voltado para o futuro pode indicar o caminho  
que leva à renovação genuína da literatura: uma luta contra o legado  
oneroso do passado e contra os remanescentes ideológicos  
decadentes e reacionários; a luta para criar associações de  
trabalhadores e camponeses em todos os domínios da cultura, como  
garantia de que a futura literatura húngara assim como foi com os  
maiores representantes individuais da literatura húngara daquela  
época não mais reconhecerá a falsa e prejudicial dualidade entre  
cidade e campo, literatura populista e “urbanista”. (LUKÁCS, 2013, p.  
103).  
O que isso significa? Finalmente, está ao alcance da sociedade húngara romper  
com as “tendências do século após a derrota da Revolução de 1848, tendências que  
são insalubres, antissociais e que obstruem o desenvolvimento da literatura” (LUKÁCS,  
2013, p. 64). Sob essas condições, como resultado delas, a literatura húngara também  
começa a mudar e a “dualidade entre cidade e campo, literatura populista e ‘urbanista’”  
dá lugar a uma outra forma de literatura: ela, sim, adequada à democracia popular (cf.  
LUKÁCS, 2013, p. 62). Essa forma é o realismo.  
Quando se posiciona em favor do realismo, Lukács retoma diversos aspectos  
que haviam sido tratados com mais vagar nos textos escritos durante o exílio  
moscovita. Balzac e Tolstói são mencionados mais de uma vez, como representantes  
do “grande realismo”, como grandes escritores do século passado. Tal como antes, a  
defesa do realismo não equivale a um refúgio no passado, uma aclamação do velho  
estilo, da velha técnica, como se essas referências devessem servir de modelo. Ali como  
aqui, o que interessa a Lukács é “reconhecer e reafirmar a função humanística da arte,  
que é a de redimir o homem e a humanidade em tempos desfavoráveis e elevá-los em  
tempos favoráveis.” (LUKÁCS, 2013, p. 200).  
36  
De acordo com alguns comentadores, esse propósito teria influenciado na edição do livro, o que se  
percebe quando as versões dos textos são comparadas, cf. Kenyeres (1989, p. 389). Kenyeres (1989,  
p. 391) defende ainda que já no livro de 1944 Lukács procurava suavizar o tom de sua crítica, sem  
renunciar a seus princípios, com o que Sőtér (1993, p. 479) já não concorda. Para ele, esse livro seria  
um tanto inflexível.  
Verinotio  
386 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
Ali como aqui, ele explicita como o realismo é o correspondente, na arte, de um  
certo tipo de comportamento e de vida o da pessoa ativa que se relaciona a uma  
possibilidade de inteligibilidade do mundo (cf. LUKÁCS, 2013, pp. 9-10). Só é possível  
senti-la, experienciá-la, retratá-la “se ela se manifesta como a racionalidade objetiva  
da vida social”. Uma vida encalacrada não permite isso, pois “a razão construída a  
partir de elementos puramente subjetivos e apenas projetada na realidade objetiva  
inevitavelmente se depara com esse meio sem sentido e se despedaça” (LUKÁCS,  
2013, p. 179). Por isso, a “visão de mundo humanística dos grandes realistas também  
significa que, para eles, a dualidade entre os assuntos privados e públicos, entre a  
pessoa privada e o cidadão, foi suspensa” (LUKÁCS, 2013, p. 48). Se recuperamos a  
discussão que Lukács faz a respeito da democracia, da necessidade incontornável de  
que as massas participem de forma genuína, para que a democracia possa ter, de fato,  
esse nome, não surpreende quando ele então conclui que “os grandes realistas — em  
suas obras e representações são sempre aliados da democracia, quer saibam ou  
não, e quer gostem ou não; desde que realmente sejam grandes realistas” (LUKÁCS,  
2013, p. 50).  
O caso húngaro seria bastante simples nesse ponto: foram os “grandes poetas,  
Petőfi, Ady e Attila József” que representaram de maneira mais consistente o ideal  
democrático (LUKÁCS, 2013, p. 160). Eles deram voz ao “páthos da cidadania”  
(LUKÁCS, 2013, p. 64). Na medida, contudo, em que o desenvolvimento nacional se  
deu com base em compromissos, excluindo a “nação do povo”, que “tem sido apenas  
o objeto, e não o sujeito do destino nacional” (LUKÁCS, 2013, p. 160), esses “grandes  
poetas” permaneceram figuras isoladas, mesmo tendo se originado na vida do povo.  
Não foi possível constituir uma tradição do grande realismo no sentido francês ou  
russo, “o realismo especificamente moderno do século XIX”, influenciado de maneira  
decisiva pelas “tendências sociais democráticas” (LUKÁCS, 2013, p. 51). O que Lukács  
espera é que essas figuras possam ser, finalmente, retiradas de seu isolamento: “se  
esperamos dos escritores da nova democracia húngara uma literatura realista nova e  
grandiosa, o que realmente esperamos deles é uma renovação atualizada das grandes  
tradições húngaras” (LUKÁCS, 2013, p. 65).  
Lukács remete às discussões da época do exílio moscovita, para lembrar a seus  
interlocutores que suas posições a respeito da natureza da relação de grandes  
escritores com a tradição não se originaram no debate que estava em curso (cf. 2013,  
p. 157). Ao mesmo tempo, ele não ignora o que isso significa particularmente no caso  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 387  
nova fase  
Paula Alves  
dos escritores húngaros:  
Por um lado, a literatura húngara não pode renunciar à tentativa de  
desenvolver gêneros que compreendam a totalidade social objetiva, o  
que significa que esses esforços, na medida em que desejam se  
conectar com as tradições húngaras, devem olhar para outro lugar que  
não as figuras centrais da história literária. Por outro lado, a  
convergência milagrosa da grandeza lírica e da consistência  
democrática nas figuras centrais de nossa literatura pode facilmente  
levar à injustiça e à avaliação errônea de grandes valores se virmos  
nelas uma medida infalível e esquematicamente aplicável para toda  
avaliação de significado literário. (2013, p. 161)  
Ou seja, quando Lukács (2013, p. 23) fala de uma “renovação atualizada das  
grandes tradições húngaras”, quando ele defende a “reanimação de uma tradição  
popular verdadeiramente nacional e a criação de uma nova tradição nacional, mesmo  
quando os grandes nomes do legado cultural permanecem no lugar (Petőfi)”, ele não  
tem e nem poderia ter em vista relações servis com o passado. Antes, ele mostra  
o ponto de contato entre os pioneiros da literatura húngara recente e o que há de  
melhor na cultura dos trabalhadores: “o profundo reconhecimento de que a pessoa  
verdadeiramente inteira é também a pessoa pública, o reconhecimento de que não há  
problema de vida pessoal e individual que não esteja também entrelaçado com a vida  
pública” (2013, p. 23). Ele busca, portanto, fazer com que se precipitem relações que  
talvez sejam subterrâneas, mas que são, ainda assim, atuantes e “oferecem um enorme  
apoio para qualquer transformação social contemporânea” (LUKÁCS, 2013, p. 61).  
Pouco antes, ele havia sintetizado com clareza essa orientação:  
O verdadeiro sentido da série de Ady é reconhecer essa tendência  
progressiva da história húngara (que muitas vezes permaneceu oculta,  
escondida), expô-la e usá-la na vida prática, e não permanecer na  
superfície predominantemente reacionária e distorcer os grandes  
nomes do passado à sua imagem. Entendidas dessa forma, a história  
e a história literária também são de suma importância política para a  
apreensão correta das tarefas atuais. (1984, pp. 383-4)  
Uma dialética entre necessidade e contingência  
Péter Nagy (1975, p. 76) relembra que Lukács gostava de mencionar o episódio  
de seu retorno para a Hungria em 1918 como um exemplo da dialética entre  
necessidade e contingência: ele havia sido guiado a fazê-lo por causa de “problemas  
privados” e não por “considerações teóricas”. Já o segundo retorno a Budapeste, em  
1945, foi o contrário: ele resultou de um desenvolvimento interior e foi uma decisão  
consciente. A partir do que vimos, analisando a atividade de Lukács entre 1945 e  
1949, bem como seus antecedentes durante o período do exílio em Moscou, parece  
Verinotio  
388 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
acertado dizer que Lukács foi movido por “considerações teóricas” ao recusar as  
ofertas do espaço de língua alemã37: na Hungria, ele esperava poder “praticar mais  
plenamente suas teorias, transformando em literatura socialista viva e em atividade  
pública socialista democrática aquilo que ele havia elaborado ao longo dos anos em  
seus escritos políticos e estéticos” (NAGY, 1975, p. 78). Chegando lá, ele também se  
deparou com circunstâncias favoráveis que permitiram que ele continuasse com a linha  
da frente popular:  
O grupo Rákosi notou que, na corrida contra a socialdemocracia, essa  
direção crítica é apropriada para aproximar do Partido Comunista a  
melhor e maior parte da intelectualidade. Por isso, até a unificação de  
ambos os partidos, admitiu-se sem contestação minha atividade como  
crítico. Mesmo quando eu defendi a democracia direta; mesmo quando  
eu chamei partisans aos poetas partidários; mesmo quando eu –  
excluindo qualquer intromissão administrativa declarei a direção  
comunista da cultura como puramente ideológica; mesmo quando  
enfatizei que considero, com efeito, o marxismo o Himalaia das visões  
de mundo, mas, ainda assim, não reconheço que o coelhinho que ali  
saltita seja um animal maior do que o elefante do deserto mesmo  
então não houve qualquer tipo de crítica pública contra mim. (LUKÁCS,  
2023, p. 256)  
Havia, ao que tudo indica, uma atmosfera muito diferente daquela que  
caracterizará o período seguinte, que conheceu uma rápida stalinização da Hungria,  
embora, em parte da historiografia, ambos sejam considerados em bloco como o  
momento de construção da democracia popular38. A bandeira da democracia popular  
vinha sendo propagada pelo PCH desde o final da guerra. Internamente, a discussão  
sobre a natureza da democracia popular, especialmente em relação à ditadura do  
proletariado, ainda não havia alcançado um consenso. Assim, como sugere Miller  
(2013, p. XIII), Lukács vivenciou esse período provisório como um “momento histórico  
especial”. Ele via uma oportunidade para promover uma genuína transição  
democrática, seguindo sua concepção, que remontava às Teses de Blum, de que “a  
democracia popular é um socialismo que nasce da democracia” (LUKÁCS, 2017, p.  
149). Os dirigentes do PCH agiam com extrema liberalidade em relação a esse  
programa: “o particular do período entre 1945 e 1948 é que me permitiam tudo” (gd  
entrevista 159). Assim, não surpreende que Lukács acreditasse “na solidariedade da  
37  
Nagy (1975, p. 78) afirma que é fato conhecido que “a liderança do Partido Comunista Alemão fez  
um convite muito enfático para que ele voltasse para casana Alemanha, para a vida intelectual à qual  
ele esteva ligado não apenas na juventude, mas também por um importante período como trabalhador  
do partido, além de uma parte substancial de sua atividade crítica.”  
38 Um exemplo é Hoensch (1991).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 389  
nova fase  
   
Paula Alves  
política cultural que me era taticamente – permitida” (LUKÁCS, 2017, p. 211).  
O que ele vem a identificar só depois é justamente essa dimensão “tática” da  
solidariedade com seu programa cultural: “regresso ꢀ pátria com esperanças. Seu  
fundamento (muito temporário): tática de Rákosi e Gerő”. A base objetiva de sua  
atividade era, desse ponto de vista, ilusória (cf. LUKÁCS, 1970, p. 238). “Rakósi e seu  
pessoal” viam a questão de maneira utilitária: mesmo não concordando com Lukács  
quanto ꢀ “evolução democrático-popular do socialismo”, num primeiro momento eles  
o toleraram, sem opor qualquer forma de resistência à sua atuação, porque ela era  
uma propaganda favorável do Partido comunista junto ao Partido socialdemocrata.  
“De sua indiferença ideológica”, conclui Lukács, “liberdade para mim” (LUKÁCS, 2017,  
p. 211). Mas, quando a “opinião em Moscou” a respeito da natureza da democracia  
popular mudou, tão logo Rákosi e Gerő também se adaptaram (LUKÁCS, 2017, p.  
148)39.  
Lukács, contudo, não abandonou seu ponto de vista, mesmo que tenha  
realizado uma autocrítica, forçado pelas circunstâncias40. Quando István Eörsi pergunta  
durante a entrevista de Pensamento vivido se ele acreditava na possibilidade de  
concretização de uma “evolução democrático-popular [...] se os fatores de política  
externa não tivessem sido tão graves”, Lukács assente, ponderando que também teria  
sido necessário que não houvesse stalinismo na União Soviética (LUKÁCS, 2017, p.  
149). Afinal, como pontua Ambrus, a “democracia popular enquanto transição  
significava para Lukács o reconhecimento e o programa social da importância história  
da mediação” (1993, p, 428).  
Assim, suas reflexões durante os anos 1940 a partir da conjuntura húngara são  
importantes para se compreender a obra tardia do filósofo, em que ele retoma a  
39 De acordo com Urbán (1989), essa mudança de curso, seguida de uma “onda crítica” no ano seguinte,  
começa a se desenhar pouco depois da publicação da coletânea Literatura e democracia. M. Farkas e J.  
Revái participaram do congresso de formação do Kominform em 1947, na Polônia, e de lá eles voltaram  
convencidos de que o trabalho teórico no PCH estaria atrasado em relação ao que havia sido realizado  
pelos outros partidos comunistas. Em seu relatório, eles constatavam que havia uma necessidade de  
revisar as elaborações teóricas sobre o curso da democracia popular húngara. Revái continuou  
defendendo por um tempo a validade da via húngara rumo ao socialismo, mas realiza uma autocrítica  
ainda em 1948 (URBÁN, 1989, p. 404). Nesse mesmo ano, o Kominform recomendou a unificação dos  
partidos trabalhistas, o que aconteceu em seguida, dando origem ao MDP. No final de 1948, a direção  
central do MPD se decide pela tendência da liquidação do pluripartidarismo. A resolução de liquidação  
da frente popular acontece em um contexto de autocrítica do partido, que revê também seu regime de  
poder, adotando em alguma medida a fórmula de Stálin de que “a democracia popular cumpre as  
funções básicas da ditadura do proletariado” (URBÁN, 1989, p. 403).  
40  
A respeito da campanha movida contra Lukács em 1949, cf. Infranca (2021, pp. 150 ss); Oldrini  
(2017, p. 199 ss); Urbán (1989, pp. 404 ss).  
Verinotio  
390 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
relevância da democracia para o socialismo, ao mesmo tempo em que aponta para a  
incompatibilidade entre o capitalismo e a democracia, empreendendo uma dura crítica  
do liberalismo e da democracia formal. Mas esses trabalhos também são cruciais para  
se compreender a realização parcial daquele projeto que Lukács ambicionou durante  
os anos 1930, ao discutir os problemas do realismo: mostrar como a estética faz parte  
organicamente da teoria marxista.  
Mas, parece-nos, é possível reivindicar a atualidade desses escritos para além  
de uma compreensão mais aprofundada da evolução intelectual de Lukács, o que foi  
nosso objetivo com esse texto. Neles se encontra uma reflexão cerrada sobre os limites  
de um progressismo desenraizado, bem como do chauvinismo, do provincianismo (que  
não é exclusividade da província), das caricaturas nacionalistas que tanto abundam,  
hoje, ainda. Neles se encontra uma defesa vigorosa da cultura através de um programa  
realista, que, mesmo sendo geral demais, ainda ressoa. Neles se encontra, finalmente,  
uma descrição das diversas figuras que a revolta conformista pode assumir, sem  
escamotear o difícil reconhecimento de que essa revolta, por mais que ela seja  
insuficiente e, no limite, perigosa, expressa, ela mesma, uma insuficiência de nossa  
realidade social.  
Referências bibliográficas  
AMBRUS, J. “Return home with hopes”. Em: ILLÉS, L. et al. Hungarian studies on György  
Lukács v. II. Trad. de Iván Sellei . Budapest: Akadémiai Kiadó, 1993.  
BAEHRENS, K. Preface (1922). Introducing new agendas. In: Dissonância, v. 7, 2023.  
BENSELER, F. “Zur Politik: Einleitung”. In: LUKÁCS, G. Revolutionäres Denken.  
Darmstadt e Neuwied: Luchterhand, 1984.  
COTRIM, A. Literatura e realismo em György Lukács. Porto Alegre: Zouk, 2016.  
FREDERICO, C. “A presença de Lukács na política cultural do PCB e na universidade”.  
In: MORAES, J. Q. (Org.) História do marxismo no Brasil v. 2. Campinas: Unicamp,  
1995.  
HOENSCH, J. K. Ungarn. Handbuch. Hannover: Fackelträger, 1991.  
INFRANCA, A. O retorno de Lukács para a Hungria comunista. Trad. de Ranieri Carli e  
Elisabeth Hess. Anuário Lukács, v. 8, 2021.  
KENYERES, Z. “Die ungarischen Studien von Georg Lukács bis 1945”. In: Sziklai, L.  
(Org.) Lukács aktuell. Budapest: Akadémiai Kiadó, 1989.  
KÖPECZI, B. “Der Kulturbegriff von Georg Lukács 1945-1948”. Trad. de Ágnes V.  
Meller. In: SZIKLAI, L. (Org.) Lukács aktuell. Budapest: Akadémiai Kiadó, 1989.  
KÖPECZI, B. Trente années de la culture hongroise. Une révolution culturelle. Trad. de  
Aimée Martel. Gyoma: Corvina Kiadó, 1982.  
LUKÁCS, G. “Der Kampf zwischen Liberalismus und Demokratie im Spiegel des  
historischen Romans der deutschen Antifaschisten”. In: ARNOLD, Heinz L. (Org.)  
Deutsche Literatur im Exil 1933-1945. Band I: Dokumente. Frankfurt am Main:  
Athenäum Fischer Verlag, 1974.  
LUKÁCS, G. “Die verbannte Poesie”. In: Schicksalswende. Berlin: Aufbau, 1956a.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 391  
nova fase  
Paula Alves  
LUKÁCS, G. Meu caminho até a cultura húngara [1969]. Anuário Lukács, v. 10, n. 2,  
dez. 2023.  
LUKÁCS, G. “Sozialismus als Phase radikaler, kritischer Reformen” [1969]. In:  
Marxismus und Stalinismus. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1970.  
LUKÁCS, G. “Von der Verantwortung der Intellektuellen” [1948]. In: Schicksalswende.  
Berlin: Aufbau, 1956b.  
LUKÁCS, G. “Vorwort” [1967]. In: Frühschriften II, Werke Bd 2. Neuwied e Berlin:  
Luchterhand, 1968.  
LUKÁCS, G. Der historische Roman. In: Probleme des Realismus III, Werke Bd. 6.  
Neuwied e Berlin: Luchterhand, 1965.  
LUKÁCS, G. Gelebtes Denken. In: Autobiographische Texte und Gespräche. Werke, Bd.  
18. Bielefeld: Aisthesis, 2005.  
LUKÁCS, G. Lukács György levelei Lifšic, Mihail Aleksandrovič-nak [Correspondência  
entre  
Lukács  
e
Lifschitz].  
Disponível  
em:  
<https://real-  
ms.mtak.hu/19673/1/Lukacs_lev_25_1077_Lifsic_2.pdf>. Acesso em: 23 set.  
2024.  
LUKÁCS, G. Pensamento vivido: autobiografia em diálogo. Trad. Cristina Alberta  
Franco. São Paulo: Instituto Lukács, 2017  
LUKÁCS, G. The culture of people’s democracy. Hungarian Essays on literature, art, and  
democratic transition, 1945-1948. Trad. T. Miller. Leiden e Boston: Brill, 2013.  
LUKÁCS, G. „Thesenentwurf über die politische und wirtschaftliche Lage in Ungarn und  
über die Aufgabe der KMP (Blum-Thesen)„. In: Demokratische Diktatur. Darmstadt e  
Neuwied: Luchterhand, 1979.  
LUKÁCS, G.“Aristokratische und demokratische Weltanschauung” [1946]. In: Schriften  
zur Ideologie und Politik. Neuwied e Berlin: Luchterhand, 1967.  
LUKÁCS, G.“Die Verantwortung der Schriftkundigen” [1944]. In: ILLÉS et al. Befunde  
und Entwürfe. Berlin: Akademie-Verlag, 1984.  
LUKÁCS, Georg. Grand Hotel “Abgrund”. Disponível em: <https://real-  
ms.mtak.hu/21580/1/Lukacs_kez_32_230.pdf>. Acesso em: 20 set. 2024.  
MILLER, T. “The Phantom of Liberty: György Lukács and the Culture of ‘People’s  
Democracy’”. In: LUKÁCS, G. The culture of people’s democracy. Hungarian Essays  
on literature, art, and democratic transition, 1945-1948. Trad. de T. Miller. Leiden  
e Boston: Brill, 2013.  
NAGY, P. Lukács and Hungarian literature. New Hungarian Quartely, v. 26, n. 60, ago.  
1975.  
NETTO, J. P. “Georg Lukács: um exílio na pós-modernidade”. In: LESSA, S.; PINASSI, M.  
(Org.) Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002.  
OLDRINI, G. “Hungria pós-1945: República popular e ‘democracia de novo tipo’” e “A  
forma cultural da militância de Lukács”. In: György Lukács e os problemas do  
marxismo do século XX. Trad. Mariana Andrade. Maceió: Veredas, 2017.  
OPAT, A. “Do antifascismo aos ‘socialismos reais’: as democracias populares”. In:  
HOBSBAWN, E. (Org.) História do marxismo v. 10. Trad. Carlos Nelson Coutinho e  
Luiz Sérgio N. Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.  
PETER, C.; PEREIRA NETO, M. L. “A casa está em chamas”: apresentação ꢀ conferência  
“O espírito europeu”. Verinotio, v. 27, n. 1, jan./jun. 2021.  
SŐTÉR, I. “Realism and Democracy György Lukács after the Liberation”. In: ILLÉS, L. et  
al. Hungarian studies on György Lukács v. 2. Trad. József Kovács. Budapest:  
Akadémiai Kiadó, 1993.  
SZABÓ, A. “Georg Lukács und die ungarische Arbeiterbewegung 1918-1930”. In:  
SZIKLAI, L. (Org.) Lukács aktuell. Budapest: Akadémiai Kiadó, 1989.  
SZABÓ, E. K. “From the Program of Literary Unity to the Defensive:  
Verinotio  
392 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo  
György Lukács and the Forum”. In: ILLÉS, L. et al. Hungarian studies on György  
Lukács v. 2. Trad. József Kovács. Budapest: Akadémiai Kiadó, 1993.  
TÓTH, I. “Die Ansichten von Georg Lukács über die bildungspolitischen Fragen der  
Koalitionszeit (1945-1948). In: SZIKLAI, L. (Org.) Lukács aktuell. Budapest:  
Akadémiai Kiadó, 1989.  
URBÁN, K. “Lukács und die ungarische Volksdemokratie”. In: SZIKLAI, L. (Org.) Lukács  
aktuell. Budapest: Akadémiai Kiadó, 1989.  
Como citar:  
ALVES, Paula. Retorno a Budapeste: Lukács, democracia e realismo. Verinotio, Rio das  
Ostras, v. 29, n. 2, pp. 361-393; jul.-dez., 2024  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 361-393 jul.-dez., 2024 | 393  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.728  
A função da ideologia e a dinâmica das  
religiosidades a partir da ontologia de György  
Lukács  
The function of ideology and the dynamics of  
religiosities based on György Lukács’ ontology  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero*  
Resumo: Este trabalho compreende uma reflexão  
teórica sobre o estudo do fenômeno religioso  
embasada na teoria social marxista. O objetivo  
proposto se concentra em demonstrar que as  
formas ideológicas especificamente religiosas se  
tornam forças materiais de transformação ou  
conservação do mundo social. A questão é  
pensada desde o estatuto teórico marxiano, o  
qual fundamenta uma ontologia histórico-  
imanente reelaborada por Lukács. A partir da  
obra tardia do autor húngaro, expõem-se  
brevemente as categorias centrais do complexo  
da religião, enfatizando o papel desempenhado  
pelo estranhamento religioso. A abordagem da  
questão religiosa aqui proposta se mostra  
radicalmente avessa às principais tendências  
presentes nesse campo de estudos, oferecendo  
a possibilidade de se compreender a temática  
tomando o próprio homem e suas relações  
objetivas enquanto ser social como ponto de  
partida.  
Abstract: This work comprises a theoretical  
reflection on the study of the religious  
phenomenon based on Marxist social theory.  
The  
proposed  
objective  
focuses  
on  
demonstrating that specifically religious  
ideological forms become material forces of  
transformation or conservation of the social  
world. The question is considered from the  
Marxian theoretical statute, which bases a  
historical-immanent ontology re-elaborated by  
Lukács. Based on the late work of the Hungarian  
author, the central categories of the complex of  
religion are briefly exposed, emphasizing the  
role played by religious estrangement. The  
approach to the religious issue proposed here  
is radically contrary to the main trends present  
in this field of studies, offering the possibility of  
understanding the theme by taking man himself  
and his objective relationships as a social being  
as a starting point.  
Keywords: Karl Marx; György Lukács; religion;  
ontology; estrangement.  
Palavras-chave:  
Karl Marx; György Lukács;  
religião; ontologia; estranhamento.  
“[…] um clamor de novos gritos e prantos encheu a atmosfera, não  
eram os anjos chorando sobre a desgraça dos homens, eram os  
homens enlouquecendo debaixo de um céu vazio.” (José Saramago, O  
evangelho segundo Jesus Cristo)  
O breve estudo que ora se apresenta objetiva delinear os princípios da  
concepção ontológica materialista a partir de Marx e das contribuições do último  
Lukács no que tange ao estudo da problemática das religiosidades. Busca, pois,  
*
Professor Doutor da Universidade do Estado de Minas Gerais, Ibirité, Minas Gerais, Brasil. Mestre em  
Estudos Literários pela FCLAr - Unesp e Doutor em Letras: Estudos Literários pela UFMG. E-mail:  
sergio.romero@uemg.br.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
contribuir efetivamente com análises que perscrutem as determinações sócio-históricas  
da religião, sem as quais a dinâmica de sua produção ideológico-cultural1, nos parece,  
não pode ser efetivamente apreendida.  
Nesse sentido, convém sinalizar a resolução teórica fundamental aqui adotada,  
ou seja, a proposição de se abordar a religião enquanto fenômeno ideológico, nos  
termos do que preconiza Ciro Flamarion Cardoso (2005, p. 223): “[e]m minha opinião,  
o conceito de ideologia continua sendo o enfoque metodologicamente mais profícuo  
para a análise histórico-social das religiões [...]”. Sob esse viés, o autor se remete à  
obra do antropólogo Stephan Feuchtwang, que contesta teoricamente o tratamento  
dispensado às religiões por aquelas correntes analíticas que tomam ainda que  
implicitamente a crença no sobrenatural e no sobre-humano enquanto variáveis  
independentes; como se produções culturais tais quais a religião, o mito e o ritual  
constituíssem fenômenos que se autodefinem (FEUCHTWANG, 1977).  
Obviamente, uma tal proposição implica, a princípio, o reconhecimento crítico  
de que a abordagem marxista da religião enquanto ideologia constitui um postulado  
teórico notoriamente recessivo no contexto acadêmico das últimas décadas. Tal cenário  
pode ser relacionado a uma extensa gama de fatores, dentre os quais, entretanto,  
interessa-nos destacar o inequívoco pendor ao reducionismo mecanicista na análise  
da ideologia e, por consequência, da religião que se sobressai em parte  
expressiva da tradição materialista dedicada a essa temática ao longo do século XX;  
assim como o próprio soterramento dos fundamentos filosóficos da teoria social  
marxiana sob camadas e camadas de marxismos, o que engendrou e engendra —  
leituras empobrecidas e empobrecedoras da dialética concreta da realidade.  
Via de regra, as inconsistências gravitam em torno das clássicas noções  
gnosiológicas de ideologia como falsa consciência e reflexo distorcido da realidade.  
Essas têm sido, por sua vez, extraídas e generalizadas arbitrariamente a partir de  
análises concretas de formações ideológicas específicas sugeridas por Marx e Engels  
principalmente em algumas passagens de A ideologia alemã (2007 [1846]) e  
cultivadas como máxima irretocável e absoluta por um séquito considerável de  
marxistas.  
Naturalmente, combinar a teoria social marxista com o estudo da dinâmica  
religiosa não parece, definitivamente, um projeto muito auspicioso quando pensamos  
1
Por cultura entendemos o complexo arcabouço de produções ideológicas de determinada sociedade  
sedimentadas pelo transcurso histórico.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 395  
nova fase  
 
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
nas tendências hodiernamente em voga em nossas universidades e centros de  
pesquisa. Parece-nos, todavia, um movimento esperável dadas as atuais condições  
sócio-históricas. Com efeito, vem se notando, de modo geral, um movimento tênue,  
mas significativo de recuperação das tradições marxistas em seus diferentes e  
amiúde incompatíveis matizes, no bojo de um esforço teórico e prático de se fazer  
frente à crise socioecológica (e, consequentemente, ideológica) estrutural e  
generalizada engendrada pelo capitalismo que hoje coloca em xeque a própria  
continuidade da existência humana.  
E como não poderia deixar de ser, quanto mais se aprofunda o abismo tanto  
mais se abarrotam os templos o mercado de lenitivos e soluções imaginárias para  
catástrofes concretas se expande às maravilhas; e assim os estudos das religiosidades  
também têm ganhado proeminência perante o que parece ser uma complexificação  
generalizada desse campo na atual conjuntura global. Logo, as expectativas pueris  
depositadas na vitória da razão triunfante e dos avanços tecnocientíficos sobre o  
pretenso obscurantismo das religiosidades se veem reduzidas a pó, ratificando a  
necessidade de repensarmos a questão profundamente. Soma-se a isso, inclusive no  
Brasil, o pronunciado pendor para a expansão de segmentos e setores religiosos  
ativamente dedicados ao exercício de variados tipos de violência, de toda sorte de  
discriminação, da manipulação midiática das massas subalternizadas e da intervenção  
política e econômica em favor da manutenção do poder e dos privilégios das classes  
dominantes. Tal cenário tem fomentado essa bem-vinda expansão da atuação de  
pesquisadores de diferentes áreas e perspectivas com relação à temática das  
religiosidades; e, nesse horizonte, consideramos que a contribuição marxiana é  
incontornável.  
O leitor poderia, ainda assim, se perguntar por que essa teoria social,  
aparentemente desusada nos estudos acerca do fenômeno religioso, deveria ser, no  
presente, objeto de reflexão. Bem, replicaríamos a essa indagação afirmando que tal  
linha investigativa se justifica, acima de tudo, pelo fato de demonstrar uma  
especificidade e uma radicalidade únicas, sem paralelo com outras abordagens da  
questão. Boa parte das perspectivas adotadas no estudo das religiosidades toma como  
ponto de partida a crença dos homens em seres e poderes sobrenaturais, sem se  
perguntarem, por exemplo, o porquê eles creem. Já outra abordagem tradicionalíssima  
do fenômeno religioso predominante entre os marxistas parte da referida  
perspectiva gnosiológica: consideram-se as formas religiosas como falsas crenças,  
Verinotio  
396 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
fruto da ignorância e da manipulação, que se opõem às verdades produzidas por um  
conhecimento científico pretensamente neutro e completamente objetivo. Ambas as  
abordagens se mostram avessas àquela que, a partir da recuperação de Marx efetuada  
por Lukács, aqui desenvolvemos.  
Subscrevemos  
uma  
concepção,  
de  
filiação  
filosófica  
marxiana,  
epistemologicamente realista ou ontologicamente materialista. Isso significa dizer que  
não se trata de elaborar ou definir metodologicamente, a priori, as formas ideais e os  
artefatos conceituais que se julguem mais apropriados para a interpretação da  
realidade que se quer conhecer como, em geral, o fazem as tradições teóricas  
devotadas ao estudo do religioso , mas, antes, de partir do próprio real, enquanto  
unidade ontológica cuja raiz material objetiva precede o pensamento, para, por meio  
deste, buscar capturar a lógica das coisas em si mesmas. Em Marx, inexistem  
apriorismos teórico-metodológicos, e os únicos pressupostos de que se parte são: “os  
indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles  
já encontradas como as produzidas por sua própria ação” (MARX; ENGELS, 2007, pp.  
86-7).  
Nessa perspectiva, buscamos o diálogo com a obra tardia de György Lukács.  
Realizamos, pois, uma exposição e interpretação mínimas dos complexos categoriais  
desenvolvidos pelo autor a partir da obra marxiana, tentando demonstrar como sua  
ontologia histórico-imanente do ser social possibilita a compreensão da religião  
centrada na função por ela desempenhada no seio das sociedades atravessadas pelas  
contradições de classes. Avança-se, ademais, com o fito de desnudar o fenômeno  
religioso a partir de uma análise genética, isto é, por meio da identificação da dialética  
histórica que engendra as categorias ideológicas próprias da religião em sua  
constituição objetiva.  
Assinalamos de antemão que nossa análise de modo algum se restringe à  
descrição, pretensamente neutra, da aparência dos fenômenos aqui considerados; ao  
revés, perfazendo-se mediante a compreensão de que o espírito religioso paira sobre  
o estranhamento desumanizado e desumanizador do homem enquanto negação do  
próprio homem, ela se quer crítica. E quer-se não como ponto de chegada do estudo  
da problemática em pauta, mas como pequena e modesta contribuição à decifração da  
gênese, da necessidade social e do desenvolvimento históricos da religião, a partir da  
análise do aglutinado de seus próprios nexos constitutivos, o que permite entrever,  
oxalá, as condições de sua superação. Em última instância, o que também aqui se  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 397  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
almeja é demonstrar que, sócio-historicamente, as ideias religiosas se tornam forças  
materiais de transformação ou conservação do mundo em diferentes gradações e sob  
distintas formas fenomênicas.  
A dimensão ideológica na ontologia lukacsiana  
Desde um ponto de vista de uma formulação teórica preliminar de caráter  
formal diríamos que a religião se manifesta, enquanto produção ideológica, como  
um conjunto coordenado de formas discursivas (internas e externas) e práticas  
relativamente estáveis; as quais sintetizam, expressam, performatizam e veiculam  
significados parcialmente coerentes, uma vez que são sempre portadores de  
contradições imanentes assim como se articulam de modos mais ou menos conflitantes  
com outras unidades discursivas e práticas, seja no interior de seu próprio sistema  
seja no de seu complexo cultural distinto, ou mesmo na interação com outras  
dimensões da totalidade social com relação às quais se desenvolve de maneira  
conjugada e desigual, mas sempre reflexiva.  
Todavia, de forma abstrata, uma tal definição poderia ser aplicada a formações  
ideológicas várias, de maneira indiscriminada, o que parece implicar que as  
particularidades essenciais da categoria religião não residem puramente no âmbito  
das formas fenomênicas genéricas que ela assume em diferentes contextos sócio-  
históricos. Isso posto, não se pode assumir, diante de tais fenômenos, uma postura  
reificadora, que oblitere o processo, no seio do ser social, de que tais formas são  
expressão inalienável. Em sentido inverso, faz-se necessário reconstituir  
ontologicamente as determinações sociais concretas a partir das quais as diversas  
expressões religiosas se cristalizaram e, dinamicamente, evoluíram ao longo de seu  
transcurso diacrônico.  
Acima de tudo, parece-nos imprescindível retornar, na investigação do  
fenômeno religioso, à categoria ideologia; mas, mais especificamente, ao modo como  
a concebe Marx em sua fase madura. Referimo-nos aqui, principalmente, à célebre  
passagem de Contribuição à crítica da economia política (2008 [1859]), em que o  
pensador alemão propõe uma definição de cariz funcional avessa ao reducionismo  
gnosiológico que prima pela compreensão do papel social desempenhado pelas  
elaborações ideológicas independentemente da veracidade objetiva de seus  
conteúdos.  
Tal tarefa pode ser melhor empreendida por meio do recurso às proposições  
Verinotio  
398 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
de György Lukács, cuja obra tardia oferece o desenvolvimento teórico mais consistente  
e coerente com a obra marxiana no que toca à compreensão do fenômeno ideológico-  
religioso. O autor húngaro contrapõe-se de maneira incisiva ao critério gnosiológico  
como definidor das ideologias em prol de uma fundamentação ontológico-prática e  
genética do fenômeno. Sob esse prisma, como assinala Ester Vaisman, a definição  
lukacsiana da ideologia em seu sentido estrito possui um caráter funcional: “[f]alar de  
ideologia em termos ontológico-práticos significa, portanto, analisar este fenômeno  
essencialmente pela função social que desempenha, ou seja, enquanto veículo de  
conscientização e prévia-ideação da prática social dos homens” (2010, p. 51).  
Assim, pode-se afirmar que aquilo que delimita o ideológico não é sua condição  
de falsificação de uma realidade objetiva cujo acesso privilegiado restringir-se-ia a uma  
ciência pretensamente neutra. Este tipo de raciocínio, aliás, desemboca, amiúde, em  
um dualismo que assume contornos morais: ciência/ideologia; verdade/falsidade;  
marxismo/pensamento burguês etc. Diversamente, a ideologia, em sentido estrito, é o  
instrumento ideal por meio do qual os homens que pertencem a sociedades de classes  
se conscientizam dos conflitos sociais, se situam em relação a estes, reagem, tomam  
posição e procuram solucioná-los no horizonte de seus interesses e possibilidades.  
É evidente, por outro lado, que frequentemente se manifesta uma intersecção  
entre o ideológico propriamente dito (na acepção funcional proposta por Marx e  
Lukács) e a falsa consciência e/ou distorção da realidade. Sobre isso, podemos avançar  
mais uma proposição: como as formas ideológicas são amiúde empregadas para  
solucionar conflitos que só poderiam, efetivamente, ser dirimidos por meio de  
transformação social concreta, elas operam, em grande medida, escamoteando e  
dissimulando dados da realidade; além de sublimarem as contradições bem como  
apresentarem concepções particulares como universalmente válidas dinâmicas  
bastante verificáveis nas ideologias especificamente religiosas.  
O tratamento dispensado por Lukács à questão da ideologia que  
particularmente nos interessa se insere no complexo escopo de um esforço amplo  
entabulado pelo pensador húngaro, intensificado particularmente em seus últimos  
anos de vida, e a despeito de variados obstáculos com que teve de se confrontar.  
Trata-se, com efeito, do vigoroso projeto do autor de elaborar uma ontologia crítica  
materialista a partir de Marx e como retorno e necessária renovação da obra deste no  
contexto da segunda metade do século XX.  
O embrião dessa virada ontológica de Lukács remonta aos intentos do autor,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 399  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
desde fins dos anos 1940, de redigir uma ética marxista o que nunca chegou a ser  
concretizado. Imerso nessa perspectiva, Lukács passa a sentir cada vez mais a  
necessidade peremptória de elaborar uma introdução àquela, que possuísse um  
caráter especificamente ontológico. Era preciso examinar a especificidade do ser social  
enquanto ser, isto é, ontologicamente, uma vez que ela constituiria o fundamento  
mesmo de sua Ética. Com o passar do tempo, a pretensa “introdução” ganhou mais e  
mais fôlego, complexidade e autonomia, desdobrando-se ao longo de um amplo  
período permeado de dificuldades e incertezas que culminaria na conclusão parcial de  
seus últimos escritos, interrompidos pela morte do autor em 1971.  
A abordagem lukacsiana parte da recognição fundamental de que o real se  
encontra ontologicamente assentado sobre uma base material objetiva. Dessarte, a  
realidade pode ser apreendida pelo homem não em razão de uma operação  
gnosiológica derivada de princípios metodológicos estabelecidos aprioristicamente  
e/ou de dadas condições subjetivas convencionalmente preceituadas, mas pelo fato  
de que o homem, em sua inexorável interação com o mundo, necessariamente  
apreende o realmente existente à medida que em sua ininterrupta responsividade2  
o transforma.  
O que Lukács constrói, pois, é uma profunda e complexa investigação das  
origens e funções das produções do espírito humano enquanto expressões da dialética  
entre realidade e consciência. Nas palavras de Nicolas Tertulian:  
Lukács foi o primeiro a estabelecer uma genealogia das múltiplas  
atividades da consciência e de suas objetivações (a economia, o  
direito, a política e suas instituições, a arte ou a filosofia) a partir da  
tensão dialética entre subjetividade e objetividade. Pode-se definir seu  
método como “ontológico-genético”, na medida em que procura  
2
“Como todo ser vivo, o homem é por natureza um ser que responde: o entorno impõe condições,  
tarefas etc. à sua existência, à sua reprodução, e a atividade do ser vivo na preservação de si próprio e  
na da espécie se concentra em reagir adequadamente a elas (adequadamente às próprias necessidades  
da vida no sentido mais amplo). O homem trabalhador separa-se nesse tocante de todo ser vivo até ali  
existente quando ele não só reage ao seu entorno, como deve fazer todo ser vivo, mas também articula  
essas reações em forma de respostas em sua práxis. O desenvolvimento na natureza orgânica vai das  
reações químico-físicas, puramente espontâneas, até aquelas que, acompanhadas de certo grau de  
consciência, são desencadeadas em dado momento. A articulação baseia-se no pôr teleológico sempre  
dirigido pela consciência e, sobretudo, na novidade primordial que está contida implicitamente em cada  
pôr desse tipo. Por essa via, a simples reação articula-se como resposta, podendo-se até dizer que só  
através disso a influência do meio ambiente adquire o caráter de pergunta. A possibilidade ilimitada de  
desenvolvimento desse jogo dialético de pergunta e resposta funda-se no fato de que a atividade dos  
homens não só contém respostas ao entorno natural, mas também que ela, por sua vez, ao criar coisas  
novas, necessariamente levanta novas perguntas que não se originam mais diretamente do entorno  
imediato, da natureza, mas constituem tijolos na construção de um entorno criado pelo próprio homem,  
o ser social. Desse modo, porém, a estrutura de pergunta e resposta não cessa; ela apenas adquire uma  
forma mais complexa, que vai se tornando cada vez mais social.” (LUKÁCS, 2013, p. 303)  
Verinotio  
400 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
mostrar a estratificação progressiva das atividades do sujeito (por  
exemplo: atividade utilitária, atividade hedonista e atividade estética),  
indicando as transições e mediações, até circunscrever a  
especificidade de cada uma em função do papel que desempenham  
na sua fenomenologia da vida social. (2009, p. 376)  
Sob essa ótica, o realismo ontológico lukácsiano se pauta pelo inventário  
genético e analítico das categorias constitutivas do ser social a partir da compreensão  
das funções por elas desempenhadas na configuração, no desenvolvimento e no devir  
dessa modalidade específica do ser. Sob esse viés, sua abordagem ontológico-genética  
identifica no trabalho a categoria primeira sobre a qual se assenta o ser social, na  
medida em que o trabalho, enquanto complexo, representa o ponto de virada o  
salto ontológico por meio do qual o ser social se diferencia do ser orgânico, tal  
como este o fizera com relação ao ser inorgânico. O complexo do trabalho se revela,  
assim, o modelo geral, enquanto categoria fundante primeira, de todos os outros  
complexos do ser social: direito, política, religião, filosofia, arte etc.  
Como observa Tertulian:  
Se ele identifica no trabalho a célula geratriz (a Urphänomen) da vida  
social, analisando a maneira pela qual as objetivações mais complexas  
e mais sofisticadas retomam o modelo da relação sujeito-objeto  
forjada pelo trabalho, isso não significa reduzir a vida social ao  
“paradigma do trabalho” [...]. Seu objetivo era demonstrar como a  
diferenciação progressiva da vida social em uma multiplicidade de  
complexos heterogêneos se enraíza nesta atividade originária que é o  
trabalho. (2009, pp. 380-381)  
Se em Lukács (2009, p. 228) o trabalho é entendido como “base dinâmico-  
estruturante de um novo tipo de ser”, deve-se considerar que sua concepção específica  
dessa categoria não diz respeito à atividade que, no ser orgânico, chega a se  
desenvolver enquanto divisão do trabalho cristalizada em diferenciação biológica dos  
exemplares da espécie como no caso dos chamados insetos sociais (LUKÁCS, 2009).  
Tampouco se refere à “fabricação de produtos”, mas antes, nas próprias palavras do  
autor, ao “papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero  
epifenômeno da reprodução biológica” (LUKÁCS, 2009, pp. 228-9).  
É, pois, o papel desempenhado pela consciência, isto é, o momento ideal ou de  
prévia ideação, que constitui a essência do complexo do trabalho enquanto categoria  
fundante do ser social em sua diferenciação ontológica que não anula,  
evidentemente, sua dependência para com o ser orgânico que lhe precede (LUKÁCS,  
2009). De outra parte, o trabalho também opera, na concepção lukacsiana, enquanto  
“protoforma de toda atividade social”, como afirma Vaisman (2010, p. 46). Isso se  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 401  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
deve ao fato de que, do ponto de vista de seu fundamento ontológico, o ser social é  
estruturalmente unitário; ou seja, ele constitui uma totalidade complexa. Essa  
constatação implica que não há, fundamentalmente, nenhuma cisão, ruptura ou  
clivagem estanque entre a forma com que o homem atua no âmbito de seu intercâmbio  
com a natureza a fim de produzir e de reproduzir sua própria existência e aquela com  
que se move no interior das outras esferas da prática social.  
Do ponto de vista da elaboração teórico-metodológica de Lukács, Tertulian  
sintetiza:  
O método ontológico-genético praticado por Lukács em suas duas  
obras de síntese, a Estética e a Ontologia do ser social, se propõe  
identificar as transições capilares de um nível ontológico mais simples  
a um nível ontológico mais complexo, fixando com precisão as  
ligações intermediárias. A questão da gênese ocupa um lugar  
preponderante, porque o surgimento de diferentes níveis com suas  
categorias específicas intervém a partir da dialética interna dos níveis  
anteriores. Não significa somente detectar a transição da animalidade  
à humanidade (tendo a ação pelo trabalho como conexão decisiva),  
mas também e, sobretudo, da passagem das formas elementares de  
troca de substâncias entre sociedade e natureza (o trabalho) às formas  
de intersubjetividade cada vez mais complexas, nas quais surge, por  
exemplo, “a voz da consciência” [das Gewissen], portanto, a  
consciência moral ou as representações imaginárias dos conflitos  
sociais (as ideologias na multiplicidade de sua estratificação). (2009,  
p. 383)  
Mas em que consiste analiticamente essa dinâmica comum que abrange desde  
o intercâmbio entre sociedade e natureza por meio do trabalho até as formas  
ideológicas cada vez mais complexas que surgem ao longo do desenvolvimento  
histórico? Em consonância com Lukács, o que a ação dos homens em quaisquer das  
dimensões do ser social tem por base diz respeito à incontornável unidade dialética  
entre teleologia e causalidade (LUKÁCS, 2013, pp. 743-4). Conforme o pensador  
húngaro, o pôr teleológico constitui “a categoria elementar específica que diferencia  
qualitativamente o ser social de qualquer ser natural” (2013, p. 370). Sob essa  
perspectiva, em todas as atividades que os homens executam, em todos os campos da  
vida social, das menos às mais complexas, sempre se opera com base em decisões  
entre possibilidades concretas. Isso significa dizer que, qualquer que seja a esfera, “[...]  
a práxis é uma decisão entre alternativas, já que todo indivíduo singular, sempre que  
faz algo, deve decidir se o faz ou não. Todo ato social, portanto, surge de uma decisão  
entre alternativas acerca de posições teleológicas futuras” (LUKÁCS, 2009, p. 231).  
O momento ideal de decisão entre alternativas que conforma a teleologia é  
sinteticamente elaborado por Lukács nos seguintes termos:  
Verinotio  
402 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
Como força motriz do ser social, que cria coisas novas, ele é  
exatamente a intenção condutora daquele movimento material do  
trabalho que, pelo metabolismo da sociedade com a natureza, efetua  
nele essas mudanças, melhor dito, essas realizações de possibilidades  
reais. (2013, p. 406)  
É a partir desse momento ideal, em que a posição teleológica se configura, que  
a realização material, a contraparte constitutiva do complexo do trabalho, põe em  
movimento cadeias de causalidade sobre as quais já nenhuma teleologia é possível.  
Conforme Lukács: “[o] trabalho é constituído por posições teleológicas que, em cada  
caso concreto, põem em funcionamento séries causais” (2009, p. 230).  
Dois esclarecimentos importantes se fazem, todavia, necessários.  
Primeiramente, deve-se estar ciente de que a escolha entre alternativas nunca provém  
de um conhecimento completo, menos ainda de um domínio, do sujeito em relação ao  
conjunto de determinações que incidem sobre suas decisões, assim como das  
consequências que delas podem derivar. Na verdade, conquanto o pôr teleológico do  
sujeito isto é, a assunção na consciência de uma posição direcionada a algo ainda  
não existente, mas que se quer produzir esteja submetido às necessidades que  
busca satisfazer, às possibilidades e aos meios concretos disponíveis e ao  
conhecimento objetivo da ordenação dos aspectos da realidade implicados no  
processo, sua consciência acerca da totalidade desses aspectos nunca é plena, mas  
sempre parcial. O nível de sua cognição variará, claro está, tanto sincrônica quanto  
diacronicamente; e a reverberação do que lhe é, a cada passo, incognoscível,  
desempenhará papel medular, como se verá, na gênese e no desenvolvimento  
religiosos que particularmente nos interessam.  
Em segundo lugar, a decomposição analítica do complexo do trabalho em  
momento ideal e momento material embora teoricamente necessária só é possível  
idealmente, não devendo ser confundida com uma realidade ontológica per se. Como  
assevera Ester Vaisman:  
Assim, o fato de que a posição teleológica, formulada na consciência  
(momento ideal), preceda a realização material, não leva, portanto, do  
ponto de vista ontológico, à existência de dois atos autônomos: um  
material e outro ideal. Essa divisão é possível somente no pensamento  
[...]. Em termos analíticos eles podem ser considerados  
separadamente, mas em termos ontológicos eles adquirem o seu  
verdadeiro ser apenas enquanto componentes do complexo concreto  
representado pelo trabalho. [...] Como consequência não há, do ponto  
de vista ontológico, uma contraposição entre teleologia e causalidade,  
na medida em que são componentes do mesmo processo. Em termos  
precisos, eles se apresentam em determinação reflexiva. (2010, p. 47)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 403  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
É por isso que o trabalho, enquanto motor fundamental do ser social, é  
apreendido por Lukács não apenas como uma categoria, mas, objetivamente, enquanto  
um complexo que abarca um conjunto de categorias elementares nele implicadas —  
realidade, linguagem, possibilidade, contingência, teleologia, causalidade etc. Essa  
composição elementar do complexo do trabalho é que pode ser analiticamente  
decomposta, a fim de que se compreenda a sua legalidade interna e se apreenda sua  
dinâmica própria. Do ponto de vista objetivo, o real possui prioridade irrevogável —  
o ser transcende a atividade reflexiva da consciência e, portanto, possui autonomia  
ontológica3 —, e toda “liberação de possibilidades reais do ente-em-si já precisou  
estar contida neste como possibilidade real” (LUKÁCS, 2013, p. 405); mas é a  
apreensão da realidade objetiva em imagens mentais cada vez mais aprimoradas e  
aplicadas à transformação do mundo material de forma progressivamente mais  
diferenciada que permite “a práxis material, a realização dos pores teleológicos”  
(LUKÁCS, 2013, p. 407)4.  
Na refinada síntese de J. Chasin:  
O objeto pode ser compelido à existência multiforme, contanto que a  
prévia ideação do escopo, a teleologia configuração da  
subjetividade que almeja ser coisa no mundo seja capaz de pôr a  
seu serviço, sem transgressão, a lógica específica do objeto específico,  
ou seja, a legalidade da malha causal de sua constitutividade material  
primária. Sujeito ativo e objeto mutável, potências reais e distintas,  
complexos de forças mais ou menos ricas no gradiente de suas  
configurações concretas, portanto, se delimitam na interação que  
realiza o objetivo do primeiro sobre as possibilidades de  
reconfiguração do segundo [...]. (2009, pp. 99-100)  
De outra parte, ao longo do transcurso histórico, o trabalho efetiva  
gradualmente uma de suas principais características ontológicas, qual seja, a tendência  
ao aperfeiçoamento, ao desenvolvimento de produtos sociais cada vez mais  
sofisticados. Antes de tudo, isso resulta em uma crescente autonomização dos  
processos mentais reflexivos e preparatórios do trabalho propriamente dito, o que  
enseja o desenvolvimento de formas cada vez mais especializadas de conhecimento  
3 Cf. Marx: “Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é nenhum ser natural, não toma parte na  
essência da natureza. Um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo. Um  
ser que não seja ele mesmo um objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser para seu objeto, isto  
é, não se comporta objetivamente, seu ser não é nenhum [ser] objetivo. Um ser não-objetivo é um não-  
ser.” (2004, p. 127)  
4
Sobre o papel desempenhado pela linguagem assim como a relação desta com o complexo do  
trabalho, cf. Lukács (2013, pp. 408-12). Não nos debruçaremos sobre essa questão na análise  
ontogenética do ser social, pois, dada a complexidade do tema, isso nos afastaria de nossos propósitos  
neste breve trabalho.  
Verinotio  
404 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
da realidade. De outra parte, a expressão mais significativa dessa tendência ao  
aprimoramento do trabalho pode ser identificada em dois processos concomitantes,  
complementares e interdependentes: primeiramente, a crescente divisão do trabalho  
e, em segundo lugar, o surgimento e a complexificação do que Lukács denomina pores  
teleológicos secundários. Nesse sentido, a fim de que os pores teleológicos  
característicos da dimensão econômica ou seja, da produção e reprodução do ser  
social mediante o intercâmbio com a natureza , doravante pores teleológicos  
primários, sejam bem-sucedidos em um contexto em que o trabalho crescentemente  
submetido à divisão social apresenta aos homens demandas cada vez mais intrincadas,  
torna-se gradativamente mais necessário que os indivíduos que tomam parte das  
atividades laborativas o façam imbuídos de certas disposições mentais, afetividades  
específicas e concepções afins ao trabalho realizado, viabilizando a concretização de  
tarefas coordenadas, ações encadeadas e processos sempre mais mediados.  
Aqui, faz-se necessário distinguir claramente os pores teleológicos primários,  
isto é, aqueles que dizem respeito ao metabolismo entre sociedade e natureza, e os  
pores teleológicos secundários, ou seja, aqueles cuja finalidade é incitar em outrem a  
assunção de determinadas posições ou disposições de espírito, bem como provocar  
mudanças ou reforçar posturas no comportamento de outras pessoas. Fica claro que,  
a partir de um determinado estágio do desenvolvimento histórico, o processo de  
produção e reprodução do ser social não mais pode funcionar suficientemente sem  
engendrar uma série de outras esferas, não estritamente econômicas, de cuja atuação  
a economia passa a depender. Em outras palavras, o desenvolvimento do ser social  
traz em seu bojo uma tendencial ampliação paulatina dos pores secundários, que  
assumem uma posição de conditio sine qua non para com a manutenção da própria  
base da totalidade social.  
A organização da sociedade e a manutenção (ou a transformação) da dinâmica  
produtiva, isto é, todas as formas complexas de regulação social, passam a depender  
crescentemente das esferas cujo cerne ontológico reside nos pores teleológicos  
secundários. Em contrapartida, as próprias existência e constituição desses campos  
extraeconômicos “é determinada, através de múltiplas mediações, pelas necessidades  
postas pelo desenvolvimento material da sociedade” (VAISMAN, 2010, p. 47). Como  
é evidente, trata-se de identificar, ontogeneticamente, aquilo que, segundo Lukács, a  
partir da complexificação progressiva da divisão social do trabalho, com “a  
diferenciação social de nível superior, com o nascimento das classes sociais com  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 405  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
interesses antagônicos, [...] torna-se a base espiritual-estruturante do que o marxismo  
chama de ideologia” (2009, p. 234).  
Sem embargo de ambos os pores teleológicos estarem fundados, de maneira  
geral, em decisões alternativas, a diferença qualitativa entre o objeto das posições  
primárias (o trabalho) e o das secundárias (os próprios homens) suscita idiossincrasias  
ontológicas importantes no que tange aos pores que ensejam o surgimento das  
ideologias. Assim, as posições teleológicas secundárias se revestem de um coeficiente  
de incerteza muito maior do que o daqueles pores que objetivam o intercâmbio da  
sociedade com a natureza. Se, nestes pores relativos ao trabalho, esse campo do  
desconhecido é relativamente menor e inversamente proporcional ao conhecimento  
que o sujeito do pôr detém, a princípio, dos nexos e legalidades objetivo-naturais; nos  
pores secundários, o grau de indeterminação se amplia de modo exponencial na  
medida em que tem por objeto não uma cadeia causal, mas a conformação de novas  
ou a consolidação de antigas posições teleológicas de outrem (LUKÁCS, 2013).  
Evidentemente, isso “não impede que haja um conhecimento racional das tendências  
em presença, mesmo que este conhecimento, de forma mais acabada, só se dê post  
festum” (VAISMAN, 2010, p. 48); não obstante, reduz drasticamente a acuidade de  
quaisquer predições acerca da duração e da efetividade dos pores de tipo secundário.  
Como foi dito, é no espaço socialmente engendrado pelos pores teleológicos  
secundários que a matriz espiritual-estruturante do complexo da ideologia se configura  
e, por meio das formas que aí se coagulam, opera. Esse campo de produção e atuação  
ideológicas, como já se assinalou, é delineado pelas demandas apresentadas ao  
indivíduo pela realidade em que este se encontra inserido, isto é, pelo seu hic et nunc.  
Como observa Ronaldo Vielmi Fortes (2011, pp. 220-1), concepções de mundo e  
pensamentos “são formados a partir das condições sociais postas aos indivíduos, sua  
raiz se encontra delimitada pelo campo de possíveis perguntas e respostas que os  
homens são capazes de formular em torno de sua realidade”.  
E como já se pontuou, a responsividade constitui uma determinação ontológica  
fundamental do homem segundo Lukács. Essa condição inerente se expressa na  
necessidade prática, cotidiana e ininterrupta de formular respostas funcionais a uma  
realidade que lhe interpela, problematicamente, nos variegados níveis de sua  
existência. Uma práxis social e subjetivamente funcional, em consonância com  
necessidades postas pelas conjunções situacionais, requer um composto de  
representações e concepções de mundo que lhe embasem, isto é, que lhe sirvam  
Verinotio  
406 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
propriamente de momento ideal. É exatamente isso o que a ideologia faz, atuando, no  
plano da consciência, como mediação da prática. Como pontua Ester Vaisman: “a  
ideologia, em qualquer uma das suas formas, funciona como o momento ideal, que  
antecede o desencadeamento da ação, nas posições teleológicas secundárias” (2010,  
p. 49).  
Dessa forma, vemos que a ideologia é um complexo cujas expressões —  
independentemente do quanto seus conteúdos correspondam ou não à objetividade  
concretamente existente constituem elaborações ideais do mundo real que servem  
de parâmetro para aquilo que os homens pensam acerca da realidade e oferecem um  
mapa para sua ação no intricado universo social que habitam. Em outras palavras,  
trata-se de formas cristalizadas de pensar a sociabilidade em que o sujeito se encontra  
inserido e de direcionar a ação nela e sobre ela. Essa produção espiritual tende ainda,  
deve-se observar, a se complexificar em termos de encadeamento e intensificação de  
mediações à medida que a formação socioeconômica com a qual compõe uma  
totalidade isto é, um complexo de complexos se desenvolve historicamente.  
Em sua Para uma ontologia do ser social, Lukács apresenta essa concepção de  
ideologia desdobrando-a a partir daquela que Marx apresentara, como já se  
mencionou, no prefácio a sua Contribuição à crítica da economia política. A reflexão  
lukacsiana estende a formulação de Marx acerca das “formas ideológicas sob as quais  
os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim” (MARX, 2008, p.  
48), a princípio situada em um contexto em que o filósofo alemão trata do papel da  
ideologia em grandes crises socioeconômicas, para abarcar o papel fulcral  
desempenhado por esta na vida cotidiana. Desse modo, o pensador húngaro propõe  
a identificação das “formas ideológicas como meios, com o auxílio dos quais podem  
ser tornados conscientes e tratados também os problemas que preenchem esse  
cotidiano” (2013, p. 465).  
Assinalando a necessidade de se manejar os conflitos engendrados pelo ser  
social, Lukács define a categoria ideologia, do ponto de vista de sua função, nos  
seguintes termos: “[a] ideologia é sobretudo a forma de elaboração ideal da realidade  
que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir.” (2013, p.  
465) E do ponto de vista ontogenético, explicita a peculiaridade das ideologias:  
toda ideologia possui o seu ser-propriamente-assim social: ela tem  
sua origem imediata e necessariamente no hic et nunc social dos  
homens que agem socialmente em sociedade. Essa determinidade de  
todos os modos de exteriorização [Auflerungsweisen] humanos pelo  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 407  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
hic et nunc do ser-propriamente-assim histórico-social de seu  
surgimento tem como consequência necessária que toda reação  
humana ao seu meio ambiente socioeconómico, sob certas  
circunstâncias, pode se tornar ideologia. Essa possibilidade universal  
de virar ideologia está ontologicamente baseada no fato de que o seu  
conteúdo (e, em muitos casos, também a sua forma) conserva dentro  
de si as marcas indeléveis de sua gênese. Se essas marcas  
eventualmente desvanecem a ponto de se tornarem imperceptíveis ou  
se continuam nitidamente visíveis é algo que depende de suas —  
possíveis funções no processo dos conflitos sociais. Porque, de  
modo inseparável desse fato, a ideologia é um meio da luta social,  
que caracteriza toda sociedade, pelo menos as da “pré-história” da  
humanidade. (2013, p. 465)  
Os traços distintivos que uma formação ideológica carrega em relação ao seu  
aqui e agora genético constituem uma expressão do entrelaçamento incontornável  
entre aquele que pensa, aquilo que é pensado e a mediação do próprio pensamento.  
Sob essa ótica, as produções espirituais reportam-se sempre a uma realidade  
específica, cujas problemáticas impõem a necessidade de réplica. Assim, toda ideologia  
é determinada pela configuração de sua própria produção social.  
As elaborações da consciência não são, de partida, ideologias; porém, dadas  
certas circunstâncias, podem vir a sê-lo. Caso isso ocorra, e a formação ideal se mostre  
funcional o bastante para se consolidar socialmente para além do horizonte imediato  
que lhe ensejou o surgimento, suas marcas genéticas podem, inclusive, sofrer um  
apagamento ao nível da aparência. Isso se explica pelo fato de a funcionalidade das  
ideologias não estar determinada pelas peculiaridades aparentes de seu hic et nunc  
genético, mas pela dinâmica imanente de seu ser-precisamente-assim, a qual, embora  
constituída a partir das conjunções singulares de seu surgimento, pode revelar-se  
adaptável e continuamente eficaz enquanto meio de luta social em outros contextos,  
posteriormente constituídos.  
O final do excerto de Lukács assinala a indissociabilidade entre ideologia e  
sociedade de classes, ou seja, aquelas formações sociais que pertencem à “pré-  
história” da humanidade na célebre expressão de Marx. Entretanto, isso não significa  
que nas sociedades ditas primitivas isto é, naquelas em que ainda não há  
efetivamente divisão de classes não existam em absoluto formas ideológicas  
constituídas. Mesmo no estágio anterior à luta de classes, segundo Lukács (2013),  
constata-se a necessidade da produção social de posições teleológicas secundárias  
que, partilhadas coletivamente, forneçam subsídios às atividades produtivas. É dessa  
maneira que se constituem formas cuja discursividade orienta e regula, de modo  
universalizante, a ação laborativa conjunta, a convivência social operativa e as  
Verinotio  
408 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
posturas, os valores e os afetos que atuam como catalisadores do processo de  
reprodução do ser social. Decantadas pelo transcurso histórico, essas formas de  
condução da práxis social se cristalizariam no acervo cultural dos costumes grupais,  
dos valores tradicionais, das convenções comunitárias, do mito e dos rituais, por  
exemplo.  
Como pontua Ester Vaisman:  
Lukács sustenta, assim, que ideologia, bem determinada e  
compreendida, possui uma caracterização ampla que ultrapassa os  
limites vulgarmente atribuídos a ela. Do ponto de vista ontológico,  
ideologia e existência social (em qualquer nível de desenvolvimento)  
são realidades inseparáveis. Ou seja, onde quer se manifeste o ser  
social há problemas a resolver e respostas que visam à solução destes;  
é precisamente nesse processo que o fenômeno ideológico é gerado  
e tem seu campo de operações. (2010, p. 50)  
O pensador húngaro trabalha, pois, a princípio, com uma compreensão ampla  
de ideologia, capaz de rastrear geneticamente o seu surgimento do ponto de vista da  
ontologia do ser social. Em contrapartida, Lukács também nos apresenta uma  
caracterização restrita de ideologia (VAISMAN, 2010), a qual diz respeito à  
especificidade do meio ideal pelo qual os homens se engajam nos conflitos  
morfológicos engendrados pela divisão da sociedade em classes com interesses  
crescentemente contrários. Assim sendo, o autor assinala que a ideologia, stricto  
sensu, pressupõe a existência de conflitos nas sociedades em que ela opera; os quais,  
a despeito de precisarem ser travados, em última instância, em sua dimensão  
socioeconômica objetiva uma vez que sua resolução efetiva não pode se dar em  
termos puramente ideais , desenvolvem formas ideológicas específicas em cada  
sociedade concreta por meio das quais esses conflitos são também travados.  
Sobre essa conjunção entre ideologia e conflitos próprios de uma sociedade de  
classes, Lukács afirma:  
o surgimento de tais ideologias pressupõe estruturas sociais, nas  
quais distintos grupos e interesses antagônicos atuam e almejam  
impor esses interesses à sociedade como um todo como seu interesse  
geral. Em síntese: o surgimento e a disseminação de ideologias se  
manifestam como a marca registrada geral das sociedades de classes  
(2013, p. 472).  
Como fica evidente, subjaz a toda dinâmica ideológica, incluída aí a  
especificamente religiosa, uma dimensão de conflito e de disputa, que denota o quão  
atravessados pelas contradições sociais se encontram os processos englobados na  
produção cultural da totalidade do ser social. Ademais, o caráter contraditório de toda  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 409  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
produção ideológica não diz respeito somente ao confronto entre representações  
coordenadas, discursos enunciados e práticas promulgadas por diferentes classes,  
frações ou categorias sociais antagônicas, estrutural ou situacionalmente. Na verdade,  
como acertadamente observa Terry Eagleton, “[a]s ideologias são, de modo geral,  
formações diferenciadas, internamente complexas, com conflitos entre seus vários  
elementos que precisam ser continuamente renegociados e resolvidos” (2019, p. 61).  
A contradição repousa, pois, no âmago mesmo de toda forma ideológica uma vez  
que nesta se expressam antagonismos próprios às sociedades classistas , o que faz  
da crítica imanente teoricamente embasada um imperativo crítico-analítico.  
Não obstante, a exposição sumária dos contornos definidores de uma dada  
formação ideológica pode inadvertidamente sugerir uma coesão e uma coerência  
excessivamente estáveis e, assim, falsear a natureza dialética própria das relações,  
correspondências e conflitos que interagem em cada unidade discursivo-ideológica.  
Por isso, é preciso contrastar essa aparência com a assunção categórica de que toda  
produção da ideologia é eminentemente relacional (EAGLETON, 2019). Essa afirmação  
se coaduna com a definição de Lukács de que a ideologia, em sentido estrito, é própria  
das sociedades de classes e, mais especificamente, dos conflitos nelas situados. Por  
conseguinte, determinada formulação ideológica sempre se constitui e se cristaliza a  
partir das conjunções, disjunções e injunções que estabelece com outras formas  
ideológicas coexistentes daí seu caráter relacional. A centralidade, de que ainda  
trataremos, atribuída por Lukács (2013) à vida cotidiana, à qual as mais variegadas  
formas e expressões ideológicas assomam e na qual decantam, constituindo o  
complexo em questão, são determinantes para se compreender o quão intrincado é  
esse processo.  
Nesse ponto, faz-se oportuno assinalar uma questão teórica basilar para a  
problemática enfocada neste trabalho. Em conformidade com o exposto, é no âmbito  
das sociedades primitivas que surgem as primeiras formas expressivas o mito e o  
rito, por exemplo das manifestações religiosas; isto é, o fenômeno religioso já se  
faz de variadas formas presente desde os primórdios do ser social e ao longo de todo  
o período que precede o advento efetivo das classes. Todavia, ao longo dessa fase,  
advogamos que ainda não é possível empregar especificamente a categoria religião,  
pois esta é um produto mais tardio do ser social, já em um estágio relativamente  
avançado da divisão da sociedade em classes. Partindo da concepção lukacsiana de  
que a ideologia entendida em sua caracterização restrita é um produto próprio  
Verinotio  
410 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
do ser social no estágio das lutas de classes e da proposição de que a religião é, de  
maneira geral, uma forma da ideologia, propugnamos o emprego de uma categoria  
mais ampla, a de religiosidades, para abarcar todos os tipos de manifestação do  
fenômeno religioso que surgem desde a aurora do ser social.  
Nessa perspectiva, enquanto o complexo das religiosidades abarca vários  
fenômenos distintos, portadores de configurações e dinâmicas próprias mito, rito,  
magia, seitas etc. a religião consiste em uma forma específica das religiosidades,  
que só aflorou no ser social após a divisão de classes haver se consolidado e passado  
por um longo transcurso de complexificação. Tal entendimento se mostra capaz de  
captar, com efeito, o movimento real do objeto ao discriminar a especificidade da  
consolidação do cristianismo, desde seu surgimento e através de sua maturação nos  
três primeiros séculos da Era Comum, enquanto formação histórica da religião stricto  
sensu em seu caráter específico, uma vez que, antes do século IV, a religião “ainda não  
constitui uma categoria discreta da cultura” (BRANDÃO, 2014, p. 386). O que se pode  
aí apreender é o próprio processo, ainda em curso, de cristalização de conteúdos  
ideológicos que se sedimentarão, posteriormente, em formas específicas componentes  
da categoria religião.  
Nesse sentido,  
[s]e há algo de novo que de fato o cristianismo provoca, é a própria  
concepção de religião, cujos impactos nos mil anos seguintes da  
história europeia, para usar a perspectiva de Brown e ainda até  
hoje, seria necessário acrescentar são sobejamente conhecidos  
(BRANDÃO, 2014, p. 24).  
Ademais, de volta ao nível da ideologia, é necessário reiterar e desenvolver um  
elemento crucial na compreensão do que Lukács expõe acerca da conceituação dessa  
categoria. Trata-se da identificação da ideologia enquanto elemento socialmente  
funcional, independentemente do seu conteúdo de verdade objetiva. Lukács  
desassocia, como já pontuamos, as categorias de ideologia e falsa consciência;  
estabelecendo, pois, que tanto a correspondência relativamente precisa para com a  
realidade objetiva quanto a incorreção, a distorção ou a parcialidade do discurso  
acerca do mundo realmente existente não habilitam ou desqualificam uma posição  
como ideológica.  
Em síntese, “verdade ou falsidade ainda não fazem de um ponto de vista uma  
ideologia”, visto que as posições ideais elaboradas pelos indivíduos de dada sociedade  
“podem se converter em ideologia só depois que tiverem se transformado em veículo  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 411  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
teórico ou prático para enfrentar e resolver conflitos sociais, sejam estes de maior ou  
menor amplitude, determinantes dos destinos do mundo ou episódicos” (2013, p.  
467). Logo, é a viabilidade processual de uma elaboração intelectiva posta  
teleologicamente pelos sujeitos tornar-se instrumento coletivo de conscientização e  
enfrentamento das lutas sociais que conduz tendencialmente à sua cristalização em  
expressão ideológica.  
A ideologia se configura, pois, como momento ideal que precede a ação prática  
de indivíduos socialmente situados. Nesse sentido, as mais variadas formas  
responsivas elaboradas pelos homens como meio de lidar com as problemáticas  
colocadas pelas conjunturas sócio-históricas específicas podem se tornar ideologia,  
bastando para isso que elas forneçam “elementos e condições para conscientizar,  
orientar e operacionalizar a prática social” (FORTES, 2011, p. 232).  
Ainda sobre esse ponto, Lukács apresenta outra contribuição valiosa para o  
nosso esforço de compreender o fenômeno ideológico especificamente religioso. Ao  
analisar criticamente certas asserções de Friedrich Engels em que este considera a  
ideologia pelo prisma científico-gnosiológico, contrapondo, de forma redutora, os  
avanços da ciência às “asneiras” ideológicas das sociedades primitivas —, o pensador  
húngaro assinala que:  
Em sua tese de doutorado, ainda sem uma fundamentação histórico-  
materialista, Marx já vislumbrou corretamente, em sua essência, o  
problema fundamental que se coloca nesse ponto. Em meio a uma  
crítica aguda e perspicaz da prova ontológica [da existência] de Deus  
(e de sua crítica por Kant), ele faz a seguinte pergunta retórica: “Acaso  
o velho Moloque não reinou de fato? O Apolo de Delfos não era um  
poder real na vida dos gregos?”. Essas perguntas atingem a  
factualidade fundamental da ideologia. Pode-se até caracterizar  
Moloque e Apolo como “asneiras” no sentido gnosiológico, mas, na  
ontologia do ser social, eles figuram como poderes realmente  
operantes justamente como poderes ideológicos. (2013, pp. 480-  
1)  
Essa passagem nos permite entrever o porquê a abordagem da categoria  
ideologia enquanto sinônimo de falsa consciência acarreta um pendor ineliminável ao  
reducionismo; o que fica explícito sobretudo no que diz respeito às ideologias  
especificamente religiosas. Em contrapartida, a abordagem ontológico-prática das  
religiosidades nos fornece um embasamento teórico adequado para entender como e  
por que as ideias religiosas não simplesmente habitam a cabeça das pessoas, mas  
constituem  
forças  
objetivas  
concretamente  
operantes  
de  
transformação/conservação do mundo. A diferença é que o viés gnosiológico exclui  
Verinotio  
412 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
deus(es) da equação, ao passo que a concepção marxiano-lukacsiana, que se debruça  
sobre a funcionalidade da ideologia, o repõe. Trata-se de afirmar categoricamente que  
deus existe ao menos enquanto força ideológica no âmbito do ser social; assim  
como de recuperar as determinações sob as quais ele é gestado e nutrido, desnudando  
sua especificidade ontológica.  
A especificidade da dinâmica religiosa  
Como já se assinalou, Lukács retoma de Marx a compreensão da categoria  
ideologia pautada pela função que ela desempenha no ser social. Sem embargo, ele  
distende a análise marxiana, demonstrando que, conquanto as produções  
propriamente ideológicas sejam características das sociedades de classes, elas operam  
“enquanto veículo de conscientização e prévia-ideação da prática social dos homens”  
(VAISMAN, 2010, p. 51), em todo o complexo de experiências cotidianas que eles  
vivenciam, e não apenas na práxis diretamente implicada nos grandes conflitos que  
transpassam os pilares da sociedade.  
A isso se alinha a enorme importância dispensada à vida cotidiana por Lukács  
especialmente no que tange à ideologia. Ele identifica na vinculação  
tendencialmente imediata menos mediada que em qualquer outra esfera da vida —  
entre teoria (como prévia-ideação da práxis) e prática o traço distintivo do cotidiano.  
Conforme o pensador húngaro, a vida cotidiana constitui “o âmbito em que todo  
homem forma de modo imediato as suas formas de existência pessoais,  
implementando-as na medida do possível” (2013, p. 449). Aí entra em cena a  
necessidade de todo homem embasar idealmente sua ação de modo eficientemente  
articulado com o complexo de sua subjetividade existente, isto é, com a totalidade de  
alienações responsáveis por e constitutivas de seu processo de individuação.  
Na ontologia lukacsiana, o trabalho, enquanto complexo categorial que  
fundamenta o surgimento e o desenvolvimento do ser social, assume internamente  
duas dimensões processuais complementares e concretamente indissociáveis: uma  
objetiva, outra subjetiva. Em primeiro lugar, a (re)produção do ser social por meio da  
laboração implica necessariamente a categoria da objetivação [Vergegenständlichung];  
em outras palavras, a ação criativa que, a partir da transformação do mundo existente,  
engendra coisas novas. É evidente que estas só podem se configurar a partir do já  
dado, mas tampouco poderiam surgir sem a intervenção consciente do ser social.  
Nesse quadro, o conjunto contínuo dessas objetivações empreendidas pelos  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 413  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
indivíduos aflui para a crescente socialização do mundo. Em contrapartida, o sujeito  
das objetivações exterioriza traços da sua própria subjetividade imprimindo-os em  
tudo aquilo que ele objetiva. Esse processo de alienação [Entäusserung] do sujeito não  
porta a princípio qualquer caráter negativo, sendo antes responsável, em seu  
encadeamento, por dar forma à individuação do homem.  
Como assinala Ronaldo Vielmi Fortes:  
De um lado, a atividade laborativa humana modifica o mundo natural  
produzindo suas próprias condições materiais de vida, de outro lado,  
por meio deste processo os homens formam e constituem a si  
mesmos, disciplinando suas emoções, julgando e modificando seus  
comportamentos etc. mediante a exteriorização de sua subjetividade.  
Nesse duplo aspecto da realização oriunda do trabalho se destaca a  
presença de duas categorias, que formam em seu conjunto a base da  
gênese e da dinâmica de desenvolvimento do ser social: objetivação  
[Vergegenständlichung] e alienação [Entäusserung]. Essas categorias  
são expressões de processos distintos existentes no interior da  
atividade laborativa, momentos diferenciados no interior de uma  
mesma unidade. (2011, p. 191)  
Por meio da análise ontológica dos processos reais do ser social, Lukács (2013)  
demonstra que a alienação consiste em uma categoria essencial do ser social e que,  
em seu conjunto, conforma, em cada indivíduo, o intrincado processo por meio do qual  
a subjetividade vai paulatinamente sendo insculpida. Partes constitutivas do complexo  
categorial do trabalho, objetivação e alienação concorrem para a (auto)produção  
objetivo-subjetiva do homem.  
Ademais, como dissemos, o indivíduo precisa fundamentar idealmente sua  
práxis cotidiana de maneira eficiente e, simultaneamente, de modo articulado com sua  
subjetividade previamente existente. De fato, as próprias resoluções tomadas pelo  
sujeito como prévia-ideação de sua práxis não partem necessariamente de ele  
considerar “incondicionalmente correta a objetivação que tem diante de si, mas de  
acordo com se e em que medida ela pode ser enquadrada organicamente naquele  
sistema de alienações que o referido homem construiu para si mesmo” (LUKÁCS, 2013,  
p. 449). Em outras palavras, a existência diária dos indivíduos se mostra  
ordinariamente atravessada por aquilo que podemos nomear como uma acomodação  
ideológica tendencial; a qual opera de modo a promover uma convergência imediata,  
sempre que possível, entre o modo já pré-estabelecido com que se vive a vida  
cotidiana somatório do composto de objetivações-alienações levadas a cabo pelo  
indivíduo e a reação às novas informações, demandas e interpelações colocadas  
para o sujeito pela realidade circundante.  
Verinotio  
414 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
Lukács afirma, inclusive, que:  
na maioria dos casos de conflito, surge um deslocamento no âmbito  
da consciência, em que o homem, via de regra, considera como  
objetivamente existente aquilo que favorece o modo como ele conduz  
a sua vida, enquanto considera como objetivamente não existente  
aquilo que está em contradição com ela (2013, p. 449).  
Do ponto de vista da imbricação das ideologias religiosas com o cotidiano, a  
problemática em tela é sobremaneira importante. Inquirido pela existência, o homem  
responde: forja-se o momento ideal em que a assunção de determinada posição  
teleológica incidirá sobre a condução da práxis subsequente o momento basilar em  
que a ideologia opera. Porém, a forma com que esse processo se dá na vida cotidiana  
é condicionada pela imediaticidade com que nela teoria e prática se encontram  
concatenados. Nesse sentido, os critérios com que os indivíduos se posicionam frente  
às questões do cotidiano não se submetem, tendencialmente, a qualquer elaboração  
mais mediada dos dados disponíveis, da conjuntura específica ou das implicações  
ulteriores. No dia a dia da existência, os sujeitos se engajam quer queiram quer não,  
de forma mais ou menos consciente, em uma ontologia, mais especificamente, em uma  
protoelaboração teorética do que o mundo é, sem a qual não lhes seria possível viver.  
Porém, dada a tendência à acomodação ideológica de que falávamos, essa ontologia  
da vida cotidiana tende a se constituir não de maneira crítica ou imbuída de qualquer  
aspiração à verdade objetiva do mundo, mas, em larga medida, em função do  
favorecimento e da preservação do estágio de subjetivação estabelecido bem como  
do modus operandi com que o indivíduo já consuma sua própria existência.  
Assim, a adesão a uma ou outra posição ideológica não depende, em absoluto,  
do quão sofisticada ela se mostra em sua estrutura significativa ou do quão exata ela  
se revela em sua correspondência com o ser objetivamente existente. Na verdade, o  
potencial de aderência de uma formulação ideológica decorre, peremptoriamente, da  
capacidade que ela possui de proporcionar subsídios funcionais para a práxis  
ordinária, abarcando um amplo espectro de fenômenos e fornecendo constelações de  
representações do ser que sustentem operacionalmente o universo da vida cotidiana  
dos homens em um determinado estágio histórico. Dessarte, o conteúdo das  
ideologias “é determinado pelas necessidades vitais (reais ou imaginárias) do homem  
singular” (LUKÁCS, 2013, pp. 536-7); e, como observa Lukács, cada homem, em sua  
vida cotidiana, busca garantir sua existência e proporcionar a si mesmo, na medida do  
possível, “o máximo de satisfação interior e harmonia consigo mesmo” (2013, p. 535).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 415  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
Além disso, outra questão fulcral analisada pelo autor diz respeito à  
justaposição entre generalização, como tendência à universalidade, e ideologia.  
Segundo o filósofo húngaro, ao assumirem posição frente à vida cotidiana, os homens  
tendem a justificar de forma ideológica as suas ações sejam as oriundas de seu  
pertencimento à determinada classe sejam aquelas motivadas pelos interesses mais  
atados ao plano íntimo, em seus diferentes graus e composições , elevando-as ao  
plano da universalidade. Em outros termos, a conduta dos sujeitos, a princípio  
circunscrita, é apresentada, tanto teórica quanto praticamente, como corporificação de  
princípios genéricos, como realização de um dever-ser social, ocorrendo “a tendência  
de engendrar uma autojustificação no sentido de que o seu próprio modo de agir é a  
simples realização dessas normas gerais” (LUKÁCS, 2013, pp. 488-9).  
De outra parte, essas generalizações ideológicas se tornam influentes na  
medida em que se encontram fundamentadas, necessariamente, em elementos comuns  
e concretos da práxis cotidiana dos homens. Com efeito,  
é essa base das experiências cotidianas que primeiramente  
fundamenta a sua aplicação difundida e aprofundada visando uma  
possibilidade e necessidade social universal. [...] Por essa razão, não  
é tão difícil compreender a força de penetração social universal das  
generalizações que estão associadas com a práxis cotidiana das  
pessoas de modo mais ou menos imediato ou de modo próximo e  
compreensivelmente mediado (LUKÁCS, 2013, p. 537).  
É sobretudo por sua potencial infiltração em todas as dimensões da vida  
cotidiana, pela capacidade de se impregnar organicamente nos pensamentos e nas  
ações dos sujeitos e subsidiá-los no enfrentamento dos conflitos postos pela realidade  
à sua volta, entranhando-se em sua existência ordinária, pela faculdade, enfim, de  
fornecer explicações funcionais para a experiência vivida, que a ideologia e mais  
especificamente a ideologia religiosa se mostra capaz de formar, deformar e  
transformar o mundo.  
Lukács (2013), a partir da fundamentação que aqui já se expôs, apresenta uma  
caracterização detalhada, por meio da análise ontogenética, de cada um dos  
complexos mestres que compõem a superestrutura ideológica do ser social. Sob essa  
ótica, expõe circunstanciadamente a gênese, a função e a dinâmica das formas  
específicas de ideologia, passando pela política e pelo direito mais diretamente  
implicadas na mecânica socioeconômica ; assim como pelas chamadas formas mais  
puras da ideologia, isto é, a filosofia e a arte, assim denominadas uma vez que: “não  
têm a intenção nem a capacidade de exercer qualquer tipo de impacto imediato e real  
Verinotio  
416 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
sobre a economia nem sobre as formações sociais a ela associadas” (2013, p. 538);  
ainda que sejam efetivamente indispensáveis à reprodução do ser social a partir de  
certo estágio de seu desenvolvimento.  
A religião, porém, constitui, para o autor, uma categoria peculiar. Segundo  
Lukács, “a religião nunca foi nem é pura ideologia no exato sentido aqui pretendido,  
mas é simultaneamente e antes de tudo também um fator operante no plano imediato  
da práxis social real dos homens” (2013, p. 538). Nesse sentido, faz-se necessário  
apreender o caráter eminentemente prático-concreto das expressões religiosas, o que  
leva o filósofo húngaro a identificar na religião, em termos sócio-ontológicos, uma  
forma em que se interseccionam elementos da filosofia e da política ou seja, a  
religião conjuga um conjunto coordenado de formas ideal-discursivas com sistemas de  
práticas e prescrições ordenadas com vista à regulação social cotidiana.  
Outrossim, ainda que elaborações ideológicas puras possam tentar transpor  
suas formas estruturadas de ideias, de valores, de concepções etc. para a dimensão  
da práxis dos sujeitos, isso implica uma transferência de um campo a outro, quer dizer,  
as formas práticas têm de assumir uma dimensão política propriamente, abdicando de  
seu caráter de pura ideologia. A religião, por seu turno, apresenta como um traço  
típico justamente a constituição de aparatos capazes de mobilizar meios de  
organização social e recursos para o exercício do poder de maneira concreta (LUKÁCS,  
2013, pp. 538-9).  
Sob essa ótica, admite-se que, desde o processo de ancoragem imediata da  
práxis em formulações ideal-discursivas aprioristicamente constituídas, a significação  
de vivências e experiências subjetivas em termos de afetos, desejos e valores,  
passando pelas próprias práticas cotidianas mais naturalizadas e triviais, até as  
estruturas materiais erigidas e operacionalizadas na sociedade; todos podem portar,  
expressar, sintetizar, conformar e disseminar discursos e práticas ideológico-religiosas  
que incidirão sobre os homens enquanto representações e formas de consciência  
voltadas a subsidiar sua existência cotidiana.  
É a partir dessa compreensão ampliada que devemos compreender a religião  
em sua especificidade, enquanto categoria da ideologia. Sob esse viés, a seguinte  
exposição de Terry Eagleton nos parece fértil, ainda que peque pela indistinção quanto  
ao que é próprio da categoria religião e não das ideologias em seu sentido amplo:  
Estudar uma formação ideológica é, portanto, entre outras coisas,  
examinar o complexo conjunto de ligações ou mediações entre seus  
níveis mais e menos articulados. A religião organizada pode fornecer  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 417  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
um bom exemplo. Tal religião estende-se desde doutrinas metafísicas  
extremamente intrincadas a prescrições morais minuciosamente  
detalhadas que governam as rotinas da vida cotidiana. A religião é  
apenas uma forma de aplicar as questões mais fundamentais da  
existência humana a uma vida exclusivamente individual. Também  
contém doutrinas e rituais para racionalizar a discrepância entre as  
duas [...]. A religião consiste em uma hierarquia de discursos, alguns  
dos quais elaboradamente teóricos (escolasticismo), outros éticos e  
prescritivos, outros ainda exortativos e consolatórios (pregação,  
piedade popular); e a instituição da igreja assegura que cada um  
desses discursos se misture com os outros, para criar um continuum  
ininterrupto entre o teórico e o comportamental. (EAGLETON, 2019,  
p. 66)  
Aqui, o autor nos oferece, de modo panorâmico, uma síntese aproximativa útil  
no que tange aos conteúdos genéricos da religião enquanto expressão relativamente  
particular da ideologia. Como se nota, o fenômeno religioso comporta tanto as  
“doutrinas metafísicas extremamente intrincadas” quantos as detalhadas prescrições,  
de caráter moral, que “governam as rotinas da vida cotidiana”. É interessante notar  
que o próprio Lukács, ao pontuar o equívoco hegeliano de considerar a religião uma  
forma ideológica pura, assinala que a origem do quid pro quo reside na redução do  
complexo total da religião justamente à sua dimensão estritamente teológica ou  
filosófica (2013, p. 539). Além disso, Eagleton sugere, de forma positiva, um  
entrelaçamento, na vivência religiosa, entre generidade e individualidade humanas; o  
que Lukács desenvolverá não como mera percepção, mas como parte integrante de  
seu esforço de sistematização teórica da questão.  
Sem olvidar as particularidades de pensadores marxistas tão díspares, o que  
nos importa aqui é simplesmente enfatizar a sua convergência no que tange à  
concepção lukacsiana acerca da religião não constituir uma forma ideológica pura, uma  
vez que se encontra imiscuída no cotidiano dos sujeitos, subsidiando sua existência  
ideal e, ênfase nisto, praticamente. No que toca à compreensão aqui adotada, Lukács  
é o mais significativo autor que parte da compreensão madura de Marx acerca da  
problemática e que considera a ideologia e a especificidade de suas diferentes formas  
dentre estas, a religiosa no bojo de todo um edifício teórico radicalmente  
marxiano e articuladamente desenvolvido.  
De outra parte, se a apreensão apropriada da posição teórica exposta por  
Lukács acerca da religião não pode prescindir da importância atribuída pelo filósofo  
húngaro à vida cotidiana, ela também passa, necessariamente, por outra categoria  
central em sua ontologia do ser social: o estranhamento [Entfremdung]. Enquanto a  
alienação [Entäusserung] equivale à expressão/impressão de marcas subjetivas do  
Verinotio  
418 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
indivíduo em tudo aquilo que é por ele objetivado; o estranhamento [Entfremdung]  
consiste em um processo posterior, no qual “os resultados da atividade humana se  
voltam contra os próprios homens inibindo seu processo de desenvolvimento”  
(FORTES, 2011, p. 192). Todavia, é preciso ressaltar que os estranhamentos não são  
uma consequência inevitável da alienação, tampouco um elemento ontologicamente  
constitutivo do ser social diferentemente do trabalho e do momento ideal que, por  
exemplo, o são. Na verdade, os estranhamentos constituem um fenômeno  
exclusivamente sócio-histórico, o qual assume formas específicas em cada momento  
em que emerge no curso do desenvolvimento diacrônico não sendo, pois, algo  
ineliminável do devir homem do homem.  
De um ponto de vista abrangente, os estranhamentos radicam-se na  
contradição entre, de um lado, o aperfeiçoamento das capacidades do gênero humano  
e, de outro, o (sub)desenvolvimento da personalidade humana singular5, ao longo do  
transcurso histórico. Segundo Lukács:  
o desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente ao  
mesmo tempo o desenvolvimento das capacidades humanas. Contudo  
e nesse ponto o problema do estranhamento vem concretamente  
à luz do dia , o desenvolvimento das capacidades humanas não  
acarreta necessariamente um desenvolvimento da personalidade  
humana. Pelo contrário: justamente por meio do incremento das  
capacidades singulares ele pode deformar, rebaixar etc. a  
personalidade humana (2013, p. 581).  
Em outras palavras, o desenvolvimento das forças produtivas como fruto do  
progresso histórico tende a fomentar a evolução das capacidades humanas (mais  
amplas que aquelas), ou seja, o potencial geral de conhecimento e transformação da  
realidade à disposição do ser humano genérico. Não obstante, o conjunto desses  
desenvolvimentos das capacidades humanas em geral não está concretamente  
acessível e atuante em cada indivíduo enquanto exemplar do gênero como  
subsídio para o incremento de sua própria personalidade individual. Mais do que isso,  
os próprios desenvolvimentos das forças produtivas e, consequentemente, das  
capacidades humanas engendra objetivamente determinadas relações, certas  
sociabilidades e formas ideológicas correspondentes que (auto)desumanizam os  
homens que as produzem e nelas se encontram situados.  
5 Retomando a responsividade como traço fundamental do homem, entende-se a personalidade humana,  
a partir de Lukács, como um complexo dinâmico constituído fundamentalmente pelo conjunto de  
perguntas e respostas que, em sua interatividade ininterrupta, o sujeito põe para si, para o outro e para  
o mundo.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 419  
nova fase  
 
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
Assim, de um ponto de vista objetivo abrangente, estranhamento é a condição  
dos indivíduos que, dadas as conjunções sociais, se encontram privados do potencial  
da generidade humana alcançado naquele momento histórico. Isso se dá em razão de  
que, subjetivamente, os elementos constitutivos da dinâmica social em que esses  
sujeitos experienciam a sua existência e que são, portanto, por eles mesmos  
produzidos, aparecem a eles como algo estranho, que lhes é extrínseco, alheio,  
incognoscível, e que, todavia, os domina. Dito de outra forma, o conjunto de  
objetivações concretizadas pelos homens se autonomiza, coagulando-se em  
legalidades sócio-históricas que passam a determiná-los subjetivamente, restringindo  
seus processos de individuação a limites que se coadunam com as próprias dinâmicas  
da sociabilidade imperante. Naturalmente, as formas assumidas por essa dominação  
variam, como já se observou, diacronicamente, sendo determinadas pelo modo de  
produção e sua sociabilidade, bem como pela correspondente esfera espiritual. Sob  
essa ótica, todos os estranhamentos são fenômenos tanto socioeconomicamente  
fundados quanto ideologicamente constituídos. Sem embargo, há formas de  
estranhamento que surgem de maneira mais imediata no plano socioeconômico —  
como sói ocorrer com os estranhamentos típicos do capitalismo assim como outras,  
cuja forma fenomênica mais imediata é ideológica caso da religião, cujo vínculo com  
a produção material da sociedade é mais intrincadamente mediado.  
Nesse ponto, parece-nos oportuno empreender um esforço por deslindar  
teoricamente de que modo os elementos: ideologia, estranhamento, reificação e  
cotidiano se conjugam na constelação categorial que Lukács extrai do movimento  
histórico objetivo do ser social. Como já foi dito, a vida cotidiana, dimensão  
importantíssima na reflexão de nosso autor, é caracterizada pela conexão imediata  
entre teoria e práxis, em que as formas ideológicas operam no âmbito do momento  
ideal que orienta a prática subsequente. Mais especificamente, a atuação da ideologia  
assume, nessa existência cotidiana, dois modos de funcionamento distintos, que,  
conquanto não configurem uma diferença ontológica, distinguem-se pelo efeito que  
produzem sobre os homens. Em primeiro plano, grande parte das formas ideais que  
se cristalizam no cotidiano opera de maneira puramente ideológica, ou seja, se  
constituem enquanto um dever-ser, que, ao direcionar e dar forma às decisões dos  
homens, oferece a estes os meios de resolução dos conflitos sociais em que se veem  
envolvidos. De outra parte, temos uma classe de representações que não se  
manifestam propriamente como um dever-se, mas como uma determinada concepção  
Verinotio  
420 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
do ser. Estas aparecem para as pessoas, ideologicamente, como o próprio ser, “como  
aquela realidade diante da qual somente reagindo adequadamente elas serão capazes  
de organizar a sua vida em conformidade com as próprias aspirações” (LUKÁCS, 2013,  
p. 688).  
Esse último processo constitui o tópos dos estranhamentos que se coagulam  
na vida cotidiana e são mediados pelas reificações, uma vez que estas, “mesmo que  
possuam caráter ideológico, agem sobre as pessoas como se fossem modos de ser”  
(LUKÁCS, 2013, p. 688) lembremo-nos, aqui, das observações de Marx em sua tese  
de doutorado, recuperadas por Lukács, acerca dos efeitos ideológicos bastante  
concretos de divindades como Moloque e Apolo na Antiguidade. Assim sendo, para  
compreender adequadamente esta categoria, devemos partir do fato de que toda  
reificação consiste, essencialmente, na obliteração do caráter processual dos  
fenômenos, isto é, na negação de que toda objetivação é resultado de um processo  
genético assim como no próprio escamoteamento dessa processualidade. Em razão  
disso é que, através da reificação, o produzido tem seu percurso genético apagado e  
pode assumir ideologicamente a posição de produtor ao passo que o produtor tem  
seu papel invertido e aparece como produzido. A reificação é um momento ideológico  
na dinâmica do ser social, mas, obviamente, se encontra objetivamente ancorada na  
realidade concreta, como o próprio fetichismo da mercadoria, enquanto reificação  
característica do capitalismo, explicita. Assim, o fenômeno da reificação se dá, a partir  
da práxis cotidiana do homem, como uma resistência social e ideologicamente  
espontânea “contra a validade universal do devir, da práxis humana como base de  
todo conhecimento adequado, fundado na gênese, dos objetos e processos do ser  
social” (LUKÁCS, 2013, p. 551).  
A gênese histórica desse processo remonta efetivamente à incapacidade do  
homem de (re)conhecer os diferentes fatores implicados em suas próprias ações —  
algo a que já nos reportamos. Primordialmente, os processos reificadores se  
encontravam ligados, sobretudo, a manifestações da natureza, dado o baixo nível de  
compreensão e domínio objetivos do homem em relação a essa, o que propiciou que  
variados tipos e exemplos de reificações nos tenham sido legados pela Antiguidade  
na forma dos mitos, sobretudo os etiológicos cristalizações culturais do que o  
filósofo húngaro nomeia mitologização da gênese6.  
6 Apesar de não podermos nos dedicar aqui à questão, não é difícil dimensionar a importância do papel  
desempenhado pelos mitos etiológicos, enquanto cristalizações reificadoras, na regulação social em  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 421  
nova fase  
 
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
Mais tarde, o desenvolvimento das forças produtivas acarretou uma crescente  
socialização dos objetos produzidos pelo homem assim como da própria sociedade,  
cujas legalidades se complexificaram enormemente. Paralelamente ao recuo da barreira  
natural e à crescente socialização, foram os produtos da ação humana que passaram  
a ser mais e mais reificados e por meio da reificação estranhados; ensejando  
relações em que os homens não se reconhecem nas objetivações e nas legalidades  
sociais por eles mesmos produzidas e são por elas submetidos a uma vida que lhes  
priva da capacidade do gênero humano que eles próprios contribuem para  
desenvolver.  
Em relação ao itinerário histórico das reificações, observa Lukács:  
Essas mitificações originais dos próprios atos da humanidade em dons  
dos deuses, eventualmente mediados por heróis enviados por Deus,  
ainda sobrevivem na concepção atual em nível científico altamente  
desenvolvido, na medida em que as áreas da intelectualidade mais  
elevada não são concebidas como resultado da práxis humana, mas  
como valores “inatos”, “intuições” (matemática), “inspirações” (arte)  
etc. (2013, p. 551)  
Incontestavelmente a forma mais acabada e desenvolvida da reificação só veio  
à tona na sociedade capitalista, por meio do fetichismo da mercadoria forma matriz  
que irradia, na estrutura social que lhe é própria, as mais distintas expressões dos  
estranhamentos modernos e contemporâneos. A nós, contudo, importa compreender  
minimamente de que maneira as categorias estranhamento, reificação e cotidiano se  
conformam no horizonte da esfera religiosa, no complexo da ideologia. E embora a  
reificação só alcance sua máxima expressão na forma do fetichismo da mercadoria,  
categoria intrínseca à sociabilidade submetida à dinâmica do capital, ela já se faz  
presente, em épocas históricas muitíssimo anteriores, como “categoria mediadora do  
estranhamento” (LUKÁCS, 2013, p. 688).  
Pode-se aqui recorrer ao que Lukács afirma acerca de objetos da esfera  
econômica, já que ele mesmo não restringe sua observação a esse âmbito:  
no ser social, sobretudo no âmbito da economia, cada objeto é, por  
sua essência, um complexo processual; este, porém, muitas vezes se  
apresenta no mundo fenomênico como objeto estático de contornos  
diferentes contextos da Antiguidade. Cf. Romero (2018, pp. 123-4): “A despeito de apresentar-se como  
algo situado in illo tempore no tempo remoto e sacralizado da mitologia o mito etiológico, ao  
apresentar a origem, a fundação de elementos da realidade presente, postula uma continuidade avessa  
ao desenrolar do tempo histórico. Ele simula uma tradição ininterrupta e sagrada com a qual dada  
comunidade religiosa pode se identificar, mas que, na verdade, se trata de um artifício ideológico. Assim,  
histórica e materialmente, essa representação constitui uma mistificação da realidade que é assimilada,  
pela coletividade que a compartilha, acima de tudo, como uma ‘verdade’.”  
Verinotio  
422 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
fixos; nesse caso, o fenômeno se torna fenômeno justamente pelo fato  
de fazer desaparecer para a imediatidade o processo ao qual ele deve  
sua existência como fenômeno (2013, p. 377).  
Assim, tomar o fenômeno em sua imediatidade aparente, abdicando de sua  
processualidade essencial, é exatamente o percurso traçado pela apreensão reificadora  
da realidade. De outra parte, como já se considerou, os estranhamentos se constituem  
por meio da reificação; e, sendo esta uma categoria ideológica, sua função ainda  
que a reificação a desempenhe de maneira específica é, de modo geral, dirimir os  
conflitos sociais por meio da condução imediata da práxis social dos homens. Nesse  
sentido, o locus específico em que essa dinâmica se perfaz é, patentemente, o da  
existência ordinária e diária dos homens, espaço em que as conjunções situacionais se  
configuram e demandam dos sujeitos reações-respostas imediatamente disponíveis,  
por isso, ideologicamente predelineadas. Sob esse viés, a unidade entre teoria e  
prática típica do cotidiano é viabilizada pelo conjunto das variadas formas ideológicas  
que para ele acorrem. A ideologia, como complexo de representações tanto do ser  
quanto do dever-ser, nas suas mais variegadas formas e expressões, aporta e decanta,  
a partir das mais diversas fontes, nessa tessitura da existência, constituindo aquilo que  
Lukács define como ontologia da vida cotidiana.  
Afirma o autor:  
Os homens enredados em conflitos geralmente agem, antes, de modo  
espontâneo, motivados diretamente pelo que chamamos de a  
ontologia da vida cotidiana. Mas como surge esta? Indubitavelmente  
são decisivas nela as vivências primordialmente imediatas dos  
homens. O seu conteúdo e a sua forma, contudo, são influenciados  
em ampla medida pelas ideologias não por último também pelas  
ideologias puras , cujas objetivações confluem para essa área.  
(2013, p. 561)  
Em outros termos, a ontologia do cotidiano emana, do ponto de vista subjetivo,  
do modo abrangente com que o indivíduo concebe e elabora o mundo circundante a  
partir daquilo que vivencia socialmente frente aos dados objetivos da realidade. Ao  
mesmo tempo, confluem, para a totalidade desse mosaico, tesselas muito díspares,  
que podem inclusive se originar em formas mais puras de ideologia arte, filosofia  
etc. ainda que simplificadas/vulgarizadas. Essa ontologia que por fim se cristaliza,  
isto é, esse discurso acerca do que é a realidade, de como ela funciona etc., encerra  
uma estrutura subjetiva de predisponências para o enfrentamento dos conflitos que  
afloram à existência sempre se pautando, como já sinalizado, por uma acomodação  
ideológica tendencial entre o modo com que já se vive a vida cotidiana e a necessidade  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 423  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
de novas deliberações.  
Obviamente, as religiosidades cumprem um papel decisivo nessa ontologia do  
cotidiano, a qual, também por isso, se encontra atravessada pelos estranhamentos.  
Nem poderia ser diferente, considerando-se que, segundo Lukács, os estranhamentos  
brotam diretamente das inter-relações que os sujeitos estabelecem com seu cotidiano;  
e que a “função social primária de toda religião é a de regular a vida cotidiana” (2013,  
p. 692).  
Na verdade, segundo Lukács, o estranhamento religioso é o “arquétipo de  
todos os estranhamentos mediados precipuamente pela ideologia” (2013, p. 692).  
Desse modo, ainda que assuma diferentes configurações ao longo do processo  
histórico (culminando em suas formas mais desenvolvidas no capitalismo), do ponto  
de vista de sua dimensão ideológica ou seja, na medida em que se traduzem por  
apreensões do mundo que atuam para tornar a práxis humana consciente e operativa,  
gerenciando os conflitos sociais por meio de representações em que as forças naturais  
e/ou sociais confrontam o homem como poderes transcendentes que o interpelam  
e/ou submetem , todos os estranhamentos têm seu protótipo situado nos  
fenômenos religiosos mais primevos do ser social, em que as primeiras formas míticas  
se configuraram como reificações ideais que apreendiam, a seu modo, os embates  
oriundos dos intercursos natureza-sociedade7.  
Como já se pontuou, à medida que a produção material se complexifica com o  
avanço do decurso histórico, atinge-se um estágio em que a produção e a reprodução  
materiais da sociedade não podem mais funcionar sem a constituição progressiva das  
diferentes esferas que integram o complexo da ideologia, quer as mais diretamente  
ligadas à estrutura socioeconômica, como a política e o direito quer aquelas cuja  
interconexão se dá de maneira mais mediada, como a filosofia e a ciência. Cada forma  
ideológica atua na regulação e na ordenação da vida social de maneira específica e  
tem sua dinâmica e constituição peculiares determinadas, ontogeneticamente, pelas  
demandas sócio-históricas concretas a que visa corresponder. Naturalmente, os  
segmentos característicos em que operam bem como os recursos particulares de que  
lançam mão são próprios de cada uma dessas formas ideológicas e escapa às nossas  
possibilidades presentes examiná-los um a um. O que realmente nos importa pôr em  
7
No entanto, as reificações típicas da magia nos estágios mais primitivos do ser social ainda não  
acarretam estranhamentos em função do, até então, baixo desenvolvimento da personalidade humana  
o senso de coletividade ainda tende a prevalecer como potência preponderante nas existências  
individuais.  
Verinotio  
424 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
evidência é que, além dessas formas ideológicas maiores, que atuam de maneira  
tendencialmente universalizante e abstrativa para assegurar os interesses das classes  
dominantes, acompanhando também a constante complexificação do ser social,  
desenvolvem-se e se renovam constantemente também uma série de mecanismos e  
instrumentos variados destinados a moderar a vida imediata dos homens singulares  
também em suas decisões e conflitos do dia a dia.  
Dessarte, outras formas de ideologia germinam de modo espontâneo,  
engendradas pela sociedade autonomamente: “desde os usos até a moral, correções  
complementares para impor, em conformidade com as suas necessidades, os  
interesses gerais de classe, inclusive intervindo profundamente na vida singular do  
cotidiano” (LUKÁCS, 2013, p. 693). Todavia, também essas formas suplementares não  
são suficientes no que se refere à regulação da vida cotidiana, uma vez que não  
atingem de maneira uniforme parte significativa das coletividades. Para que o fizessem,  
seria preciso um elevado nível cultural homogeneamente partilhado pela maioria dos  
homens singulares o que, em função de distintos recortes sociais, efetivamente não  
ocorre. As formas superiores da ideologia (arte, ciência, filosofia), por sua vez,  
tampouco são bastantes, já que seus produtos “muito raramente conseguem imergir  
na vida cotidiana de modo suficientemente profundo para exercer sobre ela uma  
influência ao mesmo tempo ampla e decisiva” (LUKÁCS, 2013, p. 693). O que esse  
quadro revela é a insuficiência do sistema de formas ideológicas quanto à orientação  
do agir ordinário dos sujeitos, descortinando “grandes lacunas e fissuras justamente  
do ponto de vista da orientação dos homens singulares na cotidianidade” (LUKÁCS,  
2013, p. 693).  
O papel das religiosidades se desenvolve, pois, em consonância com o  
imperativo social de suprir tais lacunas e fissuras, de modo a consolidar um extenso e  
intenso complexo ideológico-pragmático que ampare, balize e direcione mapa,  
orientação e bússola o viver cotidiano dos homens. Por meio dessa subvenção à  
prática ordinária, cujas fendas e frestas ela preenche tanto subjetiva quanto  
objetivamente, a religiosidade, sobretudo quando atinge sua forma mais desenvolvida:  
a religião, exerce um domínio amplo e vigoroso sobre a existência diária dos  
indivíduos.  
Ademais, Lukács assinala uma tendência inequívoca da religião patente nos  
dias que correm. Trata-se de sua pretensa universalidade também no que diz respeito  
aos meios de influência a que recorre em sua atuação. Segundo o autor, “da tradição  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 425  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
até o direito, a moral, a política etc., não há nenhum campo ideológico socialmente  
influente que a religião não tenha tentado dominar” (2013, p. 654). Tal caracterização  
corresponde a uma tendencial fluidez, que assume contornos muito específicos em  
cada caso concreto, das fronteiras entre a religiosidade e as outras formas ideológicas  
com que ela convive. Naturalmente, isso não destitui as formas especificamente  
religiosas das idiossincrasias que ora tentamos delinear, mas torna deveras mais  
complexa a análise dos modos com que os fenômenos de cunho essencialmente  
religioso se interseccionam com outras expressões ideológicas em determinada  
formação social.  
Quanto à sua constituição específica, a religião forma tardia das  
religiosidades a surgir na totalidade do ser social apresenta:  
uma configuração complexa, extraordinariamente articulada e  
multiforme, para lançar uma ponte entre os mais particulares  
interesses singulares dos homens do cotidiano e as grandes  
necessidades ideais daquela dada sociedade na totalidade do seu ser-  
em-si. Contudo, não se trata, nesse caso, simplesmente de um sistema  
de fatores ideológicos que complementam uns aos outros; muito  
antes, essa ponte deve produzir ao mesmo tempo também uma  
conexão vitalmente funcional entre a vida particular dos homens  
singulares e as questões gerais da sociedade, e de tal modo que o  
homem singular em questão perceba as soluções que lhes são  
propostas para os problemas gerais como resposta às questões com  
que ele lida em sua existência particular como tarefas indispensáveis  
de sua conduta de vida específica (LUKÁCS, 2013, pp. 693-4).  
A heterogeneidade intrínseca das formas religiosas: sua complexidade,  
polimorfia, ductibilidade e capacidade de articulação constituem justamente o que as  
habilita a conjugar o microscópico das questões com que os homens particulares têm  
de lidar em suas vivências cotidianas com o macroscópico das problemáticas que se  
arvoram ao nível geral da totalidade social. Pensemos no cristianismo contemporâneo  
à guisa de ilustração: não é difícil visualizar como os indivíduos que, atualmente,  
professam a fé de diferentes correntes cristãs encontram na religião desde as respostas  
para as questões existenciais mais elementares (qual a origem do mal, qual o sentido  
da vida etc.), passando pelo conforto mais que necessário para suportar as mazelas  
diárias que germinam das relações sociais capitalistas, até orientações precisas e  
pragmáticas sobre a normatização de sua libido e de suas condutas sexuais. Assim, a  
religiosidade/religião ao regular os atos mais triviais dos indivíduos também os dota  
de uma significação, em última instância, universal, conferindo sentido a suas  
existências particulares, então alçadas a um contexto maior e a uma dimensão  
Verinotio  
426 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
transcendente.  
O filósofo húngaro assinala ainda a amplitude do domínio exercido pelas formas  
religiosas nessa condução social das vivências diárias dos homens singulares:  
A vida social real das religiões consiste, portanto, nessa sua  
universalidade, que está direcionada para dominar a totalidade da  
vida de cada homem singular da população total, de alto a baixo, das  
questões mais elevadas relativas à visão de mundo até as mais  
singelas relações cotidianas. E essa universalidade se exprime em um  
sistema potencialmente universal de enunciados sobre a  
realidade (incluindo a transcendência, é claro) e passa a fornecer,  
desse modo, as coordenadas coerentes que dela resultam para toda  
a práxis de cada homem singular, inclusive os pensamentos e  
sentimentos que a determinam e acompanham. Toda religião  
comporta, portanto, todos os conteúdos que, numa sociedade normal,  
estão frequentemente presentes no sistema global da superestrutura,  
que costuma conter todas as ideologias. (LUKÁCS, 2013, p. 695)  
De fato, pode-se identificar no excerto alguns dos traços característicos do  
próprio cristianismo que, ao se constituir historicamente, constitui a própria religião  
enquanto categoria do ser social. Destaca-se, pois, a assinalada extensão do poder  
religioso, que abarca a totalidade da vida, “de alto a baixo” efetivamente. Diríamos  
ainda retomando elementos já entrevistos que a universalidade do religioso,  
inaugurada efetivamente pela expansão dos cristãos na Antiguidade Tardia, manifesta-  
se como conjuntos coordenados de formas ideológico-discursivas relativamente  
estáveis, as quais sintetizam, expressam, performatizam e veiculam enunciados e  
representações parcialmente coerentes (uma vez que são sempre portadores de  
contradições imanentes) acerca da realidade de modo totalizante, isto é, que pretende  
englobar todas as dimensões da existência experienciadas pelos indivíduos (reais,  
afetivas ou imaginárias; coletivas em diferentes graus, particulares ou decididamente  
íntimas). Essas formas ideológico-discursivas articulam, prescrevem e regulam —  
fornecem as coordenadas a toda a práxis efetiva dos sujeitos, não apenas em termos  
de ações material-objetivas, mas também de afetos, pensamentos, emoções e estados  
de ânimo que compõem o complexo de cada ação em sua processualidade efetiva. A  
religião é uma cartografia tuteladora da existência.  
Por outro lado, do ponto de vista do conteúdo desses conjuntos de formas  
ideológico-discursivas e da práxis que eles determinam8, o fenômeno religioso radica-  
se, inexoravelmente, na condição de estranhamento, haja vista sua essencial negação  
8
Trata-se de uma distinção analítica: a própria práxis também possui uma dimensão ideológico-  
discursiva que implica uma retroalimentação.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 427  
nova fase  
 
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
da imanência do ser social (LUKÁCS, 2013). Seu discurso acerca da realidade sempre  
opera com base na aglutinação de apreensões reificadoras, que obliteram a  
dialeticidade concreta do real por meio do apelo à transcendência. Isso porque a  
religiosidade se alicerça na primazia do espírito em relação à matéria, no primado da  
subjetividade sobre a objetividade ao revés da ontologia materialista marxiano-  
lukacsiana que se fundamenta na apreensão da unidade processual complexa do ser  
social com predomínio do momento objetivo.  
Independentemente do quão variegadas possam ser as formas concretas  
específicas que as diferentes religiosidades assumem ao longo do tempo, sua natureza  
estranhada e estranhadora permanece, pois constitui um dos traços essenciais do  
fenômeno do ponto de vista ontogenético. Assim sendo, os homens singulares, em  
sua vida cotidiana, sofrem a determinação das pressões, dos direcionamentos e dos  
limites postos socialmente pela religiosidade, tensionando a processualidade de suas  
experiências frente à ação reificadora do estranhamento religioso. Como já pontuamos,  
a eficácia da reificação e do estranhamento que ela medeia , disseminada e  
consolidada socialmente, reside no fato de que ela: “não obstante a sua constituição  
que, na realidade, é puramente ideológica passa a influir sobre os homens da vida  
cotidiana como uma realidade e até como a realidade.” (LUKÁCS, 2013, p. 682)  
Considerações finais  
Buscamos, neste breve estudo, apresentar ao leitor o que nos parece ser a  
fundamentação teórica mais acertada, frutífera e decisiva para a compreensão do  
fenômeno religioso. Essa abordagem se assenta na teoria social marxiana e se mostra,  
portanto, avessa às tendências predominantes nos estudos acerca das religiosidades  
até os dias atuais; mormente, aquelas que dizem respeito a se tomar a crença em  
deus(es) como variável independente e, assim, se furtar a fazer as perguntas mais  
medulares a respeito da problemática religiosa, isto é, por que, seja no passado mais  
primitivo seja no presente mais tecnocientificista, os homens creem? Quais são os  
fatores determinantes que levam mesmo sociedades tão díspares entre si a prostrar-  
se tão decididamente frente aos deuses que quase espontaneamente elas mesmas  
fabricam para si?  
Observe-se, porém, que a perspectiva aqui adotada também se resguarda de  
uma outra tentação a que, o mais das vezes, se entregam, desavisadamente, os  
especialistas no tema: o ímpeto de ver na religião uma condição ontológica do homem.  
Verinotio  
428 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
A ideia de que a própria religiosidade seria um dos fatores imanentes do ser homem  
habita uma extensa produção bibliográfica, nas mais variadas áreas e disciplinas. Marx  
e Lukács não caem nessa tentação. Façamos o mesmo. A religião é um produto tardio  
do ser social, profundamente atrelada ao desenvolvimento e à complexificação das  
contradições postas pelas sociedades de classe. E mesmo outras formas de  
religiosidade, inclusive as que precedem historicamente a religião, ainda que não  
desapareçam com ela, não são um atributo universal do homem, mas hipóstases das  
relações incontornáveis de intercâmbio dele com a natureza, ou dos próprios homens  
entre si, que, uma vez reificadas, aparecem como essas potências alheias, estrangeiras,  
incompreensíveis e opressoras.  
Propusemo-nos a pensar a religião enquanto forma específica do complexo das  
ideologias; sem embargo, também esse caminho é acidentado. Os marxismos e os  
marxistas, em sua ampla maioria, dedicaram-se pouco à temática da religião e, quando  
o fizeram, em geral, erraram. Um dos principais equívocos que cometeram para  
além dos reducionismos e simplificações de todas as ordens reside no trato  
gnosiológico dispensado à categoria ideologia, insistindo em encará-la como sinônimo  
de falsa consciência, reflexo distorcido da realidade, ilusão socialmente necessária ou  
manipulação discursiva da realidade objetiva. Todavia, esforçamo-nos por exorcizar  
nossa leitura também desses equívocos, valendo-nos da obra tardia de György Lukács,  
especialmente seu Para uma ontologia do ser social, em que propõe uma recuperação  
e um posterior desdobramento da versão mais sofisticada e madura da compreensão  
marxiana acerca do complexo ideológico; a qual, como se viu, concebe a ideologia  
como forma de elaboração ideal da realidade que torna a práxis social humana  
consciente e operacional.  
O caminho que assim se descortina manifesta um potencial único para que  
compreendamos igualmente o porquê o avanço acachapante da cientificidade, da  
tecnologia e do capitalismo nos dias atuais não esvaziou igrejas, terreiros, mesquitas,  
mosteiros, sinagogas e templos de todos os tipos mundo afora. Também não tirou das  
pessoas a necessidade de projetar idealmente uma comunidade de justiça e igualdade  
num céu transcendente como resposta a uma realidade concreta que mais parece o  
inferno na Terra. Marx e Engels desenvolveram as bases filosóficas e analíticas que nos  
permitem, com a contribuição de pensadores seminais como Lukács, captar o  
movimento real da religião enquanto categoria ideológica específica e sócio-  
historicamente constituída. Isso significa que não é possível compreender a crença  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 429  
nova fase  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
religiosa sem apreender, em sua imanência, o contradizer-se a si mesmo dos homens  
que creem religiosamente; assim como se faz necessário considerar a ação recíproca  
das diferentes esferas constituídas pela dinâmica própria do ser social sobre e a  
partir da religião para vislumbrar, sem se olvidar da prioridade ontológica da  
produção e da reprodução da vida, a especificidade da ideologia religiosa, seu  
surgimento, sua diferenciação, suas condições de efetividade e de superação.  
Referências bibliográficas  
BRANDÃO, J. L. Em nome da (in)diferença: O mito grego e os apologistas cristãos do  
segundo século. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.  
CARDOSO, C. F. “História das religiões”. In: ______. Um historiador fala de teoria e  
metodologia: ensaios. Bauru, SP: Edusc, 2005.  
CHASIN, J. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,  
2009.  
EAGLETON, T. Ideologia: uma introdução. Trad. Silvana Vieira e Luís C. Borges. São  
Paulo: Boitempo, 2019.  
FEUCHTWANG, S. “La investigación de la religión”. In: BLOCH, M. (Org.). Analisis  
marxistas y antropologia social. Barcelona: Ed. Anagrama, 1977, pp. 79-102.  
FORTES, Ronaldo Vielmi. As novas vias da ontologia em György Lukács: as bases  
ontológicas do conhecimento. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Minas  
Gerais, Belo Horizonte, 2011.  
LUKÁCS, G. “As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem”. In:  
______. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Org., apres. e trad. de Carlos  
N. Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, pp. 225-45.  
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social v. 2. Trad. Nélio Schneider, Ivo Tonet e  
Ronaldo V. Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.  
MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. Trad. e introdução de Florestan  
Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008.  
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Supervisão ed. Leandro Konder. Trad. Rubens  
Enderle, Nélio Schneider e Luciano C. Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.  
ROMERO, S. L. G. G. Píndaro e o mito na Olímpica I: apontamentos sob a perspectiva  
do materialismo histórico. Romanitas Revista de Estudos Grecolatinos, n. 12, pp.  
108-28, 2018.  
TERTULIAN, N. Sobre o método ontológico-genético em Filosofia. Perspectiva,  
Florianópolis, v. 27, n. 2, pp. 375-408, jul./dez. 2009  
VAISMAN, E. A ideologia e sua determinação ontológica. Verinotio, n. 12, ano VI, pp.  
40-64, out./2010.  
Como citar:  
GUSMÃO, Sérgio. A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da  
ontologia de György Lukács. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 394-430;  
jul.-dez., 2024.  
Verinotio  
430 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.735  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx*  
J. Chasin and the ontological statute of Marx  
Antônio José Lopes Alves***  
Resumo: O presente artigo tem como objetivo  
principal caracterizar o legado de J. Chasin sobre  
o estatuto ontológico marxiano e a sua  
respectiva resolução metodológica. Para tanto,  
serão analisados os temas específicos que  
compõem a proposta inovadora do autor. São  
eles: a análise imanente; o significado do estatuto  
ontológico marxiano propriamente dito, que  
inclui a afamada tese das “três fontes”, como  
modo tradicional de atribuir às origens do  
pensamento de Marx; o caráter metodológico aí  
decorrente; as possíveis consequências da  
proposta chasiniana, sobretudo, no que diz  
respeito à “metapolítica”, a formação da  
individualidade e, por fim, a denúncia dos limites  
teóricos de Lukács, principalmente em relação à  
“dialética do universal do articular e do singular”,  
que somados a outros percalços, sustenta o  
“vínculo lógico entre para Marx e Hegel”  
presente em determinas obras do filósofo  
húngaro.  
Abstract: The main objective of this article is to  
characterize J. Chasin’s legacy on Marx’s  
ontological  
status  
and  
its  
respective  
methodological resolution. To this end, the  
specific themes that make up the author’s  
innovative proposal will be analyzed. These are:  
immanent analysis; the meaning of Marx’s  
ontological status itself, which includes the  
famous thesis of the “three sources”, as a  
traditional way of attributing the origins of  
Marx’s thought; the methodological character  
resulting from it; the possible consequences of  
Chasin’s proposal, especially with regard to  
“metapolitics”, the formation of individuality  
and, finally, the denunciation of Lukács’  
theoretical limits, mainly in relation to the  
“dialectic of the universal of the particular and  
the singular”, which, together with other  
setbacks, sustains the “logical link between  
Marx and Hegel” present in certain works of the  
Hungarian philosopher.  
Palavras-chave: Marx; Ontologia; J. Chasin; G.  
Lukács.  
Keywords: Marx; Ontology; J. Chasin; G. Lukács.  
Introdução:  
Ao assinalar, de imediato, quase 30 anos após a sua primeira edição, a  
importância e atualidade do livro Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica,  
para a devida recuperação do pensamento marxiano, é necessário destacar a  
caracterização crítica de Chasin, contida no livro, acerca do que se entende de modo  
disseminado contemporaneamente por “leitura”. Essa caracterização é de importância  
*
Versão modificada da Apresentação ao livro de autoria de J. Chasin, intitulado Marx: Estatuto  
ontológico e resolução metodológica, publicado em 2009, em segunda edição, pela Boitempo editorial,  
São Paulo.  
**  
Doutora em educação (UFMG) e professora titular aposentada do departamento de  
filosofia da UFMG. Coordenadora do grupo de pesquisa Marxologia: filosofia e estudos confluentes  
(CNPq). E-mail: evaisman@fafich.ufmg.br  
***  
Doutor em Filosofia (UNICAMP), professor titular da UFMG, onde atua como docente no COLTEC,  
PPGE-FaE e PROMESTRE-FaE. Email: ajlopesalves@gmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
vital, não apenas para o necessário descortínio crítico do panorama atual no mundo  
acadêmico e no cenário cultural, como também para avaliar corretamente a  
contribuição do referido livro, e, finalmente, dissipar mal-entendidos muito comuns  
quando a matéria em questão é normalmente ventilada.  
De acordo com Chasin. “leitura” tem sido concebida meramente como algo  
idêntico à interpretação, isto é, à atribuição de sentido ao texto ou documento pelo  
pesquisador/intérprete. Do que resulta simultaneamente a equivalência absoluta das  
várias interpretações ou operações hermenêuticas, uma vez que a questão da verdade  
sobre o objeto em exame se encontra totalmente afastada do âmbito da investigação,  
seja como questão sem solução, seja como um falso problema. Postulando posição  
diametralmente oposta, Chasin defende de modo contundente a análise imanente dos  
escritos marxianos. Nas palavras do autor:  
É decisivo, numa época devastada pelo arbítrio e a equivalência das  
“leituras”, ressaltar uma questão fundamental: reproduzir pelo interior  
mesmo da reflexão marxiana o trançado determinativo de seus  
escritos, ao modo como o próprio autor os concebeu e expressou.  
Procedimento, pois, que adquire articulação e identidade pela  
condução ininterrupta de uma analítica matrizada pelo respeito radical  
à estrutura e à lógica inerente ao texto examinado, ou seja, que tem  
por mérito a sustentação de que antes de interpretar ou criticar é  
incontornavelmente necessário compreender e fazer prova de ter  
compreendido. (CHASIN, 2009, p. 7)  
Forma de abordagem de um escrito que o toma em sua concretude peculiar de  
articulação objetiva de sentidos e argumentos, frente à qual cabe proceder a um  
exercício de apropriação mental que consiga, referenciando-se pelo próprio objeto,  
dar conta daquilo que exige e demanda compreensão, ou seja, “a interrogação  
pertinente tem de assumir por alvo a análise ou crítica imanente e sua adequação para  
a leitura das formações ideais” (CHASIN, 2009, p. 8).  
Acerca do modo como o texto em questão foi pensado inicialmente pelo autor,  
é útil esclarecer que Chasin entusiasmado com a possibilidade de urdir um escrito que  
pudesse, ao menos de modo aproximativo, apontar para a existência de um tecido  
teórico em Marx, em que a dimensão ontológica ganha perfil estatutário, Chasin  
acabou por criar um livro que inaugura um novo modo de identificar a natureza do  
pensamento de Marx, ainda que originalmente o escrito tenha sido pensado como um  
grande posfácio, tanto em termos quantitativos quanto, principalmente, qualitativos.  
O próprio Lukács ganhou um capítulo em especial, pois, se o filósofo húngaro  
havia desempenhado papel decisivo para o desdobramento desse veio analítico, tal  
Verinotio  
432 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
papel não poderia obnubilar o fato de que Lukács a despeito de suas contribuições  
decisivas nesse terreno tenha incorrido em alguns equívocos no esforço teórico  
monumental ao qual ele se dedicou febrilmente nas últimas décadas de sua vida.  
Passados vários anos após a sua primeira edição em 1995, é forçoso admiti-lo  
como uma colaboração decisiva para aquilo que o próprio Lukács denominou, com  
muita perspicácia, de “renascimento do marxismo”, mas não apenas para o caso  
brasileiro, tendo em vista que contemporaneamente esforços dessa natureza são  
praticamente inexistentes mundo afora. Trata-se, sem dúvida, de uma empreitada no  
sentido de reconhecer o caráter decisivo dessa tarefa para a devida apreensão da  
natureza do pensamento de Marx. Assim é que, guardadas as devidas proporções,  
Chasin dedicou sua vida a um programa de renascimento do marxismo que, como no  
caso do filósofo húngaro, nunca se tratou de um projeto intelectual como um fim em  
si mesmo, encerrado em limites estreitos. Trata-se, acima de tudo, de fazer a obra de  
Marx objeto de estudo rigoroso, com miras reais bem estabelecidas: compreender o  
mundo e visualizar as possíveis vias de sua transformação.  
O estatuto ontológico marxiano  
Para Chasin, após tantos anos debruçado sobre a obra de Marx e de vários  
tipos de interlocução que estabelecera com seus alunos e orientandos, ficara evidente  
que Marx provavelmente teria aprendido com Hegel, em especial, que estava impedido  
de seguir sua trilha. Havia, pois, que perseverar na compreensão positiva da obra  
marxiana, sejam quais fossem seus limites ou mesmo equívocos. Eis, sinteticamente, a  
linha condutora da pesquisa encetada por Chasin: o estatuto ontológico marxiano  
talvez possa ser enunciado do seguinte modo: é o estudo das categorias fundamentais  
em traços essenciais abstratos, em suas determinações mais gerais da existência  
social historicamente constatada ou reconhecida em toda a sua amplitude e riqueza.  
O que significa sinteticamente essa linha condutora que passou a arrimar a  
posição de Chasin frente ao pensamento de Marx e que marcou o caráter de sua  
orientação, que vinha sendo gestada pelo menos desde os anos 1980? Em termos  
breves a resposta é a seguinte:  
Estatuto é a ordem do reconhecimento ou reprodução teórica da identidade,  
natureza e constituição das coisas em si (seres ou entes) por seus complexos  
categoriais mais gerais e decisivos, independentemente, em qualquer plano, de se  
tornarem objetos de prática ou reflexão. Nesse sentido, é a teoria do reconhecimento  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 433  
nova fase  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
da objetividade histórico-imanente em suas distintas formas e apresentações (natureza  
e sociedade).  
É o momento mais abstrato do reconhecimento da identidade das coisas por  
si, enquanto tal um dos momentos distintos da unidade do saber, do qual participa  
um segundo, sob forma concreta, que é a ciência.  
Por via de consequência, pela própria natureza histórica e processual do ser, a  
ontologia marxiana não corresponde, nem poderia corresponder, por simples  
imperativo de coerência, à forma de um saber universal plantado sobre uma  
racionalidade autossustentada, ou seja, fundado na razão universal, nada mais que a  
versão laica ou profana de deus no dizer de Feuerbach (cf. FEUERBACH, 2007). Ou  
seja, trata-se, em verdade, de uma forma de ontologia sem parentesco com o saber  
absoluto e que, por conseguinte, recusa qualquer tipo de fundamento especulativo,  
pois a absolutização de uma teoria da fundamentação é simplesmente a afirmação  
especulativa da razão autônoma ou de um princípio de inteligibilidade situado para  
além das coisas, que garante a presença e o conhecimento do sagrado e a vitória  
antecipada do idealismo. Não correspondendo a qualquer forma de saber universal, a  
ontologia marxiana sustenta, no entanto, a possibilidade efetiva de um saber real.  
Assim, sempre de acordo com Chasin, a ontologia marxiana não é um sistema  
de verdades absolutas e abstratas, mas, antes de tudo, um estatuto teórico, cuja  
fisionomia é traçada por um feixe de lineamentos categoriais enquanto formas de  
existência do ser social (cf. VAISMAN, 2006). Em termos diretos, como convém nesse  
passo: posta em seu devido lugar, a problemática do conhecimento é, marxianamente,  
uma questão de caráter e resolução ontognosiológica.  
No saber marxiano, poder-se-ia afirmar, a título de exemplificação apenas, que  
a filosofia está inclusa sob a forma de filosofia primeira, ou seja, sob o modo de ser  
de um estatuto ontológico, código ou legalidade do ente social enquanto ente social,  
que é a plataforma das concreções científicas. Há, portanto, entre a ontologia  
estatutária e a própria cientificidade, um plexo de relações movente-movidas –  
estatuto/concreções que inclui, em seus devidos lugares, como departamentos da  
ciência da história, a problemática do conhecimento, a lógica, a epistemologia, a  
linguística etc., onde são examinadas enquanto disciplinas particulares, mas jamais  
como disciplinas fundantes ou separadas de modo arbitrário e excludente.  
A determinação imanente ao ente real ou positivo, bem como o ato mental de  
determinar que reproduz o primeiro , não constituem coações. Enquanto  
Verinotio  
434 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
positividade, integra o complexo da lógica objetiva da efetividade; enquanto, figura  
teórica é reprodução mental da primeira.  
Por via de consequência e remetendo a questão à radicalidade que ela exige, é  
lícito afirmar, segundo Chasin, que o corpus teórico marxiano é realizado no âmbito  
de um novo estatuto ontológico. Por essa prática teórica e por um dado conjunto de  
lineamentos explícitos, Marx deixou o legado de um específico estatuto ontológico,  
não de uma ontologia sistemática de talhe convencional ou tradicional, e não apenas  
porque careceu do tempo necessário para a realização de uma obra desse tipo, mas  
fundamentalmente pela distinção de natureza de seu estatuto ontológico, radicalmente  
oposto ao tratamento especulativo do tema.  
Chasin procura demonstrar ao longo das páginas de seu escrito que esse  
estatuto é constituído a partir do universo prático onticamente reconhecido: é um  
estatuto ôntico-ontológico, ou seja, evolve da efetividade histórica das coisas, de suas  
relações e processos para a sua reprodução conceitual, ao nível de uma trama  
categorial em sua expressão mais abstrata. Em suma, trata-se do reconhecimento do  
ontoprático por meio da força da abstração, que se faz presente, portanto, na própria  
consciência cotidiana, no âmbito da atividade sensível em todas os seus diversificados  
modos de ser1.  
A originalidade da crítica à “tese das três fontes” e suas consequências  
O caráter original do livro emerge em vários momentos, embora essa não tenha  
sido de modo algum a intenção de seu autor. Em primeiríssimo lugar, a coragem e a  
desenvoltura sem peias de qualquer ordem com que Chasin analisa a afamada “tese  
das três fontes”. Há quem possa interpretar nesse procedimento como algo irrefletido,  
mas nada mais errôneo. Ao contrário, trata-se da necessidade de debruçar-se sobre  
uma questão de rara importância que restou, por motivos que o próprio Chasin  
evidencia, completamente intocada. Chasin se pôs a analisar um novo modo de dar  
origens ao pensamento de Marx. Julgava, corretamente, que sem um devido acerto de  
contas com o que denominou de “amálgama originário” não poderia encetar um  
1 Em aula no curso de pós-graduação em filosofia da UFMG, no ano de 1998, Chasin chegou a utilizar  
a noção de plenitude categorial com o objetivo de determinar o efetivo caráter do ser, distinguindo-o  
assim de uma mera abstração ou vazio linguístico. Ao contrário, opondo-se à abordagem tradicional,  
em que há um esvaziamento conteudístico, a noção cunhada por Chasin denota a presença de um  
conjunto de categorias com conteúdos diversos. Como resultado dessa importante distinção, se justifica  
a insistência de Chasin em uma ontologia estatutária, rejeitando in limine a noção de sistema para  
designar a tessitura teórica das formulações marxianas.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 435  
nova fase  
 
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
comentário profundo sobre o caráter da obra de Marx.  
Segundo o autor, a determinação das origens do pensamento marxiano não é  
um problema que remeta apenas à historiografia da reflexão ocidental, como o de um  
momento particular desta, mas o correto equacionamento de tal momento condiciona  
o acesso ao caráter específico da obra de Marx. Obra que não deve ser entendida  
como mera contingência devida apenas ao talento pessoal de seu formulador, mas  
como instauração de um novo padrão de cognição e reflexão que herda determinados  
pontos da tradição e se posiciona criticamente frente a eles. Nesse sentido,  
compreender a história de constituição do pensamento marxiano é condição necessária  
para sua apreensão e entendimento, não sendo, portanto, uma interrogação  
puramente acadêmica ou erudita. Ao contrário, a resposta dada a ela possibilita, ou  
não, a apropriação da obra marxiana em seus próprios e verdadeiros termos.  
Ora, como Chasin demonstra com cuidado e rigor, ficam demonstrados a  
estreiteza e o improviso artificial do amálgama, isto é a tese de que a gênese da obra  
de Marx teria sido, no melhor dos casos, uma espécie de “síntese superadora” da  
economia política clássica, da filosofia alemã e do pensamento político francês, tese  
elaborada por demanda contingente por Kautsky (cf. KAUTSKY, 2004), avalizado  
posteriormente por Lênin (cf. LÊNIN, 1988), em lugar de reconhecer o fundamental:  
Marx como herdeiro, na ruptura, de momentos fundamentais da história da filosofia:  
da paternidade de Aristóteles a Hegel como simples padrasto.  
Em outros termos, o modo como se efetuou a apresentação da produção teórica  
marxiana, desde os princípios do marxismo, foi atribuir a esta uma origem resultante  
da mistura ou da fusão de três tradições científico-filosóficas distintas, tanto em suas  
procedências histórico-sociais quanto em seus objetos de exame. Seja tomando, de  
forma abstrata, certas alusões de Marx ao que de mais importante havia em seu tempo  
no quadro da cientificidade e da reflexão filosófica, seja recolhendo pretensos indícios  
de uma comunidade epistemológica, a tese do tríplice amálgama, como a denomina  
Chasin, fez história no campo do marxismo. Considerada como ponto pacífico da  
interpretação, a tripla origem do pensamento marxiano, a proposição em questão,  
raramente foi objeto de um exame mais detido e cuidadoso, parametrizado pela  
compreensão dos próprios textos de Marx.  
Impecável na denúncia das fragilidades da impostura teórica do texto de  
Kautsky, Chasin denuncia também as razões de ordem histórico-social e teóricas  
relativas à recepção da obra marxiana, que conduziram a que as teses esdrúxulas do  
Verinotio  
436 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
autor examinado permanecessem intocadas de qualquer análise acurada. De acordo  
com as próprias palavras de Chasin:  
Não fosse o século XX, em suas brilhantes conquistas materiais,  
simultaneamente uma usina multifacética de produção da falsidade  
ideal socialmente necessária, o amálgama kautskista teria se esgotado  
no perímetro acanhado de um erro teórico pessoal. Mas, engrenado  
ao desconhecimento generalizado da obra marxiana e impelido por  
outras urgências, o núcleo da fórmula pôde subsistir, propagado por  
muitos, e sob o prestígio do aval de Lênin. (CHASIN, 2009, p. 34)  
Chasin não deixa intocada a versão leniniana da “tese das três fontes”, ainda que  
reconheça a superioridade de sua análise frente àquela de Kautsky. Entretanto, longe  
de considerá-la correta, recusa qualquer contribuição de Lênin ao devido  
esclarecimento das origens do pensamento de Marx, para ao final afirmar  
enfaticamente o que se segue:  
De fato, o tríplice amálgama é, a rigor, impensável, a não ser como vaga alusão  
metafórica às doutrinas mais notáveis do universo intelectual ao qual Marx pertencia,  
e às quais ele teve o discernimento de se voltar, preferencialmente, a partir de certo  
instante de seu próprio desenvolvimento. Como as faceou, de que modo lidou com  
elas, e de que maneira foram proveitosas na instauração de seu próprio pensamento,  
são, estas sim, questões válidas, que só a direta interrogação de seus escritos –  
necessariamente de seus escritos pode legitimamente dirimir. (CHASIN, 2009, pp.  
36-7)  
Ao dá-la por resolvida, ou, ainda, por não a considerar com uma questão a ser  
devidamente enfrentada, um dos grandes erros dos intérpretes ao longo de décadas  
foi, consequentemente, não terem se ocupado a sério da gênese do pensamento de  
Marx, substituindo a questão por supostos, totalmente desprovidos de fundamentos  
nos próprios textos do autor que perfazem o período de intensa formação de seu  
pensamento próprio.  
Contudo, a correta abordagem dos escritos de Marx no que fere ao problema  
das suas origens e da especificidade impõe o conhecimento das determinações  
histórico-sociais que conformaram o momento no qual tem início o tipo de produção  
teórica propriamente marxiana. Esboço das condições efetivas do caso alemão ao  
tempo de Marx que possibilita tanto situar os modos anteriores à Crítica da filosofia  
do direito de Hegel (MARX, 2005), profundamente marcados pela especulatividade,  
quanto demarcar o efetivamente novo trazido pela posição marxiana como tal a partir  
da referida crítica.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 437  
nova fase  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
Donde o destaque para a importância decisiva de Feuerbach no roteiro de  
constituição do padrão marxiano de pensamento, visto que a crítica à especulatividade  
em geral da filosofia, à hegeliana em particular, era uma tarefa absolutamente  
necessária:  
[a] crítica de Feuerbach à especulação hegeliana e de seus reclamos  
por uma nova ontologia de orientação radicalmente distinta, ou seja,  
de pronunciada inclinação imanentista-naturalista, cuja relevância, no  
impulso a novos rumos filosóficos (evidentes, por sinal, no século XX),  
independe da precariedade e contraditoriedade da polimorfia errática  
dos encaminhamentos, desfechos e irresoluções de seu próprio  
trabalho. [...] Feuerbach, como é muito bem sabido, foi o único dos  
neo-hegelianos, segundo Marx, a acertar contas com a dialética  
hegeliana e a substituir embriaguez especulativa por pensamento  
sensato (CHASIN, 2009, p. 27).  
Ao demonstrar, a partir dos próprios textos de Marx que pontuam seu caminho  
até a formulação de seu pensamento próprio, incluindo nesse itinerário, sua  
autoavaliação contida no afamado “Prefácio de 1859”, é que Chasin identifica  
precisamente o  
caráter e o momento preciso da inflexão intelectual a partir da qual  
passa a elaborar seu próprio pensamento. Trata-se de uma viragem  
ontológica que a leitura de Para a crítica da filosofia direito de Hegel  
comprova indubitavelmente, se dela o leitor se aproximar sem  
preconceitos gnosiológicos, não importa quanto o texto seja  
inacabado e lacunar, por vezes impreciso e até mesmo obscuro, visto  
não ter jamais ultrapassado a condição de glosas para o  
autoesclarecimento do autor. É o início do traçado de uma nova  
posição ontológica que os textos subsequentes de Sobre a questão  
judaica (1843) às “Glosas marginais ao Tratado de economia política  
de Adolf Wagner” (1880) – confirmam, reiteram e desenvolvem num  
largo e complexo processo de elaboração (CHASIN, 2009, p. 57).  
Ao perscrutar detalhadamente tanto os escritos de Marx elaborados no período  
propriamente juvenil, ou seja, anteriores às glosas críticas redigidas em meados de  
1843, quando da estada na localidade de Kreuznach, bem como aqueles que perfazem  
a época imediatamente posterior àquelas, ou seja, um conjunto de elaborações de  
cunho filosófico-político, empreitada diga-se de passagem - a que poucos intérpretes  
se dedicaram, Chasin descobre o caráter da ruptura teórica transcorrida nessa etapa  
do caminho desbravado por Marx. De um lado, a defesa do estado, enquanto  
racionalidade e universalidade máximas, postulação pertencente a uma série de artigos  
da Gazeta Renana, de outro, o questionamento radical dessas “virtudes”, cujo início é  
já claramente perceptível em meados de 1843, faculta uma mudança radical na  
trajetória, cujo resultado é concebido por Chasin como uma:  
Verinotio  
438 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
redefinição teórica [...] de tal envergadura que só pode ser facultada  
e ter explicação por uma cabal revolução ontológica. O salto extremo,  
que vai da sustentação ardorosa do estado racional como demiurgo  
da universalidade humana à negação radical de sua possibilidade,  
consubstanciado pela emergência de um complexo determinativo que  
se lastreia como reprodução ideal do efetivamente real, transcende as  
condicionantes mais próximas dúvidas e influências e dá início à  
instauração de uma nova posição filosófico-científica e à sua correlata  
postura prática (CHASIN, 2009, p. 63).  
Cabe, nesse sentido, um importante esclarecimento, pois o fato de Marx ter se  
voltado, tanto antes quanto imediatamente depois da Crítica de 43, a assuntos que  
envolveram a temática política, formulando por essa via a primeira de suas três críticas  
ontológicas, não deve ser entendido como uma escolha meramente pessoal por parte  
do autor, mas como consequência, até certo ponto inevitável, de “ênfases e prioridades  
de um determinado tempo e lugar. Todavia, proporcionou a conquista precoce de uma  
dimensão fundamental ao pensamento marxiano, que foi mantida em seus escritos até  
o fim da vida” (CHASIN, 2009, p. 63), ou seja, a determinação ontopositiva da  
politicidade (cf. CHASIN, 2022/2023; 2013)  
Em virtude do caráter de radicalidade que tal patamar crítico alcançara, note-se  
que sua realização não poderia se dar sem o confronto com a operação lógico-  
especulativa que arrima a noção de estado antes abrigada por Marx. Desse modo,  
pode-se afirmar que a primeira não teria sido realizada sem a outra, ou seja: “A  
vinculação dessas duas críticas é motivada, desde logo, pela natureza filosófica da  
obra centralmente examinada [A crítica à filosofia do direito de Hegel]” (CHASIN, 2009,  
p. 67).  
Enquanto as duas críticas acima ventiladas são, no mais das vezes, alvo de  
polêmica a respeito de sua existência e do seu papel na instauração do pensamento  
marxiano propriamente dito, o mesmo parece não ocorrer com a crítica da economia  
política, visto se tratar do subtítulo de sua obra de maturidade: O capital.  
Entretanto, embora reconhecida como parte substancial da obra marxiana,  
tendo em vista a dimensão que ocupou em seu itinerário, não foi entendida como uma  
crítica de caráter ontológico, muito ao contrário. Vários são os exemplos que indicam  
que a obra de maturidade foi tomada como resultado de exercício de ordem científica,  
cujo método era necessário vislumbrar, a partir de vetores no mais das vezes estranhos  
à própria obra pesquisada (cf. ALTHUSSER, 2015). Ou seja, a crítica da economia  
política raramente foi entendida como uma crítica de caráter ontológico (cf. LUKÁCS,  
2012). Ora, é justamente o que Chasin procura demonstrar, indicando, porém, a  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 439  
nova fase  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
inextricável relação dessa “terceira crítica” com as duas anteriores. Em verdade, a  
crítica da economia política  
Beneficiou-se largamente das duas primeiras, das quais nunca se  
divorciou, numa potencialização recíproca que percorreu o conjunto  
da obra marxiana, independentemente dos montantes que cada uma  
delas perfez no conjunto dos escritos. (CHASIN, 2009, p. 74)  
As duas primeiras indicaram o escopo a ser perseguido ao desvendar, de um  
lado o caráter determinante da sociedade civil, contestando a concepção hegeliana da  
demiurgia do estado, e, nesse passo, a afirmação de que “a anatomia da sociedade  
civil deve ser procurada na economia política” (MARX, 1974, p. 135).  
Longe de se configurar em uma aproximação economicista da vida social, a  
crítica da economia política, cujas bases haviam sido enunciadas já na década de 1840,  
seja nos Manuscritos de Paris ou n’A ideologia alemã, “as categorias da economia  
política são ontocriticamente elevadas à esfera filosófica, onde esplendem como malha  
categorial da produção e reprodução da vida humana” (CHASIN, 2009, p. 75).  
Tomadas de maneira ampla e não reducionista, ou seja, não como simples categorias  
econômicas, dimensões de um universo que pouco ou nada tem a ver com a formação  
humana, o enfrentamento marxiano da questão econômica, realizado por meio da  
crítica ontológica, propiciou ao autor identificar a gênese da sociabilidade e do  
indivíduo ativo. Ou dito em outras palavras:  
posta em andamento, a crítica ontológica da economia política, ao  
contrário de reduzir ou unilateralizar, induz e promove a  
universalização, estendendo o âmbito da análise desde a raiz ao todo  
da mundanidade, natural e social, incorporando toda uma gama de  
objetos e relações (CHASIN, 2009, p. 77).  
Como veremos mais à frente, há menções breves, porém necessárias, no  
contexto do presente artigo, acerca da tendência inelutável, porém contraditória da  
formação social da individualidade, em que, ao contrário do que normalmente é  
ventilado a respeito,  
a grande tematização do homem está em Marx os indivíduos sociais,  
a
individuação,  
a
formação social da individualidade.  
O
reconhecimento do forte vínculo entre indivíduo e sociabilidade,  
quando bem fundamentado, amparado nas formulações do próprio  
autor ao longo de sua obra, permite-nos compreender que a categoria  
da individualidade em Marx não é nem pode ser compreendida de  
outro modo, a não ser recaindo em mitos e supostos naturalistas ou  
transcendentais (VAISMAN, 2009, p. 442).  
Verinotio  
440 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
A resolução metodológica  
Chasin inicia o tópico do livro dedicado à “resolução metodológica” declarando  
na contracorrente das vertentes epistemológicas que: “Conferida a natureza ontológica  
do pensamento marxiano, é fértil principiar por uma honesta provocação: a rigor, não  
há uma questão de método no pensamento marxiano”, pois “todo problema  
gnosiológico importante só encontra solução no campo ontológico” (CHASIN, 2009,  
p. 79).  
Ou seja, a questão do saber em Marx está categorialmente subordinada à  
dilucidação ôntica, ao exercício da escavação pelo ser das coisas, e se resolve no plano  
ontológico. Há aqui, portanto, uma questão decisiva a ser indicada: a diferença entre  
Marx e a tradição filosófica, pois se admitirmos que  
[...] todo método pressupõe um fundamento gnosiológico, ou seja,  
uma teoria autônoma das faculdades humanas, preliminarmente  
estabelecida, que sustente ao menos parcialmente a possibilidade do  
conhecimento [...] não há, igualmente, um problema do conhecimento  
na reflexão marxiana (CHASIN, 2009, p. 79).  
O que, confrontado com o modus operandi do pensamento ocidental, poderia  
parecer uma lacuna ou lapso, aparência esta que enredou muitos autores significativos,  
que, de um modo ou de outro, pretenderam enquadrar ou classificar a cientificidade  
ontologicamente talhada da obra marxiana nos marcos das disciplinas filosóficas  
tradicionais. Tal déficit não é nada mais que aspecto ilusório; esse fato se evidencia na  
crítica marxiana mesma da lógica especulativa hegeliana, a qual não é de maneira  
alguma uma crítica de natureza meramente lógica, pois “não terá sido por resquícios  
de hegelianismo que Marx rompeu com o método lógico-especulativo, nem se situou,  
pela mediação do pressuposto ineliminável da atividade sensível do homem, para além  
da fundamentação gnosiológica (CHASIN, 2009, p. 71); é um para além do  
metodologismo, em nome do para aquém do ente.  
Por via de consequência, a determinação da atividade cognitiva é resolvida nos  
seguintes termos: “a atividade do pensamento de rigor como reprodução teórica da  
lógica intrínseca ao objeto investigado”, o que define “a tarefa do sujeito e assinalou  
o lócus da verdade” (CHASIN, 2009, p. 80).  
Tal delimitação se apresenta em sua simplicidade como inicial, fórmula sintética  
que arrima e indica a ruptura com o padrão da reflexão especulativa, sendo o objeto  
reconhecido em sua independência de nexos essenciais com relação a todas as formas  
de ideação, e o sujeito como ente ativo. Contudo, não se encontra ainda aqui a sua  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 441  
nova fase  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
completa determinação, tão somente a fixação da exterioridade recíprocas das duas  
instâncias, pois, “nesse momento inicial, sujeito e objeto, porquanto sejam  
reivindicados em sua terrenalidade, não são ainda distinguidos, positiva e  
especialmente, das acepções correntes ou tradicionais, parecendo que se faceiam  
como simples exterioridades” (CHASIN, 2009, p. 80).  
Mais à frente, na análise dos assim chamados Manuscritos de 1844, essas duas  
instâncias serão delimitadas por sua natureza social e ativa, não apenas no registro da  
exterioridade, marca não apagada pela relação eminentemente ativa, mas por esta  
afirmada, a qual sofrerá um processo de aprofundamento, quando “os sujeitos, então,  
serão determinados como os homens ativos e os objetos enquanto atividade sensível”  
(CHASIN, 2009, p. 81).  
O que se assiste nesse passo é a determinação mais precisa do ser que conhece,  
determinação subversiva em comparação com a forma tradicional da res cogitans.  
Seguindo o indicativo feuerbachiano de que “o ser é uno com a coisa que é”, Marx  
enumera as principais características do ser em geral, dos entes, entendido nesse  
sentido como algo mais que uma pura abstração ou fórmula vazia. Em sua  
imediaticidade, o ser não é uma simplicidade muda, mas complexo categorial mais  
geral, tecido por uma rede de determinações:  
o ser, em sua multiplicidade, é objetividade, relação e padecimento.  
Por complexificação aditiva e distintiva, no devir de seu grau  
específico de ser, o homem detém esses traços universais e agrega  
outros que compõem sua diferença específica (CHASIN, 2009, p. 82).  
Desses traços particulares ressalta a constituição prático-social tanto da  
objetividade humana quanto da subjetividade, superação efetiva e efetivadora da  
naturalidade, engendrando uma nova forma de ser objetivo sem dúvida, mas de uma  
outra natureza, como autoconstituição. Daí a importância central da prática, apontada  
como “prática mesma da fabricação do homem, sem prévia ideação ou télos último,  
mas pelo curso do ‘rico carecimento humano’, aquele pelo qual a própria efetivação  
do homem ‘existe como necessidade interna, como carência’”, o que confere ao  
padecimento humano uma fisionomia diversa do carecimento natural ou  
biologicamente determinado, carecimento que difere da mera lacuna, assinalado como  
produção e exteriorização, posição ativa do próprio carecimento humano. A  
delimitação do ser humano ultrapassa em muito aquela relação que constrange o  
singular à mera exemplaridade, pois “o indivíduo é o ser social”, o que afirma por  
consequência as forças individuais de produção de si, dentre as quais se situa a  
Verinotio  
442 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
capacidade de cognição, como potências sociais. Potências sociais de entificação, de  
expressão de ser e de engendramento de seres, como “afirmações ontológicas do ser”  
e não enquanto meras determinações antropológicas, realizações de uma essência  
humana tomada a priori, de uma substância que se diferencia entre suas  
singularizações. Como atualização de determinações ontológicas, a atividade dos  
indivíduos se caracteriza por seu caráter de sensibilidade, sendo por isso, multifário e  
em constante mutação, encontrando sua plena realização através da grande indústria.  
Cognição e possibilidade de cognição se acham assim condicionadas e determinadas  
por cada forma particular de entificação humana, de apropriação da multidiversidade  
objetiva do mundo e da produção de si do ser social.  
Em suma, o humano e sua mundanidade são, pois, constituídos ativamente  
pelos próprios homens, o que resulta numa sensibilidade histórica e socialmente  
produzida, bem distante da exterioridade abstrata e sem conteúdo, certeza sensível  
como produção humana, bem como a sensibilidade de seu produtor. Portanto, o  
caráter objetivo e objetivante da atividade humana exigem como pressuposto e resulta  
na posição de uma concretude, diversa da sua face inicial, formatada subjetivamente,  
pelas forças humanas objetivas de exteriorização e produção. A natureza do ato assim  
decorrente entre sujeito e objeto colocando-os em comunicação, não obstante sem  
abolir a independência recíproca de tais instâncias, superando a exterioridade inicial e  
fazendo transmigrar as determinações essenciais entre as partes da relação prática. O  
que, por seu turno, resulta na negação da unilateralidade de posições entre sujeito e  
objeto, postulada tradicionalmente pela história do pensamento, no interior da qual o  
primeiro era fixado como interioridade racional/espiritual e o segundo como  
exterioridade inerte ou conjunto de impressões sensíveis e abstratas. A propositura  
marxiana indica um intercâmbio essencial entre as duas esferas, onde “a subjetividade  
é reconhecida em sua possibilidade de ser coisa no mundo, e a objetividade como  
dynameis – campo de possíveis”, ou seja, alçar da subjetividade ao nível da efetividade,  
da materialidade, do sensível, sem a intervenção de qualquer princípio transcendental  
ou ideal, pelo meio de interação com a mundanidade, na modificação desta última,  
através da potencialização da própria objetividade, e não sob a forma da oposição  
abstrata para com ela.  
Como consequência de todo esse desenvolvimento, a reflexão marxiana, como  
já afirmado anteriormente, situa a problemática do conhecimento em seu lugar próprio,  
como determinado pelo plano esboçado no quadro das determinações ontológicas do  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 443  
nova fase  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
ser social, dúplice objetividade, atividade sensível e autoefetivação de si, fato este  
evidenciado no modo mesmo como Marx encadeia a exposição sintética da questão  
em Ad Feuerbach, na sequência das teses em que supera explicitamente os limites da  
filosofia anterior e da cientificidade nela exposta e fundamentada. O saber não é o  
primeiro momento, mas a apreensão mesma das coisas, a efetivação da assimilação  
dos objetos conhecidos, bem como a dilucidação das características distintivas  
principais do ente ativo que executa o ato cognitivo.  
Chasin concebe o fecho de seu texto como “recopilação de testemunhos” acerca  
da “posição ontocognitiva” marxiana. O método marxiano como enfrentamento do  
indivíduo dotado de forças sociais de apropriação do mundo sem a interposição de  
qualquer critério ou instrumento ideal, prévio, que o organiza para a tarefa em tela. A  
não-certeza inicial como ponto de partida da obtenção da certeza e da elucidação do  
real em suas conexões íntimas. Método esse que se revelará adiante como o trânsito  
entre a posição e a negação da certeza sensível, uma vez que se começa daquela, mas  
não pode nela permanecer, pois desembocar-se-ia numa representação caótica do  
todo, como no caso da população, tomado por Marx na Introduçãode 1857.  
Retomando sinteticamente os termos já tratados anteriormente, Chasin reafirma que a  
partir desta é necessário fazer o “caminho ao inverso”, que é o “caminho  
cientificamente exato da concreção ou particularização; em suma, a rota seguida pela  
cabeça no desvendamento da lógica das coisas” (CHASIN, 2009, p. 222).  
É interessante notar que, para Chasin, o padrão marxiano de cientificidade se  
caracteriza pela “inexistência de qualquer tipo de antessala lógico-epistêmica ou  
apriorismo teórico-metodológico”, o que constitui o lado negativo ou expressão da  
propositura teorética de Marx, ou seja, da ausência de todo problema de uma  
fundamentação a priori do saber. Tal expressão, longe de desvelar-se como puro déficit  
ou lacuna, de outra parte, em sua positividade sustenta “a prioridade e a regência do  
objeto ou, mais rigorosamente, da coisa enquanto tal do entificado real ou ideal em  
sua autonomia do ato cognitivo – em todo processo do conhecimento” (CHASIN, 2009,  
p. 222). Desse modo, ato ideal e idealidade não podem ser tomados como atividade  
e produto autossustentados. A prioridade da coisa, em seu irremediável e  
incontornável por-si, que se afirmará, segundo Chasin, por toda obra marxiana o seu  
cunho distintivo, dos primeiros momentos, da crítica à especulação impulsionada pelo  
enfrentamento feuerbachiano do pensamento hegeliano, aos momentos derradeiros  
constantes das Glosas a Adolf Wagner. De passagem, é importante frisar que a  
Verinotio  
444 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
identificação assim feita do núcleo gerativo do pensamento marxiano interdita também  
a postulação de uma ruptura ou corte entre as fases de sua constituição.  
Praticamente colado ao texto da afamada Introduçãode 1857, Chasin afirma  
que produzir abstrações e expor o objeto, traçar o perfil de entificação do mesmo,  
ordenando o material recolhido na marcha da investigação efetiva, no corpo-a-corpo  
com o ente, não são compreendidos como atos puros ou formas a priori, mas como  
submissão ativa do sujeito à lógica intrínseca do objeto real. A produção de ideias  
revela aqui uma série de determinações essenciais compartilhadas com todas as outras  
formas de apropriação do real, num conjunto articulado de procedimentos de natureza  
ontológica e não epistêmico-metodológica.  
Por fim, retomando uma passagem do prefácio da edição francesa de O capital,  
na qual se lê “não há estrada principal para a ciência, e apenas aqueles que não temem  
a fadiga de galgar suas escarpas abruptas é que têm a chance de chegar a seus cimos  
luminosos”, Chasin indica a dificuldade como elemento constante e não eliminável do  
processo de escavação do real, seguindo a advertência marxiana de que não existe um  
caminho preconfigurado na trilha da verdade, não sendo possível a suposição nem a  
busca de uma chave que abra todas as portas, facultando-nos a apreensão segura e  
infalível do objeto. Dada a dupla determinação social, de um lado as condições sociais  
da cognição, e, de outro, a existência do objeto enquanto tal, não há método que  
garanta a completa e imediata acessibilidade aos nexos essenciais das coisas. Tornam-  
se patentes todas as consequências da afirmação de que não há em Marx, a rigor, uma  
questão de método; ou seja, a recuperação do rumo tracejado na apreensão da lógica  
das coisas, enquanto caminho do cérebro, é apenas de cunho descritivo, jamais pode  
pretender à prescrição metódica. Nesse contexto, cada entificação concreta teria seu  
método; cada destino, que somente existe como destino a ser alcançado, o verdadeiro,  
não dominado no início, tem sua própria rota.  
Em suma, a elaboração marxiana da problemática do conhecimento, de acordo  
com Chasin, tem três temas específicos e interligados:  
- a fundamentação ontoprática do conhecimento;  
- a determinação (gênese ou formação) social do pensamento e a presença  
histórica do objeto;  
- a teoria das abstrações e a analítica das coisas.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 445  
nova fase  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
Possíveis repercussões do livro  
Dentre as várias repercussões do livro, podem-se identificar pelo menos três,  
além das questões ontoprática e ontognosiológica. A primeira diz respeito às  
polêmicas geradas em torno dos assim chamados Manuscritos econômico-filosóficos  
de 1844; a outra, à descoberta polêmica realizada por Chasin acerca da natureza da  
política em Marx e a terceira às críticas dirigidas à Lukács.  
Um equívoco entre a multiplicidade daqueles cometidos em torno dos modos  
em que a obra de Marx foi recebida ao longo do século XX é partir dos Manuscritos  
parisienses, ignorando completamente a trajetória anterior, e tomá-los de pronto como  
“projeto filosófico”. Por outro lado, em plano bem mais largo: muitos o fizeram com  
Sartre e no seu rastro tem-se a crítica dos althusserianos. Vale como exemplo o livro  
em que Alain Badiou (1979) se pronuncia a respeito do problema em tela em termos  
de um “marxismo fundamental”, que teria como proposição básica uma antropologia  
centrada na noção multívoca de trabalho. Donde ainda, por vezes, o ser genérico  
apareceria como centro de uma antropologia, assim como, por via de consequência, a  
utopia da realização do ser genérico, e a própria política também viria a emergir como  
meio necessário de sua realização. Ao contrário: é facilmente constatável que o ser  
genérico já é hoje, na forma da alienação, não um dever-ser ou uma utopia a realizar,  
uma realização desalienada do ser genérico; não é, portanto, uma tarefa a cumprir,  
mas uma possibilidade objetiva no curso do desenvolvimento das forças produtivas e  
na transformação das relações sociais de produção com a consequente superação da  
apropriação privada dos bens de produção e da superação das formas de dominação  
daí decorrentes, ou seja, a superação do estado político.  
Embora a questão da metapolítica, expressão cunhada por Chasin, tenha sido  
objeto de outros escritos do autor, grande parte deles publicada pela Verinotio –  
Revista on-line de Filosofia e Ciências humanas sob forma de artigos e, também de  
livro, dada a importância da descoberta de tal caminho analítico acerca da politicidade  
em Marx, julgamos oportuno, no bojo do presente artigo, tecer alguns comentários a  
respeito sem, evidentemente, a pretensão de esgotá-lo, em virtude também de seu  
caráter altamente polêmico. Considera-se adequado, na medida em que nessa análise  
é exercitado o posicionamento ontológico frente à questão do estatuto da política.  
Texto marxiano fundamental nesse sentido foram as chamadas Glosas de 44 a  
Arnold Ruge. Nelas, Marx é contundente: não se pode esperar outra ação do estado  
diante das mazelas sociais que não seja administrativa. Chasin, desse modo, chama  
Verinotio  
446 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
atenção para a denúncia de Marx frente à tese de Ruge: exatamente por ser política  
tanto a posição da Inglaterra quanto da França, é que a miséria é, respectivamente,  
uma lei natural, uma disposição contrarrevolucionária dos proprietários e, no caso  
alemão, considerada pela falta de sentimento cristão dos ricos. Ademais, consigna que  
para Marx, já em 1844, é enganoso procurar entender um fenômeno social pela  
perspectiva do entendimento político; ressalta também a parcialidade da visão dos  
partidos: tudo é má administração e não se sonha com a reforma da sociedade isso  
exclui a tematização da transformação social ,ou seja, não veem os males no tipo de  
organização da sociedade, pois isso seria admitir sua impotência e nulidade.  
Por que o estado é impotente? Porque ele é determinado pelo caráter  
antissocial das formas da sociedade: ele é engendrado pela “natureza antissocial” da  
sociedade civil, por seus limites, contradições e fraquezas congênitas.  
O entendimento político é incapaz de se perceber como “expressão ativa,  
autoconsciente e oficial” da sociedade civil dilacerada e cindida entre vida privada e  
pública.  
É, portanto, vital nesse passo considerar a limitação do “entendimento político”  
pela via da determinação social do pensamento. No geral: é o entendimento posto  
pelas sociabilidades não emancipadas, incapazes de autonormatização, é o nível  
estreito e ilusório de racionalidade posto por sociedades intrinsecamente  
contraditórias e imaturas, cuja razão é da mesma natureza, ou seja, antissocial, isto é,  
anti-humana-societária. A política posta e exercida sobre o entendimento político é  
incapaz de ver a origem de sua estreiteza e impotência na fonte social que a engendra,  
donde a política é incapaz de senso autocrítico. A política é por natureza conservadora,  
é a conservação de si pela conservação de seus limites, limites que não pode ver e  
que deve supor inexistentes, vale dizer, para manter a ilusão de sua potência e  
universalidade. Desse modo é por excelência, e a história do século XX o comprova, o  
obstáculo objetivo e subjetivo da ascensão teórica e prática ao universo da revolução  
social. Não é casual que, ao final do século XX, com a dissolução da revolução, a  
política tenha reencontrado o ápice de sua ênfase. No particular: na pré-modernidade,  
com a identidade entre público e privado, sem, portanto, estado verdadeiro, a política  
é extensão do poder privado (propriedade privada em desenvolvimento), donde o  
entendimento político é a razão do estado privado; na modernidade, com a divisão  
total entre público e privado, a política é pura ilusão, a abstração real que parasita a  
sociabilidade; com a derrocada do Leste Europeu, em lugar de notar a falência da  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 447  
nova fase  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
política, notou-se a falência da pseudotransição para além do capital. Da pré-  
modernidade às pseudossociedades pós-capitalistas, tem-se, pois, o caminho do  
entendimento em termos do entendimento pré-político ao político: tanto mais  
plenamente ele se manifesta mais rombudo ele é. A falta de inteligência da  
pseudoesquerda atual é seu ponto culminante, isto é, o ponto mais raso do  
entendimento político, ao qual corresponde, sob várias formas e níveis, o marxismo  
vulgar, o oportunismo intelectual e a incompetência prática.  
Enfim, a unilateralidade do entendimento político está vinculada à posição de  
conferir prioridade à subjetividade, quando o processo do entendimento das relações  
da sociedade civil. Não há como negar: o entendimento político é fortemente vinculado  
à subjetividade à vontade, vale dizer, é o entendimento unilateralizado pela vontade,  
o olhar cego do interesse particular, e nessa unilateralidade base de todo oportunismo,  
desde o “espiritualismo” dos bem alimentados à voracidade de qualquer arrivismo. É,  
em suma, e de modo direto, promessa de realização do céu na terra pelo encantamento  
da manada de desvalidos. Base suposta dos grandes valores, é, em verdade, a  
plataforma do cinismo do desvalor, da esperteza egóica mascarada de generosidade  
ideológica. A hipóstase da subjetividade é a sagração do indivíduo isolado, reduzido  
à mesquinhez de seus próprios limites, incapaz de ver o outro a não ser como meio  
de realização de sua própria pequenez, incapaz de reconhecer os outros como forças  
sociais a integrar a si mesmos como forças pessoais, aos quais, reciprocamente, são  
disponibilizadas as forças pessoais a serem tomadas por eles, do mesmo modo, como  
forças igualmente sociais.  
De outra parte, na posição ontológica, o vínculo do entendimento é a  
objetividade, que se orienta e objetiva pela escavação do objeto real. Nessa posição o  
estado deixa de ser o lugar e o meio de realização da vontade tudo isso meramente  
um suposto da vontade, mesmo que racional para se revelar como expressão das  
contradições do conjunto da sociabilidade, da contradição configurada entre  
sociedade política e sociedade civil, e assim porque a própria sociedade civil é a  
pletora das contradições entre os interesses particulares ou particulares. O estado é,  
pois, a expressão da miséria humano-societária na verdade de sua impotência, isto é,  
expressão de sua incapacidade de autorregulação.  
Donde, segundo Chasin, Marx não desconfia do entendimento em geral, mas  
distingue formas do entendimento, diferentes em qualidade e alcance, não desliza pelo  
plano inclinado do ceticismo, mas ascende aos patamares efetivos da intelecção, ao  
Verinotio  
448 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
lugar e ao modo pelos quais se realiza e confirma. Distingue entre entendimento  
político, limitado pela subjetividade volitiva, e entendimento social, de qualidade  
ontológica, ou ontologicamente posicionado, donde levar ao ordenamento da  
subjetividade, à confirmação desta em sua natureza, e não à sua hipóstase  
desfiguradora e emasculadora.  
Assim, o entendimento político é o mais ralo e viciado dos entendimentos  
porque parte da subjetividade em seu isolamento “fantástico”. Em oposição, o  
entendimento social é o mais elevado porque é desvelamento objetivo que dá forma  
e conteúdo à subjetividade. Enquanto o primeiro é simples e grosseira manifestação  
de vontade, o segundo é descoberta e perspectivação. Enquanto o primeiro cega e  
ilude, o segundo esclarece, orienta e mobiliza. Enquanto o primeiro é a dogmática do  
querer unilateral, o segundo é a possibilidade da crítica universal.  
Ou ainda, o primeiro é meio de ilusão de si e dos outros(as) em face do  
dominado, faculdade pela qual a dominação é justificada e disfarçada; e (b) em face de  
si mesmo, autoilusão como meio de legitimação do exercício da dominação ou da  
pretensão à dominação. Em ambos os casos, a sociedade política realizada (ou seja, o  
estado) é apresentada como a contrapartida ideal da sociedade civil, a razão contra a  
desrazão, a justiça contra a injustiça, o altruísmo contra o egoísmo, o coletivismo  
contra o individualismo, a conduta ética contra a conduta do interesse pessoal e  
privado, o exercício da convivência ou ordenamento social negociado contra a  
coexistência ou ordenamento imposto; em suma, o consenso em torno da contradição  
amordaçada e congelada. Note-se a perversão: a idealidade conduz à acomodação; na  
melhor das hipóteses, à redução da idealidade ao pragmatismo: da universalidade da  
razão e da liberdade à existência reduzida à mesquinharia da vida inautêntica; é a  
democracia como pobreza de espírito. Nada de estranho, porque política e  
entendimento político são pobreza de espírito, nas quais a democracia é apenas sua  
expressão mais alta, completa e acabada; é a forma e o entendimento políticos levados  
à expressão e significado últimos.  
Ao revés, a posição ontológica, sempre de acordo com Chasin, chega ao estado  
como expressão do conflito social e à democracia como contradição desmascarada; a  
democracia não como um valor, muito menos como um valor universal, mas como uma  
forma cuja virtude está na revelação da realidade social como contradição inaceitável,  
que é preciso criticar, recusar e superar, não por formas políticas, mas contra a forma  
política que a sustenta: a democracia se realiza ao se mostrar como petição de sua  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 449  
nova fase  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
superação.  
Ou seja, a posição ontológica pelo desvendamento do real conduz à revolução  
social à subversão da sociedade civil (não à sua organização, mesmo porque ela já  
está perfeitamente organizada), ou seja, à transformação da forma das relações de  
produção.  
Aqui e agora, cabe determinar a relação entre revolução social e política. É  
social porque dissolve a velha sociedade; política porque derruba o velho poder a  
tarefa negativa. Ao remanso do aquário da política Marx oferece o oceano encapelado  
da revolução humano-societária. De sorte que afirmação da política ou irreflexão  
constitui uma relação intrínseca; vale dizer que desenvolvimento e afirmação do estado  
e acriticismo são momentos da unidade indissolúvel entre estado e alienação, pois  
estado e escravidão são inseparáveis”. Nesse sentido, a democracia enquanto  
contradição desmascarada é a denúncia ou desmascaramento da escravidão do estado,  
e enquanto tal a petição de sua superação.  
Além da tematização ontonegativa da politicidade, é válido neste ponto –  
evidentemente nos limites desta apresentação fazer referência a uma questão que,  
embora não tenha sido analisada em todos os seus aspectos no livro, se configura  
como a preocupação central do autor. Não por mero capricho ou opção aleatória, mas  
por se tratar de problema que as páginas da obra marxiana revelam.  
A formação social da individualidade  
Segundo Chasin, a grande tematização da individualidade está presente em  
Marx, vale dizer, os indivíduos sociais, a individuação, a formação social da  
individualidade. E isso a despeito de todas as negativas das interpretações que estão  
e estiveram em voga, no mundo acadêmico e nas agremiações políticas.  
Nesse sentido, é lícito afirmar que várias correntes do marxismo, não  
reconheceram a importância do problema, relegado que foi à condição de resquício  
da assim chamada fase de juventude de Marx, condenado, portanto, à recusa  
permanente em nome do cientificismo. Por via de consequência, trata-se de um tema  
que,  
no mais das vezes, encontrou, mesmo em autores marxistas de  
extrema relevância e competência intelectual comprovada, certo  
desentendimento. Para alguns, o problema da individualidade foi uma  
interrogação marxiana pertinente nos seus primeiros momentos, ditos  
do “Jovem Marx”, mas que se esgota na medida em que seu  
pensamento perfaz o caminho à ciência. Seria então o problema da  
Verinotio  
450 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
individuação um tema “filosófico”, uma preocupação abstrata, que  
desaparece no desenvolvimento da obra marxiana propriamente  
científica. Esta posição comparece, grosso modo, na contraposição de  
uma pretensa “antropologia” marxiana exercitada até 1847, e a  
inauguração de uma dada forma de cientificidade com os escritos da  
maturidade. Para outros comentadores, a categoria da individualidade  
nem sequer se constitui em problema ou objeto de preocupação para  
Marx, ressoando este tão-somente como eco fugaz e incongruente  
com o corpus marxiano (ALVES, 1999, pp. 255-6).  
Trata-se, contudo, de problema vital para o renascimento do marxismo, para  
utilizar a expressão cara a Lukács.  
A esse propósito, Chasin em texto inacabado, publicado postumamente, é  
veemente ao afirmar que posto e reposto em marcha, nas distintas formas de  
sociabilidade e com impulsões mais largas ou estreitas, isto é,  
[...] mais ou menos indutoras ou restringentes do processo de  
individuação, este é, positiva e negativamente, revolucionário. Em sua  
positividade estrutural de longo curso, gera, alarga e qualifica o  
complexo categorial do humano, realiza em dada medida a potência  
desse ser aberto; em suas vicissitudes concretas, no curso efetivo de  
tempos históricos delimitados, se apresenta contraditoriamente, não  
só como restrito mas corruptor de latências contidas na figura dessa  
’abertura’ em vir a ser. Tal como referido por Marx, a individuação vem  
sendo produzida na forma da alienação edifica, faz emergir, bem  
como tolhe e desnatura. Sob todas essas dimensões, positivas e  
negativas, no entanto, a individualidade é estabilidade evanescente,  
compelida à mudança, a transformações constantes, por vezes mais  
rápidas e imperiosas, outras mais lentas e deliberadas, mas  
individuação é assentamento tensionado, para o qual mutação e  
diferencialidade são uma constante. Desde o simples aspecto da  
diversidade de papéis que todo indivíduo desempenha em cada dia  
de sua existência cotidiana, até as mutações dramáticas que dele são  
exigidas pela sociedade civil em suas inflexões, bem como pelos  
andamentos da participação política. Tudo isso compreendido em  
formas sociais que alargam ou estreitam, exaltam ou sepultam toda  
ordem de valores, e ainda sob a dinâmica compreendida e  
propugnada pelo existir, sentir e pensar dos indivíduos, de suas  
satisfações e repulsas, em suma a propensão em ser mais em se  
autogerir. Como ninguém traz amarrado ao peito o embornal de sua  
essência, essa se faz, desfaz e refaz como revolucionamento  
permanente de ser indivíduo (CHASIN, 2017, p. 29).  
Por via de consequência a subjetividade propriamente dita provém da atividade  
humana exercitada. Ou seja, ela se põe na medida em que a mundanidade humana é  
posta ou, ainda, a subjetividade se realiza pela mediação da atividade sensível,  
objetivamente realizada.  
De modo que, conclusivamente, a subjetividade propriamente dita depende da  
atividade humana e esta depende daquela. Cada uma delas só é mediante a outra. Ou  
seja, efetivamente postas/presentificadas ou em ato, são dimensões que, para serem  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 451  
nova fase  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
realmente, o são no interior do complexo relacional objetividade/subjetividade  
(humanas ou sociais). Assim, portanto, objetividade e subjetividade humanas estão em  
determinação recíproca.  
De sorte que a subjetividade não é um ser, mas um predicado do ser  
social/humano. Não é uma existência autônoma, independente de um ser. Autonomizar  
a subjetividade (e seus produtos ideais) é transformá-la em “substância mística”,  
prebenda divina ou idealidade natural.  
Ademais, o princípio ou suposto da autonomia da razão invalida a autonomia  
do homem. Ou seja, separa o homem por consequência, a razão da autonomia  
possível (determinada em cada momento) e virtual (potência infinita e crescente de  
objetivação enquanto tal).  
Enfim, a subjetividade determina a objetividade quando faz dessa um “objeto  
de sua vontade e de sua consciência”, nas palavras de Marx. A objetividade determina  
a subjetividade enquanto base e fundamento sobre a qual aquela pode atuar e se  
desenvolver.  
Em Marx Chasin o mostra põe-se um interfluxo entre subjetividade e  
objetividade: no interior dela o ser humano adquire a sua plena subjetividade, isto é,  
na relação com a objetividade. Nesse processo, ao mesmo tempo complexo e  
contraditório, em que pela mediação progressiva da atividade e da sociedade, o ser  
humano se torna objeto para si mesmo.  
Os limites teóricos de Lukács a dialética da particularidade  
Não se deve deixar em segundo plano, ou mesmo esquecer da crítica de Chasin  
a Lukács, muito embora este último tenha exercido não apenas influência nos escritos  
do primeiro, mas sobretudo por ter identificado o caráter ontológico do pensamento  
de Marx.  
Muito mais deleitante seria cobrir com o véu do esquecimento esse importante  
capítulo do livro. Mas, o fato é que, embora Chasin reconheça plenamente o papel que  
a obra tardia de Lukács cumpriu para o devido desvelamento e resgate da questão  
ontológica em geral e em Marx em particular, ele não abriu mão de tecer sérios  
comentários críticos, principalmente, no que diz respeito às questões de ordem lógico-  
metodológica. As ressalvas recaem mormente sobre o fato de Lukács não ter  
reconhecido a existência de uma teoria das abstrações em Marx, tarefa para qual  
Chasin envidou vários esforços no sentido oposto ao longo de várias páginas do livro.  
Verinotio  
452 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
O resultado desse empenho, como vimos, evidencia o amparo da referida teoria em  
um tracejamento de caráter ontológico, o que evita e impede que a pesquisa sobre  
Marx seja inspirada por matrizes teóricas estranhas à sua obra.  
Ora, de acordo com Chasin, dada a ausência de tematização sobre a teoria das  
abstrações, Lukács incorre no procedimento contrário, ou seja, lança mão da dialética  
do universal, particular e singular, segundo Chasin, “uma lógica de inspiração  
extrínseca à obra marxiana” (CHASIN, 2009, p. 140).  
Ressaltando tratar-se de tema surgido em seus trabalhos voltados à estética,  
em primeiro lugar sobre a forma do livro Introdução a uma estética marxista, e,  
posteriormente como capítulo 12 da Estética, Chasin sublinha que Lukács não retornou  
ao tema em sua obra postumamente publicada, isto é, Para uma ontologia do ser  
social, o que é deveras sintomático.  
O livro publicado inicialmente em 1956 contém um amplo painel histórico da  
questão da particularidade desde Platão e Aristóteles até Hegel, passando por  
Espinosa e, especialmente Kant. Mas, independentemente, das conclusões que o  
filósofo chega a respeito de como foi tratada a categoria pelos principais expoentes  
da história da filosofia, é sobretudo Hegel que merece destaque, por ter sido  
o primeiro pensador a colocar no centro da lógica a questão das relações  
entre singularidade, particularidade e universalidade, e não apenas como um  
problema isolado, mais ou menos importante ou mais ou menos acentuado,  
mas como questão central, como momento determinante de todas as formas  
lógicas, do conceito, do juízo e do silogismo (LUKÁCS apud CHASIN, 2009,  
p. 150).  
Conquanto, como era de se esperar, dirija ao filósofo alemão sérias restrições  
devido à sua postura idealista, em várias oportunidades no texto analisado por Chasin,  
Lukács insiste em não apenas salientar os seus avanços em relação ao problema em  
tela, mas também em afirmar que o “pensamento hegeliano” seja a “tradução filosófica  
da realidade histórico-social”, quando se trata de “certas tematizações específicas”  
(CHASIN, 2009, p. 151). Tal predicado permite que, do ponto de vista lógico, seja  
possível identificar a presença de uma “dialética histórica ou lógica de novo tipo [...]  
uma lógica de conteúdos da realidade (CHASIN, 2009, p. 156).  
Condicionada à brevidade, a exposição aqui pretendida não possui por escopo  
o detalhamento do argumento chasiniano na sua íntegra, sendo o que basta nesse  
passo, chamar a atenção do leitor para o fato que Lukács, no livro em pauta, não  
obstante sublinhe as debilidades da filosofia hegeliana, não deixa, por isso, de  
reconhecer sua lógica “como lógica da realidade [...]” e, por conseguinte, a lógica  
hegeliana é compreendida pela “dialeticidade entre universal, particular e singular”  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 453  
nova fase  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
(CHASIN, 2009, p. 159).  
Na continuidade do livro, encontram-se menções e análises de parte de Lukács  
a respeito da doutrina do conceito, que lhe serve de base para discernir os erros e  
acertos de Hegel, contudo sempre ressalvando a importância do filósofo alemão para  
os avanços da tríade em questão. Chasin é taxativo ao afirmar que, a partir de tais  
considerações, se torna nítido, na propositura lukacsiana, o reconhecimento de um  
lugar especial consignado à lógica. Mas o seu caráter problemático não se reduz a  
isso. Lukács ao atribuir a “validade operatória” da lógica em todo e qualquer “corpus  
teórico”,  
deixa entrever que, de algum modo, Marx está ou poderia estar, em  
última análise, apoiado numa lógica enquanto sustentação operatória  
de sua prática científica, ou, pelo menos, que uma lógica poderia  
legitimar as formas de sua reflexão. Em verdade, trata-se de um  
problema não resolvido em Lukács e condicionado pelas  
contingências de seu próprio desenvolvimento intelectual (CHASIN,  
2009, p. 165).  
O dilema de Lukács se encontra, portanto, em esclarecer os andamentos das  
análises de Marx, que lhe proporcionam elementos fundamentais para a crítica da  
universalidade em Hegel, em especial “a sua generalização indevida”, como também a  
presença da categoria da particularidade, cujo papel pode ser identificado como  
“delimitando a universalidade ou mediatizando o singular”, e enfim, “a particularidade  
é o instrumento do processo determinativo” (CHASIN, 2009, p. 175).  
Reconhecendo a validade do esforço lukácsiano em rejeitar tanto a “divinização  
do universal” presente nas tendências idealistas subjetivas, quanto a “singularidade  
pura”, característica do irracionalismo, Chasin, no entanto, identifica um passo analítico  
problemático no texto lukácsiano, em parte, já criticado anteriormente pelo filósofo  
paulistano, por ter meramente intitulado a última parte do livro como “A  
particularidade no materialismo dialético”, ao invés de intitulá-lo explicitamente com o  
nome de Marx, assim como ele procede nas partes integrantes do livro até aquele  
momento, pois que para cada autor analisado o título do capítulo figura com o  
respectivo nome. Tal lapso não se dá por acaso. O passo analítico a que me refiro,  
seguindo o caminho de Chasin, diz respeito a  
um fato novo, decisivo em seu significado essencial para questionar e  
recusar o núcleo da tese sustentada no escrito: quanto mais  
estritamente lógico vai se tornando o discurso lukácsiano, tanto  
menos ele se ampara em elementos teóricos e, por conseguinte, em  
citações diretas da obra marxiana, até que estas desaparecem por  
completo dos enunciados (CHASIN, 2009, p. 176).  
Verinotio  
454 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
Segundo Chasin, o defeito passível de ser identificado no argumento de Lukács  
se encontra, portanto, no âmbito da “teoria ou determinação da particularidade, muito  
especificamente, da tese ou interpretação que busca estabelecer um vínculo lógico  
entre Marx e Hegel, os elos entre a elaboração lukacsiana e o pensamento expresso  
por Marx se dissolvem radicalmente” (CHASIN, 2009, p. 176). A impossibilidade de  
estabelecer tal relação de ordem lógica se justifica tendo em vista que inexistem  
escritos probantes de Marx nesse sentido, muto ao contrário. Ainda de acordo com  
Chasin “os pronunciamentos marxianos a respeito desautorizam essa velha hipótese”  
(CHASIN, 2009, p. 177).  
Que Lukács tenha evidenciado o “caráter particularizador da reflexão marxiana”  
isso é certo, o problema reside no objetivo de “estabelecer um denso vínculo lógico  
entre Marx e Hegel, exatamente porque não há como ligar esses dois autores no plano  
lógico, por meio de arrimos textuais diretos, não só porque esses efetivamente  
inexistem” (CHASIN, 2009, pp. 176-7).  
Para além disso, vale insistir, dada a inexistência de textos de Marx que  
poderiam comprovar sua hipótese, Lukács parte para o que Chasin afirma ser um  
“pensamento desiderativo”, ao lamentar o fato que Marx não realizou seu plano de  
demonstrar o que há de racional na obra de Hegel, projeto cujo único testemunho se  
encontra na carta a Engels de 1858 (CHASIN, 2009, p. 177).  
Ainda nesse mesmo diapasão, ou seja, buscando na obra de Marx possíveis  
passagens que confirmem sua hipótese, Lukács acaba por confundir “método de  
pesquisa e método de exposição”, ao pretender que a dedução da forma do valor,  
presente no capítulo 1 de O capital possua como substrato a lógica hegeliana (CHASIN,  
2009, p. 177). Tal formulação acaba por gerar a “conclusão [de] que a processualidade  
global da realidade econômica é silogística” (CHASIN, 2009, p. 184).  
Chasin, por fim, demonstra o caráter insustentável da hipótese lukacsiana, mas  
denuncia também o modo como o filósofo húngaro se deteve nos “clássicos do  
marxismo”, ou seja, Engels e Lênin, com o fito de buscar amparo para reforçar a tese  
do “vínculo lógico”. Para isso, nosso autor dedica um sem-número de páginas para  
denunciar que o que verdadeiramente está em jogo nesse caso específico, ao Lukács  
tomar determinadas passagens de Engels e Lênin como suporte, é a  
exterioridade desse problema em relação às resoluções marxianas,  
operada no desconhecimento destas e sob a premência de gerar  
respostas na guerra científica e filosófica. Em poucas palavras, é a  
exterioridade em face da obra marxiana, do complexo problemático  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 455  
nova fase  
Ester Vaisman; Antônio José Lopes Alves  
do conhecimento tomado sob o caráter e a feição em que este se  
manifestou e fixou no universo científico-filosófico extramarxiano, [...]  
ou seja, a maré montante da questão gnosiológica, que acabou por  
ocupar todos os espaços, responderam ao desafio incorporando o  
problema sob forma em que Marx o havia repelido e superado  
(CHASIN, 2009, p. 190).  
O autor do Estatuto, evidentemente, não tem como pretensão igualar certas  
impropriedades, principalmente no livro de Lukács de 1956, a outros autores que  
cometeram erros de maior monta ao introduzir conteúdos de caráter explicitamente  
gnosiológico, e, consequentemente, nitidamente extrínsecos à letra de Marx. E  
exatamente por esse motivo é que dedica algumas linhas a explicar as razões desses  
problemas recorrendo a certos aspectos do itinerário intelectual de Lukács desde sua  
fase pré-marxista, e passando, inclusive, por História e consciência de classe. De  
acordo com Chasin, “foi uma longa trajetória, uma procura árdua que cultivou  
incongruências e que não findou isenta de irresoluções e equívocos” (CHASIN, 2009,  
p. 192).  
Se levarmos em consideração que foi somente com cerca de 70 anos que  
Lukács publica a Estética, em que a questão ontológica finalmente perpassa as suas  
páginas, ainda é possível, no entanto, identificar a presença de tematizações de ordem  
gnosiológica. Trata-se do capítulo 13 em que o filósofo húngaro trata da categoria do  
em-si que “não é reconhecido ontopraticamente como atividade sensível, mas admitido  
como figura epistemológica em sua máxima abstratividade, a partir da qual [...] é  
processado o acesso científico ao concreto” (CHASIN, 2009, p. 193).  
A denúncia chasiniana é grave pois coloca em xeque tanto a assim chamada  
dialética do universal, do particular e do singular, testemunha da posição lukacsiana  
do vínculo lógico com Hegel, quanto da presença de preocupação com o método  
científico a priori uma estrita preocupação gnosiológica, portanto quando o autor  
húngaro, no capítulo 13 de sua Estética, busca fundamentar o reflexo científico no em-  
si gnosiológico. Ocorrências espantosas para quem, em sua obra postumamente  
publicada defende de forma aguerrida a presença de uma ontologia em Marx. Chasin  
não menospreza essa conquista, mas chama a atenção para a resolução parcial. No  
final Chasin como que reconhece a vitalidade da abordagem final a que chega Lukács2.  
2
No nosso ponto de vista, a leitura dessas páginas críticas é de vital importância, pois há aqueles  
leitores de Lukács mais apressados, que estacionam seja no livro Introdução a uma estética marxista  
ou, no capítulo 13 da Estética (esses últimos são minoria, dada a dificuldade do texto!) e esquecem de  
prosseguir a leitura até a Ontologia. Para tais leitores, no primeiro caso, Lukács teria defendido a  
existência de uma dialética da universalidade, particularidade e singularidade enquanto o método de  
Verinotio  
456 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx  
Trata-se enfim, “de uma crítica a Lukács a partir de Marx, gerada pela inspiração ou a  
própria mediação do último Lukács” (CHASIN, 2009, p. 203).  
Referências bibliográficas:  
ALTHUSSER, L. Por Marx, Campinas, Editora da UNICAMP, 2015.  
ALVES, A. J. L. A individualidade nos Grundrisse de Karl Marx. 1999. Dissertação  
(Mestrado em Filosofia) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da  
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.  
BADIOU, A. O (re)começo do materialismo dialético. São Paulo, Global,1979.  
CHASIN, J. Marx - Estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo,  
Boitempoeditorial, 2009.  
CHASIN, J. “A determinação ontonegativa da politicidade”, Verinotio-on line- Revista  
de filosofia e ciências humanas, n. 15, Ano VIII, abr./2013, ISSN 1981-061X  
CHASIN, J. “Excertos sobre revolução, individuação e emancipação humana”. Verinotio  
- Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. Ano XII.  
abr./2017. v. 23. n.1.  
CHASIN, J, O futuro ausente. Obra reunida, Verinotio Livros, Ebook, 2023.  
FEUERBACH, L. A essência do cristianismo, Petrópolis, Editora Vozes, 2007.  
KAUTSKY, K. As três fontes do Marxismo, São Paulo, Ed. Centauro, 2004.  
LÊNIN, V. “Karl Marx” As três fontes e as três parte constitutivas de Marxismo. São  
Paulo, Global, 1988.  
LUKÁCS, G. Introdução a uma estética marxista, R.J., Civilização Brasileira,1978.  
LUKÁCS, G. “Os princípios ontológicos fundamentais de Marx”. Para uma ontologia do  
ser social, vol. I, São Paulo, Boitempo editorial, 2012.  
MARX, K. Prefácio para a contribuição da crítica à economia política” (1859), São Paulo,  
Abril Cultural, 1974, Coleção Os Pensadores, v. 35.  
MARX, K. Crítica à filosofia do direito de Hegel, São Paulo, Boitempoeditorial, 2005.  
MARX, K. “Glosas críticas ao artigo ‘o Rei da Prússia e a reforma social. Por um  
prussiano’”, em Lutas de classes na Alemanha, São Paulo, Boitempoeditorial, 2021,  
VAISMAN, E. “Dossiê Marx: itinerário de um grupo de pesquisa”, Verinotio on line –  
Revista de Filosofia e Ciências Humanas, Nº 4, Ano II, abril de 2006.  
VAISMAN, E. “Marx e Lukács e o problema da individualidade: algumas aproximações”.  
Perspectiva, Florianópolis, v. 27, n. 2, 441-459, jul./dez. 2009.  
Vv.Aa. 30 anos de "O Futuro Ausente" Verinotio nova fase ISSN 1981-061X v. 28, n.  
1, 2º.sem. 2022/1º. sem.2023.  
Vv.Aa.- A crítica da razão política: revisitada; Revista Verinotio ISSN1981-061X; n. 1,  
2013.  
Como citar:  
VAISMAM, Ester; ALVES, Antônio José Lopes. J. Chasin e o estatuto ontológico de Marx.  
Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 431-457; jul.-dez., 2024.  
Marx para explicar as formações sociais concretas até o final da vida, e, no segundo, seria uma espécie  
de kantiano “arrependido”.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 431-457 jul.-dez., 2024 | 457  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.737  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento  
de um ponto de partida  
On Pachukanis, Pachukanians and  
the exhaustion of a departure point  
Vitor Bartoletti Sartori*  
Resumo: neste artigo, pretendemos demostrar  
que a crítica marxista ao direito precisa ir além  
de Pachukanis e do horizonte consolidado pelos  
pachukanianos no Brasil. Primeiramente, isso  
ocorre porque os propósitos do autor de Teoria  
geral do direito e o marxismo eram muito mais  
ambiciosos que os realizados em seu livro. Em  
segundo lugar, não é possível ter a obra de 1924  
como referência à moda dos pachukanianos, já  
que mesmo os expoentes mais competentes da  
crítica marxista que têm por base o jurista  
soviético se apegam à exposição incompleta da  
obra centenária. Intentamos explicitar que obra  
do jurista soviético é indissociável da Revolução  
Russa e de seu destino trágico, razão pela qual  
não há como retomar a obra do autor sem as  
devidas mediações, críticas e cuidados. É  
necessário, portanto, avançar rumo a uma crítica  
ao direito que tenha grandes expoentes do  
marxismo como base, como György Lukács.  
Abstract: In this article, we would like to  
demonstrate that the Marxist critique of Law  
needs to go beyond Pachukanis and the horizon  
consolidated by Pachukanians in Brazil. Firstly,  
it is necessary because the purposes of the  
author of the General theory of Law and  
Marxism were much more ambitious than those  
realized in his book. Secondly, it is not possible  
to have a work from 1924 as the main reference  
to the field, since even the most competent  
exponents of Marxist criticism that are based on  
the Soviet jurist unilaterally cling to the  
incomplete exposition of the century-old work.  
Finally, we try to explain that Pachukan's work  
is inseparable from the Russian Revolution and  
its tragic destiny, which is why it is not possible  
to revisit the author's work without due  
mediation, criticism and care. The Marxist critic  
of Law can progress if we study the great  
Marxists such as György Lukács.  
Palavras-chave: Pachukanis; Teoria geral do  
direito e o marxismo; crítica marxista ao direito;  
Lukács.  
Keywords: Pachukanis; General theory of Law  
and Marxism; Marxist critic of Law; Lukács.  
Introdução  
Para abordar a crítica marxista ao direito, iniciaremos indicando o modo pelo  
qual sobressai na atualidade a influência pachukaniana (e simultaneamente  
althusseriana) a partir de autores como Márcio Naves e Alysson Mascaro. Nessa esteira,  
também procuraremos destacar os ganhos dessa tradição, bem como suas limitações.  
Em um segundo momento, avançaremos para uma análise mais abrangente, em que  
intentaremos analisar a obra do próprio Pachukanis para deixar claro o projeto do  
* Mestre em história social pela PUC-SP, doutor em filosofia e teoria geral do direito pela USP, professor  
da UFMG. E-mail: vitorbsartori@gmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
autor, bem como a incompletude (e, portanto, a insuficiência) de seu livro centenário,  
Teoria geral do direito e o marxismo. Somente depois de delineadas essas  
determinações, buscaremos lançar luz sobre o que acreditamos serem aporias da  
crítica marxista ao direito contemporânea para, por fim, comparar as concepções de  
forma jurídica e fenecimento do direito em Pachukanis e na obra tardia de Lukács,  
principalmente em Para uma ontologia do ser social e nos Prolegômenos para uma  
ontologia do ser social.  
Nosso objetivo é realizar um balanço da crítica marxista ao direito hegemônica  
no Brasil. Ao mesmo tempo, porém, pretendemos colocar em xeque a posição segundo  
a qual uma crítica ao direito necessariamente parte da obra pachukaniana de 1924.  
A recepção althusseriana de Pachukanis no Brasil e o papel de Naves na crítica  
ao ecletismo dos juristas marxistas  
É preciso ser claro e dizer que Pachukanis não aborda com fôlego e de modo  
explícito e detido temas fundantes para a tradição marxista. Isso não diminui a  
importância de sua obra, mas direciona-a a contribuições de duas naturezas: a  
primeira, circunstancial e ligada ao contexto histórico da Revolução Russa, presente  
em diversos artigos do autor, como aqueles publicados recentemente no Brasil sob o  
título de O marxismo revolucionário de Pachukanis. A segunda está relacionada ao  
desenvolvimento de uma crítica marxista à teoria geral do direito, tal qual aquela de  
sua obra magna, de seus textos sobre o direito internacional e de outros artigos de  
sua autoria. O resultado é um corpus interessante e essencial para os que pretendem  
estudar a crítica marxista ao direito. O autor, portanto, é leitura obrigatória para  
aqueles que intentam compreender a esfera jurídica. Entretanto, o outro lado dessa  
feição dos escritos pachukanianos está no fato de eles não possuírem o mesmo  
estatuto da obra de grandes autores da época e que são referência até hoje, como  
Lênin, Trótski, Gramsci, Rosa Luxemburgo ou Lukács. Esses revolucionários do começo  
do século XX explicitaram suas interpretações sobre Marx, o marxismo, a dialética de  
modo mais global e nunca fincaram seus pés em um campo específico do  
conhecimento, como o de uma pretensa ciência do direito. O apelo desses autores é  
mais universal e, quanto eles abordam as circunstâncias, suas posições ficam mais  
claras, pois há uma unidade entre os diversos níveis de suas exposições.  
Pachukanis, por outro lado, não desenvolve uma tradição própria de  
interpretação dos textos marxianos. Porque se considera como parte de um movimento  
mais amplo, o marxismo revolucionário do começo do século XX, o autor de Teoria  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 459  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
geral do direito e o marxismo muitas vezes toma questões que hoje são muito  
discutidas como resolvidas pelos clássicos do marxismo, essencialmente, Marx, Engels  
e Lênin. Método, relação entre forças produtivas e relações de produção, reificação,  
fetichismo da mercadoria, teoria do valor, por exemplo, não são tratadas  
separadamente de crítica pachukaniana ao direito e à teoria geral do direito. Isso  
redunda em uma teorização rica, certamente, mas incapaz de colocar-se no mesmo  
patamar de autores da época, como os mencionados acima, ou mesmo como Karl  
Korsch. E, nesse sentido, não há como desenvolver uma tradição pachukaniana  
autônoma e cujos fundamentos metodológicos estejam somente no autor soviético e  
em sua leitura da obra de Marx. O resultado é nunca ser possível a existência de um  
“pachukaniano puro” pois sempre são necessários complementos.  
Tal fato levou os seguidores de Pachukanis a buscar referências, por assim  
dizer, suplementares. No Brasil, intentou-se uma leitura da obra do jurista soviético,  
principalmente, a partir da tradição erigida por Louis Althusser. A fim de evidenciar a  
influência mencionada, vale apontar que a crítica marxista ao direito brasileira, hoje,  
tem à frente as figuras de Márcio Naves (Unicamp) e Alysson Mascaro (USP), marxistas  
que podem ser considerados como simultaneamente althusserianos e pachukanianos.  
Embora ambos os autores possuam diferenças, tanto de envergadura teórica,  
quanto no tipo de abordagem, eles têm um ponto em comum: tomam como premissa  
que Evgeny Pachukanis é o principal marxista a tratar do direito no século XX. No  
Brasil atual, portanto, abordar a crítica marxista ao direito tem significado amparar-se  
nessas bases. Não obstante, a questão nem sempre se manifestou desse modo e, por  
isso, é necessário explicitar os méritos da leitura dessa tradição diante daquilo que lhe  
precedeu.  
Cumpre assinalar a mudança de postura diante do direito por parte dos  
marxistas nacionais depois dos primeiros anos de 2000, quando da publicação de  
Marxismo e direito, de Márcio Naves, justamente no ano de 2000. Tal livro disserta  
sobre a obra pachukaniana e seu vínculo com o desenvolvimento da Revolução Russa.  
O autor brasileiro também situa o debate do jurista soviético no interior do marxismo  
e do contexto revolucionário do século XX. Por conseguinte, em direito e marxismo,  
mesmo que tardiamente, realiza-se uma introdução cuidadosa do pensamento  
pachukaniano no cenário brasileiro. Depois da publicação da obra de 1924 em  
português, em 1988, foi Naves que se debruçou com cuidado e com fundamentação  
filosófica (althusseriana) e histórica digna de tal nome sobre a obra do autor  
Verinotio  
460 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
soviético, cuja análise forjou a principal referência para a crítica marxista ao direito  
contemporânea. Assim, aquilo muito raro nos estudiosos do direito, uma  
fundamentação histórica e filosófica coerente, está presente na abordagem do autor  
de Direito e marxismo, o qual formou grande parte da geração contemporânea dos  
marxistas dedicados à crítica ao direito.  
Nesse sentido, a obra de Naves é um marco porque antes dela a abordagem  
nacional sobre a relação entre marxismo e direito guardava marcas bastante ecléticas  
e carentes de fundamentos sólidos. Autores como Roberto Lyra Filho (1983) não  
tardavam a propor leituras demasiadamente livres, poéticas e líricas do texto de Marx.  
Com base nisso, as interpretações e as construções teóricas mais ou menos ousadas  
sobre o autor de O capital intentavam abordagens das mais diversas (e criativas) sobre  
o direito. Nelas, não raro, o verniz marxista foi utilizado para defender lugares comuns  
da filosofia do direito, e dos assim chamados juristas progressistas. Foi usual, por  
exemplo, o entendimento segundo o qual o ponto essencial sobre a esfera jurídica  
estaria no conceito de justiça e na valorização pretensamente socialista e marxista –  
dessa categoria.  
Na tradição pretérita a Naves, ao invés de vasculhar a justiça nos textos de  
Marx, de Engels ou nos clássicos do marxismo, as premissas supostamente marxistas  
foram os topoi inerentes a certa representação e visão de mundo jurídicas. A desfecho  
foi que houve juristas com certa inspiração, vontade e apelo autoproclamados  
marxistas. Mas uma tradição marxista de crítica ao direito e ao capitalismo esteve  
absolutamente ausente.  
A esse respeito, sobre o conceito de direito, Lyra Filho afirma que “as relações  
entre direito e Justiça constituem aspecto fundamental de nosso tema e, também ali,  
muitas nuvens ideológicas recobrem a nua realidade das coisas” (LYRA FILHO, 1982,  
p. 8). Ou seja, uma abordagem como essa a não ser por um uso discutível da noção  
de ideologia1 passa longe do texto de Marx, em que se constata a presença de uma  
crítica ferrenha à noção de justiça, em textos fundamentais como: Miséria da filosofia,  
ao tratar da justiça eterna; o Livro I de O capital, em que se analisa o justo valor da  
mercadoria força de trabalho; o Livro III de O capital, ao criticar a pretensão de uma  
justiça das transações; e na Crítica ao programa de Gotha, quando Marx ataca o  
conceito lassalliano de salário justo. Por conseguinte, ao invés de uma análise imanente  
1 Para uma análise cuidadosa da categoria ideologia, em que não há a identificação imediata e simplista entre  
“falsa consciência” e ideologia, cf. Vaisman (2010).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 461  
nova fase  
 
Vitor Bartoletti Sartori  
da obra marxiana, Marx foi utilizado pelos juristas progressistas como simples  
inspiração e a representação jurídica subordinou a leitura dos textos marxianos a seus  
próprios fins. No melhor dos casos, a representação jurídica foi temperada com tons  
supostamente marxistas e críticos.  
Nesse sentido, ao mencionarmos autores como Mascaro e Naves destacamos  
também avanços nas pesquisas sobre direito e marxismo, tendo em vista que ambos  
partem de linhas tradicionais de leitura da obra de Marx, como aquela decorrente da  
leitura althusseriana, que merecem respeito e precisam ser debatidas com seriedade.  
Principalmente ao olharmos para a obra de Naves (2000b), observamos uma  
sólida e explícita influência do autor de Por Marx e, no que diz respeito aos estudos  
do “campo” marxismo e direito, estamos diante daquele que formou toda uma geração  
de marxistas no estudo de Pachukanis no Brasil. Tal formação, por sua vez, deu origem  
a uma tradição de pesquisadores que conjugaram Pachukanis com Althusser, como  
aqueles formados por Naves e, em menor escala e aprofundamento, por Mascaro. Os  
dois autores brasileiros, portanto, são responsáveis por retirar de campo da análise  
marxista do direito os lugares comuns dos juristas e, em seu lugar, cristalizar a  
referência a uma tradição marxista séria. Para que fique bastante claro: é possível  
discordar da leitura de Márcio Naves, mas não a desconsiderar. Tanto por sua  
seriedade, quanto por sua honestidade intelectual, ele autenticamente procura voltar  
a Marx para, então, avançar naquilo que considera o melhor da tradição marxista e  
que, segundo ele, se coloca em Althusser, na leitura de Bettelheim da Revolução Russa,  
na simpatia pela Revolução Cultural chinesa (cf. NAVES, 2005) e, por fim, na leitura  
pachukaniana da teoria geral do direito.  
No Brasil, de forma hegemônica, ao se falar de Pachukanis, fala-se  
simultaneamente de Althusser por, ao menos, duas razões. A primeira e mais óbvia é  
a influência de Naves, ou seja, de um althusseriano sério e com bases filosóficas  
coerentes. A segunda diz respeito mais propriamente ao mencionado estatuto da obra  
do autor soviético: Pachukanis trata preponderantemente do direito e, ao fazê-lo, não  
explicita suas interpretações de Marx e do marxismo em todos os momentos. Na  
grande maioria dos casos, o jurista soviético retoma Marx, Engels e Lênin somente ao  
descortinar aspectos ligados à esfera jurídica. Com isso, adotar a obra pachukaniana  
como referência e de modo rigoroso, muitas vezes, implica certo estofo filosófico que,  
diga-se de passagem, não é possível encontrar explícita e totalmente no próprio  
pensamento do jurista soviético. Para que sejamos claros: parece não ser possível  
Verinotio  
462 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
adotar a posição pachukaniana sem acréscimos, como dos althusserianos, no caso  
acima mencionado.  
Não é pouco o que Naves construiu, principalmente, ao se constatar que  
tipo de análise supostamente crítica ele põe fim. Porém, como não poderia deixar de  
ser ao se tratar da obra de Marx e da tradição marxista, a questão não é de tão simples  
resolução. A razão dessa constatação não está somente na possibilidade de questionar  
a leitura althusseriana do pensamento de Marx. Em verdade, ao nos depararmos com  
uma crítica marxista ao direito, o primeiro problema que se apresenta tem outra  
natureza e diz respeito ao caráter seminal da principal obra pachukaniana, tomada  
como referência tanto por Naves quanto por Mascaro. Ao retirar o ecletismo de campo,  
simultaneamente, colocou-se no centro do marxismo a obra centenária de Pachukanis.  
Porém, em verdade, o livro de 1924 somente pretende dar os primeiros passos na  
crítica marxista ao direito.  
O caráter seminal de Teoria geral do direito e o marxismo e a posição dos  
pachukanianos diante do projeto do jurista soviético  
A obra pachukaniana foi importante em seu contexto, isto é, a Revolução Russa.  
Também foi essencial a redescoberta da obra do autor soviético por teóricos  
derivacionistas (como Hirsch) em um primeiro momento. Porém, sempre é preciso  
destacar que Teoria geral do direito e o marxismo não é um texto que pretendeu  
esgotar sequer a análise das obras marxianas sobre o direito. Ademais, o jurista  
soviético não teve como objetivo resolver ao modo marxista todos os aspectos  
relacionados à sua própria temática, que, evidentemente, passa pela necessária crítica  
à teoria geral do direito. Ou seja, é preciso cuidado ao aceitar o posicionamento  
hegemônico segundo o qual a obra pachukaniana é a mais completa e acabada sobre  
o direito. Assim, antes que possamos continuar a explicitar o contexto brasileiro da  
crítica marxista ao direito, é preciso um parêntese para explanar as pretensões da obra  
centenária de Pachukanis.  
O autor soviético alerta claramente aos seus leitores sobre a “forma de  
exposição sumária” (PACHUKANIS, 2017a, p. 59) do livro, bem como sobre certa  
“unilateralidade, inevitável ao se concentrar a atenção em apenas partes do problema,  
que são representadas como centrais” (PACHUKANIS, 2017a, p. 59). Pachukanis  
também é explícito ao afirmar que “a crítica marxista da teoria geral do direito está  
apenas começando” (PACHUKANIS, 2017a, p. 59). Em outras palavras, o próprio autor  
reconhece que, em hipótese alguma, sua obra de 1924 poderia ser considerada como  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 463  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
o ponto de chegada da crítica marxista ao direito, mesmo em sua época. Nesse sentido,  
é possível retomar Pachukanis hoje, certamente. Porém, nunca há de considerá-la como  
mais do que foi, algo inicial, que somente dá os primeiros passos de muitos  
necessários.  
As razões que explicam esse fenômeno estão nas modestas pretensões  
pachukanianas, se comparadas com a repercussão de seu texto no Brasil, em que,  
depois da obra de Naves, possui uma posição de honra e é visto como o centro da  
crítica marxista ao direito. Pachukanis é claro no sentido de que mesmo que o livro  
seja eventualmente importante (como é) para o desenvolvimento de uma tradição  
marxista de crítica ao direito, há sérias limitações na obra e no que ela pretendeu:  
Vale dizer que em meu breve ensaio pude apenas esboçar os traços  
fundamentais do desenvolvimento histórico e dialético das formas  
jurídicas, recorrendo aos principais conceitos que encontrei em Marx.  
Entre minhas tarefas não estava resolver todos os problemas da teoria  
do direito nem mesmo alguns deles. Eu queria apenas demonstrar  
sob qual ângulo é possível abordá-los e como é possível organizá-los.  
(PACHUKANIS, 2017a, p. 65)  
Pachukanis não esgota sequer o tratamento de Marx ao tema do direito, como  
já sublinhamos. O elemento fundante de uma crítica marxista ao direito, a compreensão  
da obra do autor de O capital, não é uma tarefa que a Teoria geral do direito e o  
marxismo toma por acabada, definitivamente. As pretensões de Pachukanis não  
chegam a esse ponto, partindo do que chama de “principais conceitos” (PACHUKANIS,  
2017a, p. 65) que teria encontrado no autor alemão, em especial, no Livro I de O  
capital. O mínimo que se pede aos marxistas que pretendam tratar do direito é que  
avancem na análise da obra de Marx e, infelizmente, são muito raros os estudos de  
pachukanianos que intentem realizar tal tarefa. Ou seja, não raro, a interpretação do  
autor soviético sobre a obra de Marx incompleta e somente inicial é alçada à  
posição de referência inconteste. Somente por esse aspecto, é inviável utilizar como  
régua e medida a obra pachukaniana ao se deparar com o que Naves (2014) chama  
de a questão do direito em Marx. A obra do autor de O capital, em grande parte ainda  
inédita na época de Pachukanis, não havia sido escavada de modo devido por aqueles  
dedicados à crítica ao direito e existia consciência sobre esse fato. O fato de tal estudo  
ainda estar em curso na presente data, por sua vez, significa que, no mínimo, são  
imprescindíveis complementos e correções nos estudos realizados há um século pelo  
revolucionário soviético.  
O autor está ciente da existência de espaço substancial para a análise do direito  
Verinotio  
464 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
nas obras do próprio autor de O capital. Pachukanis apenas “esboça os traços  
fundamentais” (PACHUKANIS, 2017a, p. 65) do que considera ser basilar para um  
tratamento inicial e provisório da crítica marxista à teoria do direito. Tal abordagem  
leva-o para “o desenvolvimento histórico e dialético das formas jurídicas”  
(PACHUKANIS, 2017a, p. 65) por meio das categorias que ele teria encontrado em  
Marx. Como consequência, não há algo que se assemelhe minimamente com a última  
palavra ou o ponto final sobre o direito em Marx. Essa tarefa exige muito mais trabalho,  
e Pachukanis não pretendeu realizá-la, a não ser na medida em que o propósito de  
compreender historicamente as formas jurídicas assim exigiu em sua empreitada de  
crítica à teoria geral do direito. Por isso, na época, eram necessários estudos  
suplementares sobre o direito em Marx e, caso não se avance diante da interpretação  
pachukaniana de Marx, fica-se aquém das próprias pretensões do pensador de Teoria  
geral do direito e o marxismo.  
O livro do autor também não examina todos os problemas da teoria geral do  
direito; nem mesmo alguns deles são tratados em sua completude, de acordo com seu  
próprio texto. Desse modo, Pachukanis dá somente um passo inicial ao buscar  
organizar ao modo marxista o material da teoria geral do direito para, então, criticar  
essa teoria com base nas abordagens de Marx e Engels. O projeto do autor de Teoria  
geral do direito e o marxismo, portanto, é só um primeiro passo, mesmo que sua obra  
possa ser considerada ainda hoje, por autores como Naves e Mascaro o que há de  
melhor na crítica marxista ao direito. Trata-se, para que se use as palavras do autor  
soviético, de um “breve ensaio”, o qual, depois de certo debate, teria desenvolvido, de  
acordo com Pachukanis, “ainda que na forma de rascunho, os fundamentos por meio  
dos quais se pode tentar elaborar um manual marxista para a teoria geral do direito”  
(PACHUKANIS, 2017a, p. 57). Em outras palavras, o básico para a crítica marxista ao  
direito não está presente no livro, até mesmo porque, como já mencionado, “a crítica  
marxista da teoria geral do direito está apenas começando” (PACHUKANIS, 2017a, p.  
59). Urge, portanto, que a crítica marxista ao direito não se identifique simplesmente  
com o livro de cem anos atrás.  
Vale ainda mencionar que as pretensões pachukanianas para a elaboração de  
um manual (e para uma disciplina jurídica) não tiveram sucesso; tais tarefas foram  
impostas ao jurista soviético em meio ao desenvolvimento da Revolução Russa e estão  
ligadas a esse contexto absolutamente único. O livro Teoria geral do direito e o  
marxismo pode possuir pontos de partida muito interessantes, porém, de acordo com  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 465  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
o que o próprio autor soviético diz, não haveria como tomá-lo como o fio condutor  
dos caminhos da crítica marxista, e isso é ainda mais verdade cem anos depois da  
publicação do livro. Ele manifesta somente, nas palavras de Pachukanis, a “experiência  
inicial de uma crítica marxista dos principais conceitos jurídicos” (PACHUKANIS, 2017a,  
p. 57). Não há nada mais que isso ali e, se temos uma tradição pachukaniana que parte  
essencialmente de Teoria geral do direito e o marxismo, deve-se dizer que ela toma  
uma obra inicial, e centenária, como o fundamento para a análise do presente. Assim,  
para dizer o mínimo, questionar substantivamente a tradição pachukaniana brasileira  
é algo necessário.  
A reiteração dos pontos de partida pachukanianos diante de certo lyrismo da  
crítica ao direito, que se colocava como hegemônico antes da teorização de Márcio  
Naves, cobrou seu preço: na medida em que foi necessário reafirmar as premissas  
pachukanianas contra o ecletismo típico dos juristas, desenvolveu-se um grande apego  
às categorias incialmente abordadas somente de modo preliminar pelo autor soviético.  
O apego a Teoria geral do direito e marxismo é tamanho que, recentemente,  
em 2020, publicou-se um estudo (sério, em verdade) com textos do próprio Naves e  
de seus mais proeminentes discípulos, intitulado Léxico pachukaniano. A situação,  
portanto, não deixa de assustar: em 1924, publica-se uma obra com uma proposta  
modesta, escrita para autoesclarecimento, em forma de rascunho; em 2024, depois da  
publicação do Léxico em 2020, essa mesma obra enseja o desenvolvimento de uma  
espécie de órganon categorial pachukaniano. Não que autores como Akamine,  
Kashiura, Biondi e Batista (coautores do Léxico pachukaniano) sejam epígonos de  
Márcio Naves ou mesmo de Pachukanis. Trata-se de pensadores importantes e que  
fazem parte da mencionada empreitada, cujos méritos já destacamos. Eles  
desenvolvem os temas clássicos da obra de 1924 de Pachukanis sujeito de direito,  
fetichismo jurídico, sujeito moral, ideologia jurídica, forma jurídica, relação jurídica,  
entre outros de modo inteligente e coerente com suas fundamentações. Podemos  
até mesmo apontar que a obra é leitura interessante para aqueles que pretendem  
conhecer, se aprofundar e desenvolver a crítica marxista ao direito. Contudo, é  
igualmente notável que, partindo das pretensões modestas da principal obra  
pachukaniana, desenvolveu-se contra aquilo que o próprio Pachukanis diz nada  
menos que um sistema de categorias mais ou menos acabado para a crítica marxista  
ao direito.  
Os alertas do jurista soviético não são escutados por seus seguidores, os quais  
Verinotio  
466 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
defendem a atualidade de Teoria geral do direito e o marxismo sem as devidas  
mediações e sem a ponderação necessária sobre o caráter indissociável da obra diante  
do contexto do comunismo de guerra e da NEP. Em um contexto como o presente,  
contrarrevolucionário, os autores do Léxico pachukaniano reiteram as premissas de  
uma obra provisória e escrita para lançar luz sobre uma situação revolucionária.  
O próprio autor soviético, por outro lado, é claro no prefácio da mencionada  
obra: “o presente trabalho não pretende ser de jeito nenhum fio de Ariadne marxista  
no domínio da teoria geral do direito(PACHUKANIS, 1988, p. 1). No entanto,  
explicitamente, sua obra se torna o fio condutor do melhor da crítica marxista brasileira  
ao direito. Diante de tal contradição, no mínimo, há problemas sérios a serem  
enfrentados e que precisam da explicitação da ligação da obra de 1924 com as  
contradições da revolução de 1917, bem como das limitações dessa experiência  
histórica e dos escritos ligados a ela.  
O tratamento sistemático do direito, Marx, Althusser e a leitura da obra de  
Pachukanis  
A possibilidade de elaborar um léxico pachukaniano depende da existência de  
um campo de estudos sistemático, e que possa ser desenvolvido de modo científico.  
Para a tradição que mencionamos, a incursão do autor soviético no campo da teoria  
geral do direito teria justamente esse resultado. No que é legítimo perguntar se o  
direito, ou mais precisamente, a teoria geral do direito, pode ser considerado um  
campo eivado de cientificidade. Sobre o assunto, é preciso destacar certa resposta  
positiva por parte da tradição pachukaniana já que, para Naves, “Teoria geral do direito  
e marxismo teve o efeito de uma pequena revolução teórica na jurisprudência” (NAVES,  
2000a, p. 16).  
O significado de tal posicionamento é que um novo campo para Pachukanis, a  
abordagem marxista da teoria do direito, é levado a sério como parte da teoria do  
direito (a jurisprudência); a crítica marxista a essa teorização também é tomada como  
algo essencial. As consequências da visão do autor brasileiro, porém, são a ratificação  
de um tratamento sistemático do direito, como aquele da mencionada “jurisprudência”.  
Em outros termos, a conjunção entre a leitura althusseriana e a teorização  
pachukaniana leva à aceitação do estatuto científico da teoria geral do direito e de seu  
aparato categorial. Por conseguinte, a possibilidade de adotar a perspectiva  
pachukaniana depende de a teoria geral do direito não ser um campo marcado por  
categorias irracionais carentes de conceito, como disse Marx sobre as figuras  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 467  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
econômicas como juros, lucro e renda.  
Referindo-se à teoria geral do direito, entretanto, Pachukanis diz que “o  
marxismo, portanto, está apenas começando a ganhar um novo campo” (PACHUKANIS,  
2017a, p. 59). Naves, por sua vez, adentra neste campo afirmando a revolução  
pachukaniana e, portanto, acreditando se deparar com uma fundamentação válida e  
proveitosa para a crítica marxista ao direito. Como consequência, tanto Pachukanis  
quanto Naves mesmo que de modo crítico partem da constituição de diferentes  
campos do conhecimento, algo típico das ciências parcelares, e que tem início no final  
do século XIX e no começo do século XX (cf. LUKÁCS, 2020). A cientificidade do  
tratamento do direito, para ambos, encontra-se em uma abordagem crítica da teoria  
geral do direito e, nesse sentido, mesmo que ao modo da problematização bem  
fundamentada, conjuga-se a teoria geral do direito (um ramo das ciências parcelares)  
e o marxismo, como explicita o próprio nome da principal obra pachukaniana.  
Porém, é preciso fazer uma ressalva importante: na Revolução Russa, com a  
possibilidade mais ou menos iminente de supressão do direito, a tematização  
pachukaniana acredita não se sustentar simplesmente sobre uma ciência parcelar, mas  
sobre formas transicionais para o socialismo. Ou seja, a crítica teórica ao direito parece  
estar solidamente assentada na crítica das armas, no movimento revolucionário que  
traria consigo a supressão do próprio direito. Hoje, entretanto, em um momento que  
está longe de poder ser caracterizado como revolucionário, a questão não tem a  
mesma tonalidade e, também por essa razão, é preciso cuidado ao adentrar na seara  
da crítica marxista ao direito. Caso se adote de modo acrítico aquilo que foi  
desenvolvido há cem anos, a crítica marxista ao direito somente pode aparecer de  
modo cômico. Assim, se a empreitada pachukaniana parecia ter um sentido  
revolucionário no início do século XX, a adoção do mesmo procedimento em um  
momento em que as ciências parcelares se fortalecem em seu ensimesmamento pode  
ter o sentido oposto. No cenário revolucionário o direito e a teoria geral do direito  
pareciam estar em fenecimento; hoje, por outro lado, partir do aparato categorial da  
teoria jurídica é arriscado e não leva à crítica das armas.  
A proposta de buscar a especificidade do direito com mais cuidado que é  
realizada pelo autor de Teoria geral do direito e o marxismo por meio da teorização  
sobre o que chama de forma jurídica – escapa de várias armadilhas comuns à “filosofia  
jurídica”. Em Pachukanis e nos seus seguidores, não há qualquer salvacionismo  
derivado de teorizações sobre a justiça, ou busca por interpretações jurídicas  
Verinotio  
468 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
alternativas que venham, por si mesmas, a modificar o mundo. Em uma frase, autores  
formados na tradição trazida por Márcio Naves não têm ilusões quanto à capacidade  
do direito de moldar o mundo de modo mais ou menos demiúrgico. Porém, com as  
bases teóricas althusseriana e pachukanianas, teve-se a necessidade de se formar um  
sistema de categorias para a crítica da teoria geral do direito a partir das indicações  
presentes na obra pachukaniana do início do século XX. Por conseguinte, a  
dissonância entre a leitura althusseriana da obra de Pachukanis e o julgamento do  
próprio autor sobre o seu livro é gritante. E, nesse sentido, é necessário questionar  
esse tipo de abordagem, mesmo para quem pretenda seguir os passos do autor de  
Teoria geral do direito e o marxismo.  
Vale ressaltar que aquele processo que chega ao cume simbólico no  
desenvolvimento de um léxico pachukaniano parte de certa posição sobre Marx, Engels  
e o marxismo. Por essa razão, deve-se destacar que tal posicionamento leva à  
reivindicação de uma “concepção sistemática do direito” (NAVES, 2000a, p. 25). Assim,  
os pachukanianos, mais que o próprio Pachukanis, acabam por tomar como ponto de  
partida mesmo que criticamente a exposição categorial da teoria geral do direito,  
e em especial a categoria sujeito de direito, típica da representação dos juristas.  
A incursão pachukaniana, quando apropriada por Naves, foi capaz retirar a  
teorização sobre marxismo e direito do ecletismo e da simples instrumentalização das  
obras de Marx e de Engels. No entanto, em tal exercício subjaz a crença segundo a  
qual, até a obra de Pachukanis, “inexistia tanto nas obras de Marx e Engels, como  
também no campo marxista, uma concepção sistemática do direito” (NAVES, 2000a,  
p. 25). E, sobre esse posicionamento, são necessários alguns comentários: o primeiro  
deles diz respeito ao adjetivo usado, “sistemático”. Caso se entenda que não havia em  
Marx e em Engels, bem como no marxismo, uma sistematização típica das ciências  
parcelares dos aspectos jurídicos, o autor tem grande parcela de razão, embora seja  
possível questionamento quanto a Stutchka e sua obra O papel revolucionário do  
direito e do estado: teoria geral do direito (2023), publicada em 1921. Nela, inclusive,  
há menções importantes ao objeto de Pachukanis, bem como ao “campo” que o autor  
pretende tratar.  
A obra pachukaniana é visivelmente mais sistemática que a de Stutchka quanto  
a temas como relação jurídica, sujeito de direito, norma jurídica, temas clássicos da  
teoria do direito, inclusive, para a incursão de Pachukanis. No entanto, seria possível  
se contrapor à posição de Naves tendo em conta o próprio debate soviético sobre o  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 469  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
direito, já que Stutchka explicitamente aborda a teoria geral do direito e procura em  
seu livro adentrar no campo destacado por Pachukanis. Aliás, o juízo de Stutchka sobre  
o próprio livro é similar àquele do autor de Teoria geral do direito e o marxismo sobre  
a própria obra: ele “oferece apenas uma teoria geral do direito incompleta e, de longe,  
insuficiente” (STUTCHKA, 2023, p. 79). Porém, também se pode eventualmente  
concordar com o juízo segundo o qual a crítica marxista à teoria geral do direito tem  
mais estofo na obra de Pachukanis, se comparada àquela de Stutchka. E, nesse sentido,  
com ressalvas como as feitas acima, seria até aceitável (embora, não aconselhável)  
concordar com o posicionamento de Naves sobre a sistematicidade da crítica ao direito  
no marxismo.  
Se formos levar a sério o que diz Pachukanis sobre sua obra centenária, tanto  
ele como Stutchka (os autores referenciam um ao outro constantemente) apenas dão  
início a um longo trabalho de crítica marxista à teoria do direito. Nesses termos, no  
mínimo, há exagero por parte de Naves na apreciação da “pequena revolução teórica  
na jurisprudência” (NAVES, 2000a, p. 16). Para que sejamos justos com o  
althusseriano brasileiro, é preciso lembrar que ele destaca o caráter “pequeno” dessa  
revolução. E, assim, não há uma hipertrofia absurda do papel de Teoria geral do direito  
e o marxismo.  
Ao considerar o prisma da teoria geral do direito, é necessário relativizar a  
afirmativa de Márcio Naves. Por mais que com boa vontade seja compreensível o  
que o autor está procurando ressaltar, não é possível deixar de mencionar o pouco  
apreço que Naves e os que o seguem têm pela obra de Stutchka, cujo principal livro  
só foi traduzido no Brasil na íntegra em 2023, a partir da inciativa de Ricardo Pazello  
e Moisés Soares (autores de orientação não-althusseriana). Ou seja, ao passo que, por  
vezes, a hegemonia pachukaniana da crítica marxista ao direito aparece como um dado  
inquestionável, ainda há muito a esclarecer em solo nacional sobre o debate marxista  
soviético sobre o direito. Por essa razão, não só a crítica ao direito hegemônica no  
Brasil não realiza a tarefa de adentrar com cuidado a obra de Marx; ao tomar  
Pachukanis unilateralmente como referência, ela toma a interpretação pachukaniana  
como régua de modo errado, também, porque não se posiciona de modo cuidadoso  
sobre o debate soviético sobre o direito.  
Voltemos, porém, à questão do tratamento sistemático do direito: ainda é  
preciso considerar um prisma sobre tal sistematicidade menos afeita às disciplinas  
parcelares e, em especial, à teoria geral do direito: se analisarmos com cuidado, na  
Verinotio  
470 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
obra de Marx, a rigor, não há uma exposição sistemática sobre nenhum tema. Sua  
exposição é essencialmente imanente, como demonstrou Chasin (2009) e, assim, o  
direito, a arte, a política, a religião, a economia, por exemplo, são apresentados a partir  
das suas concatenações na própria realidade efetiva da sociedade, e não com  
referência à exposição categorial de diferentes “campos”. A importância da crítica da  
economia política, por isso, não está no questionamento de alguma abordagem  
popular ou científica, mas no fato de que a economia política aborda aspectos  
nucleares à conformação da sociedade capitalista como tal. Em Marx, portanto, a crítica  
ao direito subordina-se ao modo pelo qual as categorias estão presentes na própria  
realidade, na sociedade civil-burguesa especificamente, cujo anatomia está na  
economia política. E, desse modo, para Marx, é preciso reservas ao olhar para o  
estatuto da ideologia jurídica e da teoria geral do direito.  
Em outras palavras, antes de qualquer exposição “sistemática” sobre o direito,  
Marx explicita como a esfera jurídica tem uma função concreta na realidade, sendo a  
apresentação marxiana das questões jurídicas relacionada à sua pesquisa sobre o  
papel concreto do direito diante do movimento das categorias econômicas, políticas,  
religiosas etc. Em Marx, não há um tratamento sistemático e apartado do direito  
porque sua exposição não pode autonomizar as categorias jurídicas previamente à  
compreensão da função da esfera jurídica em meio ao movimento das formas e das  
figuras econômicas da sociedade capitalista. Direito e economia não estão separados;  
mas não é arbitrário de qual das duas esferas do ser social deve-se partir para a  
compreensão do real, pois o estatuto de cientificidade do direito e da economia  
política não é o mesmo ao se analisar o capitalismo. Assim, após constatar que o  
estatuto da economia política não é o mesmo que aquele da teoria geral do direito,  
acentua-se a discrepância (decorrente do contexto único da Revolução Russa) do  
procedimento pachukaniano diante do marxiano.  
Ainda sobre o autor de O capital, vale frisar que há inúmeros apontamentos  
sobre o direito em sua obra que não foram analisados por Pachukanis. Como exemplos,  
podemos mencionar, de modo não exaustivo, o papel que a esfera jurídica tem nas  
constituintes revolucionárias na França e na Europa de 1848 (bem como nas  
contrarrevoluções que seguem), a função da mediação jurídica na autonomização das  
formas econômicas no Livro II de O capital, a relação entre direito e fetichismo do  
dinheiro e do capital no Livro III de O capital, a conformação dos juristas em meio à  
divisão do trabalho, tanto em A ideologia alemã quanto nas Teorias do mais-valor,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 471  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
entre outros temas essenciais para a compreensão do direito em Marx2. Por  
conseguinte, se Pachukanis eventualmente sistematiza o pensamento de Marx sobre o  
direito, como quer Naves e aqui especificamente tomamos essa sistematização sem  
qualquer conteúdo pejorativo, mas como a apreensão das determinações da esfera  
jurídica na obra do autor de O capital , ele o faz de modo bastante incompleto (até  
mesmo porque nunca foi essa a intenção do autor soviético tomado como parâmetro  
pelos pachukanianos). Portanto, a tarefa de compreender a posição de Marx quanto  
ao direito não é simples e não pode ser obstaculizada por uma crença segundo a qual  
é possível tomar a Teoria geral do direito e o marxismo como métrica para a  
abordagem marxiana sobre a esfera jurídica.  
A propositura de Pachukanis como sistematizador das posições marxianas  
sobre o direito, não só não corresponde àquilo que existe em seu livro de 1924.  
Correndo o risco de expressar uma posição polêmica, pode-se afirmar que há um  
verdadeiro desserviço para o desenvolvimento da crítica ao direito. Por essa razão, o  
óbvio precisa ser dito: Marx não é Pachukanis e muito menos Pachukanis é Marx. Caso  
se tome a obra de 1924 como medida para o autor de O capital, uma operação insana  
acaba sendo realizada: a apreensão de um livro seminal, de um autor que não teve  
acesso às obras completas de Marx, serve de guia e grande parâmetro para ler O  
capital, por exemplo.  
Ao contrário do que parece nos fazer crer a tradição althusseriana, é temerário  
estipular que há somente elementos esparsos sobre a esfera jurídica em Marx. Há  
muito em Marx sobre o direito, e não somente “pensamentos isolados” (PACHUKANIS,  
2017a, p. 60) como parece querer o próprio Pachukanis. Com o ímpeto de  
sistematização do tema, e com a pretensão de realizar uma crítica marxista à teoria  
geral do direito, defende o autor soviético que “faltava, portanto, compilar esses  
pensamentos isolados, abandonados por Marx e Engels, e esforçar-se para examinar  
alguns dos resultados que deles decorrem” (PACHUKANIS, 2017a, p. 60). Conforme a  
pequena e não exaustiva enumeração acima, resta que a posição pachukaniana é  
duvidosa. A posição de Naves, por sua vez, é similar àquela de Pachukanis, de modo  
que, mesmo que o autor soviético tenha efetivamente realizado uma “pequena  
revolução teórica na jurisprudência” (NAVES, 2000, p. 16), como quer o autor de  
2 Sobre esses temas, cf. Sartori (2019b; 2020a; 2021a; 2021b). Em diversos outros momentos, também  
nos colocamos contra a interpretação pachukaniana do direito, bem como contra certa fixação na  
categoria “sujeito de direito” (cf. SARTORI, 2019a).  
Verinotio  
472 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
Marxismo e direito, ele o faz somente, em suas palavras, “recorrendo aos principais  
conceitos que encontrei em Marx” (PACHUKANIS, 2017a, p. 65) e, portando, de  
maneira muito limitada e sem sequer realizar um apanhado exaustivo sobre o direito  
nas obras de Marx disponíveis em 1924.  
Pachukanis volta-se a esses conceitos mais preciso seria dizer, às categorias  
do pensamento marxiano para abordar as noções da teoria geral do direito  
criticamente. Por essa razão, a sistematicidade pachukaniana vincula-se ao campo que  
ele pretendia iniciar, aquele da crítica marxista à teoria geral do direito. Destarte, a  
suposição necessária ao pensamento do autor é a da cientificidade de ramos  
específicos do conhecimento, conformados nas ciências parcelares e, em especial, no  
direito.  
Pachukanis, e Naves, na esteira do primeiro, tomam o aparato da teoria do  
direito (da jurisprudência) como pressuposto obrigatório para a exposição sistemática  
das questões jurídicas pelo marxismo. Realizam, por conseguinte, e mesmo que  
criticamente, uma incursão em um ramo específico das ciências parcelares. A  
possibilidade de algo como uma teoria marxista do direito jaz como um suposto e  
premissa. A mediação entre a posição pachukaniana e a marxiana justifica-se com uma  
espécie de analogia, como bem estipulou Elcemir Paço Cunha (2014; 2015): assim  
como Marx desenvolveu a crítica à economia política, seria possível e necessário  
elaborar a crítica à teoria do direito, como se a última fosse portadora de um estatuto  
de cientificidade comparável ao da economia política clássica. À vista disso, o  
procedimento pachukaniano é original e não se identifica com aquele do autor de O  
capital. Porém, ao deixar de tratar do próprio Marx e ao sobrevalorizar a mediação de  
Pachukanis, corre-se o risco de identificar os pressupostos da Teoria geral do direito  
e o marxismo com aqueles do pensamento marxiano. E, em meio a esse procedimento  
analogizante entre a crítica da economia política e do direito, os pachukanianos-  
althusserianos correm o risco de transmutar Marx em Pachukanis e a insanidade  
mencionada acima torna-se o axioma de toda uma geração.  
Ainda sobre o tratamento sistemático do direito, no que diz respeito ao melhor  
amigo e colaborador de Marx, é ainda mais necessário questionar o que diz Naves.  
Defrontando-se com a abordagem de Engels, constata-se que o autor escreve três  
capítulos (IX, X e XI) do Anti-Dühring sobre o direito. À vista disso, é inconcebível  
concordar com o autor althusseriano, ao menos quando se toma o adjetivo sistemático  
de maneira distinta daquela da teoria geral do direito e de outras áreas das ciências  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 473  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
parcelares. Mesmo que Engels oponha-se a Dühring e que sua exposição seja guiada,  
em parte, pelo modo de apresentação das categorias da teoria que critica, há em seu  
texto uma exposição voltada explicitamente à apreensão das determinações do direito.  
Há um grande problema que pode ser criado: não havendo apreensão  
sistemática do direito em Marx e Engels, ou no marxismo, o único possível ponto de  
partida para a crítica marxista ao direito passa a ser a obra pachukaniana.  
Consequentemente, retorna-se ao problema já levantado: se o texto de 1924, de  
acordo com o próprio autor soviético, não poderia ser tomada como fio condutor, com  
Naves, ele agiganta-se e há uma hipertrofia do pensamento pachukaniano e das  
categorias desenvolvidas, não sem alguma unilateralidade, em Teoria geral do direito  
e o marxismo. O livro, que era somente um esboço e um início, passa a fornecer o  
léxico para uma geração de pachukanianos-althusserianos. Novamente vale destacar  
que há contrariedade, tanto diante das pretensões do próprio Pachukanis, quanto  
frente aos posicionamentos das obras de Marx e de Engels, cuja parte significativa  
sequer havia sido publicada quando a obra magna pachukaniana é desenvolvida; e tais  
publicações, quando muito, raramente, são analisadas pelos seguidores de Naves e de  
Mascaro. Nesse sentido, no pior dos casos, Pachukanis e sua obra de 1924 substituem  
o estudo sério e detido das obras de Marx e de Engels.  
Ainda sobre o tratamento sistemático do direito no marxismo, seria interessante  
ver que em obras importantes mesmo que problemáticas , como História e  
consciência de classe há uma abordagem explícita e de fôlego sobre o direito (cf.  
SARTORI, 2018a). A obra é de 1923 e, portanto, foi publicada imediatamente antes  
de Teoria geral do direito e o marxismo; seus temas, porém, já haviam sido abordados  
por Lukács em Tática e ética, de 1919 (cf. SARTORI, 2020 a). No caso do livro de  
1923, um tema muito caro a Pachukanis, o fetichismo da mercadoria e sua relação  
com o valor, é bastante proeminente no tratamento lukácsiano. Portanto, para dizer o  
mínimo, seria importante um cuidado especial ao analisar as afinidades e dissonâncias  
entre tal obra de Lukács e Teoria geral do direito e o marxismo3. Sendo assim, se torna  
urgente, entre outros aspectos, comprovar ou não o juízo de Naves, sobretudo quando  
se considera as questões ligadas ao direito no marxismo, pois, em verdade, o enfoque  
sobre temas pachukanianos a partir de Althusser acaba por eclipsar não apenas, como  
3
O texto de Silvio Luiz de Almeida (2006) sobre o direito no jovem Lukács, na esteira da orientação  
colocada nos textos de Alysson Mascaro, toma Pachukanis como medida e como régua ao tratar do  
tema, de modo que consideramos que uma abordagem mais cuidadosa seja ainda necessária.  
Verinotio  
474 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
já vimos, parte significativa da obra de Marx, de Engels, mas também dos marxistas.  
Nesse cenário, a Teoria geral do direito e o marxismo é alçada a uma posição nunca  
defendida pelo próprio Pachukanis.  
A consequência é que a sistematização defendida por Naves, ao fim, é aquela  
das ciências parcelares e, mais especificamente, da teoria geral do direito. Ela permeia  
a obra de Pachukanis e, portanto, precisa ser compreendida com cuidado e à luz de  
sua época. Ela também tem um antecedente na obra de Stutchka, com quem  
Pachukanis debate (e é preciso dizer que, no Brasil, esse debate é visto de modo  
extremamente unilateral até o momento 2023 em que O papel revolucionário do  
direito e do estado foi publicado). Por conseguinte, mesmo que aceitemos a posição  
de Márcio Naves o que não acreditamos ser possível , o desenvolvimento de um  
léxico pachukaniano a partir da Teoria geral do direito e o marxismo traz as marcas da  
unilateralidade.  
Da leitura althusseriana de Pachukanis ao pachukanismo  
É preciso deixar claro que não somos nós que intentamos diminuir a  
importância da obra pachukaniana. É o próprio autor que levanta as ressalvas que  
elencamos acima. Além disso, ao perceber que o seu trabalho fora utilizado como  
régua para a crítica marxista ao direito logo após a Revolução Russa, Pachukanis se  
pronuncia da seguinte maneira, que é elucidativa e mostra o real alcance de sua teoria  
e de sua crítica:  
O presente trabalho está longe de pretender um lugar de honra na  
orientação marxista da teoria geral do direito. Inicialmente, escrevi o  
primeiro volume, em larga medida, para autoesclarecimento; daí sua  
abstração e sua concisão, por vezes quase em forma de exposição  
sumária; daí também a unilateralidade, inevitável ao se concentrar a  
atenção em apenas partes do problema, que são representadas como  
centrais. Todas essas particularidades fazem deste um livro de pouca  
utilidade na qualidade de manual didático. Entretanto, perfeitamente  
consciente dessas limitações, ainda assim descartei a ideia de corrigi-  
las para a segunda edição. A isso me levou o motivo que exponho a  
seguir. A crítica marxista da teoria geral do direito está apenas  
começando. (PACHUKANIS, 2017a, p. 60)  
No Brasil de hoje, o trabalho de Pachukanis, não raro, ocupa justamente o lugar  
de honra na orientação marxista da teoria geral do direito. E o desenvolvimento de  
uma espécie de léxico pachukaniano é sintomático desse fato. Vale a pena repetir o  
que já indicamos: a obra que se encontrava apenas em sua fase inicial há cem anos  
passou a ser considerado como algo dotado de um acabamento inexistente. Nesse  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 475  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
sentido, no melhor dos casos, estamos no mesmo ponto em que a crítica marxista ao  
direito em 1924.  
Tal é o preço a se pagar ao se sistematizar, não só o pensamento de Marx a  
partir da exposição da teoria do direito, mas também as próprias categorias presentes  
em Teoria geral do direito e o marxismo. Tanto em Naves e seus discípulos quanto em  
Mascaro, isso se destaca. No primeiro caso, no entanto, trata-se de algo compreensível:  
a divulgação e introdução de um autor leva tempo e muito esforço. Em Mascaro,  
porém, a situação é distinta, até mesmo porque estamos diante de um autor de uma  
geração posterior a Naves; para que sejamos justos, ele é formado, em grande parte,  
sob a influência da própria obra de Márcio Naves. O professor da USP, inclusive, é  
bastante categórico sobre seu juízo sobre Pachukanis: ter-se-ia nada menos que “o  
mais importante pensador marxista a tratar da crítica ao estado em Teoria geral do  
direito e o marxismo” (MASCARO, 2020, p. 10). Diante de tal postura, podemos  
destacar: se no autor de Marxismo e direito há exagero no levantamento da  
importância da obra pachukaniana, na posição de Alysson Mascaro, temos uma  
abordagem bastante unilateral sobre o livro centenário do autor e, assim, a obra  
pachukaniana é ainda mais hipertrofiada.  
Não obstante a tradição marxista de crítica ao estado ter expoentes como Lênin,  
Luxemburgo, Lukács, Gramsci, Althusser, Poulantzas, Hirsh, Trótski, dentre outros, o  
autor brasileiro afirma que a obra de Pachukanis é a principal a desenvolver o tema.  
O autor de Estado e forma política toma Teoria geral do direito e o marxismo como  
régua de modo superlativo, adotando uma posição unilateral. Ao passo que Naves  
(2000a) chega a apontar certos problemas da análise pachukaniana do estado,  
indicando que o autor considera o comunismo de guerra do início da Revolução Russa  
como parâmetro de suas teorizações em alguns momentos centrais, Alysson Mascaro  
realiza elogios pouco problematizados sobre Pachukanis e sua obra de 1924.  
O autor paulista retira de um texto que pretende criticar os conceitos da teoria  
geral do direito nada menos que a maior crítica já feita por um marxista ao estado.  
Caso a afirmativa de Mascaro efetivamente correspondesse à verdade, ela precisaria  
de elementos probantes substanciais; e não é isso que acontece. A defesa que o  
professor da USP faz da teorização pachukaniana chega ao ponto de argumentar que  
o livro do autor considerado como portador de unilateralidades e de insuficiências  
pelo próprio escritor deve ser tomado como a régua, a medida e o padrão da crítica  
marxista, não só ao direito e à teoria geral do direito, mas ao estado como tal. Trata-  
Verinotio  
476 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
se de uma abordagem, não só inspirada na obra de Pachukanis, ou realizada com uma  
abordagem pachukaniana; tem-se a defesa e o elogio, por assim dizer, “pachukanistas”  
do livro de 1924.  
Existem posicionamentos interessantes de Pachukanis sobre o assunto,  
certamente. Porém, o elogio supremo de Mascaro não se justifica e o autor paulista  
divulga o pensamento de Pachukanis (e indiretamente o de Naves, mesmo que nem  
sempre mencione o professor da Unicamp) de modo mais próximo ao que poderia ser  
chamado de pachukanismo. Ademais, tal qual Marx outrora disse sobre ser marxista,  
Pachukanis poderia dizer que não é um pachukanista. Por essas razões, o modo pelo  
qual os autores mais importantes do marxismo ficam apagados diante de uma obra  
tomada como um primeiro passo na crítica marxista à teoria geral do direito é, de certo  
modo, assustador. Nos confins de uma interpretação centrada na divulgação de Teoria  
geral do direito e o marxismo, passa-se, mesmo que inconscientemente, a impressão  
que mais vale estudar a obra de Pachukanis que os textos do próprio Marx e de  
grandes marxistas.  
Ao analisar outro tema difícil e abordado com cuidado por pensadores como  
Gramsci, Lukács, Poulantzas, Neumann, Marcuse, dentre outros Mascaro é igualmente  
superlativo. Ao tratar do fascismo, Mascaro causa espanto àqueles versados na  
literatura sobre o tema: em três textos pequenos de Pachukanis estaria nada menos  
que “a mais importante reflexão marxista sobre o tema” (MASCARO, 2020, p. 23).  
Assim, o autor brasileiro é peremptório, sem fazer qualquer comparação com a  
abordagem dos autores clássicos que mencionamos e sem que haja qualquer  
referência a um contemporâneo da III Internacional (de que Pachukanis fez parte),  
Dimitrov. Se o autor de Teoria geral do direito e o marxismo é extremamente cuidadoso  
quanto às possibilidades presentes em sua obra, o mesmo não pode ser dito quanto  
a autores como Mascaro, que adentram em uma espécie de pachukanismo com o qual  
o autor soviético não se identificaria.  
Se Naves carrega as tintas e comete um exagero em enfoque na teoria  
pachukaniana, o autor de Estado e forma política é absoluta e claramente unilateral.  
No ímpeto de divulgação do que chama a nosso ver de modo bastante infeliz de  
“marxismo jurídico”, ou seja, de sua própria concepção baseada na leitura  
althusseriana mais ou menos cuidadosa da obra de Pachukanis, Mascaro é absoluto  
nos elogios aos textos pachukanianos, aos quais faz uma das apresentações mais  
elogiosas da história do marxismo no Brasil. O tom de Mascaro claramente se volta à  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 477  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
necessidade de divulgar a obra do jurista soviético, porém, o texto de um autor da  
envergadura do professor da USP precisa ser levado a sério e, assim, urge apontar a  
sua unilateralidade.  
O texto pachukaniano, em especial Teoria geral do direito e o marxismo, é  
tomado como medida áurea da crítica marxista ao Estado e, claro, da crítica marxista  
ao direito. Contudo, pelo que dissemos acima, há problemas sérios nessa abordagem:  
a obra pachukaniana parece ter capacidades que estão para além de seus próprios  
objetivos e do seu próprio objeto. Não entraremos aqui no acerto ou desacerto de  
Alysson Mascaro em suas teorizações específicas; porém, sua unilateralidade é  
evidente nesses casos mencionados. E não deixa de ser estranho vê-lo tomar a obra  
em que há uma exposição sumária, bem como unilateralidades (segundo o próprio  
Pachukanis), como medida até mesmo para um autor como Lukács, um dos maiores  
marxistas do século XX. Diz Mascaro em seu livro sobre filosofia do direito: “Lukács,  
na Ontologia, não chega às minúcias de Pachukanis” (MASCARO, 2012a, p. 547).  
Portanto, o livro de 1924, de pouca utilidade como material didático ou como palavra  
final, é a grande referência do livro Filosofia do direito, com fins claramente didáticos,  
do professor da USP.  
Claro que isso pode indicar que a obra pachukaniana é mais robusta do que o  
próprio autor soviético percebe. No entanto, ao analisarmos a crítica marxista brasileira  
ao direito, devemos dizer que a incompletude da obra pachukaniana, por vezes, é  
tomada no sentido oposto do que pretende o autor soviético; em verdade, o  
tratamento eivado de certa unilateralidade e de um caráter sumário vem a facilitar um  
passo equivocado e oposto ao sentido da obra pachukaniana: a confecção de um  
órganon da crítica marxista ao direito. Isso se dá a ponto de se poder construir um  
léxico específico o qual, em último caso, daria, não só as bases para a melhor crítica  
marxista do Estado e do fascismo, mas o essencial dela. A leitura de Mascaro aparece  
de tal modo marcado de unilateralidade que somos levados a crer que, em verdade, o  
grande marxista do século XX não é Lênin, Lukács, Althusser, Rosa ou Gramsci. Tratar-  
se-ia, em verdade, do século de Pachukanis, que conseguiria chegar até o presente  
com o vigor e a força típicos de um clássico atemporal. Os cem anos de Teoria geral  
do direito e o marxismo seriam somente o começo do marxismo jurídico e não  
podemos deixar de destacar que tal escolha de denominação parece trazer  
(ironicamente) uma espécie de marxismo dos juristas.  
Engels se colocou contra o socialismo dos juristas em seu tempo. Não seria  
Verinotio  
478 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
necessário se opor às conclusões advindas da leitura de Mascaro? Mesmo que com  
base explicitamente althusseriana, o jusfilósofo acaba por colocar seu pachukanismo  
na frente das colocações do próprio Althusser e do marxismo dos séculos XX e XXI.  
Nesse sentido específico, é necessária uma crítica à apropriação de Mascaro da obra  
de Pachukanis.  
Pachukanis, o método de Marx e a possibilidade de uma teoria marxista do  
direito  
Ainda sobre a incompletude, bem como sobre o caráter seminal de Teoria geral  
do direito e o marxismo, devemos dizer algo mais: hoje, não deixa de estar marcada  
por um caráter problemático a afirmação de Miaille feita na década de 1970 sobre a  
crítica marxista ao direito: “o texto mais claro e mais interessante continua a ser o de  
E. P. Pachukanis, Teoria geral do direito e marxismo e, é claro, alguns textos de Marx,  
de Engels ou de Lenine” (MIAILLE, 2005, p. 14). Pachukanis aparece à frente de Marx,  
Engels e Lenin ao se abordar o direito! A história da substituição de Marx, Engels e  
dos marxistas por Pachukanis não é exclusivamente nacional, mas, o tom que o  
pachukanismo adquire nos posicionamentos superlativos de Mascaro talvez seja  
inédito.  
Também para Miaille, expoente da “teoria crítica do direito”, em sua fase inicial  
explicitamente marxista, Pachukanis é a régua. Mesmo que o autor francês coloque  
pensadores, por assim dizer, clássicos como referência, Pachukanis é o mais  
interessante para ele. Ademais, há uma valorização da teoria do direito, que, agora,  
como que por mágica, não é mais “geral” simplesmente, pois desenvolve-se uma teoria  
verdadeiramente crítica, que também disserta sobre categorias como norma, relação,  
sujeito jurídicos e outras, típicas do entendimento e da representação dos juristas e  
dos teóricos do direito.  
O suposto das afirmações de Miaille, de Naves e do próprio autor de Teoria  
geral do direito e o marxismo é a possibilidade de uma teoria marxista do direito. No  
limite, a tarefa da crítica marxista ao direito seria elaborar tal teoria, a qual  
complementaria a abordagem da crítica da economia política. Pachukanis, nesse  
sentido, seria exemplar por ter conseguido estender o “método” marxiano da economia  
para o direito.  
Desse modo, é preciso analisar a afirmação de Naves segundo a qual  
“Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx”, na medida em que, segundo o autor de  
Marxismo e direito, “ele retorna à inspiração original de Marx, ao recuperar o método  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 479  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
marxiano” (NAVES, 2000a, p. 16). No Brasil, a afirmativa de Naves é uma espécie de  
axioma, sendo o dogma da leitura pachukaniana e do marxismo jurídico justamente  
que Pachukanis recuperou o método de Marx. Doravante, na crítica marxista ao direito,  
parte-se da sistematização da incompletude de Teoria geral do direito e o marxismo.  
Ao passo que Pachukanis somente acredita que sua obra “esboça os traços  
fundamentais” (PACHUKANIS, 2017a, p. 65) daquilo que ele considera para a crítica  
marxista à teoria do direito, a saber, “o desenvolvimento histórico e dialético das  
formas jurídicas” (PACHUKANIS, 2017a, p. 65), Naves credita ao autor muito mais que  
isso.  
Porém, se o autor de Teoria geral do direito e o marxismo procura tal  
tratamento histórico e dialético, em suas palavras, “recorrendo aos principais conceitos  
que encontrei em Marx” (PACHUKANIS, 2017a, p. 65), não haveria como não existir  
certa unilateralidade e certo caráter sumário na exposição pachukaniana, como o  
próprio autor reconhece. Também por essa razão, não é possível afirmar que  
“Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx” (NAVES, 2000a, p. 16), porque sequer é  
isso que o autor pretende. Aquilo realizado – o mencionado “desenvolvimento  
histórico e dialético das formas jurídicas” (PACHUKANIS, 2017a, p. 65) – depende de  
se ter como ponto de partida as categorias da teoria geral do direito. E não se pode  
simplesmente dar um salto da crítica à economia política para a crítica à teoria geral  
do direito a não ser seguindo o procedimento das ciências parcelares, ou seja, com  
uma abordagem oposta à marxiana.  
A exposição pachukaniana é guiada pela relação entre a lei do valor, o  
fetichismo da mercadoria e as categorias da teoria geral do direito. O início de sua  
exposição está na relação jurídica, que seria uma relação entre sujeitos de direito (que  
expressariam, por sua vez, portadores de mercadorias e proprietários privados); e,  
também nesse sentido, não é possível dizer sobre o autor soviético que “ele retorna à  
inspiração original de Marx, ao recuperar o método marxiano” (NAVES, 2000a, p. 16).  
Marx critica o método da economia política e realiza uma crítica à economia política;  
Pachukanis, por sua vez, parte das categorias da teoria do direito para realizar uma  
crítica às categorias jurídicas e à teoria geral do direito. O estatuto da teoria geral do  
direito, porém, não é o mesmo da economia política. Se no último caso há grandes  
autores como Smith, Ricardo, Sismondi já para Marx (cf. SARTORI, 2018; MARRA DE  
ANDRADE, 2024) na teoria do direito, ou seja, na jurisprudência, pode-se dizer que  
não há autores com um tratamento científico autêntico. Austin e Maine, por exemplo,  
Verinotio  
480 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
são vistos como asnos pelo autor de O capital, como exposto em seus textos  
compilados sob a alcunha de Manuscritos etnológicos (cf. MARX, 1988). Em Marx, a  
teoria do direito expressa a apologética do capital de modo similar ao que acontece  
com a economia vulgar; a economia política clássica, por sua vez, significa algo muito  
distinto, a saber, o desenvolvimento científico das categorias da sociedade burguesa  
a partir da posição da própria classe burguesa.  
O procedimento de Pachukanis diante da teoria do direito é original e não se  
aproxima do que geralmente é considerado como “o método de Marx”. A maneira de  
proceder de Marx depende da possibilidade de realizar uma crítica imanente às  
categorias da ciência que melhor apreende o ser-propriamente-assim da sociedade  
capitalista, a economia política. Pachukanis, ao contrário de Marx, questiona o  
desenvolvimento de um campo específico aos juristas e ao tratamento que se dá na  
esteira de autores como Austin, Maine e Savigny, já criticados duramente por Marx,  
tanto em seu período formativo, na Gazeta Renana, quanto em seus escritos do final  
da vida. O autor de Teoria geral do direito e o marxismo, portanto, procura adentrar  
em um campo extremamente problemático e não realiza algo que tem um precedente  
em Marx; antes utiliza-se de um procedimento arriscado e que somente se justifica no  
contexto em que o fenecimento do direito parece estar no horizonte, mesmo que  
longínquo, da Revolução Russa.  
Porém, há meandros no tema porque, para Pachukanis, é necessária uma crítica  
à teoria geral do direito e, segundo o jurista soviético, “a teoria geral do direito e toda  
a jurisprudência ‘pura’ não são outra coisa senão uma descrição unilateral”. Ela seria  
extremamente problemática porque sua “pureza” não decorreria de uma pretensa  
cientificidade, mas do fato de ela se desenvolver na medida em “que abstrai todas as  
outras condições das relações dos homens que aparecem no mercado como  
proprietários de mercadorias” (PACHUKANIS, 1988, p. 9). Pachukanis, assim, chega à  
mercadoria e aos proprietários de mercadoria a partir de uma crítica à teoria geral do  
direito e, em especial, aos conceitos de relação jurídica e de sujeito de direito. Aquilo  
que subjaz em sua crítica à teoria geral do direito, portanto, é o uso de categorias da  
crítica da economia política, algumas das quais são vistas como fundamentais e  
basilares para a empreitada de uma crítica marxista ao direito. É certo, portanto, que  
as categorias marxianas da crítica da economia política são o pano de fundo da crítica  
pachukaniana ao direito e à teoria geral do direito, e isso é bastante original.  
Entretanto, há diferenças substanciais em relação à obra de Marx; trata-se de  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 481  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
algo típico de um momento em que, de acordo com Pachukanis, “o marxismo, portanto,  
está apenas começando a ganhar um novo campo” (PACHUKANIS, 2017a, p. 59). De  
um lado, é preciso destacar a originalidade pachukaniana, bem como o caráter  
somente inicial de sua pesquisa; de outro, é bom ressaltar que dizer, como Naves, que  
ele recupera o “método de Marx” e compreende plenamente o direito no autor de O  
capital é algo contrário ao texto de Marx e aos propósitos da própria obra centenária  
do jurista soviético.  
Pachukanis, ao contrário de Marx, está explicitamente procurando desenvolver  
uma abordagem científica da crítica marxista à teoria geral do direito. E mesmo se  
considerarmos como verdadeira a afirmação problemática de Naves segundo a qual  
Teoria geral do direito e marxismo teve o efeito de uma pequena revolução teórica  
na jurisprudência” (NAVES, 2000a, p. 16), vale destacar que o intuito de Pachukanis  
não é o mesmo que o do autor de O capital. Inclusive, há um posicionamento por parte  
do autor soviético sobre o estatuto da crítica à teoria geral do direito que precisa ser  
ressaltado:  
Cada ciência constrói a realidade concreta de acordo com sua riqueza  
de formas, relações e dependências como resultado da combinação  
de elementos mais simples e de abstrações mais simples.  
(PACHUKANIS, 2017a, p. 81)  
O posicionamento pachukaniano pressupõe certa especialização da ciência, que  
conduziria à possibilidade de levar a sério a empreitada de uma crítica à teoria geral  
do direito a partir da apresentação das categorias dessa própria teorização. Em  
verdade, cada ramo que o autor acredita ser importante tratar, até certo ponto, parte  
de uma construção epistemológica da realidade concreta. O procedimento  
metodológico de Pachukanis, portanto, tem uma ênfase na construção do objeto  
científico no plano gnosiológico e, como mostraram Chasin (2009) e Lukács (2012a;  
2012b; 2013), tal procedimento é absolutamente estranho a Marx e ao marxismo mais  
cuidadoso. Quer se queira, quer não, as pretensões pachukanianas de desenvolver  
uma teoria marxista do direito têm isso como substrato e como pano de fundo. Trata-  
se de algo original no marxismo, mas, se tomarmos a obra do próprio Marx como  
referência, tal procedimento é arriscado.  
Em Teoria geral do direito e o marxismo, a objetividade do pensamento teria  
como suposto um enfoque epistemológico típico de uma abordagem, por assim dizer,  
construtivista do objeto da ciência. Se, como diz Pachukanis, “cada ciência constrói a  
realidade concreta de acordo com sua riqueza de formas” (PACHUKANIS, 2017a, p.  
Verinotio  
482 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
81), há uma oposição gritante em relação ao que afirmam Marx e Engels nA ideologia  
alemã: “conhecemos apenas uma ciência, a ciência da história” (MARX; ENGELS, 2002,  
p. 107). Com isso, não só o estatuto da teoria geral do direito não é compatível com  
aquele da economia política, como o autor soviético parte de uma concepção de  
ciência que é problemática. Não obstante existam contraposições no próprio autor a  
essas tendências, a sua empreitada traz essas marcas em suas origens, as quais, por  
sua vez, ligam-se intimamente às pretensões revolucionárias dos acontecimentos de  
1917.  
Em outras palavras, Pachukanis tem a pretensão de aproximar a crítica da teoria  
geral do direito à crítica da economia política. Tal tentativa traz as marcas da Revolução  
Russa, da crença segundo a qual o direito e a teoria geral do direito estão em  
fenecimento, bem como da tentativa de elaborar uma nova cientificidade socialista.  
Assim, a teoria pachukaniana não pode ser criticada em abstrato, mas em ligação com  
o contexto revolucionário do começo do século XX. A aproximação pachukaniana não  
está presente em Marx, portanto, ele não segue o “método de Marx” em seu  
procedimento de crítica a teoria geral do direito. Antes, traz algo original e  
dependente do eventual sucesso dos objetivos mais radicais da revolução de 1917. O  
enfoque epistemológico do conceito de ciência do autor também é problemático e  
precisa ser compreendido em relação com as aspirações de sua época. O resultado é  
que há certo elemento único no livro do jurista soviético, caráter esse que faz com que  
seu trabalho não possa simplesmente ser transposto para o presente, em que as  
condições são opostas às do começo do século XX.  
Sobre a necessidade da crítica à ideologia jurídica  
A valorização pachukaniana da teoria geral do direito leva o autor a posições  
que consideramos problemáticas, porém, também direciona a um embate com a  
concepção de mundo dos expoentes importantes do campo jurídico. Ou seja, caso  
sigamos os padrões estipulados pelo próprio autor de Teoria geral do direito e o  
marxismo, seus seguidores teriam se dedicado somente parcialmente ao seu projeto,  
também, porque o próprio jurista soviético estava atento ao melhor da teoria burguesa  
de sua época, conhecendo bem Kelsen, Jellinek, Schmitt, por exemplo. Pachukanis  
chega mesmo a destacar as mudanças no funcionamento do direito, e mais  
precisamente da ideologia jurídica, a partir da leitura da obra de M. Hauriou. Ou seja,  
também ao criticar a teoria burguesa do direito, Pachukanis intentava desenvolver sua  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 483  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
teoria, torná-la menos incompleta e unilateral, procurando realizar uma espécie de  
crítica imanente da ideologia jurídica ao buscar enxergar suas determinações e funções  
concretas. Sua postura, nesse sentido, se distancia da sistematização de uma espécie  
de léxico, não acreditando que os conceitos tratados em Teoria geral do direito e o  
marxismo seriam suficientes e, também por isso, em sua crítica à teoria geral do direito,  
ele procura compreender e criticar o aparato categorial desenvolvido pelo melhor da  
teoria burguesa no campo em que adentra.  
Não basta ao autor somente mostrar o caráter ilusório da ideologia jurídica.  
Seria preciso mostrar a efetividade da representação jurídica, inclusive, nas teorias  
burguesas, empreitada que não é levada a cabo por seus continuadores. Ao escrever  
sobre Hauriou, diz Pachukanis que “a teoria burguesa do estado é a cortina ideológica  
que deve cobrir o fato nu da dominação de classe, legalizá-la, justificá-la”, porque seria  
necessário “convencer que o poder do estado não é um simples fenômeno de força,  
mas baseado no direito”, de modo que seria preciso olhar estas questões na obra do  
autor tratado, bem como na obra de outros autores da teoria do direito. Com isso, o  
projeto pachukaniano e, em verdade, marxista leva à crítica rigorosa e cuidadosa  
do pensamento burguês. No caso do autor, sua crítica ao direito leva-o ao embate com  
os principais autores do campo, os quais, não obstante ideólogos da sociedade  
capitalista, precisariam ser levados a sério.  
Assim, Pachukanis estipula que, “avaliando a obra de Hauriou e passando suas  
considerações sobre o crivo marxista, o leitor obterá matéria riquíssima para a  
confirmação do pensamento de Lênin” sobre a onipotência da riqueza em uma  
república democrática (PACHUKANIS, 2017b, pp. 278-9). Desse modo, é vital  
chamarmos a atenção para o fato de que o autor de Teoria geral do direito e marxismo  
se encontra em fronts complementares ao elaborar sua teoria. O primeiro deles diz  
respeito à leitura e ao entendimento dos clássicos do marxismo, sobretudo Marx,  
Engels e Lênin. No segundo, ele busca compreender as relações jurídicas em sua  
concretude, voltando-se tanto para as práticas econômicas quanto para a ideologia  
jurídica em sua elaboração mais pertinente. Nesse último aspecto, tratando das formas  
ideológicas, Pachukanis realiza uma espécie de crítica às ideologias jurídicas, e não só  
ao aparato categorial da teoria geral do direito, buscando desvendar o que há de  
melhor na teoria burguesa de sua época e apreendendo as mudanças e o movimento  
expressos ideologicamente.  
As mudanças pelas quais o direito e a própria sociedade capitalista passavam  
Verinotio  
484 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
deveriam ser analisadas cuidadosamente, de acordo com o próprio autor de Teoria  
geral do direito e o marxismo. Isso seria essencial para o projeto pachukaniano e,  
também por essa razão, o livro de 1924 não poderia ser um ponto de chegada, como  
já salientamos há pouco. O seu caráter sumário e certa unilateralidade na exposição  
não poderiam levar a crítica marxista ao direito muito longe. Em verdade, ela ficaria  
simplesmente repisando sobre os pontos de partida desenvolvidos, em grande parte,  
para autoesclarecimento e na forma de rascunhos. E, sob o risco de repetição, devemos  
deixar claro que o procedimento pachukaniano sob esse aspecto é oposto à criação  
de um órganon da crítica do direito, ou de um léxico. Segundo ele, para realizar uma  
crítica marxista da teoria geral do direito algo que estaria somente no seu início  
naquele momentotambém seria preciso voltar os olhos para as próprias teorias do  
direito da época em que se encontra. Pachukanis procedeu dessa maneira em seu  
tempo, na medida do possível, em meio à situação turbulenta em que se encontrava.  
Nesse sentido, para ser fiel à sua iniciativa, seria necessário avançar neste campo, em  
que ele deu os primeiros passos. Porém, salvo raras exceções, como a empreitada de  
Akamine (2017) que se deteve sobre o pensamento de Kelsen, a tradição  
pachukaniana se absteve dessa tarefa. E, também por essa razão, a leitura  
althusseriana do autor da obra de 1924 precisa ser criticada de modo decidido.  
Sobre esse aspecto, notamos que a tradição althusseriana capitaneada por  
Naves, e o ímpeto de divulgação de Mascaro, deram pouquíssimos passos. E, assim,  
também por essa razão, uma tradição superior àquela hegemônica na crítica brasileira  
ao direito precisa vir à tona. Pelo que mencionamos, é necessário voltar-se a marxistas  
de grande fôlego, como, por exemplo, Lukács. O marxista húngaro, assim, aponta para  
algo sobre a filosofia em A destruição da razão, que também é válido para a crítica ao  
direito:  
A recusa da crítica imanente como elemento de uma exposição global,  
que seja capaz de abarcar simultaneamente gênese e função social,  
característica de classes, desmascaramento social etc. deve conduzir  
necessariamente a um sectarismo na filosofia, pois leva a uma  
concepção de que tudo o que pode parecer claro e óbvio a um  
marxista-leninista consciente também deve parecer claro a seus  
leitores, sem necessidade de provas. (LUKÁCS, 2020, p. 11)  
Caso não se analise as teorias do direito com cuidado, corre-se o risco de duas  
falhas correlatas. Uma delas é contentar-se em pregar para convertidos, no caso  
brasileiro, repetindo incessantemente os pontos de partida presentes em Teoria geral  
do direito e o marxismo, e, ao fim, desenvolvendo um sistema e um léxico próprios.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 485  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
Um procedimento dessa natureza é identificado por Lukács como uma espécie de  
sectarismo, em que se torna desnecessário colocar à prova os princípios do marxismo  
e, acrescentamos, da crítica marxista ao direito. Outra falha que pode ser aqui indicada  
é a existência de uma crítica apressada e vulgar às teorias do direito vigentes no bojo  
da qual são desferidos ataques às suas formas caricaturais. Proceder desse modo é  
muito mais fácil que debruçar-se sobre a gênese, a estrutura e a função social dessas  
formações ideais. Entretanto, é bastante equivocado. Por essas razões, a exposição de  
uma crítica marxista ao direito não pode prescindir da explicitação destes elementos e  
a crítica imanente das formas ideológicas, portanto, se constitui como parte da crítica  
ao direito. Tal qual a crítica à filosofia burguesa é essencial para a apreensão da visão  
de mundo predominante na sociedade capitalista, é imprescindível uma crítica à  
ideologia da teoria do direito.  
E, se isso é verdade, seria necessário um trabalho análogo àquele realizado por  
Lukács em A destruição da razão em relação à filosofia. E essa tarefa, em certo sentido,  
sequer foi colocada com a seriedade necessária pela crítica marxista ao direito.  
Para que sejamos honestos, é preciso mencionar a existência na obra de  
Alysson Mascaro de críticas aos teóricos do direito4. Contudo, isso ocorre em seus  
livros didáticos Filosofia do direito e Introdução ao direito, sendo necessário referir  
alguns comentários: não se pode desconsiderar a importância da divulgação da crítica  
jusfilosófica (expressão cara ao autor de Estado e forma política), bem como do  
incentivo aos primeiros passos em direção a uma abordagem marxista. Sob esse  
prisma, os esforços de Mascaro são importantes. Porém, a crítica imanente a que nos  
referimos é muito mais que isso. Em um manual de uma disciplina de uma faculdade  
de direito, não é minimamente possível realizar uma tarefa da envergadura proposta  
por Lukács. Os manuais de Mascaro não devem, de modo algum, qualitativa e  
quantitativamente, substituir a tarefa defendida pelo filósofo húngaro na escrita de A  
destruição da razão, pois os propósitos de divulgação de Mascaro acabam por resultar  
em uma perda de parte da precisão necessária à empreitada.  
Por exemplo, o autor paulista avalia, é verdade que com fins didáticos e de  
divulgação somente, que “no presente o direito é técnico, frio, impessoal, calculista”  
(MASCARO, 2012b, p. 188). Ele também afirma que “o jurista médio, frio e tecnicista,  
4 Do ponto de vista pachukaniano, há uma incursão bastante interessante na obra de Kelsen por parte  
de Oswaldo Akamine Jr. (2017), em seu A teoria pura do direito e o marxismo. De nossa parte,  
abordamos a obra kelseniana ao tratar, a partir de Lukács, da interpretação na obra do autor (cf.  
SARTORI, 2016a).  
Verinotio  
486 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
só tem olhos às normas jurídicas estatais. O grande jurista tem olhos voltados à  
esperança de um mundo justo” (MASCARO, 2012b, p. 189). E não podemos deixar de  
dizer algo incômodo: sua fala aproxima-se mais daquilo que dissera Lyra Filho, e que  
é repetido pelos professores de filosofia e de teoria do direito ad nauseam, que de  
uma continuidade e um revigoramento da teoria pachukaniana. Ainda mais grave: tal  
oposição entre o grande jurista e o jurista médio poderia ser aceita, inclusive, por  
teorias do direito conservadoras e, no limite, elitistas, as quais não deixam de marcar  
a vida universitária brasileira e são injustificáveis em um tratamento marxista rigoroso.  
É claro que não é essa, efetivamente, a posição de Mascaro, autor que reafirma a todo  
o momento a necessidade de crítica ao direito como tal, a partir de Pachukanis e de  
sua leitura de outros autores do marxismo como Althusser. Mas sua exposição leva a  
interpretações eivadas de uma clara unilateralidade e exagero também sob esse  
aspecto da crítica ao direito.  
Podemos concluir que a crítica inspirada em Pachukanis e realizada por Naves  
raramente adentra na crítica imanente da teoria do direito e que a abordagem dos  
manuais de Mascaro leva a certo pachukanismo que corre o risco de realizar a crítica  
à teoria do direito apressadamente. Quando o professor da USP (2012a; 2012b)  
refere-se aos autores da teoria do direito, como Kelsen, Hart, Dworkin, estigmatiza-os  
simplesmente como acríticos, dogmáticos e tecnicistas. Não discutiremos agora até  
que ponto Mascaro pode ter alguma razão sobre esse aspecto específico. Porém,  
claramente, seu procedimento é diferente daquele defendido pelo autor de Teoria geral  
do direito e o marxismo. Consequentemente, o autor de Estado e forma política não  
cumpre os requisitos daquele que pretende seguir ou de um autor como György  
Lukács. Pachukanis, por outro lado, demonstra um procedimento distinto, valendo  
lembrar que é o prefaciador da edição russa do livro de Hauriou e nutre interesse  
autêntico pela obra do autor francês. Nesse sentido, a crítica marxista ao direito sequer  
chega ao estágio em que a teoria pachukaniana chegou.  
A partir de uma crítica à técnica que não deixa de lembrar a heideggeriana no  
campo da filosofia5 (cf. MAMMAN, 2003) e a de Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2003) na  
teoria do direito, Mascaro passa longe de acreditar ser necessária a autêntica crítica  
imanente de formas ideológicas que ganham destaque no campo da teoria do direito.  
5 Por vezes, o autor brasileiro parece ver com bons olhos as teorias de Heidegger e Gadamer, sobre os  
quais diz: “não apresentam de modo algum, um pensamento conservador, na medida em que são  
antimodernos e antiliberais” (MASCARO, 2012a, p. 317).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 487  
nova fase  
 
Vitor Bartoletti Sartori  
Ele as ataca, mas sua crítica não pretende explicitar a estrutura, a gênese e a função  
social dessas formações ideais. Como resultado de tal procedimento, um estudioso  
desses autores que venha a analisar os posicionamentos de Mascaro, rapidamente  
enxergaria (e com razão) imprecisões e inconsistências. Novamente, é preciso  
considerar que o autor paulista escreve um manual e, assim, sua exposição está eivada  
de simplificações. Não obstante, não é possível silenciar diante de seu distanciamento,  
tanto do projeto pachukaniano de uma crítica marxista à teoria do direito, quanto dos  
requisitos de uma verdadeira crítica imanente das ideologias. No último caso, a  
explicitação da tessitura categorial das formas ideológicas analisadas impede a  
estigmatização e a unilateralidade, presentes no manual do autor de Filosofia do  
direito e Introdução ao estudo do direito.  
Pachukanis também pretendia escrever um manual, contudo, não é necessário  
ter medo de errar ao estipular que ele não realizaria tal tarefa do mesmo modo que o  
jusfilósofo paulista o faz. O autor de Estado e forma política analisa os autores  
mencionados somente em seu manual, e de modo rápido. Isso pode denotar que ele  
tem conhecimento sobre Kelsen, Hart, Dworkin, Alexy etc. (até mesmo por dever de  
ofício), mas a tarefa de uma crítica à teoria geral do direito precisa ir muito além. O  
resultado é que a chamada crítica marxista ao direito ainda carece de um exercício de  
crítica imanente diante dos principais autores da teoria do direito, exercício esse que  
busque explicitar as determinações essenciais de suas teorias, ao mesmo tempo em  
que as funções concretas delas são destacadas. Isso se dá tanto ao se seguir  
Pachukanis quanto Lukács e, portanto, o exercício de Mascaro é bastante insuficiente  
sob esse aspecto específico.  
Pachukanis depois da Revolução Russa  
Há ainda um elemento essencial sobre a obra centenária de Pachukanis: ao  
retomá-la, estamos trazendo à tona uma obra importante, que, sem o devido cuidado,  
também é acompanhada de um fetiche por um projeto ligado à Revolução Russa e ao  
século XX.  
O cenário em que é escrito Teoria geral do direito e o marxismo é aquele de  
relações jurídicas persistentes porque a Revolução russa não logrou suprimir o direito.  
Desse modo, mesmo que com uma perspectiva de supressão das relações jurídicas,  
mantem-se a base real da esfera jurídica no desenvolvimento dessa revolução. Foi em  
meio a esse cenário que Pachukanis e Stutchka desenvolveram suas práticas e suas  
Verinotio  
488 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
teorias, tratando-se de dois revolucionários com cargos importantes, respectivamente  
vice-comissário do povo para a justiça e comissário do povo para a justiça. Pachukanis,  
por exemplo, é explícito ao articular sobre o direito e seus conceitos: “os conceitos  
jurídicos fundamentais, ou seja, formais, continuam existindo em nossos códigos e nos  
comentários a eles correspondentes.” Desse modo, inclusive, “permanece em vigor  
também o método do pensamento jurídico com suas práticas específicas”  
(PACHUKANIS, 2017a, p. 68).  
A ênfase pachukaniana na teoria geral do direito decorre desse momento sui  
generis, em que se acredita estar lidando com um direito e com uma teoria do direito  
em fenecimento. Não obstante, tanto ele como Stutchka trazem essa ênfase porque as  
tarefas da revolução a eles impostas dizem respeito à lida com o direito, com as  
relações jurídicas, com o método do pensamento jurídico e com os conceitos jurídicos.  
Nesse sentido específico, a obra de 1924 tem uma estrutura única e indissociável de  
um momento específico da Revolução Russa, em que se acreditava na necessidade de  
supressão do direito mas em que as categorias, o método e as práticas jurídicas  
persistiam no dia a dia dos revolucionários da URSS em construção.  
A busca de uma abordagem crítica e marxista da teoria geral do direito,  
portanto, é muito mais algo imposto pelas circunstâncias que uma escolha coerente e  
consciente no sentido de se retomar o “método” de Marx. Nesse sentido preciso, é  
essencial compreender revolucionários como Stutchka e Pachukanis para que sejam  
elucidados os rumos da Revolução Russa. Em nossa opinião, uma abordagem marxista  
da experiência soviética deve cumprir essa tarefa. Todavia, simplesmente retornar aos  
autores que escreveram há cem anos nos primórdios da revolução, sem as devidas  
mediações, pode ser perigoso e unilateral. De um lado, fica difícil compreender as  
propostas dos autores, as quais são indissociáveis dos contraditórios rumos que a  
revolução toma, principalmente, durante o comunismo de guerra e, depois, com a NEP.  
Em segundo lugar, como dissemos, ao passo que nunca pode ser, aquilo desenvolvido  
de modo inicial por Pachukanis (e por Stutchka) foi visto como algo, não raro, acabado  
por parte dos pachukanianos e, principalmente, por um viés, por assim dizer,  
pachukanista.  
Consequentemente, mesmo que existam méritos na tradição de crítica ao direito  
que se desenvolve sob os auspícios de Márcio Naves, ela acaba reiterando pontos de  
cem anos atrás, sem que se possa compreender efetivamente a ligação do projeto  
pachukaniano com a revolução. Também por isso, há lapsos por parte do  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 489  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
althusserianos-pachukanianos na compreensão das limitações dessa teoria quanto ao  
presente. Quer queira, quer não, o projeto de socialismo que se inicia com a Revolução  
Russa e toma forma na URSS está morto. Sem a compreensão e a crítica dos rumos da  
revolução que marcou o século XX, retomar Pachukanis diretamente é colocar-se diante  
do mundo contemporâneo sem a apreensão mais básica das determinações do  
presente e, em verdade, do passado.  
Pachukanis e Stutchka eram revolucionários e a relação entre marxismo e teoria  
geral do direito somente foi possível em meio a esse cenário, em que as relações e os  
métodos jurídicos persistiam, mas tinham consigo a possibilidade de sua supressão.  
Hoje, por outro lado, o marxismo jurídico de Mascaro também atua política e  
praticamente, é certo. Porém, Silvio Almeida principal discípulo do autor de Estado  
e forma política, e ex-ministro dos direitos humanos não é uma sombra do que foram  
os juristas marxistas soviéticos. Ele foi o ministro de uma pasta que realiza o elogio  
acrítico do que Almeida sempre criticou, os direitos humanos. Mas, muito pior, Almeida  
sequer pôde pensar em questionar o caráter militar da polícia ou realizar eventos em  
crítica à ditadura militar de 1964. O autor de Racismo estrutural possui um papel, na  
melhor das hipóteses, nada revolucionário. Sequer foi-lhe permitido pelo governo  
brasileiro protestar simbolicamente contra o que resta da ditadura brasileira (e que é  
muito) e, assim, enquanto o marxismo de Pachukanis depende do desenvolvimento  
contraditório da Revolução Russa, a função concreta de certas leituras feitas da  
principal obra de Pachukanis são, ao fim, a conivência e o apoio a um governo que  
não possui qualquer perspectiva do novo e, muito menos, da supressão do direito, do  
Estado, da propriedade privada, enfim, do próprio capitalismo. Nesse sentido  
específico, há um risco real de a leitura althusseriana de Pachukanis se converter em  
um pastiche teoria do autor soviético.  
Teoria geral do direito e o marxismo faz cem anos em 2024, mas, pelo que  
observamos, ao invés do avanço diante do projeto pachukaniano, ficamos aquém do  
que o próprio autor estipulou. Ademais, os discípulos do autor soviético não  
problematizaram seu projeto suficientemente. Como consequência, ao invés de  
estarmos à sua frente com um avanço sólido decorrente de um século de crítica ao  
direito bem estruturada , permanecemos aquém do que foi desenvolvido há cem anos.  
Em palavras duras, mas necessárias: estamos presos a problemas de cem anos atrás,  
sendo que a época da Revolução Russa já se foi. Se retomamos Pachukanis (ou  
Stutchka) em continuidade com o modo como foi recepcionada a obra pachukaniana  
Verinotio  
490 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
no Brasil, hoje, não avançamos mais.  
Sendo assim, é necessário dar um passo adiante e questionar o apego às  
conclusões mais basilares e, por vezes, unilaterais do autor. Isso é essencial para que  
seja possível desenvolver uma crítica marxista ao direito com o mínimo de potencial e  
de futuro. Estamos ainda presos no passado marcado pela centralidade do modelo  
soviético de revolução e, mesmo que esse passado tenha sido grandioso, não é  
fingindo que ele ainda é uma alternativa que podemos realizar uma crítica marxista  
digna de tal nome.  
Forma jurídica e o caráter capitalista do direito como problema necessário à  
crítica marxista do direito: a posição de Lukács em contraposição à abordagem  
pachukaniana  
Para desenvolver a crítica marxista ao direito, é vital indicar abordagens de  
grandes autores em relação aos principais temas levantados por Pachukanis, como o  
fenecimento do direito, a forma jurídica e a ligação entre direito e capitalismo. O jurista  
soviético tem como mérito destacar tais aspectos da crítica ao direito, a qual, depois  
de Teoria geral do direito e o marxismo, não pode mais se esquivar dessas questões.  
Assim, no momento final desse texto, buscaremos externar certas aproximações entre  
os problemas elencados e a teoria de Lukács para que, assim, seja possível se  
posicionar sobre os caminhos da crítica marxista ao direito e sobre a necessidade de  
superar as aporias da leitura althusseriana de Teoria geral do direito e o marxismo.  
Um primeiro ponto essencial aparece na temática principal para a crítica  
marxista ao direito, a forma jurídica e sua relação com a sociedade capitalista. A  
questão, em verdade, ultrapassa uma abordagem ligada à apresentação dos conceitos  
da teoria do direito e se vincula às preocupações fundamentais daqueles que procuram  
criticar efetivamente a esfera jurídica como um todo. Assim, uma prova importante de  
que um autor é capaz de criticar o direito está em sua capacidade de analisar tal forma.  
Um dos pontos de partida da teoria pachukaniana é o liame interno entre a  
forma do direito e a forma-mercadoria. Tal posição, por sua vez, implica na afirmação  
segundo a qual o direito só existe propriamente na sociedade capitalista. De acordo  
com Teoria geral do direito e o marxismo, trata-se de uma sociedade em que a  
produção social desenvolve uma esfera de trocas que tem como pressuposto a  
igualdade jurídica e, portanto, a categoria do sujeito de direito. Ou seja, a gênese do  
direito bem como a sua extinção ligam-se à vigência do sistema capitalista de  
produção; o resultado é que, para Pachukanis, não há um direito propriamente dito  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 491  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
senão sob o domínio das categorias da sociedade capitalista, afirmando o autor  
soviético, nesse sentido, “reconhecer a existência do direito somente na sociedade  
burguesa” (PACHUKANIS, 1988, p. 9).  
A relação jurídica, portanto, seria uma espécie de relação social especificamente  
capitalista e unida indissoluvelmente aos sujeitos autodeterminados, iguais –  
proprietários de mercadorias potenciais. Por essa razão, haveria uma correlação  
necessária entre as categorias presentes na teoria geral do direito, e em especial a  
noção de sujeito de direito, e a forma-mercadoria que se põe universalmente depois  
de determinado momento da história, especificamente, no modo de produção  
capitalista.  
O marxista húngaro, por sua vez, também frisa a especificidade do direito  
capitalista em sua obra madura, mas aponta o surgimento do direito na esteira de  
Engels (2002) como correlato ao da família patriarcal monogâmica, da propriedade  
privada e do estado. Em consequência, para o autor, o direito surge anteriormente ao  
capitalismo, e, assim, para poder comparar a posição do autor com a de Pachukanis,  
torna-se vital analisar as posições de Lukács sobre o que ele chama de  
homogeneização do direito:  
Por mais diferenciados que sejam os conteúdos jurídicos na sua  
gênese e na sua vida concreta, a forma jurídica adquire  
homogeneidade própria somente no curso da história; quanto mais a  
vida social se faz social, tanto mais nítida se torna tal homogeneidade.  
(LUKÁCS, 2013, p. 223)  
A forma jurídica expressão também cara a Pachukanis adquire suas  
características definidoras e marcantes no transcorrer do processo de socialização da  
sociedade, cuja base está na relação entre indivíduos, sociedade e natureza (cf.  
LUKÁCS, 2013). Para o autor húngaro, isso significa que o afastamento das barreiras  
naturais e a conformação crescentemente social das determinações da vida dos  
homens leva, mesmo que mediante o processo de reprodução, à homogeneidade da  
forma jurídica. Assim, o autor de Para uma ontologia do ser social liga o  
desenvolvimento da forma mencionada à autonomização do direito diante de da ética  
e da moral, buscando explicitar o processo histórico pelo qual a homogeneidade  
própria ao direito emerge historicamente. A forma jurídica, portanto, não é  
transistórica, como em Pachukanis. Também há um processo em que a especificidade  
do direito aparece de modo claro tanto mais sociais as categorias se tornam no  
processo em que, “a vida social se faz social” (LUKÁCS, 2013, p. 223).  
Verinotio  
492 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
A homogeneidade, por sua vez, faz com que a esfera jurídica adquira  
características próprias, que possibilitam aos indivíduos atuarem de modo  
propriamente jurídico. Ou seja, a formação de uma homogeneização que configure a  
forma jurídica é um processo social que adquire tanto mais proeminência quanto mais  
avançado é o afastamento das barreiras naturais, e quanto mais destacam-se as  
determinações puramente sociais no seio das esferas do próprio ser social. Por essa  
razão, a forma jurídica ganha mais relevo e se consolida progressivamente justamente  
na situação que depende do processo em que a vida adquire determinações  
crescentemente sociais e que está mais claro justamente na sociedade capitalista.  
Lukács, portanto, destaca também uma forma jurídica anterior ao capitalismo tal qual  
Pachukanis; ao mesmo tempo, porém, enfatiza o caráter processual e histórico pelo  
qual tal forma vai adquirindo homogeneidade, bem como as suas determinações mais  
marcantes e características somente no modo de produção capitalista. Também nesse  
sentido, há certa convergência entre o marxista húngaro e o jurista soviético e, com  
isso, uma das grandes contribuições de Pachukanis pode ser analisada a partir das  
lentes da obra madura de Lukács.  
Para Lukács, somente na sociedade capitalista a especificidade do direito  
aparece com a maior clareza possível, de modo que a homogeneização desse  
complexo social jurídico se explicita. Seria, portanto, equivocado acusar o marxista  
húngaro de descuidar da principal temática pachukaniana. Se é verdade que o grande  
legado de Pachukanis teria sido a tematização sobre a forma jurídica, como querem  
teóricos como Alysson Mascaro, ao analisar a obra lukacsiana, mesmo que somente  
por esse parâmetro (o que é de uma unilateralidade marcante), é errônea a posição de  
acordo com a qual “Lukács, na Ontologia, não chega às minúcias de Pachukanis”  
(MASCARO, 2012a, p. 547). Consequentemente, há proximidade da posição de Lukács  
diante daquilo que diz Pachukanis sobre seu tema mais importante. Por conseguinte,  
há um forte argumento para desenvolver uma crítica ao direito a partir da obra do  
marxista húngaro.  
Lukács também é explícito sobre o surgimento e o fenecimento do direito –  
outro grande tema pachukaniano – no sentido de que “os limites histórico-sociais da  
gênese e do fenecimento da esfera do direito estão determinados fundamentalmente  
como limites temporais” (LUKÁCS, 2013, p. 244). Ou seja, não há no autor húngaro  
qualquer consideração do direito como uma forma de relação social atemporal e  
inespecífica. Ademais, existe uma posição explícita segundo a qual é necessária a  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 493  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
supressão do direito.  
Tal qual ocorre em Teoria geral do direito e o marxismo, encontramos uma  
crítica decidida às abordagens a-históricas sobre o direito em Lukács. Muito embora  
ele não parta da apresentação da teoria geral do direito, o tema subjacente à  
teorização pachukaniana também é abordado com rigor pelo filósofo húngaro. Por  
essa razão, resta claro que apreensão pachukaniana sobre o direito e a obra de Marx  
não é a única possível, sendo necessário admitir: mesmo ao se ter em conta o melhor  
da obra de Pachukanis, há autores relevantes que trazem abordagens, pelo menos,  
tão ricas quanto aquelas do autor soviético. Lukács ainda tem a vantagem de explicitar  
seus fundamentos de modo muito mais claro e organizado, sem que seja necessário  
compatibilizar a abordagem do complexo jurídico com aspectos mais gerais do  
marxismo de outros autores. Resta evidente um ponto: o grande mérito do autor  
soviético tratar da historicidade da forma jurídica, bem como da relação dela com o  
valor e a forma-mercadoria não é exclusividade sua. Fica uma pergunta decisiva: por  
que, então, não se voltar a autores que trouxeram posições semelhantes e  
desenvolveram com cuidado os próprios fundamentos? Parece-nos que a crítica  
marxista ao direito tem muito a ganhar com isso.  
O tratamento lukácsiano da forma jurídica assim como o pachukaniano –  
resulta na vinculação dessa forma com o desenvolvimento do modo de produção  
capitalista. É especialmente importante destacar tal posição, considerando os embates  
sobre o comunismo e sobre a inexistência de uma espécie de “direito socialista”: o  
autor húngaro é bastante claro ao dizer que “é inquestionável que não existe um  
direito socialista”; no que continua: “o desenvolvimento do socialismo rumo ao  
comunismo criará uma condição social que não necessitará do direito; por isso, não  
creio que, desse ponto de vista, se possa falar num direito socialista especial” (LUKÁCS,  
2008, p. 245). Como se vê, tanto o jurista soviético quanto o marxista húngaro criticam  
a posição que defende a existência de uma espécie distinta e superior de direito, algo  
como um direito socialista. Nesse sentido, outro grande atrativo da abordagem  
pachukaniana também é desenvolvido autonomamente por György Lukács, autor que,  
como já mencionado, explicita seus fundamentos e suas posições de modo muito mais  
claro e organizado que Pachukanis.  
A partir da leitura da obra de Marx, Lukács chega a dizer que, ao aceitar na  
esteira de Lênin o socialismo como um momento transicional, tem-se que “não há  
diferença entre o direito socialista e o direito capitalista” (LUKÁCS, 2008, p. 245). Para  
Verinotio  
494 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
o autor húngaro, a existência do direito é um sintoma de que as questões essenciais  
na superação das sociedades classistas ainda não estão efetivamente resolvidas. E  
mais, haveria uma correlação entre as formas econômicas capitalistas (como a forma-  
mercadoria e a forma-dinheiro) e o direito, como já havia destacado o próprio Marx na  
Crítica ao programa de Gotha. Por conseguinte, ao tratar do trabalho socialmente  
necessário desenvolvido sob a vigência da lei do valor e da equiparação advinda da  
validade dessa forma de trabalho na civilização capitalista, Lukács na esteira de Marx  
problematiza a transição. Portanto, outro ponto central para Pachukanis (e outra  
razão do sucesso do autor) aparece em Lukács com destaque: tal qual para o jurista  
soviético, em um primeiro momento da transição, no socialismo, Marx teria defendido  
que ainda está vigente a forma burguesa do direito (em especial o direito civil) bem  
como o lado formal do direito:  
Remeto aqui a Marx. Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx afirma  
claramente que o direito dominante no socialismo é ainda o direito  
civil, mesmo que sem a propriedade privada, e que este lado formal  
do direito foi desenvolvido pela civilização capitalista; e não há  
dúvidas de que ele permanece, no socialismo, enquanto direito.  
(LUKÁCS, 2008, p. 245)  
A formulação lukacsiana assemelha-se àquela de Lênin segundo a qual haveria  
um direito burguês sem burguesia: “acontece que não só o direito burguês subsiste  
no comunismo durante certo tempo, mas também o estado burguês sem a  
burguesia!” (LÊNIN, 2017, p. 124). Ao se deparar com uma forma transicional, Lukács  
afirma que no socialismo, “após a desapropriação dos exploradores, o direito igual  
permanece essencialmente um direito burguês com suas limitações aqui arroladas”  
(LUKÁCS, 2013, p. 244). Nessa situação, a solução das questões decisivas não poderia  
vir do direito e, também neste sentido, é impossível falar de um direito socialista.  
Tratar-se-ia do direito burguês, de algo destinado a ser suprimido, pois a  
igualdade manifestada no direito seria incompatível com a produção que não avilte as  
individualidades. E, por isso, postula o autor húngaro que, já de acordo com Marx, a  
ligação entre igualdade jurídica e desigualdade está presente na transição socialista:  
“queremos enfatizar apenas que Marx considera irrevogável, também nesse estágio, a  
discrepância entre o conceito de igualdade do direito e de desigualdade da  
individualidade humana” (LUKÁCS, 2013, p. 244). Para o autor de Para uma ontologia  
do ser social, o direito seria incapaz de regulamentar satisfatoriamente a vida social  
dos indivíduos, sempre diferentes entre si. Mais que isso: com a inerência de um igual  
padrão de medida na mediação jurídica, convergem a igualdade do direito, a  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 495  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
desigualdade social e a impossibilidade de considerar os indivíduos em suas  
multifacetadas personalidades.  
Lukács, portanto, realiza apontamentos essenciais sobre as temáticas mais  
caras aos pachukanianos. Podemos dizer que os pontos mais proveitosos de Teoria  
geral do direito e o marxismo e já analisados por Marx também estão presentes  
na obra madura do filósofo húngaro, a qual, portanto, pode ser importante para a  
crítica ao direito.  
As diferenças entre as posições de Lukács e Pachukanis talvez sejam menores  
do que é possível supor à primeira vista, entretanto, elas estão presentes e merecem  
ser destacadas6. Agora, portanto, veremos como que Pachukanis, os pachukanianos e  
Lukács procedem diante da historicidade da forma jurídica e de sua ligação com o  
capitalismo.  
Pachukanis, pachukanianos e a historicidade da forma jurídica  
Pachukanis é explícito ao dizer que “a gênese da forma jurídica está por se  
encontrar nas relações de troca” (PACHUKANIS, 1988, p. 8). Em seguida, o autor  
soviético diz que “na sociedade burguesa a forma jurídica, em oposição ao que ocorre  
nas sociedades edificadas sobre a escravatura e a servidão, adquire uma significação  
universal” (PACHUKANIS, 1988, p. 9). A vinculação entre as relações de troca e a forma  
jurídica tese principal da obra pachukaniana é reafirmada. Porém, ao abordar as  
afirmações do autor não é possível dizer de modo algum que “a forma jurídica é  
capitalismo” (KASHIURA, 2009, p. 117). Enquanto Kashiura, na esteira de Naves,  
identifica forma jurídica e as relações capitalistas, Pachukanis fala da forma jurídica  
com significação universal na sociedade burguesa. Assim, nas sociedades em que  
vigiam a servidão e a escravidão, esse significado universal não se colocava, mas  
existem formas jurídicas embrionárias; como consequência, a posição pachukaniana  
possui mais meandros que a de seus seguidores, envolvendo um tratamento histórico  
mais cuidadoso.  
De modo irônico, ela se aproxima mais da posição de Lukács do que do  
posicionamento dos pachukanianos. Pachukanis estipula algo mais no seguinte  
sentido: “foi preciso um longo processo de desenvolvimento, no qual as cidades foram  
o principal palco, para que as facetas da forma jurídica pudessem cristalizar-se em  
6 Para uma análise mais pormenorizada dos temas, cf. Sartori (2016b).  
Verinotio  
496 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
toda a sua precisão” (PACHUKANIS, 1988, p. 23). Ou seja, a especificidade da forma  
jurídica se dissermos com Lukács, sua homogeneidade se encontraria na sociedade  
capitalista, mas há algo que é levantado pelo autor em um tom hesitante e traz uma  
espécie de forma jurídica ainda não plena: as formas jurídicas embrionárias e  
rudimentares. Ao desenvolver o assunto, o caráter processual e histórico de  
conformação da forma jurídica é apontado e enfatizado em Teoria geral do direito e o  
marxismo:  
Efetivamente, tenho afirmado, e continuo a afirmar, que as relações  
dos produtores de mercadorias entre si engendram a mais  
desenvolvida, universal e acabada mediação jurídica, e que, por  
conseguinte, toda a teoria geral do direito e toda a jurisprudência  
'pura' não são outra coisa senão a descrição unilateral, que abstrai de  
todas as outras condições das relações dos homens que aparecem no  
mercado como proprietários de mercadorias. Mas, uma forma  
desenvolvida e acabada não exclui formas embrionárias e  
rudimentares; pelo contrário, pressupõem-nas. (PACHUKANIS, 1988,  
p. 9)  
Na passagem há diversos aspectos relevantes a serem abordados, sendo o  
primeiro a necessidade de uma crítica à teoria geral do direito, bem como de uma  
crítica imanente aos principais expoentes dessa teorização. No que toca o tema, a  
partir da já mencionada correlação entre forma mercadoria e jurídica, Pachukanis  
estipula que a teoria geral do direito é uma descrição das formas de aparecimento dos  
indivíduos como proprietários privados, que, por sua vez, apresentam-se no mercado  
como sujeitos (mais precisamente, como sujeitos de direito, caso se utilize a dicção da  
teoria do direito).  
Um segundo elemento da citação passa pela existência de uma mediação  
jurídica acabada e universal no capitalismo, em oposição a uma mediação “jurídica”  
que não traria estas características em momentos anteriores. Consequentemente,  
mesmo na teorização do autor soviético, há abertura para a uma abordagem histórica  
das formas jurídicas. Mais que isso, há a necessidade de se referir ao processo de  
constituição da forma jurídica.  
Antes do surgimento do sistema capitalista de produção, de acordo com o  
próprio autor, a forma jurídica já existiria embrionária e rudimentarmente. Deste modo,  
diante de questionamentos de autores marxistas da época (como Stutchka), Pachukanis  
é obrigado a concordar com certas críticas, das quais ele fora objeto. em suas palavras,  
“com reservas precisas” (PACHUKANIS, 1988, p. 9). Ele compreende que a equação  
entre direito e capitalismo não pode deixar de lado o entendimento do processo de  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 497  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
universalização e o acabamento do que chama de forma jurídica. Portanto, Pachukanis  
concorda com seus críticos, embora certamente discordaria da afirmação de alguns  
pachukanianos, para quem “a forma jurídica é capitalismo” (KASHIURA, 2009, p. 117).  
Pachukanis, em verdade, reafirma explicitamente e de modo enfático sua posição ao  
dizer que “uma forma desenvolvida e acabada não exclui formas embrionárias e  
rudimentares; pelo contrário, pressupõem-nas” (PACHUKANIS, 1988, p. 9).  
Desse modo, não deixa de ser irônico que um autor como Lukács, sob esse  
aspecto, possa se aproximar mais das leituras de Pachukanis sobre a forma jurídica e  
sua constituição do que seguidores do próprio autor soviético. Ao passo que a  
abordagem althusseriana é pouco propícia a um tratamento histórico do tema, o modo  
pelo qual o autor da Ontologia o desenvolve leva à história e ao desenvolvimento da  
homogeneidade da forma jurídica. Tal qual o autor de Teoria geral do direito e o  
marxismo, a análise de Lukács parte de Marx; a abordagem dos pachukanianos, por  
outro lado, tende a autonomizar unilateralmente certas questões colocadas pelo jurista  
soviético. Ocorre um fenômeno que precisa ser destacado: a “problemática” acaba  
sendo vista a partir de certa proximidade com Althusser e em detrimento da leitura  
colocada pelo próprio Pachukanis.  
Ao tratar da forma jurídica, o autor soviético procura provar que o direito não  
é uma esfera neutra e livremente instrumentalizável pela classe trabalhadora, sendo o  
objetivo do jurista soviético mostrar como operar juridicamente leva à aceitação de  
categorias da economia mercantil, como ele as em confluência com as teorizações de  
Isaac Rubin (1987). Para isso, porém, Pachukanis elabora uma concepção bastante  
limitada histórica e temporalmente sobre o direito. Critica o direito capitalista, e, para  
que não haja dúvidas sobre a impossibilidade de um direito socialista, diz que todo o  
direito conformado em suas determinações mais gerais é, ao fim, capitalista.  
O processo de desenvolvimento da forma do direito é abordado para que, ao  
fim, diga-se que, mesmo na URSS, o direito é capitalista, pressupõe a forma-mercadoria  
e o dinheiro. A função da colocação pachukaniana é clara em um momento em que as  
disputas na URSS eram cotidianas e estavam ligadas ao processo de transição  
revolucionário. Ele afirma a impossibilidade de um direito socialista e a natureza  
capitalista do direito. Contudo, seus posicionamentos sobre as formas embrionárias e  
rudimentares levam à certa confusão, devido à sua falta de precisão. A tese também  
enfraquece, ou ao menos relativiza, a posição pachukaniana sobre a ligação entre  
forma jurídica e forma-mercadoria universalizada na sociedade capitalista. Há,  
Verinotio  
498 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
portanto, limitações na abordagem histórica pachukaniana e, assim, mostra-se certa  
duplicidade no autor.  
O mais astuto e inteligente estudioso de Pachukanis notou tal aspecto e  
estipulou a necessidade de criticá-lo. Márcio Naves (2014) diz que, em verdade, a  
forma jurídica, e com ela o direito, vincula-se à subsunção real ao capital, e não com a  
circulação universalizada de mercadorias: “o que é específico do direito, seu elemento  
irredutível, é a equivalência subjetiva como forma abstrata e universal do indivíduo  
autônomo quando é subsumido realmente ao capital” (NAVES, 2014, p. 58).  
Consequentemente, Naves tenta salvar a tese pachukaniana de suas contradições. No  
entanto, para a tarefa, à moda althusseriana, estabelece um corte em que categorias  
incômodas como “formas embrionárias”, “rudimentares” desaparecem. O preço disso  
é secundarizar o processo histórico que culmina no direito vigente na sociedade  
capitalista (e de transição).  
A tensão na obra pachukaniana está de um lado, na elaboração de Naves,  
enfatizando o caráter exclusivamente capitalista do direito; de outro, há a necessidade  
do desenvolvimento histórico da forma jurídica, que, sem se referir a Pachukanis,  
Lukács menciona, de maneira distinta do autor soviético. Do ponto de vista  
althusseriano, Naves e seus seguidores mais ou menos próximos e confessos,  
vislumbram uma possibilidade. Porém, outras posições, que valorizam a especificidade  
do direito e da forma jurídica e suas historicidades são possíveis e, em verdade, são  
muito mais coerentes com o propósito pachukaniano de expor em seu texto o  
“desenvolvimento histórico e dialético das formas jurídicas” (PACHUKANIS, 2017a, p.  
65). Por conseguinte, ao se analisar a obra de Pachukanis, também aqui, a perspectiva  
de Lukács parece mais condizente com os objetivos do autor do que o desenvolvido  
pelos autores que assumida e explicitamente se baseiam em Teoria geral do direito e  
o marxismo.  
No entanto, não temos qualquer pretensão de substituir a influência  
althusseriana pela lukacsiana, pois, como vimos, as próprias pretensões pachukanianas  
são questionáveis e, por isso, cumpre vislumbrar outras opções, como a teoria  
lukacsiana, para o desenvolvimento de uma crítica marxista ao direito.  
Apontamentos finais  
Mesmo que se considere a crítica marxista ao direito na visão embasada por  
Pachukanis (o que não é nosso caso), são necessárias outras posições além das  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 499  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
hegemônicas no Brasil contemporâneo. A disparidade entre o juízo do autor soviético  
sobre sua obra e a posição dos discípulos de Naves é assombrosa e não pode ser  
desconsiderada, de modo que os pachukanianos (e ainda mais o pachukanismo)  
desenvolvem de modo unilateral a crítica ao direito. É, portanto, indispensável a  
superação desse ponto de partida, ainda hegemônico e pouco questionado no país.  
Uma possibilidade pode estar no estudo de grandes autores do marxismo,  
como Lukács. Inclusive, há proximidade temática entre o pensador de Para uma  
ontologia do ser social e o autor de Teoria geral do direito e o marxismo em aspectos  
importantes, que são justamente aqueles pelos quais a capacidade crítica da obra  
pachukaniana é mais proeminente, na crítica à forma jurídica e ao desenvolvimento  
progressivo dessa forma.  
Ao analisarmos alguns elementos do tratamento do marxista húngaro, vimos  
que ironicamente , nos pontos em que a análise do livro de 1924 é mais proveitosa,  
o autor húngaro avança mais que os próprios seguidores de Pachukanis. Portanto, a  
tradição brasileira de crítica ao direito chega a um beco sem saída (tanto devido à sua  
fundamentação quanto aos seus pontos de partida). Nota-se também que o ímpeto de  
uma análise histórica como a de Lukács é muito mais proveitoso, mesmo ao se ter  
Pachukanis como referência. Também por isso, é preciso averiguar de modo mais  
cuidadoso a posição lukacsiana sobre a forma jurídica, o capitalismo, a gênese do  
direito e outros temas. E, assim, aqueles que buscam desenvolver a crítica ao direito  
ganham mais estudando autores como Lukács que se atendo às conclusões da tradição  
pachukaniana brasileira.  
É imprescindível que a tônica da análise marxista sobre o direito deixe de ser  
pautada pela recepção althusseriana de Pachukanis e possa se voltar, primeiramente,  
ao estudo da obra do próprio Marx e, posteriormente, àquilo que está presente em  
grandes marxistas. Nesse sentido, acreditamos que a obra de Lukács é um ponto de  
partida válido, até mesmo pela sua envergadura substancial, incomparável com o  
tratamento limitado dispensado conscientemente por Pachukanis e inconscientemente  
por seus seguidores. Por conseguinte, se quisermos avançar na crítica ao direito, diante  
dos acontecimentos revolucionários do século XX e em direção à crítica ao presente,  
uma crítica à obra de 1924 é essencial, reconhecendo seus méritos e suas limitações,  
bem como as aporias da crítica marxista ao direito hegemônica no Brasil.  
Reproduzir as conclusões desenvolvidas por Pachukanis há cem anos é  
claramente insuficiente. Teoria geral do direito e o marxismo, seus propósitos e seu  
Verinotio  
500 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
legado são indissociáveis dos rumos contraditórios da Revolução Russa e hoje, quando  
o cenário é contrarrevolucionário e quando está esgotado o modelo de revolução  
soviético, apurar as razões da falência do socialismo de tipo soviético é extremamente  
relevante.  
Também é preciso ver aquilo que tinham a oferecer sobre a época os melhores  
autores da década de 1920, como Lênin, Luxemburgo, Trótski, o jovem Lukács,  
Gramsci. Nesse ímpeto, o estudo de pensadores como Rubin e Pachukanis pode ser  
de enorme serventia ao se considerar a crítica ao direito. Porém, não há como tomar  
o contexto único e irrepetível do começo do século XX como referência para o presente  
e, nesse sentido, o desenvolvimento da crítica marxista ao direito precisa de um acerto  
de contas com essa época para que possa avançar. Pelo que dissemos aqui, porém,  
não é isso que vem acontecendo e, para que as pesquisas possam se desenvolver de  
modo substancial, um ponto de partida pode estar na obra tardia de Lukács, mais  
robusta se comparada ao que foi desenvolvido pelo jurista soviético e também  
marcada por temas essenciais à crítica ao direito, como a relação entre a forma jurídica  
e o desenvolvimento do capitalismo, a inviabilidade de um direito socialista e, por fim,  
o necessário fenecimento do direito.  
Referências bibliográficas  
AKAMINE Jr. Oswaldo. A teoria pura do direito e o marxismo. São Paulo: Edições Lado  
Esquerdo, 2017.  
ALMEIDA, Silvio Luis. O direito no jovem Lukács. São Paulo: Alpha-Ômega, 2006.  
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Trad. Dirceu Lindoso. São Paulo: Zahar, 1979a.  
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Trad. Walter José Evangelista.  
Rio de Janeiro: Graal, 2001.  
BATISTA, Flávio Roberto. Crítica à tecnologia dos direitos sociais. São Paulo: Expressão  
Popular, 2013.  
EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia. Trad. Soveral Martins. Coimbra:  
Centelha, 1976.  
EDELMAN, Bernard. Legalização da classe operária. Trad. Flávio Roberto Batista. São  
Paulo: Boitempo, 2016.  
ENGELS, Friedrich. Esboço para uma crítica da economia política. Trad. Ronaldo Vielmi  
Fortes. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras,  
n. 2, v. 26, 2020.  
ENGELS, Friedrich. Origem da família, da propriedade privada e do estado. Trad. Ruth  
M. Klaus. São Paulo: Centauro, 2002.  
HEGEL, G. W. Princípios da filosofia do direito. Trad. Vittorino. São Paulo: Martins  
Fontes, 2003.  
KASHIURA JR., Celso Naoto. Crítica da igualdade jurídica. São Paulo: Quartier Latin,  
2009.  
KASHIURA JR., Celso. Sujeito de direito e capitalismo. São Paulo: Expressão Popular,  
2014.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 501  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
LENIN, Vladmir Ilitch. O estado e a revolução. Trad. Edições Avante. São Paulo:  
Boitempo, 2017.  
LYRA FILHO, Roberto. O que é direito? São Paulo: Brasiliense, 1982.  
LYRA FILHO, Roberto. Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o direito. Porto Alegre:  
Sergio Antônio Fabris Editor, 1983.  
LUKÁCS, György. Destruição da razão. Trad. Rainer Patriota. Alagoas: Instituto Lukács,  
2020.  
LUKÁCS, György. Ontologia do ser social v. I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario  
Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012.  
LUKÁCS, György. Ontologia do ser social v. II. Trad. Nélio Schneider. São Paulo:  
Boitempo, 2013.  
LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. Trad. Lya Luft e  
Rodnei Nascimento. São Paulo: Boitempo, 2010.  
LUKÁCS, György. Socialismo e democratização. Trad. José Paulo Netto e Carlos Nelson  
Coutinho. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.  
MARRA DE ANDRADE, Ana Carolina. A crítica ao direito nos “assim chamados”  
Cadernos etnológicos de Karl Marx: os comentários a Henry Sumner Maine.  
Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, n. 1, v.  
29, 2024.  
MASCARO, Alysson Leandro. Apresentação. In: PACHUKANIS, E. P. Fascismo. Trad.  
Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2020.  
MASCARO, Alysson. Filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2012a.  
MASCARO, Alysson. Introdução ao estudo do direito. Atlas: São Paulo, 2012b.  
MASCARO, Alysson. Lições de sociologia do direito. São Paulo: Quartin Latin, 2009.  
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Trad. Florestan Fernandes. São  
Paulo: Expressão Popular, 2009.  
MARX, Karl. Crítica ao programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo,  
2012.  
MARX, Karl. Los apuntes etnológicos de Karl Marx. Org. de Lawrance Krader. Madrid:  
Pablo Iglesias Editorial, 1988.  
MARX, Karl. Teorias da mais-valia. Trad. Reginaldo Sant´Anna. São Paulo: Civilização  
Brasileira, 1980.  
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Luís Claudio de Castro e Costa.  
São Paulo: Martins Fontes, 2002.  
MIALLE, Michael. Introdução crítica ao direito. Trad. Ana Prata. Lisboa: Estampa, 2005.  
NAVES, Márcio. Mao: o processo da revolução. Rio de Janeiro: Brasiliense, 2005.  
NAVES, Márcio. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. Boitempo: São Paulo,  
2000.  
NAVES, Márcio. Marx: ciência e revolução. Campinas: Unicamp, 2000b.  
NAVES, Márcio. A questão do direito em Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2014.  
PACHUKANIS, E. P. Teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo:  
Boitempo, 2017a.  
NAVES, Márcio. Prefácio à edição russa de Dos princípios do direito público de M. Hariou. In: Teoria  
geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos. Trad. Lucas Simone. São Paulo: Sudermann,  
2017 b.  
NAVES, Márcio. Teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Paulo Bessa. Rio de Janeiro:  
Renovar, 1988.  
PAÇO CUNHA, Elcemir. Considerações sobre a determinação da forma jurídica a partir  
da mercadoria. Crítica do direito, São Paulo, Mackenzie, n. 64, 2014.  
PAÇO CUNHA, Elcemir. Do fetiche da mercadoria ao “fetiche do direito” e de volta.  
Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, n. 19,  
2015. Disponível em: <www.verinotio.org>.  
Verinotio  
502 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um ponto de partida  
RUBIN, Isaac Illich. Teoria marxista do valor. Trad. José Bonifácio de S. Amaral Filho.  
São Paulo: Polis, 1987.  
SARTORI, Vitor Bartoletti. A crítica ao direito no Livro III de O capital de Karl Marx.  
Revista Humanidades e Inovação, Palmas, Unitins, v. 8, n. 43, 2021 a.  
SARTORI, Vitor B. Acerca da categoria de “pessoa” e de sua relação com o processo  
de reificação em O capital de Karl Marx: um debate com Pachukanis. Cadernos de  
Ética e Filosofia Política, São Paulo, USP, v. 1, n. 34, 2019a.  
SARTORI, Vitor B. Apontamentos sobre justiça em Marx. Nomos, Fortaleza, UFC, v. 37,  
n. 1, 2017a.  
SARTORI, Vitor B. Crítica à economia política à crítica ao direito: por uma teoria do  
direito marxiana? Culturas Jurídicas, Rio de Janeiro, UFF, v. 4, n. 9, 2017b.  
SARTORI, Vitor B. “Diálogos” entre Lukács e Pachukanis sobre a crítica ao direito.  
Insurgência: Revista de Direitos e Movimentos Sociais, Brasília, UnB, n. 1, v. 2,  
2016b.  
SARTORI, Vitor B. Marx e Engels como críticos da justiça. Revista Prima Facie, João  
Pessoa, UFPB, v. 16, n. 32, 2017a.  
SARTORI, Vitor B. O direito no Livro III de O capital. Revista Humanidades e Inovação  
Palmas: Unitins, v. 8, n. 57, 2021b.  
SARTORI, Vitor B. O Livro II de O capital e o direito: um debate com Pachukanis.  
Libertas, Juiz de Fora, UFJF, v. 20, n. 1, 2020b.  
SARTORI, Vitor B. Os juristas nas teorias do mais-valor. Verinotio Revista on-line de  
Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, 2020c.  
SARTORI, Vitor B. Sociedades capitalistas tardias, o Livro III de O capital e a dialética  
entre trabalho e as figuras econômicas concretas. Revista Brasileira de Estudos  
Organizacionais, Rio de Janeiro, UFF, v. 6, n. 1, 2019b.  
SARTORI, Vitor B. Teoria geral do direito e o marxismo como crítica marxista ao direito.  
Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, n. 19.  
STUTCHKA, Petr. Direito e luta de classes. Trad. Silvio Donizete Chagas. São Paulo:  
Editora Acadêmica, 1988.  
STUTCHKA, Petr. O papel revolucionário do direito e do estado. Trad. Paula Vaz de  
Almeida. São Paulo: Contracorrente, 2023.  
Como citar:  
SARTORI, Vitor Bartoletti. Sobre Pachukanis, pachukanianos e o esgotamento de um  
ponto de partida. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 458-503; jul.-dez.,  
2024.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 458-503 jul.-dez., 2024 | 503  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.738  
Lukács, Coutinho e Kafka:  
dois críticos e um enigma  
Lukács, Coutinho and Kafka: two critics and a riddle  
Vladmir Luís da Silva*  
Resumo: O principal objetivo deste artigo é  
acompanhar o diálogo dos filósofos György  
Lukács e Carlos Nelson Coutinho acerca do  
legado literário de Franz Kafka. O núcleo de  
nossos esforços consiste na análise da tentativa  
de superação da abordagem lukacsiana por  
parte de Coutinho. Na realização dessa tarefa,  
conferimos atenção às dicas oferecidas pelo  
mestre húngaro ao discípulo baiano quanto aos  
limites de sua própria leitura de Kafka.  
Abstract: The main purpose of this article is to  
follow the dialog of the philosophers György  
Lukács and Carlos Nelson Coutinho about Franz  
Kafka’s literary legacy. The core of our efforts  
consists in analyzing Coutinho’s attempt to  
overcome the Lukacsian approach. In carrying  
out this task, we pay attention to the tips  
offered by the Hungarian master to his Bahian  
disciple about the limits of his own reading of  
Kafka.  
Palavras-chave: Kafka; Lukács; Coutinho;  
literatura; filosofia.  
Keywords: Kafka; Lukács; Coutinho; literature;  
philosophy.  
1
Em carta a György Lukács, datada de 31 de janeiro de 1968, o então jovem  
filósofo baiano Carlos Nelson Coutinho comunicava, entre outras coisas, o projeto de  
elaboração de um livro acerca do realismo na literatura do século XX, talhado segundo  
os ensinamentos do já octogenário mestre húngaro. Como podemos observar na  
passagem a seguir, a figura de Kafka assumia posição privilegiada no projeto e na  
pergunta de Coutinho a Lukács:  
[…] analisarei a obra de Proust e Kafka (que me parecem casos de  
exceção, entre o realismo e a vanguarda), de Sinclair Lewis, Lorca e  
Thomas Mann (realistas “tradicionais”), de Thomas Wolfe, William  
Styron e J. D. Salinger (realistas que empregam técnicas de  
vanguarda). Em sua obra mais recente há observações sobre Kafka  
que pretendo desenvolver. Minha tese central é a seguinte: quando  
Kafka estrutura sua obra na forma da novela clássica (A metamorfose,  
O processo etc.) ou seja, mostrando a importância do acidental na  
vida, sem figurar o background histórico e sem abrir necessariamente  
uma perspectiva concreta , ele atinge o simbolismo realista (ainda  
que fantástico). Quando isso não ocorre, ele cai na alegorização (O  
castelo, sobretudo América), ou seja, na vanguarda pura e simples. O  
senhor se recorda de suas próprias observações sobre a redução do  
romanesco à forma da novela como condição de “vitória do realismo”  
*
Doutor em filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). E-mail:  
vladmirhoracio@hotmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
em Hemingway, Conrad e Soljenitzin? Parece-me que, mutatis  
mutandis, ocorre algo semelhante em Kafka. Qual é a sua posição a  
respeito? O senhor ainda concorda com a análise de Kafka feita em  
Realismo crítico hoje? Ou pensa que é preciso concretizá-la melhor  
(sem negá-la)? (COUTINHO, 2005, p. 210)  
O objetivo do discípulo foi saudado na carta de resposta de Lukács, com a  
ressalva segundo a qual os juízos manifestos no livro Realismo crítico hoje (de 1957)  
deveriam ser vistos com alguma reserva, pois haveria aí dificuldades de  
desenvolvimento, em especial em relação à obra de Franz Kafka. Lukács admitia que  
não havia diferenciado na medida certa a obra do autor tcheco em relação à literatura  
subsequente, considerada por ele como sendo de qualidade inferior. Além de assinalar  
suas próprias insuficiências, o mestre via acertos no projeto do discípulo:  
Você tem inteira razão quando põe fortemente em primeiro plano  
certos elementos novelísticos em Kafka. Sobre isso, algumas novelas,  
como A metamorfose, têm um enorme significado na recente literatura  
e assinalam, muito marcadamente, o contraste com a literatura  
subsequente. Eu teria bem maiores objeções a fazer contra O processo  
do que contra a novelística. Infelizmente, por causa de condições  
muito desfavoráveis, concluí de modo muito apressado meu pequeno  
livro [...], de modo que determinados pontos de vista não foram  
expressos nele de modo bastante claro. (LUKÁCS, 2005, p. 212)  
O êxito kafkiano foi exaltado por meio de uma analogia com a obra de Jonathan  
Swift. Assim como nos trabalhos desse autor, haveria em Kafka uma “tensão”. Lukács  
tinha em mente aqui a tentativa de Swift de dar “um panorama crítico-utópico do  
desenvolvimento global e da essência mais profunda da sociedade capitalista”  
(LUKÁCS, 2005, p. 212)1. No entender do filósofo, o resultado obtido por Kafka só  
não foi tão exitoso quanto o de Swift por conta das condições sociais desfavoráveis  
em que teve de trabalhar.  
O projeto original de Coutinho jamais chegou a ser plenamente realizado,  
resultando apenas em alguns artigos, mas certamente as orientações do mestre  
húngaro foram bastante úteis na tentativa de promover uma “atualização” da parte do  
livro lukácsiano dedicada à literatura ocidental2. É o que tentaremos evidenciar ao  
longo deste artigo.  
1
Cabe destacar que, provavelmente, é justamente nessa correspondência que Lukács esboça a única  
autocrítica feita ao livro de 1957 (cf. COUTINHO, 2005, p. 249). Especificamos aqui que nossa  
abordagem não tem a menor pretensão de expor ou discutir a globalidade das múltiplas facetas da  
obra lukacsiana acerca do âmbito da estética ou mesmo da literatura, mas sim os seus fragmentos  
atinentes à obra de Kafka, em particular aqueles presentes no livro Realismo crítico hoje.  
2 Observe-se aqui que, seguindo seu plano original, Coutinho também se dedicou a analisar a obra de  
Marcel Proust a partir da metodologia lukacsiana. Redigido em 1967, o ensaio dedicado a Proust só  
veio à luz em 2005 (cf. COUTINHO, 2005, pp. 11-121).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 505  
nova fase  
   
Vladmir Luís da Silva  
2
A negatividade de Kafka no livro lukácsiano de 1957 é bastante marcada. É  
visto mesmo como antípoda das tendências do “realismo crítico” presentes no âmbito  
da literatura burguesa, a ponto de um dos capítulos da obra ter sido sugestivamente  
intitulado “Franz Kafka ou Thomas Mann?”. Tratar-se-ia, de modo geral, de uma  
contraposição entre vanguarda decadente e realismo crítico. Ainda que seja  
considerado um dos maiores talentos do campo vanguardista, Kafka é entendido em  
Realismo crítico hoje como um representante típico das tendências antirrealistas na  
literatura. Não nos referimos aqui a uma mera distinção estilística, mas sim a uma  
totalidade de determinações que configura escolas completamente opostas, com  
concepções de mundo antagônicas. O objetivo da arte desejada por Lukács é a “figura  
típica”, a qual só é obtida na medida em que “os fatores que determinam a essência  
mais íntima da sua personalidade pertençam objetivamente a uma das tendências  
importantes que condicionam a evolução social” (LUKÁCS, 1969, p. 181).  
A contraposição entre a arte vanguardista e o realismo crítico é apresentada  
por Lukács a partir de um embate entre concepções de mundo radicalmente distintas.  
A imagem de mundo é entendida pelo filósofo húngaro como a base a partir da qual  
se dá a relação entre o escritor e o real. A centralidade dessa problemática é assinalada  
nos seguintes termos:  
Não se trata de modo nenhum duma diferença, duma oposição entre  
técnicas de escrita, entre elementos formais – no sentido “formalista”  
do termo , mas sim duma diferença, duma oposição, entre as imagens  
do mundo que os escritores nos comunicam através das suas obras,  
entre as atitudes que eles mesmos tomam em relação à sua própria  
apreensão do real, entre os juízos de valor que fazem sobre esse  
objetivo. É no esforço empregado pelo autor, servindo-se de meios  
especificamente literários, para reproduzir adequadamente a ideia que  
faz do mundo com a totalidade das suas determinações objetivas e  
subjetivas, que podemos apreender a sua intenção objetiva tal como  
queremos examiná-la aqui; esta intenção objetiva constitui a base de  
todos os problemas autênticos que dizem respeito à forma das obras  
literárias, não já num sentido formalista, mas enquanto forma  
decorrente da própria essência da estrutura última, que é a forma  
específica desta estrutura específica. (LUKÁCS, 1969, p. 36)  
A primeira das contraposições envolvidas no embate entre realismo e  
vanguarda se dá na esfera da concepção de homem subjacente a cada tendência. De  
acordo com Lukács, o realismo crítico é animado pelo “zoon politikon” de Aristóteles,  
conceito que destaca o caráter social (e também histórico) do ser humano. Esse caráter  
atravessa os personagens retratados, conferindo densidade humana aos seus  
Verinotio  
506 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
caracteres. Nos termos do filósofo húngaro:  
Trate-se de Aquiles ou de Werther, de Édipo ou de Tom Jones, de  
Antígona ou de Ana Karenina, de D. Quixote ou de Vautrin, o elemento  
histórico-social, com todas as categorias que dele dependem, é  
inseparável daquilo a que Hegel chamaria de sua realidade efetiva, do  
seu ser em si e para usar uma expressão em voga do seu modo  
ontológico essencial. O caráter puramente humano destes  
personagens, aquilo que eles têm de mais profundamente singular e  
típico, o que faz deles, no plano de arte, figuras impressionantes –  
nada de tudo isto pode ser separado do seu enraizamento concreto  
no seio de relações concretamente históricas, humanas e sociais que  
são a contextura da sua existência. (LUKÁCS, 1969, p. 37)  
Já os expoentes das tendências vanguardistas delineiam seus personagens com  
base em uma ideia de homem totalmente distinta. Segundo Lukács, “eles não  
consideram mais do que ‘o’ homem, o indivíduo que existe desde sempre,  
essencialmente solitário, desligado de todas as relações humanas e, a fortiori, social,  
ontologicamente independente” (LUKÁCS, 1969, p. 37).  
É somente na rica interação entre o indivíduo e o seu mundo histórico-social  
que se torna possível distinguir adequadamente entre as possibilidades abstratas e as  
possibilidades concretas a serem retratadas na literatura, outro ponto fundamental na  
distinção entre as imagens de mundo. Trata-se de apreender e separar aquilo que um  
indivíduo pode idealizar no âmbito puramente subjetivo daquilo que, em relação ao  
mundo concreto, pode de fato ser levado a cabo. A inobservância, por parte das  
tendências vanguardistas, daquela relação entre homem e mundo, em sua  
historicidade e caráter coletivo, impossibilita a seleção das possibilidades concretas  
do real.  
A identidade entre possibilidades abstratas e concretas no homem conduz à  
incapacidade de explicar a sua realidade objetiva e, ao limite, à própria recusa de um  
mundo exterior. Esse subjetivismo confere um caráter “fantasmagórico” às  
objetivações literárias. É justamente nesse passo analítico que Lukács mobiliza o autor  
de O processo:  
Kafka, que descreve sempre os pormenores de maneira realista,  
concentra todos os meios da sua arte para exprimir esta concepção  
angustiada que ele próprio tem da essência do mundo como se ela  
constituísse efetivamente “o” real; é o mesmo que dizer que, à sua  
maneira, também ele suprime o real. Na sua obra, os pormenores  
realistas servem de matéria e de suporte a um irreal fantasmagórico,  
a um mundo de pesadelo, que deixa assim de ser um mundo e exprime  
apenas uma angústia subjetiva. (LUKÁCS, 1969, pp. 45-6)  
Desse modo, ao hiato entre literatura e mundo histórico-social corresponderia  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 507  
nova fase  
Vladmir Luís da Silva  
uma dissolução fantasmagórica da realidade concreta. A quebra na relação em causa  
não afeta apenas o mundo objetivo, mas também a personalidade dos indivíduos  
retratados nas obras vanguardistas. A dissolução do ambiente humano é acompanhada  
pela cisão do indivíduo. Ambos os processos se reforçam mutuamente, de modo que  
o interior subjetivo e o exterior objetivo são desconectados, uma desconexão que, na  
visão de Lukács, constitui já um sistema em certas linhas da filosofia (Kierkegaard,  
Heidegger, C. Schmitt, entre outros) e avança em direção ao campo literário. Para o  
filósofo húngaro, “em todas as grandes figuras da literatura realista [...] é sempre, em  
definitivo, pela interação viva entre realidades fundamentalmente opostas que os  
personagens se acham condicionados, na sua existência e na sua evolução” (LUKÁCS,  
1969, pp. 48-9). Sendo assim, a inexistência de laços que unam interior e exterior  
impossibilita uma tensão entre o herói positivo e o seu contexto, o que debilita a  
vivacidade da personalidade retratada.  
A concepção de mundo subjacente à vanguarda decadente, assentada na ideia  
do indivíduo isolado “lançado” no mundo, desemboca em uma contraposição entre  
extremos abstratos: a banalidade cotidiana e a excentricidade, sendo que essa última  
pode chegar à patologia. Descrentes na racionalidade imanente da realidade  
circundante, os escritores da vanguarda encontram-se impossibilitados de captar e  
retratar as particularidades concretas ou tipos realistas. Lukács enumera entre os  
praticantes de tal tendência estética a Robert Musil, em cuja obra a mediocridade  
burguesa e a fuga para a neurose ameaçam assumir a forma de uma imutável “condição  
humana”, a Samuel Beckett e a James Joyce, entre os quais aquela ameaça torna-se  
realidade irrefutável (LUKÁCS, 1969, p. 54).  
O estilo conveniente à oscilação entre banalidade burguesa e excentricidade  
patológica é a “careta”. Lukács esforça-se para esclarecer que o estilo da careta em si  
não constitui um desvio antirrealista, que esse possui seu devido lugar na  
representação adequada da realidade histórico-social. Em seus termos, “é com razão,  
em larga medida, que se vê na vida cotidiana tal como a impõe o regime capitalista,  
na mediocridade burguesa, caricaturas careteantes (escleroses e dissociações) de  
personalidade humana.” Não obstante, as tendências vanguardistas, carentes de uma  
noção apropriada da normalidade cotidiana, descartada acriticamente em prol dos  
polos complementares da banalidade e da excentricidade, convergem na absolutização  
daquilo que constitui sua aparência imediata. Assim, a careta converte-se “no estado  
normal do homem, no princípio de toda a realização, no único conteúdo adequado da  
Verinotio  
508 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
arte” (LUKÁCS, 1969, p. 56).  
Uma literatura marcada pela concepção de mundo até aqui descrita resulta, no  
diagnóstico lukácsiano, em uma falta de perspectiva, a qual constitui o critério geral  
de seleção dos elementos essenciais e secundários a serem elaborados na obra  
literária. Esse elemento participa ativamente até mesmo no modo de recepção das  
obras (cf. LUKÁCS, 1969, p. 90). Lukács é enfático sobre a importância da perspectiva:  
[...] é ela que determina o conteúdo e a forma do projeto, que é dela  
que dependem, em cada época, as linhas diretivas que orientam a  
criação artística, que só ela constitui assim, em última análise, o  
principio universal de seleção entre o essencial e o superficial, entre  
o decisivo e o episódico, entre o importante e o anedótico, etc.  
Portanto, é a perspectiva que indica às personagens humanas criadas  
pela arte o sentido da sua evolução; é ela que faz sobressair os  
elementos decisivos, capazes de favorecer ou de impedir esta  
evolução. Na medida em que a perspectiva for traçada com mais  
clareza, o escritor pode ser mais sóbrio na escolha dos pormenores e  
contentar-se em conservar os mais intensos (os Gregos, Molière etc.)  
(LUKÁCS, 1969, p. 57).  
O filósofo húngaro atribui a Kafka justamente a recusa de uma perspectiva  
desse tipo em nome de uma suposta condição humana (eterna) como princípio de  
composição literária. Tomamos aqui a liberdade de transcrever uma passagem que,  
apesar de extensa, é ilustrativa da negatividade e repúdio manifestos por Lukács  
quando trata da impotência que emana da concepção de mundo subjacente às  
tendências de vanguarda:  
Foi Kafka quem traduziu com mais rigor e da maneira mais sugestiva  
o sentimento do mundo que resulta de tal atitude. Quando, em O  
processo, o herói principal, Joseph K, é conduzido ao suplício, o autor  
diz de forma bastante evocadora: “Pensava nessas moscas, que,  
agitando as pequenas patas quebradas, tentam escapar ao visco”.  
Esta impressão de total incapacidade, esta paralisia perante a força  
incompreensível e inelutável das circunstâncias, é o motivo  
fundamental de todos os seus livros. O que se conta em O castelo é  
muito diferente daquilo que se lê em O processo e mesmo  
completamente oposto ; no entanto, o sentimento (ou melhor: a  
concepção do mundo) da mosca caída na armadilha, que se debate  
em vão, atravessa toda a obra de Kafka. Esta impressão de impotência  
elevada ao nível de concepção do mundo, que em Kafka se  
transformou na angústia imanente ao próprio devir do mundo, o total  
abandono do homem em face dum temor inexplicável, impenetrável,  
inelutável, faz da sua obra como que o símbolo de toda a arte  
moderna. Todas as tendências que, noutros artistas, assumiam uma  
forma literária ou filosófica, reúnem-se aqui no temor pânico,  
elementar, platónico, perante a realidade efetiva, eternamente  
estranha e hostil ao homem, e isto num grau de espanto, de confusão,  
de estupor, que não tem paralelo em toda a história da literatura. A  
experiência fundamental da angústia, tal como a viveu Kafka, resume  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 509  
nova fase  
Vladmir Luís da Silva  
bem toda a decadência moderna da arte. (LUKÁCS, 1969, p. 61)  
Símbolo da decadência da arte moderna, tal é, sem rodeios, a imagem que Lukács  
formula a respeito da obra kafkiana. Também é considerado expressão típica da  
decadência vanguardista o uso kafkiano da alegoria enquanto categoria estética.  
Tratar-se-ia de uma orientação estilística que visa a dar vida a concepções de mundo  
cuja principal característica é a negação do mundo objetivo e do caráter racional  
imanente ao ser humano e sua ação concreta. Através da alegoria aquela racionalidade  
é substituída por uma fundamentação da figuração em um transcendente essencial,  
portanto, algo destituído de história e de qualquer relação necessária. Arrimando-se  
em considerações de Walter Benjamin, Lukács é enfático ao estabelecer que a alegoria  
enquanto artifício representativo conduz à morte da historicidade e à arbitrariedade  
na figuração dos pormenores, ainda quando esses guardam um enorme “poder de  
sugestão”, como é justamente o caso na obra de Kafka3. Falando dos burocratas e  
administradores presentes em O processo e O castelo e também da figuração que  
promovem da sociedade capitalista (de tonalidade austríaca)4, Lukács assevera que aí  
a justa intenção de figurar a realidade particular vivenciada pelo autor é prejudicada  
pelo uso da alegoria:  
O elemento alegórico entra aqui na medida em que toda a existência  
desta camada [burocrática V. L. S.] e dos seres que dela dependem  
(as suas vítimas indefesas) não é representada como uma realidade  
efetiva concreta, mas como o reflexo intemporal desse nada, dessa  
transcendência que, sem que ela própria exista, determina porém tudo  
o que existe. (LUKÁCS, 1969, p. 73)  
Tem-se, desse modo, ao invés da “particularidade típica”, objetivo central da  
arte de tendência realista, uma “particularidade abstrata”. O que obstaculiza a  
obtenção da primeira é a transcendência alegórica, a qual reduz ao nada a realidade  
concreta cujos efeitos o autor experimentou de maneira tão emblemática. Esse  
ambiente exterior comparece em Kafka de duas maneiras: em primeiro lugar, o  
conteúdo propriamente artístico refere-se às particularidades concretas do velho  
império austríaco; em segundo, o ar de indeterminação presente na obra exprime-se  
3
A esse respeito, é importante observar que, ao afirmar a existência de uma espécie de zona de  
convergência entre as tendências contrapostas, Lukács exalta o rigoroso realismo que Kafka atinge na  
descrição dos detalhes. Não obstante, o filósofo húngaro não deixa de registrar a presença, no autor  
tcheco, de um processo de “metamorfose”, por meio do qual aquele realismo nos pormenores  
desemboca em uma cabal negação do mundo objetivo (cf. LUKÁCS, 1969, pp. 78-9; 84).  
4 Para Lukács, a obra de Kafka capta o sentimento de angústia que os indivíduos experimentam diante  
da realidade do capitalismo imperialista, inclusive com o “pressentimento das suas variantes fascistas”  
(cf. LUKÁCS, 1969, p. 85).  
Verinotio  
510 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
com a ingenuidade do pressentimento que antecipa as realidades infernais do  
capitalismo posterior (cf. LUKÁCS, 1969, p. 122). No entanto, o fenômeno particular é  
elevado direta e formalmente ao nível da máxima abstração, o nível do universal,  
referente aqui a uma realidade transcendente. O recurso à alegoria impede Kafka de  
visar a realidade, a qual constitui a mediação entre o particular e o universal. Perde-se  
assim a noção de que o particular vivido constitui um momento, não um quadro  
estático intemporal. O filósofo faz questão de frisar que, enquanto sintetiza todo um  
quadro das tendências decadentes, o problema aqui evocado não se refere apenas a  
uma questão de formas, conteúdos ou modos de escrita, mas sim à concepção  
vanguardista de mundo (cf. LUKÁCS, 1969, p. 74).  
Para Lukács, Kafka se encaixa na categoria dos escritores que sucumbem à  
aparência imediata da realidade capitalista, à angústia e à sensação de impotência que  
lhe corresponde, tornando-se com isso um difusor de uma imagem de mundo na qual  
esses elementos assumem o primeiro plano. Afirma ainda que, mais tarde, esses  
aspectos intelectuais e emocionais constituiriam uma atmosfera bastante favorável ao  
trabalho de propaganda do fascismo e da guerra fria (cf. LUKÁCS, 1969, p. 101). No  
geral, a imagem de mundo aqui presente é estreitamente ligada a uma atitude de  
recusa prévia do socialismo, fato que veda para o escritor vanguardista qualquer  
perspectiva de futuro, isto é, impossibilita qualquer compreensão profunda da  
evolução social e das leis que a regem (cf. LUKÁCS, 1969, pp. 97-103; 114-6).  
“Verdadeiro artista”, “artista incomparável”, “brilhante observador”, escritor  
capaz de antecipar a concretude infernal de um capitalismo posterior, mesmo  
admitindo essas qualidades no autor tcheco, o diagnóstico de Lukács é peremptório:  
Kafka é encarado e descartado como “decadência artisticamente interessante”,  
verdadeiro antípoda de um “realismo crítico verdadeiro como a vida”5. É este o  
5 De acordo com Lukács, do ponto de vista burguês é Thomas Mann quem figura como o contraponto  
ideal ao tipo de literatura praticada por Kafka. Nesse sentido, embora longa, a seguinte passagem é  
bastante elucidativa: “No hic et nunc de Thomas Mann, procurar-se-ia em vão qualquer tendência para  
uma transcendência; na sua obra, o lugar e o tempo, com todos os seus pormenores, concentram sempre  
em si próprios, histórica e socialmente, o essencial de uma situação concreta, histórica e social. Thomas  
Mann mantém os pés firmes na terra, mesmo em relação à sociedade burguesa. Põe clara e  
tranquilamente a perspectiva do socialismo, sem renunciar (mesmo num momento de fraqueza) ao seu  
ponto de vista consciente de si próprio, e sem se permitir (enquanto escritor) a mínima tentativa para  
dar lugar na sua obra (enquanto objeto literário) a qualquer aspecto desse outro mundo, ou mesmo,  
somente, aos esforços que tendem a apressar a sua vinda. [...] Mas esta parcimoniosa negatividade de  
perspectiva desempenha um papel decisivo na sua obra; é sobre ela que repousa a exata proporção  
entre o ser e o devenir. Tal como o descreve Thomas Mann, cada elemento concreto do presente move-  
se em direção a uma realidade concreta, e o significado humano de cada movimento a sua importância  
em função do progresso da humanidade sobressai sempre sem equívoco. É de nossa realidade efetiva  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 511  
nova fase  
 
Vladmir Luís da Silva  
diagnóstico desolador e, digamo-lo francamente, infeliz, em que culmina a análise de  
Lukács acerca da obra de Kafka em Realismo crítico hoje.  
Nos anos posteriores, como já pudemos observar na resposta a Coutinho, a  
visão lukacsiana do autor tcheco mudaria substancialmente, ainda que sem  
desenvolvimentos sistemáticos no campo da exegese. Assim, em sua Estética I (1963),  
Lukács oferece um diagnóstico que parece desatrelar Kafka da visão de mundo  
atinente à tradição da vanguarda. Em contraste com a impotência niilista dessa última  
perante as contradições sociais, que resulta na fetichização da objetividade social, a  
obra kafkiana professaria um protesto humanista, evidência de uma capacidade crítica  
de perceber a unidade ineludível do interno e do externo (isto é, de sujeito e objeto,  
indivíduo e gênero, ser humano e natureza). É nesse sentido que Lukács contrapõe os  
trabalhos de Kafka e Beckett:  
Em O processo, a incognoscibilidade absoluta do indivíduo particular  
aparece como uma anormalidade da existência humana, que evoca um  
sentimento de rebelião e, portanto, se apoia (ainda que  
negativamente) no destino de toda a humanidade; Beckett, ao  
contrário, se instala prazerosamente, de modo fetichista, na  
particularidade absolutizada. [...] A aparente profundidade de Beckett  
não é mais do que a adesão a certos sintomas de uma superfície  
imediata, precisamente aquela apresentada pelo capitalismo de  
nossos dias. (LUKÁCS apud COUTINHO, 2005, pp. 216-7)  
Em texto do ano seguinte (1964), Lukács insistia na superioridade de Kafka em  
relação a Beckett:  
A visão de Kafka estava efetivamente voltada para o tenebroso nada  
da era hitleriana, para algo fatalmente real; ao contrário, o nada de  
Beckett é um mero jogo com abismos fictícios, aos quais não  
corresponde mais nada de essencial na realidade histórica [...].  
(LUKÁCS apud COUTINHO, 2005, p. 218)  
Ainda em sua Estética I, Lukács volta a exaltar a figura de Kafka, mas agora de  
modo indireto, na forma da sinalização de um parentesco entre a sua obra e a de  
Charlie Chaplin. O modo específico como esse alcançou o sucesso é o que faz lembrar  
que se trata: a realidade que nos informa e que nós informamos, aquela que a nossa experiência nos  
ensina a sentir, com todos os seus problemas, todas as manifestações de um mundo infernal nosso  
país, no entanto, nossa pátria, esse ‘círculo que dá toda a sua plenitude ao meu poder de ação’. Na  
medida mesmo em que, em Thomas Mann, os traços característicos do nosso presente são mais  
complexos, mais vivos, mais abundantes é-nos mais fácil descobrir que esse presente não é mais do  
que um fragmento do processo da vida, em que está comprometida a humanidade inteira e do qual  
podemos saber, a cada momento, de onde vem e para onde vai. Embora o autor tenha predileção pelos  
mais rebuscados detalhes, sua obra nunca nos deixa esta impressão estática que experimentamos ao  
ler a literatura naturalista. E, por mais profundamente que Thomas Mann penetre nos infernos do nosso  
mundo, nunca, na sua obra, as caretas de nossa vida são mais do que caretas, claramente concretizadas  
e reconduzidas à sua origem.” (LUKÁCS, 1969, pp. 123-4)  
Verinotio  
512 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
Kafka, a saber, através da figuração do homem comum diante do mundo alienado do  
capitalismo, isto é, Chaplin alcançou o sucesso  
[...] tornando simbolicamente concreto em sua existência física, em  
seus gestos e em sua mímica, com inesgotáveis variações, uma atitude  
típica do “pequeno homem”, do homem-massa, diante do capitalismo  
contemporâneo. Deste modo, na expressão da situação histórico-  
social, ele se elevou a uma tipicidade que só pouquíssimos  
contemporâneos foram capazes de atingir em outras artes. Não se  
deve esquecer o quanto o círculo emotivo das obras de Chaplin e seus  
temas sociais estão próximos do mundo de Kafka (LUKÁCS apud  
COUTINHO, 2005, p. 217).  
A similaridade de universos não impede que Lukács veja também a diferença  
entre os trabalhos de Kafka e Chaplin. O filósofo húngaro dá mesmo a entender que o  
segundo atingiu um resultado artístico mais bem acabado:  
Em Chaplin, contudo, o medo e a impotência retiram sua forma não  
apenas do interior, mas do interior e do exterior, numa indissolúvel  
unidade. Nasce assim um humorismo universal que triunfa sobre o  
medo e cuja profundidade que torna objetiva e aprofunda a  
problemática de Kafka se manifesta precisamente na medida em que  
ele faz o esotérico aparecer e operar numa forma popularmente  
exotérica. (LUKÁCS apud COUTINHO, 2005, p. 217)  
Por fim, em texto de 1964, Lukács expõe sua avaliação positiva de Kafka através  
de uma analogia com o trabalho de Swift, exatamente o que voltaria a fazer na carta a  
Coutinho, que comentamos anteriormente:  
A genialidade peculiar de Swift se expressa na profética inclusão de  
toda uma época histórica em sua visão da sociedade. Em nosso tempo,  
encontramos algo análogo somente em Kafka, quando ele põe em  
movimento todo um período de desumanidade, em oposição ao  
específico homem austríaco (tcheco-alemão-judeu) do último período  
do reinado de Francisco José. Deste modo, o mundo formal kafkiano  
adquire um caráter de profunda e dinâmica verdade, em contraposição  
aos que sem um pano de fundo histórico semelhante, sem uma base  
e uma perspectiva do mesmo tipo orientam-se diretamente para a  
nua, abstrata e portanto distorcida generalidade da existência  
humana, o que os faz desembocar inevitavelmente num completo  
vazio, no nada. (LUKÁCS apud COUTINHO, 2005, pp. 218-9)6  
Como se pode observar, a visão de Lukács acerca de Kafka passou por  
mudanças após a elaboração de Realismo crítico hoje. Ainda que o escritor tcheco não  
alcance os postos mais elevados na apreciação lukacsiana, sua obra não é mais  
localizada no campo decadente e resignado das tendências de vanguarda. Pelo  
6 Valemo-nos aqui, como o leitor atento já deve ter notado, de uma seleção prévia de textos, feita por  
Coutinho (cf. COUTINHO, 2005, pp. 215-9).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 513  
nova fase  
 
Vladmir Luís da Silva  
contrário, Lukács vê em Kafka um autor cujas obras constituem uma espécie de  
protesto pela preservação do humano na realidade alienante do capital. Para o filósofo,  
essa força da obra kafkiana é nutrida pela firme contraposição a um contexto histórico  
concreto, ainda que contraditório, e não a uma realidade abstrata.  
3
De todo modo, caberia ao jovem discípulo desenvolver em um sentido mais  
sistemático as indicações do velho mestre húngaro, superando suas unilateralidades.  
Foi nesse sentido que, por ocasião da morte do filósofo baiano, Ricardo Antunes  
afirmou que Coutinho “foi para além de seu velho mestre, transcendeu-o  
lukácsianamente.” Esse ir além deve ser visto hoje no fato de Coutinho não se limitar  
a rever apenas a apreciação lukacsiana de Kafka, mas também sua teoria da arte e da  
literatura do século XX.  
Para o filósofo baiano, a avaliação de Lukács do período presente (sustentada  
do final dos anos 1920 até meados dos 1960) lastreava toda a sua apreciação  
estética. Tal perspectiva possuía dois pressupostos, problemáticos em graus distintos.  
O primeiro era o de que, com o refluxo do ciclo revolucionário iniciado em 1917,  
haveria a necessidade de uma aliança entre as tendências da democracia radical e as  
do socialismo como resposta aos perigos reacionários e às disposições fascistas em  
gestação. A base de tal aliança no campo ideológico seria a comum defesa da razão e  
da arte realista contra o irracionalismo e a vanguarda. Já o segundo ponto de partida  
consiste na suposição, equivocada por princípio, de que o “socialismo realmente  
existente” na Rússia havia promovido de fato a emancipação humana, constituindo  
assim um farol para a intelectualidade ligada à tradição democrática na formulação de  
suas perspectivas filosóficas e artísticas.  
O primeiro pressuposto, procedente para as décadas de [19]30 e [19]40, seria  
solapado pelas condições do pós-Segunda Guerra. Apostando alto no movimento em  
defesa da paz e professando uma visão de mundo excessivamente otimista, Lukács  
não levava na devida conta as crescentes contradições no interior dos blocos em  
disputa, isto é, as novas modalidades de alienação no campo da democracia formal e  
de controle burocrático no âmbito do socialismo realmente existente. Baseado nos  
referidos pressupostos, Lukács condicionava o êxito artístico à não recusa a priori do  
socialismo no horizonte intelectual dos artistas. Tal era a distinção fundamental entre  
realismo crítico e vanguarda. Se o primeiro se mantinha simpático ou mesmo  
Verinotio  
514 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
indiferente àquele ideal, o segundo aderia a uma visão de mundo profundamente  
pessimista. Assim, Lukács não assimilou o caráter justificável de certo pessimismo em  
relação às realidades tanto do campo formalmente democrático quanto do soviético,  
e manteve uma contraposição radical entre razão e irracionalismo, realismo e  
vanguarda decadente, defesa da paz e apologia da guerra. De acordo com Coutinho,  
se este fechamento para o futuro seguramente era prejudicial no campo da filosofia,  
nas artes, quando mantido dentro de certos limites, seria justificável e poderia dar  
lugar a obras de grande valor estético e humano, especialmente na lírica e na novela.  
O autor baiano assevera que não apenas a refutação do socialismo realmente existente,  
mas também certos valores da época revolucionária da burguesia e mesmo um  
anticapitalismo romântico poderiam constituir bases frutíferas para obras realistas (cf.  
COUTINHO, 2005, pp. 26-37).  
Desde a publicação de História e consciência de classe a fórmula que preconiza  
ser possível seguir o essencial de um autor mesmo desconsiderando suas afirmações  
particulares sobre um dado assunto costuma significar, pelo menos entre os marxistas  
ligados a Lukács, a adesão a um método. Não é diferente no caso presente. Trata-se  
aqui do “método histórico-sistemático” ou “genético-estético”, “que articula  
organicamente as determinações histórico-sociais com as determinações estruturais  
imanentes (no caso, as determinações estéticas) das objetivações humanas” (LUKÁCS,  
1969, p. 39). Isto é, caberia ao pesquisador apreender o conteúdo histórico-social que  
serve de pressuposto à obra e verificar o modo como o mesmo é reposto  
artisticamente. Assim, tem-se a apreensão da gênese social e de sua resultante  
estética7. O segundo problema fundamental em Realismo crítico hoje seria justamente  
o abandono do método em questão, utilizado desde O romance histórico (1936-37)  
e retomado em outras obras.  
Na obra de 1957, além de não iniciar seu trabalho pela análise da realidade  
social, como costuma fazer em seus melhores trabalhos, o filósofo húngaro atribui aos  
escritores analisados o que chama de “concepção do mundo subjacente à vanguarda”,  
uma visão nucleada pela ideação do homem como ser essencialmente isolado e da  
realidade como sendo desprovida de sentido imanente. Essa visão de mundo, comum  
em várias filosofias de tipo irracionalista, não é extraída por Lukács da leitura interna  
7
O fato de que, para Lukács, arte e filosofia tenham o mesmo objeto (a realidade histórico-social) não  
deve levar à suposição de uma supressão de suas especificidades, pois possuem um funcionamento  
distinto. Enquanto o reflexo artístico se dá de modo antropomorfizador, o filosófico se realiza de maneira  
desantropomorfizadora (cf. LUKÁCS, 1966).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 515  
nova fase  
 
Vladmir Luís da Silva  
das obras literárias dos autores, mas, no geral, constitui fruto de imputação. Nos casos  
em que mobiliza provas da suposta adesão de um autor à visão irracionalista, é comum  
o filósofo recorrer às declarações conceituais desse autor (presentes em cartas, ensaios  
teóricos, fragmentos etc.)8. Assim, deixa de lado a noção de arte como representação  
ou figuração mimética da realidade histórico-social, em prol da ideia de arte como  
expressão direta de uma visão de mundo, algo mais próximo da leitura sociológica  
feita por autores como Lucien Goldmann. Também é descartado outro elemento  
importante do método histórico-sistemático, a saber, a noção de “vitória do realismo”.  
Tomada de empréstimo a Friedrich Engels, essa noção se refere às situações nas quais  
um autor, fiel à representação da realidade que lhe serve de base, produz uma obra  
na qual são superados os limites de suas posições político-filosóficas.9 Tal seria o caso  
de alguns expoentes da vanguarda que alcançaram o realismo, não importando a visão  
que tivessem do mundo.  
A denúncia dos limites da visão de Lukács engloba ainda a consideração de  
que, juntamente com o descarte temporário do método histórico-sistemático, o filósofo  
húngaro deixou de aplicar no livro de 1957 uma de suas teses mais brilhantes à  
literatura do século XX, a saber, a ideia segundo a qual “a obra de arte autêntica [...]  
satisfaz as leis estéticas apenas na medida em que, ao mesmo tempo, as amplia e  
aprofunda” (LUKÁCS apud COUTINHO, 2005, p. 42). Já em meados dos anos 1960,  
Lukács percebeu que esse processo de ampliação e aprofundamento na literatura  
contemporânea passava por uma combinação do realismo crítico com técnicas  
desenvolvidas pela vanguarda. No final da mesma década, deu um passo decisivo ao  
indicar “o modo pelo qual os novos pressupostos sociais e ideológicos do capitalismo  
8
A este respeito, deve-se observar que Adorno já havia advertido para o perigo da avaliação pautada  
na filosofia do autor: “Seja como for, o conteúdo desses pensamentos [de Kafka – VLS] não é canônico  
para a obra literária. O artista não é obrigado a entender a própria obra, e há razões suficientes para  
se duvidar que Kafka tenha entendido a sua. [...] As criações de Kafka se protegem do erro artístico  
mortal que consiste em crer que a filosofia que o autor injeta na obra seja o seu teor metafísico”  
(ADORNO, 1998, p. 242).  
9 “Quanto mais as opiniões do autor permanecerem ocultas, tanto melhor para a obra de arte. O realismo  
a que me refiro deve se manifestar a despeito das opiniões dos autores. Permita-me dar um exemplo,  
o de Balzac, que eu considero um grande mestre do realismo, maior do que todos os Zolas passados,  
presentes e futuros […]. Balzac era politicamente legitimista; suas simpatias estão com a classe [a  
aristocracia] destinada à extinção […]. Que Balzac tenha sido obrigado a ir de encontro às suas próprias  
simpatias de classe e a seus preconceitos políticos; que ele tenha visto a necessidade do colapso dos  
aristocratas com os quais simpatizava e os tenha descrito como gente que não merecia um destino  
melhor; que ele tenha visto os verdadeiros homens do futuro no único lugar em que, naquela época,  
eles podiam ser vistos eis o que considero uma das maiores vitórias do realismo e uma das maiores  
realizações do velho Balzac” (ENGELS apud COUTINHO, 2005, p. 227). Na verdade, Lukács se utiliza da  
noção de vitória do realismo em seu livro de 1957, mas o faz em um contexto não atinente a Kafka (cf.  
LUKÁCS, 1969, p. 113).  
Verinotio  
516 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
   
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
tardio conduziram a uma modificação formal da estrutura romanesca, cujo centro não  
mais seria, como no romance tradicional, a figuração de uma ‘totalidade de objetos’  
[...] mas a de uma ‘totalidade de reações’” (COUTINHO, 2005, pp. 44-5). Assim, a  
narrativa tradicional do século XIX dá lugar a uma estrutura na qual um “teatro social”  
aglutina os indivíduos e os força a encarar de modo intensificado os problemas  
ideológicos que, no cotidiano, se apresentam de modo disperso.  
4
Desse modo, é na tentativa de assumir as indicações metodológicas e  
desenvolver os princípios adiantados pelo velho mestre húngaro que Coutinho  
concebe seu trabalho acerca da obra de Kafka10. O ensaio em que realiza a tarefa em  
questão abre com a sinalização de uma mudança na narrativa. No realismo típico do  
século XIX (Balzac, Stendhal, entre outros), em conformidade com as perspectivas  
otimistas oferecidas pelos processos revolucionários burgueses, figurava-se o  
empenho individual no sentido da plena realização das potencialidades humanas, o  
qual desembocava em um destino trágico ou tragicômico que já revelava o caráter  
ilusório de tais perspectivas. Em momento posterior, em obras como A educação  
sentimental (Flaubert) e Em busca do tempo perdido (Proust), aquele ambiente vai se  
tornando cada vez mais degradante, de modo a se tornar indigno das ambições de  
realização individual. Sobra, no entanto, especialmente no segundo caso, uma fuga  
subjetiva tendente à conservação da integridade humana. Já na dinâmica própria do  
novo século, condena-se a um fim trágico mesmo o indivíduo médio, conformado com  
sua posição na divisão social do trabalho. Tal é o caso em algumas das obras de Kafka,  
nas quais nem mesmo a fuga já é mais possível:  
o homem já não pode “contornar”, ainda que ilusória ou  
transitoriamente, o fetichismo dissolutor que o atinge por toda parte,  
até o mais recôndito de sua vida privada, em seu quarto de dormir  
(como em A metamorfose e em O processo) ou no fantástico bunker  
construído precisamente para isolar-se do mundo ameaçador (como  
em A construção) (COUTINHO, 2005, pp. 126-7).  
O passo seguinte de Coutinho é então a averiguação do cenário histórico social  
utilizado pelo escritor tcheco como base para suas composições. Trata-se de captar a  
distinção entre as fases atravessadas pela dinâmica do modo de produção capitalista,  
10 Nesse ponto, cabe um esclarecimento: o ensaio de Coutinho foi publicado em 1977, na revista Temas  
de ciências humanas, mas, devido ao fato de o autor ter revisto seu trabalho, com acréscimos e  
alterações, optamos pela versão mais recente (cf. COUTINHO, 2005, pp. 123-95).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 517  
nova fase  
 
Vladmir Luís da Silva  
a saber, o processo de desenvolvimento que leva do capitalismo liberal ao  
monopolista. Para o autor, a dialética “entre causalidade e necessidade na  
determinação da ação individual operava de tal modo, na época liberal do capitalismo,  
que os espaços livres só se fechavam ‘em última instância’”. No âmbito da literatura,  
isso permitiu aquela margem de manobra na qual se moviam os heróis problemáticos  
do romance burguês, ou, no dizer de Coutinho, “a contradição entre a tentativa de se  
manter (ou de se mover) no interior dessa ‘faixa livre’ e o triunfo final das ‘forças  
objetivas’, impondo a capitulação conformista, a resignação ou a derrota trágica, é  
precisamente o conteúdo essencial do romance realista do século XIX” (COUTINHO,  
2005, p. 128).  
Já na transição para o “capitalismo dos monopólios”, em especial para o  
“capitalismo monopolista de estado”, aquela dialética altera-se no sentido de diminuir  
o campo da ação individual. Trata-se aqui de um processo de ampliação da  
“manipulação”, partindo da economia em direção às demais esferas da sociedade. Em  
tal configuração social, “a necessidade da ‘força objetiva’ que nega a liberdade  
individual não abre mais seu caminho apenas ‘em última instância’; ela se impõe cada  
vez mais como uma ‘primeira instância’, como uma experiência imediata já no seio da  
vida cotidiana” (COUTINHO, 2005, p. 129). Esse é o pressuposto histórico da figuração  
elaborada por Kafka, o cenário da transição entre o capitalismo liberal e o monopolista,  
uma realidade na qual ocorre um “endurecimento crescente do ambiente social”, um  
“paulatino estreitamento dos espaços individuais de manobra”. Desse modo, o  
problema evocado por Kafka é assim resumido por Coutinho:  
em nosso tempo, nem mesmo o homem médio ou seja, o homem  
desprovido de qualquer impulso no sentido de uma autofruição  
verdadeiramente humana da própria personalidade e muito distante  
de ser um inconformista (como o eram Julien Sorel, Lucien de  
Rubempré, Raskolnikov ou mesmo o narrador da Recherche) pode  
se julgar a salvo daquela “força objetiva” que, à sua falsa consciência,  
aparece como um destino fatal. O choque trágico com a realidade  
alienada não é mais o resultado de uma batalha na qual a iniciativa  
pertence ao indivíduo e que, por isso mesmo, atinge apenas algumas  
figuras excepcionais (ainda que típicas no sentido lukácsiano da  
expressão). Kafka nos mostra que uma tal situação pode ocorrer até  
mesmo ao mais oco e medíocre conformista (COUTINHO, 2005, p.  
131).  
Sendo assim, o tema central dos melhores trabalhos de Kafka, que o tornam  
um precursor do realismo próprio do século XX, seria a jornada do indivíduo que, não  
obstante seu caráter mediano, sua falta de iniciativa contra a realidade alienada da  
Verinotio  
518 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
divisão burocratizada do trabalho, é oprimido em sua vida cotidiana por uma estrutura  
impessoal. Não se entenda aqui o afirmado conformismo figurado como sinônimo de  
arte naturalista, isto é, como mera descrição de um mundo cinzento. No universo  
kafkiano não é estranha a presença de personagens que, mesmo não se esforçando  
pela realização social de suas potencialidades, lutam pela conservação de sua  
integridade subjetiva, algo transparente no sentimento de inadequação e na  
inquietude reinantes em seu interior. Assim, Kafka denuncia não só o caráter insensato  
e anti-humano da ideologia da segurança no mundo manipulado, mas sua própria  
falsidade, revelando-a como mera máscara, que a qualquer momento pode dar lugar  
à irrupção do absurdo e do arbitrário na vida do mais pacífico dos indivíduos. Basta  
pensar aqui nos casos de Gregor Samsa e Josef K.  
O mundo enrijecido que se oculta por trás da ideologia da segurança provoca  
no homem médio figurado por Kafka uma oscilação entre o temor e a esperança.  
Coutinho destaca a inconsciência desse indivíduo médio quanto à legalidade histórico-  
social que rege seu mundo, pois se trata aqui de um resultado de uma constelação  
concreta, e não de uma condição eterna (abstrata). Isto é, a inconsciência emerge como  
fruto da incapacidade dos personagens de irem além das barreiras da divisão alienada  
do trabalho, o que faz com que se choquem com a burocracia desprovidos de uma  
apreensão da realidade que supere a consciência manipulatória típica de sua época.  
Não obstante, a figuração kafkiana não estaciona no nível meramente descritivo da  
mediocridade, mas cria uma margem de manobra entre as alienações objetiva e  
subjetiva. Em outros termos: Kafka cria entre os sistemas burocráticos e a falsa  
consciência um âmbito de inquietação, atinente à impossibilidade objetiva de os  
personagens se adequarem aos papéis alienados a eles impostos.  
Sendo assim, a visão do mundo imanente aos melhores trabalhos de Kafka é  
apreendida por Coutinho a partir da visualização de uma denúncia clara de uma  
realidade histórico-social determinada de modo concreto, bem como da figuração de  
certo número de reações subjetivas alternativas diante da corrupção do núcleo humano  
promovida por essa realidade. A visão de mundo em questão também é captada a  
partir da articulação que Kafka promove entre indivíduo e sociedade. Na obra do autor  
tcheco a determinação da vida humana pela existência social se dá em dois níveis:  
Por um lado, no plano subjetivo, preenchendo com uma visão  
burocrática os conteúdos da consciência deste homem; e, por outro,  
no plano objetivo, destruindo “por baixo” a aparente normalidade de  
sua vida cotidiana e colocando-o frente a frente com os poderes  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 519  
nova fase  
Vladmir Luís da Silva  
sociais reificados. (COUTINHO, 2005, p. 139)  
Desse modo, Kafka mostra ter aprendido a lição aristotélica quanto ao caráter  
social do humano e prova-se um autêntico continuador da tradição realista. Observe-  
se aqui, de passagem, que Coutinho não está sozinho ao pensar Kafka como escritor  
que busca uma figuração de caráter realista. Tentativas no mesmo sentido e com a  
mesma convicção podem ser encontradas em Günther Anders (2007) e Modesto  
Carone (2008 e 2011).  
Fixado o pressuposto histórico da reposição estética kafkiana, Coutinho busca  
solucionar um aparente paradoxo: o de que Kafka tenha figurado uma realidade que  
não conhecia, pois a nova situação só estaria plenamente constituída no período pós-  
crise de 1929, com as medidas impostas para impedir a repetição dessa última. O  
filósofo baiano esclarece que Kafka representa a realidade do capitalismo monopolista  
a partir de seus aspectos latentes na realidade do capitalismo liberal, em particular na  
época de transição vivida pelo escritor tcheco. Trata-se, em suma, da figuração de  
elementos inerentes ao capitalismo em geral. No entanto, ainda mais importante para  
comprovar a tese de Coutinho é o fato de que os germes do monopolismo e do  
fascismo que dormitavam no período liberal, e que só eclodiriam mais tarde, foram  
artisticamente antecipados por Kafka. Isto é, o escritor se valeu da possibilidade,  
aberta pela “natureza peculiar da mimese estética que se fixa sobre uma  
particularidade concreta e não sobre a universalidade conceitual –”, de antecipar  
tendências que só posteriormente seriam totalmente explicitadas11. Adorno já havia se  
11 Para Walter Benjamin, era o vínculo de Kafka com a tradição que lhe possibilitava captar o elemento  
moderno, o que está por vir: “O que de fato — e num sentido preciso é maluco em Kafka, é que este  
recentíssimo mundo de experiência lhe foi confidenciado justamente pela tradição mística. Naturalmente  
isso não foi possível sem processos devastadores […] dentro dessa tradição. A dimensão exata da coisa  
é que evidentemente foi necessário apelar a nada menos que às forças dessa tradição para que um  
indivíduo (que se chamava Franz Kafka) pudesse se defrontar com a realidade que se projeta como a  
nossa, teoricamente, por exemplo, na física moderna, e em termos práticos, na técnica da Guerra. […]  
Quando se diz que ele percebeu o que vinha, sem perceber o que é de hoje, é porque ele o fez  
essencialmente como o indivíduo que foi atingido. Seus gestos de susto são beneficiados pela magnífica  
margem de manobra que a catástrofe não irá conhecer. Mas na base dessa experiência repousava  
apenas a tradição à qual Kafka se entregou; nem visão longínqua, nem ‘dote de vidente’. Kafka escutou  
a tradição e quem escuta com muito esforço não vê” (BENJAMIN, 1993, p. 105). Mesmo autores  
quilometricamente distantes dos parâmetros marxistas como Gilles Deleuze e Félix Guattari captaram o  
elemento do futuro na obra kafkiana. Podemos observar isso em diversas passagens de seu livro  
dedicado ao escritor tcheco: “A linha de fuga criadora arrasta com ela toda a política, toda a economia,  
toda a burocracia e a jurisdição: ela as suga, como o vampiro, para fazê-las emitir sons ainda  
desconhecidos que são os do próximo futuro fascismo, stalinismo, americanismo, as potências  
diabólicas que batem à porta” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, pp. 76-7). Mais à frente, os autores em  
questão assinalam que “Kafka abre para si um campo de imanência que vai funcionar como uma  
desmontagem, uma análise, um prognóstico das forças e das correntes sociais, das potências que, à sua  
época, ainda não fazem mais que bater à porta” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 102). Por fim: “Este  
método de aceleração ou de proliferação segmentária conjuga o finito, o contíguo, o contínuo e o  
Verinotio  
520 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
manifestado acerca da referida possibilidade no universo kafkiano, ao dizer que “Kafka  
desmascara o monopolismo nos refugos da era liberal liquidada pelos monopólios.  
Este instante histórico, e não um atemporal que perpassa a história, é a cristalização  
da metafísica de Kafka”. O crítico também via no escritor tcheco a expressão da  
variante nazista do capitalismo monopolista:  
O conteúdo de sua obra [de Kafka] aponta mais para o nacional-  
socialismo do que para o domínio oculto de Deus [...]. O método de  
Kafka foi confirmado quando os obsoletos traços liberais da anarquia  
da produção mercantil, que ele tanto acentua, retornaram sob a forma  
da organização política [nazista] da economia desregulada. (ADORNO  
apud COUTINHO, 2005, p. 141)  
Além do recurso estético da antecipação, Coutinho considera ainda o fato de  
que a condição de súdito do Império Austro-Húngaro facilitou a Kafka o trabalho de  
antecipar artisticamente a realidade do capitalismo tardio. Trilhando uma “via  
prussiana” de desenvolvimento capitalista, isto é, empreendendo uma modalidade de  
desenvolvimento tardio e a partir de determinado momento acelerado, o Império  
teria antecipada sua necessidade de aparatos de controle sobre a sociedade. Nos  
termos do autor:  
Como a Alemanha, o Império Austro-Húngaro seguira uma “via  
prussiana” para o desenvolvimento capitalista; isso significa que tal  
desenvolvimento se processou em conciliação com as velhas  
instituições feudais, em particular com a conservação do caduco  
aparato burocrático ligado à monarquia centralizada. Pouco a pouco,  
porém, essas velhas formas começaram a assumir um conteúdo novo,  
um conteúdo capitalista. Com efeito, a “industrialização atrasada e  
depois forçada” – que é um dos traços econômicos mais  
característicos “da via prussiana” – requer uma sólida intervenção  
econômica do Estado e, por conseguinte, o fortalecimento de suas  
funções burocráticas. [...] Assim, por vias transversas, um Estado  
relativamente atrasado colocava-se à frente dos mais desenvolvidos  
na antecipação de tendências que, nesses últimos, manifestavam-se  
de modo mais lento e mais complexo, em virtude das tradições  
nacional-populares e democráticas neles existentes (sociedade civil  
mais forte, maior controle “de baixo” sobre a burocracia etc.).  
(COUTINHO, 2005, p. 144)12  
ilimitado. Ele tem muitas vantagens. A América está se endurecendo e precipitando seu capitalismo, a  
decomposição do império austríaco e a ascensão da Alemanha preparam o fascismo, a revolução russa  
produz com grande velocidade uma nova burocracia inaudita, novo processo judicial no processo, ‘o  
antissemitismo atinge a classe operária’ etc. Desejo capitalista, desejo fascista, desejo burocrático,  
Tânatos também, tudo está lá batendo à porta. Já que não se pode contar com a revolução oficial para  
romper o encadeamento precipitado dos segmentos, contar-se-á com uma máquina literária que adianta  
sua precipitação, que ultrapassa as ‘potências diabólicas’ antes que elas estejam todas constituídas,  
americanismo, fascismo, burocracia: como dizia Kafka, ser menos um espelho que um relógio que  
adianta.” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, pp. 107-8)  
12  
Observe-se que, ao contrário de Coutinho, Lukács via na origem nacional de Kafka um meio para a  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 521  
nova fase  
 
Vladmir Luís da Silva  
Essa origem austro-húngara seria a causa da tipicidade temática de Kafka, mas  
o caráter universal do modo como é figurada decorre, segundo Coutinho, do judaísmo  
específico do escritor. Não nos referimos aqui à visão, corrente entre os intérpretes,  
de que os temas kafkianos estão ligados à tradição “messiânica”, mas sim a uma  
indicação de uma orientação universalista. A tendência seguida por Kafka é  
caracterizada como “concretamente humanista, aberta à integração na comunidade  
humana universal, defensora de um autêntico internacionalismo, compreendido como  
a única solução progressista para o problema nacional judaico” (COUTINHO, 2005, p.  
147). Citando uma definição de Isaac Deutscher, o filósofo baiano considera Kafka “um  
judeu não-judeu”, um tipo que vive entre fronteiras históricas, religiosas e culturais,  
aprendendo e contribuindo com cada povo de modo a produzir um pensamento que  
se eleva acima das particularidades locais.  
No que se refere à reposição estética, Coutinho mostra como a captação  
kafkiana da universalidade do capitalismo monopolista no nível “do universal enquanto  
novidade emergente” implica a novela como forma. Segundo o filósofo baiano:  
Kafka figurou a universalidade do seu tempo sob a forma da novela e  
não sob aquela do romance. Diferentemente do romance, que figura  
a universalidade de um período histórico na totalidade explicitada de  
suas mediações, na rica e polimórfica articulação de suas várias  
determinações objetivas, a novela ilumina a totalidade a partir da  
representação de um evento singular sintomático. (COUTINHO, 2005,  
pp. 152-3)  
Diante da deflagração de apenas alguns sintomas do capitalismo tardio no  
período de transição, Kafka só podia figura-los, com sucesso, através da forma  
novela13. Desse modo, os eventos singulares que desencadeiam os relatos kafkianos  
(tais como a metamorfose de Gregor Samsa e o processo contra Josef K) constituem  
“pontos focais” que explicitam problemáticas típico-sociais da realidade do capitalismo  
monopolista, sem a necessidade da figuração de uma totalidade de objetos ou de  
reações. A tipicidade está presente não só na irrupção do absurdo como forma de  
antecipação, mas também no modo de reação dos personagens aos eventos singulares  
não-cotidianos que os afetam: sua luta contra a corrupção do núcleo humano de sua  
fuga na alegoria (cf. LUKÁCS, 1969, pp. 122-3; COUTINHO, 2005, p. 145).  
13  
Adorno parece ter pressentido a inadequação da noção de romance para definir os trabalhos de  
Kafka: “Seus romances, se é que de fato eles ainda cabem nesse conceito, são a resposta antecipada a  
uma constituição do mundo na qual a atitude contemplativa tornou-se um sarcasmo sangrento, porque  
a permanente ameaça da catástrofe não permite mais a observação imparcial, e nem mesmo a imitação  
estética dessa situação.” (ADORNO, 2003, p. 61)  
Verinotio  
522 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
individualidade.  
Sendo assim, a forma da novela permitiu a Kafka, em suas melhores produções,  
uma articulação perfeita de conteúdo histórico-social (e ideológico) e reposição  
estética14. Não obstante, a utilização da novela por si não garantiria o mesmo nível de  
êxito artístico, isto é, a mesma aproximação à figuração da totalidade. De acordo com  
Coutinho, deve-se enfatizar aqui a questão das possibilidades históricas, ou seja, o  
nível de desdobramento da universalidade de uma dada problemática. Em combinação  
com o talento individual, aquele desenvolvimento condiciona as possibilidades  
estéticas, de modo a acolher desníveis no interior da obra de um mesmo novelista. Tal  
seria o caso de Kafka. As parábolas Na colônia penal e Durante a construção da  
muralha da China, as novelas A metamorfose, o fragmento de Amália em O castelo e,  
sobretudo, O processo, constituem, no entender de Coutinho, casos exitosos, pois aí  
a problemática retratada se aproxima do mais alto nível de universalidade possível na  
época. Já em outras novelas, como é o caso de O veredicto, o evento que desencadeia  
a história não é portador da tipicidade necessária, isto é, não apresenta os devidos  
vínculos com o todo social. Nesse caso, a biografia do autor é o único meio de acesso  
ao sentido da obra. Comparando O veredicto, A metamorfose e O processo, Coutinho  
vê nesse último a novela de Kafka em que a universalidade atinge seu ponto mais  
elevado (COUTINHO, 2005, pp. 159-65). Além da queda na mera singularidade nos  
casos da novela naturalista, há ainda o caso das parábolas alegóricas, nas quais o  
acaso é mera ilustração de um universal abstrato, não mundano. Também aqui deve-  
se recorrer ao universo filosófico do autor na busca do significado.  
A utilização da forma novela foi conjugada por Kafka com a técnica  
representativa do fantástico. Não se trata aqui apenas das obras em que esse aparece  
explicitamente, como em A metamorfose: “todo o ‘mundo’ kafkiano é envolvido por  
uma atmosfera fantástica, por uma estranheza que o distancia decisivamente das  
formas ‘normais’ de aparição da realidade cotidiana.” (COUTINHO, 2005, p. 165). Para  
o filósofo baiano, esse recurso serve à criação de uma arte realista nos melhores  
14 Observe-se, de passagem, que a posterior evolução do real, possibilitando a figuração romanesca da  
universalidade antes figurada de modo novelístico, não invalida a verdade poética do universo kafkiano.  
A permanência dessa última é garantida pelo fato de a arte realista possibilitar a representação de um  
dado momento histórico em sua relação com a continuidade do desenvolvimento humano, permitindo  
sua rememoração por parte de pessoas de um período posterior. Além disso, a obra de Kafka, ao fixar  
uma dada fase da formação econômico-social capitalista, mostra uma universalidade que, mesmo já  
desdobrada em uma totalidade mais complexa, continua a constituir uma realidade com a qual a  
humanidade está envolvida (cf. COUTINHO, 2005, pp. 155-6).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 523  
nova fase  
 
Vladmir Luís da Silva  
trabalhos do autor tcheco, isto é, aí o fantástico irrompe apenas na condição de figurar  
fenômenos efetivos no cotidiano dos indivíduos: “com o emprego dessa técnica  
peculiar, Kafka empresta aos poderes infernais da alienação uma forma estética capaz  
de evidenciar, de modo imediata e extraordinariamente sugestivo, a sua real natureza  
de forças obscuras, irracionais, contrárias ao humano” (COUTINHO, 2005, p. 165)15.  
Coutinho contextualiza historicamente os modos de ocorrência do fantástico e vale-se  
de observações lukacsianas para distinguir o fantástico realista, tal como emerge em  
Kafka, ou seja, como uma técnica formal a serviço da reflexão da realidade, e o  
fantástico antirrealista, uma “concepção de mundo” que dissolve o real e sua essência  
através de um jogo da fantasia subjetiva.  
Assim, nos textos kafkianos, aquele evento singular sintomático, típico da  
novela, assume por vezes a forma de um acontecimento fantástico, tal como a  
metamorfose de Gregor Samsa. O vínculo entre novela e fantástico é reforçado por  
Coutinho através da referência à sua gênese histórica moderna. O novo mundo liberto  
pelas revoluções burguesas emerge de modo episódico na realidade feudal, fazendo  
com que por vezes o contraste com o velho mundo seja entendido de modo fantástico.  
Em casos de processos de modernização tardia, como o da Alemanha ou o do império  
Austro-Húngaro, a dinâmica provém “de fora”, agudizando a dificuldade de percepção  
da nova realidade como “normal”, submetida a leis racionais. Utilizando o fantástico  
em suas novelas, Kafka pôde efetuar o devido reflexo estético dessa realidade fugidia  
em relação à representação direta16.  
O recurso à forma da parábola também é recorrente em Kafka. No entanto, o  
uso de analogias e metáforas não descamba necessariamente para o alegórico17. A  
direção aqui é a do realismo, isto é, a figuração artística do real. Assim, além de  
15  
A captação da alienação pelo autor tcheco também não escapou à argúcia de Adorno: “O  
distanciamento artístico de Kafka, o meio para tornar visível a alienação objetiva, recebe a sua  
legitimação do conteúdo. Sua obra finge um lugar a partir do qual a criação aparece tão dilacerada e  
danificada como, segundo os seus próprios conceitos, deveria ser o inferno. [...] A fonte de luz que  
apresenta as feridas do mundo como infernais é a melhor possível.” (ADORNO, 1998, p. 267)  
16  
Assim como o fizemos no resto deste artigo, resumimos muito a posição de Coutinho, mas é  
importante sinalizar que sua argumentação é bastante rica. O filósofo traça paralelos entre as obras de  
Kafka e Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, tanto em relação à sua gênese histórica quanto ao seu uso  
do fantástico. Coutinho também compara o fantástico realista em Hoffmann e Kafka, de um lado, e o  
fantástico antirrealista em Edgar Allan Poe e Eugène Ionesco, de outro (cf. COUTINHO, 2005, pp. 169-  
75).  
17  
Coutinho afirma que temos em Kafka um caso de “vitória do realismo”. Ainda que o escritor tenha  
uma intenção alegórica, essa é sobreposta pelo seu “sentimento do mundo terreno”, resultando assim,  
em suas melhores obras, na constituição de uma “autêntica figuração realista, simbólico-imanente” (cf.  
COUTINHO, 2005, pp. 163; 239).  
Verinotio  
524 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
Durante a construção da muralha da China, Coutinho salienta a qualidade de trabalhos  
como A recusa, Sobre a questão das leis, Josefina, a cantora ou O povo dos  
camundongos, nos quais a dinâmica interna é ditada por problemas humanos  
concretos. A utilização da parábola acaba também, por vezes, desembocando não no  
realismo, mas na própria forma alegórica. É o caso das pequenas narrativas contidas  
em Um médico rural, nas quais o sentido dos textos geralmente é encontrado apenas  
em algo que os transcende, isto é, o processo retratado possui sua dinâmica ditada  
por algo externo.  
É enquanto escritor de novelas, uma escolha de gênero ditada pelo próprio  
conteúdo do real figurado, que Kafka pode ser considerado um “autêntico realista”. Já  
nos arremates, Coutinho busca demonstrar a validade geral dessa tese pelo seu lado  
negativo, isto é, através da investigação das investidas kafkianas no sentido de compor  
romances. Nesse particular, afirma o filósofo baiano: “Além de não poder concluí-los  
(e, no caso de um autor genial como ele [Kafka - VLS], essa incapacidade não pode ser  
considerada um fato acidental), ele chegou mesmo na tentativa de obter uma síntese  
romanesca do material – a ser por vezes infiel à realidade” (COUTINHO, 2005, p. 179).  
Os casos emblemáticos aqui são O desaparecido (ou América) e O castelo. Na forma  
em que foram apresentados por Max Brod, os manuscritos componentes de América  
não vão na direção de um romance, mas sim no de uma parábola alegórica, uma  
explicitação de uma visão transcendental do mundo. Já na forma em que foram  
deixados por Kafka, isto é, como O desaparecido, teríamos “fragmentos de um  
romance”, mas que não constituem um romance. Faltaria em ambas as organizações  
do texto a já referida “intenção de totalidade” típica da forma romanesca. O caso de  
O castelo fracassa por motivo distinto. Essa obra apresenta passagens que de fato  
constituem totalidades relativamente fechadas e sua forma de figurar os problemas  
resulta em um sentido imanente e unitário do mundo, isto é, temos aqui uma estrutura  
de romance. Não obstante, a resolução desses problemas não conduz adequadamente  
à constituição da totalidade de objetos ou de reações típica do romance. Assim, haveria  
uma contradição entre o conteúdo de talhe romanesco e a estrutura resolutiva  
novelística da obra. De acordo com Coutinho, tal contradição “talvez explique o fato  
de que, também neste caso, Kafka abandonou a obra na condição de fragmento  
inconcluso” (COUTINHO, 2005, p. 186).  
Ao estabelecer os pressupostos históricos da obra de Kafka e sua particular  
reposição estética, Coutinho define o escritor tcheco como um “crítico realista do  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 525  
nova fase  
Vladmir Luís da Silva  
mundo manipulado”, situando-o na vanguarda do século XX. Tratar-se-ia de um autor  
cuja obra figura premonitoriamente “o ainda não do capitalismo monopolista  
‘organizado’.” Sobre o lugar de Kafka na evolução da literatura, Coutinho é sintético:  
Sua específica forma novelística, centrada decisivamente sobre a  
reação de um núcleo humano (aquele do homem comum) em face da  
alienação do presente, antecipa o tipo de romance realista  
contemporâneo, baseado sobre a figuração pluralista de uma  
totalidade de reações aos problemas vitais trazidos pelo capitalismo  
tardio. (COUTINHO, 2005, p. 192)  
O termo “vanguarda” tem aqui, evidentemente, o significado de antecipação de  
um movimento artístico de sentido realista. Coutinho faz questão de ressaltar que os  
autores típicos da assim chamada arte de vanguarda (como Albert Camus e Eugène  
Ionesco) não podem ser considerados autênticos herdeiros de Kafka. O parentesco,  
nesse caso, restringe-se à tomada de elementos temáticos e formais do universo  
kafkiano. Fica evidente aqui a diferença radical em relação ao diagnóstico de Lukács,  
visto que esse entendia Kafka como expressão exemplar do campo das tendências de  
vanguarda. O contraste torna-se ainda mais explícito quando observamos que  
Coutinho, para mostrar que a obra kafkiana não está sozinha em seu movimento de  
antecipação, cita exatamente aquele autor que Lukács acreditava ser o principal  
expoente do realismo crítico e, consequentemente, o verdadeiro antípoda de Kafka: “É  
o caso, por exemplo, de Thomas Mann, que pode ser considerado com A montanha  
mágica o principal precursor do novo tipo de romance fundado na ‘totalidade de  
reações’.” (COUTINHO, 2005, p. 193) Em suma, Coutinho apreende lukácsianamente  
uma semelhança essencial entre obras que o próprio Lukács considerava expoentes  
de movimentos fundamentalmente distintos e mesmo contrários.  
O filósofo baiano conclui seu ensaio sobre Kafka assinalando as possíveis  
influências desse autor na literatura posterior, mais em tom de indicação do que de  
definições. Coutinho sugere que os principais herdeiros de Kafka talvez estejam entre  
os escritores da literatura socialista de vertente antisstalinista, os quais denunciam em  
uma arte realista os descaminhos resultantes da dominação burocrática soviética.  
5
Como pudemos observar, Coutinho opera uma reabilitação crítica da obra de  
Kafka no interior mesmo da perspectiva marxista de Lukács, promovendo uma ruptura  
com os aspectos unilaterais que essa última apresentava em relação ao escritor tcheco  
e à literatura do século XX. Desta feita, Coutinho resgata a concepção de obra de arte  
Verinotio  
526 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
como representação mimética da realidade histórico-social, a noção de vitória do  
realismo e, por fim, a ideia lukacsiana segundo a qual a realização de uma autêntica  
figuração realista satisfaz as leis estéticas na medida em que as expande e aprofunda.  
Nucleado pela sondagem do cenário histórico-social que possibilitou a Kafka a  
realização de suas obras, tanto no sentido do êxito quanto do malogro, o  
empreendimento coutiniano não descuidou das leis propriamente estéticas. Assim,  
escrutina os meandros da possibilidade de antecipação estética própria da mimese, as  
virtudes do símbolo, as desventuras da parábola e, por fim, os benefícios da forma  
novela no universo kafkiano.  
Concordemos ou não com sua avaliação da compreensão lukacsiana da arte e  
da literatura do século XX, Coutinho nos ajuda a compreender a atualidade de Kafka.  
Como vimos, a validade presente de sua obra deve-se não apenas ao fato de  
proporcionar às pessoas de hoje a oportunidade de reviver um período histórico  
passado como um momento de sua própria constituição, mas também ao fato de dar-  
lhes um reflexo estético que possui certa validade também para o presente, na medida  
em que o capitalismo ainda é o real em que temos de viver. Frise-se que não se trata,  
no espírito de recorrentes tendências mecanicistas, de uma ligação direta entre as  
ocorrências econômicas e suas consequências ideológicas. Em seus melhores  
trabalhos, ao contrário, Coutinho busca explicitar em que medida o momento do  
relacionamento material entre os indivíduos abre ou fecha as possibilidades de  
entificação dos fenômenos ideais (entre os quais os artísticos), ou ainda, procura  
indicar de que maneira esses últimos são condicionados pelo momento econômico.  
Como nota final, temos de exaltar o resgate coutiniano da essência da  
abordagem lukacsiana da literatura, uma vez que essa é marcada por apreender no  
fenômeno estético uma rica e complexa articulação dialética de continuidade e  
descontinuidade. Isto é, estamos diante de um padrão de análise que capta a  
conjunção dos conteúdos histórico-sociais e das leis imanentes de sua reprodução  
estética. Possibilita-se assim a superação das unilateralidades tanto da investigação  
que aproxima sem mediações reflexo estético e visões de classes sociais quanto da  
usual redução da crítica literária ao exame dos recursos técnicos mobilizados pelo  
autor. É a riqueza deste tipo de investigação que permite que Coutinho apreenda a  
grandeza e o lugar de Kafka na história da literatura.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024 | 527  
nova fase  
Vladmir Luís da Silva  
Referências bibliográficas  
ADORNO, T. W. “Anotações sobre Kafka”. In: ______. Prismas: critica cultural e  
sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge de Almeida. São Paulo: Ática, 1998, pp.  
239-71.  
ADORNO, T. W. “Posição do narrador no romance contemporâneo”. In: ______. Notas  
de literatura v. I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003,  
pp. 55-63.  
ANDERS, Günther. Kafka: pró & contra; os autos do processo. Trad. Modesto Carone.  
São Paulo: Cosac Naify, 2007.  
ANTUNES, R. Notas de memória: as primeiras influências de Carlos Nelson Coutinho no  
marxismo brasileiro. Revista Praia Vermelha, v. 22, n. 2, pp. 27-31, jan.-jun. 2013.  
BENJAMIN, Walter. Carta a Gershom Scholem. Trad. Modesto Carone. Novos Estudos  
Cebrap, n. 35, pp. 100-6, mar. 1993.  
BENJAMIN, Walter. “Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte”. In:  
______. Obras escolhidas v. I: Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo  
Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.  
CARONE, Modesto. “Introdução”. In: KAFKA, Franz. Essencial Franz Kafka. Trad.  
Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2011, pp. 7-  
23.  
CARONE, Modesto. “O realismo de Franz Kafka”. Novos Estudos Cebrap, n. 80, pp.  
197-203, mar. 2008.  
COUTINHO, C. N. “Introdução”. In: LUKÁCS, G. Realismo crítico hoje. Brasília:  
Coordenada Editora de Brasília, 1969.  
COUTINHO, C. N. Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX. Rio de  
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.  
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Cíntia Vieira  
da Silva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.  
KAFKA, Franz. Essencial Franz Kafka. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Penguin  
Classics/Companhia das Letras, 2011.  
KAFKA, Franz. O castelo. Trad. Torrieri Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,  
2013.  
KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras,  
2005.  
LUKÁCS, G. Estetica v. I: la peculiaridad de lo estético. 2. Problemas de la mímesis.  
Trad. Manuel Sacristán. Barcelona-México: Grijalbo, 1966.  
LUKÁCS, G. “Lukács a Coutinho (Budapeste, 26 de fevereiro de 1968)”. In: COUTINHO,  
C. N. Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX. Rio de Janeiro:  
Civilização Brasileira, 2005.  
LUKÁCS, G. Realismo crítico hoje. Trad. Ermínio Rodrigues. Brasília: Editora  
Coordenada de Brasília, 1969.  
VEDDA, Miguel. Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders  
como intérpretes de Kafka. Verinotio, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 268-309, mar.  
2022.  
Como citar:  
SILVA, Vladmir Luís da. Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma. Verinotio,  
Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 504-528; jul.-dez., 2024.  
Verinotio  
528 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.742  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução  
ampliada e a redistribuição do capital:  
uma análise preliminar a partir do movimento do valor  
The relationship between the insurance sector, expanded  
reproduction and the redistribution of capital:  
a preliminary analysis based on the movement of value  
Rossi Henrique Soares Chaves*  
Deise Luiza da Silva Ferraz**  
Maurício de Souza Sabadini***  
Resumo: No presente artigo demonstramos que  
o setor de seguros, como uma fração do capital,  
possui extensas e variadas imbricações com  
distintos momentos do movimento de  
Abstract: In this article, we show that the  
insurance sector, as a fraction of capital, has  
extensive and varied links with different  
moments in the movement of expanded capital  
accumulation and the metamorphosis of value,  
fulfilling functions for the redistribution of  
capital and the formation of a private collective  
fund through the concentration of monetary  
capital since the beginning of the capitalist  
accumulation process. The financial funds  
managed by insurance companies need, in the  
course of expanded reproduction, to become  
profitable and seek appreciation in order to  
generate new profit possibilities, as well as  
operating in an intertwined manner with  
banking capital.  
acumulação ampliada do capital  
e
de  
metamorfoses do valor, cumprindo  
funcionalidades para redistribuição do capital e  
formação de um fundo coletivo privado através  
da concentração de capital monetário desde os  
primórdios do processo de acumulação  
capitalista. Os fundos financeiros geridos pelas  
seguradoras necessitam, no curso da reprodução  
ampliada, se rentabilizar e buscar valorização a  
fim de gerar novas possibilidades de lucro, assim  
como operar de maneira imbricada com o capital  
bancário.  
Palavras-chave: mercado de seguros; teoria  
marxiana do valor; reprodução ampliada do  
capital.  
Keywords: insurance market; Marxian theory of  
value; expanded reproduction of capital.  
Introdução  
A atividade seguradora costuma ser definida, no nível das aparências e em  
termos da economia vulgar, como aquela capaz de “criar condições para a proteção  
dos patrimônios e das rendas contra perdas decorrentes dos infortúnios da vida”,  
* Pós-doutorando em Política Social pelo Programa de Pós-Graduação em Política Social PPGPS/Ufes.  
Doutor em Administração (Cepead/UFMG).  
**  
Professora associada no Departamento de Ciências Administrativas e professora permanente do  
Centro de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da UFMG.  
*** Professor titular do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Política Social  
da Ufes.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
partindo do princípio do mutualismo (compartilhamento de riscos), onde estabelece  
que “para a proteção de todos, que cada qual contribua modicamente para a formação  
de um fundo capaz de ressarcir os prejuízos daqueles que, vítimas dos infortúnios,  
vierem a sofrer perda patrimonial ou na sua capacidade de gerar renda” (MAGALHÃES,  
1997, p. 10). Segundo a Superintendência de Seguros Privados1 (Susep) o seguro se  
estabelece como “contrato mediante o qual uma pessoa denominada segurador, se  
obriga, mediante o recebimento de um prêmio, a indenizar outra pessoa, denominada  
segurado, do prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato”2. Sendo  
também uma “proteção econômica que o indivíduo busca para prevenir-se contra  
necessidade aleatória”3. De maneira geral, o “seguro” é conceitualmente fundado na  
ideia de “solidariedade” e no rateio dos custos de possíveis reposições de renda  
decorrente de perdas diversas.  
Para uma análise atenta à realidade, é preciso ir além dessas análises aparentes  
e parcelares do setor de seguros, por entender que a forma como ele se apresenta na  
literatura hegemônica parte de uma visão parcial da sociabilidade sem estabelecer as  
conexões entre as esferas da produção e circulação do capital. Procurando rastrear a  
lógica interna deste objeto, consideramos este setor essencialmente como um  
desdobramento da sociabilidade burguesa e do movimento de acumulação do capital,  
que, por um lado, visa mensurar a ocorrência de riscos (de origem diversa) que  
obstaculizem o processo de apropriação do valor para os capitalistas privados, por  
meio da redistribuição da massa de mais-valor produzida socialmente. Em cenários em  
que este processo de apropriação é interrompido, essa reposição de capitais privados  
revela-se também necessária para a manutenção do movimento geral de reprodução  
ampliada do capital. Isso não significa dizer que este movimento isente o capital de  
crises de acumulação, ainda que pretenda atuar em formas de amenizá-la para a classe  
capitalista. Pelo contrário, embora não seja o objetivo central da discussão que  
estamos propondo aqui, destacamos que o setor de seguros possui íntimas conexões  
com momentos de agudização de crises de acumulação por catalisar a forma  
metamorfoseada do capital, como é o capital fictício, por exemplo (ver mais em  
CHAVES, 2022).  
O setor de seguros na pretensão por identificar tendências no movimento de  
1 Autarquia da administração pública federal responsável pelo controle e fiscalização dos mercados de  
seguros e resseguros no Brasil.  
Verinotio  
530 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
     
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
acumulação do capital realiza a mensuração de riscos financeiros envolvendo a  
reprodução capitalista e o cálculo de retornos esperados pela classe capitalista,  
processo que culmina nos preços dos prêmios e das apólices. Para tanto, ele tem  
demandado historicamente do desenvolvimento científico de campos como os das  
ciências estatísticas e atuariais com o objetivo de rastrear as regularidades sociais  
presentes no movimento de acumulação do capital.  
Neste artigo temos como objetivo uma interpretação, a partir da teoria marxiana  
do valor e do olhar de Marx acerca do desenvolvimento e funcionalidade deste  
mercado, do desenvolvimento do mercado de seguros enquanto forma de  
redistribuição da massa de mais-valor produzida socialmente, sendo um mercado de  
autonomia relativa (pois sua conexão com a produção capitalista não aparece  
imediatamente, muito embora ela exista) e lucrativo que auxilia o movimento de  
reprodução ampliada do capital. O movimento de relativa autonomização contribuiu  
fundamentalmente para a especialização da gestão de risco, embora este último não  
se restrinja a este movimento, pois o controle/gestão de riscos, do ponto de vista do  
capital, é uma demanda constante no processo de valorização do valor.  
Este artigo está dividido em quatro tópicos. No primeiro tópico, abordamos a  
relação entre apropriação do valor na esfera da circulação e o processo de formação  
do lucro no setor de seguros, sendo que no segundo tópico apresentamos algumas  
características gerais do mercado de seguros para o desenvolvimento da produção  
capitalista. No terceiro item sendo que no segundo tópico procuramos analisar as  
formas de atuação dos seguros nos ciclos de reprodução ampliada do capital; por fim,  
o quarto tópico é dedicado a análise da forma como ocorre a repartição do mais-valor  
e as disputas intracapitalistas que envolve a participação de distintos segmentos do  
capital neste mercado.  
1. Seguros: dedução do lucro e mais-valor  
Marx (1980) discorre, no item 2 da seção VI do primeiro volume das Teorias  
do mais-valor, que, na concepção burguesa, o lucro é o prêmio do risco, sendo o risco  
principal o suposto adiantamento do dinheiro ao(à) trabalhador(a) na concorrência  
capitalista. Tal tese é ainda bastante difundida pelos ideólogos da burguesia, que  
costuma ainda premiar, colocar em papel de destaque e até mesmo glorificar aqueles  
mais “dispostos a riscos”. Ao considerar tal afirmação como representando a natureza  
imediata, fica evidente que o que se têm é a convicção de que o resultado das  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 531  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
transações econômicas depende da capacidade individual de abraçar a incerteza e  
assumir riscos. De fato, é bom alertar, que a leitura burguesa não é, digamos,  
totalmente equivocada, ao menos do ponto de vista individual, mas ela representa  
somente uma unidade do real, a aparência, insuficiente, portanto, para desvendar a  
essência do capital e o processo global da produção capitalista.  
A ideologia burguesa que premia a disposição a risco é difundida também  
porque, em parte para o capitalista, em sua visão parcial da realidade, o salário é o  
adiantamento seu ao trabalhador: “todas essas experiências vêm confirmar a ilusão  
suscitada pela forma falsa, autônoma e invertida dos componentes do valor, como se  
o valor das mercadorias fosse determinado exclusivamente pelo salário, ou pelo salário  
e pelo lucro em conjunto” (MARX, 2017, p. 931).  
Marx (1980) expõe que, na verdade, este processo ocorre de forma contrária  
sendo necessário desmitificá-lo, pois o capitalista sempre se apropria da mercadoria  
força de trabalho antes de remunerá-la. O autor (1980) aponta que o capitalista  
acredita correr dois riscos a partir do “adiantamento” que ele supostamente realiza. O  
primeiro é o risco de não vender as mercadorias produzidas no mercado e,  
consequentemente, não as transformarem em dinheiro. O segundo é precisar vender  
as mercadorias produzidas abaixo do preço de custo. Porém, ao comprar a força de  
trabalho, o capitalista a compra pelo seu valor e necessita que o trabalho produza um  
valor maior que o pago pela sua força de trabalho, sendo assim, o suposto risco que  
o capitalista corre ao tentar transformar mercadorias em dinheiro tem como maior  
ensejo realizar esse “mais-valor” produzido. Tal ensejo não necessariamente elimina a  
possibilidade da não venda ou da venda abaixo do preço de custo, podendo ou não  
realizar o mais-valor.  
Ademais, para o capitalista, o risco de vender a mercadoria abaixo do  
valor corre, por igual, com o ensejo de vendê-la acima do valor. Se o  
produto é invendável, o trabalhador é lançado no olho da rua. Se o  
preço do produto fica por longo período abaixo do preço de mercado,  
o salário cai abaixo da média e trabalha-se em regime de tempo  
parcial. O trabalhador, portanto, corre o risco maior. (MARX, 1980, p.  
305)  
Para o capitalista, diante de suas expectativas de retorno financeiro, a não  
realização de sua taxa de lucro representa, fundamentalmente, o não ganho, que pode  
incorrer em perdas financeiras. Vale lembrar que a atuação do capitalista no processo  
de concretização de suas expectativas financeiras se baseia na apropriação alheia de  
mais-valor que necessita ser realizado.  
Verinotio  
532 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
Marx (1985), ainda nas Teorias do mais-valor, faz uma análise da decomposição  
do lucro proposta por Ramsay, o qual diz que é “possível decompor o lucro do  
empresário em: (1) salário do empresário; (2) seguro contra o risco; (3) ganho  
suplementar” (RAMSAY apud MARX, 1985, p. 1.400). Defesa próxima a esta pode ser  
encontrada também em Stuart Mill (1996, p. 459), segundo o qual o seguro é uma  
decomposição do lucro. Marx (1985) irá apontar que, no que se refere a (2), ele não  
se decompõe do lucro do empresário. Para tanto, ele cita Corbet que, como Ramsay,  
aponta que, “o seguro que cobre o risco apenas reparte as perdas dos capitalistas por  
igual ou de maneira mais geral pela classe toda” (MARX, 1985, p. 1.400). Entretanto,  
Marx ressalta o que se segue:  
Desse prejuízo repartido por igual tem de deduzir-se o lucro das  
companhias de seguros, dos capitais que, empregados no negócio de  
seguros, encarregam-se dessa repartição. Essas companhias recebem  
parte da mais-valia, como os capitalistas comerciais ou financeiros,  
sem ter participado diretamente na produção dela. (MARX, 1985, p.  
1.400, grifos nossos)  
Desta forma, na repartição e nas deduções de mais-valor entre a classe  
capitalista que refletem de forma distinta os capitalistas particulares, também é preciso  
levar em conta o lucro das companhias de seguro encarregadas de repartir o mais-  
valor, e que “nada tem que a ver com a natureza nem com a magnitude do excedente.  
O(a) trabalhador(a) naturalmente não pode fornecer mais que seu trabalho excedente.  
Não pode pagar ainda algo mais ao capitalista, para que este tenha a garantia da  
posse dos frutos desse trabalho excedente” (MARX, 1985, p. 1.400). Desta forma, o  
lucro do setor de seguros oriundos do comércio de apólices de seguros e/ou de  
aplicações financeiras não gera mais-valor adicional para a produção social, formando  
seu lucro médio com base nas repartições e deduções do mais-valor gerado pelo  
capital produtivo. Marx (2017) aponta ser característica do capital comercial entrar na  
“equalização de mais-valor para formar o lucro médio, apesar de não entrar na  
produção desse mais-valor. Daí que a taxa geral de lucro já contenha a dedução do  
mais-valor correspondente ao capital comercial, ou seja, uma dedução do lucro do  
capital industrial” (MARX, 2017, p. 328).  
O setor de seguros, juntamente ao sistema bancário, é uma forma do capital  
derivada da circulação que também está envolvida no capital de comércio de dinheiro,  
sendo um custo de circulação. Este custo para o processo de circulação revela-se  
necessário para o próprio processo de reprodução do capital, na medida em que o  
capital pode existir como capital monetário em potencial ao compor o fundo coletivo  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 533  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
privado gerido pelas seguradoras. No ciclo do capital monetário, a última fase M’-D’,  
que está inserida na circulação, representa a forma de mercadoria assumida pelo  
capital que necessita ser vendida para que o valor em seu movimento se realize. O  
setor de seguros pode deduzir parte de D’, enquanto movimento necessário para o  
capitalista individual como forma de reduzir as consequências das perturbações  
envolvendo o movimento contínuo de reprodução do capital. E é dessa dedução que  
acontece a formação do lucro da seguradora (intrinsicamente ao valor do prêmio  
estipulado para uma apólice de seguro). Essa dedução de capitais particulares também  
é o que permite que o capital gerido pelas seguradoras seja redistribuído para  
distintos capitais privados, quando uma apólice precisa ser paga.  
Mesmo que de forma preliminar, a esta altura consideramos ainda ser  
necessário pontuar algumas questões sobre a categoria “prêmio”, tal como ela aparece  
especificamente no setor de seguros. O capital monetário pago às seguradoras, na  
aquisição de uma apólice, para que se possa ter a cobertura do seguro adquirido, é  
denominado “prêmio”. Diferentemente do que parece sugerir, os prêmios recebidos  
pelo setor de seguros não são recompensas oriundas de algum mérito individual. Os  
prêmios são essencialmente o cálculo do preço a ser pago pelo segurado e  
pressupõem uma série de cálculos capitalistas de retornos financeiros esperados,  
assim como a própria taxa de lucro. Os preços dos prêmios sempre acompanham os  
preços de mercado das mercadorias asseguradas, assim como incluem a lucratividade  
esperada pelo capital do setor de seguros. Os preços de mercado das mercadorias  
asseguradas expressam o mais-valor oriundo do processo de produção e se  
manifestam no preço de produção. Devemos recordar que, no processo de  
transformação do valor em preço de produção, o pressuposto fundamental é a  
produção de mais-valor pela força de trabalho.  
Vale ainda ressaltar que nem todos os preços dos prêmios acompanham a  
transformação do mais-valor em preços de produção (e posteriormente em preço de  
mercado), pois o sistema de preços da acumulação capitalista também pode se  
expressar na forma de capital de caráter especulativo (baseado em direitos e retornos  
futuros). Citam-se, por exemplo, os títulos públicos ou mesmo as ações no mercado  
financeiro que podem não possuir preços baseados diretamente no valor, mas tão  
somente na rentabilidade futura do capital (ainda que possa resultar em mais extração  
de valor). Dessa forma, os “prêmios” recebidos pela seguradora representam muito  
mais que a recompensa por uma suposta benesse promovida pelo setor, haja vista que  
Verinotio  
534 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
o setor de seguros está inserido na acumulação capitalista e suas operações cumprem  
certas funcionalidades para a reprodução ampliada do capital.  
Em suma, o capitalista particular, para além da aquisição de uma cota de seguro,  
necessita adotar conjuntamente medidas práticas para que seus riscos sejam  
reduzidos. Disso tem-se a expansão, por exemplo, no decorrer da produção capitalista,  
do setor de segurança (física e de informação), assim como da Comissão Interna de  
Prevenção de Acidentes (Cipa), da gerência e dos lobbies governamentais através de  
mediações políticas no estado. Tudo isso ocorre para tentar reduzir os seus riscos,  
através ou não de apólices de seguros, e aumentar sua taxa de lucro. Entretanto, por  
estar inserido no âmbito da concorrência capitalista entre setores do capital, o  
capitalista pode optar por atuar na produção capitalista abrindo mão inclusive de parte  
do mais-valor, via sistema de seguros para reduzir as consequências da efetivação de  
seus riscos. Já as próprias companhias seguradoras passam a operar com uma margem  
de lucro concomitante à absorção de porções de mais-valor que fez fluir para si por  
meio da comercialização de apólices, assim como da rentabilidade dos montantes de  
capital monetário de distintos setores do capital que foram reunidos em seus fundos.  
2. Setor de seguros, classe capitalista e os falsos custos  
Marx (2017), no volume III de O capital, relaciona o desenvolvimento do  
mercado de seguros com o desenvolvimento da produção capitalista, como se não  
bastasse ser o próprio estado uma forma de assegurar o grande capital (MARX;  
ENGELS, 1978), seja através das mediações políticas e do direito ou pelo fundo  
público. Em relação ao segundo, Marx (2013), no volume I dO capital, ao tratar da  
assim chamada acumulação primitiva, diz que a dívida pública se tornou uma das  
principais alavancas da acumulação do capital e que, podemos dizer, ainda hoje é fonte  
de rentismo financeiro se tomarmos, por exemplo, o comércio global de seus títulos  
(que Marx irá tratar mais especificamente no Livro III). Marx (2014), no volume II dO  
capital, apontou que as seguradoras podem distribuir, entre a classe capitalista, as  
perdas de capitalistas individuais, mas sem impedir que as perdas se caracterizem  
como perdas sob o ponto de vista do capital social total:  
Assim, os custos que encarecem a mercadoria sem nada adicionar ao  
seu valor de uso e que, do ponto de vista da sociedade, pertencem,  
portanto, aos faux frais da produção, podem constituir uma fonte de  
enriquecimento para o capitalista individual. Por outro lado, na  
medida em que o valor que agregam ao preço da mercadoria não é  
mais do que a distribuição equitativa desses custos de circulação,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 535  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
estes não perdem o seu caráter improdutivo. Por exemplo, as  
sociedades de seguros distribuem entre a classe capitalista as perdas  
dos capitalistas individuais. Mas isso não impede que as perdas assim  
niveladas continuem a ser perdas quando se considera o capital social  
total. (MARX, 2014, p. 217, grifos nossos)  
Em uma crítica dirigida a Girardin, Marx e Engels (1978) tratam de apontar a  
não “independência” do seguro frente à produção capitalista, mesmo que esta pareça  
ser autônoma, haja visto sua funcionalidade na distribuição do mais-valor. Marx (2011,  
p. 249, grifos do autor), nos Grundrisse, é categórico quando diz que “os riscos da  
produção têm de ser compensados. O capital tem de se conservar nas oscilações dos  
preços. A desvalorização do capital, que se dá de maneira incessante pela elevação da  
força produtiva, tem de ser compensada etc.”. Na própria dinâmica do capital, são  
várias as ocasiões que aparecem como momentos de risco, seja nas oscilações de  
preço de produção, ou pela sua desvalorização decorrente de alterações da  
produtividade social do trabalho. Mas, como Marx aponta, todos esses riscos devem  
ser compensados no processo de valorização, perpassando as esferas da produção,  
circulação, distribuição, troca e consumo das mercadorias, sob a condição da existência  
do próprio capitalista individual. No caso do setor de seguros, Marx o relaciona  
principalmente com a funcionalidade da distribuição do mais-valor num cenário  
econômico de concorrência entre capitais, entretanto para compreender seu papel no  
processo global da produção capitalista, é necessário o entendimento dos motivos  
pelo qual os “riscos da produção têm de ser compensados”, da mesma forma como a  
realização ou não do mais-valor no consumo afeta o processo de valorização.  
Ainda nos Grundrisse, o autor alemão constata que, nos economistas vulgares,  
o risco de não realização do valor cumpre um papel na determinação do lucro, pois  
representa, fundamentalmente, o perigo de que o capital “não percorra as diferentes  
fases da acumulação” ou fique estagnado em uma das fases de seu ciclo. Marx observa  
que, na verdade, a determinação do lucro adicional não cumpre nenhum papel neste  
ponto, pois ele é um custo de produção e o perigo real é a possibilidade de  
estagnação: “porque a criação do valor excedente não se torna maior pelo fato  
impossível de que o capital corre riscos na realização deste valor excedente” (MARX,  
2011, p. 603, grifos do autor). É justamente porque o capitalista é submetido ao  
pagamento de juros, decorrente de empréstimos, que a realização de lucro adicional  
se converte para ele em custo de produção e necessariamente precisa ser realizado:  
Tão logo juro e lucro se separam e, portanto, o capitalista industrial  
tem de pagar juros, uma porção do lucro adicional é custo de  
Verinotio  
536 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
produção no sentido do capital, i.e., ela mesma faz parte de suas  
despesas. Por outro lado, é o seguro médio que dá a si mesmo a fim  
de cobrir o perigo da desvalorização que corre nas metamorfoses do  
processo total. (MARX, 2011, p. 603, grifos do autor)  
Vale mencionar, ainda que brevemente, que no Livro III d’O capital, Marx pontua  
que é no processo de transformação do capital monetário em capital portador de juros  
que essa “separação” entre lucro e juro se acentua, pois o mais-valor produzido passa  
a ser distribuído em frações representadas sob a forma de lucro, juros e renda da terra.  
Dentro da dinâmica do sistema de crédito o capital portador de juros assume uma  
posição crucial como credor (envolvendo a questão dos riscos), o que é essencial para  
a reprodução do ciclo geral do capital e o financiamento do capital produtivo (cf.  
SABADINI, 2013).  
A título de exemplo, Keynes (1996) considerou como sendo o primeiro risco de  
um empresário a “probabilidade de conseguir, realmente, a retribuição que espera”  
(KEYNES, 1996, p. 155). Schumpeter (1997, p. 47) menciona que “os homens de  
negócio incluirão prêmios de risco em sua contabilidade de custos, realizarão gastos  
para se proteger contra certos perigos [...] um produtor que tome precauções contra  
o risco [...] tem certamente uma vantagem ao proteger o fruto de sua produção...”.  
Vejamos que estes autores tratam de algumas questões importantes, mas sob o ponto  
de vista da economia vulgar, se atendo a superficialidade dos processos sem levar em  
conta a produção de mais-valor. Por outro lado, é nesse cenário que o lucro adicional  
cumpre a função de “seguro médio” que o capitalista “dá a si mesmo a fim de cobrir  
o perigo da desvalorização que ocorre nas metamorfoses do processo total” (MARX,  
2011, p. 965).  
Uma parte do lucro adicional se apresenta ao capital somente como  
uma compensação pelo risco que corre para fazer mais dinheiro; um  
risco em que o próprio valor pressuposto pode evaporar-se. Nessa  
forma, o lucro adicional aparece perante o capital como lucro a ser  
necessariamente realizado para garantir sua reprodução. As duas  
relações naturalmente não determinam o mais-valor, mas fazem com  
que seu pôr apareça como uma necessidade externa para o capital, e  
não só como satisfação de sua tendência ao enriquecimento. (MARX,  
2011, p. 603, grifos nossos)  
O que Marx está nos dizendo é que os riscos que envolvem o processo de  
valorização do valor não podem ser considerados como algo externo ao próprio  
movimento de valorização e à produção capitalista, estando assim intrinsicamente  
ligados à necessidade de que o capitalista não interrompa o processo de valorização.  
Isto ainda nos sugere que, entre a produção do valor (e do mais-valor) e sua realização,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 537  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
ocorrem movimentos que podem inviabilizar a realização integral do mais-valor,  
práticas que são próprias do movimento de valorização, como o desenvolvimento das  
forças produtivas, a concorrência intra e entre capitais, a expressão do valor de troca  
no preço, assim como variações nos valores de uso das mercadorias envolvidas nos  
processos de trabalho e de troca. Desta forma, vale ressaltar que a existência de um  
mercado de seguros não elimina os riscos que envolvem o movimento de valorização  
do valor, que aparecem como custos tanto no processo produtivo quanto nas  
metamorfoses do capital. Mas o mercado de seguros pode contribuir para reduzir os  
“falsos custos” aumentando a capacidade de gerar renda das seguradoras. O mercado  
de seguros se apresenta como um meio pelo qual o capitalista privado faz fluir para si  
um valor em sua forma monetária a despeito de não ter evitado os riscos que  
constituem o processo de reprodução ampliada do capital. Isso é possível devido a  
formação de uma poupança coletiva privada, mas que não atende de maneira  
equânime a todos os capitalistas particulares, nem mesmo insere nessa poupança  
coletiva todos os setores capitalistas de maneira idêntica. A formação desta poupança  
coletiva não é suficiente para evitar a ocorrência de falências e das crises que são  
intrínsecas à reprodução capitalista. Com o desenvolvimento da acumulação capitalista  
os setores mais securitizados são aqueles que apresentam tanto maior concentração  
quanto centralização de capitais (como é o caso do setor bancário e do mercado  
financeiro).  
Em síntese, a consolidação de uma sociedade baseada na troca de mercadorias  
e na valorização do valor permite o desenvolvimento de um setor específico do capital,  
o mercado de seguros. O fato de os seguros passarem a ser comercializados por  
empresas dedicadas específicas, colabora para a redução dos “falsos custos de  
produção”. Se toda empresa capitalista tivesse que realizar um fundo segurador  
próprio para se proteger dos riscos de mercado, os custos seriam maiores. Nesse  
contexto, em função do movimento geral do capital e das possibilidades de  
metamorfoses do valor se ocorrerem abaixo ou acima do esperado, os capitalistas  
demandam o progresso do conhecimento científico produzido por campos como a  
matemática, administração, estatística e atuária, incorporados ao mercado de seguros.  
Esse processo ocorre com o objetivo de auxiliar e garantir o movimento de fluição do  
mais valor social, e da circulação de capitais, ainda que o capital privado não tenha  
percorrido todos os seus ciclos para a acumulação, por meio, por exemplo, do cálculo  
e da utilização de métodos para a precificação de riscos (p. ex. o score de risco  
Verinotio  
538 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
calculado a partir de análise dados), como mediação para a finalidade de redistribuição  
do mais valor.  
O mercado de seguros aparece também como setor lucrativo no mercado na  
medida em que é revelada a potencialidade da ciência estatística em perceber  
tendências aparentes do processo de valorização na sociabilidade capitalista, ou seja,  
é possível, a partir de uma análise particular, se perceber peculiaridades de cada caso  
de risco a ser segurado, assim como do movimento universal, que é a relação social  
capitalista. Atualmente, com a produção de bancos de dados, a gestão de informações  
sobre gostos culinários, lugares que frequentamos etc., revela tendências, que, sob a  
ótica capitalista, podem ser mercantilizadas (ver mais sobre o assunto em FERRAZ et.  
al., 2021) assim como utilizadas de diferentes formas e em distintos setores do capital.  
Por exemplo, no mercado de seguros, enormes bases de dados de pessoas e ou  
empresas, financeiros e ou de mercado, influenciam no cálculo do prêmio e da taxa de  
lucro.  
No contexto apresentado, os seguros operam por meio da análise dos  
acontecimentos passados, identificando tendências vislumbrando antecipar medidas  
para minimizar possíveis perdas, ou mesmo repartir os prejuízos entre setores do  
capital, em todos as áreas em que atuam. Isso acontece por conta do engendramento  
de um setor de mercado, pela classe capitalista, de uma atividade que auxilia os  
capitalistas particulares, nos diferentes setores em que atua, de modo não equânime  
e sujeito à dinâmica da concorrência intracapitalista. Contribuindo para a formação de  
um fundo coletivo privado e para a redução dos falsos custos de produção, na medida  
em que gesta um novo setor que é capaz de transformar em renda o trabalho  
improdutivo que executa.  
3. Seguros e produção de valor  
Neste ponto, é necessário revisitar as formas assumidas pelo capital nos  
estágios necessários à sua valorização para analisarmos as distintas funcionalidades  
do setor de seguros. Essas formas são o capital monetário (D) e o capital mercadoria  
(M’), e a forma típica do estágio da produção é o capital produtivo (P) (MARX, 2014).  
Para o capital que ao longo do seu ciclo de reprodução assume distintas destas formas,  
Marx (2014) chama de capital-industrial, “industrial, aqui, no sentido de que ele  
abrange todo ramo de produção explorado de modo capitalista” (MARX, 2014, p.  
131).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 539  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
Dessa forma, o capital industrial é aquele que está presente em todos os  
momentos da reprodução do capital, ora como o capital-mercadoria ou capital  
monetário (no âmbito da circulação), ora como capital produtivo (no âmbito da  
produção), sendo “o único modo de existência do capital em que este último [o capital]  
tem como função não apenas apropriação de mais-valor ou de mais-produto, mas  
também criação” (MARX, 2014, p. 134). Para o que aqui nos interessa, é fundamental  
observar os distintos momentos em que os seguros atuam e suas operações na  
reprodução ampliada do capital, considerando a necessidade de distinguir as formas  
de capital metamorfoseadas. O capital, em seu processo de valorização do valor,  
depende fundamentalmente da produção (e criação) de valor, assim como de sua  
reprodução, pois, desta forma, o ciclo do capital pode se repetir ao passo que  
possibilita o acúmulo de mais-valor que, posteriormente, poderá ser utilizado como  
capital.  
A fórmula apresentada por Marx, a partir da decomposição da fórmula geral do  
capital (D-M-D’), para representar o processo cíclico do capital levando em conta suas  
metamorfoses é D-M (Meios de produção + força de trabalho)...P...M’-D’, e o capital  
produtivo P e seu ciclo (P...M’-D’-M...P) medeiam duas fases de circulação, sendo o  
meio para a valorização do valor através do uso dos meios de produção pela força de  
trabalho. O capital produtivo, por estar inserido no meio do processo, demonstra a  
sua imperativa necessidade de não sofrer interrupções e de pressupor o início de um  
novo processo de valorização, pois, se a acumulação capitalista iniciasse e encerrasse  
em P, não haveria acumulação. Em virtude desse caráter ininterrupto, o setor de  
seguros assume um papel ao oferecer cobertura para eventuais prejuízos financeiros  
resultantes de danos materiais dos atributos do capital produtivo, os quais podem  
gerar danos ao processo de acumulação.  
O ciclo do capital monetário (D-M...P...M’-D’) está inserido no processo de  
valorização do capital sendo expresso na forma-dinheiro, que nas palavras de Marx se  
apresenta da seguinte forma, “o valor do capital constitui o ponto de partida, e o valor  
de capital valorizado o ponto de retorno [...] o capital monetário se expressa como  
dinheiro que pare dinheiro” (MARX, 2014, p. 136). Para se analisar o circuito financeiro  
das mercadorias, torna-se necessário atualmente levar em conta o processo de  
autonomização das formas funcionais do capital, do qual o capital monetário está  
incluso, e da consequente desmaterialização do dinheiro (SABADINI, 2013).  
Neste ciclo, o dinheiro pode se transformar em capital à medida que, no âmbito  
Verinotio  
540 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
da circulação, é utilizado para comprar a mercadoria força de trabalho, para repor os  
meios de produção ou mesmo para assumir a forma de capital portador de juros. Para  
este fim, a funcionalidade do capital monetário perpassa suas funções enquanto  
dinheiro, qual seja, meio de pagamento, de circulação e de crédito. Podem ocorrer  
perturbações nas funções autônomas do capital monetário, nas quais o setor de  
seguros também pode atuar, como é o caso de seu entesouramento por determinado  
tempo, sua desvalorização cambial ou crises no sistema de crédito. Em suma, se a  
própria fase D-M, ou seja, a conversão do dinheiro na aquisição dos elementos que  
compõem o capital produtivo, não ocorrer por algum motivo, o dinheiro permanecerá  
apenas como capital monetário latente.  
O ciclo do capital-mercadoria (M’-D’–M...P...M’) representa a soma de valor de  
capital e mais-valor, na medida em que sua finalidade é a produção e venda de  
mercadorias sendo “uma condição constante do processo de reprodução” (MARX,  
2014, p. 172). No que diz respeito ao capital-mercadoria (M’), Marx (2014) explica  
que o ciclo M’...M’ deve ser observado também como “forma de movimento da soma  
dos capitais individuais e, portanto, do capital total da classe capital, um movimento  
em que cada capital industrial aparece apenas como um movimento parcial,  
entrelaçado com os demais e por eles condicionados” (MARX, 2014, p. 175). Um  
pressuposto do ciclo do capital-mercadoria é justamente a venda da mercadoria,  
consequentemente, se a fase M’-D’ não se efetivar, podem surgir perturbações no ciclo  
do capital, abrindo espaço para a intervenção do setor de seguros em mais uma etapa  
do processo.  
O empenho de Marx em identificar as distintas formas de capital que emergem  
no processo cíclico do capital reside na intenção de demonstrar como o capital  
percorre distintos estágios e formas durante seu processo de valorização. Assim como  
ressaltar a operacionalidade do ciclo do capital industrial e de suas formas funcionais  
(capital monetário, capital mercadoria e capital produtivo), que estão em constante  
metamorfose de uma forma a outra.  
Por ser permeado de possibilidade de perturbações em diferentes estágios de  
seu ciclo, o capital demandou historicamente formas de reduzir ou solucionar em  
partes essas questões. Da mesma forma, para Marx, o próprio mercado bancário de  
crédito é uma maneira pela qual o capital pode possibilitar que um capitalista, que,  
por algum motivo, não tenha transformado sua mercadoria em dinheiro, possa  
recomeçar o ciclo por meio de um crédito financeiro bancário. Também o mercado de  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 541  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
seguros surge como um meio pelo qual o capital pode mitigar os resultados das  
perturbações inerentes à reprodução social, operando enquanto fundo coletivo  
privado.  
Para caminharmos no entendimento de como o mercado de seguros se  
relaciona com o processo de reprodução do capital, é preciso distinguir, para fins  
didáticos de entendimento, dois momentos: a) os riscos materiais que envolvem o  
momento de produção das mercadorias (P) e que estão inseridos do circuito da  
produção; b) riscos relativos à forma capital da produção e suas metamorfoses, que  
estão inseridos no movimento geral de circulação da mercadoria e no circuito da troca.  
Os riscos envolvendo o momento a são aqueles que abarcam o circuito da  
produção ocasionados por incêndios, danos nos meios de produção, eventos adversos  
da natureza (inundações, furacões etc.), greves e demais formas de paralisação da  
produção de mercadorias. Conforme Marx (2014, p. 259), “esse gasto tem de ser  
coberto pelo mais-valor e é dele descontado”, ou seja, é fundamental para o capital  
mitigar as perdas oriundas da paralisação da produção de mercadorias e isso acontece  
através da dedução de falsos custos, aqueles que incidem indiretamente no processo  
de produção de mercadorias, visando dar continuidade no processo de realização do  
mais-valor interferindo no processo de rotação do capital. Esses riscos demandam do  
capital a formação de um estoque social de mercadorias, ao passo que pode realizar  
“uma produção em escala maior do que a necessária para simples reposição e  
reprodução da riqueza existente [...] a fim de que se disponha dos meios de produção  
necessários para compensar a destruição extraordinária provocada pelos acidentes e  
pelas forças naturais” (MARX, 2014, p. 259).  
O investimento em capital fixo e o progresso técnico da produção também  
podem operar como fatores para a redução dos riscos produtivos4. Na seção II do  
capítulo 19, do Livro II d’O capital, Marx (2014) faz uma importante observação no  
curso de sua argumentação em torno da reposição do capital constante e da distinção  
entre capital variável e renda nos custos que envolvem a produção capitalista (essa  
4 No contexto da realidade britânica dos séculos XVIII e XIX, Saes e Gambi (2009), a partir de um  
resgate da obra de Robin Pearson, mencionam que é possível observar uma trajetória peculiar das  
Companhias de Seguro no que diz respeito às inovações envolvendo o processo produtivo em que:  
“nas fases de inovações do sistema produtivo existia uma tendência de retração do setor de seguros,  
pois justamente se desconfiava dessas novas tecnologias de produção e de sua incerteza correlata que  
auferia altos riscos para os seguradores. Todavia, nos períodos de estagnação e crise do setor industrial,  
a tendência verificada no caso inglês, nos séculos XVIII e XIX, foi de expansão e diversificação dos  
serviços de seguros (SAES; GAMBI, 2009, p. 3).  
Verinotio  
542 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
discussão intenciona como pano de fundo, no itinerário da obra, refutar a posição de  
Adam Smith segundo a qual o capital variável opera como renda para os  
trabalhadores):  
[...] isso significa apenas que uma parte do mais-valor considerada  
como parte do lucro bruto, deve constituir um fundo de seguros para  
a produção. Esse fundo de seguros é criado por uma parte do trabalho  
excedente, que, desse modo, produz diretamente capital, isto é, o  
fundo destinado à reprodução. No que concerne ao desembolso para  
a “manutenção” do capital fixo etc., a reposição com capital novo do  
capital fixo consumido não constitui um novo investimento de capital,  
mas apenas a renovação do valor de capital sob uma nova forma. [...].  
O componente de valor do qual esse lucro provém demonstra apenas  
que o trabalhador fornece trabalho excedente tanto para o fundo de  
seguros como para o de reparações (MARX, 2014, p. 465, grifos  
nossos).  
Já em relação ao momento b, o curso percorrido das mercadorias no circuito  
da troca, quando demasiado prolongado, também pode aumentar o risco a uma  
variação de preço no mercado. Isso pode atrasar a transformação do capital “seja  
porque a mercadoria permanece por mais tempo no processo de produção, seja  
porque tem de ser vendida em mercados distantes, almeja mesmo assim o lucro que  
por isso lhe escapa, e se compensa mediante um acréscimo no preço” (MARX, 2017,  
p. 246). Marx (2017) ressalta que, no que se refere à desvalorização, capital existente  
que cresce ou decresce de valor, ele está relacionado com o valor do capital adiantado  
para a produção, e não diretamente com o preço, como podem crer os capitalistas  
individuais, o que significa que depende também das formas como atuam os capitais  
que o constituem, se estão na esfera da produção, na circulação, de que forma é  
reconvertido etc.  
Pela complexidade da relação entre preço e valor, assim como das múltiplas  
determinações que o cercam, é necessário analisar um sempre em relação ao outro,  
pois preço e valor pressupõem determinadas relações sociais. Perturbações na função  
econômica do dinheiro como meio de pagamento e de padrão de preços podem  
ocorrer em momentos de crise e de desvalorização do capital, exercendo influência no  
processo de reprodução.  
Em suma, ambos os momentos a e b atuam no processo de valorização do  
valor, entretanto somente o a (momento da produção de mercadorias) possui potência  
de transferir, produzir e criar valor, enquanto em b ocorrem apenas as metamorfoses  
do valor na forma capital. Os dois instantes possuem riscos inerentes que precisam  
ser geridos de modo a garantir a lucratividade, função esta que é desenvolvida, na  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 543  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
maioria das vezes, por exemplo, por gestores, administradores, atuários, engenheiros,  
economistas etc. A diferença central entre esses momentos é, portanto, que, em a, os  
riscos materiais são voltados à dimensão da produção/criação de valor, como dos  
danos provocados nos meios de produção no ciclo do capital produtivo, seja por  
fatores humanos ou naturais. Já os riscos em b estão voltados para os obstáculos que  
envolvem o caminho de realização do valor e suas respectivas metamorfoses no ciclo  
do capital comercial e monetário. O mercado de seguros pode atuar em ambos os  
momentos, dado o seu leque de mercadorias a serem asseguradas, visando reduzir as  
interrupções que incidem no ciclo do capital produtivo assim como no ciclo do capital  
comercial e monetário.  
No chamado “capítulo inédito” d’O capital, Marx (1978, p. 17, grifos nossos)  
reforça que  
é necessário que não se perturbe, não se interrompa o processo de  
produção, e que se chegue, efetivamente, com o produto no prazo  
(lapso) requerido pela natureza do processo de trabalho e por suas  
próprias condições objetivas. Isso depende, em parte, da continuidade  
do trabalho, que faz sua aparição com a produção capitalista, e em  
parte, por força de contingências exteriores, incontroláveis. Cada  
processo de produção implica em risco para os valores que nele  
ingressam, um risco, ao qual, não obstante: 1) estão sujeitos também  
fora do processo de produção; 2) e que é inerente a todo processo  
de produção, e não apenas ao do capital. (O capital protege-se contra  
ele, associando-se. [...]).  
No item 1, é possível observar que Marx ressalta que, na distribuição, circulação  
e na troca, podem ocorrer intempéries para a realização do mais-valor, por inviabilizar  
o valor de uso das mercadorias. Já no item 2, Marx chama atenção para a maneira  
como os riscos estão colocados para todo o processo de produção de valores de uso  
e, por conseguinte, para toda a prática social, mas que, no processo de submissão do  
valor de uso ao valor de troca, esse risco precisa ser mercantilizado. Vale ressaltar  
novamente que nem todo risco mercantilizado, ou mesmo cota de seguro, foi envolvido  
na produção e criação de valor; há também riscos envolvendo o trabalho improdutivo  
e até mesmo para o capital improdutivo sob forma de capital fictício.  
Como indicamos, os seguros podem atuar em vários momentos do ciclo do  
capital (D-M-D’) e sob forma de diferentes capitais, procurando diminuir as  
interrupções no processo de valorização mediante repartição do capital social total.  
No que se refere ao capital produtivo, o seguro atua garantindo e realizando valor em  
patamares correspondentes ao momento de sua produção, assegurando as taxas  
médias de lucro, e o capitalista recebe sua recompensa segundo o preço de suas  
Verinotio  
544 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
mercadorias. No entanto, é importante destacar que essa “garantia” é limitada, já que  
os seguros não podem reverter a tendência à superprodução da produção e à queda  
da taxa de lucro na dinâmica da acumulação capitalista. Os seguros, quando tratados  
de forma isolada, não produzem ou adicionam diretamente mais ou menos valor, mas  
redistribuem o mais-valor existente, garantindo parte do valor que seria lançado no  
mercado (o valor social da massa de mercadorias; determinado pelo tempo de trabalho  
social necessário para sua produção) e possibilitando a continuidade do movimento  
de reprodução ampliada. Essa redistribuição ocorre a partir da venda de cotas de  
seguro, que é deduzido do custo do capital produtivo, e através de um fundo coletivo  
privado de capital-monetário que é formado e gerido pelas companhias seguradoras.  
Baseado no exposto por Marx (2014), ressaltamos que o processo de  
reprodução em seu movimento total  
não apenas coloca uma parte do produto nos fundos de produção  
(como elemento material do capital produtivo), reproduz não apenas  
a força de trabalho e a reincorpora ao capital, como redistribui  
também o dinheiro em funcionamento, e o faz, em parte como forma-  
dinheiro de capital, em parte como meio de circulação (forma-dinheiro  
do mais-valor (renda dos capitalistas) (MARX, 2014, p. 695, grifos do  
autor).  
Chamamos atenção para esta função de redistribuição do dinheiro mencionada  
por Marx (2014, p. 696), pois, segundo o autor alemão, “é a classe capitalista  
industrial que lança esse dinheiro na circulação, mas não como meio de compra ou de  
pagamento de mercadoria, e sim para indenização de seus coproprietários do mais-  
valor”. Aqui é possível observar, entre outros, a destacada função do dinheiro como  
meio de circulação do mais-valor e do capital, funcionalidades fundamentais para o  
movimento de valorização do valor, em que “uma parte do dinheiro necessário à  
circulação do mais-valor encontra-se constantemente em circulação, nas mãos  
daqueles sócios dos capitalistas, e retorna para ele quando este últimos compram  
mercadorias” (MARX, 2014, p. 696). As seguradoras podem atuar justamente  
mediando capitalistas industriais e a parte do mais-valor que se encontra  
constantemente na esfera da circulação, organizando esse fundo coletivo privado, que  
se expressa na forma-dinheiro, para redistribuição de mais-valor, agindo de maneira  
concreta como coproprietárias do mais-valor. O mais-valor a ser redistribuído é  
descontado do capital que reflui para a retomada do processo de produção (embora  
nem sempre tenha esta finalidade), constituindo também um montante monetário que  
não será utilizado de forma imediata para a reprodução do capital (redistribuindo os  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 545  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
prejuízos financeiros causados pelas interrupções e permitindo a continuidade da  
reprodução).  
Ao redistribuir este fundo processo permeado por diversas circunstâncias —  
, pode inclusive acontecer de que o mesmo auxilie no processo de reposição do tempo  
de circulação do capital ao repor prejuízos financeiros oriundos de sua interrupção;  
nesse caso, um novo ciclo de produção do capital pode ser (re)iniciado a partir da  
reposição do tempo de rotação de um mesmo capital.  
No que diz respeito à especificidade do mercado segurador, e o fato de não  
produzir valor e estar ligado aos falsos custos, ressaltamos que é necessário ponderar  
que ele pode ser resultado, entre uma gama de outros elementos, do desconto do  
mais-valor da mercadoria produzida pela força de trabalho para redistribuição futura  
(caso seja necessário). Isso porque no momento de produção de mercadorias  
(momento a) está contida a cota para o seguro, que, na perspectiva do capitalista, é  
uma redução da porção que se apropria do mais-valor, sendo esta parcela direcionada  
para redistribuir possíveis futuras perdas, ou mesmo auxiliar o movimento de  
valorização mediante alguma intempérie em suas metamorfoses (momento b). Desta  
forma, o seguro não possui a potência de eliminar os riscos que envolvem a produção  
ou as metamorfoses do valor, mas fundamentalmente para garantir a continuidade do  
processo de valorização e permitir ao capitalista individual continuar acumulando. Os  
seguros tanto não eliminam o risco, que, em situações de crise sistêmica da  
acumulação capitalista, o setor de seguros costuma ser socorrido pelos estados  
O tempo de trabalho socialmente necessário para se produzir determinada  
mercadoria é perpassado por uma diversidade de riscos (o que varia de acordo com  
cada especificidade produtiva e com os níveis de retornos financeiros esperados) que  
envolvem o processo de valorização do valor. A partir de Marx (2013), é possível  
perceber que está pressuposta uma demasiada gama de condicionantes (das quais  
existem possibilidades de intempéries) envolvendo as condições sociais de produção  
assim como as condições para reprodução da força de trabalho, especialmente no que  
diz respeito às questões em torno da “eficácia dos meios de produção e as condições  
naturais” (MARX, 2013, p. 163).  
Os seguros revelam-se, assim, como poupança coletiva privada que visam  
5
Como é o caso do processo de estatização da AIG (até então o maior grupo segurador do mundo)  
pelo governo estadunidense no bojo da crise financeira de 2008.  
Verinotio  
546 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
garantir a realização do mais-valor particular de cada capital industrial individual,  
objetivando não obstaculizar o movimento geral do valor na reprodução ampliada do  
capital. Isso ocorre ainda que nem todos os riscos envolvendo o processo de  
valorização sejam segurados. Faz-se tal afirmação porque isto não impede que o  
capital corra riscos nem que o capitalista espere uma compensação financeira por eles,  
para além da poupança formada e gerida pelas seguradoras, como pode ser o caso  
do mercado de derivativos financeiros, por exemplo, que atuam na esfera especulativa  
como seguros para aplicações financeiras (transformando dívidas em títulos  
negociáveis).  
No bojo do movimento da reprodução ampliada, vale ressaltar a não  
linearidade/harmonia pela qual é formada esta “poupança coletiva privada”. Marx em  
seu tratamento da reprodução simples e ampliada constantemente procura demonstrar  
como opera o movimento de valorização do valor e como ele tende à interrupções e  
crises envolvendo diversos momentos do processo de valorização e realização do  
valor.  
No que diz respeito à reprodução social da força de trabalho, Fine (2020)  
também alerta para atividades que auxiliam o processo de reprodução do capital e  
que demandam, por conseguinte, análise específica (p. ex.: as discussões envolvendo  
o trabalho reprodutivo conforme apontado por Souza [2020]). A atividade de comércio  
de seguros não envolve força de trabalho na produção, mas, por envolver força de  
trabalho na esfera da circulação (portanto, improdutiva), é também um (falso) custo  
para o capital, da mesma forma como são os trabalhadores do setor bancário e  
financeiro.  
Outra importante questão deve ser sublinhada. Para realizar a cobertura  
financeira de uma apólice de seguro contratada, uma seguradora pode mobilizar e  
gerir as quantias monetárias ociosas que possui e atuar inclusive em operações de  
crédito e demais operações e formas de capital no bojo do mercado financeiro como  
forma de rentabilizar os seus fundos. Haja visto que grande parte das seguradoras  
fazem parte das operações do setor bancário, de forma direta ou associada.  
Em suma, é possível enxergar o mercado de seguros como potencializado, de  
forma mercantil, a partir das relações sociais capitalistas. É no processo de valorização  
do valor, em suas metamorfoses e nas formas funcionais do capital que se manifestam  
na realidade efetiva (capital monetário, capital produtivo e capital mercadoria), que as  
possíveis “perdas” financeiras envolvendo a acumulação capitalista, no âmbito da  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 547  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
produção, distribuição, circulação e consumo, devem ser antecipadas e prevenidas a  
partir, por exemplo, da formação de uma poupança capitalista coletiva que vise  
redistribuir capital para repor perdas de capitais individuais.  
4. Repartição do mais-valor e disputas intracapitalistas  
Seguindo adiante no que estamos tentamos demostrar até aqui, a partir das  
pistas deixadas por Marx, uma das formas de apropriação de mais-valor pelas  
companhias de seguro é resultado da repartição do mais-valor entre capitalistas de  
diferentes segmentos, o que acontece quando as seguradoras cumprem sua função.  
Tal movimento promove disputas envolvendo a repartição do mais-valor, dados os  
distintos segmentos capitalistas e suas formas de participação na retirada de uma  
parte do mais-valor total gerado. Essas disputas podem se manifestar de diferentes  
formas no processo de formação dos fundos securitários, envolvendo: a) os capitais  
privados de diferentes setores (disputa entre setores); b) os capitalistas de um mesmo  
setor (disputa intrassetor); c) os capitalistas do setor de seguros.  
A base para o desenvolvimento da indústria de seguros reside na garantia da  
posse do fruto do trabalho excedente pelo capitalista, da riqueza acumulada e da  
prevenção de acidentes (o que resulta na interrupção do movimento do capital). Em  
vez de ser garantido pelos próprios capitalistas, através do dispêndio do seu trabalho  
ou dos produtos de seu trabalho na produção capitalista, o capitalista “emprega  
método mais garantido e mais barato, deixando para um ramo do capital o negócio  
de seguro” (MARX, 1985, p. 1401). Tal situação se torna possível, na medida em que  
o mais-valor que o capitalista deverá repassar a outros capitalistas, como resultado da  
repartição, assim como o tempo social necessário para a produção de mercadorias são  
inferiores à porção de mais-valor e de tempo de trabalho socialmente necessário que  
o capitalista, ao atuar por si só, teria de deduzir ao optar por aplicar diretamente  
medidas diversas para a redução de seus riscos. Concomitantemente, outros  
capitalistas individuais podem atuar “repartindo” e acumulando várias cotas de mais-  
valor prontas para serem repartidas caso se torne necessário, via mercado de seguros.  
Isso acontece porque, como demonstra Marx (1985, p. 1401), “o seguro é pago  
com parte da mais-valia, cuja repartição e garantia pelos capitalistas, nada tem a  
ver com a origem e magnitude dela”. No que se refere ao mais-valor produzido, do  
qual o capitalista individual deduz seu lucro e a parcela referente ao seguro, Marx  
(1985) aponta que ele, ao abranger a possibilidade de ocorrência de riscos, ou seja, a  
Verinotio  
548 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
possibilidade de interrupção no processo de reprodução do capital, “apresenta-se de  
fato como um seguro e por isso como participação mesmo, na mais-valia geral, de  
determinados capitais de um ramo particular” (MARX, 1985, p. 1.401).  
Neste ponto, é valioso mencionar que uma das questões que surgem do  
processo de repartição do mais-valor são as disputas envolvendo a absorção de cotas  
de mais-valor por diferentes setores do capital e de diferentes formas dentro de um  
mesmo ramo. De forma geral, a concorrência intra e entre setores do capital está  
lastreada, primeiramente, na mercantilização da força de trabalho, pois ela é um  
componente fundamental pelo qual trabalhadores e trabalhadoras são postos em  
disputa no mercado de trabalho na busca por emprego. O capital e sua necessidade  
de valorização do valor estendem a concorrência para todas as esferas de reprodução  
do capital, inclusive na esfera da troca, colocando sempre em disputa capitais  
individuais. Isso acontece porque, segundo Marx, “a livre concorrência impõe ao  
capitalista individual, como leis eternas inexoráveis, as leis imanentes da produção  
capitalista” (2013, p. 432).  
Ressaltamos que, no caso da concorrência na esfera da troca, a concorrência  
pela apropriação das cotas de mais-valor depende fundamentalmente da esfera da  
produção de mais-valor, pois é no processo de produção que o mais-valor que será  
redistribuído tem origem. Assim, para operar redistribuindo mais-valor, as seguradoras  
necessitam sugar sua cota de distintos setores do capital na esfera da produção,  
operando de forma mediadora entre estes distintos setores, assim como atuar de  
forma integrada ao capital comercial bancário para a redistribuição do capital  
monetário centralizado. Devido à alta composição de capitais no setor de seguro, por  
atuar nos mais distintos setores do capital, este papel centralizador de capital  
monetário emerge como uma de suas características centrais para a acumulação  
capitalista.  
No caso das seguradoras, quanto maiores forem os fundos que ela mobiliza  
para o capital produtivo, aptos a serem redistribuídos, maior será o contingente de  
cessão de cotas de mais-valor por capitalistas particulares, na medida em que aparece  
como maior potência em garantir o movimento de valorização do valor. É desse mesmo  
movimento que emergem, também, os processos de concentração do capital que  
caracterizam a produção capitalista e que se manifestam neste setor, o que possibilita  
uma significativa “liberdade” de movimentos redistributivos do capital. Dito isto, há  
historicamente, no setor de seguros, uma crescente formação de monopólios globais,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 549  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
ainda que no nível das aparências ocorram intensas concorrências pela apropriação  
das cotas de mais-valor dos capitalistas particulares (a citar, as companhias Munich Re  
e Swiss Re concentram a maior parte do mercado há praticamente 100 anos). Tal fato,  
entre outros, contribuiu para a própria gestação do setor de resseguros (seguro do  
seguro; uma mesma empresa pode atuar como seguradora e resseguradora de outras  
companhias).  
A concorrência intrasseguradoras se manifesta de diversas formas. Uma das  
principais, por exemplo, ocorre quando há uma queda no total de prêmios recebidos  
por uma seguradora. Isso afeta suas provisões técnicas, termo utilizado para se referir  
à massa monetária que a seguradora precisa manter em seus fundos para cobrir os  
compromissos que assumiu. Essa queda é causada por um maior índice de  
sinistralidade (perdas capitalistas individuais) dos eventos cobertos. Essa seguradora  
incorrerá em baixa capacidade redistributiva entre a classe capitalista, em detrimento  
de outra determinada seguradora que, durante o mesmo período, aumentou o total  
de prêmios arrecadados em decorrência de baixo índice de sinistralidade.  
Ao situar a concorrência entre setores burgueses no bojo da reprodução  
ampliada do capital, é necessário ressaltar que, no cálculo de seu lucro médio, o  
capitalista busca recompensar sempre no aumento de preços as intempéries ocorridas  
no circuito da mercadoria, algo que também ocorre no setor de seguros na definição  
do preço dos prêmios de seguros, mas que se reflete no aumento de preços no circuito  
da mercadoria, uma vez que  
investimentos de capital que se encontram expostos a maiores  
perigos, por exemplo, os realizados na navegação, obtêm uma  
compensação mediante o aumento dos preços. Com efeito, tão logo  
esteja desenvolvida a produção capitalista e, com ela, o sistema de  
seguros, o perigo é de igual grandeza para todas as esferas da  
produção; as de maior risco pagam os prêmios de seguros mais  
elevados, mas os recebem como recompensa no preço de suas  
mercadorias (MARX, 2017, p. 246, grifos nossos).  
Na imediaticidade capitalista, a carência de conceito e a forma irracional pelo  
qual se dá a relação de concorrência, é justamente o que não permite ao capitalista  
ver todos os motivos e fatores que o levaram a fazer um cálculo para um investimento  
de capital que seja compensatório em relação aos riscos, pois a concorrência por si só  
não é capaz de demonstrar a determinação do valor no processo de produção, apenas  
os preços. É por esse motivo que “os investimentos de capital que se encontram a  
maiores perigos [...] obtêm uma compensação mediante o aumento de preços”, e não  
necessariamente do valor, o que pode contribuir para um cenário econômico de caráter  
Verinotio  
550 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
especulativo e na recorrência de crises. Ainda no contexto da concorrência, Sartori  
(2019, p. 135) chama a atenção para a relação entre as formas sociais e as figuras  
econômicas ao apontar para o fato de que “a forma social que se apresenta na  
concorrência como algo evidente tem por trás de si a própria conformação classista  
da sociedade, que, no caso, tem por essencial a oposição entre o moderno proletária  
e a burguesia em suas diversas figuras”. Apesar de não considerar todos estes  
sentidos, como a finalidade do movimento de acumulação na cabeça do capitalista é  
a produção do lucro, para alcançar esse objetivo, ele utiliza métodos variados que  
sejam capazes de regular o volume e a escala da produção que refletem diretamente  
na conformação das taxas de lucro e no nível de preços. Tais fatores envolvem a  
concorrência, mas não emanam dela.  
Sendo assim, o capitalista acaba por esquecer que “todos esses motivos  
compensatórios, que os capitalistas exigem uns dos outros no cálculo recíproco dos  
preços das mercadorias de diferentes ramos de produção, referem-se meramente ao  
fato de que todos eles, pro rata a seu capital, detêm iguais direitos ao butim coletivo,  
ao mais-valor total” (MARX, 2017, p. 246). Novamente tal fato é possível porque ao  
capitalista em geral aparece que o lucro produzido é distinto do mais-valor explorado.  
Ainda em relação à concorrência, Marx (2017) pontua que o reparte do “butim  
coletivo” é característico do momento em que o nivelamento da taxa de lucro “vai  
bem”, mas que, em outras determinadas circunstâncias, como as de crise, a situação  
pode se inverter.  
Quando já não se trata de dividir o lucro, e sim as perdas, cada um  
procura reduzir o máximo possível sua participação e transferi-las a  
outrem. As perdas são inevitáveis para a classe. Mas a parte que cabe  
a cada indivíduo nessas perdas, a participação de cada um no  
cômputo geral, torna-se uma questão de poder e astúcia, e aqui a  
concorrência converte-se numa luta entre irmãos inimigos. [...] a  
distribuição dessas perdas não se estenda de modo nenhum de  
maneira uniforme aos diversos capitais particulares, mas seja decidida  
numa luta concorrencial, distribuindo-se de forma muito desigual e  
diversa conforme as vantagens particulares ou as posições já  
conquistadas, de modo que um capital se vê inativado, outro  
destruído, um terceiro experimenta apenas uma perda relativa ou  
sofre apenas uma desvalorização transitória etc. (MARX, 2017, pp.  
2923, grifos nossos)  
A “questão de poder e astúcia”, mencionada por Marx, que resulta das  
possibilidades de perdas para o capital abre espaço para manobras corruptivas  
diversas como forma de obtenção de vantagem sobre as concorrentes. O mercado  
segurador incorpora práticas que corroboram a distribuição “de forma muito desigual  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 551  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
e diversa conforme as vantagens particulares ou as posições já conquistadas...”, como  
apontado por Marx no trecho acima citado, vantagens estas que podem situar-se na  
margem do processo de reprodução ampliada conforme se acirram as lutas intraclasse  
burguesa pelas perdas particulares. Citam-se alguns episódios que evidenciam as  
fraudes cometidas pelas seguradoras como forma de reduzir seus repasses para o  
fundo público do estado.  
No caso do mercado de seguros, são públicos e notórios casos envolvendo  
grandes seguradoras, a citar o caso do Lloyds Bank, com sede na Suíça, que foi  
multado em 2015 pelo governo inglês, em £ 117 milhões, por fraude na gestão de  
pequenos seguros contra inadimplência e dívida, sendo que o contratante no momento  
do seguro ficava sem ter acesso ao benefício. Estima-se que a prática vinha sendo  
executada desde o início da década de 1990.  
Só no Brasil, segundo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf),  
de 2010 a 2017 foram realizadas 103 operações envolvendo o mercado segurador e  
casos de lavagem de dinheiro, em um universo de 1.336.622 milhões de casos  
registrados no período (SQF, 2020), sem contar que os dados oficiais tendencialmente  
são subestimados. Segundo dados da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg)  
(SQF, 2020), o valor monetário somado das fraudes comprovadas no ano de 2020  
compreendeu cerca de R$ 721 milhões, de um total de cerca de R$ 4,6 bilhões de  
sinistros suspeitos (que não necessariamente foram investigados e tiveram fraudes  
detectadas). Para ter uma noção ampliada, em 2012 foram registrados 206 casos  
suspeitos que envolviam quantias de mais de R$ 100 milhões.  
Smith (2016) também menciona alguns casos atuais de negócios financeiros  
envolvendo os “paraísos” fiscais, que são países que costumam ser muito atrativos  
para os fundos de cobertura (hedge) e os bancos offshore justamente por oferecerem  
baixa fiscalização regulatória e barreiras tributárias irrisórias. Segundo o autor, os  
períodos envolvendo o crescimento deste tipo de operação geralmente está  
correlacionado a eventos nacionais que promovem aumento no pagamento de prêmios  
(ex: desastres naturais e crises econômicas). Tal situação faz com que aumente o  
negócio de resseguros, que geralmente está localizado justamente nos paraísos fiscais.  
Os paraísos fiscais também são formas de lavagem de dinheiro não tributado  
pelo estado. Recentemente ficaram mundialmente conhecidos alguns episódios a este  
respeito, como é o caso do Panama Papers (ocorrido em 2016), em que várias  
empresas que operavam este tipo de negócio foram expostas mundialmente. Estima-  
Verinotio  
552 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
se que cerca de 214 mil empresas offshore envolvendo mais de 200 países  
apareceram no documento6. A metodologia mais utilizada na operação era justamente  
a criação de seguradoras e/ou resseguradoras com operação em paraísos fiscais. Mais  
recentemente, no ano de 2021, novamente foram divulgados milhões de dados  
envolvendo mais uma vez operações financeiras fraudulentas em offshore (em especial  
as Ilhas Virgens Britânicas) através do Pandora Papers7. Este relatório cita o caso de  
Porto Rico para exemplificar a forma como os paraísos fiscais se tornam alvo de  
lavagem de dinheiro. No caso deste país, desde o ano de 2012, o governo oferece  
isenções fiscais que podem chegar até a 45 anos, para quem abrir um banco,  
seguradora ou demais empresas que operam serviços financeiros, sob a condição de  
não ofertarem seus serviços à população porto-riquenha.  
No contexto de expansão de empresas offshore, Smith (2016) aponta que entre  
os principais objetivos de empresas envolvidas nesta operação está o de aumentar a  
riqueza individual do capitalista, assim como a lucratividade das empresas de seguro.  
Isso acontece, por um lado, porque as massas de mais-valor produzido socialmente  
em outros países, assim como as massas de capital monetário, estão à procura de  
menos tributação do estado ao passo que permitem maior integração financeira global  
(ao facilitar a mobilidade do capital globalmente e operar em dólar). Por outro lado,  
passar a operar nos países caracterizados como paraísos fiscais abre a possibilidade  
de incorporar cotas de mais-valor que resultam de um processo de trabalho que  
acontece em condições mais intensas e precárias, resultado do baixo preço da força  
de trabalho, aquele produzido pelos trabalhadores que residem nos paraísos fiscais.  
Essa maior mobilidade do capital, com menor tributação, pode permitir às classes  
burguesas concentrar ainda mais capital ao custo da intensificação da exploração da  
força de trabalho.  
Síntese do movimento do valor no setor de seguros  
No caminho trilhado até aqui, buscamos rastrear as principais funcionalidades  
6
Panamá Papers se refere a cerca de 11 milhões de documentos vazados do escritório de advocacia  
Mossack Fonseca e que expôs políticos, empresas, celebridade em esquemas de lavagem de dinheiro.  
Essa situação foi retratada recente no filme The Laundromat (A Lavanderia). Ver mais em “The Panama  
Papers:  
Exposing  
the  
Rogue  
Offshore  
Finance  
Industry”,  
disponível  
em:  
7
Ver mais a respeito em “Pandora Papers: the largest investigation in journalism history exposes a  
shadow financial system that benefits the world’s most rich and powerful”, disponível em:  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 553  
nova fase  
   
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
do fundo coletivo privado gerido pelas seguradoras para a reprodução ampliada do  
capital. Pela própria complexidade do movimento do valor, não se trata de uma tarefa  
fácil e muito menos simples, pois são diversas as formas pelas quais o capital  
metamorfoseado permeia o setor de seguros e a produção capitalista. Contudo, nossa  
investigação nos permitiu estabelecer algumas conexões que consideramos  
fundamentais e que, em síntese, procuraremos indicá-las a seguir.  
O fundo coletivo privado gerido pelo setor de seguros é, de maneira geral,  
essencialmente composto por cotas de mais-valor e de renda do trabalho e dos  
resultados financeiros advindos da aplicação deste fundo no setor financeiro, na forma  
de capital monetário. As cotas de mais-valor provenientes do capital produtivo  
emanam dos riscos materiais que envolvem a produção capitalista de mercadorias via  
apólices de seguro, da qual se inclui a própria mercadoria força de trabalho. A renda  
do trabalho compõe o fundo na medida em que o(a) trabalhador(a) adquire apólices  
de seguro para seus bens a partir da dedução de seu salário. O capital da esfera da  
circulação e suas metamorfoses, de maneira geral, transferem mais-valor para o fundo  
na medida da dedução que opera do capital produtivo, dessa forma, as apólices de  
seguros operam com a função de garantir a realização do valor das mercadorias.  
Apesar de não ter sido parte dos temas desenvolvidos neste trabalho, ressaltamos que  
o mais-valor que pode (ou não) ser proveniente do capital portador de juros está  
ligado a operação conjunta do setor de seguros nas operações do capital bancário. A  
renda proveniente das operações do capital fictício perpassa fundamentalmente a  
rentabilidade dos títulos públicos (principalmente os da dívida pública) e das ações  
adquiridas pelos fundos como forma de rentabilizar a massa monetária gerida, ou  
ainda ser resultado da mercantilização de derivativos (uma forma de seguro) no  
mercado financeiro no bojo do avanço da securitização de ativos financeiros de  
natureza diversa. Este movimento, porém, somente pode ser efetivado porque antes o  
mais-valor fluiu para este setor e está nele concentrado em sua forma monetária.  
Sugerimos para trabalhos futuros explorar a participação destas formas autônomas do  
capital monetário no setor de seguros.  
Composto o fundo coletivo privado, a sua funcionalidade redistributiva para a  
reprodução ampliada opera de diferentes formas. Diante da ocorrência de um sinistro,  
ou seja, da materialização de algum evento que interrompa o processo de acumulação,  
a classe capitalista pode requerer o pagamento, por parte da seguradora, do valor  
monetário estabelecido na apólice e pago na forma de prêmio para que seja reposta  
Verinotio  
554 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
a perda que sofreu. Da mesma forma, a classe trabalhadora pode acionar o pagamento  
de um sinistro estabelecido em apólice, com a particularidade de que a reposição que  
almeja recai, em última instância (mas não somente), sobre os elementos individuais e  
sociais necessários para a reprodução da força de trabalho (como no caso de seguros  
de saúde). Os representantes da classe capitalista no setor de seguros, os donos e  
dirigentes das seguradoras, apropriam parte do mais-valor concentrado nos fundos  
das seguradoras na forma de renda a partir de lucros baseados nos valores monetários  
das apólices. Ademais, apropriam renda oriunda da aplicação da massa monetária dos  
fundos em capital portador de juros e capital fictício, como no caso dos derivativos  
financeiros e dos títulos da dívida pública para esta última categoria. O estado burguês  
também apropria parte do mais-valor e da renda dos fundos por meio dos impostos  
que incidem sobre as seguradoras e que compõem o fundo público, ao passo que  
remunera, na forma fictícia, o capital monetário envolvido nas transações de títulos da  
dívida.  
Em suma, a concentração de capital monetário operada pelo setor de seguros  
através de seus fundos tem origem nas distintas formas assumidas pelo capital ao  
longo de seu ciclo de reprodução. Nesse movimento concentrador, o setor de seguros  
não opera de maneira isolada, estando historicamente imbricado (direta ou  
indiretamente) ao setor do capital voltado para o comércio de dinheiro, o capital  
bancário. O capital, em sua busca constante por mais-valor, necessita do  
desenvolvimento de variados mecanismos que ampliem sua mobilidade para que não  
fique estagnado em uma de suas formas e fases. A concentração de capital monetário  
realizada pelo setor de seguros pode ser considerada ao mesmo tempo como  
resultado e condição para a produção capitalista. Isso acontece porque o capital  
redistribuído pelas seguradoras é essencial para a continuidade da reprodução do  
capital, ao passo que o próprio capital monetário que resulta dos investimentos  
realizados pelas companhias seguradoras (por ex. através da securatização dos ativos  
e dos derivativos financeiros) revela-se enquanto condição necessária para garantir a  
rentabilidade futura dos fundos coletivos privados. Esta concentração também resulta  
diretamente, por um lado, no papel redistributivo ao permitir para a classe capitalista  
repor os meios de produção ou transações financeiras sinistralizados e, por outro,  
permite ao setor de seguros remunerar a força de trabalho improdutiva e investir em  
capital fixo para expansão de suas operações.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 555  
nova fase  
Rossi Henrique Soares Chaves; Deise Luiza da Silva Ferraz; Maurício de Souza Sabadini  
Referências bibliográficas  
CHAVES, R. H. S. Mercado de seguros no Brasil: funcionalidades no movimento de  
reprodução ampliada do capital. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Minas  
Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2022.  
CNSEG. SQF - Sistema de quantificação da fraude relatório 2020: quantificação da  
fraude no mercado de seguros brasileiro. CNseg, 2020.  
FINE, B. Reprodução econômica e circuitos do capital. In: FINE, B.; SAAD-FILHO,  
A. (Org.). Dicionário de economia política marxista. São Paulo: Expressão Popular,  
2020.  
FERRAZ, D. L. da S.; FRANCO, D. S.; MACIEL, J. A. Desvelando o prosumption: o  
produtor-consumidor, as plataformas digitais e o movimento do capital. Revista  
Eletrônica de Administração, v. 27, n. 2, 2021.  
KEYNES, J. M. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Nova  
Cultural, 1996.  
MAGALHÃES, R. de A. O mercado de seguros no Brasil. Rio de Janeiro: Funenseg,  
1997.  
MARX, K. O capital. Livro I - capítulo VI (inédito). São Paulo: Livraria Editora Ciências  
Humanas, 1978.  
MARX, K. Teorias da mais-valia: histórica crítica do pensamento econômico v. I. Rio  
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.  
MARX, K. Teorias da mais-valia: história crítica do pensamento econômico v. III. São  
Paulo: Difel, 1985.  
MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858; esboços da crítica  
da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.  
MARX, K. O capital [recurso eletrônico]: crítica da economia política. Livro I: o  
processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.  
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro II: o processo de circulação  
do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.  
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da  
produção capitalista. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017.  
MARX, K.; ENGELS, F. Collected works v. 10: 1849-1851. London: Intlpub, 1978.  
SABADINI, M. de S. Especulação financeira e capitalismo contemporâneo: uma  
proposição teórica a partir de Marx. Economia e Sociedade, v. 22, n. 3, 2013.  
SAES, A. M.; GAMBI, T. F. R. A formação das companhias de seguros na economia  
brasileira (1808-1864). História Econômica & História de Empresas, v. 12, n. 2, 2009.  
SARTORI, V. B. Fetichismo, transações jurídicas, socialismo vulgar e capital portador  
de juros: o Livro III de O capital diante do papel ativo do direito. Revista da Sociedade  
Brasileira de Economia Política, n. 52, 2019.  
SCHUMPETER, J. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre  
lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. São Paulo: Editora Nova Cultural,  
1997.  
SMITH, J. C. Imperialism in the twenty-first century: globalization, super-exploitation,  
and capitalism’s final crisis. New York: Monthly Review Press, 2016.  
SOUZA, M. D. de. “Ser trabalhadora produtiva é antes um azar”: a expansão da  
exploração capitalista sobre o trabalho reprodutivo. Dissertação (Mestrado) –  
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 2020.  
Como citar:  
CHAVES, Rossi Henrique S.; FERRAZ, Deise Luiza da S.; SABADINI; Maurício de Souza.  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do  
Verinotio  
556 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024  
nova fase  
A relação entre o setor de seguros, a reprodução ampliada e a redistribuição do capital  
capital: uma análise preliminar a partir do movimento do valor. Verinotio, Rio das  
Ostras, v. 29, n. 2, pp. 529-557; jul.-dez., 2024  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 529-557 jul.-dez., 2024 | 557  
nova fase  
ENTREVISTA  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.730  
Das velhas às novas formas de irracionalismo*  
Entrevista de John Bellamy Foster sobre Georg  
Lukács e A destruição da razão, por Daniel Tutt  
Tradução: Thiago Martins Jorge  
Revisão: Henrique Almeida de Queiroz  
Nesta entrevista, realizada em 10 de fevereiro de 2023, John Bellamy Foster fala com  
Daniel Tutt sobre o trabalho de István Mészáros e Paul Baran, as tendências  
irracionalistas contemporâneas no pensamento ecológico de esquerda, a intensificação  
das lutas de classes globais e a relevância contínua de A Destruição da Razão (1952),  
de Georg Lukács, recentemente reeditado com uma introdução de Enzo Traverso pela  
Verso em 2021. A entrevista está sendo disponibilizada antes de uma próxima edição  
especial da Historical Materialism, da qual Tutt é co-editor, dedicada a The Destruction  
of Reason, de Lukács.  
Daniel Tutt (DT): Eu entendo que você trabalhou com o falecido István Mészáros,  
o marxista húngaro que foi um grande estudioso de Lukács e seu assistente pessoal  
em um ponto. Você acha que Mészáros se inspirou em A Destruição da Razão? Sei  
que Mészáros, por exemplo, desafiava continuamente a esquerda a não ceder ao que  
Lukács em A Destruição da Razão chama de "apologética indireta", e ele diagnosticou  
essa tendência à medida que o neoliberalismo se tornava cada vez mais sedimentado  
na vida política. Mészáros elogiou A Destruição da Razão?  
John Bellamy Foster (JBF): Não trabalhei com Mészáros no sentido formal, pois  
nunca fui seu aluno e nunca escrevemos juntos, embora tenha escrito prefácios para  
alguns de seus livros a pedido dele. Éramos amigos muito próximos. Fui para a pós-  
graduação na Universidade de York, em Toronto, em parte com a ideia de trabalhar  
com ele, mas, naquela época, ele havia voltado para a Universidade de Sussex. Eu o  
conheci nos Estados Unidos na Conferência de Estudiosos Socialistas na década de  
1980. Tivemos muitas interações por meio da Monthly Review ao longo dos anos. Eu  
o visitava sempre que estava na Inglaterra, a cada dois anos, entre 2000 e sua morte  
* Tradução publicada pela primeira vez no Blog: “Resultado Geral” [Resultado Geral | Substack], o texto  
é uma tradução livre do original publicada em “Historical Materialism”, link de acesso: <John Bellamy  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2 jul-dez, 2023  
nova fase  
 
Das velhas às novas formas de irracionalismo  
em 2017 e muitas vezes nos correspondíamos. Também estivemos juntos na  
Venezuela para uma breve visita ao governo quando Chávez era presidente. Assumi  
grande parte da responsabilidade, junto com outros da Monthly Review, pela edição e  
publicação de seus livros e artigos. Ele (e seu filho, Giorgio, professor da Universidade  
de Warwick) me confiaram a edição dos manuscritos de seu livro final e  
inacabado, Além do Leviatã: Crítica do Estado. A primeira parte desse livro foi  
publicada com seu título original pela Monthly Review Press em 2022. Ainda estou  
trabalhando na edição das partes posteriores, que serão publicadas sob o título Crítica  
do Leviatã: Reflexões sobre o Estado.  
Mészáros foi assistente acadêmico de Lukács e foi escolhido como editor  
de Ezmélet (Consciência), que foi cofundado por Lukács, o compositor Zoltán Kodály  
e as outras figuras do círculo Petőfi, que desempenhou um papel fundamental na  
Revolução Húngara de 1956. Lukács designou Mészáros como seu sucessor no  
Instituto de Estética e pediu-lhe que ministrasse as palestras inaugurais sobre estética  
como professor associado de filosofia. No entanto, Mészáros foi forçado a fugir da  
Hungria com sua família após a invasão soviética. No entanto, eles permaneceriam  
amigos por toda a vida. Mészáros escreveria extensivamente sobre Lukács no Conceito  
de Dialética de Lukács, Além do Capital e outras obras.  
Mészáros sempre insistiu na importância crítica de A Destruição da Razão, e  
falamos sobre isso em vários momentos, geralmente no contexto de desenvolvimentos  
concretos. As três obras de Lukács que Mészáros disse que sempre resistiriam "ao  
teste do tempo" foram História e Consciência de Classe, A Destruição da Razão e O  
Jovem Hegel.1 Em O Poder da Ideologia, Mészáros criticou duramente Adorno por  
atacar Lukács, incluindo A Destruição da Razão, na resenha de Adorno de 1958 de O  
Significado da Razão Contemporânea. Adorno, como Mészáros apontou, publicou sua  
polêmica contra Lukács no jornal Der Monat, fundado pelo Exército dos EUA e  
financiado pela CIA (após o qual foi rapidamente republicado em outras publicações  
financiadas pela CIA nos Estados Unidos e em outros lugares), em um momento em  
que o próprio Lukács ainda estava em prisão domiciliar por seu papel na Revolução  
Húngara.  
1
See István Mészáros, ‘Barbarism on the Horizon: An Interview with István Mészáros’, MR Online, 31  
December 2013, available from: https://mronline.org/2013/12/31/meszaros311213-html/ (last  
accessed 19 September 2024).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024| 559  
nova fase  
 
Entrevista com John Bellamy Foster, por Daniel Tutt  
DT: Uma das afirmações mais importantes em A Destruição da Razão é a  
periodização histórica que Lukács oferece sobre o estágio imperial do capitalismo  
monopolista e sua relação com o irracionalismo. Lukács mostra como, embora o  
irracionalismo tenha surgido do pensamento neokantiano e do recuo dos intelectuais  
após a revolução de 1848, ele experimentou seu apogeu na última parte do século  
XIX até a Segunda Guerra Mundial. Seu argumento é que durante o imperialismo tardio,  
exemplificado desde 2008 pelo capital financeiro monopolista globalizado, surgiram  
epistemologias irracionalistas que retratam a ordem social capitalista como natural e  
intranscendível. Você pode falar um pouco mais sobre essa relação entre o  
imperialismo e a ascensão do irracionalismo na vida intelectual? O que há nas  
condições sociais imperialistas que tornam as epistemologias irracionalistas mais  
atraentes?  
JBF: Ao aplicar uma crítica materialista histórica ao processo de destruição da  
razão, Lukács periodizou o crescimento do irracionalismo em termos do estágio  
imperialista ou monopolista do capitalismo. Lenin disse que "o imperialismo, em sua  
definição mais breve possível, é o estágio monopolista do capitalismo", e foi nesse  
sentido que Lukács estava, é claro, se referindo a ele em seu estudo.  
O pensamento de Lukács sobre o imperialismo é talvez mais explícito em seu  
pequeno livro Lenin: Um Estudo da Unidade de Seu Pensamento. Aqui, Lukács indicou  
que Lenin, de uma forma distinta de qualquer outro pensador da época, imaginou o  
imperialismo, em última análise, em termos do que isso significava para a  
transformação da política de classe dentro dos próprios estados imperialistas. O  
imperialismo no final do século XIX e início do século XX, conforme explicado na análise  
de Lenin em Imperialismo, o Estágio Superior do Capitalismo, foi associado ao  
crescimento dos grandes monopólios capitalistas de produção e finanças, e à luta das  
grandes potências para estender a colonização e o controle imperial a todo o mundo,  
cada um às custas dos outros. Foi o conflito sobre a divisão imperial do mundo que  
levou à Primeira Guerra Mundial, da qual emergiu a Revolução Russa, e depois - após  
um breve intervalo, que incluiu a Grande Depressão - a Segunda Guerra Mundial. Na  
Primeira Guerra Mundial, o movimento socialista internacional foi dividido, já que a  
maioria dos partidos socialistas se juntou aos esforços de guerra de seus respectivos  
estados. A partir desse ponto, as questões de classe e imperialismo estavam  
irremediavelmente entrelaçadas, com a luta de classes nos estados capitalistas  
avançados entendida como restringida pela acomodação de partes da classe  
Verinotio  
560 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024  
nova fase  
Das velhas às novas formas de irracionalismo  
trabalhadora e da esquerda com o sistema imperialista. O capitalismo monopolista,  
que era inseparável do imperialismo, significou uma nova ordem de poder econômico  
concentrado, que gerou tendências ao corporativismo e ao fascismo, minando o  
movimento da classe trabalhadora, com a classe dominante contando em momentos  
críticos com a mobilização da volátil classe média baixa como retaguarda do sistema.  
O imperialismo, ou capitalismo monopolista, foi complementado, segundo  
Lukács, pelo crescimento do irracionalismo na filosofia, que legitimou no campo do  
pensamento a crescente irracionalidade na sociedade como um todo e representou  
uma tentativa de enfraquecer a crítica socialista por meio de apologética indireta em  
vez de direta. A tradição irracionalista freqüentemente atacou a ordem burguesa, mas  
ao fazê-lo apresentou os males do capitalismo em termos de instintos primordiais,  
intuições, mitos, magia, forças vitalistas, niilismo, vontade de poder, o "eterno retorno"  
de Friedrich Nietzsche e um profundo pessimismo social.  
Lukács completou seu livro em 1952 e foi publicado em 1953. Durante esse  
tempo, a Guerra da Coréia estava ocorrendo, a França estava envolvida em uma guerra  
para recuperar sua colônia na Indochina e os EUA tinham acabado de detonar o  
primeiro dispositivo termonuclear nas Ilhas Marshall. Embora esses eventos sejam  
frequentemente apresentados exclusivamente em termos da Guerra Fria, para Lukács  
e para a maioria dos pensadores marxistas, eles eram manifestações do  
imperialismo. Nessas condições, uma ideologia irracionalista contínua, propícia ao  
capitalismo monopolista, era de se esperar.  
DT: Eu entendo que, quando A Destruição da Razão foi publicado no início dos  
anos 1950, alguns marxistas como Isaac Deutscher alegaram que o trabalho defendia  
uma mudança no foco da luta ideológica marxista em direção ao irracionalismo versus  
racionalismo como o principal modo de análise ideológica. O que você acha dessa  
mudança na luta ideológica para tornar o irracionalismo o objeto principal da luta  
marxista? Deutscher disse que isso trouxe consigo uma possível desvantagem, pois  
tornou a crítica da estética possivelmente confusa. Por exemplo, como você  
provavelmente sabe, Lukács criticou o expressionismo abstrato na arte como  
irracionalista. Mas ele também, contra o que Adorno argumentou, não criticou a  
psicanálise como irracionalista em A destruição da razão. Então, como separamos o  
joio do trigo, por assim dizer, se estamos comprometidos em centrar o irracionalismo  
versus o racionalismo na crítica intelectual? A questão parece ser a de como dissecar  
e isolar cuidadosamente as tendências irracionalistas verdadeiramente perniciosas no  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024| 561  
nova fase  
Entrevista com John Bellamy Foster, por Daniel Tutt  
pensamento, que, como você sabe, são bastante onipresentes.  
JBF: A crítica de Deutscher a Lukács foi interessante, mas um pouco distante de  
qualquer contexto histórico significativo. Em seu 'Georg Lukács e o "Realismo Crítico"',  
originalmente transmitido pela BBC em 1968, Deutscher estava revisando os Ensaios  
sobre Thomas Mann2 de Lukács. A maioria das peças foi escrita nas décadas de 1930  
e 40, durante a ascensão do nazismo na Alemanha e a Segunda Guerra Mundial,  
embora parte do que foi incluído no volume remontasse a 1909. Para Lukács, Mann  
representava a razão burguesa mais elevada e esclarecida. Embora reconhecesse suas  
limitações históricas, Lukács via a posição simbolizada por Mann, que se opunha  
fortemente a Hitler, como um complemento ao socialismo na luta da Frente Popular  
contra o irracionalismo e o nazismo. Foi essa abordagem da Frente Popular que  
Deutscher, vindo de uma tradição marxista diferente da de Lukács, criticou, pois tornou  
a batalha contra o irracionalismo crucial, presumivelmente às custas do projeto  
revolucionário. No entanto, no contexto das décadas de 1930 e 1940, quando a luta  
contra o fascismo estava na vanguarda, a tentativa de Lukács de encontrar um terreno  
comum entre a razão burguesa clássica e a razão socialista pode ser vista como  
inteiramente defensável.  
Em 1968, quando Deutscher estava escrevendo, as coisas, é claro, pareciam  
diferentes. Não há dúvida de que Deutscher estava certo de que a crítica de Lukács ao  
irracionalismo ele mencionou especificamente A Destruição da Razão representava  
uma tentativa de se juntar à burguesia mais esclarecida e racional contra tendências  
fascistas declaradas. Deutscher criticou isso. No entanto, há momentos, acredito, em  
que tais alianças são essenciais de uma perspectiva revolucionária. Hoje, por exemplo,  
uma luta abolicionista ao estilo da Frente Popular contra o “capital fóssil”, se isso  
pudesse ser realizado, poderia ser uma estratégia racional de curto prazo para salvar  
a humanidade da catástrofe planetária em um futuro próximo. Marx e Engels não  
hesitaram em recorrer à razão dialética de G.W.F. Hegel, apesar de seu caráter idealista  
burguês. Eles se aliaram aos setores mais progressistas da burguesia em certas  
conjunturas críticas, na tentativa de transcender os piores irracionalismos do  
capitalismo de sua época. Basta pensar na carta de Marx, como Secretário Geral da  
2 See Isaac Deutscher, ‘Georg Lukács and “Critical Realism”’, Marxism in Our Time, ed. Tamara Detuscher  
(Berkeley, CA: The Ramparts Press, 1971), pp. 28393.  
https://www.marxists.org/archive/deutscher/1965/lukacs-critical.htm  
Verinotio  
562 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024  
nova fase  
 
Das velhas às novas formas de irracionalismo  
Primeira Internacional, a Abraham Lincoln, parabenizando-o por sua reeleição porque  
significava "Morte à Escravidão"3.  
Se estamos adotando uma abordagem histórico-materialista, há, é claro, uma  
certa maneira geral de olhar para as questões de materialismo, dialética, história, razão  
e crítica que surge dessa tradição, enraizada em uma orientação revolucionária para a  
luta da classe trabalhadora e o movimento em direção ao socialismo. "O confronto da  
realidade com a razão", como Paul Baran o chamou em "Sobre a Natureza do  
Marxismo", é uma parte essencial da filosofia da práxis4. Lukács via o irracionalismo  
filosófico como tendo se desenvolvido como uma forma de defender intelectualmente  
a sociedade burguesa por meio do cultivo da irracionalidade, fornecendo uma  
apologética indireta para o sistema e, ao mesmo tempo, um andaime intelectual para  
a reação extrema, o niilismo e a destruição. O fato de que os mesmos sistemas  
filosóficos irracionalistas que Lukács estava criticando continuem a ter peso em nosso  
tempo deve ser uma preocupação central para uma esquerda que aparentemente é  
incapaz de confrontar a realidade com a razão ou de conectar a razão com um projeto  
de classe emancipatório. Não há dúvida de que Lukács em A Destruição da Razão não  
se concentrou no irracionalismo em geral, mas sim naquelas formas de irracionalismo  
que eram consideradas o auge da cultura europeia, que não apenas defendia os  
horrores permanentes do capitalismo, mas, de muitas maneiras, encorajava uma visão  
exterminacionista, explícita na obra da era nazista de Martin Heidegger, se não  
também em Friedrich Nietzsche.  
DT: O que explica a frustração com o argumento que Lukács está fazendo contra  
o irracionalismo na esquerda de hoje? Por exemplo, muitas pessoas na esquerda hoje  
defendem apaixonadamente o pensamento irracionalista, especialmente na esteira da  
enorme popularidade na academia moderna do pós-estruturalismo, do pensamento  
heideggeriano de esquerda, de Gilles Deleuze e Félix Guattari e de várias formas de  
nietzscheanismo. Algumas pessoas pensam que o pensamento irracionalista fez algum  
bem para a esquerda. Se o pós-modernismo está sendo chamado de irracionalista,  
muitas pessoas parecem discordar dessa acusação porque veem como a direita  
3 Karl Marx, Letter to Abraham Lincoln, 23 December 1864, in Marx and Engels Collected Works. Marx  
and Engels: 18641868, vol. 20 (London: Lawrence & Wishart, 1985), pp. 1921, here p. 19. [Cf.  
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; A Guerra Civil dos Estados Unidos; trad. Luiz Felipe Osório e Murilo Van  
der Laan; São Paulo: Boitempo 2022; p. 353].  
4
Paul Baran, ‘On the Nature of Marxism’, The Longer View: Essays Toward a Critique of Political  
Economy, New York: Monthly Review Press, 1971, pp.1942.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024| 563  
nova fase  
   
Entrevista com John Bellamy Foster, por Daniel Tutt  
transformou o pós-modernismo em uma espécie de apito de cachorro que é usado  
para rebaixar a teoria queer e outras lutas minoritárias. Como podemos defender o  
uso do irracionalismo por Lukács com maior nuance e cuidado com essas dinâmicas?  
JBF: Ao responder a essa pergunta, é útil olhar para o epílogo (às vezes chamado  
de pós-escrito) de Destruição da Razão de Lukács, que tanto indignou alguns  
intelectuais marxistas ocidentais, para ver o que está em questão aqui. Em sua  
conclusão da coletânea sobre Estética e Política lançada em 1977 contendo escritos  
de Adorno, Walter Benjamin, Ernst Bloch, Bertolt Brecht e Lukács Fredric Jameson  
não poderia ser mais claro em sua denúncia, refletindo a posição geral do marxismo  
ocidental na época. Nem mesmo "o apologista mais endurecido de Lukács", escreveu  
Jameson, "vai querer negar" que, dos muitos textos de Lukács que serviram para  
desacreditar o marxismo, o "ultrajante pós-escrito de Die Zerstörung der Vernunft é o  
menos digno de reabilitação"5.  
Por que Jameson e tantos outros consideraram o epílogo de A Destruição da  
Razão além da reabilitação? Escrevendo durante a Guerra da Coréia, Lukács condenou  
o império dos EUA como incorporando a continuidade do capitalismo monopolista  
após a Segunda Guerra Mundial, de maneiras que representavam uma ruptura menos  
do que completa com o sistema irracionalista (a Alemanha de Adolf Hitler também era  
um produto do capitalismo monopolista). Em seu epílogo, Lukács atacou  
especificamente James Burnham (um importante intelectual da Guerra Fria dos EUA  
que buscou legitimar o capitalismo monopolista como uma nova forma de capitalismo  
gerencial), Walter Lippmann (um dos principais fundadores do neoliberalismo) e Karl  
Jaspers (um crítico virulento de Marx e Freud), juntamente com a reabilitação então em  
andamento de Heidegger e Carl Schmitt (ambos os principais pensadores  
irracionalistas que estavam entre os principais apoiadores intelectuais de Hitler). A  
premissa subjacente por trás dessa forma emergente de irracionalismo, afirmou  
Lukács, era "a impossibilidade de saída" do sistema (veja sua discussão sobre  
Jaspers). Todos os horrores da nova hegemonia capitalista sob os EUA foram, portanto,  
justificados nesse novo irracionalismo pela noção de fim da história. O irracionalismo  
não havia sido totalmente derrotado, argumentou Lukács, mas estava sendo  
ressuscitado por esses motivos, nos quais a porta para o futuro agora estava  
5 Fredric Jameson, ‘Reflections in Conclusion’, in Fredric Jameson (ed.), Aesthetics and Politics, London:  
Verso, 2007, pp. 196213, here p. 201.  
Verinotio  
564 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024  
nova fase  
 
Das velhas às novas formas de irracionalismo  
fechada. Hoje, nem mesmo o mais "endurecido" oponente de Lukács na esquerda  
poderia negar que ele estava amplamente correto. Sua caracterização dos EUA em seu  
epílogo não era diferente da de W.E.B. Du Bois ao mesmo tempo, que condenou em  
termos inequívocos o imperialismo, o racismo, a dominação de classe e o  
irracionalismo do capitalismo.  
A frustração expressa por setores da esquerda de hoje, quando confrontados  
com a noção de que a crítica de Lukács à destruição da razão é diretamente aplicável  
à filosofia de esquerda contemporânea, é quase idêntica à reação de Jameson na  
década de 1970 ao epílogo de Lukács, e essencialmente com as mesmas  
causas. Jameson estava claramente reagindo à nitidez das críticas de Lukács a  
Heidegger, Schmitt, Jaspers e Lippmann e à dureza de sua descrição do império dos  
EUA. E, dado que Jameson ficou horrorizado com as acusações de Lukács colocadas  
aos pés de Heidegger, isso claramente tocou um acorde (foi um acerto?) mesmo  
então. Hoje, a substância da crítica de Lukács a Heidegger parece quase branda em  
comparação com o que a esquerda ocidental foi forçada a admitir diante das  
evidências. De fato, toda a crítica de Lukács em A Destruição da Razão, incluindo o  
epílogo, resistiu, como disse Mészáros, "ao teste do tempo", ganhando força apenas  
nos setenta anos desde que foi escrita.  
A verdade é que, em vez de desafiar diretamente o capitalismo a partir da  
perspectiva marxista de acordo com a razão e os interesses materiais da classe  
trabalhadora, os acadêmicos ocidentais que ainda professam ser de esquerda  
abandonaram completamente o marxismo, buscando criticar a modernidade e o  
humanismo baseando-se na tradição irracionalista que emana da direita. No processo,  
os vários pensadores "pós-" caíram em uma armadilha, em parte preparada para eles  
e em parte por sua própria criação. Basta pensar em como a esquerda ocidental ficou  
horrorizada quando os escritos nazistas de Heidegger, que ele sempre se recusou a  
repudiar, saíram um após o outro a seu próprio pedido em suas Obras Completas, até  
mesmo emendados em alguns lugares para reinserir suas visões exterminacionistas  
completas, que tinham, em alguns lugares, sido excluídas pelos editores, mostrando o  
quão profundamente isso estava organicamente ligado a toda a sua filosofia. É uma  
marca da força do compromisso com o irracionalismo filosófico na academia hoje que  
o pensamento heideggeriano ainda não tenha sido abandonado neste momento,  
mesmo com a publicação de seus Cadernos Negros. Em vez disso, novos esforços  
estão sendo feitos para reabilitá-lo mais uma vez, dadas as repercussões que a rejeição  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024| 565  
nova fase  
Entrevista com John Bellamy Foster, por Daniel Tutt  
de seu pensamento teria para gerações de pensadores supostamente de esquerda  
(que essencialmente tomaram suas obras, de preferência a toda a tradição hegeliano-  
marxista) como sua base fundamental.  
Não levo a sério a noção de que a esquerda ocidental, ao enfrentar o  
irracionalismo que penetrou em seu pensamento, correria o risco de ser vítima dos  
apitos da direita no que diz respeito a questões de pessoas trans, raça ou  
gênero. Escolher Hegel e Marx em vez de Nietzsche e Heidegger dificilmente pode  
fazer o jogo da direita. Embora o histórico não seja, é claro, imaculado, a luta contra  
o racismo, a misoginia, a homofobia, a transfobia e todas as outras formas de  
discriminação sempre foi mais forte na esquerda marxista, integrada à luta de classes  
e à luta anti-imperialista. Quando Lukács atacou o império dos EUA no epílogo de A  
Destruição da Razão, ele não ignorou, como tantos na época na esquerda europeia, a  
raça. Em vez disso, ele destacou o sistema de "linchamento", no qual a estrutura de  
poder dos EUA se baseava.  
A direita, é claro, não tem nenhum problema real com uma esquerda que se  
devora em apologética indireta do sistema capitalista e fomenta o irracionalismo  
filosófico, complementando de muitas maneiras a própria direita irracionalista. Uma  
tradição de esquerda que se baseia em figuras racistas e misóginas, bem como  
antioperárias e antissocialistas, como Arthur Schopenhauer, Nietzsche, Oswald  
Spengler, Heidegger e Schmitt, e vê sua lógica interna como anti-humanismo, enquanto  
minimiza o imperialismo, naturalmente faz o jogo reacionário, perdendo contato com  
lutas genuinamente radicais e revolucionárias em todo o mundo.  
DT: Eu me pergunto o que o estudo de Lukács nos diz sobre a responsabilidade  
do intelectual. Se, como Lukács parece argumentar, as ideias nunca são inocentes,  
como devemos entender essa realidade? O que A destruição da razão nos diz sobre a  
vocação do intelectual marxista? Existe uma reivindicação ética implícita sendo feita  
por Lukács neste trabalho?  
JBF: Lukács começou a trabalhar em A Destruição da Razão em 1948, na época  
em que escreveu "Sobre a Responsabilidade dos Intelectuais", que foi um precursor de  
seu argumento. Aqui ele levantou a questão da tendência, já visível na esquerda  
francesa, "de trazer o niilismo franco do Heidegger pré-fascista de acordo com os  
problemas de hoje", transformando assim o "cinismo em farsa". Lukács insistiu que a  
intelligentsia ocidental estava em um ponto de inflexão. Ou os intelectuais escolheram  
Verinotio  
566 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024  
nova fase  
Das velhas às novas formas de irracionalismo  
ser "vítimas indefesas, ajudantes sem vontade de uma reação bárbara", ou escolheriam  
ser "desbravadores e campeões de uma virada progressiva na história mundial"6.  
Todo o livro A Destruição da Razão era, portanto, sobre a responsabilidade do  
intelectual de aderir à razão crítica em vez do irracionalismo e carregava consigo um  
forte imperativo ético. Lukács levanta essa questão de forma um tanto oblíqua na  
conclusão, onde afirmou: "De forma alguma é preciso ser socialista para sentir a  
urgência do problema [o crescimento do irracionalismo] e tomar uma posição vigorosa  
na busca de uma solução. Já nos anos vinte, Thomas Mann escreveu: "Eu disse que as  
coisas só iriam bem com a Alemanha e que ela só se recuperaria quando Marx lesse  
Friedrich Hölderin um encontro que, a propósito, está começando a acontecer"7. Para  
Lukács, o ponto real aqui não era tanto o forjamento de uma relação de Marx com  
Hölderin (simbólica dos pólos da cultura alemã), mas sim a relação de Marx com Mann,  
uma vez que, nos próprios termos de Lukács, Marx representava o zênite da razão  
socialista e Mann o da razão burguesa consciente ambos em oposição ao  
irracionalismo.  
Escrevi um artigo sobre a ética de Lukács para Ezmélet em novembro de 2021,  
cuja versão em inglês apareceu na Monthly Review em fevereiro de 20228. O problema  
ético ocupou Lukács desde o início da Revolução de Outubro na Rússia, o que o levou  
a declarar sua justificativa ética fundamental (contrariando suas visões anteriores) para  
ingressar na Revolução Bolchevique em sua 'Tática e Ética' (1919). "A consciência e o  
senso de responsabilidade do indivíduo", escreveu ele, "são confrontados com o  
postulado de que se deve agir como se de sua ação ou inação dependesse a mudança  
do destino do mundo"9. Aqui, ele estava enfatizando a relação entre 'eu e  
individualidade', isto é, se a razão e a ética de alguém eram guiadas pelo eu individual  
ou pelo interesse geral (individualidade) da humanidade. "A ética", escreveu ele em  
6 Georg Lukács, ‘On the Responsibility of the Intellectuals’, Telos 3 (spring 1969), pp. 123–31, here pp.  
126 and 131, respectively.  
7
Georg Lukács, The Destruction of Reason, trans. Peter Palmer (London: Verso, 2021) [Cf. LUKÁCS,  
György; A Destruição da Razão; trad. Bernard Hermann, Rainer Patriota, Ronaldo Vielmi Fortes; São  
Paulo; Instituto Lukács, 2020].  
8
John Bellamy Foster, ‘Lukács and the Tragedy of Revolution: Reflections on “Tactics and Ethics”’,  
Monthly Review, vol. 73, no. 9 (February 2022), available from:  
https://monthlyreview.org/2022/02/01/lukacs-and-the-tragedy-of-revolution/ (last accessed 19  
September 2024).  
9
Georg Lukács, ‘Tactics and Ethics’, in Tactics and Ethics, 1919–1929: The Questions of  
Parliamentarianism and Other Essays (London: Verso, 2014), pp. 311, here p.8, with minor  
amendments. [Cf. Revista Libertas, v. 21, nr. 1; “Sobre a questão do parlamentarismo”; trad. Alexandre  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024| 567  
nova fase  
       
Entrevista com John Bellamy Foster, por Daniel Tutt  
sua Estética, "é o campo crucial da luta fundamental e decisiva entre este  
mundanismo e o outro mundo, da verdadeira transformação substituta / preservadora  
da particularidade humana"10. A própria razão dialética apontava para a necessidade  
de uma ética superior incorporada no desenvolvimento social de cada ser humano  
individual.  
Uma responsabilidade primária do intelectual diante do irracionalismo e do  
extermínio de nosso tempo é se opor ativamente à destruição da razão que atualmente  
separa o pensamento crítico-dialético da práxis revolucionária inclusiva e de classe que  
constitui o futuro da história. No passado, os teóricos marxistas muitas vezes acusaram  
as tendências conformistas da esquerda de recuar da classe ou abandonar o projeto  
emancipatório. Hoje, quando a própria sobrevivência da humanidade está em jogo, é  
essencial reconhecer que uma parte crucial e estratégica dessa luta geral é a defesa  
do próprio processo de "confronto da realidade com a razão", que a penetração do  
irracionalismo na esquerda colocou em questão. Isso requer o que Jean-Paul Sartre  
chamou de compromisso com "revoluções impossíveis"11.  
DT: Em seu artigo 'O Novo Irracionalismo', você discute como as filosofias  
neomaterialistas de imanência no pensamento ecológico, como Timothy Morton, Jane  
Bennett e Bruno Latour, são profundamente informadas por correntes irracionalistas  
de pensamento, do vitalismo ao anti-humanismo heideggeriano de esquerda. Qual é o  
seu conselho para os estudantes de marxismo e ecologia para abordar essas limitações  
da perspectiva de uma orientação racionalista?  
JBF: Provavelmente a maior parte do meu trabalho nas últimas duas décadas foi  
dedicada à ecologia marxista. O campo ecológico tem sido, em geral, realista e  
materialista em orientação, fortemente influenciado pela ciência natural e firmemente  
oposto ao capitalismo histórico. A ecologia marxista e o ecossocialismo têm  
desempenhado um papel importante e crescente na compreensão da crise ambiental  
planetária e suas raízes no sistema de acumulação de capital, influenciando não apenas  
a teoria e a ciência, mas também os movimentos locais em todo o mundo.  
10 Georg Lukács quoted in István Mészáros, Beyond Capital (New York: Monthly Review Press, 1995), p.  
400 [Lukács apud MÉSZÁROS, István; Para Além do Capital; tradução Paulo Cezar Castanheira, Sérgio  
Lessa. São Paulo, Boitempo Editorial, 2011; p. 487].  
11  
See Mészáros, The Work of Sartre: Search for Freedom and the Challenge of History (New York:  
Monthly Review) 2012. [Cf. MÉSZÁROS, István; A obra de Sartre: a busca da liberdade; trad. Lólio  
Lourenço de OliveiraSão Paulo: Ensaio, 1991].  
Verinotio  
568 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024  
nova fase  
   
Das velhas às novas formas de irracionalismo  
Fiquei surpreso, então, com o surgimento na última década de um crescente  
irracionalismo dentro da discussão ecológica que emana principalmente da esquerda,  
principalmente dentro das correntes pós-humanistas, incluindo o novo materialismo  
vitalista, o hibridismo de estilo laturiano, a análise ator-rede, a ontologia orientada a  
objetos e similares. Tais análises são deliberadamente ignorantes da ecologia como  
uma disciplina, removida da ciência, não versada na ecologia marxista e desconectada  
do movimento ambientalista. Eles adotaram uma postura ética pura, como se esse  
fosse todo o problema, e procuraram promover um novo animismo sob o nome de um  
chamado novo materialismo. Nessa visão, o mundo não pode ser entendido em termos  
materialistas, abrangendo o surgimento de novas formas organizacionais e níveis  
integrativos. Em vez disso, é necessário importar elementos vitalísticos, processos  
sobrenaturais ou paranormais e ontologia plana orientada a objetos. Essa análise é  
explicitamente anti-humanista, antinaturalista, anticientífica, antidialética. Os próprios  
conceitos de natureza e humanidade são abandonados enquanto um pensador palhaço  
como Slavoj Žižek, em apoio a essas tendências irracionalistas, pronuncia que "a  
ecologia é um novo ópio para as massas"12.  
Muito desse irracionalismo neomaterialista se baseia e distorce pensadores  
materialistas ou orientados para o materialismo, como Epicuro e Spinoza. O marxismo  
é um alvo frequente. Em algumas análises orientadas para o pós-humanismo, a crítica  
de Marx ao valor da mercadoria é inteiramente desconstruída, de modo que o valor da  
mercadoria ou a forma do valor é atribuída a todo "trabalho", realizado pela energia  
no universo no sentido da física, tornando impossível qualquer crítica significativa do  
capitalismo como um sistema político-econômico. Foi a descentralização filosófica da  
crítica da economia política que Lukács destacou em seu "Sobre a Responsabilidade  
dos Intelectuais" como a tendência mais perniciosa do irracionalismo do período pós-  
guerra. A própria dialética é reduzida ao dualismo ou ao monismo, excluindo a  
mediação, a totalidade e a emergência.  
Mais recentemente, figuras como Latour, Bennett e Morton assumiram Marx  
diretamente na forma da rejeição de sua crítica ao fetichismo da mercadoria e ao  
fetichismo como um todo. Eles argumentam que a perspectiva de Marx, ao basear seu  
argumento na crítica da mistificação das relações sociais humanas, vendo-as  
12 See Slavoj Žižek, ‘Censorship Today: Violence, or Ecology as a New Opium for the Masses’, available  
from: https://www.lacan.com/zizecology1.htm (last accessed 19 September 2024).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024| 569  
nova fase  
 
Entrevista com John Bellamy Foster, por Daniel Tutt  
simplesmente como relações entre coisas/mercadorias e, portanto, reificadas,  
discrimina todas as pessoas não humanas. Tais pessoas não humanas, dizem-nos,  
podem incluir tudo, desde os dinossauros de plástico de Adorno até um chocolate, um  
pedaço de carvão, um micróbio - todos os quais são vistos no mesmo plano ontológico  
plano, junto com seres humanos e todas as outras espécies vivas. Em uma espécie de  
irracionalismo empirista que exclui a abstração, tudo se converte em uma vasta teia de  
imbróglios, feixes e híbridos. A crítica do fetichismo da mercadoria é transformada por  
Morton em uma celebração das coisas sobre a humanidade, a ponto de toda a questão  
da agência humana se perder.  
Em seu livro Humankind, Morton acusou Marx, quando descreveu o processo da  
máquina em seu tratamento do capital constante em O Capital, de um ponto de vista  
antiecológico e antropocêntrico na medida em que não conseguiu ver o carvão, o óleo  
e a graxa usados no processo como "pessoas não humanas". Morton e Bennett nos  
dizem que pedras e outros objetos inanimados pensam, exercem vontade e exibem  
agência, replicando assim as alegações irracionalistas de Schopenhauer, enquanto  
atribuem falsamente tais pontos de vista a Spinoza também. Com base nisso, que nada  
tem a ver com os verdadeiros desafios ecológicos que a humanidade enfrenta e a  
necessidade de uma transformação social revolucionária, Marx e toda a tradição  
marxista são acusados de serem antiecológicos ao não reconhecerem totalmente os  
espectros terrenos, os objetos fantasmagóricos, o paranormal e o real  
simbiótico. Como a análise de Marx não se concentra em tudo, desde a terra abaixo  
até as estrelas acima, bem como em todas as mercadorias manufaturadas feitas pelo  
homem, como constituindo um universo de pessoas não humanas, ele é propenso ao  
antropocentrismo. Assim, Morton nos diz que ou "o antropocentrismo de Marx é  
uma característica profunda de seu pensamento", ou então é "um bug" em seu  
pensamento (a posição que o próprio Morton prefere). (Da mesma forma, "o nazismo  
de Heidegger é um bug, não uma característica".)13 A noção de Marx de "metabolismo  
social", que, para ele, fazia parte do "metabolismo universal da natureza", é tão  
distorcida por Morton que é transformada em um mero "metabolismo econômico  
humano" e é então submetida a críticas como antropocêntrica nessa falsa base.  
Foi meu encontro com o irracionalismo entrando no reino ecológico da suposta  
esquerda, desafiando todas as formas de práxis ecológica revolucionária, junto com a  
13 Timothy Morton, Humankind: Solidarity with Nonhuman People (London: Verso, 2017), p. 30, 91.  
Verinotio  
570 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024  
nova fase  
 
Das velhas às novas formas de irracionalismo  
Ciência do Sistema Terrestre, o marxismo e o realismo crítico dialético, que primeiro  
me preocupou com a maneira como o irracionalismo estava desorganizando a  
esquerda, removendo-a do reino da ação necessária e constituindo uma apologética  
indireta para o sistema capitalista. Isso me levou de volta a A Destruição da Razão, de  
Lukács.  
DT: Você termina seu artigo "O Novo Irracionalismo" invocando Baran, que uma  
vez disse que temos que empregar a razão para estabelecer uma "identidade dos  
interesses e necessidades materiais de uma classe [ou forças sociais baseadas em  
classes] com ... A crítica da razão à irracionalidade existente'14. Você continua  
sugerindo que a localização geográfica mais provável para que isso ocorra reside no  
Sul Global. Embora eu ache que esse é um argumento convincente, eu me pergunto  
quais são seus pensamentos sobre as perspectivas da luta de classes nos EUA. Quais  
podem ser algumas lições práticas que Lukács pode oferecer aos EUA e até mesmo à  
esquerda europeia em sua luta para enfrentar a nova era do imperialismo e do  
capitalismo monopolista que enfrentamos hoje?  
JBF: Baran nasceu em 1910 em Nikolaev, Ucrânia, no Império Russo Czarista. Ele  
foi treinado em economia no Instituto Plekhanov de Economia em Moscou e na  
Universidade de Berlim. Ele entrou nos EUA com um passaporte polonês, estudou  
economia em Harvard, trabalhou na Segunda Guerra Mundial para o Strategic Bombing  
Survey com John Kenneth Galbraith e acabou como professor titular de economia em  
Stanford, eventualmente sendo atacado à moda macarthista por sua defesa de  
Cuba. Ele era uma figura central na Monthly Review. No início dos anos 1930, ele  
trabalhou como assistente de Friedrich Pollock no Instituto de Pesquisa Social de  
Frankfurt. Assim, os temas da Escola de Frankfurt com relação à razão crítica permeiam  
seu pensamento. Ele foi o famoso autor de A Economia Política do  
Crescimento (1957), que foi a obra fundadora da teoria marxista da dependência e do  
imperialismo do pós-guerra. Ele e Paul Sweezy escreveram mais tarde Monopoly  
Capital, que foi publicado em 1966, dois anos após a morte de Baran.  
O ponto de Baran na carta a Sweezy que citei em "The New Irrationalism" foi que  
o que ele chamou de "o ponto crucial" da visão marxista era a combinação da razão  
14 Paul A. Baran to Paul M. Sweezy, 3 February 1957, in Paul A. Baran and Paul M. Sweezy, The Age of  
Monopoly Capital (New York: Monthly Review Press, 2017), p. 154.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024| 571  
nova fase  
 
Entrevista com John Bellamy Foster, por Daniel Tutt  
crítica dialética com os interesses materiais dos movimentos baseados em  
classes. Portanto, um ataque à razão era, em muitos aspectos, tão eficaz na luta  
ideológica do capitalismo contra o marxismo quanto um ataque à realidade da própria  
classe trabalhadora. Para Baran, o irracionalismo intelectual foi ainda mais facilmente  
transformado em uma arma contra a classe trabalhadora e as populações do terceiro  
mundo porque refletia o irracionalismo elementar da própria sociedade capitalista  
monopolista. Não é por acaso que o capítulo final de O Capital Monopolista foi  
intitulado "O Sistema Irracional".  
Baran foi acima de tudo um crítico do imperialismo e do capitalismo  
monopolista. Para Baran e Sweezy, a revolução no final do século XX foi amplamente  
confinada à vasta revolta contra o imperialismo na periferia do sistema capitalista e  
aos movimentos dentro do mundo capitalista avançado, incluindo os dos racialmente  
oprimidos, que adotaram uma forte política anti-imperialista e baseada em classes. A  
realidade era que uma grande parte da classe trabalhadora principalmente branca nos  
estados capitalistas avançados havia se acomodado à ordem imperial dominada pelos  
EUA. Essa dinâmica continua até hoje, e a acomodação à ordem mundial imperialista  
até agora caracterizou a maior parte da chamada esquerda ocidental, impedindo  
qualquer ponto de vista revolucionário. O livro de 2000 de Michael Hardt e Antonio  
Negri, Empire, é considerado um dos estudos de esquerda mais bem-sucedidos das  
últimas duas décadas, mas sua fama teve muito a ver com a forma como foi elogiado  
pelos principais órgãos da grande mídia, como o New York Times, Time  
Magazine e Foreign Affairs (a publicação do Council of Foreign Relations, conhecido  
como 'o cérebro imperial confiável') por declarar que 'o imperialismo acabou'. Isso  
estava enraizado em uma análise que se baseou em pontos críticos na tradição de  
Nietzsche, Heidegger e Schmitt, via esquerda francesa, para defender "o fim do  
funcionamento da dialética"15. Não conseguindo se identificar com as partes do mundo  
onde a revolução estava ocorrendo, acomodando-se com o imperialismo e cessando a  
guerra com o capitalismo monopolista, grande parte da esquerda intelectual voltou-se  
para meras formas discursivas de análise. Aqui, o irracionalismo e o idealismo subjetivo  
tornam-se as modalidades dominantes, e referir-se ao "pós-" não significa ir além da  
mera rejeição nietzschiana.  
15  
Michael Hardt and Antonio Negri, Empire (Cambridge, MA and London: Harvard University Press,  
2000), p. 378 [Cf. NEGRI, Antonio; LAZZARATO, Maurizio; Imperio; Rio de Janeiro: Record, 2001].  
Verinotio  
572 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024  
nova fase  
 
Das velhas às novas formas de irracionalismo  
No entanto, as condições são tais que a luta de classes está mais uma vez se  
intensificando na Europa e na América do Norte atualmente, bem como no Sul  
Global. Enquanto escrevo isso no início de fevereiro de 2023, ondas massivas de  
greves estão ocorrendo na Grã-Bretanha e em outras partes da Europa. Quase um  
milhão de manifestantes franceses, principalmente da classe trabalhadora, estão  
confrontando o governo e a polícia franceses sobre a extensão da austeridade  
capitalista às pensões, aumentando a idade em que elas podem ser recebidas. Nos  
EUA, o movimento sindical está revivendo de uma baixa anterior.  
Dada a crise ecológica planetária, a escalada da guerra, a estagnação e a  
financeirização e a crescente polarização da riqueza e do poder em escala mundial,  
absolutamente nada na estrutura política, econômica e ideológica da sociedade  
atualmente pode ser considerado estável. Estamos em uma nova era em que as várias  
chamadas pós-filosofias provavelmente desaparecerão, à medida que a humanidade  
da classe trabalhadora mais uma vez procura derrubar o mundo alienado e  
irracionalista. Agora, mais do que nunca, em nosso tempo, a responsabilidade da  
esquerda é se engajar em uma luta revolucionária em escala planetária com o objetivo  
de criar um mundo de igualdade substantiva e sustentabilidade ecológica, ou seja, um  
socialismo para o século XXI.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 558-573 - jul-dez, 2024| 573  
nova fase  
TRADUÇÃO  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.739  
T r a d u ç ã o  
_____  
Correspondência inédita entre Karl Marx e Jules  
Guesde, 18791  
Apresentação de Jean-Numa Ducange  
O trabalho de publicação da correspondência integral de Karl Marx e Friedrich  
Engels sempre está em andamento. A Mega ainda não publicou a totalidade dos  
volumes da terceira seção, dedicada à correspondência. O projeto pretende publicar  
não apenas as cartas de Marx e Engels, mas também para Marx e Engels, o que torna  
a empreitada particularmente longa e complexa. Com frequência arquivos pouco  
consultados ou pouco conservados de pessoas privadas permitem completar o  
conjunto já reunido. A recente descoberta de um fundo de arquivos muito ricos de  
Jules Guesde conservado por um descendente seu, o senhor Richard Guesde, e  
consultável na Fundação Jean-Jaurès , tornou possível encontrar uma carta  
totalmente inédita de Karl Marx a Jules Guesde, a qual reproduzimos aqui. Ela não  
consta nem nos volumes da Marx-Engels-Werke, nem na Marx-Engels-Gesamtausgabe.  
Embora breve, essa carta contém alguns comentários significativos que nos  
permitem aferir a importância atribuída por Marx ao desenvolvimento do socialismo  
francês na primavera de 1879, enquanto ele se preparava para o Congresso de  
Marselha, o primeiro congresso operário nacional, que deveria ocorrer alguns meses  
mais tarde (no outono de 1879). Marx não conhecia Guesde pessoalmente, mas  
acompanhava suas atividades com grande interesse. Em sua troca de cartas, Guesde e  
Marx assinalavam suas desconfianças em relação às correntes que preconizavam a  
insurreição em quaisquer circunstâncias, e sublinhavam também a necessidade de um  
1 Une lettre inédite de Karl Marx à Jules Guesde sur la France, l’«Orient» et l’« Occident » (1879). Actuel  
Marx, v. 73, n. 1, pp. 109-14. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-actuel-marx-2023-1-page-  
109.htm>. Traduzido do francês por Gabriella M. S. Souza (graduada e mestranda em direito pela  
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: gabriella.segantini.souza@gmail.com. Revisão  
técnica de Ester Vaisman. As notas da edição original em francês foram mantidas e estão indicadas por  
[N.E.]. As notas da tradutora estão indicadas por [NT].  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
Correspondência inédita entre Karl Marx e Jules Guesde, 1879  
partido operário independente, distinto, pois, das tradições “burguesas”. Essa  
concordância sobre esses dois pontos permite melhor precisar o que queria dizer ser  
“marxista” no momento em que essa denominação apareceu: recusa da insurreição  
permanente à la Blanqui, mas preocupação em se diferenciar do republicanismo  
“burguês”. Nota-se aqui as previsões de Marx para a revolução no “Ocidente” e no  
“Oriente” — o tratamento sobre isso completa outros textos conhecidos , em termos  
muito próximos daqueles que Antonio Gramsci desenvolveria ulteriormente.  
A resposta de Jules Guesde já era conhecida, publicada pela primeira vez em  
1935 e é citada regularmente desde então, como na antologia de Roger Dangerville  
dedicada ao “movimento operário francês”. Reproduzimos a carta a partir da cópia  
conservada nos Arquivos Guesde FJJ. Com efeito, os editores da carta de Guesde  
(sem datação) estimavam que ela datasse do fim do ano de 1878 ou do começo de  
1879. Na realidade, sua data é posterior, eis que a carta de Marx é de maio de 1878.  
Portanto, ela adianta ligeiramente a cronologia conhecida da vida de Marx e de seus  
contatos com os socialistas franceses.  
De qualquer maneira, à hora que a “forma partido” está em debate e às  
vésperas da esperada publicação da tese de Jean Quétier sobre a relação de Marx com  
o partido político (anunciada para sair em 2023 pela editora da Sorbonne) da qual  
já pudemos descobrir alguns elementos na edição precedente da Actuel Marx ,  
pareceu-nos relevante publicar este documento. Marx escreveu esta carta diretamente  
em francês; ele dominava muito bem a língua, mas sem ser perfeitamente bilíngue,  
razão pela qual há algumas expressões que podem parecer incomuns. Reproduzimos  
aqui o original, com o comentário “ilegível” quando algumas palavras foram  
impossíveis de decifrar. Indicamos igualmente em negrito e itálico certas palavras cuja  
autenticidade não é certa.  
__________  
10 de maio, 1879  
41 Maitland Park Road , Londes, NW  
Caro cidadão Guesde,  
Nenhum exilado francês que mantenha relações comigo duvidaria nem da  
simpatia profunda que eu possuo por vossa pessoa nem do grande interesse que eu  
tenho por vossos trabalhos. O socialismo militante conta certamente com muitos  
partidários na França, mas há poucos que unem como vós o conhecimento à coragem  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 574-579 jul.-dez., 2024 | 575  
nova fase  
Karl Marx-Jules Guesde [apresentação Jean-Numa Ducange]  
e à devoção. A eleição de Blanqui2, devido à vossa iniciativa, é uma primeira  
compensação pelos sofrimentos e humilhações às quais aqueles que detém o poder  
vos submeteram.  
Quando do retorno da Assembleia Legislativa a Paris3, pronunciei-me perante  
Lissagaray e Longuet4 no mesmo sentido de vossos artigos. Afinal, eu atribuí mais  
importância aos debates sobre isso do que ao próprio assunto, estando convencido  
de que os senhores gambettistas5 prefeririam viver em Paris do que vegetar em  
Versalhes.  
A grande questão para os socialistas na França é a organização de um partido  
operário independente e militante. Essa organização, que não se deve limitar às  
cidades, mas se estender ao campo, só pode se fazer por meio da propaganda e da  
luta contínua, luta de todos os dias, correspondendo sempre às condições dadas pelo  
momento, às necessidades atuais. Somente os jacobinos póstumos conhecem a ação  
revolucionária apenas de uma única forma, a forma explosiva. Isso é muito natural da  
parte do burguês que nunca ergueu os escudos, senão depois de já ter ocupado  
posições socialmente dominantes.  
Estou convencido de que a revolução em sua forma explosiva partirá dessa vez  
não do Ocidente, mas do Oriente da Rússia. Ela reagirá inicialmente sobre os dois  
6
outros despotismos graves [ilegível] , a Áustria e a Alemanha, onde um  
desenvolvimento violento se tornou uma necessidade histórica. É da mais elevada  
importância que no momento dessa crise geral, a Europa encontre o proletariado  
francês já constituído em um partido operário e pronto a desempenhar seu papel.  
Quanto à Inglaterra, os elementos materiais de sua transformação social lá são  
abundantes, o que falta é o espírito motor. Ele se formará somente sob a explosão dos  
acontecimentos continentais. Nunca devemos nos esquecer de que, por mais miserável  
que seja a sorte da maioria da classe operária inglesa, ela participa até certo ponto do  
império da Inglaterra no mercado mundial ou, o que é ainda pior, imagina-se participar  
2
Auguste Blanqui (1805-1881), que era estimado por Marx, fora eleito para a Câmara em abril de  
1879, mas conseguiu manter seu mandato por apenas alguns meses. [NE]  
3 A Assembleia Legislativa retornava de Versalhes, onde tinha sua sede desde a Comuna de março-maio  
de 1871. [NE]  
4
Prosper-Olivier Lissagaray (1838-1901) e Charles Longuet (1839-1903), duas figuras proeminentes  
da Comuna. [NE]  
5 Marx refere-se aos partidários de Léon Gambetta (1838-1882), que foi uma das principais figuras do  
Governo da Defesa Nacional e da Terceira República. Fonte: Castaing, Jacques Chastenet de. "Léon  
Gambetta".  
Encyclopedia  
Britannica,  
5
Mar.  
2024,  
disponível  
em:  
<https://www.britannica.com/biography/Leon-Gambetta>. [NT]  
6
Mantivemos a indicação de [ilegível] do texto original em francês [NT]  
Verinotio  
576 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 574-579 jul-dez., 2024  
nova fase  
         
Correspondência inédita entre Karl Marx e Jules Guesde, 1879  
dele.  
Algumas palavras sobre Longuet. Vós estaríeis cometendo um erro se o  
considerásseis vosso adversário pessoal. É exatamente o oposto, ainda que convidado  
por alguns janotas da emigração, ele não pode deixar de ser envolvido em gracejos.  
Se as opiniões dele às vezes diferem das vossas quanto à tática a se adotar, eu não  
acredito que no fundo elas divirjam. Por fim, as relações familiares e de amizade não  
poderiam ter qualquer influência sobre minha linha política, da qual nunca me afastei7.  
Com esperança de que vós possais o quanto antes recuperar vossa liberdade e  
vossa saúde,  
Cordialmente,  
Karl Marx  
Resposta de Jules Guesde  
[Sem data]  
Caríssimo cidadão,  
Sou muito grato pela simpatia e estima que vós tendes por mim e peço-vos que  
acrediteis que, mesmo quando me encontro em desacordo convosco no que concerne  
à Internacional8, sempre professei a mais viva admiração pelo autor do manifesto dos  
comunistas e de O capital.  
Ademais, posso dizer hoje que esse desacordo jamais teria ocorrido ao  
menos de minha parte se eu vos tivesse conhecido melhor.  
Porque tudo que vossa carta traz, eu também penso e sempre o pensei.  
Se sou um revolucionário, se acredito, como vós, na necessidade da força para  
resolver, em um sentido coletivista ou comunista, a questão social, sou como vós um  
adversário obstinado dos movimentos à la Blanqui9 que talvez necessários na  
Rússia não correspondem nem na França, nem na Alemanha, nem na Itália à  
nenhuma das urgências da revolução. Talvez vós tenhais podido perceber isso em  
minha campanha no Radical contra os insurgentes da Ópera Comique10.  
Como vós, estou convencido de que antes de pensar na ação, é necessário ter  
7 Desde 1872 Charles Longuet era casado com uma das filhas de Marx, Jenny. [NE]  
8
Jules Guesde, exilado na Suíça depois da Comuna, havia sido num primeiro momento anarquista e  
havia publicado alguns textos virulentos contra Karl Marx. [NE]  
9 Mantivemos em itálico e negrito as indicações do original em francês das palavras cuja autenticidade  
não é certa. [NT]  
10  
Alusão à tentativa de assassinato contra Napoleão III (5 de julho de 1853, o chamado “Complô da  
Ópera Comique”), da qual Jules Vallès participou. [NE]  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 574-579 jul.-dez., 2024 | 577  
nova fase  
       
Karl Marx-Jules Guesde [apresentação Jean-Numa Ducange]  
constituído um partido, um exército consciente com ajuda de uma propaganda tão  
ampla quanto contínua.  
Enfim, como vós eu nego que a simples destruição daquilo que existe será  
suficiente para a edificação daquilo que nós queremos e eu penso que durante mais  
ou menos tempo o movimento deverá ser dirigido de cima para baixo.  
Foi nessas condições que me ocupei desde meu regresso a formar esse “partido  
operário independente e militante” que vós declarais, com justeza, ser da “mais alta  
importância” em vista dos eventos que se preparam.  
Mas para que esse partido seja ao mesmo tempo “independente” e “militante”,  
é imperativo que nosso proletariado tenha sido arrancado do desviacionismo do  
radicalismo burguês e que, por outro lado, tenha sido persuadido que sua  
emancipação só pode vir da luta.  
Cortar o fio que retinha ainda nossos trabalhadores nas águas radicais  
burguesas e demonstrar-lhes o nada das soluções amigáveis ou pacíficas (cooperação,  
bancos etc.), tal foi preciso ser e tal foi nosso plano duplo, hoje em plenas vias de  
sucesso. E o que acusei não somente da parte de Longuet, mas também de Vallès11 e  
de Jourde12, foi de terem atrapalhado nossa causa e de terem, por meio de seus  
13  
artigos, colocado o peso da proscrição do lado oposto do nosso .  
Fiquei surpreso e lamentei muito - com o fato de que, por mais que o exílio  
o tenha deixado desinformado sobre a situação real de Paris e da França, ele tenha,  
em um jornal que partilha posições do liberalismo burguês e do socialismo  
revolucionário, tomado posição contra este último.  
Mesmo o “programa socialista” que ele começou a expor na Revolução constitui  
um erro e um erro enorme, no momento em que nossa França operária começa a ver  
que sua salvação apenas na apropriação coletiva de todo o capital imóvel e móvel que  
ela valoriza. É esse o programa da Internacional? Ora! É, no máximo, o programa dos  
14  
proudhonianos da Federação do Jura . E, felizmente para nós, nossos operários, os  
mais inteligentes entre eles, abandonaram Proudhon e suas ‘piadas’ mutualistas.  
Peço perdão por ter entrado em todos esses detalhes, mas ao mesmo tempo  
11 Jules Vallès (1832-1885). [NT]  
12 François Jourde (1843-1893). [NT]  
13  
Alusão à proscrição dos communards, aos quais foi permitido retornar à França apenas com a anistia  
de 1880. [NE]  
14  
A Federação do Jura foi a organização fundada pela seção anarquista da Internacional, expulsa no  
Congresso de La Haye em 1872. [NT]  
Verinotio  
578 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 574-579 jul-dez., 2024  
nova fase  
       
Correspondência inédita entre Karl Marx e Jules Guesde, 1879  
que eles explicam meu mau-humor em relação a certas pessoas, eles dão uma ideia  
do que se passa e daquilo que fazemos aqui.  
Caso eu não estivesse tão doente e tão miserável eu vos informaria a data  
de minha próxima visita, muito gostaria de conversar longamente convosco. Mas não  
possuo disposição física ou pecuniária. Devo então me contentar em enviar-vos toda  
minha gratidão e a certeza de minha dedicação.  
A vós e à Revolução,  
Jules Guesde  
Como citar:  
MARX, Karl; GUESDE, Jules. Correspondência inédita entre Karl Marx e Jules Guesde,  
1879. Trad. Gabriella M. M. Souza. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 574-  
579; jul.-dez., 2024.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 574-579 jul.-dez., 2024 | 579  
nova fase  
Volume  
29.2  
Embora este volume da revista não se dedique a uma temáꢀca específica,  
os arꢀgos que o compõem versam parꢀcularmente sobre dois autores:  
Karl Marx e Gyögy Lukács. A Verinoꢀo tem se notabilizado por difundir  
pesquisas, teses, reflexões sobre a conjuntura econômica e políꢀca, cujos  
temas versam sobre aspectos importantes da história humana e da atuali‐  
dade, com uma fundamentação críꢀca da sociabilidade; nessa medida,  
não por acaso Marx e Lukács são presenças marcantes nas edições deste  
periódico, seja por meio da tradução de textos inéditos, seja disponibili‐  
zando espaço para arꢀgos que se amparam nas grandes contribuições de  
ambos os autores. Este volume da revista não foge a esse desenho mais  
geral que sempre norteou os conteúdos dos arꢀgos que compõem a linha  
editorial de nosso periódico. Em termos gerais os textos aqui presentes  
poderiam ser classificados em duas partes. A primeira volta-se à obra de  
Marx abordando temas que se direcionam à análise de elementos impor‐  
tantes de sua obra. A classificação sugerida de uma segunda parte igual‐  
mente não ꢀtulada no corpo da revista confere atenção central a diver‐  
sos aspectos da obra lukácsiana. Embora tal “parte” não tenha sido elabo‐  
rada com a intensão de consꢀtuir um todo devidamente arꢀculado, é pos‐  
sível idenꢀficar uma linha de tratamento que estabelece relação entre te‐  
mas tratados pelo pensador magiar, em parꢀcular em sua obra A peculia-  
ridade do estéꢀco, assim como a outros aspectos de seu pensamento.  
Julho/dezembo  
2024