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Nº 4, Ano II, Abril de 2006, periodicidade semestral – Edição Especial: Dossiê Marx – ISSN 1981-061X  
DOSSIÊ MARX: ITINERÁRIO  
DE UM GRUPO DE PESQUISA  
Ester Vaisman[1]  
Nada mais adequado para apresentar um conjunto de artigos  
resultantes de dissertações de mestrado defendidas junto ao Programa de Pós-  
Graduação em Filosofia da UFMG, do que iniciar pela contribuição do grande  
mentor do grupo de pesquisa que ali se organizou: J. Chasin. Morto  
prematuramente no final do ano de 1998, deixou, infelizmente, obra inconclusa  
no auge de sua maturidade intelectual.  
O leitor encontrará, portanto, nessa Apresentação o fruto de trabalho de  
coleta e organização de materiais utilizados por Chasin e por seus alunos em  
seu último curso no Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Foram  
encontrados em seus arquivos pessoais esquemas e anotações que serviam de  
base para exposições em sala de aula, mas também para seus trabalhos de  
pesquisa e para futura redação de artigos ou mesmo livros.  
Assim sendo, o texto a seguir está redigido em estilo que difere  
profundamente daquele que encontramos nos textos publicados pelo autor; isso  
não significa, no entanto, que sejam menos rigorosos, talvez um tanto menos  
precisos e redigidos em linguagem semi-coloquial. Além disso, podem-se  
observar lacunas analíticas que muito provavelmente seriam preenchidas ao  
longo do processo de reflexão e pesquisa, que com certeza teria resultado em  
obra clássica e decisiva entre os intérpretes de Marx e para a história da filosofia  
em geral, não fora sua súbita e trágica interrupção.  
*
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Em seus últimos cursos sobre o tema, Chasin insistia em afirmar que, a  
despeito da valiosa colaboração lukácsiana para o desvendamento da  
contextura ontológica do pensamento marxiano, havia todo um enorme e  
complexo campo teórico a ser devidamente explorado, o que demandaria, com  
certeza, intenso trabalho de pesquisa a ser realizado ao longo de vários anos.  
Assim é que suas colocações se caracterizavam como esboços expositivos, isto  
é, afloramentos introdutórios, passíveis, portanto, de vários tipos de correções  
posteriores.  
O que deve ser salientado nessa ocasião é justamente a coragem e a  
desenvolturas teóricas com que Chasin lidava com o assunto em sala de aula,  
procurando, mais do qualquer outra finalidade, estimular seus alunos a  
compartilharem dessa empreitada, onde cada um contribuiria, desse modo, para  
um esforço de pesquisa que, dada sua envergadura, só poderia assumir caráter  
coletivo.  
Assim é que depois da publicação de Marx - Estatuto Ontológico e  
Resolução Metodológica em 1995[i] que foi a primeira sistematização de  
resultados de pesquisa levada a cabo durante quase uma década sobre a obra  
marxiana, notadamente seu período formativo, e o desenvolvimento de vários  
trabalhos de pesquisa - tanto no plano do mestrado quanto no doutorado por ele  
orientados, parte deles publicados no presente tomo - Chasin chega a esboçar  
um esquema de trabalho que teria "a obra de Marx, tanto como ponto de partida,  
quanto por ponto de chegada" e visava dar conta de uma verdadeira história da  
ontologia. Este ambicioso programa de trabalho acabou se impondo como  
inevitável, na medida em que a devida compreensão da obra de Marx assim o  
exigia. Em outras palavras, de início a pesquisa que se voltava ao pensamento  
marxiano e algumas incursões na obra de Lukács, acabou demandando, pelo  
próprios resultados obtidos, o seu alargamento para praticamente todo o  
conjunto da história da filosofia. Além do resgate da contraposição metafísica  
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versus ontologia desde o renascimento até Kant, o plano de pesquisa incluía a  
análise das posições ontológicas dos pré-socráticos até Heidegger, bem como  
um conjunto de glosas a E. Husserl, N. Hartmann, E. Gilson, E. Cassirer, G.  
Lukács e E. Bloch.  
Mas os desafios teóricos que o tema da ontologia acarreta implicaram  
que a atenção de Chasin também se voltasse àquilo que teria sido a sua grande  
descoberta original - como veremos a seguir - o traço distintivo da história da  
ontologia: a sua dissolução e seu colapso.  
Na abertura de seu último curso no Programa de Pós-Graduação em  
Filosofia da UFMG asseverou: "Creio que possa ser transposto à ontologia o que  
Heine afirmou a propósito do cristianismo: ainda não há nenhuma história da  
ontologia porque, até agora, não foi compreendido claramente no que consiste a  
posição ontológica, e porque superficialidades foram tomadas pelo essencial.  
Antecipo, sob essa analogia, que superficial em ontologia é pressupor  
que ela se caracterize e resolva por andamentos autônomos e a priori da razão,  
o que tem induzido a conferir grande importância às querelas da  
fundamentação, isto é, que a ontologia por natureza seja um movimento  
cognitivo desenvolvido por via de alguma forma de razão auto-sustentada .  
Superficialidade que se manifesta porque a ontologia, por caráter, propósitos e  
até mesmo por definição clássica, tem por alvo o reconhecimento do por-si das  
coisas, ou, em versão já reduzida e desnaturada pela ótica gnoseológica, do em  
si, uma vez que o para-nós só pode ser um conseqüente ou resultante em toda  
e qualquer ordem de representação, um derivado que, sob diapasão  
gnosiológico, é afetado ou condicionado pela própria relação cognitiva, ou seja,  
por uma operação que redunda na perda do atributo fundamental do por-si, isto  
é, de sua prioridade em face de qualquer relação com o sujeito prático e teórico.  
De outra parte, a história real da ontologia é a parte mais antiga e  
intrincada da filosofia, pois esta nasceu por demanda de uma questão de caráter  
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ou espírito ontológico: de que é feito o mundo, perguntavam os pré-socráticos,  
qual é o elemento primordial do universo?  
Nascida como ontologia, sem que tivesse esse nome, sem que tivesse  
outro nome que não o de filosofia, esta foi por cerca de dois milênios e meio,  
antes, de tudo, ontologia (metafísica), ou, explicitamente desde Platão e  
Aristóteles até Leibniz-Cristian Wolff, a ontologia foi a atmosfera e o andaime da  
reflexão. Seja como base e norteamento do conhecimento, seja, como alicerce  
movediço e desorientador, em sua história imanentemente contraditória, a um  
tempo auto-constituinte e auto-dissolutora de si própria. Numa palavra, parece  
que a aproximação dos seres ou entes, vale dizer da realidade pura e simples  
em sua complexa efetividade, tem se mostrado como a mais difícil e penosa de  
todas as tarefas do homem. Paradoxal, sob o prisma de que os homens não  
vivem a não ser no próprio mundo real, essa dificuldade não é tão imprópria ou  
inocente, na medida em que se considera:  
1) que o homem só muito lentamente constitui seu próprio mundo e a si  
mesmo, e em ritmo semelhante destes se apropria objetiva e subjetivamente;  
2) que essa dupla constituição/apropriação do mundo e de si tem sido  
operada sob processos infinitamente complexos e contraditórios, geradores de  
matizados e superpostos níveis de esclarecimento e ocultação."  
Para além dessas dificuldades de fundo, é necessário levar em conta  
também que nos dias atuais, a pesquisa ontológica, em especial nos seus  
lineamentos mais evoluídos - o estatuto ontológico marxiano -, se dá em  
contexto histórico amplamente desfavorável, tanto no que diz respeito à história  
das formações reais quanto àquela das formações ideais.  
De tal modo, que "poder-se-ia dizer, agora parafraseando Marx de A  
Sagrada Família, a propósito de Szeliga, que as proposituras ontológicas  
dominantes no século XX 'convertem em mistérios o que são verdadeiras  
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trivialidades. Sua arte não consiste em revelar o oculto, mas ocultar o  
revelado'[ii].  
Em suma, para dar início ao delineamento da história da ontologia é  
preciso, em primeiro lugar, abandonar sua pretensão infantil à atemporalidade, e  
se dar conta de que seja compulsoriamente histórica, de que se faz no tempo  
tão contraditoriatmente quanto a própria entificação de seu histórico agente."  
Em segundo lugar, Chasin considerava inadiável reprocessar a  
decifração ou o entendimento de Marx em determinação recíproca com as  
vicissitudes da história da ontologia, "na tentativa de ultrapassar as derrotas  
sofridas ao longo dos últimos 150 anos e, principalmente, a partir do  
entendimento efetivo do pensamento marxiano, e também do atual  
desenvolvimento do capital, redimensionar a perspectiva dos alvos e rumos  
teóricos e práticos a exercitar no presente e levar a efeito no futuro."  
O debate dito ontológico do século XX girou em torno de conhecido  
conjunto de fontes. "Enquanto Hartmann com o volume I de sua Ontologia, de  
1934, é uma contraposição à desontologização em geral e às novas tendências  
do século, principalmente Heidegger, feita do ponto de vista  
fenomenológico/neokantiano, É. Gilson é a resposta neotomista, no interior da  
filosofia francesa, ao desafio posto por O Ser eo Nada (1943) de Sartre, cujo  
sub-título, 'ensaio de ontologia fenomenológica', logo aponta para a sua afiliação  
a Husserl e o tributo pago, de toda a maneira, a Heidegger, que o conduziram a  
inviabilizações definitivas e irremissíveis, que não desobriga, todavia, de  
distinguir radicalmente seu propósito e sua personalidade do autor de Ser e  
Tempo (1926), dedicada a Edmund Husserl, 'Em testemunho de Admiração e  
Amizade'."  
De acordo com a posição que Chasin veio assumir nos seus últimos  
anos de vida, "nas múltiplas dívidas, contraídas pelo marxismo no século XX,  
figura precisamente esta, ter entrado muito tardia e restritamente nessa  
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discussão, vale dizer, só quando a vitória temporária já havia pendido para o  
outro lado, não apenas por sua exclusiva presença na arena, mas porque  
condicionado e impulsionado pelo próprio caráter de nossos tempos. Os arautos  
que se impuseram são muito conhecidos, tomaram o espaço sem ter que  
enfrentar o adversário efetivo, único capaz de contraditar e oferecer alternativa.  
Este, em vez disso, perdeu-se sem luta, sucumbiu à linha dominante do  
cientificismo e acabou junto com os melhores também perdido nesse campo.  
Nem é preciso referir o leste europeu, mas com o politicismo generalizado, o  
marxismo se perdeu, inclusive com os melhores que o século produziu.  
Apenas em fins da década de 60, quando tudo estava desabando,  
Lukács de través, se deu conta do mistério. É muito significativo que nesse  
despertar oblíqüo tenha tido que se voltar à refutação, entre outros, de  
Heidegger, quando este escrever seu livro principal, no mínimo em parte, em  
oposição a História e Consciência de Classe (textos de 1919-22). É igualmente  
sintomático que só tenha retomado deliberadamente a preocupação ontológica  
ao final da vida e sucumbido ao objeto em obra inconclusa, motivada acima de  
tudo pelo viés excêntrico de conferir poder regenerador à ética. Mas é sabido  
que junto com seu mérito não pereceu sozinho. Por exemplo, onde estão  
Hartman, Gilson e até mesmo Sartre?"  
As dificuldades para o devido enfrentamento da questão ontológica hoje  
são enormes e já eram conhecidas por Lukács, muito embora o filósofo húngaro,  
morto em 1971, não tenha assistido o pleno triunfo de concepções que  
consagram o homem derrelito, denominação essa empregada por ele mesmo ao  
se reportar a Heidegger, por exemplo.  
Tais dificuldades, grosso modo, poderiam ser atribuídas inicialmente às  
tendências que têm como ponto de partida o criticismo kantiano, que se  
impuseram na viragem do século XIX para o XX, com a redução da filosofia ao  
circuito da problemática do conhecimento.  
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Embora se possa, assim, considerar o criticismo kantiano como uma  
espécie de divisor de águas, não se deve obliterar o fato de que com a  
metafísica clássica, ou qualquer uma de suas variantes antecedentes ou  
subseqüentes, "sob o pretexto de alcançar a priori a certeza cognitiva, gera-se  
uma grave distorção no plano teórico pela qual o ente é perdido para sempre".  
Para evitar tal descaminho, Chasin propõe o designativo posição ontológica,  
pois com ela "pretende também, pelo menos, precaver contra a unilateralidade  
decorrente da postura gnoseológica (sempre uma forma meramente  
especulativa a respeito da morfologia do funcionamento, ou seja, da  
organização e atividade da subjetividade), instigando e, se rigorosamente  
praticada, orientando com rigor a pensar as coisas em seus próprios nexos, em  
direção a uma totalidade mais plena de determinações. A expressão pretende,  
pois, sinalizar e induzir à prática intelectual de caráter ontológico, concebida em  
sua forma mais consistente e conseqüente."  
Chasin, pois, pretendeu recuperar o sentido de "ontologia enquanto  
consideração daquilo que é em sua efetividade. Não alguma distorção ou  
dissolução do ente enquanto ente, seja sob sua forma do 'sentido do ente', do  
'ser da aparição', ou qualquer outra variável do tipo, que, embora, possam incluir  
dimensões do sensível, sempre compreendem, implicam ou têm por condição de  
possibilidade um sujeito, mesmo que este seja o obervador da produção de  
representações de caráter racional. Estudo, pois, das coisas em sua  
independência, em sua 'exterioridade' em face de possíveis relações práticas e  
teóricas em que estão ou possam vir a estar presentes, inclusive aquelas pelas  
quais, em gênero superior de entificação, as coisas são postas ou engendradas.  
De tal sorte que, ainda e mesmo que todo o plano cognitivo possa ou  
tenha de ser impugnado, que toda ciência possa ou tenha que ser posta em  
dúvida e considerada simples ilusão ou equívoco, ou ter seu âmbito reduzido à  
pura convenção, resta o fundamental, o universo da prática ou da vida vivida em  
sua qualidade de confirmação da dupla certeza da existência do mundo e dos  
homens, e enquanto tal tem de ser reconhecido como ponto de partida da  
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intenção ontológica, cujo propósito é se constituir em base conceitual de sua  
dilucidação."  
Ainda no contexto da afirmação da posição ontológica e rejeição, seja  
do viés gnosiológico ou cientificista, seja das concepções reinantes ditas  
ontológicas, Chasin, de modo provocativo, indaga: "Por que a fórmula simples  
do cogito é mais evidente ou funcional para efeito de fundamentação do que a  
evidência do complexo sensível do gozo? Por que a evidência do cogito - o  
pensamento do indivíduo isolado - é superior à evidência do existir, que inclui a  
presença e a relação viva dos outros e das coisas?" Chasin continua, na mesma  
direção, no questionamento da pretensa superioridade do cogito, indagando o  
quê se esconde sob ela, e acrescenta: "O cogito, o truque cartesiano, é a  
conquista da certeza à custa de três absurdidades: o cogito desencarnado, a  
encarnação divina da perfeição e o mundo reduzido à extensão." A essas três  
"conquistas", digamos assim, Chasin denomina de verdade alienada, isto é,  
verdade emergente da subjetividade na forma da alienação.  
A exercitação ontológica, ao contrário, assume como critério analítico "a  
determinação de que o objeto maturado é a chave do esclarecimento de suas  
formas precedentes[iii], desde as embrionárias até as mais elaboradas que  
antecedem, no tempo, sua fisionomia acabada. Portanto, a determinação  
marxiana do objeto maturado é produto desse espírito teórico, pois só faz  
sentido em posicionamento ontológico, ou seja, em reconhecimento do grau  
constitutivo em que se encontra a coisa examinada."  
Segundo Chasin ainda, Aristóteles teve grande mérito em sua  
propositura de uma "filosofia primeira - base ou fundamento para a constituição  
das ciências 'particulares' - mas que por sua resolução (de caráter platônico,  
conforme já demonstrara É. Gilson) e por seus pretendidos atributos ahistóricos  
- categorias eternas e absolutas, imutáveis e perenes - constitui um modo  
involuntário de elaboração especulativa, apesar de seu intento originário de  
conhecer o efetivamente existente, o ente enquanto ente." Tais limites do intento  
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aristotélico, numa linha de argumentação que confere prioridade à realidade  
sócio-histórica na produção de viabilidades ou inviabilidades teóricas e de sua  
conseqüente explicação, eram vistos por Chasin como "limites produzidos pelo  
próprio tempo grego", sumariados a seguir:  
"1) prática humano-societária incipiente e acanhada", que ganhou no  
artigo O Futuro Ausente belíssima caracterização inspirada no Marx das  
Formen: "Imaturação natural e característica das remotas formas sociais em que  
a propriedade da terra e a agricultura constituíam a base da atividade material,  
tendo por objetivo a produção valores de uso, ou seja, a reprodução dos  
indivíduos, em peculiares e bem determinadas relações com a comunidade"[iv],  
onde, por via de conseqüência, "indivíduo e genêro são imediata e  
transparentemente inseparáveis e suas relações traduzem essa unidade  
fundamental, tornando desconhecida e impensável qualquer tipo de cissura que  
contraponha ou, menos ainda, torne excludentes entre si as figuras de sua  
polaridade"[v]. Mas a essa dimensão positiva - sintomaticamente tão atraente nos  
dias atuais! - corresponde uma negativa, que Chasin esclarece na seqüência:  
"todas as formas em que a comunidade pressupõe sujeitos em determinada  
unidade objetiva com as condições da atividade produtiva, ou, reciprocamente,  
nas quais uma específica existência subjetiva faz com que a própria comunidade  
seja pressuposta como condição de produção, todas elas, diz Marx  
'correspondem necessariamente e por princípio a um desenvolvimento limitado  
das forças produtivas'."[vi]  
2) Conseqüentemente, "impossibilidade para conceber a historicidade e  
a contraditoriedade como categorias fundamentais do ser - que estrangulam a  
mais precisa e universal, por isso mesmo válida hoje e para sempre, das  
formulações atinentes à natureza e ao propósito da ontologia.  
Méritos e limites da filosofia primeira que apenas serão realizados e  
superados depois de um longo itinerário, repleno de contraposições internas,  
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pelos lineamentos perfilados por Marx, que também herda, criticamente,  
dimensões da filosofia moderna - do renascimento ao neohegelianismo."  
Desse modo, com o objetivo de sumariar preliminarmente os conteúdos  
dessa trajetória que Marx assimila por via crítica, Chasin indica alguns deles,  
sem pretensão alguma de esgotá-los:  
1) Do Renascimento - "a infinitude do universo e o espírito da  
concepção do homem como o único ser aberto - existente e conhecido, capaz,  
na potência de seus atributos, de conhecer e configurar a si e a seu mundo,  
ambos entendidos e tomados em sua naturalidade, objetividade, e o primeiro na  
infinitude de sua essência ativa;"  
2) Do materialismo francês e inglês e do Iluminismo - "a ruptura com a  
conduta especulativa, metafísica, e com o espírito de sistema em filosofia, que é  
concebido como freio e obstáculo à razão. Por meio dessa desobstrução, o  
iluminismo pode universalizar a filosofia como meio de toda verdade - natural e  
espiritual - e ela passa a se voltar às tarefas práticas, donde a possibilidade e o  
escopo de estabelecer a vida humana de modo racional. Em outros termos:  
'reconhece no pensamento o poder e o papel de organizar a vida; o pensamento  
deve ter papel analítico, mas também fazer nascer a ordem cuja necessidade  
ela concebeu'"[vii]. Em contrapartida, os limites do pensamento iluminista são  
sinteticamente os seguintes: "acentuação unilateralizante da racionalidade  
herdada do renascimento e distorcida pelo racionalismo do século XVIII". Além  
disso, tem-se "o naturalismo, vale dizer, a ontologia do social demasiadamente  
colada à ontologia da natureza, embora não se possa deixar de reconhecer que,  
frente ao abstracionismo metafísico, trata-se de um mérito pretender uma  
ontologia ligada à natureza, que, em verdade, é idealizada. Talvez o melhor  
exemplo dessa tradição seja justamente Feuerbach."  
3) Do criticismo - "a impossibilidade de uma ontologia como saber do  
em si, ou seja, do ente enquanto ente pela via do absolutismo racional  
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dedutivista. Em Kant, em verdade, tem-se a impossibilidade de uma ontologia,  
em Marx, ao revés, tem-se apenas tal recusa à especulação, mas não a  
impossibilidade de conhecer o ente enquanto ente; vale dizer, Marx aceita o  
espírito da crítica kantiana ao conhecimento absoluto, mas não sua resultante  
sistemática: a sua vedação ao conhecimento das coisas enquanto tais."  
4) Do hegelianismo - "a concepção histórica do ser, portanto de sua  
contrariedade, bem como a natureza aproximativa do processo de  
conhecimento, ao mesmo tempo em que recusa o 'invólucro místico' do  
pensamento hegeliano - a dialética autônoma da razão como demiurgo do real  
ou da efetividade sensível, ou seja, refuta decidamente seu caráter  
especulativo."  
5) Do neohegelianismo - "a problemática do homem, e muito  
especificamente duas contribuições de Feuerbach: a crítica à especulação e os  
lineamentos mais gerais do ser só enquanto ser sensível ou objetivo (dimensões  
de uma ontologia geral em seu nível mais abstrato)." Mas, ao lado desse  
aspecto positivo do pensamento feuerbachiano, não é possível deixar de  
assinalar "a objeção fundamental dirigida a ele por Marx: sua concepção  
naturalista do homem, vale dizer, sua incapacidade de o determinar como ser  
social. Assim, em Feuerbach, o homem é sensível objetivo/natural e não  
objetivo-social - a grande descoberta marxiana."  
Grande descoberta que é mais amplamente avaliada "quando se  
considera o conjunto das linhas manifestas pelos principais representantes do  
neohegelianismo: B. Bauer, formulador de uma concepção do homem como  
auto-consciência racional; M. Stirner, com a elevação do egoísmo à condição de  
essência humana; Feuerbach, com a concepção naturalista do homem, centrada  
no amor. Nesse cenário somente Marx comparece com a descoberta da  
sociabilidade como substância constitutiva do homem - e não meramente uma  
essência imutável, mas histórica e contraditória, produzida e reproduzida pela  
própria atividade sensível dos homens.  
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De sorte que do ente enquanto ente aristotélico, determinado por sua  
forma substancial eterna, ao ser social marxiano, compreendido em suas  
mudanças categoriais - é do que consiste a história - se vai de uma filosofia  
primeira, que terminou por sua resolução originária na forma de um saber  
absoluto, a um saber histórico de base que se desenvolve pela infinitude de  
aproximações, empreendidas em direção ao absoluto, entendido pura e  
simplesmente como completude ou totalidade, que praticamente, nunca se  
realiza, porque desnecessário para o saber, ao qual bastam completudes mais  
modestas, e, ainda mais, como saber para a prática."  
De modo que "a filosofia primeira de configuração marxiana é antes de  
tudo a afirmação da objetividade do mundo e a possibilidade ser conhecido,  
possibilidade que é sócio-historicamente determinada, exercendo a função de  
base e guia para a ciência da história, especificamente como ontologia regional  
do ser social, e que nutre das ciências e a elas responde, tanto quanto elas  
mesmas tem de responder aos lineamentos ontológicos pelos quais se guiam,  
mas aos quais não tomam como coágulos de saber imutável. De sorte que  
ontologia  
e
ciência se potencializam  
e
se criticam recíproca  
e
permanentemente."  
Também de acordo com Chasin, por essas razões, "a ontologia  
marxiana não é uma resolução de caráter absoluto, nos moldes do sistema  
convencional, mas a condição de possibilidade de resolução do saber. É, em  
outras palavras, um estatuto movente e movido de cientificidade, orienta e é  
orientado pela ciência e pela prática universal dos homens. Orienta e é  
orientada, guia e é guiada, corrige e é corrigida. Ou seja, não é um absoluto  
inquestionável, uma certeza estabelecida por dedução a partir de axiomas, de  
uma vez para sempre. Mesmo porque a certeza cognitiva não pode estar no  
ponto de partida, mas compreendida como alvo de uma busca permanente;  
procura intensiva e extensiva, cuja infinitude é posta a cada momento entre  
parênteses, no qual o grau de certeza alcançado é assumido como realização  
máxima, tendo por limites as possibilidades do tempo ou cenário histórico, grau  
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a ser confirmado ou ampliado ou, ao invés, restringido na parte ou descartado  
no todo, posteriormente, com todas as suas implicações correlatas."  
Em suma, quando se utiliza a expressão posição ontológica e não  
perspectiva, ótica, prisma ou ponto de vista, pretende-se "remeter a lugar e às  
coisas, ou seja, o reconhecimento do mundo como multiverso de entes reais,  
objetivos e que, por isso mesmo, faceiam o observador prático ou teórico, não  
dependendo deste para existir, em face do qual, são independentes. É,  
finalmente, o reconhecimento da prioridade das coisas nas relações cognitivas,  
sem desconhecer, é claro, o caráter ativo do investigador."  
Quando Chasin procura enfatizar  
o
reconhecimento, noção  
imediatamente conexa a de posição ontológica, é por que aquela tem a  
vantagem de "colocar em 'primeiro lugar o caráter não puramente teórico,  
contemplativo, mas sobretudo prático'[viii] da aproximação ao ente", além da  
natureza da operação mental que designa - constatação ou recognição, vale  
dizer a admissão de algo a respeito do qual o discurso se pronuncia como forma  
imediata de representação.  
Relevar o caráter prático de aproximação ao ente, ou em outras  
palavras "partir ou dar prioridade à prática significa, por seu turno, partir do  
caráter essencial do ser do homem por sua exteriorização operativa no mundo,  
que confirma sua forma de vida ou modo de existência. Quer dizer, é um ponto  
de partida desde logo sob critério ontológico, ou seja, que considera a  
efetividade ôntica do homem e do mundo, de tal sorte que ambos são  
reconhecidos enquanto atividade sensível. Caminho que tem o mérito de evitar  
as 'vias reflexas'"[ix], como também "os engenhos e supostos dos encantamentos  
especulativos como cogito, sujeito transcendental ou os arquétipos;  
generalizando uma expressão marxiana: os misticismos lógicos, que nunca  
deixam de mostrar sua condição de artifícios, por mais rigorosos e envolventes  
que sejam, tanto que podem sempre ser contestados de algum modo, ao passo  
que 'os indivíduos vivos e ativos', os pressupostos dos quais Marx parte em A  
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Ideologia Alemã, não podem nunca ser recusados, a não ser na fantasia e sob  
pena de cancelar todo e qualquer andamento reflexivo."  
Em suma, "reconhecimento ontoprático, significa, pois, tomar como  
ponto de partida a prática - desde a prática cotidiana à prática científica de ponta  
- de um tempo dado."  
O plano ontoprático, já bem delineado no texto de 1995, ganha nos  
anos seguintes sucessivas correções por parte do autor, a ponto de se tornar o  
eixo a partir do qual Chasin faz a crítica das Teorias da Fundamentação, ou  
como ele as denomina ironicamente: A Querela da Fundamentação.  
A esse respeito, costumava ele indagar: "O que é um fundamento? Uma  
Teoria da Subjetividade ou Uma Teoria da Objetividade?"  
Se o fundamento for considerado a partir de uma teoria da  
subjetividade, por onde começar? "Pelo aparato sensorial, como no empirismo?  
Ou pela consciência, ou coisa que o valha, como o cogito cartesiano, a  
autoconsciência, a razão, ou as formas a priori do entendimento? Ou ainda, uma  
teoria da mente?"  
Ainda no plano do fundamento subjetivo, poder-se-ia partir da  
experiência, da vivência, do vivido? Neste caso "o vivido seria o pré-teorético,  
mas enquanto experiência existencial, isto é, as vivências do indivíduo isolado  
em experiência aleatória, fortuita, acidental."  
Mas se o "fundamento for uma Teoria da Objetividade, por onde  
começar? Pelos fenômenos empíricos? Mas, nesse caso não terminaríamos  
apenas no fundamento psicológico, isto é, teríamos o psicologismo como  
fundamento da verdade?  
14  
E se partíssemos do todo concreto? Não findaríamos numa visão  
caótica e abstrata de conjuntos indeterminados, desamparados na companhia  
de um punhado de abstrações razoáveis e irrazoáveis?"  
Feitas tais indagações, Chasin conclui de modo enfático: "Toda petição  
de fundamento, todo discurso por um fundamento está encerrado na esfera  
teórica. Além do mais, todo discurso de fundamentação pretende e implica uma  
certeza, ou seja, de um modo ou de outro, a suposição de um saber absoluto,  
ainda que um simples momento do saber absoluto. Vale dizer, o discurso da  
fundamentação desemboca de algum modo na razão especulativa. Em outras  
palavras, implica algo que transcende a própria natureza do saber, que é um  
processo infinito de aproximações."  
Para Chasin, o reconhecimento do ontoprático tem a vantagem de  
escapar à querela da fundamentação na medida em que "parte da experiência  
real, melhor dizendo, da prática real, não de uma experiência isolada  
arbitrariamente; não da experiência aleatória, da suposta existência existencial  
dos indivíduos isolados, dos indivíduos em derrelição.  
O universo ontoprático é o necessariamente vivido para que qualquer  
pergunta possa se dar. É, portanto, a esfera pré-teorética, esfera que antecede  
qualquer teoria. Esfera sem a qual não há vida humana e, portanto, sem a qual  
não pode haver qualquer pergunta teórica.  
A reflexão que tem como ponto de partida o ontoprático estabelece,  
assim, um pressuposto concreto (e não uma verdade ideada) do qual não posso  
me afastar, a não ser na imaginação."  
Em síntese, a esfera ontoprática representa "o complexos dos homens  
vivos e ativos". A partir dessa abstração razoável - o ontoprático - "pode-se  
encontrar, já numa analítica de desentranhamento desse complexo real, o  
devido lugar da ontologia, da epistemologia e da ciência da história, que  
compreende dois grandes ramos: natureza e sociedade."  
15  
Em outras palavras, "sem a consideração do ontoprático, torna-se  
aleatória a localização que se confere tanto ao ontológico quanto ao epistêmico.  
A opção por um deles se torna uma arbitrariedade teórica e é, justamente, isto  
que gera a querela da fundamentação, pois a decisão fica submersa ao plano  
teórico, ao jogo dos argumentos, à ambivalência do logos, que é irresolutivo.  
Sem a consideração do ontoprático, parte-se, assim, de imediato da  
teoria e não do ser que faz da teoria ou deste como uma abstração da  
inteligibilidade, ou seja, de uma faculdade abstraída do ser que a possui,  
gerando com isso um absurdo ontológico.  
É, portanto, a partir da analítica do ontoprático, pelo reconhecimento de  
seus traços categoriais que tem início a elaboração ontológica. Ou seja, a  
ontologia nasce como reflexão, conscientização, conceituação do ontoprático,  
enquanto primeiro objeto da ontologia, que a partir daí, se encaminha em  
direção à crítica - em termos de sua necessidade e lógica específica - do próprio  
ontoprático, isto é, do complexo dos objetos reais, aí incluído o homem."  
Resta ainda, em relação à problemática geral em tela, aflorar a questão  
da adequatio, tal como era tematizada também em seus cursos.  
Polemizando com a denominação de realismo, comumente utilizada  
para denominar proposituras que conferem prioridade ao mundo objetual,  
Chasin afirmava que "há realismo - antigo - quando é suposto que a ordem da  
razão à idêntica a ordem do real, e que a partir de axiomas, por meios racionais-  
dedutivos, embuídos do espírito de sistema, se possa estabelecer a verdade do  
mundo."  
Em Marx, entretanto, "a ordem das coisas e da razão são distintas (um  
exemplo expressivo desta postura marxiana pode ser encontrada na famosa  
'Introdução de 57'), ambas mutáveis e processuais - unidade da desidentidade  
entre ser e saber. Assim, o mundo não pode ser deduzido racionalmente, mas  
reproduzido sob forma de idéia por meio de aproximações - empírico, abstrato,  
16  
concreto - num processo intensivo e extensivo historicamente condicionado,  
possibilitado ou impedido - na dependência que fica da maturação do objeto e  
do posicionamento do sujeito. O processo mimético é, portanto, reprodução  
conceitual de efetividades, donde se lida com duas ordens de formações: real e  
ideal. A reprodução conceitual apresenta, portanto, sua própria lógica, mas no  
interior da determinação sócio-histórica do pensamento, de modo que uma  
teoria do conhecimento (morfologia e dinâmica da subjetividade in abstratu e  
imutável) é incapaz de explicar o processo cognitivo, pois a faculdade humana  
da 'força da abstração' depende das possibilidades oferecidas pela  
determinação social do pensamento que, por sua vez, se manifesta e se  
configura pelo desenvolvimento dos objetos e da prática humana que sobre eles  
tem incidência.  
Donde a franca afirmação marxiana da possibilidade de conhecer não  
se confunde com a simplicidade e facilidade da concepção realista, nem mesmo  
no plano da 'ingenuidade cotidiana', desde logo porque a atividade cotidiana -  
que está para além da ingenuidade, ou lança os sujeitos para além da  
ingenuidade - é em si um complexo rico e desafiador, matrizador inclusive da  
intentio recta, atitude natural e necessária da esfera ontoprática."  
Há, portanto que distinguir as grandes diferenças ontológicas entre o  
estatuto marxiano e a ontologia realista. Na primeira a "adequatio", digamos  
assim, é correlação entre formação real e formação ideal, duas ordens distintas  
de configuração. Em outras palavras, é correlação conceitual entre entificação  
concreta e reprodução conceitual. Em suma, a reprodução conceitual nada mais  
é do que transposição à cabeça, ordenada pelos nexos do real, na forma e pelos  
meios da própria atividade mental.  
I - Tomando Marx por Base e por Ponto de Chegada  
17  
Considerando como ponto de referência as considerações  
desenvolvidas por Marx em O Capital, especificamente sobre a dificuldade  
encontrada pela humanidade na compreensão do valor, ao longo de dois  
milênios - de Aristóteles a Ricardo -, pode-se sustentar, segundo Chasin, que  
um fenômeno muito similar a este se produziu no que tange à determinação do  
ser, ou seja, da(s) matriz(es) da(s) realidade(s), ou seja, da efetividade.  
Tomemos as passagens em questão que se encontram no "Prefácio à  
Primeira Edição" de O Capital: "Todo começo é difícil; isso vale para qualquer  
ciência./.../ A forma do valor, cuja figura acabada é a forma do dinheiro, é muito  
simples e vazia de conteúdo. Mesmo assim, o espírito humano tem procurado  
desvendá-la (ergrüden) em vão há mais de 2.000 anos, enquanto por outro lado,  
teve êxito, ao menos aproximado, a análise de formas muito mais complicadas e  
replenas de conteúdo. Por quê? Porque o corpo desenvolvido é mais fácil de  
estudar do que a célula do corpo. Além disso, na análise das formas econômicas  
não podem servir nem o microscópio nem reagentes químicos. A força da  
abstração deve substituir a ambos./.../ Para o leigo, a análise parece se perder  
em pedantismo. Trata-se, efetivamente, de pedantismo, mas daquele de que se  
ocupa a anatomia microscópica."  
De acordo com Chasin, é necessário reter os seguintes nódulos  
significativos da citação acima:  
"1) todo início de uma ciência é difícil, donde, o princípio da ontologia, o  
princípio da ciência, deve ser o mais difícil de todos;  
2) há grande dificuldade na compreensão da forma do valor, que é um  
objeto simples e vazio de conteúdo;  
3) há êxito maior na análise de formas mais complicadas e replenas de  
conteúdo."  
18  
Na mesma citação, Marx enuncia os motivos de tal dificuldade:  
"1) o corpo desenvolvido é mais fácil de estudar do que a célula do  
corpo;  
2) métodos experimentais não são aplicáveis a esse tipo de forma;  
3) a analítica dessa forma pela força da abstração deve tomar o lugar  
da observação empírica e experimental;  
4) análise voltada à anatomia microscópica da forma estudada."  
A partir dessas indicações colhidas no texto de Marx, Chasin elabora  
um esboço para fins unicamente didáticos, em que busca transpassá-las para a  
própria questão ontológica, afirmando o que se segue:  
"1) o 'início difícil' da ontologia perdurou também por mais de 2000  
anos," trajetória em que se observa "tateios imprecisos" caracterizados por um  
movimento simultâneo de 'constituição/dissolução' até chegar em Marx." Tal  
movimento simultâneo de constituição/dissolução "revela, por seu rumo  
imanentemente contraditório, por seus caminhos e descaminhos históricos, a  
dificuldade e a longa incapacidade na formulação precisa de seu objeto e  
alcance, ou seja, de sua natureza e propósito - de sua função orientadora e  
sustentadora no plano teórico e de sua origem prática, pré-teorética;  
2) reconhecimento ontoprático das formas dos seres e analítica da  
forma do ser apenas por meio da força da abstração; no reconhecimento  
ontoprático, os seres são reconhecidos como substantivos e, nesse caso, até  
certo ponto vale para a observação espontânea e observação comum, pois o  
desvendamento completo exige força de abstração; como verbo ( o ato de ser  
de Gilson), só a força da abstração, daí a facilidade para se cair no  
abstrativismo."  
19  
É nesse preciso momento da exposição chasiniana que surgem as  
primeiras referências a É. Gilson, assim como a N. Hartmann, momentos mais à  
frente. Evidentemente que esse procedimento não ocorre por acaso, pois o que  
está em questão agora são as tentativas contemporâneas de resgate da  
tematização ontológica.  
É. Gilson afirma que "o mais fundamental dos problemas da filosofia" - a  
relação entre essência e existência, que, por seu turno, diz respeito à distinção  
de ser como nome, isto é, como substantivo, em latim ens (ente) e como verbo  
esse. É sabido que o esse tomista é concebido como ato de ser - actus essendi -  
, significando, portanto, existência, ato de existir, ato de ser.  
Chasin comenta a ambigüidade da noção de ser, para qual Gilson  
chama atenção, afirmando o que se segue:  
"1) Ens é um nome que significa um ser (determinado), ou seja, a  
natureza e a essência de qualquer existente, ou então, - o ser mesmo - uma  
propriedade comum a tudo aquilo que se pode dizer que é (que pertence a).  
Em suma enquanto nome ou substantivo, ser designa um existente  
qualquer ou uma propriedade comum a todos os existentes, designa o que  
verdadeiramente é, ou uma propriedade geral: é um ente ou uma entidade.  
2) Enquanto verbo, ser designa a ação ou o ato de ser exercido pelo  
ente. Assim, como verbo, não significa que algo é, nem a existência em geral,  
mas o ato mesmo pelo qual qualquer realidade dada é de fato ou existe.  
Precisamente a este ato, Gilson chama de 'ser' em contraposição a 'ente'."  
De todo modo, feita a distinção, Chasin considera existir um sério  
problema ao tomar em separado ens e esse, indagando "é possível pensar em  
duas figuras no isolamento? Será que essa configuração é de fato o mais  
fundamental dos problemas ou é o mais antigo, o mais remoto e o mais cultuado  
dos equívocos da história da filosofia?"  
20  
De um lado "a compreensão da forma de ser enquanto verbo, como  
pura significação verbal de existir, de estar presente, enquanto significação de  
ato ou presença, o verbo é forma simples e vazia de conteúdo, pois, reduzida ao  
predicado mais geral e comum das coisas, denota apenas sua existência. De  
outro lado, ocorre o mesmo problema com o substantivo ser - ens - pois redunda  
em essência imutável." Em outras palavras, na história da filosofia, nesses dois  
caminhos, houve de longa data polêmica sobre o que existe, em que plano se dá  
a existência e assim por diante. No caso do ser como verbo, o ser é muito  
parcamente categorial, reduzido à presença no tempo e no espaço, só possui o  
predicado abstrato da existência; no caso do substantivo, tomado sem o ato de  
existir, se converte em complexo de propriedades ou entidades perenes.  
A resolução para tal questão reside, segundo Chasin, em tomar o ser  
enquanto complexo categorial, daquilo que é como ente, que existe. Nesse  
sentido, "o desvendamento tem êxito maior, como mostra a ciência, que toma  
para análise formas mais complicadas e replenas de conteúdo, vale dizer, uma  
vez que tem por alvo o ser por sua efetividade e determinado por suas  
qualidades, não apenas pelo reconhecimento de sua presença, mas pelo seu  
complexo categorial."  
"Ora, arremata Chasin, a forma sensível do ente compreende o ens e o  
esse, ou seja, a plena riqueza do complexo categorial."  
- Lógica e Ciência  
Neste item, Chasin defende a tese de que "na medida em que  
pretendeu e pretenda ser uma disciplina ou ciência 'de chegada', isto é,  
21  
conclusiva, autônoma e sistemática, a ontologia acaba por ser transmutada em  
lógica ou ciência.  
Talvez possa ser dito que nas ontologias onde predomine,  
unilateralmente, o ser como verbo ou o ente como essência terminem por ser  
uma lógica que, de alguma forma, acaba por ter a pretensão de constituir o ser,  
a lógica é então o segredo último do ser ou sua base cognitiva e, por essa via,  
sua base ontológica - que assim nega a ontologia, ou seja o reconhecimento do  
ser por si.  
De outra parte, predominando o ser como substantivo, o fim da  
ontologia acaba por ser uma forma de ciência, ou seja, a ontologia é novamente  
negada como ocorreu com a ciência moderna, donde sua pretendida auto-  
suficiência, que apenas admite por fundamento uma forma qualquer de  
gnosiologia, isto é, uma forma a priori da operatividade subjetiva,  
desaparecendo, assim, a regência do objeto, o que, ao contrário, caracteriza o  
espírito e o propósito ontológicos, ou seja, o reconhecimento do ente enquanto  
ente, o ón qua ón, ou ser por si.  
Em suma, a ontologia quando centrada no ser como verbo, rarefeita  
pelo vazio de sua forma, termina por ser lógica; por outro lado, quando centrada  
no ser como substantivo, às voltas com gêneros formados por complexos  
qualitativos, termina por se constituir em ciência particular e autônoma. Assim,  
ao pretender ser tudo, concludente, sistemática e independente, por sua forma  
mais vazia, ou por suas categorias abstratas e perenes, a ontologia acaba por  
ser negada, pela lógica ou pela ciência. Pretendendo ser tudo, acaba por  
desaparecer.  
Ora, ao tomar o ser como verbo, a ontologia tem de compreender que  
não pode ser mais do que a anatomia de uma propriedade do ser - de sua  
propriedade mais geral e vazia - a propriedade de sua presença enquanto corpo  
real ausente, ou presença de um complexo categorial abstraído. O ser aqui é  
22  
reduzido à forma mais vazia, a simples propriedade de um todo que escapa  
completamente à sua jurisdição. Donde seu desenlace em lógica.  
De outra parte, quando o ser é tomado em sua denotação substantiva,  
ou seja, na multiplicidade de suas propriedades qualitativas em interconexão  
específica, transborda em ciência, na medida em que a ontologia pretenda a  
condição de disciplina ou ciência sistemática.  
Donde a impossibilidade de a ontologia ficar adstrita à forma do verbo,  
nem se realizar como dilucidação concreta do substantivo. Assim, deve-se  
reconhecer que a ontologia não pode se realizar em nenhum desses dois pólos:  
nem simples tematização do ato genérico da presença - que redundaria em  
simples compósito tautológico, nem tematização do ser substantivo concreto,  
pois aí se desnaturaria em ciência específica.  
Conclusivamente, a ontologia nem é simples tautologia do ser em ato,  
nem efetivação científico-concreta do desvendamento do ser como substantivo.  
Enquanto tal, a ontologia é uma realização necessária no espaço que antecede  
aqueles dois pólos; em verdade a plataforma que leva da constatação mais  
abstrata do ser (tanto como substantivo quanto verbo) à sua reprodução  
científica como substantivo. Enquanto tal é um estatuto - uma filosofia primeira,  
o cânon da legalidade do ser matrizado pelos traços ou vetores categoriais  
fundamentais do ser por si, que matriza a cientificidade tanto em sua forma mais  
abstrata - lógica - quanto em sua forma mais concreta - ciência.  
O problema fundamental da filosofia primeira - philosophia prima - é o  
problema das categorias mais gerais do ser, aí incluso o 'ato de ser', donde em  
sua plenitude o 'ato sensível de ser' - ens e esse, o ens essendi: complexo  
categorial pleno no ato de existir.  
Essa plataforma estatutária não é uma disciplina situada entre outras  
disciplinas, entre a lógica e a ciência, como um campo intermediário entre o  
verbo e o substantivo, entre a máxima abstratividade e a efetividade concreta.  
23  
Essa distribuição topográfica confere à abstração a condição de fundação  
(determinação originária/ontológica) fundamento (ponto de partida  
e
epistemológico). Se assim fosse, perderia a condição de filosofia primeira.  
Enquanto filosofia primeira é o reconhecimento do substantivo verbal,  
do substantivo que é, do ens essendi, não de uma substantividade qualquer em  
abstrato, mas da substantividade que existe por todas as modalidades  
categoriais, isto é, reais (sensíveis); não apenas um substantivo pensado, que  
dependeria para ser do pensamento, mas do substantivo que é por-si,  
independentemente se ser pensado, o que requer o complexo categorial  
da sensibilidade; por isso é que só é ser o ser sensível. Vale dizer, o ser como  
verbo é resultado do ser substantivo, só um sujeito (em suas diversas formas na  
cadeia do ser) é, (só um sujeito existe, é faz, sente, pensa etc. de acordo com  
seu grau na cadeia do ser).  
A ontologia do puro verbo ser, ou das puras essências (complexo  
categorial abstrativante e eterno) é a autonomização das categorias ou da  
existência em relação ao ser e existir reais, às formas reais de ser e existir, são  
as categorias e a existência sem corpo ou sujeito, mais do que isso, são as  
categorias (essência) e existência em geral, universal e abstrata, tornadas  
sujeito, a essência ou a existência abstratas personificadas - e isso são  
puramente figuras do pensamento, o que já é especulação, não ontologia.  
Marx, à semelhança de Feuerbach, só admite como ente, ou melhor,  
como entificação o ens essendi - o ente sendo, o ente no ato de ser, o ente  
revestido de existência atual - objetivo, o ente no exercício da ação ou ato de  
ser, é, portanto, um ente existente, ou seja, o ente que está sendo, o ente no ato  
de existir.  
Donde, do mesmo modo que em Feuerbach, o ser é inseparável de sua  
existência. Ser e existir constituem uma unidade indissolúvel, complexo  
24  
categorial no ato de ser pela atualização do complexo categorial, essência  
determinada e mutável na mutabilidade de ser e ir sendo (essendi)."  
É chegada a hora, depois desta etapa analítica, de vislumbrar qual é o  
cenário em Marx que esse conjunto de questões se coloca. Com esse objetivo, e  
como é típico de seu procedimento investigativo junto aos textos daquele autor,  
Chasin toma para análise o item 1. "O Processo de Trabalho" do capítulo V de O  
Capital. Nele pode-se identificar, em primeiro lugar, a natureza geral (universal)  
da atualização da força de trabalho que se encontra em potência nos indivíduos:  
"A produção de valores de uso ou bens não muda sua natureza geral por se  
realizar para o capitalista e sob seu controle. Por isso, o processo de trabalho  
deve ser considerado de início independentemente de qualquer forma social  
determinada"[x].  
Por que "o processo de trabalho deve ser considerado de início  
independentemente de qualquer forma social determinada?", indaga Chasin. A  
resposta é formulada em estilo direto: "Para não ser perdida a natureza do  
trabalho, sua positividade enquanto atividade humana vital".  
Tem-se nessa passagem, segundo Chasin, "um exemplo do exercício  
de uma ontologia estatutária - a positividade (sua efetividade ou operosidade)  
universal do trabalho enquanto atributo vital e inalienável do homem,  
independentemente de suas formas concretas, que se apresentam na forma do  
trabalho alienado.  
É a determinação universal do trabalho, o traço de sua legalidade  
última, sua determinação mais geral e essencial, dimensão que não desaparece  
nem mesmo sob suas formas concretas mais negativas.  
A ontologia estatutária registra o traço ou rastro dessa dimensão  
permanente, que atravessa as formas concretas em sua efetividade contraditória  
e especialmente desfavorável para o homem enquanto maioria subjugada ao  
longo de toda a pré-história da humanidade.  
25  
Permanente, mas permanente processual, mutável, diversamente  
positivo, quantitativa e qualitativamente, em cada uma das formas concretas em  
que o trabalho aparece nas configurações sociais determinadas.  
Nesse sentido abstratamente permanente, abstratamente positivo, mas  
onde essa abstratividade não corresponde a uma simples determinação  
conceitual. Corresponde a uma efetividade em sua figura própria em cada forma  
social determinada.  
À ontologia estatutária compete o reconhecimento dessa dimensão mais  
geral, base para a decifração científica concreta dos casos efetivos, que por sua  
vez confirmam ou não criticamente a determinação mais geral, ontológica. Não  
há, portanto, um abismo separando ontologia de ciência, mas a continuidade de  
momentos distintos de uma mesma unidade de conhecimento, que interagem e  
se medem reciprocamente, se apóiam, estimulam e criticam um infinito processo  
constitutivo das certezas."  
Continuando a análise do texto marxiano, tem-se a descrição do  
trabalho e o reconhecimento analítico de sua natureza: "Antes de tudo" [aqui  
Chasin faz uma pequena observação, assinalando: "ou seja, na raiz, em seu  
fundamento, diria uma linguagem mais convencional e ciosa de suas  
pretendidas atribuições"], "o trabalho é um processo entre o homem e a  
natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula,  
controla seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a  
matéria natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua  
corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de se apropriar da matéria  
natural numa forma útil para a sua própria vida. Ao atuar, por meio desse  
movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao  
mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nela  
adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio[xi]."  
26  
Observe-se que, diz Chasin, "ao trabalhar, ao mudar a forma da  
natureza, ao construir sua própria mundaneidade, o homem, ele próprio, por  
meio de seu próprio trabalho, transforma a sua própria natureza. Ou seja, de ser  
natural para social; eis um novo exemplo de lineamento reconhecido e recolhido  
à ontologia estatutária."  
Prosseguindo na especificação, Marx afirma:"Pressupomos o trabalho  
numa forma que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa  
operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um  
arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que  
distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o  
favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de  
trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do  
trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação  
da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu  
objetivo, que ele sabe que determina como lei, a espécie e o modo de sua  
atividade e ao qual tem de subordina sua vontade. E essa subordinação não é  
um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade  
orientada a um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de  
trabalho, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e  
pela espécie modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto  
menos ele o aproveita como jogo de suas próprias forças físicas e espirituais"[xii].  
Chasin chama atenção para as seguintes observações:  
"1) a prévia-ideação do resultado (do fim), a existência ideal do mesmo  
na imaginação; donde o objeto ou um complexo categorial in mente e ante  
res[xiii].  
Prévia-ideação e teleologia são ou podem ser momentos confluentes,  
mas não são idênticos: a prévia-ideação está no começo e é um desenho ideal  
que implica o conhecimento da espécie e do modo da atividade a realizar,  
27  
conhecimento das malhas causais; teleologia é simplesmente finalidade, fim,  
objetivo, podendo se apresentar de modo meramente volitivo e bem abstrato,  
não mobilizante dos ou sem os meios de sua realização, ou seja, ter teleologia  
sem prévia-ideação não conduz a nenhum processo de trabalho. Quero assinar  
que o termo teleologia pode ser demasiado vago, no sentido de mero conceito  
filosófico convencional, nesse sentido apenas alusivo e não instrumentador de  
operações na esfera da atividade sensível. Pode ser entendido mais como  
manifestação de espírito do que como exigência de efetuação, de mudança de  
forma da matéria natural e objetivação de propósito. E de toda forma indica  
antes de tudo que o fim, o realizado, está no fim do processo; fala do obtido ou  
do a ser obtido, nada nos diz da travessia que realiza, da travessia que passa do  
ideal para o real, não nos fala da mobilização ideal e material necessárias.  
Quando a teleologia se manifesta como resultado, já não é preciso dizer mais  
nada a respeito. Basta saudar e usufruir de sua aparição que nada tem de  
mágica ou misteriosa, mas antes de reconhecê-la como produto das  
metamorfoses de subjetividade e objetividade. Ou seja, em suas distintas  
naturezas, inconfundíveis enquanto tais, objetividade e subjetividade são  
entificações na mundaneidade humana e nessa qualidade estados ou momentos  
do ser social, momentos regidos pela atividade ideal e sensível do mesmo.  
Penso que Lukács ao transpor a questão para a linguagem filosófica  
tradicional pode ter dissociado demais fins e meios, o que não é o caso dos  
textos de Marx. Por isso Lukács se vê obrigado depois a buscar a rearticulação  
entre teleologia e causalidade, e nisso encontre não poucas dificuldades (como  
uma passa para outra e vice-versa; parecendo que lida ao limite com  
substâncias incomunicáveis, não as compreendendo em suas metamorfoses) e  
deixe que se perca certa substância da questão, antes de tudo o interfluxo entre  
objetividade e subjetividade com seus distintos momentos preponderantes em  
cada um dos passos dos momentos embricados dos processos. Creio que as  
duas esferas ficam sempre, tradicionalmente, um tanto estranhas uma em  
28  
relação à outra, seja para preservar a objetividade, e aí se torna objetivista, seja  
para ressaltar a subjetividade, e aí desliza para o subjetivismo.  
2) No fim do processo tem-se seu resultado, que é a transformação da  
forma de uma dada matéria natural, e a realização do objetivo do trabalho, que  
existiu antes como preconfiguração ideal. Portanto, o trabalho transforma  
imagem ideal em ente real, complexo categorial in rebus.  
Em suma, no pensamento de Marx, as categorias ou complexos  
categoriais são reconhecidos sob as três formas: in mente (existem idealmente  
na imaginação, ou como reprodução mental das coisas, categorias da  
representação), ante res (prévia-ideação) e in rebus, como efetividades, quando  
estão na 'forma de ser'." Como confirmação tome-se mais esta passagem do  
mesmo capítulo: "No processo de trabalho a atividade do homem efetua,  
portanto, mediante o meio de trabalho, uma transformação do objeto de  
trabalho, pretendida desde o princípio. O processo extingue-se no produto. Seu  
produto é um valor de uso; uma matéria natural adaptada às necessidades  
humanas mediante transformação da forma. O trabalho se uniu com seu objeto.  
O trabalho está objetivado e o objeto trabalhado. O que do lado do trabalhador  
aparecia na forma de mobilidade aparece agora como propriedade imóvel na  
forma do ser[xiv] do lado do produto. Ele fiou e o produto é um fio"[xv].  
Como arremate analítico dessa famosa, mas muitas vezes mal  
compreendida passagem de O Capital Chasin conclui, ao mesmo tempo em que  
visualiza uma nova tarefa: "Se assim é, se as categorias podem aparecer nas  
três formas - in rebus - in mente - ante res - há então que determinar o que são  
cada uma dessas formas."  
Esquematicamente, Chasin propõe o seguinte:  
"1) se estão in rebus (nas coisas), estão na 'forma do ser';  
29  
2) se estão in mente (na cabeça), estão na forma da reprodução ideal  
das coisas. Trata-se da subjetividade receptora[xvi] que reproduz 'as coisas', não  
captando apenas seus dados empíricos, superando, pois o empirismo e elabora,  
portanto, a reprodução ideal dos entes, e onde a subsunção aos objetos é a  
atividade de sua elaboração ideal.  
3) se estão ante res (antes das coisas), estão na forma da finalidade, da  
prévia mentalização de objetivos e meios."  
Porém, no segundo e terceiro casos "as categorias estão na forma de  
espécies de pensamento: representações e projeções do ser, do vir-a-ser, dos  
meios materiais, instrumentais, processuais e dinâmicos de entificação dos  
seres".  
Concluindo essa parte: "dizer, pois que o homem e o mundo são  
atividade sensível, que por criar seu mundo cria a si mesmo, é determinar o  
homem como a criatura criadora de seres."  
No entanto, na medida em que apenas na configuração histórica regida  
pela lógica do capital, ou seja "na plenitude da produção da riqueza, entendida  
por sua essência subjetiva que é o trabalho", que se atinou para determinação  
do homem como a criatura criadora de seres, foi possível à "reflexão pode se  
dar conta, potencialmente da verdadeira problemática do ser."  
Em outras palavras, "é pela crítica ao criador de criaturas na forma da  
alienação - crítica marxiana à sociedade capitalista - é que a ontologia pode  
atinar com seu verdadeiro objeto e modo de determinação. Não é casual que  
tenha emergido pela crítica feuerbachiana ao sistema hegeliano (a criação  
especulada dos entes) e ganho seus contornos efetivos no advento de uma  
nova forma de pensamento e concepção de prática - a doutrina de Marx."  
Resumindo, "no caso de Marx, ontologia é estatuto ou filosofia primeira  
do ser social que, enquanto tal, norteia a concreção científica do mesmo, cuja  
30  
realização corrige e enriquece o próprio estatuto, donde a sinergia e a recíproca  
dimensão crítica entre estatuto ontológico e ciência da história em seus diversos  
departamentos possíveis, estabelecidos já por critério ontológico, ou seja, que  
respeita a integridade das coisas em suas qualidades e processos interconexos,  
que as constituem em seu ser por si e enquanto tais são reproduzidas  
teoricamente.  
Enquanto estatuto, código ou plataforma da legalidade objetiva (material  
e espiritual) do ser social, ou seja, enquanto malha de asserções ou  
determinações de seu complexo categorial, enquanto o permanente na forma de  
processo,  
a
ontologia estatutária tem de reconhecer  
e
expor  
a
sociabilidade como substância desse grau máximo da cadeia do ser.  
Mas, substância como complexo categorial, como síntese de categorias  
essenciais que denota uma forma específica, determinada de presença ou  
existência plenamente qualificada.  
Por isso é estatuto ontológico, pois a plataforma canônica do ser é o  
código do substantivo verbal como substância substrato); assim o estatuto  
ontológico do complexo substantivo do ser social deve reconhecer a  
sociabilidade como substância. A sociabilidade como substrato dos homens,  
seja na forma da alienação, seja na forma de sua latência de substancialidade  
em vir-a-ser no caminho infinito de sua realização."  
Trata-se, portanto, em Marx de estatuto e não sistema, pois como  
sistema seria "um agregado de abstrações, uma filosofia que, uma vez obtidas  
noções fundamentais, passa a se edificar por si, ou seja, as noções seriam  
coágulos inteligíveis que passam por auto-sustentação a configurar  
dedutivamente o mundo. Ao passo que estatuto é uma ordem, a legalidade do  
ser  
sensível  
-
o
ser  
na  
plenitude  
de  
seus  
atributos:  
tempo  
(história/processo/duração/mutabilidade), lugar  
e
sensibilidade,  
especificamente a legalidade do ser social, imanente a si, em sua específica  
31  
objetividade. O ser sensível é a forma do ser porque é a plenitude das  
categorias possíveis."  
E as formações ideais?  
Segundo Chasin, as formações ideais do mesmo modo que as  
formações reais - formas do ser - têm lugar e tempo como categorias, - o tempo  
e o espaço das formações sociais que são engendradas, mas estão privadas de  
sensibilidade.  
"O sensível só é predicação, inerência, à forma do ser, que contém a  
plenitude dos predicados possíveis (sensibilidade, espaço, tempo...).  
Essa forma de conceber o ser é reconhecer substancialidade ao  
complexu, à unidade totalizada, ou seja, ao conjunto pleno de atributos em ato."  
Em outras palavras, "ser é complexo categorial - tem a forma de ser -  
completude ou forma conferida pelo sensível, que se desdobra em múltiplos  
atributos e se condensa de infinitas maneiras no gradiente do ser."  
Em suma, segundo Chasin, tomando Marx como base e ponto de  
referência permanentes, ser é plenitude categorial, ou seja, a plenitude  
categorial é sua forma e, por ser sensível, compreende lugar e tempo.  
"Donde, se admitido o princípio metódico de Marx, saber é saber do ser,  
que antes de tudo é um complexo sensível - tudo que é, existe, é sempre um  
complexo, não uma substância ou essência pura e cristalina. E a cadeia do ser é  
o conjunto de graus do ser - do menos ao mais complexo.  
O preceito metodológico marxiano é pois ontológico: sabe-se o que é,  
como se formou, se desenvolveu e como deperecerá."  
Por via de conseqüência e diante das vicissitudes da história da  
ontologia, "de seu processo constitutivo e dissolutor, diante da penosa rota da  
32  
conquista teórica do real, homóloga ou equivalente à necessidade humana de  
produzir a sua mundaneidade e a si mesmo, a ontologia é o que pode ser - o  
que não é pouco - a esfera teórica da incerteza propulsora, positiva  
afirmativamente organizada. O patamar do incerto ordenado como plataforma da  
busca infinita da certeza. Impulsão incontornável, que não pode ser eludida pela  
presença imperativa dos circuitos ontopráticos."  
Talvez, agora, o estatuto ontológico marxiano possa ser enunciado do  
seguinte modo: "é o estudo das categorias fundamentais - em traços essenciais  
abstratos, em suas determinações mais gerais - da existência social  
historicamente constatada e reconhecida, sendo possível exemplificar com as  
seguintes categorias: historicidade, (processualidade ou mutabilidade),  
concreticidade ou objetividade, atividade sensível e ideal (trabalho e  
reprodução), subjetividade (receptiva e proponente), valor, individualidade,  
gênero (sociabilidade). Tudo isso perfilando o complexo de complexos da auto  
realização do ser humano-societário, entendido que o fim dos fins é a infinitude  
da realização do humano - do autopor-se do aberto ser humano-societário."  
Estatuto que, em outros termos, "é a ordem do reconhecimento ou  
reprodução teórica da identidade, natureza e constituição das coisas por si, por  
seus complexos categoriais decisivos, independentemente, em qualquer plano,  
de se tornarem objetos de prática ou reflexão."  
Enquanto tal "é a teoria do reconhecimento da objetividade histórico-  
social imanente em suas distintas formas de apresentação (natureza e  
sociedade). Em termos muito breves: é o momento mais abstrato do  
reconhecimento da identidade das coisas por si, enquanto tal um dos momentos  
distintos da unidade do saber, do qual participa um segundo, sob forma  
concreta, que é a ciência."  
Pela própria natureza histórica, processual do ser "a ontologia marxiana  
não corresponde, nem poderia corresponder, por simples imperativo de  
33  
coerência, à forma de um saber universal plantado sobre uma racionalidade  
auto-sustentada, ou seja, fundado na razão universal, nada mais a versão laica  
ou profana de Deus no dizer de Feuerbach. Ou seja, trata-se, enfim, de uma  
forma de ontologia sem parentesco com o saber absoluto e que recusa qualquer  
tipo de fundamento especulativo, pois absolutização de uma teoria da  
fundamentação é simplesmente a firmação especulativa da razão autônoma ou  
de um princípio de inteligibilidade situado para além das coisas, que garante a  
presença e o conhecimento do sagrado e a vitória antecipada do idealismo. Não  
correspondendo à qualquer forma de saber universal, a ontologia marxiana  
sustenta a possibilidade efetiva, como já vimos, de um saber real.  
Por sua prática teórica e por um conjunto de lineamentos explícitos,  
Marx deixou o legado de um específico estatuto ontológico, não um ontologia de  
talhe convencional ou tradicional, e não apenas por que careceu de tempo  
necessário para a realização de uma obra desse tipo, mas fundamentalmente  
pela distinção de natureza de seu estatuto ontológico, radicalmente oposto ao  
tratamento especulativo da matéria.  
Esse estatuto é constituído a partir do universo prático onticamente  
referido, ou seja, é um estatuto ôntico-ontológico, pois evolve da efetividade  
histórica das coisas, de suas relações e processos para sua reprodução  
conceitual, no plano de uma trama categorial em sua expressão mais abstrata."  
Reconhecimento e Determinação da Sociabilidade como Substância:  
Vimos que segundo Chasin, "enquanto estatuto, código ou plataforma  
da legalidade do ser social, em sua materialidade e espiritualidade[pode-se dizer  
também em sua objetividade sensível e supra-sensível], ou seja, enquanto  
malha de asserções ou determinações de seu complexo categorial, a ontologia  
34  
estatutária tem de reconhecer e expor a sociabilidade como substância desse  
grau máximo do ser."  
Embora Chasin não tenha desenvolvido plenamente a questão da  
objetividade supra-sensível, como também a da sociabilidade como substância,  
julgo conveniente transcrever também algumas notas e comentários feitos em  
sala de aula, dada a importância do tema.  
Em relação à noção de substância, Chasin retoma sua noção mais geral  
e tradicional. Ou seja, "deixando de fora qualquer conotação relativa a formas de  
idealidade, o que existe por si é um auto-engendrado, a última instância de um  
dado gênero de entificação; enquanto tal, na medida em que é uma efetividade,  
é um complexo, que a noção de substância refere no mais alto grau de  
abstração. Vale, pois, como abstração razoável, tal como todo conceito  
marxiano nesse nível de generalização, a partir do qual, pela via dos processos  
de concreção, são determináveis as formas concretas de substância,  
correspondentes às formações sociais reais.  
Dessa forma, a substância é um complexo histórico, não uma  
idealidade, não um construto da razão auto-sustentada, mas o resumo de uma  
extração justificada."  
Naturalidade e Sociabilidade  
Sempre que se põe a questão da naturalidade e da sociabilidade, essa  
última "tende a ser examinada in statu nascendi, ou de um 'estado original  
imaginário', não se parte, portanto, de fatos, pois os desconhecemos, se é que  
35  
tenham existido, mas de um mito. E do mito se quer saltar para o quadro de uma  
realidade complexa.  
Mas, acompanhando Marx, lembremos das 'pobres robinsonadas do  
século XVIII' referidas logo às primeiras linhas da 'Introdução de 57': a) 'O  
caçador e o pescador, individuais e isolados de que partem Smith e Ricardo '; b)  
'o contrat social de Rousseau, que relaciona e liga sujeitos independentes por  
natureza, por meio de um contrato'. Essas robinsonadas não 'repousam sobre  
(o) naturalismo'. E a argumentação prossegue: Trata-se, ao contrário, de uma  
antecipação da 'sociedade' (bürgelichen Gesellschaft), que se preparava desde  
o século XVI, e no século XVIII deu larguíssimos passos em direção à sua  
maturidade. Nesta sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece  
desprendido dos laços naturais que, em épocas históricas remotas, fizeram dele,  
um acessório de um conglomerado humano limitado e determinado. Os profetas  
do século XVIII sobre cujos ombros se apóiam inteiramente Smith e Ricardo,  
imaginam o indivíduo do século XVIII /.../ como um ideal que teria existido no  
passado. Vêem-no não como um resultado histórico, mas como ponto de partida  
da História, porque o consideram como um indivíduo conforme à natureza -  
dentro da representação que tinham da natureza humana -, que não se originou  
historicamente, mas foi posto como tal pela natureza'"[xvii]  
.
Segundo Chasin, tomando Marx novamente como ponto de referência,  
os equívocos que aparecem ao se tratar a relação naturalidade sociabilidade  
são os seguintes:  
1) procurar deduzir em graus diferentes em cada caso, o ser social do  
natural, esquecendo que se trata da emergência do novo, de uma configuração  
ontológica nova, e que o novo nunca é um simples desdobramento do estágio  
anterior, no caso - do grau de ser antecedente, ou seja, que entre os dois níveis  
ocorre o que se chama de salto, um intervalo em que a potência causal do  
antecedente não contém a capacidade, a potência, ou a potencialidade para  
gerar o novo. Um intervalo que fica, assim, indeterminado.  
36  
2) o procedimento acima abre para a mera especulação, pois, tende a  
deduzir a indeterminação, a querer estabelecer nexos onde eles inexistem,  
tende a preencher o que de fato é um vazio. A rigor não se trata de um não-  
sabido, mas da ausência factual de um objeto ou processo, em outros termos,  
se trata de um vazio ontológico, de uma ausência de nexos ontológicos.  
O correto segundo o modus operandi marxiano não é partir da semente  
ou do embrião, mas do complexo real maturado, uma vez que,  
especialíssimamente na esfera social, a lógica do gerado é diversa da lógica de  
sua gênese, além de que, nesse âmbito, as entificações configuradas apagam a  
rota e a lógica de sua formação.  
Desse modo, partindo do já configurado, e considerando que se trata de  
uma configuração infinita, que compreende mutações qualitativas muito  
importantes, e não esquecendo que permanecemos no estágio pré-histórico (em  
momento especialmente desequilibrado e contraditório), podemos e devemos  
reconhecer, por meio de algumas abstrações razoáveis, o seguinte:  
1) A formação do ser social é um processo da animalidade à  
hominidade, o andamento da naturalidade à sociabilidade; o caminho infinito da  
naturalidade dada à sociabilidade não-dada, em produção e reprodução  
perenes.  
2)Trata-se, pois, de uma entificação processual entre dois níveis ou  
pólos da escala do ser; sendo processo é intrinsecamente uma contradição e só  
enquanto tal se move: eliminada a contradição, cessaria a possibilidade do  
processo. Com isso é dito algo muito importante, pois, ao reconhecer a  
contraditoriedade entre naturalidade e sociabilidade, não é mais possível pensar  
as mesmas, a propósito do ser social, como um simples conjugado de fatores,  
mas obrigatoriamente como uma conjugação contraditória de legalidades. Isso  
vai na esteira do que é compreendido desde Hegel, - que o ser é uma unidade  
contraditória -, todavia com o acréscimo do problema da dupla legalidade. De  
37  
que modo ou feição chega cada uma delas à unidade contraditória do ser? Pois  
há que pensar na unidade ou síntese, a não ser que se queira desenhar o ser  
social como uma aberração híbrida, pode ser esta a fisionomia do grau mais  
elevado do gradiente dos seres? Assim, tomada na devida consideração essa  
determinação ontológica, sem a qual a reflexão perde o rumo, trata-se de  
compreender a dinâmica específica dessa contradição peculiar. Vejamos.  
3) Em primeiro lugar, esse processo contraditório gera novas  
contradições, agora dominantemente contradições da sociabilidade em  
formação; de sorte que se trata de um processo cumulativo de  
contraditoriedades, no qual as novas contradições, progressivamente, vão  
tomando o lugar predominante e decisivo; vale dizer, a contradição originária,  
cada vez mais coabita com contradições de outro gênero, diante das quais sua  
presença vai mudando de força e configuração, não desaparece, mas sua  
qualidade vai mudando, na proporção mesmo do desenvolvimento da  
apropriação societária da natureza, cada vez mais puramente social, - é no que  
consiste de acordo com as palavras de Marx o 'progressivo afastamento das  
barreiras naturais';  
4) Ou seja, a matriz e a medida do 'afastamento' é a forma cada vez  
mais social de produzir e reproduzir as bases materiais da vida, pela qual é  
gerado o novo ser em direção à sua potência ampliada de se auto-por, de ir em  
direção a si mesmo, um si mesmo que não é dado mas gerado na progressão  
da auto-posição, do auto-assentamento ou da auto-enformação, que inclui a  
própria dação de forma e resolução ao predicado natural ou biológico; dação de  
forma que, em suma, é dação de forma social ao predicado natural.  
5) Essa possibilidade de dação de forma é afirmação e realização da  
essência social que é o 'conjunto de relações sociais', configuradas em cada  
momento pelo modo de produzir da base material, modo, por sua vez, que é  
determinado pelo desenvolvimento das forças produtivas, entre as quais figura o  
próprio modo de organização do conjunto das relações sociais.  
38  
6) Dação de forma é alteração do lugar resolutivo, e todo ente que muda  
de lugar muda de natureza, sem alterar uma célula de sua composição material.  
Vale dizer que a contradição originária entre naturalidade e sociabilidade é  
resolvida por uma nova contradição - a da naturalidade que só se realiza na  
forma e por meios sociais - no 'afastamento' que é superação da naturalidade  
(processo histórico), a legalidade natural é submetida à legalidade social  
(diferentemente em cada modo de produção e de acordo com o  
desenvolvimento das forças produtivas), o fator natural não é suprimido,  
suprimida  
é
sua capacidade de autodeterminação, resta, portanto,  
simplesmente, o que não é pouco, como um predicado do ser humano, um  
predicado insuprimível, mas apenas como predicado biológico de um ser de  
outra natureza e essência. A naturalidade é retida como predicado  
imprescindível, mas não como essência. Donde, não são mais duas legalidades  
ontológicas que coexistem, mas a legalidade superior, mais complexa, subsume  
a legalidade natural, que não mais se autodetermina, mas é resolvida pela e do  
interior da outra. Assim, o predicado natural do homem recebe forma e  
resolução sociais, ou seja, o predicado natural é subsumido à legalidade social.  
Não resta mais o choque de duas legalidades contrapostas na  
contradição originária. A legalidade natural vai sucumbindo na ruptura e  
progressivamente à legalidade social; em sua efetividade no ser social a  
legalidade natural não mais atua por si, é dependente do social, não é mais a  
legalidade de um ser, pois não há mais aí um ser natural, mas um atributo  
natural dependente da essência social. O homem é um ser social que  
compreende sua essência específica (variável), suas contingências e seu  
predicado biológico. Na entificação do ser social, último grau da cadeia do ser, a  
legalidade natural é subalternizada à social, por mais rústica e restrita que seja a  
essência social primitiva, e por mais precária que seja essa subalternização de  
início. O processo de 'afastamento das barreiras naturais' é assim o curso dessa  
subalternização, que desponta no início, na ruptura com a legalidade natural, e  
por mais longo e contraditório em avanços e recuos que seja esse processo.  
39  
7) de outra parte, a lógica do predicado biológico não soluciona, não  
tem resposta para o complexo problemático da sociabilidade, enquanto que esta  
dá solução aos imperativos daquela. Como diz Marx nos Manuscritos de 44, 'o  
homem contempla a natureza e a si mesmo com um produto social '[dos homens  
interativos], com pleno direito, mesmo que não com elevada consciência ou altos  
valores.  
8) Donde, a fórmula lukácsiana da dupla base é falsa, pois a plataforma  
é a sociabilidade, enquanto a naturalidade é apenas o insuprimível predicado  
biológico, que passa a vigir na forma e sob a regência da sociabilidade. Não  
perde, por isso, uma célula de sua composição orgânica, mas na sua efetividade  
muda de caráter. No interiro da esfera societária, o predicado biológico é um  
outro de si. Se originariamente foi o ponto de partida, agora é produzido e  
reproduzido pela legalidade de um ser que o ultrapassa e o domina, vive e só  
pode viver na subjugação de um novo estatuto. Ou seja, ao integrar como  
predicado o ser de nível mais elevado realiza a sua máxima potência e isso é,  
ao mesmo tempo, sua desnaturalização ou perecimento. Imperecível como  
predicado, não é base, pois determina só por seus limites, pelas carências, não  
pelas determinações resolutivas , nem mesmo em suas forças e sentidos, pois  
enquanto virtualidades estas só são humanas e superiores em resolução  
societária. Ademais não é nunca um criador de novas necessidades, o que  
caracteriza a legalidade social.  
9) A argumentação acima diz respeito diretamente ao ser social em sua  
configuração bipolar (indivíduo e gênero), e desenvolvida em especial no pólo da  
individualidade, tendo por esteio o andamento do gênero, e ao falar deste se diz  
do seu metabolismo com a natureza. Esse metabolismo fundamental que é, em  
suma,  
a
atividade vital do homem, ao gerar produtos sociais  
(utilidades/mercadorias), sem que se possa transpor a estes, as mesmas  
determinações que foram feitas para o ser social, desde logo são entes sociais,  
mas em outro grau da escala do ser social mas também têm mudada a sua  
natureza de naturais a utilidades (e na forma da alienação/fetichismo, as  
40  
mercadorias), de sorte que a apropriação da natureza é igualmente sua  
desnaturalização, é forçá-las a deixar de ser o que são em sua peculiaridade,  
para se tornarem um outro de si sob a regência do estatuto societário. Isso é a  
manifestação do poder e da superioridade do grau máximo do ser. Nenhum  
outro ser realiza qualquer coisa semelhante nem longinqüamente. Repetindo  
Kant e Hegel, Marx tinha toda razão quando disse que há mais grandeza e  
mistério na cabeça de um bêbado do que no conjunto do universo.  
10) a Sociabilidade imperfeita, substância ainda não realizada enquanto  
tal, ou seja, ainda incapaz de autonomia, como complexo estruturado, conduz à  
política. Não compreendida como substância, mas como simples organização,  
põe o homem no outro pólo, na dicotomia homem/sociedade, ou seja, na  
representação sociológica ou politológica, o homem é um outro.  
Determinada ou compreendida como substância é substância humana  
(perfeita e imperfeita, com todas as grandezas e misérias produzidas,  
modificadas, suprimidas e repostas no curso histórico), é a essência mutante do  
ser auto-engendrado, e enquanto mutante e por ser mutante, distinta, também  
por essa mutabilidade do predicado biológico, atemporalmente necessário, mas  
sempre e progressivamente insuficiente do ser social."  
*
O tomo IV do primeiro número da Revista Ensaios Ad Hominem é  
composto de seis artigos - além do texto de abertura de autoria de J Chasin -  
que resultaram de sínteses ou modificação de partes ou capítulos de  
dissertações defendidas entre os anos de 1998 e 1999 junto ao Programa de  
Pós-Graduação em Filosofia da UFMG.  
41  
O artigo que abre a presente coletânea, intitulado "A Razão como  
Tribunal da Crítica: Marx e A Gazeta Renana" de autoria de Celso Eidt, versa  
sobre a concepção do jovem Marx sobre o papel da imprensa não apenas como  
o locus privilegiado para o debate filosófico, mas fundamentalmente para os  
processos educativos, tendo em vista a realização plena da liberdade humana. É  
bom ressaltar que no período em que tais artigos são redigidos, Marx  
compartilha de uma visão antropológica racional, em que a natureza humana é  
concebida como espírito livre e racional, enquanto esteio da própria vida ética,  
ou seja, da prática humana fundada na razão universal.  
Ana Selva Albinati, autora do artigo "A Determinação dos Valores  
Morais nos textos de Marx de 1841 a 1847", se debruça justamente sobre tal  
campo de reflexão. Seu trabalho é uma tentativa de sistematização das  
considerações sobre os valores morais nos textos do período que se inicia com  
sua tese doutoral, Diferenças entre as Filosofias da Natureza de Demócrito e  
Epicuro, prosseguindo até A Miséria da Filosofia. Ana Selva procura demonstrar  
que esse período, normalmente referido como sendo o da juventude de Marx, é  
na verdade constituído de dois momentos de sua elaboração teórica, que tem  
como momento de clivagem a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel de meados  
de 1843, em que Marx rompe com o referencial teórico do idealismo alemão. Em  
relação às determinações sobre a moral, essa ruptura se reflete na inflexão  
radical que diferencia a compreensão da moralidade no primeiro e segundo  
momentos, de tal forma que a moralidade passa a ser compreendida como um  
dos modos da consciência socialmente determinada, concepção completamente  
distinta da primeira fase, em que os valores morais eram compreendidos como  
expressões da liberdade e da racionalidade humanas idealmente concebidas.  
No artigo "A crítica da Especulação nas Glosas de Kreuznach", Milney  
Chasin analisa o momento inicial e, ao mesmo tempo, decisivo da ruptura que  
se verifica entre Marx e Hegel no plano das determinações do ser. Desse modo,  
a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel inaugura a crítica marxiana da  
especulação no seu cerne: o de rejeitar o procedimento especulativo  
42  
característico de se provir tudo da idéia real, de torná-la sujeito, isto é, de  
capacitar a abstração ou conceito automovido - a partir das metamorfoses  
hegelianas - de pôr o multiverso sensível. Em outros termos, Milney Chasin, no  
referido artigo, evidencia como a crítica da especulação permite a Marx  
ultrapassar os horizontes do idealismo alemão na direção do devido  
reconhecimento da distinção entre ser e pensar; de caracterizar a impropriedade  
ontológica da lógica hegeliana; de apurar os limites gnosiológicos e  
incongruências de toda ordem. Em suma, permite o desvelamento da substância  
mística, oferecendo a explicitação do método hegeliano - das diabruras do  
conceito autoposto - que articula abstrações e finitude, restando a esta a mera  
condição de apêndice dissolvido, isto é, momento virtual da realização da  
idealidade.  
O quarto artigo desta coletânea intitulado "A Exteriorização da Vida nos  
Manuscritos de 44" é parte da dissertação de mestrado As Categorias  
Lebensäusserung, Entäusserung, Entfremdung e Veräusserung nos Manuscritos  
Economico-Filosóficos de Karl Marx,defendida por Mônica H. M. da Costa, em  
que o interesse era, acima de tudo, averiguar se alienação (Entäusserung) e  
estranhamento (Entfremdung) teriam significados distintos. A pesquisa acabou  
opor apontar, no entanto, uma outra categoria como eixo desses manuscritos:  
Lebensäusserung, traduzida por exteriorização da vida. De fato, o fio condutor  
dos Manuscritos é a centralidade do trabalho na produção material e espiritual  
da vida humana. Tomando para análise crítica, pela primeira vez, os  
economistas clássicos, Marx explicita sua própria compreensão da forma  
peculiar de engendramento da existência do homem. A crítica a Hegel completa  
o quadro desta tematização que não será abandonada até os últimos trabalhos  
de Marx.  
Sabina Maura Silva no artigo "A Fenomenologia do Egoísmo: Stirner e a  
Crítica Marxiana" tem como objetivo fundamental apresentar a concepção de  
homem presente na obra O Único e Sua Propriedade, de autoria do filósofo  
neohegeliano Max Stirner e expor a crítica de Marx a este autor contida em A  
43  
Ideologia Alemã. A autora mostra que para Stirner, o Eu, tomado como  
individualidade singular, é o fundamento de sua esfera existencial. No entanto,  
para esse autor, tudo tem determinado a existência dos indivíduos, não tendo  
sido permitido a eles determiná-la. O objetivo de Stirner é pois remeter ao  
indivíduo - fundamento último e intransponível - o que dele foi alienado e erigido  
como algo autônomo. Por seu turno, a crítica de Marx tem como fim explicitar o  
caráter especulativo da análise stirneana em relação ao homem e ao mundo,  
bem como salientar o aspecto pseudorevolucionário de suas proposituras.  
Assim, segundo Marx, Stirner tão somente interpreta "diferentemente o  
existente",  
isto  
é,  
reconhece  
o
existente  
"mediante  
outra  
interpretação".Transformando as contradições objetivas em contradições  
subjetivas, Stirner conserva e justifica as condições e estruturas efetivas que  
esmagam e impedem a autodeterminação das individualidades, ao reconhecer  
as circunstâncias como determinações dos indivíduos. Acolhendo acrítica e  
especulativamente, em suas feições mais aparentes, as manifestações  
estranhadas de um momento histórico particular da individuação humana,  
Stirner erige como individualidade um ente que, empobrecido e constrangido  
pelas condições objetivas engendradas no curso contraditório da interatividade  
social, pode somente se comprazer com a ilusão de uma potência imaginária  
sobre si e sobre o mundo.  
O último artigo do tomo IV da Revista Ensaios Ad Hominem é de  
autoria de Antônio José Lopes Alves e leva o título de "A Individualidade  
Moderna nos Grundrisse". Neste texto o autor procura demonstrar que a  
moderna sociabilidade do capital é compreendida por Marx como forma  
instaurada a partir da dissolução dos liames sociais que uniam em tempos  
anteriores os indivíduos à comunidade. Além disso, destaca o fato apontado por  
Marx de que tal processo se constitui numa verdadeira reconversão ontológica,  
tanto dos indivíduos quanto das condições da atividade vital, ocorrendo uma  
radical transformação na forma de ser de ambos. Sinteticamente, trata-se de  
reconfiguração ontológica que determina como entes autônomos os indivíduos  
44  
de um lado e as condições de trabalho de outro, vale dizer, do divórcio entre os  
indivíduos ativos e as condições de sua atividade. Antônio Lopes buscou, em  
suma, alinhar as determinações mais essenciais dos indivíduos e da  
sociablidade modernos no que respeita à forma mesma das relações sociais, da  
atividade sensível, bem como da respectiva expressão ideal, como por exemplo,  
a configuração das categorias da igualdade e liberdade.  
O leitor encontrará nas páginas que se seguem o resultado do esforço  
de pesquisa voltado ao resgate da obra marxiana, caracterizado pela busca do  
rigor na leitura e interpretação do pensamento de um autor cuja herança  
intelectual conheceu um destino trágico. Não é fácil, portanto, voltar-se a ela  
"sem os preconceitos da moda" - como já havia advertido Lukács. Não posso  
afirmar com total certeza que um intento dessa natureza tenha sido plenamente  
alcançado. Todavia é fácil perceber as diferenças desse tipo de produção teórica  
com aquela apresentada tanto pelo marxismo adstringido e suas dissidências  
como pelo marxismo vulgar, para utilizar as expressões cunhadas por Chasin no  
intuito de designar as duas variantes de interpretação da obra marxiana.  
Faço aqui ao leitor interessado o convite para participar dessa  
avaliação.  
Professora do Departamento de Filosofia da UFMG, coordenadora  
do Grupo de Pesquisa: Marxologia, Filosofia e Estudos Confluentes.  
45  
J. CHASIN, "Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica" in  
Teixeira, F.J.S. Pensando com Marx, Editora Ensaio, São Paulo, 1995.  
K. MARX & F. ENGELS, A Sagrada Família, Ed. Grijalbo, trad.  
Wenceslao Roces, México D.F., 1960, p. 120.  
Ver a respeito J. CHASIN, "Marx - Estatuto Ontológico e Resolução  
Metodológica" op.cit.  
J. CHASIN, "O Futuro Ausente" in Ensaios Ad Hominem 1, tomo III,  
Estudos e Edições Ad Hominem, São Paulo, 2000, p. 166.  
[v] Ib., p. 167.  
[vi] Id.  
E. CASSIRER, A Filosofia do Iluminismo, Editora da Unicamp,  
Campinas, 1992, p. 11.  
G. LUKÁCS, "La Riproduzione"in Per l'Ontologia delle Essere  
Sociale, Roma, Editori Riuniti, tomo II, 1981, pp. 180-81.  
N. HARTMANN, Ontologia, Fondo de Cultura Económica, México D.  
F., vol. 1, 1986.  
[x] K. MARX, O Capital, vol. I, Edição Abril Cultural, São Paulo, p. 149.  
[xi] Id.  
[xii] Ib., p. 150.  
[xiii] (a respeito dessas categorias ver N. HARTMANN, Ontologia, op. cit.,  
vol. I, p. XII.  
46  
No original alemão 'in der Form des Seins', Dietz Verlag, 1971, p.  
195.  
[xv] Ib., p. 151.  
Ver a respeito em J. CHASIN, Marx-Estatuto Ontológico e  
Resolução Metodológica, op. cit.  
[xvii] K. MARX, op. Cit., p. 126  
47