Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jan./jun. 2020. v. 26. n. 1
Ana Laura dos Reis Corrêa
197
reconhecer imensa semelhança entre seu filho Ezequiel e o amigo morto, e,
sem enfrentar a sua própria dúvida, decide sentenciar esposa e filho ao exílio
na Europa, como forma de manter a violência de sua atitude peremptória sob
os mantos das convenções sociais do sagrado matrimônio.
A razão do livro escrito por D. Casmurro é, segundo o narrador, “unir as
duas pontas da vida”, justificar sua melancolia, seu ensimesmamento em uma
casa que é a réplica de sua casa da infância, o que acaba por demonstrar a sua
incapacidade de agir, já anunciada pela inércia na infância e na juventude de
Bentinho, sempre à sombra do caráter ativo da menina Capitu. Preso na cópia
do passado – suas memórias –, como na cópia da casa materna, Bento Santiago
narra sua transformação em Casmurro, escritor diletante, rico e solitário. A
compaixão que reclama, apoiado nas convenções mais ocas e rígidas, o que lhe
angariou retorno de muitos leitores adestrados nessas mesmas convenções
cristalizadas, é o reflexo de seu mundo vazio e alienado. Como representante
da classe dominante brasileira, Bento Santiago, que sempre viveu de renda,
busca, pela escrita do livro, alcançar o seu verdadeiro objetivo: retorcer e
violentar a realidade segundo a sua vontade minúscula e servil, porém
impositiva e despótica: ser a cópia, sem contradição, de um projeto de vida,
que, embora perdurante, não tem futuro vivo, uma condenação a ser casmurro
que arrasta consigo, e violenta, tudo o que um dia poderia ter sido relação
social viva e humana com Capitu, Escobar, Ezequiel. Essa dimensão local está
articulada a uma causa mais profunda reproduzida pela primeira, como a
réplica da casa original: a condição alienante da vida pequeno-burguesa, que
se impõe como a única vida possível, ainda que seja uma vida casmurra. Bento
Santiago é um personagem escritor, ele narra suas próprias memórias, mas é
incapaz de reconstituí-las como representação viva das forças humanas; assim,
a narrativa das memórias assume a aparência da natureza morta do fetiche:
reprodução unilateral, estática e determinista de um quadro social sem vida,
que esconde, “por trás das categorias reificadas (mercadoria, dinheiro, preço
etc.) que determinam a vida cotidiana dos homens, a sua verdadeira essência,
isto é, a de relações sociais entre os homens” (LUKÁCS, 2010, p. 19). Se for
possível essa articulação entre a situação ficcional específica de D. Casmurro,
em sua dimensão local, e o processo histórico mais geral e concreto de
alienação, perceberemos que Bento Santiago é um narrador não confiável não
apenas porque deforma de maneira interessada os fatos narrados, mas porque
sua narrativa de memórias não pode efetivamente recordar o vivido, pois faz
dele algo ainda mais perdido.
O leitor atento de Memórias póstumas de Brás Cubas, escrito quase
duas décadas antes, contando com a evolução da crítica machadiana que foi
pontuando o caráter não confiável do narrador, não pode deixar de reconhecer
em D. Casmurro, por um lado, essa feição de cópia, uma visão de mundo que
se impõe mesmo em desacordo com a realidade, com os acontecimentos e com