Para uma arqueologia do sentimento estético
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 150-181 - mar. 2022| 173
extraordinário e muito superior ao das culturas posteriores” (LUKÁCS, 1966b, p.
128). Essa é, segundo Lukács, “a essência específica do grande período da pintura
rupestre”, o porquê de sua “prematura imperfeição, única e irrepetível” que a torna,
ao mesmo tempo, realista e carente de mundo (LUKÁCS, 1966b, p. 124). Aqui, outra
vez, nos encontramos diante de um paradoxo, pois, para Lukács, realismo e
amundanidade são, esteticamente, pontas de uma contraposição excludente:
todo reflexo da realidade que não se detenha no nível superficial do
naturalista e imediato, que se oriente à reprodução da totalidade intensiva,
da totalidade das determinações essenciais e sensivelmente manifestas dos
objetos, cria uma espécie de mundo, com intenção ou sem ela. O paradoxo
das obras-primas da pintura rupestre paleolítica consiste em que os animais
reproduzidos, considerados como objetos soltos, parecem possuir essa
totalidade intensiva das determinações, ou seja, uma intenção de
mundanidade, enquanto, ao mesmo tempo, são representados
completamente isolados, em seu abstrato ser-para-si, como se sua
existência não estivesse em interação alguma com o espaço que as rodeia
imediatamente, para não falar de seu ambiente natural. Essas figuras estão,
pois, – artisticamente – fora de todo o mundo, e sua conformação é em
última instância amundanal (LUKÁCS, 1966b, p. 127).
Essa falta de mundanidade nas pinturas rupestres do paleolítico, essa falta de
uma apresentação dos objetos em suas relações com o mundo circundante e com as
relações ambientes, no entanto, não permite que se fale em “mero naturalismo”, em
“mera imitação fiel” ou em “mera imitação fotográfica dos modelos singulares”, pois,
ao menos no caso das grandes pinturas do magdaleniano, a representação sempre
se orienta “energicamente ao típico, e os detalhes resultantes da verdade natural
estão submetidos à hierarquia artístico-realista; sua proximidade com a natureza não
é mais que um veículo para expressar pictoricamente, visualmente, a tipicidade”
(LUKÁCS, 1966b, p. 127). A mesma singularização pictórica que representa os seres
existentes em um “ser-para-si absoluto, isolado”, por outro lado, suscita a ideia de
que existem determinações objetivas que, por não serem representadas, arrancam
tais imagens de sua singularidade e as convertem em “protótipos de si mesmo”
(LUKÁCS, 1966b, p. 127). A soltura de tais figuras seria um sinal de complexidade
ritual, assim como a busca das formações espeleológicas para sua execução – o que
Jean Clottes chamou de “animais imanentes à rocha” (CLOTTES, 2011, p. 197) –
indica que a pesquisa e seleção com finalidade representacional também faziam
parte do trabalho de dar forma a um estado de espírito em que as imagens têm mais
a ver com uma religiosidade fluida do que com o naturalismo que conhecemos da