O caminho de Marx para Hegel: a busca do conceito e a crítica do existente
Hegel aparece algumas vezes no material literário do nosso autor, sempre de maneira
depreciativa8. É bastante provável que Marx só tenha lido, de fato, Hegel em 1837,
portanto, essas menções eram carregadas de preconceito9.
Então, ao invés de enviar organizadamente as informações solicitadas pelo pai,
Marx escreveu, na visão paterna, uma carta fragmentariamente picotada, por isso, sem
forma ou conteúdo e, além disso, o que é ainda mais preocupante, a carta refletia uma
pessoa em conflito interno, dilacerado10. A carta do pai é bastante severa, como se
pode verificar na passagem transcrita abaixo:
Falando francamente, meu querido Karl, não gosto dessa expressão
moderna em que todos os fracos se disfarçam quando brigam com o
mundo, de modo que eles não possuem palácios bem mobiliados com
milhões de carruagens sem todo o trabalho e esforço. Esse
dilaceramento [Zerrissenheit] é repugnante para mim, e eu não espero
isso de você. Que razão você pode ter para estar deste modo? Tudo
não sorriu para você desde o berço? A natureza não o presenteou
maravilhosamente? Seus pais não o abraçaram com amor pródigo?
Você já falhou em satisfazer seus desejos razoáveis? E você, da
maneira mais incompreensível, não ganhou o coração de uma garota
que milhares o invejam? E a primeira adversidade, o primeiro desejo
malsucedido, mesmo assim, produz dilaceramento [Zerrissenheit]! Isso
é força? Isso é caráter masculino? (MARX; ENGELS, 1975b, p. 321,
tradução nossa)
Foi dessa maneira que seu pai respondeu a carta de 1837, texto confuso e, até
certo ponto, enigmático, mas que registra o caminho de Marx para Hegel. O primeiro
tinha consciência que aquele ano marcava uma “nova direção” para a sua vida
8 Cf. uma série de epigramas intitulado “Hegel”, presente no caderno endereçado ao seu pai por conta
do aniversário desse último, no início de 1837, no qual Marx, comparando Hegel a Kant e Fichte, adota
posição favorável aos últimos (MARX; ENGELS, 1975a, pp. 644-6). Ainda, no fragmento do seu romance
humorístico, intitulado Escorpião e Félix, também presente no caderno oferecido ao pai, no capítulo 21,
das “reflexões filológicas”, há uma passagem em que se lê: “De acordo com o exposto, uma vez que
entre os velhos alemães o nome se originava de diversos adjetivos e expressava o caráter de seu
portador – como Krug, o cavaleiro; Raupach, o conselheiro da corte; Hegel, o anão” (MARX, 2018b, p.
20). Interessante perceber que, além de relacionar Hegel à pequenez, os outros nomes que figuram ao
seu lado são de personalidades menores do pensamento alemão, o primeiro Wilhelm Traugott Krug
sucessor de Kant em Königsberg; e o outro é Ernst Raupach, sucessor de Friedrich Schiller. Páginas
adiante, no mesmo fragmento de romance, fica explícita a desdenha de Marx em relação a Hegel: “os
primeiros são demasiado grandes para este mundo; por isso são lançados fora. Os últimos, porém,
deitam raízes e permanecem, como os atos nos mostram, pois o champanhe deixa um perseverante e
repulsivo sabor final, o heroico César deixa atrás de si o ator Otaviano; o imperador Napoleão, o rei
burguês Luís Filipe; o filósofo Kant, o cavaleiro Krug; o poeta Schiller, o conselheiro a corte Raupach; o
celeste Leibniz, o aprendiz Wolff; o cão Bonifácio, este capítulo” (MARX, 2018b, p. 40).
9
Nossa afirmação encontra fundamento na própria carta ao pai, onde lemos que, primeiramente, ele
“havia lido fragmentos de filosofia hegeliana cuja grotesca melodia rochosa” não o agradou; e mais a
frente, na carta, ele diz ao pai que durante sua temporada em Stralow, onde foi se recuperar de um
mal-estar, estudou “Hegel do começo ao fim” (MARX; ENGELS, 1975b, pp. 16-7, tradução nossa).
10
Assim escreve o pai de Marx: “Eu havia escrito várias cartas, algumas das quais solicitavam
informações. E em vez disso, uma carta fragmentária, e o que é ainda pior, uma carta amargurada...”
(MARX; ENGELS, 1975b, p. 321, tradução nossa)
Verinotio
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp.172-219 – jul.-dez., 2024 | 179
nova fase