DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.728  
A função da ideologia e a dinâmica das  
religiosidades a partir da ontologia de György  
Lukács  
The function of ideology and the dynamics of  
religiosities based on György Lukács’ ontology  
Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero*  
Resumo: Este trabalho compreende uma reflexão  
teórica sobre o estudo do fenômeno religioso  
embasada na teoria social marxista. O objetivo  
proposto se concentra em demonstrar que as  
formas ideológicas especificamente religiosas se  
tornam forças materiais de transformação ou  
conservação do mundo social. A questão é  
pensada desde o estatuto teórico marxiano, o  
qual fundamenta uma ontologia histórico-  
imanente reelaborada por Lukács. A partir da  
obra tardia do autor húngaro, expõem-se  
brevemente as categorias centrais do complexo  
da religião, enfatizando o papel desempenhado  
pelo estranhamento religioso. A abordagem da  
questão religiosa aqui proposta se mostra  
radicalmente avessa às principais tendências  
presentes nesse campo de estudos, oferecendo  
a possibilidade de se compreender a temática  
tomando o próprio homem e suas relações  
objetivas enquanto ser social como ponto de  
partida.  
Abstract: This work comprises a theoretical  
reflection on the study of the religious  
phenomenon based on Marxist social theory.  
The  
proposed  
objective  
focuses  
on  
demonstrating that specifically religious  
ideological forms become material forces of  
transformation or conservation of the social  
world. The question is considered from the  
Marxian theoretical statute, which bases a  
historical-immanent ontology re-elaborated by  
Lukács. Based on the late work of the Hungarian  
author, the central categories of the complex of  
religion are briefly exposed, emphasizing the  
role played by religious estrangement. The  
approach to the religious issue proposed here  
is radically contrary to the main trends present  
in this field of studies, offering the possibility of  
understanding the theme by taking man himself  
and his objective relationships as a social being  
as a starting point.  
Keywords: Karl Marx; György Lukács; religion;  
ontology; estrangement.  
Palavras-chave:  
Karl Marx; György Lukács;  
religião; ontologia; estranhamento.  
“[…] um clamor de novos gritos e prantos encheu a atmosfera, não  
eram os anjos chorando sobre a desgraça dos homens, eram os  
homens enlouquecendo debaixo de um céu vazio.” (José Saramago, O  
evangelho segundo Jesus Cristo)  
O breve estudo que ora se apresenta objetiva delinear os princípios da  
concepção ontológica materialista a partir de Marx e das contribuições do último  
Lukács no que tange ao estudo da problemática das religiosidades. Busca, pois,  
*
Professor Doutor da Universidade do Estado de Minas Gerais, Ibirité, Minas Gerais, Brasil. Mestre em  
Estudos Literários pela FCLAr - Unesp e Doutor em Letras: Estudos Literários pela UFMG. E-mail:  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2 jul.-dez., 2024  
nova fase  
 
A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
contribuir efetivamente com análises que perscrutem as determinações sócio-históricas  
da religião, sem as quais a dinâmica de sua produção ideológico-cultural1, nos parece,  
não pode ser efetivamente apreendida.  
Nesse sentido, convém sinalizar a resolução teórica fundamental aqui adotada,  
ou seja, a proposição de se abordar a religião enquanto fenômeno ideológico, nos  
termos do que preconiza Ciro Flamarion Cardoso (2005, p. 223): “[e]m minha opinião,  
o conceito de ideologia continua sendo o enfoque metodologicamente mais profícuo  
para a análise histórico-social das religiões [...]”. Sob esse viés, o autor se remete à  
obra do antropólogo Stephan Feuchtwang, que contesta teoricamente o tratamento  
dispensado às religiões por aquelas correntes analíticas que tomam ainda que  
implicitamente a crença no sobrenatural e no sobre-humano enquanto variáveis  
independentes; como se produções culturais tais quais a religião, o mito e o ritual  
constituíssem fenômenos que se autodefinem (FEUCHTWANG, 1977).  
Obviamente, uma tal proposição implica, a princípio, o reconhecimento crítico  
de que a abordagem marxista da religião enquanto ideologia constitui um postulado  
teórico notoriamente recessivo no contexto acadêmico das últimas décadas. Tal cenário  
pode ser relacionado a uma extensa gama de fatores, dentre os quais, entretanto,  
interessa-nos destacar o inequívoco pendor ao reducionismo mecanicista na análise  
da ideologia e, por consequência, da religião que se sobressai em parte  
expressiva da tradição materialista dedicada a essa temática ao longo do século XX;  
assim como o próprio soterramento dos fundamentos filosóficos da teoria social  
marxiana sob camadas e camadas de marxismos, o que engendrou e engendra —  
leituras empobrecidas e empobrecedoras da dialética concreta da realidade.  
Via de regra, as inconsistências gravitam em torno das clássicas noções  
gnosiológicas de ideologia como falsa consciência e reflexo distorcido da realidade.  
Essas têm sido, por sua vez, extraídas e generalizadas arbitrariamente a partir de  
análises concretas de formações ideológicas específicas sugeridas por Marx e Engels  
principalmente em algumas passagens de A ideologia alemã (2007 [1846]) e  
cultivadas como máxima irretocável e absoluta por um séquito considerável de  
marxistas.  
Naturalmente, combinar a teoria social marxista com o estudo da dinâmica  
religiosa não parece, definitivamente, um projeto muito auspicioso quando pensamos  
1
Por cultura entendemos o complexo arcabouço de produções ideológicas de determinada sociedade  
sedimentadas pelo transcurso histórico.  
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nas tendências hodiernamente em voga em nossas universidades e centros de  
pesquisa. Parece-nos, todavia, um movimento esperável dadas as atuais condições  
sócio-históricas. Com efeito, vem se notando, de modo geral, um movimento tênue,  
mas significativo de recuperação das tradições marxistas em seus diferentes e  
amiúde incompatíveis matizes, no bojo de um esforço teórico e prático de se fazer  
frente à crise socioecológica (e, consequentemente, ideológica) estrutural e  
generalizada engendrada pelo capitalismo que hoje coloca em xeque a própria  
continuidade da existência humana.  
E como não poderia deixar de ser, quanto mais se aprofunda o abismo tanto  
mais se abarrotam os templos o mercado de lenitivos e soluções imaginárias para  
catástrofes concretas se expande às maravilhas; e assim os estudos das religiosidades  
também têm ganhado proeminência perante o que parece ser uma complexificação  
generalizada desse campo na atual conjuntura global. Logo, as expectativas pueris  
depositadas na vitória da razão triunfante e dos avanços tecnocientíficos sobre o  
pretenso obscurantismo das religiosidades se veem reduzidas a pó, ratificando a  
necessidade de repensarmos a questão profundamente. Soma-se a isso, inclusive no  
Brasil, o pronunciado pendor para a expansão de segmentos e setores religiosos  
ativamente dedicados ao exercício de variados tipos de violência, de toda sorte de  
discriminação, da manipulação midiática das massas subalternizadas e da intervenção  
política e econômica em favor da manutenção do poder e dos privilégios das classes  
dominantes. Tal cenário tem fomentado essa bem-vinda expansão da atuação de  
pesquisadores de diferentes áreas e perspectivas com relação à temática das  
religiosidades; e, nesse horizonte, consideramos que a contribuição marxiana é  
incontornável.  
O leitor poderia, ainda assim, se perguntar por que essa teoria social,  
aparentemente desusada nos estudos acerca do fenômeno religioso, deveria ser, no  
presente, objeto de reflexão. Bem, replicaríamos a essa indagação afirmando que tal  
linha investigativa se justifica, acima de tudo, pelo fato de demonstrar uma  
especificidade e uma radicalidade únicas, sem paralelo com outras abordagens da  
questão. Boa parte das perspectivas adotadas no estudo das religiosidades toma como  
ponto de partida a crença dos homens em seres e poderes sobrenaturais, sem se  
perguntarem, por exemplo, o porquê eles creem. Já outra abordagem tradicionalíssima  
do fenômeno religioso predominante entre os marxistas parte da referida  
perspectiva gnosiológica: consideram-se as formas religiosas como falsas crenças,  
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fruto da ignorância e da manipulação, que se opõem às verdades produzidas por um  
conhecimento científico pretensamente neutro e completamente objetivo. Ambas as  
abordagens se mostram avessas àquela que, a partir da recuperação de Marx efetuada  
por Lukács, aqui desenvolvemos.  
Subscrevemos  
uma  
concepção,  
de  
filiação  
filosófica  
marxiana,  
epistemologicamente realista ou ontologicamente materialista. Isso significa dizer que  
não se trata de elaborar ou definir metodologicamente, a priori, as formas ideais e os  
artefatos conceituais que se julguem mais apropriados para a interpretação da  
realidade que se quer conhecer como, em geral, o fazem as tradições teóricas  
devotadas ao estudo do religioso , mas, antes, de partir do próprio real, enquanto  
unidade ontológica cuja raiz material objetiva precede o pensamento, para, por meio  
deste, buscar capturar a lógica das coisas em si mesmas. Em Marx, inexistem  
apriorismos teórico-metodológicos, e os únicos pressupostos de que se parte são: “os  
indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles  
já encontradas como as produzidas por sua própria ação” (MARX; ENGELS, 2007, pp.  
86-7).  
Nessa perspectiva, buscamos o diálogo com a obra tardia de György Lukács.  
Realizamos, pois, uma exposição e interpretação mínimas dos complexos categoriais  
desenvolvidos pelo autor a partir da obra marxiana, tentando demonstrar como sua  
ontologia histórico-imanente do ser social possibilita a compreensão da religião  
centrada na função por ela desempenhada no seio das sociedades atravessadas pelas  
contradições de classes. Avança-se, ademais, com o fito de desnudar o fenômeno  
religioso a partir de uma análise genética, isto é, por meio da identificação da dialética  
histórica que engendra as categorias ideológicas próprias da religião em sua  
constituição objetiva.  
Assinalamos de antemão que nossa análise de modo algum se restringe à  
descrição, pretensamente neutra, da aparência dos fenômenos aqui considerados; ao  
revés, perfazendo-se mediante a compreensão de que o espírito religioso paira sobre  
o estranhamento desumanizado e desumanizador do homem enquanto negação do  
próprio homem, ela se quer crítica. E quer-se não como ponto de chegada do estudo  
da problemática em pauta, mas como pequena e modesta contribuição à decifração da  
gênese, da necessidade social e do desenvolvimento históricos da religião, a partir da  
análise do aglutinado de seus próprios nexos constitutivos, o que permite entrever,  
oxalá, as condições de sua superação. Em última instância, o que também aqui se  
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almeja é demonstrar que, sócio-historicamente, as ideias religiosas se tornam forças  
materiais de transformação ou conservação do mundo em diferentes gradações e sob  
distintas formas fenomênicas.  
A dimensão ideológica na ontologia lukacsiana  
Desde um ponto de vista de uma formulação teórica preliminar de caráter  
formal diríamos que a religião se manifesta, enquanto produção ideológica, como  
um conjunto coordenado de formas discursivas (internas e externas) e práticas  
relativamente estáveis; as quais sintetizam, expressam, performatizam e veiculam  
significados parcialmente coerentes, uma vez que são sempre portadores de  
contradições imanentes assim como se articulam de modos mais ou menos conflitantes  
com outras unidades discursivas e práticas, seja no interior de seu próprio sistema  
seja no de seu complexo cultural distinto, ou mesmo na interação com outras  
dimensões da totalidade social com relação às quais se desenvolve de maneira  
conjugada e desigual, mas sempre reflexiva.  
Todavia, de forma abstrata, uma tal definição poderia ser aplicada a formações  
ideológicas várias, de maneira indiscriminada, o que parece implicar que as  
particularidades essenciais da categoria religião não residem puramente no âmbito  
das formas fenomênicas genéricas que ela assume em diferentes contextos sócio-  
históricos. Isso posto, não se pode assumir, diante de tais fenômenos, uma postura  
reificadora, que oblitere o processo, no seio do ser social, de que tais formas são  
expressão inalienável. Em sentido inverso, faz-se necessário reconstituir  
ontologicamente as determinações sociais concretas a partir das quais as diversas  
expressões religiosas se cristalizaram e, dinamicamente, evoluíram ao longo de seu  
transcurso diacrônico.  
Acima de tudo, parece-nos imprescindível retornar, na investigação do  
fenômeno religioso, à categoria ideologia; mas, mais especificamente, ao modo como  
a concebe Marx em sua fase madura. Referimo-nos aqui, principalmente, à célebre  
passagem de Contribuição à crítica da economia política (2008 [1859]), em que o  
pensador alemão propõe uma definição de cariz funcional avessa ao reducionismo  
gnosiológico que prima pela compreensão do papel social desempenhado pelas  
elaborações ideológicas independentemente da veracidade objetiva de seus  
conteúdos.  
Tal tarefa pode ser melhor empreendida por meio do recurso às proposições  
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de György Lukács, cuja obra tardia oferece o desenvolvimento teórico mais consistente  
e coerente com a obra marxiana no que toca à compreensão do fenômeno ideológico-  
religioso. O autor húngaro contrapõe-se de maneira incisiva ao critério gnosiológico  
como definidor das ideologias em prol de uma fundamentação ontológico-prática e  
genética do fenômeno. Sob esse prisma, como assinala Ester Vaisman, a definição  
lukacsiana da ideologia em seu sentido estrito possui um caráter funcional: “[f]alar de  
ideologia em termos ontológico-práticos significa, portanto, analisar este fenômeno  
essencialmente pela função social que desempenha, ou seja, enquanto veículo de  
conscientização e prévia-ideação da prática social dos homens” (2010, p. 51).  
Assim, pode-se afirmar que aquilo que delimita o ideológico não é sua condição  
de falsificação de uma realidade objetiva cujo acesso privilegiado restringir-se-ia a uma  
ciência pretensamente neutra. Este tipo de raciocínio, aliás, desemboca, amiúde, em  
um dualismo que assume contornos morais: ciência/ideologia; verdade/falsidade;  
marxismo/pensamento burguês etc. Diversamente, a ideologia, em sentido estrito, é o  
instrumento ideal por meio do qual os homens que pertencem a sociedades de classes  
se conscientizam dos conflitos sociais, se situam em relação a estes, reagem, tomam  
posição e procuram solucioná-los no horizonte de seus interesses e possibilidades.  
É evidente, por outro lado, que frequentemente se manifesta uma intersecção  
entre o ideológico propriamente dito (na acepção funcional proposta por Marx e  
Lukács) e a falsa consciência e/ou distorção da realidade. Sobre isso, podemos avançar  
mais uma proposição: como as formas ideológicas são amiúde empregadas para  
solucionar conflitos que só poderiam, efetivamente, ser dirimidos por meio de  
transformação social concreta, elas operam, em grande medida, escamoteando e  
dissimulando dados da realidade; além de sublimarem as contradições bem como  
apresentarem concepções particulares como universalmente válidas dinâmicas  
bastante verificáveis nas ideologias especificamente religiosas.  
O tratamento dispensado por Lukács à questão da ideologia que  
particularmente nos interessa se insere no complexo escopo de um esforço amplo  
entabulado pelo pensador húngaro, intensificado particularmente em seus últimos  
anos de vida, e a despeito de variados obstáculos com que teve de se confrontar.  
Trata-se, com efeito, do vigoroso projeto do autor de elaborar uma ontologia crítica  
materialista a partir de Marx e como retorno e necessária renovação da obra deste no  
contexto da segunda metade do século XX.  
O embrião dessa virada ontológica de Lukács remonta aos intentos do autor,  
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desde fins dos anos 1940, de redigir uma ética marxista o que nunca chegou a ser  
concretizado. Imerso nessa perspectiva, Lukács passa a sentir cada vez mais a  
necessidade peremptória de elaborar uma introdução àquela, que possuísse um  
caráter especificamente ontológico. Era preciso examinar a especificidade do ser social  
enquanto ser, isto é, ontologicamente, uma vez que ela constituiria o fundamento  
mesmo de sua Ética. Com o passar do tempo, a pretensa “introdução” ganhou mais e  
mais fôlego, complexidade e autonomia, desdobrando-se ao longo de um amplo  
período permeado de dificuldades e incertezas que culminaria na conclusão parcial de  
seus últimos escritos, interrompidos pela morte do autor em 1971.  
A abordagem lukacsiana parte da recognição fundamental de que o real se  
encontra ontologicamente assentado sobre uma base material objetiva. Dessarte, a  
realidade pode ser apreendida pelo homem não em razão de uma operação  
gnosiológica derivada de princípios metodológicos estabelecidos aprioristicamente  
e/ou de dadas condições subjetivas convencionalmente preceituadas, mas pelo fato  
de que o homem, em sua inexorável interação com o mundo, necessariamente  
apreende o realmente existente à medida que em sua ininterrupta responsividade2  
o transforma.  
O que Lukács constrói, pois, é uma profunda e complexa investigação das  
origens e funções das produções do espírito humano enquanto expressões da dialética  
entre realidade e consciência. Nas palavras de Nicolas Tertulian:  
Lukács foi o primeiro a estabelecer uma genealogia das múltiplas  
atividades da consciência e de suas objetivações (a economia, o  
direito, a política e suas instituições, a arte ou a filosofia) a partir da  
tensão dialética entre subjetividade e objetividade. Pode-se definir seu  
método como “ontológico-genético”, na medida em que procura  
2
“Como todo ser vivo, o homem é por natureza um ser que responde: o entorno impõe condições,  
tarefas etc. à sua existência, à sua reprodução, e a atividade do ser vivo na preservação de si próprio e  
na da espécie se concentra em reagir adequadamente a elas (adequadamente às próprias necessidades  
da vida no sentido mais amplo). O homem trabalhador separa-se nesse tocante de todo ser vivo até ali  
existente quando ele não só reage ao seu entorno, como deve fazer todo ser vivo, mas também articula  
essas reações em forma de respostas em sua práxis. O desenvolvimento na natureza orgânica vai das  
reações químico-físicas, puramente espontâneas, até aquelas que, acompanhadas de certo grau de  
consciência, são desencadeadas em dado momento. A articulação baseia-se no pôr teleológico sempre  
dirigido pela consciência e, sobretudo, na novidade primordial que está contida implicitamente em cada  
pôr desse tipo. Por essa via, a simples reação articula-se como resposta, podendo-se até dizer que só  
através disso a influência do meio ambiente adquire o caráter de pergunta. A possibilidade ilimitada de  
desenvolvimento desse jogo dialético de pergunta e resposta funda-se no fato de que a atividade dos  
homens não só contém respostas ao entorno natural, mas também que ela, por sua vez, ao criar coisas  
novas, necessariamente levanta novas perguntas que não se originam mais diretamente do entorno  
imediato, da natureza, mas constituem tijolos na construção de um entorno criado pelo próprio homem,  
o ser social. Desse modo, porém, a estrutura de pergunta e resposta não cessa; ela apenas adquire uma  
forma mais complexa, que vai se tornando cada vez mais social.” (LUKÁCS, 2013, p. 303)  
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mostrar a estratificação progressiva das atividades do sujeito (por  
exemplo: atividade utilitária, atividade hedonista e atividade estética),  
indicando as transições e mediações, até circunscrever a  
especificidade de cada uma em função do papel que desempenham  
na sua fenomenologia da vida social. (2009, p. 376)  
Sob essa ótica, o realismo ontológico lukácsiano se pauta pelo inventário  
genético e analítico das categorias constitutivas do ser social a partir da compreensão  
das funções por elas desempenhadas na configuração, no desenvolvimento e no devir  
dessa modalidade específica do ser. Sob esse viés, sua abordagem ontológico-genética  
identifica no trabalho a categoria primeira sobre a qual se assenta o ser social, na  
medida em que o trabalho, enquanto complexo, representa o ponto de virada o  
salto ontológico por meio do qual o ser social se diferencia do ser orgânico, tal  
como este o fizera com relação ao ser inorgânico. O complexo do trabalho se revela,  
assim, o modelo geral, enquanto categoria fundante primeira, de todos os outros  
complexos do ser social: direito, política, religião, filosofia, arte etc.  
Como observa Tertulian:  
Se ele identifica no trabalho a célula geratriz (a Urphänomen) da vida  
social, analisando a maneira pela qual as objetivações mais complexas  
e mais sofisticadas retomam o modelo da relação sujeito-objeto  
forjada pelo trabalho, isso não significa reduzir a vida social ao  
“paradigma do trabalho” [...]. Seu objetivo era demonstrar como a  
diferenciação progressiva da vida social em uma multiplicidade de  
complexos heterogêneos se enraíza nesta atividade originária que é o  
trabalho. (2009, pp. 380-381)  
Se em Lukács (2009, p. 228) o trabalho é entendido como “base dinâmico-  
estruturante de um novo tipo de ser”, deve-se considerar que sua concepção específica  
dessa categoria não diz respeito à atividade que, no ser orgânico, chega a se  
desenvolver enquanto divisão do trabalho cristalizada em diferenciação biológica dos  
exemplares da espécie como no caso dos chamados insetos sociais (LUKÁCS, 2009).  
Tampouco se refere à “fabricação de produtos”, mas antes, nas próprias palavras do  
autor, ao “papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero  
epifenômeno da reprodução biológica” (LUKÁCS, 2009, pp. 228-9).  
É, pois, o papel desempenhado pela consciência, isto é, o momento ideal ou de  
prévia ideação, que constitui a essência do complexo do trabalho enquanto categoria  
fundante do ser social em sua diferenciação ontológica que não anula,  
evidentemente, sua dependência para com o ser orgânico que lhe precede (LUKÁCS,  
2009). De outra parte, o trabalho também opera, na concepção lukacsiana, enquanto  
“protoforma de toda atividade social”, como afirma Vaisman (2010, p. 46). Isso se  
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deve ao fato de que, do ponto de vista de seu fundamento ontológico, o ser social é  
estruturalmente unitário; ou seja, ele constitui uma totalidade complexa. Essa  
constatação implica que não há, fundamentalmente, nenhuma cisão, ruptura ou  
clivagem estanque entre a forma com que o homem atua no âmbito de seu intercâmbio  
com a natureza a fim de produzir e de reproduzir sua própria existência e aquela com  
que se move no interior das outras esferas da prática social.  
Do ponto de vista da elaboração teórico-metodológica de Lukács, Tertulian  
sintetiza:  
O método ontológico-genético praticado por Lukács em suas duas  
obras de síntese, a Estética e a Ontologia do ser social, se propõe  
identificar as transições capilares de um nível ontológico mais simples  
a um nível ontológico mais complexo, fixando com precisão as  
ligações intermediárias. A questão da gênese ocupa um lugar  
preponderante, porque o surgimento de diferentes níveis com suas  
categorias específicas intervém a partir da dialética interna dos níveis  
anteriores. Não significa somente detectar a transição da animalidade  
à humanidade (tendo a ação pelo trabalho como conexão decisiva),  
mas também e, sobretudo, da passagem das formas elementares de  
troca de substâncias entre sociedade e natureza (o trabalho) às formas  
de intersubjetividade cada vez mais complexas, nas quais surge, por  
exemplo, “a voz da consciência” [das Gewissen], portanto, a  
consciência moral ou as representações imaginárias dos conflitos  
sociais (as ideologias na multiplicidade de sua estratificação). (2009,  
p. 383)  
Mas em que consiste analiticamente essa dinâmica comum que abrange desde  
o intercâmbio entre sociedade e natureza por meio do trabalho até as formas  
ideológicas cada vez mais complexas que surgem ao longo do desenvolvimento  
histórico? Em consonância com Lukács, o que a ação dos homens em quaisquer das  
dimensões do ser social tem por base diz respeito à incontornável unidade dialética  
entre teleologia e causalidade (LUKÁCS, 2013, pp. 743-4). Conforme o pensador  
húngaro, o pôr teleológico constitui “a categoria elementar específica que diferencia  
qualitativamente o ser social de qualquer ser natural” (2013, p. 370). Sob essa  
perspectiva, em todas as atividades que os homens executam, em todos os campos da  
vida social, das menos às mais complexas, sempre se opera com base em decisões  
entre possibilidades concretas. Isso significa dizer que, qualquer que seja a esfera, “[...]  
a práxis é uma decisão entre alternativas, já que todo indivíduo singular, sempre que  
faz algo, deve decidir se o faz ou não. Todo ato social, portanto, surge de uma decisão  
entre alternativas acerca de posições teleológicas futuras” (LUKÁCS, 2009, p. 231).  
O momento ideal de decisão entre alternativas que conforma a teleologia é  
sinteticamente elaborado por Lukács nos seguintes termos:  
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Como força motriz do ser social, que cria coisas novas, ele é  
exatamente a intenção condutora daquele movimento material do  
trabalho que, pelo metabolismo da sociedade com a natureza, efetua  
nele essas mudanças, melhor dito, essas realizações de possibilidades  
reais. (2013, p. 406)  
É a partir desse momento ideal, em que a posição teleológica se configura, que  
a realização material, a contraparte constitutiva do complexo do trabalho, põe em  
movimento cadeias de causalidade sobre as quais já nenhuma teleologia é possível.  
Conforme Lukács: “[o] trabalho é constituído por posições teleológicas que, em cada  
caso concreto, põem em funcionamento séries causais” (2009, p. 230).  
Dois esclarecimentos importantes se fazem, todavia, necessários.  
Primeiramente, deve-se estar ciente de que a escolha entre alternativas nunca provém  
de um conhecimento completo, menos ainda de um domínio, do sujeito em relação ao  
conjunto de determinações que incidem sobre suas decisões, assim como das  
consequências que delas podem derivar. Na verdade, conquanto o pôr teleológico do  
sujeito isto é, a assunção na consciência de uma posição direcionada a algo ainda  
não existente, mas que se quer produzir esteja submetido às necessidades que  
busca satisfazer, às possibilidades e aos meios concretos disponíveis e ao  
conhecimento objetivo da ordenação dos aspectos da realidade implicados no  
processo, sua consciência acerca da totalidade desses aspectos nunca é plena, mas  
sempre parcial. O nível de sua cognição variará, claro está, tanto sincrônica quanto  
diacronicamente; e a reverberação do que lhe é, a cada passo, incognoscível,  
desempenhará papel medular, como se verá, na gênese e no desenvolvimento  
religiosos que particularmente nos interessam.  
Em segundo lugar, a decomposição analítica do complexo do trabalho em  
momento ideal e momento material embora teoricamente necessária só é possível  
idealmente, não devendo ser confundida com uma realidade ontológica per se. Como  
assevera Ester Vaisman:  
Assim, o fato de que a posição teleológica, formulada na consciência  
(momento ideal), preceda a realização material, não leva, portanto, do  
ponto de vista ontológico, à existência de dois atos autônomos: um  
material e outro ideal. Essa divisão é possível somente no pensamento  
[...]. Em termos analíticos eles podem ser considerados  
separadamente, mas em termos ontológicos eles adquirem o seu  
verdadeiro ser apenas enquanto componentes do complexo concreto  
representado pelo trabalho. [...] Como consequência não há, do ponto  
de vista ontológico, uma contraposição entre teleologia e causalidade,  
na medida em que são componentes do mesmo processo. Em termos  
precisos, eles se apresentam em determinação reflexiva. (2010, p. 47)  
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É por isso que o trabalho, enquanto motor fundamental do ser social, é  
apreendido por Lukács não apenas como uma categoria, mas, objetivamente, enquanto  
um complexo que abarca um conjunto de categorias elementares nele implicadas —  
realidade, linguagem, possibilidade, contingência, teleologia, causalidade etc. Essa  
composição elementar do complexo do trabalho é que pode ser analiticamente  
decomposta, a fim de que se compreenda a sua legalidade interna e se apreenda sua  
dinâmica própria. Do ponto de vista objetivo, o real possui prioridade irrevogável —  
o ser transcende a atividade reflexiva da consciência e, portanto, possui autonomia  
ontológica3 —, e toda “liberação de possibilidades reais do ente-em-si já precisou  
estar contida neste como possibilidade real” (LUKÁCS, 2013, p. 405); mas é a  
apreensão da realidade objetiva em imagens mentais cada vez mais aprimoradas e  
aplicadas à transformação do mundo material de forma progressivamente mais  
diferenciada que permite “a práxis material, a realização dos pores teleológicos”  
(LUKÁCS, 2013, p. 407)4.  
Na refinada síntese de J. Chasin:  
O objeto pode ser compelido à existência multiforme, contanto que a  
prévia ideação do escopo, a teleologia configuração da  
subjetividade que almeja ser coisa no mundo seja capaz de pôr a  
seu serviço, sem transgressão, a lógica específica do objeto específico,  
ou seja, a legalidade da malha causal de sua constitutividade material  
primária. Sujeito ativo e objeto mutável, potências reais e distintas,  
complexos de forças mais ou menos ricas no gradiente de suas  
configurações concretas, portanto, se delimitam na interação que  
realiza o objetivo do primeiro sobre as possibilidades de  
reconfiguração do segundo [...]. (2009, pp. 99-100)  
De outra parte, ao longo do transcurso histórico, o trabalho efetiva  
gradualmente uma de suas principais características ontológicas, qual seja, a tendência  
ao aperfeiçoamento, ao desenvolvimento de produtos sociais cada vez mais  
sofisticados. Antes de tudo, isso resulta em uma crescente autonomização dos  
processos mentais reflexivos e preparatórios do trabalho propriamente dito, o que  
enseja o desenvolvimento de formas cada vez mais especializadas de conhecimento  
3 Cf. Marx: “Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é nenhum ser natural, não toma parte na  
essência da natureza. Um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo. Um  
ser que não seja ele mesmo um objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser para seu objeto, isto  
é, não se comporta objetivamente, seu ser não é nenhum [ser] objetivo. Um ser não-objetivo é um não-  
ser.” (2004, p. 127)  
4
Sobre o papel desempenhado pela linguagem assim como a relação desta com o complexo do  
trabalho, cf. Lukács (2013, pp. 408-12). Não nos debruçaremos sobre essa questão na análise  
ontogenética do ser social, pois, dada a complexidade do tema, isso nos afastaria de nossos propósitos  
neste breve trabalho.  
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A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
da realidade. De outra parte, a expressão mais significativa dessa tendência ao  
aprimoramento do trabalho pode ser identificada em dois processos concomitantes,  
complementares e interdependentes: primeiramente, a crescente divisão do trabalho  
e, em segundo lugar, o surgimento e a complexificação do que Lukács denomina pores  
teleológicos secundários. Nesse sentido, a fim de que os pores teleológicos  
característicos da dimensão econômica ou seja, da produção e reprodução do ser  
social mediante o intercâmbio com a natureza , doravante pores teleológicos  
primários, sejam bem-sucedidos em um contexto em que o trabalho crescentemente  
submetido à divisão social apresenta aos homens demandas cada vez mais intrincadas,  
torna-se gradativamente mais necessário que os indivíduos que tomam parte das  
atividades laborativas o façam imbuídos de certas disposições mentais, afetividades  
específicas e concepções afins ao trabalho realizado, viabilizando a concretização de  
tarefas coordenadas, ações encadeadas e processos sempre mais mediados.  
Aqui, faz-se necessário distinguir claramente os pores teleológicos primários,  
isto é, aqueles que dizem respeito ao metabolismo entre sociedade e natureza, e os  
pores teleológicos secundários, ou seja, aqueles cuja finalidade é incitar em outrem a  
assunção de determinadas posições ou disposições de espírito, bem como provocar  
mudanças ou reforçar posturas no comportamento de outras pessoas. Fica claro que,  
a partir de um determinado estágio do desenvolvimento histórico, o processo de  
produção e reprodução do ser social não mais pode funcionar suficientemente sem  
engendrar uma série de outras esferas, não estritamente econômicas, de cuja atuação  
a economia passa a depender. Em outras palavras, o desenvolvimento do ser social  
traz em seu bojo uma tendencial ampliação paulatina dos pores secundários, que  
assumem uma posição de conditio sine qua non para com a manutenção da própria  
base da totalidade social.  
A organização da sociedade e a manutenção (ou a transformação) da dinâmica  
produtiva, isto é, todas as formas complexas de regulação social, passam a depender  
crescentemente das esferas cujo cerne ontológico reside nos pores teleológicos  
secundários. Em contrapartida, as próprias existência e constituição desses campos  
extraeconômicos “é determinada, através de múltiplas mediações, pelas necessidades  
postas pelo desenvolvimento material da sociedade” (VAISMAN, 2010, p. 47). Como  
é evidente, trata-se de identificar, ontogeneticamente, aquilo que, segundo Lukács, a  
partir da complexificação progressiva da divisão social do trabalho, com “a  
diferenciação social de nível superior, com o nascimento das classes sociais com  
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interesses antagônicos, [...] torna-se a base espiritual-estruturante do que o marxismo  
chama de ideologia” (2009, p. 234).  
Sem embargo de ambos os pores teleológicos estarem fundados, de maneira  
geral, em decisões alternativas, a diferença qualitativa entre o objeto das posições  
primárias (o trabalho) e o das secundárias (os próprios homens) suscita idiossincrasias  
ontológicas importantes no que tange aos pores que ensejam o surgimento das  
ideologias. Assim, as posições teleológicas secundárias se revestem de um coeficiente  
de incerteza muito maior do que o daqueles pores que objetivam o intercâmbio da  
sociedade com a natureza. Se, nestes pores relativos ao trabalho, esse campo do  
desconhecido é relativamente menor e inversamente proporcional ao conhecimento  
que o sujeito do pôr detém, a princípio, dos nexos e legalidades objetivo-naturais; nos  
pores secundários, o grau de indeterminação se amplia de modo exponencial na  
medida em que tem por objeto não uma cadeia causal, mas a conformação de novas  
ou a consolidação de antigas posições teleológicas de outrem (LUKÁCS, 2013).  
Evidentemente, isso “não impede que haja um conhecimento racional das tendências  
em presença, mesmo que este conhecimento, de forma mais acabada, só se dê post  
festum” (VAISMAN, 2010, p. 48); não obstante, reduz drasticamente a acuidade de  
quaisquer predições acerca da duração e da efetividade dos pores de tipo secundário.  
Como foi dito, é no espaço socialmente engendrado pelos pores teleológicos  
secundários que a matriz espiritual-estruturante do complexo da ideologia se configura  
e, por meio das formas que aí se coagulam, opera. Esse campo de produção e atuação  
ideológicas, como já se assinalou, é delineado pelas demandas apresentadas ao  
indivíduo pela realidade em que este se encontra inserido, isto é, pelo seu hic et nunc.  
Como observa Ronaldo Vielmi Fortes (2011, pp. 220-1), concepções de mundo e  
pensamentos “são formados a partir das condições sociais postas aos indivíduos, sua  
raiz se encontra delimitada pelo campo de possíveis perguntas e respostas que os  
homens são capazes de formular em torno de sua realidade”.  
E como já se pontuou, a responsividade constitui uma determinação ontológica  
fundamental do homem segundo Lukács. Essa condição inerente se expressa na  
necessidade prática, cotidiana e ininterrupta de formular respostas funcionais a uma  
realidade que lhe interpela, problematicamente, nos variegados níveis de sua  
existência. Uma práxis social e subjetivamente funcional, em consonância com  
necessidades postas pelas conjunções situacionais, requer um composto de  
representações e concepções de mundo que lhe embasem, isto é, que lhe sirvam  
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A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
propriamente de momento ideal. É exatamente isso o que a ideologia faz, atuando, no  
plano da consciência, como mediação da prática. Como pontua Ester Vaisman: “a  
ideologia, em qualquer uma das suas formas, funciona como o momento ideal, que  
antecede o desencadeamento da ação, nas posições teleológicas secundárias” (2010,  
p. 49).  
Dessa forma, vemos que a ideologia é um complexo cujas expressões —  
independentemente do quanto seus conteúdos correspondam ou não à objetividade  
concretamente existente constituem elaborações ideais do mundo real que servem  
de parâmetro para aquilo que os homens pensam acerca da realidade e oferecem um  
mapa para sua ação no intricado universo social que habitam. Em outras palavras,  
trata-se de formas cristalizadas de pensar a sociabilidade em que o sujeito se encontra  
inserido e de direcionar a ação nela e sobre ela. Essa produção espiritual tende ainda,  
deve-se observar, a se complexificar em termos de encadeamento e intensificação de  
mediações à medida que a formação socioeconômica com a qual compõe uma  
totalidade isto é, um complexo de complexos se desenvolve historicamente.  
Em sua Para uma ontologia do ser social, Lukács apresenta essa concepção de  
ideologia desdobrando-a a partir daquela que Marx apresentara, como já se  
mencionou, no prefácio a sua Contribuição à crítica da economia política. A reflexão  
lukacsiana estende a formulação de Marx acerca das “formas ideológicas sob as quais  
os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim” (MARX, 2008, p.  
48), a princípio situada em um contexto em que o filósofo alemão trata do papel da  
ideologia em grandes crises socioeconômicas, para abarcar o papel fulcral  
desempenhado por esta na vida cotidiana. Desse modo, o pensador húngaro propõe  
a identificação das “formas ideológicas como meios, com o auxílio dos quais podem  
ser tornados conscientes e tratados também os problemas que preenchem esse  
cotidiano” (2013, p. 465).  
Assinalando a necessidade de se manejar os conflitos engendrados pelo ser  
social, Lukács define a categoria ideologia, do ponto de vista de sua função, nos  
seguintes termos: “[a] ideologia é sobretudo a forma de elaboração ideal da realidade  
que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir.” (2013, p.  
465) E do ponto de vista ontogenético, explicita a peculiaridade das ideologias:  
toda ideologia possui o seu ser-propriamente-assim social: ela tem  
sua origem imediata e necessariamente no hic et nunc social dos  
homens que agem socialmente em sociedade. Essa determinidade de  
todos os modos de exteriorização [Auflerungsweisen] humanos pelo  
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hic et nunc do ser-propriamente-assim histórico-social de seu  
surgimento tem como consequência necessária que toda reação  
humana ao seu meio ambiente socioeconómico, sob certas  
circunstâncias, pode se tornar ideologia. Essa possibilidade universal  
de virar ideologia está ontologicamente baseada no fato de que o seu  
conteúdo (e, em muitos casos, também a sua forma) conserva dentro  
de si as marcas indeléveis de sua gênese. Se essas marcas  
eventualmente desvanecem a ponto de se tornarem imperceptíveis ou  
se continuam nitidamente visíveis é algo que depende de suas —  
possíveis funções no processo dos conflitos sociais. Porque, de  
modo inseparável desse fato, a ideologia é um meio da luta social,  
que caracteriza toda sociedade, pelo menos as da “pré-história” da  
humanidade. (2013, p. 465)  
Os traços distintivos que uma formação ideológica carrega em relação ao seu  
aqui e agora genético constituem uma expressão do entrelaçamento incontornável  
entre aquele que pensa, aquilo que é pensado e a mediação do próprio pensamento.  
Sob essa ótica, as produções espirituais reportam-se sempre a uma realidade  
específica, cujas problemáticas impõem a necessidade de réplica. Assim, toda ideologia  
é determinada pela configuração de sua própria produção social.  
As elaborações da consciência não são, de partida, ideologias; porém, dadas  
certas circunstâncias, podem vir a sê-lo. Caso isso ocorra, e a formação ideal se mostre  
funcional o bastante para se consolidar socialmente para além do horizonte imediato  
que lhe ensejou o surgimento, suas marcas genéticas podem, inclusive, sofrer um  
apagamento ao nível da aparência. Isso se explica pelo fato de a funcionalidade das  
ideologias não estar determinada pelas peculiaridades aparentes de seu hic et nunc  
genético, mas pela dinâmica imanente de seu ser-precisamente-assim, a qual, embora  
constituída a partir das conjunções singulares de seu surgimento, pode revelar-se  
adaptável e continuamente eficaz enquanto meio de luta social em outros contextos,  
posteriormente constituídos.  
O final do excerto de Lukács assinala a indissociabilidade entre ideologia e  
sociedade de classes, ou seja, aquelas formações sociais que pertencem à “pré-  
história” da humanidade na célebre expressão de Marx. Entretanto, isso não significa  
que nas sociedades ditas primitivas isto é, naquelas em que ainda não há  
efetivamente divisão de classes não existam em absoluto formas ideológicas  
constituídas. Mesmo no estágio anterior à luta de classes, segundo Lukács (2013),  
constata-se a necessidade da produção social de posições teleológicas secundárias  
que, partilhadas coletivamente, forneçam subsídios às atividades produtivas. É dessa  
maneira que se constituem formas cuja discursividade orienta e regula, de modo  
universalizante, a ação laborativa conjunta, a convivência social operativa e as  
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posturas, os valores e os afetos que atuam como catalisadores do processo de  
reprodução do ser social. Decantadas pelo transcurso histórico, essas formas de  
condução da práxis social se cristalizariam no acervo cultural dos costumes grupais,  
dos valores tradicionais, das convenções comunitárias, do mito e dos rituais, por  
exemplo.  
Como pontua Ester Vaisman:  
Lukács sustenta, assim, que ideologia, bem determinada e  
compreendida, possui uma caracterização ampla que ultrapassa os  
limites vulgarmente atribuídos a ela. Do ponto de vista ontológico,  
ideologia e existência social (em qualquer nível de desenvolvimento)  
são realidades inseparáveis. Ou seja, onde quer se manifeste o ser  
social há problemas a resolver e respostas que visam à solução destes;  
é precisamente nesse processo que o fenômeno ideológico é gerado  
e tem seu campo de operações. (2010, p. 50)  
O pensador húngaro trabalha, pois, a princípio, com uma compreensão ampla  
de ideologia, capaz de rastrear geneticamente o seu surgimento do ponto de vista da  
ontologia do ser social. Em contrapartida, Lukács também nos apresenta uma  
caracterização restrita de ideologia (VAISMAN, 2010), a qual diz respeito à  
especificidade do meio ideal pelo qual os homens se engajam nos conflitos  
morfológicos engendrados pela divisão da sociedade em classes com interesses  
crescentemente contrários. Assim sendo, o autor assinala que a ideologia, stricto  
sensu, pressupõe a existência de conflitos nas sociedades em que ela opera; os quais,  
a despeito de precisarem ser travados, em última instância, em sua dimensão  
socioeconômica objetiva uma vez que sua resolução efetiva não pode se dar em  
termos puramente ideais , desenvolvem formas ideológicas específicas em cada  
sociedade concreta por meio das quais esses conflitos são também travados.  
Sobre essa conjunção entre ideologia e conflitos próprios de uma sociedade de  
classes, Lukács afirma:  
o surgimento de tais ideologias pressupõe estruturas sociais, nas  
quais distintos grupos e interesses antagônicos atuam e almejam  
impor esses interesses à sociedade como um todo como seu interesse  
geral. Em síntese: o surgimento e a disseminação de ideologias se  
manifestam como a marca registrada geral das sociedades de classes  
(2013, p. 472).  
Como fica evidente, subjaz a toda dinâmica ideológica, incluída aí a  
especificamente religiosa, uma dimensão de conflito e de disputa, que denota o quão  
atravessados pelas contradições sociais se encontram os processos englobados na  
produção cultural da totalidade do ser social. Ademais, o caráter contraditório de toda  
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produção ideológica não diz respeito somente ao confronto entre representações  
coordenadas, discursos enunciados e práticas promulgadas por diferentes classes,  
frações ou categorias sociais antagônicas, estrutural ou situacionalmente. Na verdade,  
como acertadamente observa Terry Eagleton, “[a]s ideologias são, de modo geral,  
formações diferenciadas, internamente complexas, com conflitos entre seus vários  
elementos que precisam ser continuamente renegociados e resolvidos” (2019, p. 61).  
A contradição repousa, pois, no âmago mesmo de toda forma ideológica uma vez  
que nesta se expressam antagonismos próprios às sociedades classistas , o que faz  
da crítica imanente teoricamente embasada um imperativo crítico-analítico.  
Não obstante, a exposição sumária dos contornos definidores de uma dada  
formação ideológica pode inadvertidamente sugerir uma coesão e uma coerência  
excessivamente estáveis e, assim, falsear a natureza dialética própria das relações,  
correspondências e conflitos que interagem em cada unidade discursivo-ideológica.  
Por isso, é preciso contrastar essa aparência com a assunção categórica de que toda  
produção da ideologia é eminentemente relacional (EAGLETON, 2019). Essa afirmação  
se coaduna com a definição de Lukács de que a ideologia, em sentido estrito, é própria  
das sociedades de classes e, mais especificamente, dos conflitos nelas situados. Por  
conseguinte, determinada formulação ideológica sempre se constitui e se cristaliza a  
partir das conjunções, disjunções e injunções que estabelece com outras formas  
ideológicas coexistentes daí seu caráter relacional. A centralidade, de que ainda  
trataremos, atribuída por Lukács (2013) à vida cotidiana, à qual as mais variegadas  
formas e expressões ideológicas assomam e na qual decantam, constituindo o  
complexo em questão, são determinantes para se compreender o quão intrincado é  
esse processo.  
Nesse ponto, faz-se oportuno assinalar uma questão teórica basilar para a  
problemática enfocada neste trabalho. Em conformidade com o exposto, é no âmbito  
das sociedades primitivas que surgem as primeiras formas expressivas o mito e o  
rito, por exemplo das manifestações religiosas; isto é, o fenômeno religioso já se  
faz de variadas formas presente desde os primórdios do ser social e ao longo de todo  
o período que precede o advento efetivo das classes. Todavia, ao longo dessa fase,  
advogamos que ainda não é possível empregar especificamente a categoria religião,  
pois esta é um produto mais tardio do ser social, já em um estágio relativamente  
avançado da divisão da sociedade em classes. Partindo da concepção lukacsiana de  
que a ideologia entendida em sua caracterização restrita é um produto próprio  
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A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
do ser social no estágio das lutas de classes e da proposição de que a religião é, de  
maneira geral, uma forma da ideologia, propugnamos o emprego de uma categoria  
mais ampla, a de religiosidades, para abarcar todos os tipos de manifestação do  
fenômeno religioso que surgem desde a aurora do ser social.  
Nessa perspectiva, enquanto o complexo das religiosidades abarca vários  
fenômenos distintos, portadores de configurações e dinâmicas próprias mito, rito,  
magia, seitas etc. a religião consiste em uma forma específica das religiosidades,  
que só aflorou no ser social após a divisão de classes haver se consolidado e passado  
por um longo transcurso de complexificação. Tal entendimento se mostra capaz de  
captar, com efeito, o movimento real do objeto ao discriminar a especificidade da  
consolidação do cristianismo, desde seu surgimento e através de sua maturação nos  
três primeiros séculos da Era Comum, enquanto formação histórica da religião stricto  
sensu em seu caráter específico, uma vez que, antes do século IV, a religião “ainda não  
constitui uma categoria discreta da cultura” (BRANDÃO, 2014, p. 386). O que se pode  
aí apreender é o próprio processo, ainda em curso, de cristalização de conteúdos  
ideológicos que se sedimentarão, posteriormente, em formas específicas componentes  
da categoria religião.  
Nesse sentido,  
[s]e há algo de novo que de fato o cristianismo provoca, é a própria  
concepção de religião, cujos impactos nos mil anos seguintes da  
história europeia, para usar a perspectiva de Brown e ainda até  
hoje, seria necessário acrescentar são sobejamente conhecidos  
(BRANDÃO, 2014, p. 24).  
Ademais, de volta ao nível da ideologia, é necessário reiterar e desenvolver um  
elemento crucial na compreensão do que Lukács expõe acerca da conceituação dessa  
categoria. Trata-se da identificação da ideologia enquanto elemento socialmente  
funcional, independentemente do seu conteúdo de verdade objetiva. Lukács  
desassocia, como já pontuamos, as categorias de ideologia e falsa consciência;  
estabelecendo, pois, que tanto a correspondência relativamente precisa para com a  
realidade objetiva quanto a incorreção, a distorção ou a parcialidade do discurso  
acerca do mundo realmente existente não habilitam ou desqualificam uma posição  
como ideológica.  
Em síntese, “verdade ou falsidade ainda não fazem de um ponto de vista uma  
ideologia”, visto que as posições ideais elaboradas pelos indivíduos de dada sociedade  
“podem se converter em ideologia só depois que tiverem se transformado em veículo  
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teórico ou prático para enfrentar e resolver conflitos sociais, sejam estes de maior ou  
menor amplitude, determinantes dos destinos do mundo ou episódicos” (2013, p.  
467). Logo, é a viabilidade processual de uma elaboração intelectiva posta  
teleologicamente pelos sujeitos tornar-se instrumento coletivo de conscientização e  
enfrentamento das lutas sociais que conduz tendencialmente à sua cristalização em  
expressão ideológica.  
A ideologia se configura, pois, como momento ideal que precede a ação prática  
de indivíduos socialmente situados. Nesse sentido, as mais variadas formas  
responsivas elaboradas pelos homens como meio de lidar com as problemáticas  
colocadas pelas conjunturas sócio-históricas específicas podem se tornar ideologia,  
bastando para isso que elas forneçam “elementos e condições para conscientizar,  
orientar e operacionalizar a prática social” (FORTES, 2011, p. 232).  
Ainda sobre esse ponto, Lukács apresenta outra contribuição valiosa para o  
nosso esforço de compreender o fenômeno ideológico especificamente religioso. Ao  
analisar criticamente certas asserções de Friedrich Engels em que este considera a  
ideologia pelo prisma científico-gnosiológico, contrapondo, de forma redutora, os  
avanços da ciência às “asneiras” ideológicas das sociedades primitivas —, o pensador  
húngaro assinala que:  
Em sua tese de doutorado, ainda sem uma fundamentação histórico-  
materialista, Marx já vislumbrou corretamente, em sua essência, o  
problema fundamental que se coloca nesse ponto. Em meio a uma  
crítica aguda e perspicaz da prova ontológica [da existência] de Deus  
(e de sua crítica por Kant), ele faz a seguinte pergunta retórica: “Acaso  
o velho Moloque não reinou de fato? O Apolo de Delfos não era um  
poder real na vida dos gregos?”. Essas perguntas atingem a  
factualidade fundamental da ideologia. Pode-se até caracterizar  
Moloque e Apolo como “asneiras” no sentido gnosiológico, mas, na  
ontologia do ser social, eles figuram como poderes realmente  
operantes justamente como poderes ideológicos. (2013, pp. 480-  
1)  
Essa passagem nos permite entrever o porquê a abordagem da categoria  
ideologia enquanto sinônimo de falsa consciência acarreta um pendor ineliminável ao  
reducionismo; o que fica explícito sobretudo no que diz respeito às ideologias  
especificamente religiosas. Em contrapartida, a abordagem ontológico-prática das  
religiosidades nos fornece um embasamento teórico adequado para entender como e  
por que as ideias religiosas não simplesmente habitam a cabeça das pessoas, mas  
constituem  
forças  
objetivas  
concretamente  
operantes  
de  
transformação/conservação do mundo. A diferença é que o viés gnosiológico exclui  
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A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
deus(es) da equação, ao passo que a concepção marxiano-lukacsiana, que se debruça  
sobre a funcionalidade da ideologia, o repõe. Trata-se de afirmar categoricamente que  
deus existe ao menos enquanto força ideológica no âmbito do ser social; assim  
como de recuperar as determinações sob as quais ele é gestado e nutrido, desnudando  
sua especificidade ontológica.  
A especificidade da dinâmica religiosa  
Como já se assinalou, Lukács retoma de Marx a compreensão da categoria  
ideologia pautada pela função que ela desempenha no ser social. Sem embargo, ele  
distende a análise marxiana, demonstrando que, conquanto as produções  
propriamente ideológicas sejam características das sociedades de classes, elas operam  
“enquanto veículo de conscientização e prévia-ideação da prática social dos homens”  
(VAISMAN, 2010, p. 51), em todo o complexo de experiências cotidianas que eles  
vivenciam, e não apenas na práxis diretamente implicada nos grandes conflitos que  
transpassam os pilares da sociedade.  
A isso se alinha a enorme importância dispensada à vida cotidiana por Lukács  
especialmente no que tange à ideologia. Ele identifica na vinculação  
tendencialmente imediata menos mediada que em qualquer outra esfera da vida —  
entre teoria (como prévia-ideação da práxis) e prática o traço distintivo do cotidiano.  
Conforme o pensador húngaro, a vida cotidiana constitui “o âmbito em que todo  
homem forma de modo imediato as suas formas de existência pessoais,  
implementando-as na medida do possível” (2013, p. 449). Aí entra em cena a  
necessidade de todo homem embasar idealmente sua ação de modo eficientemente  
articulado com o complexo de sua subjetividade existente, isto é, com a totalidade de  
alienações responsáveis por e constitutivas de seu processo de individuação.  
Na ontologia lukacsiana, o trabalho, enquanto complexo categorial que  
fundamenta o surgimento e o desenvolvimento do ser social, assume internamente  
duas dimensões processuais complementares e concretamente indissociáveis: uma  
objetiva, outra subjetiva. Em primeiro lugar, a (re)produção do ser social por meio da  
laboração implica necessariamente a categoria da objetivação [Vergegenständlichung];  
em outras palavras, a ação criativa que, a partir da transformação do mundo existente,  
engendra coisas novas. É evidente que estas só podem se configurar a partir do já  
dado, mas tampouco poderiam surgir sem a intervenção consciente do ser social.  
Nesse quadro, o conjunto contínuo dessas objetivações empreendidas pelos  
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Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
indivíduos aflui para a crescente socialização do mundo. Em contrapartida, o sujeito  
das objetivações exterioriza traços da sua própria subjetividade imprimindo-os em  
tudo aquilo que ele objetiva. Esse processo de alienação [Entäusserung] do sujeito não  
porta a princípio qualquer caráter negativo, sendo antes responsável, em seu  
encadeamento, por dar forma à individuação do homem.  
Como assinala Ronaldo Vielmi Fortes:  
De um lado, a atividade laborativa humana modifica o mundo natural  
produzindo suas próprias condições materiais de vida, de outro lado,  
por meio deste processo os homens formam e constituem a si  
mesmos, disciplinando suas emoções, julgando e modificando seus  
comportamentos etc. mediante a exteriorização de sua subjetividade.  
Nesse duplo aspecto da realização oriunda do trabalho se destaca a  
presença de duas categorias, que formam em seu conjunto a base da  
gênese e da dinâmica de desenvolvimento do ser social: objetivação  
[Vergegenständlichung] e alienação [Entäusserung]. Essas categorias  
são expressões de processos distintos existentes no interior da  
atividade laborativa, momentos diferenciados no interior de uma  
mesma unidade. (2011, p. 191)  
Por meio da análise ontológica dos processos reais do ser social, Lukács (2013)  
demonstra que a alienação consiste em uma categoria essencial do ser social e que,  
em seu conjunto, conforma, em cada indivíduo, o intrincado processo por meio do qual  
a subjetividade vai paulatinamente sendo insculpida. Partes constitutivas do complexo  
categorial do trabalho, objetivação e alienação concorrem para a (auto)produção  
objetivo-subjetiva do homem.  
Ademais, como dissemos, o indivíduo precisa fundamentar idealmente sua  
práxis cotidiana de maneira eficiente e, simultaneamente, de modo articulado com sua  
subjetividade previamente existente. De fato, as próprias resoluções tomadas pelo  
sujeito como prévia-ideação de sua práxis não partem necessariamente de ele  
considerar “incondicionalmente correta a objetivação que tem diante de si, mas de  
acordo com se e em que medida ela pode ser enquadrada organicamente naquele  
sistema de alienações que o referido homem construiu para si mesmo” (LUKÁCS, 2013,  
p. 449). Em outras palavras, a existência diária dos indivíduos se mostra  
ordinariamente atravessada por aquilo que podemos nomear como uma acomodação  
ideológica tendencial; a qual opera de modo a promover uma convergência imediata,  
sempre que possível, entre o modo já pré-estabelecido com que se vive a vida  
cotidiana somatório do composto de objetivações-alienações levadas a cabo pelo  
indivíduo e a reação às novas informações, demandas e interpelações colocadas  
para o sujeito pela realidade circundante.  
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A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
Lukács afirma, inclusive, que:  
na maioria dos casos de conflito, surge um deslocamento no âmbito  
da consciência, em que o homem, via de regra, considera como  
objetivamente existente aquilo que favorece o modo como ele conduz  
a sua vida, enquanto considera como objetivamente não existente  
aquilo que está em contradição com ela (2013, p. 449).  
Do ponto de vista da imbricação das ideologias religiosas com o cotidiano, a  
problemática em tela é sobremaneira importante. Inquirido pela existência, o homem  
responde: forja-se o momento ideal em que a assunção de determinada posição  
teleológica incidirá sobre a condução da práxis subsequente o momento basilar em  
que a ideologia opera. Porém, a forma com que esse processo se dá na vida cotidiana  
é condicionada pela imediaticidade com que nela teoria e prática se encontram  
concatenados. Nesse sentido, os critérios com que os indivíduos se posicionam frente  
às questões do cotidiano não se submetem, tendencialmente, a qualquer elaboração  
mais mediada dos dados disponíveis, da conjuntura específica ou das implicações  
ulteriores. No dia a dia da existência, os sujeitos se engajam quer queiram quer não,  
de forma mais ou menos consciente, em uma ontologia, mais especificamente, em uma  
protoelaboração teorética do que o mundo é, sem a qual não lhes seria possível viver.  
Porém, dada a tendência à acomodação ideológica de que falávamos, essa ontologia  
da vida cotidiana tende a se constituir não de maneira crítica ou imbuída de qualquer  
aspiração à verdade objetiva do mundo, mas, em larga medida, em função do  
favorecimento e da preservação do estágio de subjetivação estabelecido bem como  
do modus operandi com que o indivíduo já consuma sua própria existência.  
Assim, a adesão a uma ou outra posição ideológica não depende, em absoluto,  
do quão sofisticada ela se mostra em sua estrutura significativa ou do quão exata ela  
se revela em sua correspondência com o ser objetivamente existente. Na verdade, o  
potencial de aderência de uma formulação ideológica decorre, peremptoriamente, da  
capacidade que ela possui de proporcionar subsídios funcionais para a práxis  
ordinária, abarcando um amplo espectro de fenômenos e fornecendo constelações de  
representações do ser que sustentem operacionalmente o universo da vida cotidiana  
dos homens em um determinado estágio histórico. Dessarte, o conteúdo das  
ideologias “é determinado pelas necessidades vitais (reais ou imaginárias) do homem  
singular” (LUKÁCS, 2013, pp. 536-7); e, como observa Lukács, cada homem, em sua  
vida cotidiana, busca garantir sua existência e proporcionar a si mesmo, na medida do  
possível, “o máximo de satisfação interior e harmonia consigo mesmo” (2013, p. 535).  
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Além disso, outra questão fulcral analisada pelo autor diz respeito à  
justaposição entre generalização, como tendência à universalidade, e ideologia.  
Segundo o filósofo húngaro, ao assumirem posição frente à vida cotidiana, os homens  
tendem a justificar de forma ideológica as suas ações sejam as oriundas de seu  
pertencimento à determinada classe sejam aquelas motivadas pelos interesses mais  
atados ao plano íntimo, em seus diferentes graus e composições , elevando-as ao  
plano da universalidade. Em outros termos, a conduta dos sujeitos, a princípio  
circunscrita, é apresentada, tanto teórica quanto praticamente, como corporificação de  
princípios genéricos, como realização de um dever-ser social, ocorrendo “a tendência  
de engendrar uma autojustificação no sentido de que o seu próprio modo de agir é a  
simples realização dessas normas gerais” (LUKÁCS, 2013, pp. 488-9).  
De outra parte, essas generalizações ideológicas se tornam influentes na  
medida em que se encontram fundamentadas, necessariamente, em elementos comuns  
e concretos da práxis cotidiana dos homens. Com efeito,  
é essa base das experiências cotidianas que primeiramente  
fundamenta a sua aplicação difundida e aprofundada visando uma  
possibilidade e necessidade social universal. [...] Por essa razão, não  
é tão difícil compreender a força de penetração social universal das  
generalizações que estão associadas com a práxis cotidiana das  
pessoas de modo mais ou menos imediato ou de modo próximo e  
compreensivelmente mediado (LUKÁCS, 2013, p. 537).  
É sobretudo por sua potencial infiltração em todas as dimensões da vida  
cotidiana, pela capacidade de se impregnar organicamente nos pensamentos e nas  
ações dos sujeitos e subsidiá-los no enfrentamento dos conflitos postos pela realidade  
à sua volta, entranhando-se em sua existência ordinária, pela faculdade, enfim, de  
fornecer explicações funcionais para a experiência vivida, que a ideologia e mais  
especificamente a ideologia religiosa se mostra capaz de formar, deformar e  
transformar o mundo.  
Lukács (2013), a partir da fundamentação que aqui já se expôs, apresenta uma  
caracterização detalhada, por meio da análise ontogenética, de cada um dos  
complexos mestres que compõem a superestrutura ideológica do ser social. Sob essa  
ótica, expõe circunstanciadamente a gênese, a função e a dinâmica das formas  
específicas de ideologia, passando pela política e pelo direito mais diretamente  
implicadas na mecânica socioeconômica ; assim como pelas chamadas formas mais  
puras da ideologia, isto é, a filosofia e a arte, assim denominadas uma vez que: “não  
têm a intenção nem a capacidade de exercer qualquer tipo de impacto imediato e real  
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A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
sobre a economia nem sobre as formações sociais a ela associadas” (2013, p. 538);  
ainda que sejam efetivamente indispensáveis à reprodução do ser social a partir de  
certo estágio de seu desenvolvimento.  
A religião, porém, constitui, para o autor, uma categoria peculiar. Segundo  
Lukács, “a religião nunca foi nem é pura ideologia no exato sentido aqui pretendido,  
mas é simultaneamente e antes de tudo também um fator operante no plano imediato  
da práxis social real dos homens” (2013, p. 538). Nesse sentido, faz-se necessário  
apreender o caráter eminentemente prático-concreto das expressões religiosas, o que  
leva o filósofo húngaro a identificar na religião, em termos sócio-ontológicos, uma  
forma em que se interseccionam elementos da filosofia e da política ou seja, a  
religião conjuga um conjunto coordenado de formas ideal-discursivas com sistemas de  
práticas e prescrições ordenadas com vista à regulação social cotidiana.  
Outrossim, ainda que elaborações ideológicas puras possam tentar transpor  
suas formas estruturadas de ideias, de valores, de concepções etc. para a dimensão  
da práxis dos sujeitos, isso implica uma transferência de um campo a outro, quer dizer,  
as formas práticas têm de assumir uma dimensão política propriamente, abdicando de  
seu caráter de pura ideologia. A religião, por seu turno, apresenta como um traço  
típico justamente a constituição de aparatos capazes de mobilizar meios de  
organização social e recursos para o exercício do poder de maneira concreta (LUKÁCS,  
2013, pp. 538-9).  
Sob essa ótica, admite-se que, desde o processo de ancoragem imediata da  
práxis em formulações ideal-discursivas aprioristicamente constituídas, a significação  
de vivências e experiências subjetivas em termos de afetos, desejos e valores,  
passando pelas próprias práticas cotidianas mais naturalizadas e triviais, até as  
estruturas materiais erigidas e operacionalizadas na sociedade; todos podem portar,  
expressar, sintetizar, conformar e disseminar discursos e práticas ideológico-religiosas  
que incidirão sobre os homens enquanto representações e formas de consciência  
voltadas a subsidiar sua existência cotidiana.  
É a partir dessa compreensão ampliada que devemos compreender a religião  
em sua especificidade, enquanto categoria da ideologia. Sob esse viés, a seguinte  
exposição de Terry Eagleton nos parece fértil, ainda que peque pela indistinção quanto  
ao que é próprio da categoria religião e não das ideologias em seu sentido amplo:  
Estudar uma formação ideológica é, portanto, entre outras coisas,  
examinar o complexo conjunto de ligações ou mediações entre seus  
níveis mais e menos articulados. A religião organizada pode fornecer  
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um bom exemplo. Tal religião estende-se desde doutrinas metafísicas  
extremamente intrincadas a prescrições morais minuciosamente  
detalhadas que governam as rotinas da vida cotidiana. A religião é  
apenas uma forma de aplicar as questões mais fundamentais da  
existência humana a uma vida exclusivamente individual. Também  
contém doutrinas e rituais para racionalizar a discrepância entre as  
duas [...]. A religião consiste em uma hierarquia de discursos, alguns  
dos quais elaboradamente teóricos (escolasticismo), outros éticos e  
prescritivos, outros ainda exortativos e consolatórios (pregação,  
piedade popular); e a instituição da igreja assegura que cada um  
desses discursos se misture com os outros, para criar um continuum  
ininterrupto entre o teórico e o comportamental. (EAGLETON, 2019,  
p. 66)  
Aqui, o autor nos oferece, de modo panorâmico, uma síntese aproximativa útil  
no que tange aos conteúdos genéricos da religião enquanto expressão relativamente  
particular da ideologia. Como se nota, o fenômeno religioso comporta tanto as  
“doutrinas metafísicas extremamente intrincadas” quantos as detalhadas prescrições,  
de caráter moral, que “governam as rotinas da vida cotidiana”. É interessante notar  
que o próprio Lukács, ao pontuar o equívoco hegeliano de considerar a religião uma  
forma ideológica pura, assinala que a origem do quid pro quo reside na redução do  
complexo total da religião justamente à sua dimensão estritamente teológica ou  
filosófica (2013, p. 539). Além disso, Eagleton sugere, de forma positiva, um  
entrelaçamento, na vivência religiosa, entre generidade e individualidade humanas; o  
que Lukács desenvolverá não como mera percepção, mas como parte integrante de  
seu esforço de sistematização teórica da questão.  
Sem olvidar as particularidades de pensadores marxistas tão díspares, o que  
nos importa aqui é simplesmente enfatizar a sua convergência no que tange à  
concepção lukacsiana acerca da religião não constituir uma forma ideológica pura, uma  
vez que se encontra imiscuída no cotidiano dos sujeitos, subsidiando sua existência  
ideal e, ênfase nisto, praticamente. No que toca à compreensão aqui adotada, Lukács  
é o mais significativo autor que parte da compreensão madura de Marx acerca da  
problemática e que considera a ideologia e a especificidade de suas diferentes formas  
dentre estas, a religiosa no bojo de todo um edifício teórico radicalmente  
marxiano e articuladamente desenvolvido.  
De outra parte, se a apreensão apropriada da posição teórica exposta por  
Lukács acerca da religião não pode prescindir da importância atribuída pelo filósofo  
húngaro à vida cotidiana, ela também passa, necessariamente, por outra categoria  
central em sua ontologia do ser social: o estranhamento [Entfremdung]. Enquanto a  
alienação [Entäusserung] equivale à expressão/impressão de marcas subjetivas do  
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indivíduo em tudo aquilo que é por ele objetivado; o estranhamento [Entfremdung]  
consiste em um processo posterior, no qual “os resultados da atividade humana se  
voltam contra os próprios homens inibindo seu processo de desenvolvimento”  
(FORTES, 2011, p. 192). Todavia, é preciso ressaltar que os estranhamentos não são  
uma consequência inevitável da alienação, tampouco um elemento ontologicamente  
constitutivo do ser social diferentemente do trabalho e do momento ideal que, por  
exemplo, o são. Na verdade, os estranhamentos constituem um fenômeno  
exclusivamente sócio-histórico, o qual assume formas específicas em cada momento  
em que emerge no curso do desenvolvimento diacrônico não sendo, pois, algo  
ineliminável do devir homem do homem.  
De um ponto de vista abrangente, os estranhamentos radicam-se na  
contradição entre, de um lado, o aperfeiçoamento das capacidades do gênero humano  
e, de outro, o (sub)desenvolvimento da personalidade humana singular5, ao longo do  
transcurso histórico. Segundo Lukács:  
o desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente ao  
mesmo tempo o desenvolvimento das capacidades humanas. Contudo  
e nesse ponto o problema do estranhamento vem concretamente  
à luz do dia , o desenvolvimento das capacidades humanas não  
acarreta necessariamente um desenvolvimento da personalidade  
humana. Pelo contrário: justamente por meio do incremento das  
capacidades singulares ele pode deformar, rebaixar etc. a  
personalidade humana (2013, p. 581).  
Em outras palavras, o desenvolvimento das forças produtivas como fruto do  
progresso histórico tende a fomentar a evolução das capacidades humanas (mais  
amplas que aquelas), ou seja, o potencial geral de conhecimento e transformação da  
realidade à disposição do ser humano genérico. Não obstante, o conjunto desses  
desenvolvimentos das capacidades humanas em geral não está concretamente  
acessível e atuante em cada indivíduo enquanto exemplar do gênero como  
subsídio para o incremento de sua própria personalidade individual. Mais do que isso,  
os próprios desenvolvimentos das forças produtivas e, consequentemente, das  
capacidades humanas engendra objetivamente determinadas relações, certas  
sociabilidades e formas ideológicas correspondentes que (auto)desumanizam os  
homens que as produzem e nelas se encontram situados.  
5 Retomando a responsividade como traço fundamental do homem, entende-se a personalidade humana,  
a partir de Lukács, como um complexo dinâmico constituído fundamentalmente pelo conjunto de  
perguntas e respostas que, em sua interatividade ininterrupta, o sujeito põe para si, para o outro e para  
o mundo.  
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Assim, de um ponto de vista objetivo abrangente, estranhamento é a condição  
dos indivíduos que, dadas as conjunções sociais, se encontram privados do potencial  
da generidade humana alcançado naquele momento histórico. Isso se dá em razão de  
que, subjetivamente, os elementos constitutivos da dinâmica social em que esses  
sujeitos experienciam a sua existência e que são, portanto, por eles mesmos  
produzidos, aparecem a eles como algo estranho, que lhes é extrínseco, alheio,  
incognoscível, e que, todavia, os domina. Dito de outra forma, o conjunto de  
objetivações concretizadas pelos homens se autonomiza, coagulando-se em  
legalidades sócio-históricas que passam a determiná-los subjetivamente, restringindo  
seus processos de individuação a limites que se coadunam com as próprias dinâmicas  
da sociabilidade imperante. Naturalmente, as formas assumidas por essa dominação  
variam, como já se observou, diacronicamente, sendo determinadas pelo modo de  
produção e sua sociabilidade, bem como pela correspondente esfera espiritual. Sob  
essa ótica, todos os estranhamentos são fenômenos tanto socioeconomicamente  
fundados quanto ideologicamente constituídos. Sem embargo, há formas de  
estranhamento que surgem de maneira mais imediata no plano socioeconômico —  
como sói ocorrer com os estranhamentos típicos do capitalismo assim como outras,  
cuja forma fenomênica mais imediata é ideológica caso da religião, cujo vínculo com  
a produção material da sociedade é mais intrincadamente mediado.  
Nesse ponto, parece-nos oportuno empreender um esforço por deslindar  
teoricamente de que modo os elementos: ideologia, estranhamento, reificação e  
cotidiano se conjugam na constelação categorial que Lukács extrai do movimento  
histórico objetivo do ser social. Como já foi dito, a vida cotidiana, dimensão  
importantíssima na reflexão de nosso autor, é caracterizada pela conexão imediata  
entre teoria e práxis, em que as formas ideológicas operam no âmbito do momento  
ideal que orienta a prática subsequente. Mais especificamente, a atuação da ideologia  
assume, nessa existência cotidiana, dois modos de funcionamento distintos, que,  
conquanto não configurem uma diferença ontológica, distinguem-se pelo efeito que  
produzem sobre os homens. Em primeiro plano, grande parte das formas ideais que  
se cristalizam no cotidiano opera de maneira puramente ideológica, ou seja, se  
constituem enquanto um dever-ser, que, ao direcionar e dar forma às decisões dos  
homens, oferece a estes os meios de resolução dos conflitos sociais em que se veem  
envolvidos. De outra parte, temos uma classe de representações que não se  
manifestam propriamente como um dever-se, mas como uma determinada concepção  
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do ser. Estas aparecem para as pessoas, ideologicamente, como o próprio ser, “como  
aquela realidade diante da qual somente reagindo adequadamente elas serão capazes  
de organizar a sua vida em conformidade com as próprias aspirações” (LUKÁCS, 2013,  
p. 688).  
Esse último processo constitui o tópos dos estranhamentos que se coagulam  
na vida cotidiana e são mediados pelas reificações, uma vez que estas, “mesmo que  
possuam caráter ideológico, agem sobre as pessoas como se fossem modos de ser”  
(LUKÁCS, 2013, p. 688) lembremo-nos, aqui, das observações de Marx em sua tese  
de doutorado, recuperadas por Lukács, acerca dos efeitos ideológicos bastante  
concretos de divindades como Moloque e Apolo na Antiguidade. Assim sendo, para  
compreender adequadamente esta categoria, devemos partir do fato de que toda  
reificação consiste, essencialmente, na obliteração do caráter processual dos  
fenômenos, isto é, na negação de que toda objetivação é resultado de um processo  
genético assim como no próprio escamoteamento dessa processualidade. Em razão  
disso é que, através da reificação, o produzido tem seu percurso genético apagado e  
pode assumir ideologicamente a posição de produtor ao passo que o produtor tem  
seu papel invertido e aparece como produzido. A reificação é um momento ideológico  
na dinâmica do ser social, mas, obviamente, se encontra objetivamente ancorada na  
realidade concreta, como o próprio fetichismo da mercadoria, enquanto reificação  
característica do capitalismo, explicita. Assim, o fenômeno da reificação se dá, a partir  
da práxis cotidiana do homem, como uma resistência social e ideologicamente  
espontânea “contra a validade universal do devir, da práxis humana como base de  
todo conhecimento adequado, fundado na gênese, dos objetos e processos do ser  
social” (LUKÁCS, 2013, p. 551).  
A gênese histórica desse processo remonta efetivamente à incapacidade do  
homem de (re)conhecer os diferentes fatores implicados em suas próprias ações —  
algo a que já nos reportamos. Primordialmente, os processos reificadores se  
encontravam ligados, sobretudo, a manifestações da natureza, dado o baixo nível de  
compreensão e domínio objetivos do homem em relação a essa, o que propiciou que  
variados tipos e exemplos de reificações nos tenham sido legados pela Antiguidade  
na forma dos mitos, sobretudo os etiológicos cristalizações culturais do que o  
filósofo húngaro nomeia mitologização da gênese6.  
6 Apesar de não podermos nos dedicar aqui à questão, não é difícil dimensionar a importância do papel  
desempenhado pelos mitos etiológicos, enquanto cristalizações reificadoras, na regulação social em  
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Mais tarde, o desenvolvimento das forças produtivas acarretou uma crescente  
socialização dos objetos produzidos pelo homem assim como da própria sociedade,  
cujas legalidades se complexificaram enormemente. Paralelamente ao recuo da barreira  
natural e à crescente socialização, foram os produtos da ação humana que passaram  
a ser mais e mais reificados e por meio da reificação estranhados; ensejando  
relações em que os homens não se reconhecem nas objetivações e nas legalidades  
sociais por eles mesmos produzidas e são por elas submetidos a uma vida que lhes  
priva da capacidade do gênero humano que eles próprios contribuem para  
desenvolver.  
Em relação ao itinerário histórico das reificações, observa Lukács:  
Essas mitificações originais dos próprios atos da humanidade em dons  
dos deuses, eventualmente mediados por heróis enviados por Deus,  
ainda sobrevivem na concepção atual em nível científico altamente  
desenvolvido, na medida em que as áreas da intelectualidade mais  
elevada não são concebidas como resultado da práxis humana, mas  
como valores “inatos”, “intuições” (matemática), “inspirações” (arte)  
etc. (2013, p. 551)  
Incontestavelmente a forma mais acabada e desenvolvida da reificação só veio  
à tona na sociedade capitalista, por meio do fetichismo da mercadoria forma matriz  
que irradia, na estrutura social que lhe é própria, as mais distintas expressões dos  
estranhamentos modernos e contemporâneos. A nós, contudo, importa compreender  
minimamente de que maneira as categorias estranhamento, reificação e cotidiano se  
conformam no horizonte da esfera religiosa, no complexo da ideologia. E embora a  
reificação só alcance sua máxima expressão na forma do fetichismo da mercadoria,  
categoria intrínseca à sociabilidade submetida à dinâmica do capital, ela já se faz  
presente, em épocas históricas muitíssimo anteriores, como “categoria mediadora do  
estranhamento” (LUKÁCS, 2013, p. 688).  
Pode-se aqui recorrer ao que Lukács afirma acerca de objetos da esfera  
econômica, já que ele mesmo não restringe sua observação a esse âmbito:  
no ser social, sobretudo no âmbito da economia, cada objeto é, por  
sua essência, um complexo processual; este, porém, muitas vezes se  
apresenta no mundo fenomênico como objeto estático de contornos  
diferentes contextos da Antiguidade. Cf. Romero (2018, pp. 123-4): “A despeito de apresentar-se como  
algo situado in illo tempore no tempo remoto e sacralizado da mitologia o mito etiológico, ao  
apresentar a origem, a fundação de elementos da realidade presente, postula uma continuidade avessa  
ao desenrolar do tempo histórico. Ele simula uma tradição ininterrupta e sagrada com a qual dada  
comunidade religiosa pode se identificar, mas que, na verdade, se trata de um artifício ideológico. Assim,  
histórica e materialmente, essa representação constitui uma mistificação da realidade que é assimilada,  
pela coletividade que a compartilha, acima de tudo, como uma ‘verdade’.”  
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fixos; nesse caso, o fenômeno se torna fenômeno justamente pelo fato  
de fazer desaparecer para a imediatidade o processo ao qual ele deve  
sua existência como fenômeno (2013, p. 377).  
Assim, tomar o fenômeno em sua imediatidade aparente, abdicando de sua  
processualidade essencial, é exatamente o percurso traçado pela apreensão reificadora  
da realidade. De outra parte, como já se considerou, os estranhamentos se constituem  
por meio da reificação; e, sendo esta uma categoria ideológica, sua função ainda  
que a reificação a desempenhe de maneira específica é, de modo geral, dirimir os  
conflitos sociais por meio da condução imediata da práxis social dos homens. Nesse  
sentido, o locus específico em que essa dinâmica se perfaz é, patentemente, o da  
existência ordinária e diária dos homens, espaço em que as conjunções situacionais se  
configuram e demandam dos sujeitos reações-respostas imediatamente disponíveis,  
por isso, ideologicamente predelineadas. Sob esse viés, a unidade entre teoria e  
prática típica do cotidiano é viabilizada pelo conjunto das variadas formas ideológicas  
que para ele acorrem. A ideologia, como complexo de representações tanto do ser  
quanto do dever-ser, nas suas mais variegadas formas e expressões, aporta e decanta,  
a partir das mais diversas fontes, nessa tessitura da existência, constituindo aquilo que  
Lukács define como ontologia da vida cotidiana.  
Afirma o autor:  
Os homens enredados em conflitos geralmente agem, antes, de modo  
espontâneo, motivados diretamente pelo que chamamos de a  
ontologia da vida cotidiana. Mas como surge esta? Indubitavelmente  
são decisivas nela as vivências primordialmente imediatas dos  
homens. O seu conteúdo e a sua forma, contudo, são influenciados  
em ampla medida pelas ideologias não por último também pelas  
ideologias puras , cujas objetivações confluem para essa área.  
(2013, p. 561)  
Em outros termos, a ontologia do cotidiano emana, do ponto de vista subjetivo,  
do modo abrangente com que o indivíduo concebe e elabora o mundo circundante a  
partir daquilo que vivencia socialmente frente aos dados objetivos da realidade. Ao  
mesmo tempo, confluem, para a totalidade desse mosaico, tesselas muito díspares,  
que podem inclusive se originar em formas mais puras de ideologia arte, filosofia  
etc. ainda que simplificadas/vulgarizadas. Essa ontologia que por fim se cristaliza,  
isto é, esse discurso acerca do que é a realidade, de como ela funciona etc., encerra  
uma estrutura subjetiva de predisponências para o enfrentamento dos conflitos que  
afloram à existência sempre se pautando, como já sinalizado, por uma acomodação  
ideológica tendencial entre o modo com que já se vive a vida cotidiana e a necessidade  
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de novas deliberações.  
Obviamente, as religiosidades cumprem um papel decisivo nessa ontologia do  
cotidiano, a qual, também por isso, se encontra atravessada pelos estranhamentos.  
Nem poderia ser diferente, considerando-se que, segundo Lukács, os estranhamentos  
brotam diretamente das inter-relações que os sujeitos estabelecem com seu cotidiano;  
e que a “função social primária de toda religião é a de regular a vida cotidiana” (2013,  
p. 692).  
Na verdade, segundo Lukács, o estranhamento religioso é o “arquétipo de  
todos os estranhamentos mediados precipuamente pela ideologia” (2013, p. 692).  
Desse modo, ainda que assuma diferentes configurações ao longo do processo  
histórico (culminando em suas formas mais desenvolvidas no capitalismo), do ponto  
de vista de sua dimensão ideológica ou seja, na medida em que se traduzem por  
apreensões do mundo que atuam para tornar a práxis humana consciente e operativa,  
gerenciando os conflitos sociais por meio de representações em que as forças naturais  
e/ou sociais confrontam o homem como poderes transcendentes que o interpelam  
e/ou submetem , todos os estranhamentos têm seu protótipo situado nos  
fenômenos religiosos mais primevos do ser social, em que as primeiras formas míticas  
se configuraram como reificações ideais que apreendiam, a seu modo, os embates  
oriundos dos intercursos natureza-sociedade7.  
Como já se pontuou, à medida que a produção material se complexifica com o  
avanço do decurso histórico, atinge-se um estágio em que a produção e a reprodução  
materiais da sociedade não podem mais funcionar sem a constituição progressiva das  
diferentes esferas que integram o complexo da ideologia, quer as mais diretamente  
ligadas à estrutura socioeconômica, como a política e o direito quer aquelas cuja  
interconexão se dá de maneira mais mediada, como a filosofia e a ciência. Cada forma  
ideológica atua na regulação e na ordenação da vida social de maneira específica e  
tem sua dinâmica e constituição peculiares determinadas, ontogeneticamente, pelas  
demandas sócio-históricas concretas a que visa corresponder. Naturalmente, os  
segmentos característicos em que operam bem como os recursos particulares de que  
lançam mão são próprios de cada uma dessas formas ideológicas e escapa às nossas  
possibilidades presentes examiná-los um a um. O que realmente nos importa pôr em  
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No entanto, as reificações típicas da magia nos estágios mais primitivos do ser social ainda não  
acarretam estranhamentos em função do, até então, baixo desenvolvimento da personalidade humana  
o senso de coletividade ainda tende a prevalecer como potência preponderante nas existências  
individuais.  
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A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
evidência é que, além dessas formas ideológicas maiores, que atuam de maneira  
tendencialmente universalizante e abstrativa para assegurar os interesses das classes  
dominantes, acompanhando também a constante complexificação do ser social,  
desenvolvem-se e se renovam constantemente também uma série de mecanismos e  
instrumentos variados destinados a moderar a vida imediata dos homens singulares  
também em suas decisões e conflitos do dia a dia.  
Dessarte, outras formas de ideologia germinam de modo espontâneo,  
engendradas pela sociedade autonomamente: “desde os usos até a moral, correções  
complementares para impor, em conformidade com as suas necessidades, os  
interesses gerais de classe, inclusive intervindo profundamente na vida singular do  
cotidiano” (LUKÁCS, 2013, p. 693). Todavia, também essas formas suplementares não  
são suficientes no que se refere à regulação da vida cotidiana, uma vez que não  
atingem de maneira uniforme parte significativa das coletividades. Para que o fizessem,  
seria preciso um elevado nível cultural homogeneamente partilhado pela maioria dos  
homens singulares o que, em função de distintos recortes sociais, efetivamente não  
ocorre. As formas superiores da ideologia (arte, ciência, filosofia), por sua vez,  
tampouco são bastantes, já que seus produtos “muito raramente conseguem imergir  
na vida cotidiana de modo suficientemente profundo para exercer sobre ela uma  
influência ao mesmo tempo ampla e decisiva” (LUKÁCS, 2013, p. 693). O que esse  
quadro revela é a insuficiência do sistema de formas ideológicas quanto à orientação  
do agir ordinário dos sujeitos, descortinando “grandes lacunas e fissuras justamente  
do ponto de vista da orientação dos homens singulares na cotidianidade” (LUKÁCS,  
2013, p. 693).  
O papel das religiosidades se desenvolve, pois, em consonância com o  
imperativo social de suprir tais lacunas e fissuras, de modo a consolidar um extenso e  
intenso complexo ideológico-pragmático que ampare, balize e direcione mapa,  
orientação e bússola o viver cotidiano dos homens. Por meio dessa subvenção à  
prática ordinária, cujas fendas e frestas ela preenche tanto subjetiva quanto  
objetivamente, a religiosidade, sobretudo quando atinge sua forma mais desenvolvida:  
a religião, exerce um domínio amplo e vigoroso sobre a existência diária dos  
indivíduos.  
Ademais, Lukács assinala uma tendência inequívoca da religião patente nos  
dias que correm. Trata-se de sua pretensa universalidade também no que diz respeito  
aos meios de influência a que recorre em sua atuação. Segundo o autor, “da tradição  
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até o direito, a moral, a política etc., não há nenhum campo ideológico socialmente  
influente que a religião não tenha tentado dominar” (2013, p. 654). Tal caracterização  
corresponde a uma tendencial fluidez, que assume contornos muito específicos em  
cada caso concreto, das fronteiras entre a religiosidade e as outras formas ideológicas  
com que ela convive. Naturalmente, isso não destitui as formas especificamente  
religiosas das idiossincrasias que ora tentamos delinear, mas torna deveras mais  
complexa a análise dos modos com que os fenômenos de cunho essencialmente  
religioso se interseccionam com outras expressões ideológicas em determinada  
formação social.  
Quanto à sua constituição específica, a religião forma tardia das  
religiosidades a surgir na totalidade do ser social apresenta:  
uma configuração complexa, extraordinariamente articulada e  
multiforme, para lançar uma ponte entre os mais particulares  
interesses singulares dos homens do cotidiano e as grandes  
necessidades ideais daquela dada sociedade na totalidade do seu ser-  
em-si. Contudo, não se trata, nesse caso, simplesmente de um sistema  
de fatores ideológicos que complementam uns aos outros; muito  
antes, essa ponte deve produzir ao mesmo tempo também uma  
conexão vitalmente funcional entre a vida particular dos homens  
singulares e as questões gerais da sociedade, e de tal modo que o  
homem singular em questão perceba as soluções que lhes são  
propostas para os problemas gerais como resposta às questões com  
que ele lida em sua existência particular como tarefas indispensáveis  
de sua conduta de vida específica (LUKÁCS, 2013, pp. 693-4).  
A heterogeneidade intrínseca das formas religiosas: sua complexidade,  
polimorfia, ductibilidade e capacidade de articulação constituem justamente o que as  
habilita a conjugar o microscópico das questões com que os homens particulares têm  
de lidar em suas vivências cotidianas com o macroscópico das problemáticas que se  
arvoram ao nível geral da totalidade social. Pensemos no cristianismo contemporâneo  
à guisa de ilustração: não é difícil visualizar como os indivíduos que, atualmente,  
professam a fé de diferentes correntes cristãs encontram na religião desde as respostas  
para as questões existenciais mais elementares (qual a origem do mal, qual o sentido  
da vida etc.), passando pelo conforto mais que necessário para suportar as mazelas  
diárias que germinam das relações sociais capitalistas, até orientações precisas e  
pragmáticas sobre a normatização de sua libido e de suas condutas sexuais. Assim, a  
religiosidade/religião ao regular os atos mais triviais dos indivíduos também os dota  
de uma significação, em última instância, universal, conferindo sentido a suas  
existências particulares, então alçadas a um contexto maior e a uma dimensão  
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transcendente.  
O filósofo húngaro assinala ainda a amplitude do domínio exercido pelas formas  
religiosas nessa condução social das vivências diárias dos homens singulares:  
A vida social real das religiões consiste, portanto, nessa sua  
universalidade, que está direcionada para dominar a totalidade da  
vida de cada homem singular da população total, de alto a baixo, das  
questões mais elevadas relativas à visão de mundo até as mais  
singelas relações cotidianas. E essa universalidade se exprime em um  
sistema potencialmente universal de enunciados sobre a  
realidade (incluindo a transcendência, é claro) e passa a fornecer,  
desse modo, as coordenadas coerentes que dela resultam para toda  
a práxis de cada homem singular, inclusive os pensamentos e  
sentimentos que a determinam e acompanham. Toda religião  
comporta, portanto, todos os conteúdos que, numa sociedade normal,  
estão frequentemente presentes no sistema global da superestrutura,  
que costuma conter todas as ideologias. (LUKÁCS, 2013, p. 695)  
De fato, pode-se identificar no excerto alguns dos traços característicos do  
próprio cristianismo que, ao se constituir historicamente, constitui a própria religião  
enquanto categoria do ser social. Destaca-se, pois, a assinalada extensão do poder  
religioso, que abarca a totalidade da vida, “de alto a baixo” efetivamente. Diríamos  
ainda retomando elementos já entrevistos que a universalidade do religioso,  
inaugurada efetivamente pela expansão dos cristãos na Antiguidade Tardia, manifesta-  
se como conjuntos coordenados de formas ideológico-discursivas relativamente  
estáveis, as quais sintetizam, expressam, performatizam e veiculam enunciados e  
representações parcialmente coerentes (uma vez que são sempre portadores de  
contradições imanentes) acerca da realidade de modo totalizante, isto é, que pretende  
englobar todas as dimensões da existência experienciadas pelos indivíduos (reais,  
afetivas ou imaginárias; coletivas em diferentes graus, particulares ou decididamente  
íntimas). Essas formas ideológico-discursivas articulam, prescrevem e regulam —  
fornecem as coordenadas a toda a práxis efetiva dos sujeitos, não apenas em termos  
de ações material-objetivas, mas também de afetos, pensamentos, emoções e estados  
de ânimo que compõem o complexo de cada ação em sua processualidade efetiva. A  
religião é uma cartografia tuteladora da existência.  
Por outro lado, do ponto de vista do conteúdo desses conjuntos de formas  
ideológico-discursivas e da práxis que eles determinam8, o fenômeno religioso radica-  
se, inexoravelmente, na condição de estranhamento, haja vista sua essencial negação  
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Trata-se de uma distinção analítica: a própria práxis também possui uma dimensão ideológico-  
discursiva que implica uma retroalimentação.  
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da imanência do ser social (LUKÁCS, 2013). Seu discurso acerca da realidade sempre  
opera com base na aglutinação de apreensões reificadoras, que obliteram a  
dialeticidade concreta do real por meio do apelo à transcendência. Isso porque a  
religiosidade se alicerça na primazia do espírito em relação à matéria, no primado da  
subjetividade sobre a objetividade ao revés da ontologia materialista marxiano-  
lukacsiana que se fundamenta na apreensão da unidade processual complexa do ser  
social com predomínio do momento objetivo.  
Independentemente do quão variegadas possam ser as formas concretas  
específicas que as diferentes religiosidades assumem ao longo do tempo, sua natureza  
estranhada e estranhadora permanece, pois constitui um dos traços essenciais do  
fenômeno do ponto de vista ontogenético. Assim sendo, os homens singulares, em  
sua vida cotidiana, sofrem a determinação das pressões, dos direcionamentos e dos  
limites postos socialmente pela religiosidade, tensionando a processualidade de suas  
experiências frente à ação reificadora do estranhamento religioso. Como já pontuamos,  
a eficácia da reificação e do estranhamento que ela medeia , disseminada e  
consolidada socialmente, reside no fato de que ela: “não obstante a sua constituição  
que, na realidade, é puramente ideológica passa a influir sobre os homens da vida  
cotidiana como uma realidade e até como a realidade.” (LUKÁCS, 2013, p. 682)  
Considerações finais  
Buscamos, neste breve estudo, apresentar ao leitor o que nos parece ser a  
fundamentação teórica mais acertada, frutífera e decisiva para a compreensão do  
fenômeno religioso. Essa abordagem se assenta na teoria social marxiana e se mostra,  
portanto, avessa às tendências predominantes nos estudos acerca das religiosidades  
até os dias atuais; mormente, aquelas que dizem respeito a se tomar a crença em  
deus(es) como variável independente e, assim, se furtar a fazer as perguntas mais  
medulares a respeito da problemática religiosa, isto é, por que, seja no passado mais  
primitivo seja no presente mais tecnocientificista, os homens creem? Quais são os  
fatores determinantes que levam mesmo sociedades tão díspares entre si a prostrar-  
se tão decididamente frente aos deuses que quase espontaneamente elas mesmas  
fabricam para si?  
Observe-se, porém, que a perspectiva aqui adotada também se resguarda de  
uma outra tentação a que, o mais das vezes, se entregam, desavisadamente, os  
especialistas no tema: o ímpeto de ver na religião uma condição ontológica do homem.  
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A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da ontologia de György Lukács  
A ideia de que a própria religiosidade seria um dos fatores imanentes do ser homem  
habita uma extensa produção bibliográfica, nas mais variadas áreas e disciplinas. Marx  
e Lukács não caem nessa tentação. Façamos o mesmo. A religião é um produto tardio  
do ser social, profundamente atrelada ao desenvolvimento e à complexificação das  
contradições postas pelas sociedades de classe. E mesmo outras formas de  
religiosidade, inclusive as que precedem historicamente a religião, ainda que não  
desapareçam com ela, não são um atributo universal do homem, mas hipóstases das  
relações incontornáveis de intercâmbio dele com a natureza, ou dos próprios homens  
entre si, que, uma vez reificadas, aparecem como essas potências alheias, estrangeiras,  
incompreensíveis e opressoras.  
Propusemo-nos a pensar a religião enquanto forma específica do complexo das  
ideologias; sem embargo, também esse caminho é acidentado. Os marxismos e os  
marxistas, em sua ampla maioria, dedicaram-se pouco à temática da religião e, quando  
o fizeram, em geral, erraram. Um dos principais equívocos que cometeram para  
além dos reducionismos e simplificações de todas as ordens reside no trato  
gnosiológico dispensado à categoria ideologia, insistindo em encará-la como sinônimo  
de falsa consciência, reflexo distorcido da realidade, ilusão socialmente necessária ou  
manipulação discursiva da realidade objetiva. Todavia, esforçamo-nos por exorcizar  
nossa leitura também desses equívocos, valendo-nos da obra tardia de György Lukács,  
especialmente seu Para uma ontologia do ser social, em que propõe uma recuperação  
e um posterior desdobramento da versão mais sofisticada e madura da compreensão  
marxiana acerca do complexo ideológico; a qual, como se viu, concebe a ideologia  
como forma de elaboração ideal da realidade que torna a práxis social humana  
consciente e operacional.  
O caminho que assim se descortina manifesta um potencial único para que  
compreendamos igualmente o porquê o avanço acachapante da cientificidade, da  
tecnologia e do capitalismo nos dias atuais não esvaziou igrejas, terreiros, mesquitas,  
mosteiros, sinagogas e templos de todos os tipos mundo afora. Também não tirou das  
pessoas a necessidade de projetar idealmente uma comunidade de justiça e igualdade  
num céu transcendente como resposta a uma realidade concreta que mais parece o  
inferno na Terra. Marx e Engels desenvolveram as bases filosóficas e analíticas que nos  
permitem, com a contribuição de pensadores seminais como Lukács, captar o  
movimento real da religião enquanto categoria ideológica específica e sócio-  
historicamente constituída. Isso significa que não é possível compreender a crença  
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ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 394-430 jul.-dez., 2024 | 429  
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Sérgio Luiz Gusmão Gimenes Romero  
religiosa sem apreender, em sua imanência, o contradizer-se a si mesmo dos homens  
que creem religiosamente; assim como se faz necessário considerar a ação recíproca  
das diferentes esferas constituídas pela dinâmica própria do ser social sobre e a  
partir da religião para vislumbrar, sem se olvidar da prioridade ontológica da  
produção e da reprodução da vida, a especificidade da ideologia religiosa, seu  
surgimento, sua diferenciação, suas condições de efetividade e de superação.  
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Como citar:  
GUSMÃO, Sérgio. A função da ideologia e a dinâmica das religiosidades a partir da  
ontologia de György Lukács. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 394-430;  
jul.-dez., 2024.  
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430 |  
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