Das formas particulares do meio homogêneo à inerência das categorias gerais da arte
importam aos indivíduos enquanto gênero. A arte pretende retirar o indivíduo do seu
enraizamento tacanho na vida cotidiana, combate a condição do indivíduo preso a si
mesmo, busca elevar o indivíduo àqueles momentos cruciais da humanidade. A ênfase
aqui recai sobre o ponto central do problema: é a autoconsciência da humanidade2. E
na medida em que o indivíduo se torna consciente das questões centrais, temos a
transformação da individualidade, pois, assim, vêm superadas as fetichizações comuns
aos procedimentos e necessidades exigidas para a operacionalização da vida cotidiana.
O poder evocador e orientador do meio homogêneo penetra na vida
anímica do receptor, subjuga seu modo habitual de contemplar o
mundo, impõe-lhe antes de tudo um “mundo novo”, enche-lhe de
conteúdos novos ou vistos de modo novo e lhe permite assim receber
esse “mundo” com sentidos e pensamentos rejuvenescidos,
renovados. A transformação do homem inteiro em homem
inteiramente atua, pois, uma ampliação e um enriquecimento de
conteúdo e de formas, efetivas e potenciais, de sua psiquê. Ocorrem
novos conteúdos que aumentam seu tesouro vivencial. O meio
homogêneo o orienta a receber a apropriar o novo desde o ponto de
vista do conteúdo, e assim desenvolve simultaneamente sua
capacidade receptiva, sua capacidade de reconhecer e usufruir como
tais, novas formas objetivas, novas relações etc. (II, cap. X, p. 496)
Não se trata, no entanto, de ver na obra de Lukács um receituário, um cânone,
de princípios que definem o modo como a arte deve ser feita, de buscar nela leis
deterministas postas sob o formato de uma prescrição de elementos fixos que
viabilizem julgar o que é arte ou o que não é arte. Em Lukács o reflexo estético cumpre
função específica no quadro das atividades espirituais do homem: é a apreensão de
um momento específico nesse processo de desdobramento de autoconsciência do
gênero humano, que toma o homem inteiramente3, seus sentimentos, pensamentos,
capacidades subjetivas, dilemas específicos, de forma a propiciar às individualidades
a vivência de elementos essenciais da autoconsciência do gênero. Enfim: o papel da
arte é contribuir para o homem elucidar a si mesmo, tomar consciência do que são os
2
Vale aqui advertir para o uso que Lukács faz das categorias: Partikularität e Besonderheit, conforme
ressaltei na nota do revisor da edição: Lukács, A peculiaridade do estético, vol. 1, Boitempo, 2023.
“Ambas correspondem ao termo “particularidade” no português. Porém Lukács as utiliza em sentidos
distintos. Besonderheit corresponde à categoria da tríade frequente na tradição filosófica
“universalidade, particularidade e singularidade”, enquanto Partikularität possui o sentido de parte, de
delimitado, ou mesmo de interesses particulares. Nessa última acepção, por exemplo, a Partikularität
dos indivíduos, corresponde ao indivíduo isolado, preso a si mesmo, em sua cotidianidade. Conforme
se poderá observar em suas formulações, há o contraponto formulado pelo autor, segundo o qual, por
meio da arte o indivíduo pode se elevar de sua Partikularität à Besonderheit do gênero. Nesse sentido,
Partikularität se distingue de Besonderheit tal como analisa Lukács no “capítulo 12 - A categoria da
particularidade” (Die Kategorie der Besonderheit)”.
3 Definir homem inteiramente em distinção ao homem por inteiro.
Verinotio
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 269-296 – jul.-dez., 2024 | 279
nova fase