DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.732  
Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
Marx, reader of Morgan: critique of social organization  
Lucas Parreira Álvares*  
Resumo: Este artigo propõe o exercício de  
apresentar os nexos que se colocam na leitura  
crítica que Marx fez de Morgan nos chamados  
Cadernos Etnológicos acerca de questões  
relativas ao que Morgan tratou como pertencente  
ao campo da “organização social”, como direito,  
parentesco, religião e política. A partir de um  
exercício de análise imanente dos escritos de  
Marx, em comparação ao texto de Morgan,  
concluiu-se que a posição de Marx em relação ao  
expoente da etnologia estadunidense, embora  
respeitosa, é absolutamente crítica, endossando  
a insuficiência das conclusões de Morgan e os  
riscos de adesão irrestrita a seus esquemas e  
formulações teóricas.  
Abstract: This article proposes the exercise of  
presenting the links between Marx's critical  
reading of Morgan in the so-called Ethnological  
Notebooks about issues relating to what  
Morgan treated as belonging to the field of  
“social organization”, such as law, kinship,  
religion and politics. From an exercise of  
immanent analysis of Marx's writings, in  
comparison to Morgan's text, it was concluded  
that Marx's position in relation to the exponent  
of American ethnology, although respectful, is  
absolutely  
critical,  
demonstrating  
the  
insufficiency of Morgan's conclusions and the  
risks of unrestricted adherence to their schemes  
and theoretical formulations.  
Palavras-chave: Marx; Morgan; etnologia;  
antropologia; organização social.  
Keywords:  
anthropology; social organization.  
Marx;  
Morgan;  
ethnology;  
Introdução  
Marx e Morgan podem ser considerados dois autores incontornáveis em seus  
respectivos campos de atuação. Ironicamente, ambos possuem formação em  
“jurisprudência”, embora sejam reconhecidos por seus escritos e atuações externas ao  
campo formativo. Em suas abordagens investigativas, ambos demonstraram apreço  
por uma concepção histórica, e utilizavam, cada qual a seu modo, de evidências  
materiais para rastrearem os nexos internos aos temas investigados. Marx, ao elaborar  
sua crítica à economia política, apresentou ao mundo a mais densa e minuciosa  
investigação já feita sobre a anatomia da sociabilidade burguesa, navegando por níveis  
distintos de abstrações e estimulando seus leitores a submergir até a raiz dos  
problemas sociais, o que o faz ser uma leitura indispensável aos campos da economia,  
sociologia, filosofia e outros campos parcelares do conhecimento, embora não se  
* Professor substituto do Departamento de Ciências Sociais (UFJF), doutorando em antropologia  
cultural (UFRJ) e pesquisador do Programa Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais (UFMG).  
E-mail: lucasparreira1@gmail.com.  
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Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
adeque plenamente a nenhum deles; Morgan, por sua vez, alocou o parentesco à órbita  
do conhecimento etnológico, aliou a bibliografia sobre as organizações iroquesas com  
investigações duradouras de campo e moldou a escrita de um campo de conhecimento  
que emergiu em reação a suas investigações: a antropologia.  
O exercício de levar a sério ambos autores - raro até mesmo nos campos de  
conhecimentos em que são tratados por “clássicos” - impõe à necessidade que sejam  
expressas suas similaridades, mas também suas diferenças, essas, por vezes tão  
visíveis quanto aquelas. Eles se “encontram” na história na medida em que, já nos anos  
finais de sua vida, Marx teve contato com uma importante obra de Morgan, Ancient  
society, e dele fez uma espécie de “fichamento”, interpondo marcações, fazendo  
comentários e transcrevendo passagens inteiras. A partir desses escritos,  
especialmente nas temáticas que se referem à organização social de sociabilidades  
que historicamente precederam o modo de produção capitalista, este artigo propõe o  
exercício de apresentar os nexos que se colocam na leitura crítica que Marx fez de  
Morgan, sem desconsiderar, é claro, a importância que a obra deste autor representa  
para uma tentativa racional, embora insuficiente, de compreensão do desenvolvimento  
histórico das sociabilidades. Ficará evidente, para ambos, como a temática relativa à  
organização social convida a discussões mais amplas, como a proibição do incesto, as  
particuliridades da chamada “comunidade gentílica”, o totemismo, o fetiche religioso,  
cargos e funções políticas, entre outras questões1.  
1. Marx diante da proibição do incesto  
Na interpretação de Engels, uma das principais contribuições de Lewis Morgan  
em Ancient society foi a de ter demonstrado que a organização gentílica dos índios  
americanos corresponde a toda a organização social dos gregos e dos romanos da era  
primeva e portanto a gens “é uma instituição comum a todos os bárbaros até o seu  
ingresso na civilização” (ENGELS, 2019, p. 83). Os termos gens em latim, genos em  
grego e ganas em sânscrito têm, segundo Morgan (1980, p. 80), “o mesmo significado  
original: o de parentesco [...] uma gens é, portanto, um conjunto de consanguíneos,  
descendendo de um antepassado comum”.  
A utilização do termo “gens” foi disseminado após a publicação do importante  
1 As investigações que esse texto compreende têm como fontes primárias as seguintes referências: “O  
desenvolvimento da ideia de governo” (MORGAN, 1980, pp. 63-333; 1976, p. 7-121; MARX, 1972,  
pp. 139-240; ENGELS, 2019, pp. 83-146).  
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A cidade antiga (1865), de Fustel de Coulanges. Essa foi uma primeira tentativa de  
associar as formações arcaicas da Grécia e Roma a outros povos, nesse caso, aos indo-  
europeus. Fustel de Coulanges (2006, p. 95) assinala uma caracterização igualitária  
entre a gens: “lar, túmulo, patrimônio, tudo isso em sua origem era indivisível. A família  
o era, por consequência [...]. A gens era a família, mas a família conservando a unidade  
ordenada pela religião e atingindo todo o desenvolvimento que o antigo direito  
privado lhe permitia atingir”.  
Não é comum, por parte da literatura antropológica emergente no século XX, a  
utilização do termo “gens” para designar a unidade social de outros povos que não  
os da Roma antiga, ambiente ao qual essa terminologia encontra sua origem. Isso, pois  
a antropologia tem como uma de suas promessas a utilização de “termos nativos” que  
são correspondentes à forma pela qual as próprias comunidades investigadas  
nomeiam a si mesmos. Isso para dizer que o exercício feito por Morgan de se referir à  
unidade social básica iroquesa sob o termo de “gens”, e não à alguma nomenclatura  
nativa, é impensável na forma como são pensadas e elaboradas as pesquisas  
etnográficas hoje no interior da organização iroquesa, a saber, normalmente é  
referenciada pelo termo “clãs”. Por isso, é necessário colocar as formas de tratamento  
de Morgan, essas, em certa medida aderidas por Marx, em seu próprio tempo, para  
que não se reproduza, hoje, um exercício anacrônico. O que deve ser dito de modo  
adicional, no entanto, é que há uma razão específica que motiva esse tipo de  
empreendimento por Morgan: a tentativa de dar inteligibilidade comparativa aos  
tratamentos distintos e isolados que eram realizados por teóricos que o antecederam.  
Apesar disso, a utilização daqui em diante do termo “gens” se justificava na opção por  
tratar, de modo fidedigno, as opções expositivas e terminológica dos autores, mesmo  
que tenhamos discordâncias com tais opções.  
Dito isso, para fins de compreensão, o lugar da gens em uma classificação de  
escalonamento iroquês, segundo Morgan seria como unidade social que, a partir de  
seu agrupamento, formaria uma fratria; que por sua vez, ao lado de outras fratrias  
constituiria uma tribo; por fim, um agregado de tribos poderia formar uma  
confederação. Ou seja, no interior da classificação morganiana sobre os iroqueses  
podemos notar a existência de gens, fratrias, tribos e confederação, vínculos de  
organização que atuam de maneira concomitante e que, em suas relações sociais,  
constituem a totalidade de uma organização. Para Engels (2019, p. 147), essa  
organização “nada mais é que um agrupamento próprio nascido naturalmente, e capaz  
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de resolver todos os conflitos que podem surgir dentro da sociedade organizada dessa  
maneira”.  
Essa forma clássica de organização social pôde ser observada por Morgan entre  
os Iroqueses, mas o autor em questão encontrou correspondências através de  
materiais para além do território ameríndio. Ressaltar essa informação é necessário na  
medida em que Morgan foi aquele que deu uma inteligibilidade consistente às  
especificidades desses diferentes grupos escalonais no interior de uma organização  
social. Uma primeira distinção que antecedeu Morgan no sentido de compreender essa  
forma social foi a cisão estabelecida por McLennan ao dividir essas sociedades entre  
exogâmicas ou seja, aquelas em que o casamento eu seu interior é proibido e  
endogâmicas nas quais o casamento no interior da organização gentílica é permitido.  
Nas pesquisas que antecederam as investigações de McLennan e Morgan, termos como  
“tribo”, “clã”, “gens”, “thum”, entre outras expressões grupais de sociabilidades eram  
utilizados de maneira indiferenciada, o que causava ao leitor um entendimento de que  
esses termos poderiam ser sinônimos.  
A título de elucidação, podemos sugerir a seguinte representação gráfica que  
localiza a tribo onondaga no interior da confederação iroquesa, bem como  
englobamento de suas fratrias e gens.  
Confederação Iroquesa  
Tribos  
Sêneca, Cayuga, Mohawk, Onondaga Oneida e Tuscarora2  
Fratrias  
[da tribo Onondaga]  
Fratria 1 (da gens 1 à 5) Fratria 2 (da gens 6 à 8)  
Gens  
1)Lobo; 2) Tartaruga do Mar; 3) Narceja; 4) Castor; 5) Alvéloa;  
6) Veado; 7) Enguia; 8) Urso  
2 O pertencimento dos Tuscarora na confederação iroquesa só foi admitido por volta de 1722. Essa  
tribo advinha originalmente de outro tronco e, ao ser admitido pelo tronco iroquês, ficou conhecida  
como “o sexto membro”.  
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No exemplo supracitado, podemos concluir que os membros da gens “Tartaruga  
do Mar” pertencem à fratria 1 da tribo Onondaga que, por sua vez, corresponde a uma  
das seis tribos da confederação iroquesa. Do mesmo modo, os membros da gens  
“Enguia” pertencem à fratria 2 da tribo Onondaga que, também por sua vez,  
novamente corresponde a uma das seis tribos da confederação iroquesa. Do mesmo  
modo, as outras tribos Sêneca, Cayuga, Mohawk, Oneida e Tuscarona também  
possuem suas organizações internas específicas.  
No interior das pretensões morganianas, desvendar as características  
constitutivas da organização gentílica significava o entendimento dos aspectos de uma  
espécie de forma social que precedeu a organização política: se por um lado a  
comunidade gentílica era fundada nas linhagens de parentesco, a organização política,  
por sua vez, se fundava sobre o território e sobre a propriedade.  
Embora seja um empreendimento difícil, no sentido da ausência de materiais  
históricos que o comportam, compreender a origem das gens também é um exercício  
fundamental. Sobre esse aspecto, algumas sutilezas evidenciam distinções entre  
Morgan, Engels e Marx.  
Para o autor de Ancient society, três princípios fundamentais serviram de base  
para constituição da comunidade gentílica. São eles: o laço de parentesco; uma  
linhagem sem cruzamentos assegurada pela filiação matrilinear e a interdição do  
casamento no seio da mesma gens (MORGAN, 1980, p. 86). As características da  
organização iroquesa, baseada numa cooperação real entre seus membros e na  
propriedade comum, acendeu o espírito de Crusoé em Morgan que chegou a afirmar  
que “os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, sem nunca terem sido  
explicitamente formulados, eram os princípios fundamentais da gens” (MORGAN,  
1980, pp. 105-6). Um exercício válido é a percepção, como a tida por Marx (2008, p.  
240), de que “quanto mais remontamos na história, melhor aparece o indivíduo, e,  
portanto, também o indivíduo produtor, como dependente e fazendo parte de um todo  
mais amplo” – e Mesmo Marx se utilizou por vezes do termo “fraternidade” para  
caracterizar a organização gentílica em função da relação de afinidade no sentido de  
“parentesco” – entre seus membros, mesmo que a esse propósito o velho mouro não  
estivesse se remetendo aos princípios da Revolução Francesa; outro, porém, é a  
caracterização de uma forma social antediluviana mediante os pressupostos contidos  
após o dilúvio, ou seja caracterizar os “princípios” de uma organização gentílica  
iroquesa com aqueles formulados e defendidos no interior da sociedade capitalista.  
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Em uma análise que parte dos pressupostos marxianos, as características  
comunais de uma forma social jamais poderiam ser consideradas à luz de como a  
própria economia política concebia a sociedade civil-burguesa: através dos caçadores  
e pescadores isolados, como nas formulações de Smith e Ricardo. Além do mais, a  
própria compreensão de Marx desses princípios norteadores da Revolução Francesa  
não se conformou de uma forma elogiosa. Ao contrário, ao pressupor as determinações  
da forma social capitalista, Marx aponta de maneira irônica que “a esfera da circulação  
ou troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de  
trabalho é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino  
exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham”: “liberdade” pois  
compradores e vendedores são movidos apenas por seu livre-arbítrio; “igualdade” pois  
se relacionam apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por  
equivalente; “propriedade” pois cada um dispõe apenas do que é seu; e “Bentham”  
pois cada um olha somente para si mesmo (MARX, 2013, pp. 250-1). É evidente que  
essa constatação morganiana é fruto de sua própria concepção do desenvolvimento  
histórico, mas apresentar essa distinção é fundamental para diferenciarmos os  
pressupostos morganianos em relação aos de Marx.  
Voltemos à caracterização por Morgan de três princípios constitutivos da gens:  
o laço de parentesco; uma linhagem sem cruzamentos assegurada pela filiação  
matrilinear e a interdição do casamento no seio da mesma gens. O laço de parentesco  
é, nesse momento de nossa exposição, um elemento óbvio de constituição da  
organização social dessas formas sociais comunais; já sobre a manutenção da filiação  
matrilinear, vimos que a literatura etnográfica posterior a Morgan demonstrou que  
essa afirmação não possui uma base sólida que corresponda, em sua origem, à  
transição de todas as formas sociais para uma forma subsequente; entretanto, o  
terceiro elemento cravado em Ancient society é um pouco mais sensível o que nos  
conduz a fazer uma análise com mediações mais precisas. Antes, porém, é necessário  
compreender a argumentação de Lewis Morgan sobre esse princípio constitutivo da  
gens.  
Em uma argumentação conjectural, Morgan (1980, p. 86) supõe que a  
organização gentílica “deve ter tomado naturalmente a forma de gens organizada em  
pares, porque os filhos dos homens eram excluídos e porque era igualmente necessário  
organizar as duas classes de descendentes”. Assim, a interdição do casamento no seio  
da mesma gens foi um princípio que teria justificado seu surgimento na medida em  
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que seria necessário aos membros de uma gens casarem com integrantes de, no  
mínimo, outra gens distinta. Por isso, “duas gens, que nascessem ao mesmo tempo,  
teriam bastado para assegurar toda esta organização, pois que os homens e as  
mulheres de uma delas casariam com as mulheres e os homens da outra”.  
Quando Engels elenca uma série de “costumes” da organização gentílica, o  
autor de A origem faz questão de ressaltar o fato de que nenhum membro da gens  
pode casar dentro dela. Segundo Engels (2019, p. 84), “essa é a regra básica da gens,  
o laço que a mantém unida; é a expressão negativa da consanguinidade positiva, em  
virtude da qual os indivíduos abrangidos por ela se tornam uma gens”. Engels também  
chama a atenção para o fato de que a família punaluana descrita por Morgan teria  
sido a expressão original e elucidativa de uma organização gentílica.  
Em um comentário ao texto de Morgan em seus Cadernos de rascunhos, Marx  
apresenta claramente sua concepção sobre a origem das gens:  
[A gens nasce a partir da necessidade de um grupo promíscuo; assim  
que no interior desse começa a ser rejeitado o matrimônio entre  
irmãos e irmãs, já pode ser identificado a existência da gens sobre o  
grupo, mas não antes; pressuposto da gens: que irmãos e irmãs  
(próprios ou colaterais) já estejam distinguidos de outros  
consanguíneos3]. (MARX, 1972, p. 199).  
O comentário de Marx ressalta imediatamente a rejeição do matrimônio entre  
irmãos e irmãs, ou seja, nosso autor não leva em consideração apenas a relação  
consequente entre duas organizações gentílicas, mas faz questão de evidenciar o fato  
motivador do nascimento da gens enquanto uma disrupção no interior de uma  
comunidade natural e espontânea. Mas o que torna inusitada essa passagem é a  
utilização por Marx do adjetivo “promíscuo” para se referir a essa relação necessária  
para o surgimento do gens. Não seria um exagero estabelecer uma distinção entre a  
argumentação de Marx em relação às de Morgan e Engels tendo como fundamento  
essa especificidade presente na caracterização do velho mouro e ausente nas  
formulações dos outros autores de nossa “trama”. Mas qual o sentido em atribuir  
alguma importância a esse propósito?  
Embora em sua origem o termo promiscous tenha uma descendência do latim  
promiscuus que significa algo como “indiscriminado”, sob uma perspectiva lexical a  
3 Do original: “Aber gens entspringt nothwendig aus einer promiscuous group; sobald innerhalb dieser  
schon intermarriage zwischen Brüdern u. Schwestern entfernt (stopped) zu werden beginnt, kann gens  
gepfropft werden auf d. group, nicht vorher; voraussetz g d. gens, dass Brüder u. Schwestern (own u.  
collateral) bereits von andern consanguinei geschieden sind. Die gens einmal da, bleibt sie unit des  
social system, whd d. familie grosse changes dchläuft”.  
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utilização por Marx do termo promiscous em seu tempo já denotava uma referência a  
utilização em outro sentido, a saber, sua caracterização atrelado a relações sexuais.  
Assim, Marx não resume sua compreensão acerca da origem das gens apenas em  
função das interdições matrimoniais; ele passa a levar em consideração também o  
impedimento de relações sexuais em uma unidade da comunidade gentílica. Embora o  
matrimônio possa implicar em relações sexuais, essas duas práticas não se confundem,  
e se por um lado a interdição de matrimônios nas gens é conhecida como “exogamia”,  
por outro a literatura antropológica se utilizou de uma denominação que ficou bastante  
conhecida no decorrer do século XX para delimitar essa distinção específica com a  
terminologia exogâmica: a conhecida expressão “proibição – ou tabu – do incesto”.  
Por mais que não se manifeste de maneira relevante em Ancient society, as  
discussões sobre a proibição do incesto já estavam presentes nas concepções de  
Morgan e de outros expoentes de seu campo de conhecimento. Em Morgan a proibição  
do incesto é condicionada pela própria existência da monogamia: a proibição da união  
de membros de uma mesma comunidade gentílica era uma consequência dos sistemas  
exogâmicos, ou seja, estava condicionada à relação matrimonial. Já nas formulações  
de outros teóricos de seu tempo, como o próprio McLennan e Spencer, não havia  
nenhuma relação aparente entre exogamia e proibição do incesto.  
O afastamento do campo antropológico da compreensão da proibição do  
incesto estava atrelado, como exemplificam as concepções de Selligman e  
principalmente Robert Lowie (1953), à concepção de que esse assunto deveria ser  
tratado sobre a órbita das ciências naturais, e não das ciências sociais. Por isso Lévi-  
Strauss (2012, pp. 49-50) retoma a formulação de Morgan no sentido de que este é  
um dos autores que concebe “a origem da proibição do incesto [...] ao mesmo tempo  
natural e social, mas no sentido de resultar de uma reflexão social sobre um fenômeno  
natural”. O lugar da proibição do incesto no pensamento de Lévi-Strauss teve como  
discussão exatamente essa fronteira entre o natural e o social, “a natureza e a cultura”,  
porém, embora esse autor tenha dedicado tal obra à memória de Lewis Morgan, Lévi-  
Strauss deixa evidente suas distinções diante das formulações do autor de Ancient  
society.  
Se distanciando das interpretações precedentes que “procuraram fundar um  
fenômeno universal sobre uma sequência histórica cujo desenrolar não é de modo  
algum inconcebível em um caso particular”, Lévi-Strauss (2012, pp. 60-1), em um  
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exercício típico de seu meio4, buscou as “causas profundas e onipresentes [que] fazem  
com que, em todas as sociedades e em todas as épocas, exista uma regulamentação  
das relações entre os sexos”.  
Lévi-Strauss concebe a proibição do incesto como “um fenômeno que apresenta  
simultaneamente o caráter distintivo dos fatos da natureza e o caráter distintivo dos  
fatos da cultura”. Para tanto, o teórico francês parte da compreensão de que “em toda  
parte onde se manifesta uma regra podemos ter certeza de estar numa etapa de  
cultura”, e a partir de seu estruturalismo baseado em oposições duais, a proibição do  
incesto apresentaria indissoluvelmente reunidos “os dois caracteres nos quais  
conhecemos os atributos contraditórios de duas ordens exclusivas, isto é, constituem  
uma regra, mas uma regra que, única entre todas as regras sociais, possui o mesmo  
caráter de universalidade” (LÉVI-STRAUSS, 2012, pp. 45-6). Assim sendo, a proibição  
do incesto, para Lévi-Strauss (2012, p. 63) “é o processo pelo qual a natureza se  
ultrapassa a si mesma [...] forma-se uma estrutura de novo tipo, mais complexa, e se  
superpõe, integrando-as, às estruturas mais simples da vida psíquica, assim como  
estas se superpõem, integrando-as, às estruturas, mais simples que elas próprias, da  
vida animal”, o que acarretaria no “advento de uma nova ordem”.  
A utilização do termo “cultura” nesse contexto, por Lévi-Strauss, se confunde  
com uma eventual utilização do termo “sociedade”. Inicialmente em sua exposição,  
Lévi- Strauss opõe “estado de natureza” a “estado de sociedade”, e posteriormente,  
sob a justificativa de uma mera preferência, lança mão de “sociedade” e opta por fazer  
uso do termo “cultura”, estabelecendo assim essa importante dualidade para seu  
desenvolvimento teórico em Estruturas elementares do parentesco: “natureza/cultura”.  
Para Marx e Lévi-Strauss, a proibição do incesto representa um momento  
histórico disruptivo. Todavia, com suas devidas distinções e mediações: ao passo que  
para Lévi-Strauss essa prática representa a passagem do estado de natureza para o  
estado de cultura, para Marx que não fez uso dessas categorias a proibição do  
incesto representa o nascimento da organização “gentílica”. Mas há algo de comum  
entre a teorização de Lévi-Strauss em Estruturas elementares do parentesco e o  
comentário de Marx presente nos assim chamados Cadernos etnológicos: ambos  
4 Esse esforço de opor uma pretensão de identificação de um nexo universal à investigação histórica,  
em que pese as distinções, é um traço comum de sua matriz francesa, seja aludindo as pretensões de  
Durkheim de desvendar as Formas elementares da vida religiosa ou de Marcel Mauss em investigar Uma  
categoria do espírito humano. Por isso os objetivos de Lévi-Strauss eram, antes de qualquer coisa, a  
identificação das Estruturas elementares do parentesco.  
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Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
pressupõem a proibição do incesto enquanto um elemento que conduziu a uma nova  
forma de organização social, mesmo que Lévi-Strauss tenha investigado essa categoria  
sob um viés diacrônico5, e Marx tenha se amparado no desenvolvimento histórico.  
Seria irresponsável de nossa parte concluir, baseado em seus Cadernos, que  
Marx teria antecipado as formulações de Lévi-Strauss em Estruturas. Porém, não é  
exagero sugerir que embora partissem de caminhos e interesses distintos, já se faz  
presente nos rascunhos de Marx sobre Morgan uma intuição daquilo que seria  
extensamente desenvolvido por Lévi-Strauss quase 70 anos depois partindo de outros  
pressupostos e sem ter tido contato com esses escritos de Marx. É necessário,  
portanto, compreendermos as especificidades da gens para além de sua origem, traçar  
suas características relevantes e entendermos o seu lugar na organização dessas  
formas sociais específicas que precederam o modo de produção capitalista.  
Baseado na forma iroquesa, tendo como exemplo principal os seneca, Morgan  
enumera alguns elementos característicos das gens. Essas características ressaltam,  
segundo o autor, direitos, privilégios e obrigações. Engels acompanhou, em certa  
medida, a sequência morganiana e Marx, eventualmente, interpelou a exposição do  
antropólogo com algum comentário. Para além das características já apresentadas –  
interdição do matrimônio para Morgan e Engels; proibição do incesto para Marx é  
fundamental que algumas características dessa gens já constituída sejam colocadas em  
evidência.  
3. O Totemismo e a “casuística inata dos homens”  
Uma característica da organização gentílica assinalada por Morgan (1980, pp.  
97-8) que deve ser ressaltada é o direito de dar nomes aos membros da gens. Cada  
gens reservava para si o uso de certos nomes ou de uma série de nomes. Segundo  
Engels (2019, p. 85) a importância dessa caracterização se conforma no sentido em  
que “um nome gentílico implicava de antemão direitos gentílicos”. Além disso, “o nome  
do indivíduo já denotava a gens à qual ele pertencia”. Marx percebeu imediatamente  
o sentido de como o nome gentílico exercia influência nas relações sociais no interior  
da gens. Em uma passagem em que Morgan comenta sobre as características do nome  
gentílico, Marx o interpelou, acrescentando um importante comentário. Vejamos a  
5 Em oposição à noção de sincronia, a noção de “diacrônico”, especialmente em antropologia, refere-se  
à capacidade explicativa de um fenômeno através de especificidades que denotem sua expressividade  
sucessiva e linear. Para mais, cf. Lévi-Strauss (2008).  
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passagem de Morgan e o comentário de Marx:  
Existia entre os shawnee um costume, comum a todos os Miami, aos  
sauk e aos fox, que consistia em dar às crianças, sob certas condições,  
nomes da gens do pai ou da mãe, ou de qualquer outra gens [...] estes  
nomes conferiam aos indivíduos que os usavam os direitos específicos  
dos membros da gens a que o nome pertencia, de modo que era o  
nome que determinava qual a gens pessoa que o usava. [...]. Se uma  
criança fosse batizada com um nome pertencente à gens do pai,  
entrava assim para esta gens e podia ser o seu sucessor, após,  
evidentemente, uma ratificação eletiva. O pai não tinha qualquer  
intervenção nesta matéria. A gens confiava esta tarefa a determinadas  
pessoas, geralmente a certas matronas a quem se devia consultar  
quando se tratava de dar um nome a uma criança e que tinham o  
direito de escolher o nome. Mediante certos acordos entre as gens  
dos sahwnee, estas pessoas podiam escolher os nomes; quando um  
nome era atribuído segundo as regras prescritas, a criança tornava-  
se membro da gens a que o nome pertencia [Casuística inata do  
homem para mudar as coisas trocando os nomes! Encontrar um  
escape para romper a tradição sem sair da tradição quando um  
interesse real oferece um motivo poderoso para ele6]. (MARX, 1972,  
p. 181; MORGAN, 1980, pp. 202-3)  
A prática entre os shawnee é excepcional, mas o comentário de Marx revela  
uma informação importante acerca das nomeações no interior de uma comunidade  
gentílica: os nomes não são imutáveis, ao contrário, existem uma série de  
possibilidades que podem motivar a substituição ou alteração da nomenclatura de  
membros da gens. Mas não são as mudanças de nomes que provocam contradições  
no interior dessas formas sociais, ao contrário, são exatamente os antagonismos no  
interior da gens que implica no ato da mudança de nomes. A provocante interpelação  
de Marx nos demonstra que uma nova nomenclatura gentílica pode estar atrelada a  
um lugar na organização social de determinada gens. Nesse sentido, Morgan (1980,  
p. 99) ressalta que “as precauções que rodeiam o uso de nomes específicos de uma  
gens prova, suficientemente a importância que lhes é atribuída e os direitos gentílicos  
que conferem”. A utilização de um nome gentílico revela, por sua vez, os vínculos que  
unem os membros de uma gens. Como os nomes das gens correspondiam a séries  
naturais animais, plantas, etc. o nome gentílico provocou, por vezes, a crença de  
6 Do original “Eingeborne casuistry of man to change things by changing names! U. Schlupfwinkel zu  
finden um innehalb der Tradition die Tradition zu durchbrechen, wo actual interest powerful motive dazu  
gab”. Quando traduzimos essa passagem, acreditamos que embora fizesse mais sentido a utilização da  
expressão “casuística inata”, uma tradução também rigorosa poderia optar por “casuística nativa”. Mas  
o termo “Eingeborne” tem dois sentidos principais: 1) nascido em um lugar, em um país, etc., ou seja,  
nativo; 2) nascido com a pessoa, ou seja, inato, sendo este o uso mais erudito da palavra. Assim,  
optamos por utilizar o termo “inato” em detrimento de “nativo” – da mesma forma, a tradução em  
espanhol dessa passagem também conservou o “inato”. Somos grato ao tradutor Nélio Schneider pela  
contribuição a essa nossa dúvida.  
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Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
que existia um vínculo místico entre a gens e aquele ser natural correspondente a seu  
nome gentílico. A literatura tratou de caracterizar essa suposta correspondência  
natural aos nomes gentílicos como totem; já a presunção de uma associação real entre  
o totem e o conjunto de relações de uma determinada organização gentílica foi  
denominada de “totemismo”.  
Investigado por autores consagrados como Freud e Durkheim, o assim chamado  
“totemismo” foi concebido pela órbita do conhecimento antropológico sobretudo em  
função de sua matriz americana. Essa temática foi fruto de estudos e inquietações a  
partir da segunda metade do século XIX, inicialmente como uma chave que forneceria  
alguma inteligibilidade à organização social dos povos investigados por etnógrafos e  
etnólogos tendo como fundamento uma homologia de relações metonímicas entre  
duas séries, uma social seres humanos e outra natural espécies ou fenômenos  
da natureza.  
Quando Morgan tratou da gens dos Ojibwa em Ancient society, disse que na  
língua desse povo “a palavra totem, que se pode pronunciar também dodaim, significa  
símbolo ou divisa de uma gens”, desse modo, “uma cabeça de lobo seria o totem da  
gens do Lobo. Por isso Schollcraft em History of Indian tribes empregou a  
expressão ‘sistema totêmico’ para designar a organização gentílica”7 (MORGAN, 1977,  
p. 198). Para compreendermos como exemplo, as vinte e três gens dos Ojbwa  
enumeradas por Morgan e transcritas por Marx correspondiam às seguintes séries  
naturais:  
1) Lobo; 2) Urso; 3) Castor; 4) Tartaruga (do lodo); 5) Tartaruga (de água  
doce); 6) Tartaruga (pequena); 7) Rena; 8) Narceja; 9) Grou; 10) Milhafre; 11)  
Águia; 12) Mergulhão; 13) Pato; 14) Pato; 15) Serpente; 16) Rato Almiscarado;  
17) Marta; 18) Garça Real; 19) Cabeça de Touro; 20) Carpa; 21) Peixe-gato; 22)  
Esturjão; 23) Lúcio.  
Assim, segundo a literatura da segunda metade do século XIX e início do XX  
havia um sentido na adoção dessas nomenclaturas naturais ou no caso específico,  
animais na organização social de uma determinada comunidade gentílica. Podemos  
7 Sobre o termo em si, Lévi-Strauss (1975, p.28) acrescenta: “Sabe-se que a palavra totem foi formada  
a partir do ojibwa, língua algonkin da região ao norte dos Grandes Lagos da América do Norte. A  
expressão ototeman, que significa aproximadamente ‘ele é de minha parentela’, se decompõe em: o  
inicial, sufixo da terceira pessoa, -t- epêntese (para evitar a coalescência das vogais, -m- possessivo, -  
na- sufixo da 3ª pessoa; enfim, -ote- que exprime o parentesco entre Ego e um parente consanguíneo,  
macho ou fêmea, definindo pois o grupo exogâmico no nível de geração do sujeito.”  
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supor que uma análise de William H. Rivers a partir do sistema totêmico dos Ojbwa  
compreenderia três dimensões consequentes das homologias totêmicas: a primeira  
delas seria uma dimensão social, que corresponderia a uma conexão dessas espécies  
animais com um grupo específico da comunidade gens 1 = lobo; gens 3 = castor;  
gens 20 = carpa etc.; uma dimensão psicológica, que exprimiria uma suposta relação  
de parentesco entre os membros de gens e os animais do sistema de classificação  
totêmico baseado na concepção de que os membros das gens seriam descendentes  
desses animais por filiação por exemplo: gens 1 descende do lobo; gens 3 descende  
do castor; gens 20 descende da carpa, etc. ; e por fim uma dimensão ritual, em que  
haveria uma interdição manifesta, por parte dessas gens em se alimentar do animal  
que corresponderia a sua homologia totêmica ou seja, gens 1 não poderia se  
alimentar do lobo; gens 3 não poderia se alimentar do castor; gens 20 não poderia se  
alimentar da carpa, e assim sucessivamente8. Embora habituado com a terminologia,  
Morgan parece não ter dado muita importância, assim como a literatura de sua época,  
à temática do “totemismo” – ou pelo menos não a partir desses termos. Morgan  
parecia resistente em se utilizar dessa denominação que, posteriormente, tornou-se  
uma categoria importante para a história do pensamento antropológico ainda que  
de maneira crítica. A expressão “sistema totêmico”, em Morgan (1977, p. 198) “seria  
perfeitamente aceitável se não dispuséssemos de uma terminologia em latim e grego  
capaz de exprimir cada qualidade e característica de um regime que pertence já à  
história”.  
Uma das supostas contribuições do teórico estadunidense ressaltada por Engels  
foi, todavia, exatamente o entendimento de que haveria uma correspondência entre as  
“associações gentílicas designadas por nomes de animais9 em uma tribo de índios  
americanos” e as gens gregas e romanas, de tal modo que “a forma americana é a  
original, e a greco-romana, a posterior, derivada; de que toda a organização social dos  
gregos e dos romanos da era primeva, subdividida em gens, fratria e tribo, tem um  
paralelo exato na organização social dos índios americanos” (ENGELS, 2019, p. 83),  
ou seja, que a organização social baseada num sistema totêmico seria um estágio  
8 Esse é apenas um exercício ilustrativo. De acordo com os dados etnográficos, não foi notado, entre os  
ojibwa, “a crença de que os membros do clã fossem descendentes do animal totêmico; e este não era  
objeto de culto” (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 30).  
9 Essas associações não eram apenas designadas por “nomes de animais”, podendo ser observadas  
também algumas nomenclaturas como “montanha”, “nuvens”, “rio” etc. para designá-las. Por esse  
motivo, a literatura antropológica optou por tratar essa homologia como uma “série natural”.  
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originário das formas sociais o que exerceria uma importante influência na  
organização social da gens.  
Marx, por outro lado, parece ter tido uma maior atenção a esses sistemas  
totêmicos. Nas anotações sobre Lubbock incluídas nos chamados Cadernos  
Etnológicos - Marx transcreveu todas as passagens em que o Barão de Avebury tratou  
sobre o totemismo, este que seria um dos estágios evolutivos da história da religião  
para esse autor10. Em seus fichamentos de Morgan, fez questão de anotar as  
passagens em que o teórico estadunidense tratou do totemismo nesses termos além  
de transcrever todas os trechos de Ancient society nos quais, a partir de materiais  
etnográficos, Morgan apresentou alguma relação entre uma série social e uma série  
natural. Além disso, em algumas ocasiões em que Morgan estabeleceu uma relação  
totêmica em seu texto, Marx acrescentou o termo “totem!” entre parênteses  
seguidamente à passagem de Ancient society. Para além das próprias transcrições,  
Marx fez alguns comentários pertinentes não só para sua própria concepção do que  
se trataria o chamado sistema totêmico como também para a compreensão do modo  
pelo qual essa temática era trabalhada naqueles anos.  
Uma primeira inquietação de Marx apresentada em seus Cadernos levou em  
conta esse caráter originário que os sistemas totêmicos teriam tido com as relações  
de parentesco através de uma suposta filiação entre a gens de uma determinada série  
natural e a própria personificação dessa série, ou seja, para continuarmos com os  
Ojibwa enquanto uma referência em nossa exposição, de que a “gens lobo”  
descenderia da “série natural lobo”.  
[Dado que o encadeamento das linhagens, especialmente no  
surgimento da monogamia, se apresenta como algo distante e a  
realidade do passado é espelhada num reflexo fantástico de uma  
imagem mitológica, os filisteus e cavaleiros burgueses decidiram e  
decidem que uma genealogia fantástica criou gentes reais!11] (MARX,  
1972, p. 202)  
A passagem por si só teria sua relevância ao notarmos que Marx desenvolve  
10 Os estágios, segundo Lubbock, eram: “ateísmo (inexistência de qualquer noção de matéria) → fetichismo  
(pressão do homem para que a deidade cumpra os seus desejos) → totemismo (adoração de objetos naturais)  
→ xamanismo (distanciamento entre a divindade e os seres humanos) → idolatria ou antropomorfismo  
(deuses adquirindo imagem humana) → divindade convertida em ser sobrenatural → religião (associada à  
moral)”. Para mais sobre a leitura de Marx de Lubbock, conferir o artigo de Gustavo Velloso (2018) publicado  
no primeiro número da Revista Práxis Comunal.  
11 Do original “Weil d. Verkettung der Geschlechter, namentlich mit Anbruch d. Monogamie, in d. Ferne  
gerückt u. d. past reality in mythological Phantasiebild reflectirt erscheint, hence schlossen u. schliessen  
Philister-Biedermän<n>er, dass d. Phantasiegen<e>elogie wirkliche gentes schuf!”.  
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uma crítica explícita ao caráter “fantástico” atribuído à realidade, o que, como sabemos,  
não é uma especificidade presente nos Cadernos etnológicos. Mas o que revela uma  
contribuição absolutamente significativa de Marx nessa passagem é o fato de que  
nosso autor chama a atenção não para relação da homologia totem/realidade presente  
nas formas sociais gentílicas, mas sim, pela opção de caracterizar essa genealogia  
enquanto uma acepção advinda dos “filisteus e cavaleiros burgueses” através de uma  
conclusão arbitrária que seria o reflexo, de uma série natural, à origem de descendência  
de uma realidade social. Ou seja, Marx não faz uma crítica ao totemismo enquanto  
categoria presente na sociabilidade de comunidades gentílicas nem mesmo  
pressupõe, em seu comentário, a existência de sistemas totêmicos enquanto  
determinações dessas comunidades. Sua crítica é direcionada ao modo como a  
existência dessas séries naturais ou fantásticas posteriormente atribuídas pela  
denominação de “totemismo” – foi e é compreendida pelos teóricos que se  
defrontaram com essa especificidade.  
Marx antecipa assim as primeiras críticas à categoria antropológica  
“totemismo”, desde as primeiras inquietações que podem ser observadas na literatura  
desse campo de conhecimento no primeiro terço do século XX até dúvidas e  
confrontações do segundo terço desse mesmo século impostas aos assim chamados  
“sistemas totêmicos” que provocaram, senão um fenecimento dessa temática enquanto  
uma chave de compreensão de organizações sociais de comunidades gentílicas, no  
mínimo um descrédito àqueles que se enveredavam a esse propósito.  
Em sua importante obra Primitive society, de 1920, Robert Lowie se dedicou a  
questionar os postulados sobre o totemismo que o antecederam. A esse propósito,  
teve como referência as formulações acerca dos sistemas totêmicos elaboradas por Sir  
James Frazer e Alexander Goldenweiser, dois importantes expoentes da Antropologia  
que acreditam, cada qual a seu modo, em uma correspondência entre as relações  
totêmicas e a organização social dos clãs – ou das “gens”, como preferiria Morgan.  
Quanto ao empreendimento de Frazer, Lowie (1920) criticou o modo como o autor de  
O ramo de ouro, através de uma comparação imprecisa de diversos sistemas totêmicos,  
procurou investigar uma suposta origem dessa especificidade que ele considerava  
como uma categoria primitiva. Quanto a Goldenweiser, Lowie reconheceu a validade  
de alguns aspectos de sua exposição, mas criticou a conexão estabelecida pelo autor  
entre o papel dos sistemas totêmicos e a organização social, o que o levou a assumir  
um não convencimento, “apesar da perspicácia e da erudição que tem sido destinada  
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a este fim, de que a realidade do fenômeno totêmico foi demonstrada” (LOWIE, 1920,  
p. 145). Essa posição de Lowie segue no mesmo sentido de uma crítica que ele fizera  
alguns anos antes não àqueles que criavam uma suposta realidade totêmica, mas sim,  
aos que se utilizavam desse mesmo procedimento ao postularem a existência de  
instituições em formais sociais em que elas não estivessem pressupostas: “é necessário  
saber se estamos comparando realidades culturais ou meras criações de nossos modos  
lógicos de classificação” (LOWIE, 1912, p. 41), ou seja, um questionamento que  
poderia ser também fortuito aos sistemas de parentesco e que, a propósito, se  
aproxima da crítica marxiana aos “filisteus e cavaleiros burgueses”.  
Em Totemismo Hoje, obra que revolucionou o tratamento a essa temática na  
história do pensamento antropológico, é novamente Lévi-Strauss quem coloca em  
questão os pressupostos da tradição que o antecedeu no que se refere ao tratamento  
dado aos sistemas totêmicos. Se aqueles teóricos tratavam o totemismo enquanto uma  
relação metonímica, ou seja, associando a prática a partir da inspiração em um figura  
de linguagem que possibilita a substituição de um termo por outro, Lévi-Strauss  
(1975, p. 39) inova ao dizer que o sentido dos totens em sociedades que fazem uso  
dessas categorias não opera sob uma lógica metonímica, mas sim, metafórica, afinal,  
a relação entre os sistemas totêmicos e a organização social dos clãs seria  
necessariamente descontínua e distanciada12: “dizer que o clã A ‘descende’ do urso e  
que o clã B ‘descende’ da águia nada mais é que uma maneira concreta e abreviada  
de colocar o relacionamento entre A e B como análogo a um relacionamento entre  
espécies”.  
Essa constatação correta de Lévi-Strauss não contraria a suposição de Morgan  
de que haveria uma similaridade entre as gens gregas e as gens iroquesas no sentido  
de que em ambas seria possível observar, em suas origens, uma correspondência entre  
as “associações gentílicas designadas por nomes de animais”. Por outro lado, a  
descoberta de Lévi-Strauss trouxe uma forma de inteligibilidade ao tratamento dos  
sistemas totêmicos que propiciou aos expoentes do pensamento antropológico o  
questionamento constante de outras categorias presentes naquelas formas de  
sociabilidade investigadas.  
12  
É importante ressaltar a conexão íntima que o estruturalismo de Lévi-Strauss - tal como próprio  
estruturalismo em si - possui com as teorias da linguagem, tendo sua origem nas elaborações de  
Ferdinand de Saussure que intuía a necessidade de autonomização dos estudos linguísticos.  
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4. A “invenção de soberanos”  
Na esteira das caracterizações gentílicas enumeradas por Morgan (1980, pp.  
89- 92), outra que nos é importante nesse momento é a autonomia gentílica em eleger  
o que era entendido como “duas espécies de chefes”: o primeiro deles era o sachem,  
uma função hereditária na gens, provida sempre que havia uma vacância no cargo –  
Engels (2019, p. 84) optou por referenciar ao sachem como “chefe de paz”. Marx  
indaga:  
“[O fato de que a eleição dos Sachems se deu de maneira hereditária  
em algumas gens não provém de que certas gens eram as mais  
comuns a todas as tribos?13]” (MARX, 1972, p. 167)  
Embora não haja uma comprovação do questionamento de Marx, a função do  
sachem, segundo Morgan (1980, pp. 89-90) “encontrava o seu fundamento natural  
na gens que, como corpo organizado de consanguíneos, tinha necessidade, enquanto  
tal de um chefe representativo”. A função do sachem era bem definida: zelar  
permanentemente pelas necessidades dos membros das gens. De certo modo ela  
complementava as funções atribuídas ao outro cargo eleito, o “chefe propriamente  
dito”. Concedido a partir de um suposto mérito individual daquele membro da gens  
eleito, o chefe propriamente dito podia ser eleito também de maneira exterior à gens.  
Engels preferiu tratar esse como “chefe guerreiro”, sobretudo em função da  
participação do representante desse cargo nos conflitos em que a comunidade  
gentílica se inseriu. Outra característica gentílica elencada por Morgan possui total  
relação com a anterior: o direito de destituir o sachem e o chefe. Esse direito era  
reservado aos membros da gens, e quando um sachem ou um chefe eram destituídos  
de seu cargo pelo conselho da tribo, o destituído volta a desempenhar o papel de  
membro comum na gens, assim como todos aqueles que não eram chefes.  
A obrigação recíproca de ajudar e defender os membros da gens, bem como  
obter reparação dos danos sofridos por estranho, é uma quarta característica da  
organização gentílica elencada por Morgan (2019, pp. 94-6) e enfatizada por Engels  
(2019, p. 85). A proteção do indivíduo deveria ser assegurada pela gens, assim, na  
medida em que um membro era ferido, quem o ferisse estaria atingindo toda a  
organização gentílica. Da mesma forma, se um externo assassinasse um membro da  
gens, a primeira consequência seria uma tentativa de mediação entre a gens do  
13 Do original “Das Erblichmachen d. Wahl d. Sachems in certain gentes, does it not spring davon, dass  
certain gens most common allen tribes?”  
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assassino e o conselho da gens do assassinado. Morgan demonstra que era comum  
essa compensação ser proposta em forma de manifestações de pesar e presentes  
consideráveis à gens da vítima. Se as compensações fossem aceitas, o conflito se  
resolveria; se não, a gens ofendida podia nomear um ou mais vingadores que tinham  
o dever de perseguir e executar o assassino. Caso essa vingança fosse concluída, a  
gens do assassino morto não teria o direito de levantar queixa junto ao conselho. Para  
Marx, esse processo era uma [Forma modificada da vingança de sangue!14]MARX,  
1972, p. 151).  
A existência desse conselho da gens era também uma característica específica  
dessa forma de organização. Todos os membros, homens e mulheres, tinham o mesmo  
direito de voto, seja para decidir sobre a vingança de morte de um assassino  
proveniente de uma gens externa, ou mesmo para eleger e destituir o sachem e o  
chefe. Em suma, assinala Engels (2019, p. 86), o conselho “representava o poder  
soberano na gens”.  
Essas atividades do conselho da gens se confundiam com as das fratrias. Porém,  
o mesmo não acontecia com os conselhos das tribos e da confederação. Entre os  
atributos políticos da tribo estão os direitos de instalar solenemente no cargo os  
sachems e líderes guerreiros eleitos pelas gens e destituir dos cargos esses ocupantes,  
ainda que contra a vontade (ENGELS, 2019, p. 89). Por mais que essa seja uma  
característica proveniente da organização iroquesa, Morgan nota que cargos  
semelhantes poderiam ser notados entre os gregos e os romanos, o que também podia  
ser percebido era uma incapacidade, por parte dos intérpretes, de tratarem dessas  
formas sociais a partir de suas próprias determinações. Acerca da chefia entre os  
romanos, Morgan apresenta algumas passagens de Mommsen que parecem não terem  
agradado Marx.  
Segundo Mommsen, todas essas comarcas (leia-se tribos) eram  
politicamente independentes [asno!15] nos tempos mais antigos, e  
governado por seus soberanos [Mommsen, inventor de soberanos;  
leia-se chefe da tribo16] com a assistência do conselho dos anciãos e  
da assembleia dos guerreiros. (MARX, 1972, p. 224; MORGAN, 1974,  
p. 16)  
Novamente vemos um comentário de Marx não a uma especificidade  
proveniente de uma organização gentílica, mas sim, do modo como os intérpretes a  
14  
Do original “Veränderte Form der Blutrache!”.  
15 Do original “asinos!”.  
16 Do original “Prinzerfinder Mommsen; read chief of the tribe”.  
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concebiam. A opção por parte de Theodor Mommsen também possuído pelo espírito  
de Crusoé – de denominar aquele que exercia a chefia tribal sob o título de “soberano”,  
ou seja, uma atribuição originalmente utilizada em formas sociais que pressupõem a  
existência de um Estado, incomodou Marx. Se há algo constante nos comentários  
provenientes dos chamados Cadernos etnológicos de Marx é exatamente esse  
incômodo por parte das Robinsonadas dos intérpretes. Mas voltando à organização  
social entre os Iroqueses, vejamos quais são as atribuições da Confederação dessa  
etnia.  
Por ser a maior unidade da comunidade gentílica, a Confederação possui grande  
parte de seus atributos relacionados à organização política. Dentre eles a existência  
de um “órgão da confederação” através do qual por volta de 50 sachems formavam  
um conselho sem hierarquia entre seus participantes e sem uma pessoa exercendo a  
liderança durante esse encontro de tribos. Segundo Engels (2019, p. 91) a partir das  
formulações de Morgan (1980), todas as decisões do conselho confederativo tinham  
de ser tomadas por decisão unânime; o processo de votação era realizado por tribos,  
e cada um dos cinco conselhos tribais podia convocar o conselho confederativo. O  
interessante a ser ressaltado é que as sessões deste conselho eram realizadas com  
direito à participação e voz de qualquer iroquês presente na reunião.  
Existe, porém, uma característica da organização gentílica que ainda não foi  
mencionada e que constantemente se manifestam como um atributo exótico dessas  
formas sociais por parte de seus intérpretes. Nos referimos às especificidades  
religiosas da comunidade gentílica. Através de sua conformação em diferentes épocas  
históricas e em distintas formas sociais, poderemos acompanhar também os elementos  
que foram determinantes para o processo de dissolução da gens.  
5. “O aroma do incenso”: o fetiche religioso e a dissolução da gens  
O processo de dissolução da comunidade gentílica foi comentado por Marx em  
algumas intervenções ao texto de Morgan. Em uma das mais provocantes passagens,  
Marx chega a uma conclusão que não se apresenta de maneira expressa em Ancient  
Society: no momento em que Morgan caracteriza a gens grega, Marx o interrompe  
fazendo uma constatação, a partir daquela característica gentílica, a um elemento de  
continuidade na circunstância de dissolução da gens. Vejamos a passagem de Morgan  
acrescida do comentário de Marx:  
“Na gens tiveram origem as atividades religiosas dos gregos que se  
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Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
desenvolveram nas fratrias e culminaram em festividades periódicas  
comuns a todas as tribos Fustel de Coulanges [O miserável  
elemento religioso se converte no aspecto principal da gens à medida  
que acabam a cooperação real e a propriedade comum; o que resta é  
o aroma do incenso17]”. (MARX, 1972, p.202; MORGAN, 1980, p.  
277)  
Marx demonstra que, no processo de dissolução da comunidade gentílica,  
aqueles elementos que antes caracterizavam o caráter fraterno desta forma social –  
como sua “cooperação real” e sua “propriedade comum” – são rompidos. Ou seja, na  
medida em que são impostas mediações entre o membro da gens e a obtenção de  
seus meios de vida, findam aquelas características que eram condizentes com relações  
de parentesco da gens, que por sua vez serviam enquanto forças produtivas para a  
produção social por meio de sua atividade vital. O que resta, desse processo, é apenas  
“o aroma do incenso”, ou em outras palavras, “o miserável elemento religioso”. Na  
medida em que a chama da dissolução alcança a gens, apenas esse aroma religioso  
permanece.  
O curioso é que esse comentário de Marx a Morgan reflete o avesso do que  
Marx (2013, p. 154) diz em O capital para se referir a uma circunstância oposta: “o  
reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as relações cotidianas  
da vida prática se apresentam diariamente para os próprios homens como relações  
transparentes e racionais que eles estabelecem entre si e com a natureza”. Eis uma  
distinção nítida entre essas formas sociais comunais por vezes erroneamente  
caracterizadas como “comunismo primitivo” – e uma forma social baseada na  
superação do modo de produção capitalista: embora as formas comunais  
pressuponham uma relação imediata entre o homem e a obtenção dos seus meios de  
subsistência, a ausência de controle consciente das condições de vida impõe  
obstáculos para a superação do elemento religioso em sua própria sociabilidade. Mais  
do que como um obstáculo, a existência de características místicas é um pressuposto  
dessa forma social, afinal, conforme assinala Marx (2013, p. 154), o “baixo grau de  
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho”  
e
as “relações  
correspondentemente limitadas dos homens no interior do seu processo material de  
produção de vida, ou seja, pelas relações limitadas dos homens entre si e a natureza  
[...] se reflete idealmente nas antigas religiões naturais”. O comunismo, por outro lado,  
não possui uma relação material imediata entre o homem e a obtenção dos seus meios  
17 Do original “Das Lumpige religiöse Element wd Hauptsache bei gens, im Mass wie real cooperation  
u. common property alle werden; d. Weihrauchsduft, der übrig bleibt”.  
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de vida, todavia os homens, comunitária e racionalmente, compreendem e controlam  
tal mediação.  
Diante do grau de desenvolvimento das formas produtivas em uma sociedade  
que adota o modo de produção capitalista, uma ruptura com as relações reificadas da  
ação individual “aparece como possibilidade, ao mesmo tempo em que a vigência do  
modo de produção capitalista é um obstáculo à realização efetiva dessa potência  
emancipatória” (SARTORI, 2018, p. 47). Isso justifica o comentário de Marx ao livro de  
Morgan na medida em que por mais que nas formas sociais comunais existissem  
características fraternais comunidade com grande influência dos laços de parentesco,  
ausência de classes sociais e inexistência de mediações entre o homem e a obtenção  
de seus meios de vida – o “miserável elemento religioso” permanece em função do  
baixo grau de desenvolvimento de suas forças produtivas. Assim, quando Marx afirma  
que a supressão do “reflexo religioso de mundo” só pode ruir através de relações  
transparentes e racionais que eles estabelecem social e naturalmente, o que está  
pressuposto nessa constatação é um alto grau de desenvolvimento de forças  
produtivas desta forma social outra, o que nos afasta de uma interpretação em que a  
superação do modo de produção capitalista dever-se-á se realizar através de um  
retorno a uma forma social antiga como o equivocadamente nomeado “comunismo  
primitivo”, por exemplo – e nos aproxima de uma conclusão de que tal superação só  
pode resultar em uma forma social superior e até então inexistente.  
Vimos que o baixo desenvolvimento de forças produtivas em determinada  
forma social implica no fato de que o elemento religioso adquire um alto grau de  
importância. Engels (1960, p. 277) atesta isso em uma carta a Schmidt no ano de  
1890 quando afirma que na base das representações falsas da natureza do elemento  
religioso através dos espíritos e dos poderes mágicos está a constituição de um  
elemento econômico negativo: “o fraco desenvolvimento econômico do período  
histórico tem como complemento, mas também aqui e ali como condição e até como  
causa, as falsas representações da natureza”. Para uma compreensão devidamente  
mediada entre as relações econômicas e religiosas dessas formas sociais é fundamental  
que compreendamos as especificidades desses antigos melindres místicos. No entanto,  
como a religião se conforma em formas gentílicas de sociabilidade e por quê elas  
conseguiram se manter mediante a dissolução do caráter comunal previamente  
existente?  
Vimos por meio de Marx que as relações de parentesco ocupam um papel  
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fundamental enquanto força produtiva embora em baixo grau de formas sociais  
comunais por meio da organização social do processo de produção. O que acrescenta  
Lévi-Strauss (2011) nas suas Mitológicas é que a organização do mundo subjetivo  
nessas localidades também são amparadas pelas relações de parentesco ali  
constituídas. Embora parta de pressupostos e objetivos distintos dos de Marx, Lévi-  
Strauss demonstra que as relações de seres sobre-humanos estão também vinculadas  
por relações entre pai/filho, tio/sobrinho, marido/esposa, irmão/irmã, entre outros  
laços de parentesco. Mas as conclusões e descobertas do estruturalista francês  
localizam-se temporalmente na segunda metade do século XX; um século antes essas  
mediações eram ainda pouco desvendadas, o que dificultava bastante a compreensão  
dessas especificidades nessas formas sociais. Se existia uma concordância entre as  
concepções de Morgan e de Engels, é que ambos estavam em acordo de que a religião,  
nessas formas de sociedade, ainda tinha sido pouco investigada até a segunda metade  
do século XIX. Para Morgan (1980, p. 140), os sistemas religiosos tinham sido apenas  
parcialmente estudados, e Engels (2019, p. 89) completa dizendo que as concepções  
religiosas desses povos que para o autor de A origem é sinônimo de “mitologia” –  
ainda não tinham sido examinada criticamente. De toda forma, esses autores se  
propuseram a destinar algumas linhas a esse propósito.  
Segundo as informações obtidas por Morgan (1980, p. 141), os iroqueses  
acreditavam na existência de espíritos correspondentes às diferentes espécies de  
árvores e plantas assim como às águas correntes em resumo, como já vimos  
anteriormente, um paralelo com seres naturais. Para o autor de Ancient society, “a  
existência destes múltiplos espíritos e dos seus atributos eram percebidos de uma  
maneira confusa”. Segundo Engels (2019, p. 89), “trata-se de um culto à natureza e  
aos elementos que tende ao politeísmo”. O que esses dois autores ressaltam é que  
não existia ali uma representação humana figurada o que os estudos religiosos  
posteriormente trataram como “ídolo”. Esse atributo seria uma regra geral, segundo  
as concepções de Morgan, das tribos pertencentes à fase inferior da barbárie, o que  
já não podia ser constatado entre os astecas que já tinham superado esse estágio: “os  
astecas tinham deuses pessoais, representados por ídolos, que adoravam nos templos.  
Se conhecêssemos com precisão os pormenores do seu sistema religioso, poderíamos  
provavelmente mostrar como esse sistema se desenvolveu a partir das crenças  
difundidas nas tribos índias”.  
É importante ressaltar essas distinções entre formas sociais que correspondem  
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a tipos distintos de cultos religiosos na medida em que a crítica marxiana à religião é  
um assunto bastante difundido o que não quer dizer que seja bem compreendido.  
Na Introdução” à Crítica da filosofia do direito de Hegel, o pressuposto crítico de Marx  
é a Alemanha, país esse que refletia uma forma social cujo elemento religioso já estava  
pressuposto como uma representação humana figurada: “o homem, que na realidade  
fantástica do céu, onde procurava um super-homem, encontrou apenas o reflexo de si  
mesmo, já não será tentado a encontrar apenas a aparência de si, o inumano, lá onde  
procura e tem de procurar sua autêntica realidade” (MARX, 2005, p. 151). Isso não  
quer dizer que a crítica marxiana à religião não tenha relevância para formas sociais  
precedentes. Porém, é necessário que se estabeleça mediações para tal  
empreendimento, sobretudo na medida em que não só trata-se de aparatos religiosos  
distintos, como também de formas sociais diferentes18. Vejamos, portanto, como se  
conforma as práticas religiosas nessas formas sociais que as distinguem da sociedade  
civil burguesa.  
Na época da trama que envolvia Marx, Engels e Morgan, a compreensão das  
determinações religiosas primitivas tinham um amparo em algumas informações  
anteriores advindos de viajantes, missionários e aventureiros que descreviam  
principalmente os traços religiosos de povos da África ocidental. Era perceptível como  
que nas tribos daquela localidade praticava-se um culto a objetos que não  
representavam divindades figuradas, mas sim, seres naturais, como animais, plantas,  
montanhas, etc. Diante dessa prática específica, as referências a essa forma religiosa  
eram tratadas sob a alcunha de “fetiche”.  
Para a compreensão do fetiche, é necessário nos refugiarmos “na região  
nebulosa do mundo religioso” (MARX, 2013, p. 148). Sabe-se que Marx, nos primeiros  
meses ano de 1842 ou seja, num momento em que os escritos marxianos ainda  
refletiam os pressupostos hegelianos de seu autor leu uma tradução alemã da  
importante obra Du culte des dieux fétiches, de Charles De Brosses, originalmente  
publicada em 1760. A obra de Charles De Brosses influenciou consideravelmente a  
literatura posterior sobre a religião e sua importância pode ser ressaltada justamente  
na medida em que esse autor foi precursor em se utilizar do termo “fetiche” para se  
referir a culto religiosos que tinham um ser natural como um objeto a se fazer  
18 Essa observação é necessária na medida em que há autores sérios como Pires (2009) embora não  
pertencente à tradição marxista que extraem da “Introdução” à Crítica à filosofia do direito de Hegel  
uma crítica marxiana às religiões de formas sociais que precederam ao modo de produção capitalista.  
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referência - sejam seres inanimados, animais, ou mesmo seres dotados de  
características divinas19 - o termo que Marx teve contato, o alemão fetich, possui sua  
raiz etimológica amparada no português “feitiço”. A leitura de Marx da obra de De  
Brosses é a primeira referência que nos fornece evidências, por parte do velho mouro,  
de um contato com um material que trata de práticas religiosas nessas formas de  
sociedades antigas. Não de maneira espontânea, naquele mesmo ano 1842 Marx  
se utilizou do termo “fetichismo” em artigos escritos para a Gazeta Renana periódico  
esse no qual Marx era redator - ao propor um paralelo de determinações do modo de  
produção capitalista com formas sociais precedentes.  
Datado de 10 de julho de 1842, o texto Editorial do n. l79da Gazeta de  
Colônia20 assinado por Karl Marx (1998, p. 232) tratou de uma discussão motivada  
pelas distinções entre as linhas editoriais da Gazeta Renana e da Gazeta de Colônia –  
periódico esse que pertencia a uma localidade semelhante, embora com objetivos  
opostos. A Gazeta de Colônia defendia que era “inadmissível difundir ou combater,  
por meio de jornais, opiniões filosóficas ou religiosas”. Quanto a esse segundo  
aspecto, diziam que “a religião é o fundamento do estado, como a mais necessária  
premissa de toda comunidade social que não esteja orientada apenas para alcançar  
qualquer fim exterior”. Além disso, também definiam o “fetichismo primitivo” como a  
“forma mais tosca” de religião, essa que “eleva o homem a um plano razoável acima  
dos desejos sensoriais, os quais, se ele se deixasse dominar completamente por eles,  
o degradariam à animalidade, tornando-o incapaz de alcançar qualquer fim mais  
elevado”.  
Em defesa da linha editorial da Gazeta Renana, e contra a suposta censura que  
ali estava sendo incitada, Marx contrapôs a formulação de seu adversário editorial.  
Especialmente sobre o “fetichismo primitivo”, e provavelmente influenciado pela leitura  
anterior de De Brosses, Marx (1998, p. 232) comenta a definição apresentada pela  
Gazeta de Colônia: “o fetichismo, longe de elevar o homem sobre os apetites, é muito  
mais ‘a religião dos apetites sensíveis’”. Ainda que não tivesse se defrontado pela  
primeira vez com interesses materiais21, nessa passagem já podemos notar um Marx  
19 Para uma compreensão rigorosa do desenvolvimento histórico do conceito de fetiche, vide Pires  
(2009).  
20 Utilizamos aqui a tradução de Celso Eidt dos textos de Marx enquanto este ainda era membro da  
Gazeta Renana. Tais traduções estão inseridas no anexo da dissertação de mestrado de Eidt (1998)  
defendida no ano de 1998.  
21  
“Em 1842-3, na qualidade de redator da Gazeta Renana, encontrei-me, pela primeira vez, na  
embaraçosa obrigação de opinar sobre os chamados interesses materiais. Os debates do Landtag  
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crítico a um suposto plano místico ao qual o fetichismo religioso dessas formas sociais  
eram constitutivos. Segundo nosso autor, “a fantasia dos apetites faz crer ao fetichista  
que uma ‘coisa inanimada’ perderá o próprio caráter específico por consentir na  
satisfação de seus apetites”. Apesar da crítica às formulações dos editores da Gazeta  
de Colônia, Marx não deixa de referir ao fetichismo como “uma erudição  
verdadeiramente barata”, em suma: Marx não era um defensor do fetichismo religioso  
dessas formas sociais e nem mesmo defendia sua manutenção em detrimento a outras  
expressões religiosas.  
Quando Marx desenvolve sua crítica à economia política, ele retoma essa noção  
de fetichismo mas não em relação a uma atribuição característica da religião de um  
povo, mas sim, como um atributo específico da sociedade capitalista: o fetichismo da  
mercadoria. Embora já estivesse presente nos Grundrisse, é n’O capital que Marx  
destina um subcapítulo específico para esse tema que, com as devidas mediações  
torna-se possível aos nossos propósitos encontrarmos paralelos com o sentido  
atribuído para Marx ainda na Gazeta Renana.  
Vimos anteriormente que Marx leu a obra Primitive culture de Edward Burnett  
Tylor em suas pesquisas para sua crítica à economia política, e inclusive citou uma  
passagem de Tylor no Livro II de O capital. Uma das formulações dessa obra de Tylor  
foi a hipótese de que a crença em seres espirituais – o que foi tratado como “anima”  
– teria sido a forma mais antiga de religião. A concepção de Tylor sobre o “animismo”  
foi duramente criticada, por vezes reformulada, porém não passou por despercebida  
por parte das tradições de autores de seu tempo que pesquisavam temáticas  
semelhantes às suas. Para os pensadores que acreditavam na concepção animista,  
incluindo Tylor, todas os elementos naturais agiam intencionalmente em função da  
crença de que eles possuíam uma alma. Na interpretação de Kojin Karatani (2016) a  
concepção de “fetichismo da mercadoria” em Marx ressoa com o animismo de Tylor.  
Para o filósofo japonês, o fetiche seria, portanto, uma “força animada”, e não uma mera  
metáfora.  
Por mais que não tenhamos elementos o suficiente para creditar a Tylor certa  
renano sobre os delitos florestais e o parcelamento da propriedade fundiária, a polêmica oficial que o  
sr. Von Schaper, então governador da província renana travou com a Gazeta Renana sobre as condições  
de existência dos camponeses de Mosela, as discussões, por último, sobre o livre-câmbio e o  
protecionismo, proporcionaram-me os primeiros motivos para que eu começasse a me ocupar das  
questões econômicas” (MARX, 2008, p. 48). Para compreender a posição do velho mouro diante desses  
interesses materiais, cf. Marx (2016).  
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influência na formulação do “fetichismo da mercadoria” presente n’O capital, podemos  
concordar que essa “sutileza metafísica” não aparece como uma mera metáfora. A  
partir das determinações da mercadoria como abstração, Marx (2013) diz que não há  
nada de misterioso nela quando se trata de seu valor de uso, é apenas uma “coisa  
sensível”. Porém, quando concebemos a mercadoria enquanto um objeto possuidor de  
valor de troca, “ela se transforma em uma coisa sensível-suprassensível”, possuindo,  
assim, um “caráter místico”. Mas essa sutileza metafísica da mercadoria não é resultado  
de um agente externo à própria mercadoria, não é uma força subjetiva que lhe impõe  
uma determinação intangível; ao contrário, o caráter místico da mercadoria surge de  
sua própria forma: “a igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material da  
igual objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio da força  
humana de trabalho por meio de sua duração assume a forma da grandeza de valor  
dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se  
efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma  
relação social entre os produtos do trabalho” (MARX, 2013, p. 147). A existência de  
uma relação entre os produtos do trabalho não pode ser compreendida, portanto, sem  
a compreensão da relação entre o trabalhador e seus meios de produção.  
Quando pensamos nesse caráter místico, devemos ter em conta que a  
mercadoria “reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como  
caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais  
que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos  
produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos” (MARX,  
2013, p. 147). Apesar do tratamento em distintas formas sociais, é interessante notar  
que a exposição acerca do fetichismo da mercadoria em O capital não se apresenta de  
maneira distante da própria interpretação que Marx dava ao fetiche religioso: ao passo  
em que o fetichismo da mercadoria não se conforma como uma metáfora e reflete uma  
relação sensível- suprassensível, o fetichismo religioso não eleva o homem sobre os  
apetites, ele é, ao contrário, “a religião dos apetites sensíveis”. É fundamental, para  
estabelecermos essa conexão, compreendermos que há uma distinção absolutamente  
necessária a ser feita: nossa exposição sobre o “fetichismo da mercadoria” e o  
“fetichismo religioso” refletem determinações de formas sociais distintas:  
primeiramente, a forma mercadoria não estava pressuposta em formas sociais que  
subsistiam tendo o fetichismo religioso como caraterística; em segundo plano, o  
fetichismo da mercadoria é uma “sutileza metafísica” exclusiva da forma social  
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capitalista. Assim, para Marx (2013, p. 151), “todo misticismo do mundo das  
mercadorias, toda a mágica e a assombração que anuviam os produtos do trabalho na  
base da produção de mercadorias desaparecem imediatamente, tão logo nos  
refugiemos em outras formas de produção”.  
Portanto, se por um lado nas formas sociais que pressupõem o fetichismo  
religioso “os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como  
figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens”, por  
outro, no mundo das mercadorias o caráter fetichista “se cola aos produtos do trabalho  
tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da  
produção de mercadorias” (MARX, 2013, p. 148). Do mesmo modo que o elemento  
religioso tornou-se portanto o “aroma do incenso”, ou seja, se converteu na principal  
característica da gens na medida em que as demais se dissolviam, também podemos  
compreender o fetichismo enquanto o aroma do incenso da mercadoria. Exceto por  
uma obviedade: em formas sociais que adotam o modo de produção capitalista, o  
aroma não é apenas aquilo que restou, pois o incenso ainda se mantém intacto. Por  
mais que nossa compreensão sobre o incenso não perceba visualmente todas suas  
propriedades, seu aroma, embora não seja perceptível pelo nervo óptico, pode ser  
detectado pelo olfato, que também é uma atividade sensível. O capitalismo é, portanto,  
um modo de produção que propõe um afastamento das barreiras naturais na  
sociabilidade humana, ao passo que, até certo ponto, essas formas sociais comunais  
pressupõem seu oposto, mas não de maneira exterior à própria vida em sociedade.  
Todas essas “sutilizas metafísicas” ou “melindres teleológicos” apresentados  
por Marx em O capital não se conformam meramente como uma representação advinda  
de um mundo simbólico, afinal, como constatado por Marx (2007, p. 539) em sua tese  
8 sobre Feuerbach, “a vida social é essencialmente prática [e] todos os mistérios que  
induzem a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana  
e na compreensão dessa prática”.  
6. O surgimento do estado  
A dissolução da comunidade gentílica não se deu de maneira uniforme entre  
todas as localidades nas quais era possível constatar esse tipo de organização social.  
Morgan, a seu modo, demonstrou não só os elementos constitutivos da gens iroquesa,  
grega e romana como também teceu algumas pinceladas acerca de seu processo de  
dissolução. Para esse propósito, as formulações de Marx e Engels são ainda mais  
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oportunas do que o texto do antropólogo ianque. Isso, baseado em uma importante  
razão: compreender os períodos de transição entre formas sociais é um objetivo  
contínuo da concepção materialista da história. Engels, dispondo de um material ainda  
mais amplo que o antropólogo americano e de maneira ainda mais incisiva,  
compartilhou algumas informações trazidas por Morgan além de acrescentar, em sua  
exposição, as especificidades da dissolução da gens entre os germanos e os celtas.  
Marx, como não poderia deixar de ser, também comentou algumas passagens em seus  
Cadernos de fichamentos.  
A compreensão do processo de dissolução dessas formas sociais é fundamental  
na medida em que há um movimento transitório de sociedades baseadas em laços  
fraternos para formas sociais constituída de relações entre classes. Para Engels (2019,  
p. 94), essa organização gentílica “estava fadada a desaparecer”. Nos utilizando da  
metáfora de Marx (2013a, p.1 54), o processo de dissolução dessa forma social  
configura o momento em que há o rompimento do homem com o “cordão umbilical  
que o prende a outrem por um vínculo natural de gênero”. Os momentos de dissolução  
dessas comunidades gentílicas são, portanto, circunstâncias decisivas no processo  
histórico – Engels, por vezes, o referiu como um momento “revolucionário”. Vejamos  
como se deu esse processo naquelas que foram investigadas pelos autores envolvidos  
nessa “trama” que os articula.  
Quanto à dissolução da gens romana, a escassez de materiais históricos, aliada  
às interpretações suspeitas por parte daqueles que fizeram tal empreendimento,  
dificultaram enormemente a compreensão das especificidades desse período histórico  
transitório. Morgan (1974, p. 31) lamenta dizendo que “ser-nos-ia necessário possuir  
conhecimentos muito mais completos do que aqueles que dispomos sobre a gens  
romana para podermos compreender integralmente as instituições romanas na sua  
origem e no seu dever”. Engels (2019, p. 120), ainda mais enfático, afirma que “em  
virtude da densa escuridão em que a pré-história inteiramente lendária de Roma  
está envolvida, uma escuridão que aumenta consideravelmente com as tentativas de  
interpretação e os relatos pragmático- racionalistas mais recentes de autores com  
formação jurídica que nos servem de fonte, é impossível dizer algo concreto sobre a  
época, o decurso e as circunstâncias da revolução que pôs fim à antiga constituição  
gentílica”.  
Apesar dessa neblina histórica, as características distintas entre a comunidade  
gentílica romana e o estado real fornecem evidências de que foi necessário medidas  
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que garantissem principalmente os direitos de propriedade, como uma divisão  
territorial bem estabelecida e a garantia da herança através de posses de bens. Foi a  
partir desse processo que surgiram os conflitos entre patrícios e plebeus em função  
do acesso da garantia de terras por parte do estado, bem como pelo anseio a cargos  
públicos. Em determinado momento, ao tratar da gens romana, Morgan tenta localizar  
suas características apresentando a ausência dos patrícios e dos plebeus naquela  
forma social extinta. Marx comenta a passagem de Morgan deixando claro que a  
referência a essas classes já deveria, por sua vez, ter como pressuposto a dissolução  
da gens romana. Vejamos a passagem de Morgan e a intervenção feita por Marx.  
“Não podiam existir gens patrícias e gens plebeias, [evidentemente  
mais adiante, quando a sociedade gentílica foi abolida22], embora  
certas famílias de uma mesma gens pudessem ser patrícias e outras  
plebeias”. (MARX, 1972, p.230; MORGAN, 1974, p.62).  
No contexto romano, portanto, a sociedade gentílica se converteu em uma  
aristocracia fechada, em meio a uma plebe numerosa, excluída, privada de direitos mas  
consciente de suas obrigações. A consequente vitória histórica da plebe rompeu a  
antiga constituição da gens e sobre as ruínas se ergueu o Estado (ENGELS, 2019,  
p.156). Já entre os iroqueses, Engels (2019, p.94) demonstra que aquela forma social  
gentílica “não ia além da tribo; a confederação das tribos já indicava o começo de seu  
esfacelamento”. Mas esse processo de dissolução da gens iroquesa não se conformou  
através de uma transição simples e apaziguável, ao contrário, deu-se, segundo Engels,  
“por influências que [...] nos parecem uma degradação, uma queda nos pecados das  
alturas morais singelas da antiga sociedade gentílica”. Dessa forma, a configuração da  
sociedade classista entre os iroqueses foi uma consequência dos “interesses mais vis  
a reles ganância, a busca brutal do prazer, a sórdida avareza, o roubo da posse  
comunitária em proveito próprio”. Engels também se utiliza de uma formulação de  
cunho moral para a conformação desse processo histórico entre os iroqueses. Para o  
autor de A origem, “roubo, violação, astúcia, traição” constituíram-se como os “meios  
mais vergonhosos [...] que solapam e fazem ruir a antiga sociedade gentílica sem  
classes”.  
Contudo, no contexto grego a vasta produção literária do período heroico já  
dava indícios de que as determinações da comunidade gentílica naquela localidade já  
configuravam o princípio de sua dissolução. Engels (2019, p.102) elege alguns  
22 Do original “notabene später, als gentile society abolished”.  
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Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
elementos sequenciais que caracterizavam esse processo de transição: 1) o direito  
paterno, que deixa o patrimônio como herança aos descendentes, favorece o acúmulo  
de riquezas na família e faz com que esta se torne um poder diante da gens; 2) em  
troca, a disparidade de riquezas influencia a constituição, criando os primeiros  
rudimentos de uma nobreza e um reinado hereditários; 3) a escravidão, limitada num  
primeiro momento aos prisioneiros de guerra, já começa a se abrir para a escravidão  
de companheiros da própria tribo e até da gens; 4) a velha guerra de tribo contra tribo  
degenera em rapinagem sistemática por terra e por mar, visando conquistar gado,  
escravos e tesouros, e constituindo-se como verdadeira fonte de renda. E desse modo,  
conclui Engels, a riqueza passa a ser exaltada e considerada como “um bem supremo”,  
o que implica no fato de que “as antigas ordens gentílicas são usadas para justificar o  
roubo violento de riquezas”.  
Faltava apenas um elemento entre os gregos que garantisse uma ruptura diante  
das mudanças que ali aconteciam: uma instituição que desse segurança ao indivíduo  
ateniense em função das riquezas adquiridas contra as tradições da comunidade  
gentílica, “uma instituição que não só santificasse a propriedade privada, antes tão  
menosprezada, e declarasse essa santificação a finalidade suprema de toda  
comunidade humana, como também imprimisse o selo de reconhecimento social  
universal às novas formas de aquisição de propriedade [...]; uma instituição que  
eternizasse não só a divisão da sociedade em classes em surgimento mas também o  
direito da classe possuidora à espoliação da classe não possuidora e à dominação  
sobre ela” (ENGELS, 2019, p.102). A essa instituição demos o nome de “estado”, e  
essa é sua forma histórica clássica23.  
O estado ateniense se desenvolveu, portanto, através de um processo em que  
houve uma reconfiguração dos elementos da comunidade gentílica concomitante a um  
afastamento das características comunais da centralidade ateniense. A consequência  
consciente desses fatos foi, portanto, a dissolução da gens grega. Antes de  
compreendermos algumas especificidades desse processo é necessário, aos nossos  
propósitos, comparar essa transição histórica entre os povos de Atenas e os Iroqueses.  
Estabelecer algumas correspondências entre os gregos principalmente  
atenienses e os iroqueses é um exercício que deve ser feito com mediações,  
23 “Atenas apresenta a forma mais pura, clássica: aqui o estado se origina direta e preponderantemente  
dos antagonismos de classes que se desenvolveram-na própria sociedade gentílica.” (ENGELS, 2019, p.  
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sobretudo na medida em que essas formas sociais, como a história nos demonstra,  
tiveram desenvolvimentos distintos. Engels (2019, pp. 105-6) demonstra que a  
produção dos meios de vida entre os iroqueses era constante no decorrer dos anos,  
sendo incapaz de gerar conflitos e antagonismos como os que existiram em Atenas.  
Se por um lado entre os iroqueses a produção se movia dentro de limites estreitos,  
entre os atenienses o surgimento da propriedade privada de rebanhos e artigos de  
luxo instituíram, consequentemente, a troca entre indivíduos a partir da transformação  
dos produtos em mercadoria. As distinções entre os gregos e os iroqueses  
demonstram, em última instância, o porquê da existência do estado naqueles e não  
nesses.  
Ao passo em que Morgan focava principalmente nos aspectos territoriais como  
um dos elementos decisivos que motivaram a dissolução da comunidade gentílica  
grega, Marx já ressaltava entusiasticamente o papel da propriedade para o surgimento  
do capital monetário naquela localidade.  
“A impossibilidade de manter os membros de uma gens num mesmo  
território aumentava com a mobilidade das ligações dos indivíduos  
com a terra e com a criação de novos direitos de propriedade em  
localidades exteriores. Aunidade do seu sistema social perdia a sua  
estabilidade residencial, o seu caráter transformava-se [Além de sua  
localidade: as diferenças de propriedade no interior da gens haviam  
transformado a unidade de seus interesses em antagonismos entre  
seus membros; além disso, junto com a terra e o gado, o capital  
monetário passou a ter uma importância decisiva com o  
desenvolvimento da escravidão!24]”. (MARX, 1972, p. 213; MORGAN,  
1980, p. 312).  
Esse processo de dissolução da comunidade gentílica grega também foi uma  
consequência das políticas impostas por Sólon motivadas por reformas consideráveis  
nas dimensões política, social e econômica em Atenas. Morgan (1980, p. 309)  
demonstra que “quando Sólon ascendeu ao arcontado (em 594 a.C.), as enormes  
contradições sociais tinham atingido um nível intolerável”, assim, “uma parte dos  
atenienses tinha caído na escravatura por dívidas, pois, na falta de pagamento, o  
credor podia dispor da pessoa do devedor como escravo”. As políticas de Sólon,  
segundo Morgan, deram “nova vida ao projeto de Teseu de organizar uma sociedade  
dividida em classes [...] segundo a importância da propriedade de cada um”. Embora  
não tenha entrado em detalhes acerca das reformas de Sólon, Engels (2019, p. 108)  
24 Do original “Abgesehen v. locality: die genthumsdifferenz in selber gens htte Einheit ihrer Interessen  
in Antagonismus ihrer members verwandelt; ausserdem war neben Land u. Vieh Geldcapital  
entscheidend wichtig geworden, mit d. Entwicklg der Sklaverei!”.  
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Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
apresentou em A origem a divisão estabelecida pelo legislador grego no sentido de  
subdividir os cidadãos atenienses em quatro classes tendo como referência a extensão  
da terra que possuíam e sua produção: “500, 300 e 150 medimnos de cereal (1  
medimno = cerca de 41 litros) era a produção mínima para as três primeiras classes;  
quem tinha menos ou nenhuma propriedade fundiária era incluído na quarta classe”.  
A distinção de pressupostos evidentes a partir dessa transformação social é que que  
ao passo em que as comunidades gentílicas baseavam os aspectos hereditários através  
da organização social atrelada a sua linhagem - ou seja, mantinham-se no interior da  
gens a expansão da propriedade e o surgimento de classes em Atenas, como política  
de Sólon, implicou na dissolução sistemática do direito gentílico e o substituiu pelos  
próprios regimentos do poder político centralizado. Mas a influência das políticas de  
Sólon na dissolução da comunidade gentílica grega foi agregada por um outro  
elemento essencial para essa transição histórica.  
Uma das principais causas da dissolução da comunidade gentílica grega a partir  
das políticas de Sólon foi, segundo Morgan (1980, p. 312), os incentivos no sentido  
de atrair para Atenas colonos trabalhadores de outras regiões da Grécia. Essa medida  
fez com que muitos indivíduos emigrassem para localidades estranhas à sua própria  
realidade, ocasionando a quebra do vínculo de parentesco antes pressupostos em suas  
respectivas comunidades gentílicas e interferindo também na organização social que  
existia em Atenas. Marx comenta a passagem de Morgan sobre as medidas adotadas  
por Sólon.  
[...] a política de Solón tendia a atrair para Atenas colonos  
trabalhadores de outras partes da Grécia. Esta foi uma das razões do  
fracasso da organização gentílica [Esses colonos eram todos gregos;  
com a linguagem escrita, as diferenças de dialetos haviam deixado de  
se constituírem enquanto uma barreira separadora (ininteligibilidade);  
por outro lado, a emigração, a navegação e todo o movimento de  
pessoas ligadas ao comércio é incompatível com uma sociedade  
baseada na gens25]. (MARX, 1972, p. 213; MORGAN, 1980, p. 312)  
Marx ressalta que o aspecto decisivo não é o fato de que esses novos colonos  
intercambiassem suas características constitutivas com a população que vivia em  
Atenas; para além disso, o que obteve uma influência determinante foram as  
consequências da expansão do comércio – “incompatível com uma sociedade baseada  
na gens” – como causa dessas movimentações naquela localidade a partir das políticas  
25 Do original “Diese settlers alle Griechen;mit written language hatte d. dialectic Unterschied nicht mehr  
Macht zur Barrière v. Scheidung (Unverständhichkeit) zu werden; andrerseits migration, Seefahrt u. alle  
mit commerce verbundne Personenbewegung - nicht fassbar in auf gens gegründete societies”.  
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de Sólon. Por toda a Europa, alguns vestígios de traços característicos das  
comunidades gentílicas podiam ser observados em determinadas localidades. Se por  
um lado vimos que entre os povos tribais a religião foi um elemento que vigorou em  
relação à dissolução da comunidade gentílica, bem como da propriedade comunal das  
terras, por outro Engels demonstra que em algumas localidades da Alemanha, da  
França e da Inglaterra foram exatamente essas características fraternas que se  
apresentavam enquanto elemento a posteriori de resistência às forças impostas pela  
expansão do modo de produção capitalista nessas regiões. Engels (2019, pp. 145-6)  
demonstra em A origem que os povos dessas localidades “resgataram parte da  
autêntica constituição gentílica na forma de cooperativas de marca e a transplantaram  
no Estado feudal, proporcionando desse modo à classe oprimida, aos camponêses,  
mesmo sob a mais dura servidão feudal, um ponto de coesão local e um meio de  
resistência que não tiveram nem os escravos antigos nem os proletários modernos”.  
Em função dessa apropriação de características das formas sociais gentílicas, Engels  
ironicamente conclui que “o que rejuvenesceu a Europa não foram as qualidades  
nacionais específicas, senão simplesmente sua barbárie, sua organização gentílica”.  
O capítulo final de Engels em A origem da família, da propriedade privada e do  
estado é um texto totalmente distinto dos anteriores de sua obra: ele não mais  
subsidiou suas informações naquilo que Morgan havia formulado previamente, mas  
sim, pretendeu- se ir além das informações obtidas pelo antropólogo americano,  
mesmo que as formulações de Ancient society ainda estivessem pressupostas em seu  
desenvolvimento teórico. Nesse capítulo cujo título é “Barbárie e civilização”, podemos  
ver um Engels que busca articular sua exposição anterior a O capital de Marx na  
intenção de investigar “as condições econômicas gerais que solaparam a organização  
gentílica da sociedade no estágio superior da barbárie e a eliminaram por completo  
no início da civilização” (ENGELS, 2019, p. 147). Se assumirmos como já  
demonstramos que não temos nenhuma evidência da intenção de Marx, ao  
desenvolver os rascunhos a Morgan, que seja desvinculada de sua crítica à economia  
política; se consideramos que Engels esteve diante dos rascunhos de Marx e de uma  
versão original de Ancient society; e se aceitarmos o fato de que Engels assume, em  
“Barbárie e civilização”, sua intenção de associar os pensamentos de Morgan e Marx,  
uma conclusão nos é pertinente: Engels pode ser considerado como primeiro  
intérprete da relação entre Marx e Morgan.  
O primeiro elemento original trazido por Engels em seu capítulo final é uma  
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categoria ausente em Ancient society e nas preocupações de Morgan: a divisão do  
trabalho. De acordo com o autor de A origem, a divisão do trabalho, em comunidades  
gentílicas, advém de uma ordem natural. Todavia isso não significa que ela seja  
inexistente: “ela existe somente entre os dois sexos”. É notório que a divisão do  
trabalho é um pressuposto da produção social capitalista, entretanto, essa não é uma  
prática exclusiva desse modo de produção. Marx (2013, p. 180), n’O capital, já  
ressaltava que “a divisão do trabalho é um organismo natural-espontâneo da  
produção”. Diversos materiais etnográficos fornecem evidência para a argumentação  
de Engels ao demonstrarem que o homem é responsável pelas atividades externas –  
caça, guerra etc.  
- e a mulher às atividades internas cozimento, confecção de vestuário, etc.  
Porém essa dinâmica de divisão de trabalho nessa forma social está longe de ser uma  
regra. Leacock e Lee (1982) demonstram que além da existência de flexibilidades  
durante o processo de obtenção dos meios de vida, pode haver procedimentos comuns  
que sejam indistintos da relação entre homem e mulher. Podemos dizer que, para  
Engels, essa divisão natural-espontânea do trabalho é a característica própria do  
estado de selvageria. Para além dessa especificidade, o autor de A origem define, sob  
seus pressupostos, aqueles que constituem como os dois grandes momentos de  
divisões sociais do trabalho no período da barbárie.  
A primeira ocorreu como consequência do aumento da produtividade do  
trabalho, o que aumentou também a produção da riqueza e, com isso, ampliou o  
campo de produção. Essa primeira divisão social do trabalho implicava no surgimento  
da escravidão. Seguindo o raciocínio de Engels: “da primeira grande divisão social do  
trabalho originou-se a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores  
e escravos, espoliadores e espoliados” (ENGELS, 2019, p. 150). A segunda grande  
divisão social do trabalho foi aquela na qual a manufatura cindiu-se da agricultura, o  
que aumentou consideravelmente a produção social além de ter valorizado a força de  
trabalho através do grau de produtividade. Com essa divisão “surge a produção  
destinada diretamente à troca, a produção de mercadorias” e com ela, o comércio por  
terras assim como pelos mares. Desse modo a diferenciação que existia entre senhores  
e escravos é acrescida de um novo antagonismo entre classes: os ricos e os pobres  
(ENGELS, 2019, p. 151). As implicações dessa nova divisão do trabalho alcançam  
finalmente o limiar da “civilização”, que consolida e intensifica todas essas divisões do  
trabalho e ainda acrescenta uma terceira, de importância decisiva: aquela que gera a  
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classe de comerciantes, uma classe que, segundo Engels “surge, pela primeira vez,  
uma classe que, sem ter qualquer participação na produção, conquista a liderança da  
produção como um todo e em grande escala e submete economicamente os  
produtores; que faz de si mesma a mediadora incontornável entre dois produtores e  
espolia ambos” (2019, p. 151).  
De antemão já está claro que os critérios estabelecidos por Morgan para  
caracterizar o advento do período da “civilização” – a invenção do alfabeto fonético e  
o uso da escrita em nada se relacionam com os motivos de cunho econômico  
apresentados por Engels. Pelos critérios expostos em A origem por Engels (2019, p.  
160), “a civilização é, portanto, o estágio de desenvolvimento da sociedade em que a  
divisão do trabalho, a troca entre indivíduos dela decorrente e a produção de  
mercadorias [...] revolucionam toda a sociedade mais antiga”. Por mais que os critérios  
que fundamentam o período da “civilização” entre esses autores sejam distintos, em  
ambos é notória a articulação de uma forma de família específica que atende aos  
propósitos dessa nova fase a monogamia; além de uma forma de propriedade  
necessária aos anseios das classes dominantes originárias no processo de dissolução  
da comunidade gentílica a privada; e por fim através de uma organização social que  
desde sua origem se baseia em princípios que asseguram os bens e as posses dos  
grandes proprietários o Estado.  
Na condição de intérprete, Engels preencheu um vazio no esquema de Morgan.  
Acrescentou às teorias do antropólogo ianque as categorias constitutivas da teoria do  
valor de Marx e demonstrou que não é o produto de uma sociabilidade o elemento  
que constitui sua caracterização, mas sim o modo através do qual esses diversos  
produtos se conformam. Para retornarmos a uma metáfora anterior, se  
considerássemos a classificação morganiana como um canteiro de obras poderíamos  
dizer que Engels teria acrescentado a ela tijolos preciosos. Porém, como acreditamos  
que os pressupostos morganianos característicos de seu esquema são distintos  
daqueles formulados por Marx, nossa conclusão só pode nos conduzir à constatação  
de que essa mera estrutura ainda não se compara a um edifício. Eis algumas distinções  
evidentes entre Ancient society, de Lewis Morgan, A origem da família, da propriedade  
privada e do estado, de Friedrich Engels, e as contribuições presentes nos chamados  
Cadernos etnológicos bem como na totalidade da obra de Karl Marx.  
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Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social  
Conclusão  
Em todo este artigo, investigamos as especificidades da organização social  
gentílica de Morgan a partir da leitura de Marx e, eventualmente, de Engels.  
Demonstramos como que em Marx já havia a pressuposição de que a proibição do  
incesto se apresenta como um elemento disruptivo para a formação das comunidades  
gentílicas algo que foi melhor aprofundado por Lévi-Strauss, a seu modo, décadas  
depois; além disso, demonstramos a crítica marxiana àqueles expoentes que, ao  
tentarem dar uma inteligibilidade ao totemismo, criavam abstrações irrazoáveis para  
apreender elementos de uma forma social correspondente; dissertamos também sobre  
a organização política no interior da comunidade gentílica e novamente Marx critica o  
modo como alguns teóricos principalmente Mommsen – inventavam “soberanos”  
nessas formas sociais por meio de um típico exercício de Robinsonadas; por fim,  
apresentamos as contribuições de Engels que se propôs, de acordo com suas  
intenções, conciliar a teoria do valor de Marx com as formulações de Morgan. Diante  
dessa investida, Engels se conformou, sob nossa interpretação, como aquele que foi o  
primeiro a investigar, a seu modo, os nexos entre Marx e Morgan.  
As aproximações entre Marx e Morgan, angariadas especialmente pela tradição  
soviética (cf. TOLSTOY, 2017) que notou uma continuidade entre as formulações  
desses autores, não podem ofuscar suas discordâncias. O pensamento de Morgan em  
Ancient Society, amparado por uma negação da coetaneidade, nos parece distintos ao  
que rege as tendências investigativas do pensamento marxiano que, ao contrário,  
buscam, por sua vez, a compreensão das particularidades históricas de cada  
sociabilidade. O exercício comparativo não pode anteceder o rastreamento desses  
nexos, sob a pena de que seus expoentes sejam alocados na história nas mesmas  
gavetas onde Frazer e Tylor se resignaram. Morgan é um autor sério e importante a  
seu tempo, mas não deve servir como parâmetro para o marxismo nem muito menos  
seus esquemas como um “canteiro de obras”. Através deste artigo demonstramos,  
antes de qualquer coisa, que Marx foi o primeiro a perceber isso, algo que alguns  
marxistas contemporâneos ainda teimam em não enxergar. Dessa forma acreditamos  
que não se trata, portanto, da elaboração de um esquema de desenvolvimento  
histórico crítico, mas antes, uma crítica aos esquemas de desenvolvimento histórico,  
estes, invariavelmente íntimos a uma concepção teleológica - e essencialmente  
fatalistas da história.  
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Como citar:  
ÁLVARES, Lucas Parreira. Marx, leitor de Morgan: crítica à organização social.  
Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 134-171; jul.-dez., 2024.  
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