Ana Clara Passos Presciliano
importante que Marx anuncia na forma de presságio: “À medida que prosseguimos no
acompanhamento do processo de valorização do capital, cada vez mais a relação do
capital se mistifica e cada vez menos se revela o segredo de seu organismo interno”
(MARX, 2017, p. 74). Esse presságio se junta a outro igualmente misterioso, o de que
não necessariamente as mercadorias são vendidas pelos seus valores, mas, mesmo
assim, ainda quando vendidas abaixo de seus valores, é possível que o capitalista
obtenha lucro9, pois, como vimos, para realizá-lo na superfície das relações de troca
9 Essa questão da venda das mercadorias pelos seus valores possui diferentes níveis de abstração entre
o Livro I e o Livro III d’O capital. No Livro I, que possui o nível de abstração mais intenso, Marx demonstra
que as mercadorias não são vendidas pelos seus valores individuais porque existem diferentes níveis
de produtividade no processo produtivo. Considerando que o valor pelo qual será vendida a mercadoria
é o tempo de trabalho socialmente necessário, ele não corresponde aos valores individuais, a menos
que se trate de um capital particular com produtividade média ou, em outras palavras, as mercadorias
não são vendidas pelos seus valores individuais, com exceção do caso do capital com produtividade
média, e nem poderia sê-lo, tendo em vista que a concorrência determina diferentes níveis de
produtividade na produção de uma mesma mercadoria. Ocorre que, ao considerar a totalidade das
mercadorias, elas o são, justamente porque todo o valor produzido é apropriado. Por sua vez, na Seção
II do Livro III temos um segundo nível de abstração, em que Marx nota que capitais de igual montante
mas diferentes composições orgânicas obteriam taxas distintas de lucro caso as mercadorias fossem
vendidas pelos seus valores. Isso faria com que: “1) capitais de maior produtividade se apropriassem
de menores taxas de lucro, enquanto capitais com menor produtividade obtivessem maiores taxas de
lucro; 2) fosse negada a própria tendência da concorrência entre capitais de distintos setores de
procurar maiores taxas de lucro, o que poderia negar, assim, a própria tendência à formação da taxa
média de lucro. Esta última, aplicada ao capital adiantado, define o lucro médio, que, somado ao preço
de custo, forma os preços de produção, os quais, por sua vez, garantem que capitais de igual montante
se apropriem do mesmo lucro médio, independentemente de quanto mais-valor produziram no processo
produtivo” (MARX, 2017). Assim, exceto nos setores de composição orgânica do capital igual à média,
os preços de produção são necessariamente distintos dos valores. Porém, para o capital total, os preços
de produção (quantidade de valor apropriado) são equivalentes aos valores (quantidade de valor
produzido). Como consequência, tanto no primeiro quanto no segundo nível de abstração as
mercadorias não são e nem podem ser vendidas pelos seus valores, ainda que o sejam. No terceiro
nível de abstração, encontrado no Capítulo 10 do Livro III, a constatação é a de que os preços de
mercado só podem corresponder aos preços de produção por uma casualidade. No caso de a oferta ser
maior do que a demanda, os preços de mercado são inferiores aos de produção e vice-versa, o que
mais uma vez leva à conclusão de que as mercadorias não são vendidas pelos seus valores, que são
intermediados pelos preços de produção. Mais precisamente, quando os preços de mercado são
inferiores aos de produção, o resultado é uma taxa efetiva de lucro inferior à taxa média, então os
capitais instalados nesses setores tendem a reduzir os volumes de produção ou então abandonar essas
esferas de produção. O processo é o mesmo no sentido inverso, de quando os preços de mercado são
superiores aos de produção. Mas o cerne aqui é que a aparente flutuação indeterminada dos preços de
mercado na verdade tem sim uma determinação, justamente o valor da mercadoria, que por sua vez é
intermediado pelo preço de produção. Logo, a lei do valor de Marx não implica que os preços de
mercado correspondem quantitativamente aos valores das mercadorias, e nem poderiam, mas sim, que
o valor é o centro de gravitação em torno do qual flutuam os preços (MARX, 2017). Sendo assim, se
temos diferentes graus de abstração para o trato dos valores das mercadorias, que é central para a
compreensão da questão da troca de equivalentes e da igualdade nas relações de troca, temos que
leituras que se baseiam apenas no Livro I d’O capital, e consequentemente enfocam apenas no primeiro
grau de abstração da obra, se mostram limitadas. Trazendo a discussão para o direito, temos o exemplo
daquela leitura desenvolvida pelo autor Evgeny Pachukanis, o qual se baseia na circulação de
mercadorias demonstrada no Livro I para desenvolver a sua obra mais importante, a Teoria geral do
direito e marxismo. Para ele o direito gira em torno da consideração de que a forma jurídica é derivada
da forma mercadoria e isso se dá pelo fato de que quando o capitalismo coloca as bases para o seu
desenvolvimento, como no caso da consideração dos trocadores de mercadorias enquanto sujeitos
livres e iguais, torna possível o desenvolvimento das forças produtivas e da divisão do trabalho,
Verinotio
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ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 103-133 – jul.-dez., 2024
nova fase