Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma
arte” (LUKÁCS, 1969, p. 56).
Uma literatura marcada pela concepção de mundo até aqui descrita resulta, no
diagnóstico lukácsiano, em uma falta de perspectiva, a qual constitui o critério geral
de seleção dos elementos essenciais e secundários a serem elaborados na obra
literária. Esse elemento participa ativamente até mesmo no modo de recepção das
obras (cf. LUKÁCS, 1969, p. 90). Lukács é enfático sobre a importância da perspectiva:
[...] é ela que determina o conteúdo e a forma do projeto, que é dela
que dependem, em cada época, as linhas diretivas que orientam a
criação artística, que só ela constitui assim, em última análise, o
principio universal de seleção entre o essencial e o superficial, entre
o decisivo e o episódico, entre o importante e o anedótico, etc.
Portanto, é a perspectiva que indica às personagens humanas criadas
pela arte o sentido da sua evolução; é ela que faz sobressair os
elementos decisivos, capazes de favorecer ou de impedir esta
evolução. Na medida em que a perspectiva for traçada com mais
clareza, o escritor pode ser mais sóbrio na escolha dos pormenores e
contentar-se em conservar os mais intensos (os Gregos, Molière etc.)
(LUKÁCS, 1969, p. 57).
O filósofo húngaro atribui a Kafka justamente a recusa de uma perspectiva
desse tipo em nome de uma suposta condição humana (eterna) como princípio de
composição literária. Tomamos aqui a liberdade de transcrever uma passagem que,
apesar de extensa, é ilustrativa da negatividade e repúdio manifestos por Lukács
quando trata da impotência que emana da concepção de mundo subjacente às
tendências de vanguarda:
Foi Kafka quem traduziu com mais rigor e da maneira mais sugestiva
o sentimento do mundo que resulta de tal atitude. Quando, em O
processo, o herói principal, Joseph K, é conduzido ao suplício, o autor
diz de forma bastante evocadora: “Pensava nessas moscas, que,
agitando as pequenas patas quebradas, tentam escapar ao visco”.
Esta impressão de total incapacidade, esta paralisia perante a força
incompreensível e inelutável das circunstâncias, é o motivo
fundamental de todos os seus livros. O que se conta em O castelo é
muito diferente daquilo que se lê em O processo – e mesmo
completamente oposto –; no entanto, o sentimento (ou melhor: a
concepção do mundo) da mosca caída na armadilha, que se debate
em vão, atravessa toda a obra de Kafka. Esta impressão de impotência
elevada ao nível de concepção do mundo, que em Kafka se
transformou na angústia imanente ao próprio devir do mundo, o total
abandono do homem em face dum temor inexplicável, impenetrável,
inelutável, faz da sua obra como que o símbolo de toda a arte
moderna. Todas as tendências que, noutros artistas, assumiam uma
forma literária ou filosófica, reúnem-se aqui no temor pânico,
elementar, platónico, perante a realidade efetiva, eternamente
estranha e hostil ao homem, e isto num grau de espanto, de confusão,
de estupor, que não tem paralelo em toda a história da literatura. A
experiência fundamental da angústia, tal como a viveu Kafka, resume
Verinotio
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 2, pp. 504-528 – jul.-dez., 2024 | 509
nova fase