DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.2.738  
Lukács, Coutinho e Kafka:  
dois críticos e um enigma  
Lukács, Coutinho and Kafka: two critics and a riddle  
Vladmir Luís da Silva*  
Resumo: O principal objetivo deste artigo é  
acompanhar o diálogo dos filósofos György  
Lukács e Carlos Nelson Coutinho acerca do  
legado literário de Franz Kafka. O núcleo de  
nossos esforços consiste na análise da tentativa  
de superação da abordagem lukacsiana por  
parte de Coutinho. Na realização dessa tarefa,  
conferimos atenção às dicas oferecidas pelo  
mestre húngaro ao discípulo baiano quanto aos  
limites de sua própria leitura de Kafka.  
Abstract: The main purpose of this article is to  
follow the dialog of the philosophers György  
Lukács and Carlos Nelson Coutinho about Franz  
Kafka’s literary legacy. The core of our efforts  
consists in analyzing Coutinho’s attempt to  
overcome the Lukacsian approach. In carrying  
out this task, we pay attention to the tips  
offered by the Hungarian master to his Bahian  
disciple about the limits of his own reading of  
Kafka.  
Palavras-chave: Kafka; Lukács; Coutinho;  
literatura; filosofia.  
Keywords: Kafka; Lukács; Coutinho; literature;  
philosophy.  
1
Em carta a György Lukács, datada de 31 de janeiro de 1968, o então jovem  
filósofo baiano Carlos Nelson Coutinho comunicava, entre outras coisas, o projeto de  
elaboração de um livro acerca do realismo na literatura do século XX, talhado segundo  
os ensinamentos do já octogenário mestre húngaro. Como podemos observar na  
passagem a seguir, a figura de Kafka assumia posição privilegiada no projeto e na  
pergunta de Coutinho a Lukács:  
[…] analisarei a obra de Proust e Kafka (que me parecem casos de  
exceção, entre o realismo e a vanguarda), de Sinclair Lewis, Lorca e  
Thomas Mann (realistas “tradicionais”), de Thomas Wolfe, William  
Styron e J. D. Salinger (realistas que empregam técnicas de  
vanguarda). Em sua obra mais recente há observações sobre Kafka  
que pretendo desenvolver. Minha tese central é a seguinte: quando  
Kafka estrutura sua obra na forma da novela clássica (A metamorfose,  
O processo etc.) ou seja, mostrando a importância do acidental na  
vida, sem figurar o background histórico e sem abrir necessariamente  
uma perspectiva concreta , ele atinge o simbolismo realista (ainda  
que fantástico). Quando isso não ocorre, ele cai na alegorização (O  
castelo, sobretudo América), ou seja, na vanguarda pura e simples. O  
senhor se recorda de suas próprias observações sobre a redução do  
romanesco à forma da novela como condição de “vitória do realismo”  
*
Doutor em filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). E-mail:  
Verinotio  
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em Hemingway, Conrad e Soljenitzin? Parece-me que, mutatis  
mutandis, ocorre algo semelhante em Kafka. Qual é a sua posição a  
respeito? O senhor ainda concorda com a análise de Kafka feita em  
Realismo crítico hoje? Ou pensa que é preciso concretizá-la melhor  
(sem negá-la)? (COUTINHO, 2005, p. 210)  
O objetivo do discípulo foi saudado na carta de resposta de Lukács, com a  
ressalva segundo a qual os juízos manifestos no livro Realismo crítico hoje (de 1957)  
deveriam ser vistos com alguma reserva, pois haveria aí dificuldades de  
desenvolvimento, em especial em relação à obra de Franz Kafka. Lukács admitia que  
não havia diferenciado na medida certa a obra do autor tcheco em relação à literatura  
subsequente, considerada por ele como sendo de qualidade inferior. Além de assinalar  
suas próprias insuficiências, o mestre via acertos no projeto do discípulo:  
Você tem inteira razão quando põe fortemente em primeiro plano  
certos elementos novelísticos em Kafka. Sobre isso, algumas novelas,  
como A metamorfose, têm um enorme significado na recente literatura  
e assinalam, muito marcadamente, o contraste com a literatura  
subsequente. Eu teria bem maiores objeções a fazer contra O processo  
do que contra a novelística. Infelizmente, por causa de condições  
muito desfavoráveis, concluí de modo muito apressado meu pequeno  
livro [...], de modo que determinados pontos de vista não foram  
expressos nele de modo bastante claro. (LUKÁCS, 2005, p. 212)  
O êxito kafkiano foi exaltado por meio de uma analogia com a obra de Jonathan  
Swift. Assim como nos trabalhos desse autor, haveria em Kafka uma “tensão”. Lukács  
tinha em mente aqui a tentativa de Swift de dar “um panorama crítico-utópico do  
desenvolvimento global e da essência mais profunda da sociedade capitalista”  
(LUKÁCS, 2005, p. 212)1. No entender do filósofo, o resultado obtido por Kafka só  
não foi tão exitoso quanto o de Swift por conta das condições sociais desfavoráveis  
em que teve de trabalhar.  
O projeto original de Coutinho jamais chegou a ser plenamente realizado,  
resultando apenas em alguns artigos, mas certamente as orientações do mestre  
húngaro foram bastante úteis na tentativa de promover uma “atualização” da parte do  
livro lukácsiano dedicada à literatura ocidental2. É o que tentaremos evidenciar ao  
longo deste artigo.  
1
Cabe destacar que, provavelmente, é justamente nessa correspondência que Lukács esboça a única  
autocrítica feita ao livro de 1957 (cf. COUTINHO, 2005, p. 249). Especificamos aqui que nossa  
abordagem não tem a menor pretensão de expor ou discutir a globalidade das múltiplas facetas da  
obra lukacsiana acerca do âmbito da estética ou mesmo da literatura, mas sim os seus fragmentos  
atinentes à obra de Kafka, em particular aqueles presentes no livro Realismo crítico hoje.  
2 Observe-se aqui que, seguindo seu plano original, Coutinho também se dedicou a analisar a obra de  
Marcel Proust a partir da metodologia lukacsiana. Redigido em 1967, o ensaio dedicado a Proust só  
veio à luz em 2005 (cf. COUTINHO, 2005, pp. 11-121).  
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2
A negatividade de Kafka no livro lukácsiano de 1957 é bastante marcada. É  
visto mesmo como antípoda das tendências do “realismo crítico” presentes no âmbito  
da literatura burguesa, a ponto de um dos capítulos da obra ter sido sugestivamente  
intitulado “Franz Kafka ou Thomas Mann?”. Tratar-se-ia, de modo geral, de uma  
contraposição entre vanguarda decadente e realismo crítico. Ainda que seja  
considerado um dos maiores talentos do campo vanguardista, Kafka é entendido em  
Realismo crítico hoje como um representante típico das tendências antirrealistas na  
literatura. Não nos referimos aqui a uma mera distinção estilística, mas sim a uma  
totalidade de determinações que configura escolas completamente opostas, com  
concepções de mundo antagônicas. O objetivo da arte desejada por Lukács é a “figura  
típica”, a qual só é obtida na medida em que “os fatores que determinam a essência  
mais íntima da sua personalidade pertençam objetivamente a uma das tendências  
importantes que condicionam a evolução social” (LUKÁCS, 1969, p. 181).  
A contraposição entre a arte vanguardista e o realismo crítico é apresentada  
por Lukács a partir de um embate entre concepções de mundo radicalmente distintas.  
A imagem de mundo é entendida pelo filósofo húngaro como a base a partir da qual  
se dá a relação entre o escritor e o real. A centralidade dessa problemática é assinalada  
nos seguintes termos:  
Não se trata de modo nenhum duma diferença, duma oposição entre  
técnicas de escrita, entre elementos formais – no sentido “formalista”  
do termo , mas sim duma diferença, duma oposição, entre as imagens  
do mundo que os escritores nos comunicam através das suas obras,  
entre as atitudes que eles mesmos tomam em relação à sua própria  
apreensão do real, entre os juízos de valor que fazem sobre esse  
objetivo. É no esforço empregado pelo autor, servindo-se de meios  
especificamente literários, para reproduzir adequadamente a ideia que  
faz do mundo com a totalidade das suas determinações objetivas e  
subjetivas, que podemos apreender a sua intenção objetiva tal como  
queremos examiná-la aqui; esta intenção objetiva constitui a base de  
todos os problemas autênticos que dizem respeito à forma das obras  
literárias, não já num sentido formalista, mas enquanto forma  
decorrente da própria essência da estrutura última, que é a forma  
específica desta estrutura específica. (LUKÁCS, 1969, p. 36)  
A primeira das contraposições envolvidas no embate entre realismo e  
vanguarda se dá na esfera da concepção de homem subjacente a cada tendência. De  
acordo com Lukács, o realismo crítico é animado pelo “zoon politikon” de Aristóteles,  
conceito que destaca o caráter social (e também histórico) do ser humano. Esse caráter  
atravessa os personagens retratados, conferindo densidade humana aos seus  
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caracteres. Nos termos do filósofo húngaro:  
Trate-se de Aquiles ou de Werther, de Édipo ou de Tom Jones, de  
Antígona ou de Ana Karenina, de D. Quixote ou de Vautrin, o elemento  
histórico-social, com todas as categorias que dele dependem, é  
inseparável daquilo a que Hegel chamaria de sua realidade efetiva, do  
seu ser em si e para usar uma expressão em voga do seu modo  
ontológico essencial. O caráter puramente humano destes  
personagens, aquilo que eles têm de mais profundamente singular e  
típico, o que faz deles, no plano de arte, figuras impressionantes –  
nada de tudo isto pode ser separado do seu enraizamento concreto  
no seio de relações concretamente históricas, humanas e sociais que  
são a contextura da sua existência. (LUKÁCS, 1969, p. 37)  
Já os expoentes das tendências vanguardistas delineiam seus personagens com  
base em uma ideia de homem totalmente distinta. Segundo Lukács, “eles não  
consideram mais do que ‘o’ homem, o indivíduo que existe desde sempre,  
essencialmente solitário, desligado de todas as relações humanas e, a fortiori, social,  
ontologicamente independente” (LUKÁCS, 1969, p. 37).  
É somente na rica interação entre o indivíduo e o seu mundo histórico-social  
que se torna possível distinguir adequadamente entre as possibilidades abstratas e as  
possibilidades concretas a serem retratadas na literatura, outro ponto fundamental na  
distinção entre as imagens de mundo. Trata-se de apreender e separar aquilo que um  
indivíduo pode idealizar no âmbito puramente subjetivo daquilo que, em relação ao  
mundo concreto, pode de fato ser levado a cabo. A inobservância, por parte das  
tendências vanguardistas, daquela relação entre homem e mundo, em sua  
historicidade e caráter coletivo, impossibilita a seleção das possibilidades concretas  
do real.  
A identidade entre possibilidades abstratas e concretas no homem conduz à  
incapacidade de explicar a sua realidade objetiva e, ao limite, à própria recusa de um  
mundo exterior. Esse subjetivismo confere um caráter “fantasmagórico” às  
objetivações literárias. É justamente nesse passo analítico que Lukács mobiliza o autor  
de O processo:  
Kafka, que descreve sempre os pormenores de maneira realista,  
concentra todos os meios da sua arte para exprimir esta concepção  
angustiada que ele próprio tem da essência do mundo como se ela  
constituísse efetivamente “o” real; é o mesmo que dizer que, à sua  
maneira, também ele suprime o real. Na sua obra, os pormenores  
realistas servem de matéria e de suporte a um irreal fantasmagórico,  
a um mundo de pesadelo, que deixa assim de ser um mundo e exprime  
apenas uma angústia subjetiva. (LUKÁCS, 1969, pp. 45-6)  
Desse modo, ao hiato entre literatura e mundo histórico-social corresponderia  
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uma dissolução fantasmagórica da realidade concreta. A quebra na relação em causa  
não afeta apenas o mundo objetivo, mas também a personalidade dos indivíduos  
retratados nas obras vanguardistas. A dissolução do ambiente humano é acompanhada  
pela cisão do indivíduo. Ambos os processos se reforçam mutuamente, de modo que  
o interior subjetivo e o exterior objetivo são desconectados, uma desconexão que, na  
visão de Lukács, constitui já um sistema em certas linhas da filosofia (Kierkegaard,  
Heidegger, C. Schmitt, entre outros) e avança em direção ao campo literário. Para o  
filósofo húngaro, “em todas as grandes figuras da literatura realista [...] é sempre, em  
definitivo, pela interação viva entre realidades fundamentalmente opostas que os  
personagens se acham condicionados, na sua existência e na sua evolução” (LUKÁCS,  
1969, pp. 48-9). Sendo assim, a inexistência de laços que unam interior e exterior  
impossibilita uma tensão entre o herói positivo e o seu contexto, o que debilita a  
vivacidade da personalidade retratada.  
A concepção de mundo subjacente à vanguarda decadente, assentada na ideia  
do indivíduo isolado “lançado” no mundo, desemboca em uma contraposição entre  
extremos abstratos: a banalidade cotidiana e a excentricidade, sendo que essa última  
pode chegar à patologia. Descrentes na racionalidade imanente da realidade  
circundante, os escritores da vanguarda encontram-se impossibilitados de captar e  
retratar as particularidades concretas ou tipos realistas. Lukács enumera entre os  
praticantes de tal tendência estética a Robert Musil, em cuja obra a mediocridade  
burguesa e a fuga para a neurose ameaçam assumir a forma de uma imutável “condição  
humana”, a Samuel Beckett e a James Joyce, entre os quais aquela ameaça torna-se  
realidade irrefutável (LUKÁCS, 1969, p. 54).  
O estilo conveniente à oscilação entre banalidade burguesa e excentricidade  
patológica é a “careta”. Lukács esforça-se para esclarecer que o estilo da careta em si  
não constitui um desvio antirrealista, que esse possui seu devido lugar na  
representação adequada da realidade histórico-social. Em seus termos, “é com razão,  
em larga medida, que se vê na vida cotidiana tal como a impõe o regime capitalista,  
na mediocridade burguesa, caricaturas careteantes (escleroses e dissociações) de  
personalidade humana.” Não obstante, as tendências vanguardistas, carentes de uma  
noção apropriada da normalidade cotidiana, descartada acriticamente em prol dos  
polos complementares da banalidade e da excentricidade, convergem na absolutização  
daquilo que constitui sua aparência imediata. Assim, a careta converte-se “no estado  
normal do homem, no princípio de toda a realização, no único conteúdo adequado da  
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arte” (LUKÁCS, 1969, p. 56).  
Uma literatura marcada pela concepção de mundo até aqui descrita resulta, no  
diagnóstico lukácsiano, em uma falta de perspectiva, a qual constitui o critério geral  
de seleção dos elementos essenciais e secundários a serem elaborados na obra  
literária. Esse elemento participa ativamente até mesmo no modo de recepção das  
obras (cf. LUKÁCS, 1969, p. 90). Lukács é enfático sobre a importância da perspectiva:  
[...] é ela que determina o conteúdo e a forma do projeto, que é dela  
que dependem, em cada época, as linhas diretivas que orientam a  
criação artística, que só ela constitui assim, em última análise, o  
principio universal de seleção entre o essencial e o superficial, entre  
o decisivo e o episódico, entre o importante e o anedótico, etc.  
Portanto, é a perspectiva que indica às personagens humanas criadas  
pela arte o sentido da sua evolução; é ela que faz sobressair os  
elementos decisivos, capazes de favorecer ou de impedir esta  
evolução. Na medida em que a perspectiva for traçada com mais  
clareza, o escritor pode ser mais sóbrio na escolha dos pormenores e  
contentar-se em conservar os mais intensos (os Gregos, Molière etc.)  
(LUKÁCS, 1969, p. 57).  
O filósofo húngaro atribui a Kafka justamente a recusa de uma perspectiva  
desse tipo em nome de uma suposta condição humana (eterna) como princípio de  
composição literária. Tomamos aqui a liberdade de transcrever uma passagem que,  
apesar de extensa, é ilustrativa da negatividade e repúdio manifestos por Lukács  
quando trata da impotência que emana da concepção de mundo subjacente às  
tendências de vanguarda:  
Foi Kafka quem traduziu com mais rigor e da maneira mais sugestiva  
o sentimento do mundo que resulta de tal atitude. Quando, em O  
processo, o herói principal, Joseph K, é conduzido ao suplício, o autor  
diz de forma bastante evocadora: “Pensava nessas moscas, que,  
agitando as pequenas patas quebradas, tentam escapar ao visco”.  
Esta impressão de total incapacidade, esta paralisia perante a força  
incompreensível e inelutável das circunstâncias, é o motivo  
fundamental de todos os seus livros. O que se conta em O castelo é  
muito diferente daquilo que se lê em O processo e mesmo  
completamente oposto ; no entanto, o sentimento (ou melhor: a  
concepção do mundo) da mosca caída na armadilha, que se debate  
em vão, atravessa toda a obra de Kafka. Esta impressão de impotência  
elevada ao nível de concepção do mundo, que em Kafka se  
transformou na angústia imanente ao próprio devir do mundo, o total  
abandono do homem em face dum temor inexplicável, impenetrável,  
inelutável, faz da sua obra como que o símbolo de toda a arte  
moderna. Todas as tendências que, noutros artistas, assumiam uma  
forma literária ou filosófica, reúnem-se aqui no temor pânico,  
elementar, platónico, perante a realidade efetiva, eternamente  
estranha e hostil ao homem, e isto num grau de espanto, de confusão,  
de estupor, que não tem paralelo em toda a história da literatura. A  
experiência fundamental da angústia, tal como a viveu Kafka, resume  
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bem toda a decadência moderna da arte. (LUKÁCS, 1969, p. 61)  
Símbolo da decadência da arte moderna, tal é, sem rodeios, a imagem que Lukács  
formula a respeito da obra kafkiana. Também é considerado expressão típica da  
decadência vanguardista o uso kafkiano da alegoria enquanto categoria estética.  
Tratar-se-ia de uma orientação estilística que visa a dar vida a concepções de mundo  
cuja principal característica é a negação do mundo objetivo e do caráter racional  
imanente ao ser humano e sua ação concreta. Através da alegoria aquela racionalidade  
é substituída por uma fundamentação da figuração em um transcendente essencial,  
portanto, algo destituído de história e de qualquer relação necessária. Arrimando-se  
em considerações de Walter Benjamin, Lukács é enfático ao estabelecer que a alegoria  
enquanto artifício representativo conduz à morte da historicidade e à arbitrariedade  
na figuração dos pormenores, ainda quando esses guardam um enorme “poder de  
sugestão”, como é justamente o caso na obra de Kafka3. Falando dos burocratas e  
administradores presentes em O processo e O castelo e também da figuração que  
promovem da sociedade capitalista (de tonalidade austríaca)4, Lukács assevera que aí  
a justa intenção de figurar a realidade particular vivenciada pelo autor é prejudicada  
pelo uso da alegoria:  
O elemento alegórico entra aqui na medida em que toda a existência  
desta camada [burocrática V. L. S.] e dos seres que dela dependem  
(as suas vítimas indefesas) não é representada como uma realidade  
efetiva concreta, mas como o reflexo intemporal desse nada, dessa  
transcendência que, sem que ela própria exista, determina porém tudo  
o que existe. (LUKÁCS, 1969, p. 73)  
Tem-se, desse modo, ao invés da “particularidade típica”, objetivo central da  
arte de tendência realista, uma “particularidade abstrata”. O que obstaculiza a  
obtenção da primeira é a transcendência alegórica, a qual reduz ao nada a realidade  
concreta cujos efeitos o autor experimentou de maneira tão emblemática. Esse  
ambiente exterior comparece em Kafka de duas maneiras: em primeiro lugar, o  
conteúdo propriamente artístico refere-se às particularidades concretas do velho  
império austríaco; em segundo, o ar de indeterminação presente na obra exprime-se  
3
A esse respeito, é importante observar que, ao afirmar a existência de uma espécie de zona de  
convergência entre as tendências contrapostas, Lukács exalta o rigoroso realismo que Kafka atinge na  
descrição dos detalhes. Não obstante, o filósofo húngaro não deixa de registrar a presença, no autor  
tcheco, de um processo de “metamorfose”, por meio do qual aquele realismo nos pormenores  
desemboca em uma cabal negação do mundo objetivo (cf. LUKÁCS, 1969, pp. 78-9; 84).  
4 Para Lukács, a obra de Kafka capta o sentimento de angústia que os indivíduos experimentam diante  
da realidade do capitalismo imperialista, inclusive com o “pressentimento das suas variantes fascistas”  
(cf. LUKÁCS, 1969, p. 85).  
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com a ingenuidade do pressentimento que antecipa as realidades infernais do  
capitalismo posterior (cf. LUKÁCS, 1969, p. 122). No entanto, o fenômeno particular é  
elevado direta e formalmente ao nível da máxima abstração, o nível do universal,  
referente aqui a uma realidade transcendente. O recurso à alegoria impede Kafka de  
visar a realidade, a qual constitui a mediação entre o particular e o universal. Perde-se  
assim a noção de que o particular vivido constitui um momento, não um quadro  
estático intemporal. O filósofo faz questão de frisar que, enquanto sintetiza todo um  
quadro das tendências decadentes, o problema aqui evocado não se refere apenas a  
uma questão de formas, conteúdos ou modos de escrita, mas sim à concepção  
vanguardista de mundo (cf. LUKÁCS, 1969, p. 74).  
Para Lukács, Kafka se encaixa na categoria dos escritores que sucumbem à  
aparência imediata da realidade capitalista, à angústia e à sensação de impotência que  
lhe corresponde, tornando-se com isso um difusor de uma imagem de mundo na qual  
esses elementos assumem o primeiro plano. Afirma ainda que, mais tarde, esses  
aspectos intelectuais e emocionais constituiriam uma atmosfera bastante favorável ao  
trabalho de propaganda do fascismo e da guerra fria (cf. LUKÁCS, 1969, p. 101). No  
geral, a imagem de mundo aqui presente é estreitamente ligada a uma atitude de  
recusa prévia do socialismo, fato que veda para o escritor vanguardista qualquer  
perspectiva de futuro, isto é, impossibilita qualquer compreensão profunda da  
evolução social e das leis que a regem (cf. LUKÁCS, 1969, pp. 97-103; 114-6).  
“Verdadeiro artista”, “artista incomparável”, “brilhante observador”, escritor  
capaz de antecipar a concretude infernal de um capitalismo posterior, mesmo  
admitindo essas qualidades no autor tcheco, o diagnóstico de Lukács é peremptório:  
Kafka é encarado e descartado como “decadência artisticamente interessante”,  
verdadeiro antípoda de um “realismo crítico verdadeiro como a vida”5. É este o  
5 De acordo com Lukács, do ponto de vista burguês é Thomas Mann quem figura como o contraponto  
ideal ao tipo de literatura praticada por Kafka. Nesse sentido, embora longa, a seguinte passagem é  
bastante elucidativa: “No hic et nunc de Thomas Mann, procurar-se-ia em vão qualquer tendência para  
uma transcendência; na sua obra, o lugar e o tempo, com todos os seus pormenores, concentram sempre  
em si próprios, histórica e socialmente, o essencial de uma situação concreta, histórica e social. Thomas  
Mann mantém os pés firmes na terra, mesmo em relação à sociedade burguesa. Põe clara e  
tranquilamente a perspectiva do socialismo, sem renunciar (mesmo num momento de fraqueza) ao seu  
ponto de vista consciente de si próprio, e sem se permitir (enquanto escritor) a mínima tentativa para  
dar lugar na sua obra (enquanto objeto literário) a qualquer aspecto desse outro mundo, ou mesmo,  
somente, aos esforços que tendem a apressar a sua vinda. [...] Mas esta parcimoniosa negatividade de  
perspectiva desempenha um papel decisivo na sua obra; é sobre ela que repousa a exata proporção  
entre o ser e o devenir. Tal como o descreve Thomas Mann, cada elemento concreto do presente move-  
se em direção a uma realidade concreta, e o significado humano de cada movimento a sua importância  
em função do progresso da humanidade sobressai sempre sem equívoco. É de nossa realidade efetiva  
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diagnóstico desolador e, digamo-lo francamente, infeliz, em que culmina a análise de  
Lukács acerca da obra de Kafka em Realismo crítico hoje.  
Nos anos posteriores, como já pudemos observar na resposta a Coutinho, a  
visão lukacsiana do autor tcheco mudaria substancialmente, ainda que sem  
desenvolvimentos sistemáticos no campo da exegese. Assim, em sua Estética I (1963),  
Lukács oferece um diagnóstico que parece desatrelar Kafka da visão de mundo  
atinente à tradição da vanguarda. Em contraste com a impotência niilista dessa última  
perante as contradições sociais, que resulta na fetichização da objetividade social, a  
obra kafkiana professaria um protesto humanista, evidência de uma capacidade crítica  
de perceber a unidade ineludível do interno e do externo (isto é, de sujeito e objeto,  
indivíduo e gênero, ser humano e natureza). É nesse sentido que Lukács contrapõe os  
trabalhos de Kafka e Beckett:  
Em O processo, a incognoscibilidade absoluta do indivíduo particular  
aparece como uma anormalidade da existência humana, que evoca um  
sentimento de rebelião e, portanto, se apoia (ainda que  
negativamente) no destino de toda a humanidade; Beckett, ao  
contrário, se instala prazerosamente, de modo fetichista, na  
particularidade absolutizada. [...] A aparente profundidade de Beckett  
não é mais do que a adesão a certos sintomas de uma superfície  
imediata, precisamente aquela apresentada pelo capitalismo de  
nossos dias. (LUKÁCS apud COUTINHO, 2005, pp. 216-7)  
Em texto do ano seguinte (1964), Lukács insistia na superioridade de Kafka em  
relação a Beckett:  
A visão de Kafka estava efetivamente voltada para o tenebroso nada  
da era hitleriana, para algo fatalmente real; ao contrário, o nada de  
Beckett é um mero jogo com abismos fictícios, aos quais não  
corresponde mais nada de essencial na realidade histórica [...].  
(LUKÁCS apud COUTINHO, 2005, p. 218)  
Ainda em sua Estética I, Lukács volta a exaltar a figura de Kafka, mas agora de  
modo indireto, na forma da sinalização de um parentesco entre a sua obra e a de  
Charlie Chaplin. O modo específico como esse alcançou o sucesso é o que faz lembrar  
que se trata: a realidade que nos informa e que nós informamos, aquela que a nossa experiência nos  
ensina a sentir, com todos os seus problemas, todas as manifestações de um mundo infernal nosso  
país, no entanto, nossa pátria, esse ‘círculo que dá toda a sua plenitude ao meu poder de ação’. Na  
medida mesmo em que, em Thomas Mann, os traços característicos do nosso presente são mais  
complexos, mais vivos, mais abundantes é-nos mais fácil descobrir que esse presente não é mais do  
que um fragmento do processo da vida, em que está comprometida a humanidade inteira e do qual  
podemos saber, a cada momento, de onde vem e para onde vai. Embora o autor tenha predileção pelos  
mais rebuscados detalhes, sua obra nunca nos deixa esta impressão estática que experimentamos ao  
ler a literatura naturalista. E, por mais profundamente que Thomas Mann penetre nos infernos do nosso  
mundo, nunca, na sua obra, as caretas de nossa vida são mais do que caretas, claramente concretizadas  
e reconduzidas à sua origem.” (LUKÁCS, 1969, pp. 123-4)  
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Kafka, a saber, através da figuração do homem comum diante do mundo alienado do  
capitalismo, isto é, Chaplin alcançou o sucesso  
[...] tornando simbolicamente concreto em sua existência física, em  
seus gestos e em sua mímica, com inesgotáveis variações, uma atitude  
típica do “pequeno homem”, do homem-massa, diante do capitalismo  
contemporâneo. Deste modo, na expressão da situação histórico-  
social, ele se elevou a uma tipicidade que só pouquíssimos  
contemporâneos foram capazes de atingir em outras artes. Não se  
deve esquecer o quanto o círculo emotivo das obras de Chaplin e seus  
temas sociais estão próximos do mundo de Kafka (LUKÁCS apud  
COUTINHO, 2005, p. 217).  
A similaridade de universos não impede que Lukács veja também a diferença  
entre os trabalhos de Kafka e Chaplin. O filósofo húngaro dá mesmo a entender que o  
segundo atingiu um resultado artístico mais bem acabado:  
Em Chaplin, contudo, o medo e a impotência retiram sua forma não  
apenas do interior, mas do interior e do exterior, numa indissolúvel  
unidade. Nasce assim um humorismo universal que triunfa sobre o  
medo e cuja profundidade que torna objetiva e aprofunda a  
problemática de Kafka se manifesta precisamente na medida em que  
ele faz o esotérico aparecer e operar numa forma popularmente  
exotérica. (LUKÁCS apud COUTINHO, 2005, p. 217)  
Por fim, em texto de 1964, Lukács expõe sua avaliação positiva de Kafka através  
de uma analogia com o trabalho de Swift, exatamente o que voltaria a fazer na carta a  
Coutinho, que comentamos anteriormente:  
A genialidade peculiar de Swift se expressa na profética inclusão de  
toda uma época histórica em sua visão da sociedade. Em nosso tempo,  
encontramos algo análogo somente em Kafka, quando ele põe em  
movimento todo um período de desumanidade, em oposição ao  
específico homem austríaco (tcheco-alemão-judeu) do último período  
do reinado de Francisco José. Deste modo, o mundo formal kafkiano  
adquire um caráter de profunda e dinâmica verdade, em contraposição  
aos que sem um pano de fundo histórico semelhante, sem uma base  
e uma perspectiva do mesmo tipo orientam-se diretamente para a  
nua, abstrata e portanto distorcida generalidade da existência  
humana, o que os faz desembocar inevitavelmente num completo  
vazio, no nada. (LUKÁCS apud COUTINHO, 2005, pp. 218-9)6  
Como se pode observar, a visão de Lukács acerca de Kafka passou por  
mudanças após a elaboração de Realismo crítico hoje. Ainda que o escritor tcheco não  
alcance os postos mais elevados na apreciação lukacsiana, sua obra não é mais  
localizada no campo decadente e resignado das tendências de vanguarda. Pelo  
6 Valemo-nos aqui, como o leitor atento já deve ter notado, de uma seleção prévia de textos, feita por  
Coutinho (cf. COUTINHO, 2005, pp. 215-9).  
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contrário, Lukács vê em Kafka um autor cujas obras constituem uma espécie de  
protesto pela preservação do humano na realidade alienante do capital. Para o filósofo,  
essa força da obra kafkiana é nutrida pela firme contraposição a um contexto histórico  
concreto, ainda que contraditório, e não a uma realidade abstrata.  
3
De todo modo, caberia ao jovem discípulo desenvolver em um sentido mais  
sistemático as indicações do velho mestre húngaro, superando suas unilateralidades.  
Foi nesse sentido que, por ocasião da morte do filósofo baiano, Ricardo Antunes  
afirmou que Coutinho “foi para além de seu velho mestre, transcendeu-o  
lukácsianamente.” Esse ir além deve ser visto hoje no fato de Coutinho não se limitar  
a rever apenas a apreciação lukacsiana de Kafka, mas também sua teoria da arte e da  
literatura do século XX.  
Para o filósofo baiano, a avaliação de Lukács do período presente (sustentada  
do final dos anos 1920 até meados dos 1960) lastreava toda a sua apreciação  
estética. Tal perspectiva possuía dois pressupostos, problemáticos em graus distintos.  
O primeiro era o de que, com o refluxo do ciclo revolucionário iniciado em 1917,  
haveria a necessidade de uma aliança entre as tendências da democracia radical e as  
do socialismo como resposta aos perigos reacionários e às disposições fascistas em  
gestação. A base de tal aliança no campo ideológico seria a comum defesa da razão e  
da arte realista contra o irracionalismo e a vanguarda. Já o segundo ponto de partida  
consiste na suposição, equivocada por princípio, de que o “socialismo realmente  
existente” na Rússia havia promovido de fato a emancipação humana, constituindo  
assim um farol para a intelectualidade ligada à tradição democrática na formulação de  
suas perspectivas filosóficas e artísticas.  
O primeiro pressuposto, procedente para as décadas de [19]30 e [19]40, seria  
solapado pelas condições do pós-Segunda Guerra. Apostando alto no movimento em  
defesa da paz e professando uma visão de mundo excessivamente otimista, Lukács  
não levava na devida conta as crescentes contradições no interior dos blocos em  
disputa, isto é, as novas modalidades de alienação no campo da democracia formal e  
de controle burocrático no âmbito do socialismo realmente existente. Baseado nos  
referidos pressupostos, Lukács condicionava o êxito artístico à não recusa a priori do  
socialismo no horizonte intelectual dos artistas. Tal era a distinção fundamental entre  
realismo crítico e vanguarda. Se o primeiro se mantinha simpático ou mesmo  
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indiferente àquele ideal, o segundo aderia a uma visão de mundo profundamente  
pessimista. Assim, Lukács não assimilou o caráter justificável de certo pessimismo em  
relação às realidades tanto do campo formalmente democrático quanto do soviético,  
e manteve uma contraposição radical entre razão e irracionalismo, realismo e  
vanguarda decadente, defesa da paz e apologia da guerra. De acordo com Coutinho,  
se este fechamento para o futuro seguramente era prejudicial no campo da filosofia,  
nas artes, quando mantido dentro de certos limites, seria justificável e poderia dar  
lugar a obras de grande valor estético e humano, especialmente na lírica e na novela.  
O autor baiano assevera que não apenas a refutação do socialismo realmente existente,  
mas também certos valores da época revolucionária da burguesia e mesmo um  
anticapitalismo romântico poderiam constituir bases frutíferas para obras realistas (cf.  
COUTINHO, 2005, pp. 26-37).  
Desde a publicação de História e consciência de classe a fórmula que preconiza  
ser possível seguir o essencial de um autor mesmo desconsiderando suas afirmações  
particulares sobre um dado assunto costuma significar, pelo menos entre os marxistas  
ligados a Lukács, a adesão a um método. Não é diferente no caso presente. Trata-se  
aqui do “método histórico-sistemático” ou “genético-estético”, “que articula  
organicamente as determinações histórico-sociais com as determinações estruturais  
imanentes (no caso, as determinações estéticas) das objetivações humanas” (LUKÁCS,  
1969, p. 39). Isto é, caberia ao pesquisador apreender o conteúdo histórico-social que  
serve de pressuposto à obra e verificar o modo como o mesmo é reposto  
artisticamente. Assim, tem-se a apreensão da gênese social e de sua resultante  
estética7. O segundo problema fundamental em Realismo crítico hoje seria justamente  
o abandono do método em questão, utilizado desde O romance histórico (1936-37)  
e retomado em outras obras.  
Na obra de 1957, além de não iniciar seu trabalho pela análise da realidade  
social, como costuma fazer em seus melhores trabalhos, o filósofo húngaro atribui aos  
escritores analisados o que chama de “concepção do mundo subjacente à vanguarda”,  
uma visão nucleada pela ideação do homem como ser essencialmente isolado e da  
realidade como sendo desprovida de sentido imanente. Essa visão de mundo, comum  
em várias filosofias de tipo irracionalista, não é extraída por Lukács da leitura interna  
7
O fato de que, para Lukács, arte e filosofia tenham o mesmo objeto (a realidade histórico-social) não  
deve levar à suposição de uma supressão de suas especificidades, pois possuem um funcionamento  
distinto. Enquanto o reflexo artístico se dá de modo antropomorfizador, o filosófico se realiza de maneira  
desantropomorfizadora (cf. LUKÁCS, 1966).  
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das obras literárias dos autores, mas, no geral, constitui fruto de imputação. Nos casos  
em que mobiliza provas da suposta adesão de um autor à visão irracionalista, é comum  
o filósofo recorrer às declarações conceituais desse autor (presentes em cartas, ensaios  
teóricos, fragmentos etc.)8. Assim, deixa de lado a noção de arte como representação  
ou figuração mimética da realidade histórico-social, em prol da ideia de arte como  
expressão direta de uma visão de mundo, algo mais próximo da leitura sociológica  
feita por autores como Lucien Goldmann. Também é descartado outro elemento  
importante do método histórico-sistemático, a saber, a noção de “vitória do realismo”.  
Tomada de empréstimo a Friedrich Engels, essa noção se refere às situações nas quais  
um autor, fiel à representação da realidade que lhe serve de base, produz uma obra  
na qual são superados os limites de suas posições político-filosóficas.9 Tal seria o caso  
de alguns expoentes da vanguarda que alcançaram o realismo, não importando a visão  
que tivessem do mundo.  
A denúncia dos limites da visão de Lukács engloba ainda a consideração de  
que, juntamente com o descarte temporário do método histórico-sistemático, o filósofo  
húngaro deixou de aplicar no livro de 1957 uma de suas teses mais brilhantes à  
literatura do século XX, a saber, a ideia segundo a qual “a obra de arte autêntica [...]  
satisfaz as leis estéticas apenas na medida em que, ao mesmo tempo, as amplia e  
aprofunda” (LUKÁCS apud COUTINHO, 2005, p. 42). Já em meados dos anos 1960,  
Lukács percebeu que esse processo de ampliação e aprofundamento na literatura  
contemporânea passava por uma combinação do realismo crítico com técnicas  
desenvolvidas pela vanguarda. No final da mesma década, deu um passo decisivo ao  
indicar “o modo pelo qual os novos pressupostos sociais e ideológicos do capitalismo  
8
A este respeito, deve-se observar que Adorno já havia advertido para o perigo da avaliação pautada  
na filosofia do autor: “Seja como for, o conteúdo desses pensamentos [de Kafka – VLS] não é canônico  
para a obra literária. O artista não é obrigado a entender a própria obra, e há razões suficientes para  
se duvidar que Kafka tenha entendido a sua. [...] As criações de Kafka se protegem do erro artístico  
mortal que consiste em crer que a filosofia que o autor injeta na obra seja o seu teor metafísico”  
(ADORNO, 1998, p. 242).  
9 “Quanto mais as opiniões do autor permanecerem ocultas, tanto melhor para a obra de arte. O realismo  
a que me refiro deve se manifestar a despeito das opiniões dos autores. Permita-me dar um exemplo,  
o de Balzac, que eu considero um grande mestre do realismo, maior do que todos os Zolas passados,  
presentes e futuros […]. Balzac era politicamente legitimista; suas simpatias estão com a classe [a  
aristocracia] destinada à extinção […]. Que Balzac tenha sido obrigado a ir de encontro às suas próprias  
simpatias de classe e a seus preconceitos políticos; que ele tenha visto a necessidade do colapso dos  
aristocratas com os quais simpatizava e os tenha descrito como gente que não merecia um destino  
melhor; que ele tenha visto os verdadeiros homens do futuro no único lugar em que, naquela época,  
eles podiam ser vistos eis o que considero uma das maiores vitórias do realismo e uma das maiores  
realizações do velho Balzac” (ENGELS apud COUTINHO, 2005, p. 227). Na verdade, Lukács se utiliza da  
noção de vitória do realismo em seu livro de 1957, mas o faz em um contexto não atinente a Kafka (cf.  
LUKÁCS, 1969, p. 113).  
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tardio conduziram a uma modificação formal da estrutura romanesca, cujo centro não  
mais seria, como no romance tradicional, a figuração de uma ‘totalidade de objetos’  
[...] mas a de uma ‘totalidade de reações’” (COUTINHO, 2005, pp. 44-5). Assim, a  
narrativa tradicional do século XIX dá lugar a uma estrutura na qual um “teatro social”  
aglutina os indivíduos e os força a encarar de modo intensificado os problemas  
ideológicos que, no cotidiano, se apresentam de modo disperso.  
4
Desse modo, é na tentativa de assumir as indicações metodológicas e  
desenvolver os princípios adiantados pelo velho mestre húngaro que Coutinho  
concebe seu trabalho acerca da obra de Kafka10. O ensaio em que realiza a tarefa em  
questão abre com a sinalização de uma mudança na narrativa. No realismo típico do  
século XIX (Balzac, Stendhal, entre outros), em conformidade com as perspectivas  
otimistas oferecidas pelos processos revolucionários burgueses, figurava-se o  
empenho individual no sentido da plena realização das potencialidades humanas, o  
qual desembocava em um destino trágico ou tragicômico que já revelava o caráter  
ilusório de tais perspectivas. Em momento posterior, em obras como A educação  
sentimental (Flaubert) e Em busca do tempo perdido (Proust), aquele ambiente vai se  
tornando cada vez mais degradante, de modo a se tornar indigno das ambições de  
realização individual. Sobra, no entanto, especialmente no segundo caso, uma fuga  
subjetiva tendente à conservação da integridade humana. Já na dinâmica própria do  
novo século, condena-se a um fim trágico mesmo o indivíduo médio, conformado com  
sua posição na divisão social do trabalho. Tal é o caso em algumas das obras de Kafka,  
nas quais nem mesmo a fuga já é mais possível:  
o homem já não pode “contornar”, ainda que ilusória ou  
transitoriamente, o fetichismo dissolutor que o atinge por toda parte,  
até o mais recôndito de sua vida privada, em seu quarto de dormir  
(como em A metamorfose e em O processo) ou no fantástico bunker  
construído precisamente para isolar-se do mundo ameaçador (como  
em A construção) (COUTINHO, 2005, pp. 126-7).  
O passo seguinte de Coutinho é então a averiguação do cenário histórico social  
utilizado pelo escritor tcheco como base para suas composições. Trata-se de captar a  
distinção entre as fases atravessadas pela dinâmica do modo de produção capitalista,  
10 Nesse ponto, cabe um esclarecimento: o ensaio de Coutinho foi publicado em 1977, na revista Temas  
de ciências humanas, mas, devido ao fato de o autor ter revisto seu trabalho, com acréscimos e  
alterações, optamos pela versão mais recente (cf. COUTINHO, 2005, pp. 123-95).  
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a saber, o processo de desenvolvimento que leva do capitalismo liberal ao  
monopolista. Para o autor, a dialética “entre causalidade e necessidade na  
determinação da ação individual operava de tal modo, na época liberal do capitalismo,  
que os espaços livres só se fechavam ‘em última instância’”. No âmbito da literatura,  
isso permitiu aquela margem de manobra na qual se moviam os heróis problemáticos  
do romance burguês, ou, no dizer de Coutinho, “a contradição entre a tentativa de se  
manter (ou de se mover) no interior dessa ‘faixa livre’ e o triunfo final das ‘forças  
objetivas’, impondo a capitulação conformista, a resignação ou a derrota trágica, é  
precisamente o conteúdo essencial do romance realista do século XIX” (COUTINHO,  
2005, p. 128).  
Já na transição para o “capitalismo dos monopólios”, em especial para o  
“capitalismo monopolista de estado”, aquela dialética altera-se no sentido de diminuir  
o campo da ação individual. Trata-se aqui de um processo de ampliação da  
“manipulação”, partindo da economia em direção às demais esferas da sociedade. Em  
tal configuração social, “a necessidade da ‘força objetiva’ que nega a liberdade  
individual não abre mais seu caminho apenas ‘em última instância’; ela se impõe cada  
vez mais como uma ‘primeira instância’, como uma experiência imediata já no seio da  
vida cotidiana” (COUTINHO, 2005, p. 129). Esse é o pressuposto histórico da figuração  
elaborada por Kafka, o cenário da transição entre o capitalismo liberal e o monopolista,  
uma realidade na qual ocorre um “endurecimento crescente do ambiente social”, um  
“paulatino estreitamento dos espaços individuais de manobra”. Desse modo, o  
problema evocado por Kafka é assim resumido por Coutinho:  
em nosso tempo, nem mesmo o homem médio ou seja, o homem  
desprovido de qualquer impulso no sentido de uma autofruição  
verdadeiramente humana da própria personalidade e muito distante  
de ser um inconformista (como o eram Julien Sorel, Lucien de  
Rubempré, Raskolnikov ou mesmo o narrador da Recherche) pode  
se julgar a salvo daquela “força objetiva” que, à sua falsa consciência,  
aparece como um destino fatal. O choque trágico com a realidade  
alienada não é mais o resultado de uma batalha na qual a iniciativa  
pertence ao indivíduo e que, por isso mesmo, atinge apenas algumas  
figuras excepcionais (ainda que típicas no sentido lukácsiano da  
expressão). Kafka nos mostra que uma tal situação pode ocorrer até  
mesmo ao mais oco e medíocre conformista (COUTINHO, 2005, p.  
131).  
Sendo assim, o tema central dos melhores trabalhos de Kafka, que o tornam  
um precursor do realismo próprio do século XX, seria a jornada do indivíduo que, não  
obstante seu caráter mediano, sua falta de iniciativa contra a realidade alienada da  
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divisão burocratizada do trabalho, é oprimido em sua vida cotidiana por uma estrutura  
impessoal. Não se entenda aqui o afirmado conformismo figurado como sinônimo de  
arte naturalista, isto é, como mera descrição de um mundo cinzento. No universo  
kafkiano não é estranha a presença de personagens que, mesmo não se esforçando  
pela realização social de suas potencialidades, lutam pela conservação de sua  
integridade subjetiva, algo transparente no sentimento de inadequação e na  
inquietude reinantes em seu interior. Assim, Kafka denuncia não só o caráter insensato  
e anti-humano da ideologia da segurança no mundo manipulado, mas sua própria  
falsidade, revelando-a como mera máscara, que a qualquer momento pode dar lugar  
à irrupção do absurdo e do arbitrário na vida do mais pacífico dos indivíduos. Basta  
pensar aqui nos casos de Gregor Samsa e Josef K.  
O mundo enrijecido que se oculta por trás da ideologia da segurança provoca  
no homem médio figurado por Kafka uma oscilação entre o temor e a esperança.  
Coutinho destaca a inconsciência desse indivíduo médio quanto à legalidade histórico-  
social que rege seu mundo, pois se trata aqui de um resultado de uma constelação  
concreta, e não de uma condição eterna (abstrata). Isto é, a inconsciência emerge como  
fruto da incapacidade dos personagens de irem além das barreiras da divisão alienada  
do trabalho, o que faz com que se choquem com a burocracia desprovidos de uma  
apreensão da realidade que supere a consciência manipulatória típica de sua época.  
Não obstante, a figuração kafkiana não estaciona no nível meramente descritivo da  
mediocridade, mas cria uma margem de manobra entre as alienações objetiva e  
subjetiva. Em outros termos: Kafka cria entre os sistemas burocráticos e a falsa  
consciência um âmbito de inquietação, atinente à impossibilidade objetiva de os  
personagens se adequarem aos papéis alienados a eles impostos.  
Sendo assim, a visão do mundo imanente aos melhores trabalhos de Kafka é  
apreendida por Coutinho a partir da visualização de uma denúncia clara de uma  
realidade histórico-social determinada de modo concreto, bem como da figuração de  
certo número de reações subjetivas alternativas diante da corrupção do núcleo humano  
promovida por essa realidade. A visão de mundo em questão também é captada a  
partir da articulação que Kafka promove entre indivíduo e sociedade. Na obra do autor  
tcheco a determinação da vida humana pela existência social se dá em dois níveis:  
Por um lado, no plano subjetivo, preenchendo com uma visão  
burocrática os conteúdos da consciência deste homem; e, por outro,  
no plano objetivo, destruindo “por baixo” a aparente normalidade de  
sua vida cotidiana e colocando-o frente a frente com os poderes  
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sociais reificados. (COUTINHO, 2005, p. 139)  
Desse modo, Kafka mostra ter aprendido a lição aristotélica quanto ao caráter  
social do humano e prova-se um autêntico continuador da tradição realista. Observe-  
se aqui, de passagem, que Coutinho não está sozinho ao pensar Kafka como escritor  
que busca uma figuração de caráter realista. Tentativas no mesmo sentido e com a  
mesma convicção podem ser encontradas em Günther Anders (2007) e Modesto  
Carone (2008 e 2011).  
Fixado o pressuposto histórico da reposição estética kafkiana, Coutinho busca  
solucionar um aparente paradoxo: o de que Kafka tenha figurado uma realidade que  
não conhecia, pois a nova situação só estaria plenamente constituída no período pós-  
crise de 1929, com as medidas impostas para impedir a repetição dessa última. O  
filósofo baiano esclarece que Kafka representa a realidade do capitalismo monopolista  
a partir de seus aspectos latentes na realidade do capitalismo liberal, em particular na  
época de transição vivida pelo escritor tcheco. Trata-se, em suma, da figuração de  
elementos inerentes ao capitalismo em geral. No entanto, ainda mais importante para  
comprovar a tese de Coutinho é o fato de que os germes do monopolismo e do  
fascismo que dormitavam no período liberal, e que só eclodiriam mais tarde, foram  
artisticamente antecipados por Kafka. Isto é, o escritor se valeu da possibilidade,  
aberta pela “natureza peculiar da mimese estética que se fixa sobre uma  
particularidade concreta e não sobre a universalidade conceitual –”, de antecipar  
tendências que só posteriormente seriam totalmente explicitadas11. Adorno já havia se  
11 Para Walter Benjamin, era o vínculo de Kafka com a tradição que lhe possibilitava captar o elemento  
moderno, o que está por vir: “O que de fato — e num sentido preciso é maluco em Kafka, é que este  
recentíssimo mundo de experiência lhe foi confidenciado justamente pela tradição mística. Naturalmente  
isso não foi possível sem processos devastadores […] dentro dessa tradição. A dimensão exata da coisa  
é que evidentemente foi necessário apelar a nada menos que às forças dessa tradição para que um  
indivíduo (que se chamava Franz Kafka) pudesse se defrontar com a realidade que se projeta como a  
nossa, teoricamente, por exemplo, na física moderna, e em termos práticos, na técnica da Guerra. […]  
Quando se diz que ele percebeu o que vinha, sem perceber o que é de hoje, é porque ele o fez  
essencialmente como o indivíduo que foi atingido. Seus gestos de susto são beneficiados pela magnífica  
margem de manobra que a catástrofe não irá conhecer. Mas na base dessa experiência repousava  
apenas a tradição à qual Kafka se entregou; nem visão longínqua, nem ‘dote de vidente’. Kafka escutou  
a tradição e quem escuta com muito esforço não vê” (BENJAMIN, 1993, p. 105). Mesmo autores  
quilometricamente distantes dos parâmetros marxistas como Gilles Deleuze e Félix Guattari captaram o  
elemento do futuro na obra kafkiana. Podemos observar isso em diversas passagens de seu livro  
dedicado ao escritor tcheco: “A linha de fuga criadora arrasta com ela toda a política, toda a economia,  
toda a burocracia e a jurisdição: ela as suga, como o vampiro, para fazê-las emitir sons ainda  
desconhecidos que são os do próximo futuro fascismo, stalinismo, americanismo, as potências  
diabólicas que batem à porta” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, pp. 76-7). Mais à frente, os autores em  
questão assinalam que “Kafka abre para si um campo de imanência que vai funcionar como uma  
desmontagem, uma análise, um prognóstico das forças e das correntes sociais, das potências que, à sua  
época, ainda não fazem mais que bater à porta” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 102). Por fim: “Este  
método de aceleração ou de proliferação segmentária conjuga o finito, o contíguo, o contínuo e o  
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manifestado acerca da referida possibilidade no universo kafkiano, ao dizer que “Kafka  
desmascara o monopolismo nos refugos da era liberal liquidada pelos monopólios.  
Este instante histórico, e não um atemporal que perpassa a história, é a cristalização  
da metafísica de Kafka”. O crítico também via no escritor tcheco a expressão da  
variante nazista do capitalismo monopolista:  
O conteúdo de sua obra [de Kafka] aponta mais para o nacional-  
socialismo do que para o domínio oculto de Deus [...]. O método de  
Kafka foi confirmado quando os obsoletos traços liberais da anarquia  
da produção mercantil, que ele tanto acentua, retornaram sob a forma  
da organização política [nazista] da economia desregulada. (ADORNO  
apud COUTINHO, 2005, p. 141)  
Além do recurso estético da antecipação, Coutinho considera ainda o fato de  
que a condição de súdito do Império Austro-Húngaro facilitou a Kafka o trabalho de  
antecipar artisticamente a realidade do capitalismo tardio. Trilhando uma “via  
prussiana” de desenvolvimento capitalista, isto é, empreendendo uma modalidade de  
desenvolvimento tardio e a partir de determinado momento acelerado, o Império  
teria antecipada sua necessidade de aparatos de controle sobre a sociedade. Nos  
termos do autor:  
Como a Alemanha, o Império Austro-Húngaro seguira uma “via  
prussiana” para o desenvolvimento capitalista; isso significa que tal  
desenvolvimento se processou em conciliação com as velhas  
instituições feudais, em particular com a conservação do caduco  
aparato burocrático ligado à monarquia centralizada. Pouco a pouco,  
porém, essas velhas formas começaram a assumir um conteúdo novo,  
um conteúdo capitalista. Com efeito, a “industrialização atrasada e  
depois forçada” – que é um dos traços econômicos mais  
característicos “da via prussiana” – requer uma sólida intervenção  
econômica do Estado e, por conseguinte, o fortalecimento de suas  
funções burocráticas. [...] Assim, por vias transversas, um Estado  
relativamente atrasado colocava-se à frente dos mais desenvolvidos  
na antecipação de tendências que, nesses últimos, manifestavam-se  
de modo mais lento e mais complexo, em virtude das tradições  
nacional-populares e democráticas neles existentes (sociedade civil  
mais forte, maior controle “de baixo” sobre a burocracia etc.).  
(COUTINHO, 2005, p. 144)12  
ilimitado. Ele tem muitas vantagens. A América está se endurecendo e precipitando seu capitalismo, a  
decomposição do império austríaco e a ascensão da Alemanha preparam o fascismo, a revolução russa  
produz com grande velocidade uma nova burocracia inaudita, novo processo judicial no processo, ‘o  
antissemitismo atinge a classe operária’ etc. Desejo capitalista, desejo fascista, desejo burocrático,  
Tânatos também, tudo está lá batendo à porta. Já que não se pode contar com a revolução oficial para  
romper o encadeamento precipitado dos segmentos, contar-se-á com uma máquina literária que adianta  
sua precipitação, que ultrapassa as ‘potências diabólicas’ antes que elas estejam todas constituídas,  
americanismo, fascismo, burocracia: como dizia Kafka, ser menos um espelho que um relógio que  
adianta.” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, pp. 107-8)  
12  
Observe-se que, ao contrário de Coutinho, Lukács via na origem nacional de Kafka um meio para a  
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Essa origem austro-húngara seria a causa da tipicidade temática de Kafka, mas  
o caráter universal do modo como é figurada decorre, segundo Coutinho, do judaísmo  
específico do escritor. Não nos referimos aqui à visão, corrente entre os intérpretes,  
de que os temas kafkianos estão ligados à tradição “messiânica”, mas sim a uma  
indicação de uma orientação universalista. A tendência seguida por Kafka é  
caracterizada como “concretamente humanista, aberta à integração na comunidade  
humana universal, defensora de um autêntico internacionalismo, compreendido como  
a única solução progressista para o problema nacional judaico” (COUTINHO, 2005, p.  
147). Citando uma definição de Isaac Deutscher, o filósofo baiano considera Kafka “um  
judeu não-judeu”, um tipo que vive entre fronteiras históricas, religiosas e culturais,  
aprendendo e contribuindo com cada povo de modo a produzir um pensamento que  
se eleva acima das particularidades locais.  
No que se refere à reposição estética, Coutinho mostra como a captação  
kafkiana da universalidade do capitalismo monopolista no nível “do universal enquanto  
novidade emergente” implica a novela como forma. Segundo o filósofo baiano:  
Kafka figurou a universalidade do seu tempo sob a forma da novela e  
não sob aquela do romance. Diferentemente do romance, que figura  
a universalidade de um período histórico na totalidade explicitada de  
suas mediações, na rica e polimórfica articulação de suas várias  
determinações objetivas, a novela ilumina a totalidade a partir da  
representação de um evento singular sintomático. (COUTINHO, 2005,  
pp. 152-3)  
Diante da deflagração de apenas alguns sintomas do capitalismo tardio no  
período de transição, Kafka só podia figura-los, com sucesso, através da forma  
novela13. Desse modo, os eventos singulares que desencadeiam os relatos kafkianos  
(tais como a metamorfose de Gregor Samsa e o processo contra Josef K) constituem  
“pontos focais” que explicitam problemáticas típico-sociais da realidade do capitalismo  
monopolista, sem a necessidade da figuração de uma totalidade de objetos ou de  
reações. A tipicidade está presente não só na irrupção do absurdo como forma de  
antecipação, mas também no modo de reação dos personagens aos eventos singulares  
não-cotidianos que os afetam: sua luta contra a corrupção do núcleo humano de sua  
fuga na alegoria (cf. LUKÁCS, 1969, pp. 122-3; COUTINHO, 2005, p. 145).  
13  
Adorno parece ter pressentido a inadequação da noção de romance para definir os trabalhos de  
Kafka: “Seus romances, se é que de fato eles ainda cabem nesse conceito, são a resposta antecipada a  
uma constituição do mundo na qual a atitude contemplativa tornou-se um sarcasmo sangrento, porque  
a permanente ameaça da catástrofe não permite mais a observação imparcial, e nem mesmo a imitação  
estética dessa situação.” (ADORNO, 2003, p. 61)  
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Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
individualidade.  
Sendo assim, a forma da novela permitiu a Kafka, em suas melhores produções,  
uma articulação perfeita de conteúdo histórico-social (e ideológico) e reposição  
estética14. Não obstante, a utilização da novela por si não garantiria o mesmo nível de  
êxito artístico, isto é, a mesma aproximação à figuração da totalidade. De acordo com  
Coutinho, deve-se enfatizar aqui a questão das possibilidades históricas, ou seja, o  
nível de desdobramento da universalidade de uma dada problemática. Em combinação  
com o talento individual, aquele desenvolvimento condiciona as possibilidades  
estéticas, de modo a acolher desníveis no interior da obra de um mesmo novelista. Tal  
seria o caso de Kafka. As parábolas Na colônia penal e Durante a construção da  
muralha da China, as novelas A metamorfose, o fragmento de Amália em O castelo e,  
sobretudo, O processo, constituem, no entender de Coutinho, casos exitosos, pois aí  
a problemática retratada se aproxima do mais alto nível de universalidade possível na  
época. Já em outras novelas, como é o caso de O veredicto, o evento que desencadeia  
a história não é portador da tipicidade necessária, isto é, não apresenta os devidos  
vínculos com o todo social. Nesse caso, a biografia do autor é o único meio de acesso  
ao sentido da obra. Comparando O veredicto, A metamorfose e O processo, Coutinho  
vê nesse último a novela de Kafka em que a universalidade atinge seu ponto mais  
elevado (COUTINHO, 2005, pp. 159-65). Além da queda na mera singularidade nos  
casos da novela naturalista, há ainda o caso das parábolas alegóricas, nas quais o  
acaso é mera ilustração de um universal abstrato, não mundano. Também aqui deve-  
se recorrer ao universo filosófico do autor na busca do significado.  
A utilização da forma novela foi conjugada por Kafka com a técnica  
representativa do fantástico. Não se trata aqui apenas das obras em que esse aparece  
explicitamente, como em A metamorfose: “todo o ‘mundo’ kafkiano é envolvido por  
uma atmosfera fantástica, por uma estranheza que o distancia decisivamente das  
formas ‘normais’ de aparição da realidade cotidiana.” (COUTINHO, 2005, p. 165). Para  
o filósofo baiano, esse recurso serve à criação de uma arte realista nos melhores  
14 Observe-se, de passagem, que a posterior evolução do real, possibilitando a figuração romanesca da  
universalidade antes figurada de modo novelístico, não invalida a verdade poética do universo kafkiano.  
A permanência dessa última é garantida pelo fato de a arte realista possibilitar a representação de um  
dado momento histórico em sua relação com a continuidade do desenvolvimento humano, permitindo  
sua rememoração por parte de pessoas de um período posterior. Além disso, a obra de Kafka, ao fixar  
uma dada fase da formação econômico-social capitalista, mostra uma universalidade que, mesmo já  
desdobrada em uma totalidade mais complexa, continua a constituir uma realidade com a qual a  
humanidade está envolvida (cf. COUTINHO, 2005, pp. 155-6).  
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trabalhos do autor tcheco, isto é, aí o fantástico irrompe apenas na condição de figurar  
fenômenos efetivos no cotidiano dos indivíduos: “com o emprego dessa técnica  
peculiar, Kafka empresta aos poderes infernais da alienação uma forma estética capaz  
de evidenciar, de modo imediata e extraordinariamente sugestivo, a sua real natureza  
de forças obscuras, irracionais, contrárias ao humano” (COUTINHO, 2005, p. 165)15.  
Coutinho contextualiza historicamente os modos de ocorrência do fantástico e vale-se  
de observações lukacsianas para distinguir o fantástico realista, tal como emerge em  
Kafka, ou seja, como uma técnica formal a serviço da reflexão da realidade, e o  
fantástico antirrealista, uma “concepção de mundo” que dissolve o real e sua essência  
através de um jogo da fantasia subjetiva.  
Assim, nos textos kafkianos, aquele evento singular sintomático, típico da  
novela, assume por vezes a forma de um acontecimento fantástico, tal como a  
metamorfose de Gregor Samsa. O vínculo entre novela e fantástico é reforçado por  
Coutinho através da referência à sua gênese histórica moderna. O novo mundo liberto  
pelas revoluções burguesas emerge de modo episódico na realidade feudal, fazendo  
com que por vezes o contraste com o velho mundo seja entendido de modo fantástico.  
Em casos de processos de modernização tardia, como o da Alemanha ou o do império  
Austro-Húngaro, a dinâmica provém “de fora”, agudizando a dificuldade de percepção  
da nova realidade como “normal”, submetida a leis racionais. Utilizando o fantástico  
em suas novelas, Kafka pôde efetuar o devido reflexo estético dessa realidade fugidia  
em relação à representação direta16.  
O recurso à forma da parábola também é recorrente em Kafka. No entanto, o  
uso de analogias e metáforas não descamba necessariamente para o alegórico17. A  
direção aqui é a do realismo, isto é, a figuração artística do real. Assim, além de  
15  
A captação da alienação pelo autor tcheco também não escapou à argúcia de Adorno: “O  
distanciamento artístico de Kafka, o meio para tornar visível a alienação objetiva, recebe a sua  
legitimação do conteúdo. Sua obra finge um lugar a partir do qual a criação aparece tão dilacerada e  
danificada como, segundo os seus próprios conceitos, deveria ser o inferno. [...] A fonte de luz que  
apresenta as feridas do mundo como infernais é a melhor possível.” (ADORNO, 1998, p. 267)  
16  
Assim como o fizemos no resto deste artigo, resumimos muito a posição de Coutinho, mas é  
importante sinalizar que sua argumentação é bastante rica. O filósofo traça paralelos entre as obras de  
Kafka e Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, tanto em relação à sua gênese histórica quanto ao seu uso  
do fantástico. Coutinho também compara o fantástico realista em Hoffmann e Kafka, de um lado, e o  
fantástico antirrealista em Edgar Allan Poe e Eugène Ionesco, de outro (cf. COUTINHO, 2005, pp. 169-  
75).  
17  
Coutinho afirma que temos em Kafka um caso de “vitória do realismo”. Ainda que o escritor tenha  
uma intenção alegórica, essa é sobreposta pelo seu “sentimento do mundo terreno”, resultando assim,  
em suas melhores obras, na constituição de uma “autêntica figuração realista, simbólico-imanente” (cf.  
COUTINHO, 2005, pp. 163; 239).  
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Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma  
Durante a construção da muralha da China, Coutinho salienta a qualidade de trabalhos  
como A recusa, Sobre a questão das leis, Josefina, a cantora ou O povo dos  
camundongos, nos quais a dinâmica interna é ditada por problemas humanos  
concretos. A utilização da parábola acaba também, por vezes, desembocando não no  
realismo, mas na própria forma alegórica. É o caso das pequenas narrativas contidas  
em Um médico rural, nas quais o sentido dos textos geralmente é encontrado apenas  
em algo que os transcende, isto é, o processo retratado possui sua dinâmica ditada  
por algo externo.  
É enquanto escritor de novelas, uma escolha de gênero ditada pelo próprio  
conteúdo do real figurado, que Kafka pode ser considerado um “autêntico realista”. Já  
nos arremates, Coutinho busca demonstrar a validade geral dessa tese pelo seu lado  
negativo, isto é, através da investigação das investidas kafkianas no sentido de compor  
romances. Nesse particular, afirma o filósofo baiano: “Além de não poder concluí-los  
(e, no caso de um autor genial como ele [Kafka - VLS], essa incapacidade não pode ser  
considerada um fato acidental), ele chegou mesmo na tentativa de obter uma síntese  
romanesca do material – a ser por vezes infiel à realidade” (COUTINHO, 2005, p. 179).  
Os casos emblemáticos aqui são O desaparecido (ou América) e O castelo. Na forma  
em que foram apresentados por Max Brod, os manuscritos componentes de América  
não vão na direção de um romance, mas sim no de uma parábola alegórica, uma  
explicitação de uma visão transcendental do mundo. Já na forma em que foram  
deixados por Kafka, isto é, como O desaparecido, teríamos “fragmentos de um  
romance”, mas que não constituem um romance. Faltaria em ambas as organizações  
do texto a já referida “intenção de totalidade” típica da forma romanesca. O caso de  
O castelo fracassa por motivo distinto. Essa obra apresenta passagens que de fato  
constituem totalidades relativamente fechadas e sua forma de figurar os problemas  
resulta em um sentido imanente e unitário do mundo, isto é, temos aqui uma estrutura  
de romance. Não obstante, a resolução desses problemas não conduz adequadamente  
à constituição da totalidade de objetos ou de reações típica do romance. Assim, haveria  
uma contradição entre o conteúdo de talhe romanesco e a estrutura resolutiva  
novelística da obra. De acordo com Coutinho, tal contradição “talvez explique o fato  
de que, também neste caso, Kafka abandonou a obra na condição de fragmento  
inconcluso” (COUTINHO, 2005, p. 186).  
Ao estabelecer os pressupostos históricos da obra de Kafka e sua particular  
reposição estética, Coutinho define o escritor tcheco como um “crítico realista do  
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mundo manipulado”, situando-o na vanguarda do século XX. Tratar-se-ia de um autor  
cuja obra figura premonitoriamente “o ainda não do capitalismo monopolista  
‘organizado’.” Sobre o lugar de Kafka na evolução da literatura, Coutinho é sintético:  
Sua específica forma novelística, centrada decisivamente sobre a  
reação de um núcleo humano (aquele do homem comum) em face da  
alienação do presente, antecipa o tipo de romance realista  
contemporâneo, baseado sobre a figuração pluralista de uma  
totalidade de reações aos problemas vitais trazidos pelo capitalismo  
tardio. (COUTINHO, 2005, p. 192)  
O termo “vanguarda” tem aqui, evidentemente, o significado de antecipação de  
um movimento artístico de sentido realista. Coutinho faz questão de ressaltar que os  
autores típicos da assim chamada arte de vanguarda (como Albert Camus e Eugène  
Ionesco) não podem ser considerados autênticos herdeiros de Kafka. O parentesco,  
nesse caso, restringe-se à tomada de elementos temáticos e formais do universo  
kafkiano. Fica evidente aqui a diferença radical em relação ao diagnóstico de Lukács,  
visto que esse entendia Kafka como expressão exemplar do campo das tendências de  
vanguarda. O contraste torna-se ainda mais explícito quando observamos que  
Coutinho, para mostrar que a obra kafkiana não está sozinha em seu movimento de  
antecipação, cita exatamente aquele autor que Lukács acreditava ser o principal  
expoente do realismo crítico e, consequentemente, o verdadeiro antípoda de Kafka: “É  
o caso, por exemplo, de Thomas Mann, que pode ser considerado com A montanha  
mágica o principal precursor do novo tipo de romance fundado na ‘totalidade de  
reações’.” (COUTINHO, 2005, p. 193) Em suma, Coutinho apreende lukácsianamente  
uma semelhança essencial entre obras que o próprio Lukács considerava expoentes  
de movimentos fundamentalmente distintos e mesmo contrários.  
O filósofo baiano conclui seu ensaio sobre Kafka assinalando as possíveis  
influências desse autor na literatura posterior, mais em tom de indicação do que de  
definições. Coutinho sugere que os principais herdeiros de Kafka talvez estejam entre  
os escritores da literatura socialista de vertente antisstalinista, os quais denunciam em  
uma arte realista os descaminhos resultantes da dominação burocrática soviética.  
5
Como pudemos observar, Coutinho opera uma reabilitação crítica da obra de  
Kafka no interior mesmo da perspectiva marxista de Lukács, promovendo uma ruptura  
com os aspectos unilaterais que essa última apresentava em relação ao escritor tcheco  
e à literatura do século XX. Desta feita, Coutinho resgata a concepção de obra de arte  
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como representação mimética da realidade histórico-social, a noção de vitória do  
realismo e, por fim, a ideia lukacsiana segundo a qual a realização de uma autêntica  
figuração realista satisfaz as leis estéticas na medida em que as expande e aprofunda.  
Nucleado pela sondagem do cenário histórico-social que possibilitou a Kafka a  
realização de suas obras, tanto no sentido do êxito quanto do malogro, o  
empreendimento coutiniano não descuidou das leis propriamente estéticas. Assim,  
escrutina os meandros da possibilidade de antecipação estética própria da mimese, as  
virtudes do símbolo, as desventuras da parábola e, por fim, os benefícios da forma  
novela no universo kafkiano.  
Concordemos ou não com sua avaliação da compreensão lukacsiana da arte e  
da literatura do século XX, Coutinho nos ajuda a compreender a atualidade de Kafka.  
Como vimos, a validade presente de sua obra deve-se não apenas ao fato de  
proporcionar às pessoas de hoje a oportunidade de reviver um período histórico  
passado como um momento de sua própria constituição, mas também ao fato de dar-  
lhes um reflexo estético que possui certa validade também para o presente, na medida  
em que o capitalismo ainda é o real em que temos de viver. Frise-se que não se trata,  
no espírito de recorrentes tendências mecanicistas, de uma ligação direta entre as  
ocorrências econômicas e suas consequências ideológicas. Em seus melhores  
trabalhos, ao contrário, Coutinho busca explicitar em que medida o momento do  
relacionamento material entre os indivíduos abre ou fecha as possibilidades de  
entificação dos fenômenos ideais (entre os quais os artísticos), ou ainda, procura  
indicar de que maneira esses últimos são condicionados pelo momento econômico.  
Como nota final, temos de exaltar o resgate coutiniano da essência da  
abordagem lukacsiana da literatura, uma vez que essa é marcada por apreender no  
fenômeno estético uma rica e complexa articulação dialética de continuidade e  
descontinuidade. Isto é, estamos diante de um padrão de análise que capta a  
conjunção dos conteúdos histórico-sociais e das leis imanentes de sua reprodução  
estética. Possibilita-se assim a superação das unilateralidades tanto da investigação  
que aproxima sem mediações reflexo estético e visões de classes sociais quanto da  
usual redução da crítica literária ao exame dos recursos técnicos mobilizados pelo  
autor. É a riqueza deste tipo de investigação que permite que Coutinho apreenda a  
grandeza e o lugar de Kafka na história da literatura.  
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Como citar:  
SILVA, Vladmir Luís da. Lukács, Coutinho e Kafka: dois críticos e um enigma. Verinotio,  
Rio das Ostras, v. 29, n. 2, pp. 504-528; jul.-dez., 2024.  
Verinotio  
528 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 2, pp. 504-528 jul.-dez., 2024  
nova fase